quando morrer vira um bom negócio.pdf

5
morte sempre foi um assunto delicado e um tanto incô- modo. Ir ao ce- mitério, parti- cipar de um velório e enterrar uma pessoa nunca foram situ- ações muito agradáveis. No entanto, de um tempo para cá, todo esse ritual tem sido marcado pelos interesses financeiros. He- ranças que causam disputas fa- miliares, seguros de vida cada vez mais comuns, serviços inusi- tados oferecidos pelas funerárias e até a compra de ossos humanos por estudantes universitários, se tornaram atividades lucrativas responsáveis por um crescimento de um mercado da morte. Os enterros são bom exemplo CARLA VENEZUELA, JOANA FRÓES, RENATA VIOT E T ATIANE EITELWEIN Quando morrer vira um bom negócio A indesejada das gentes 13 Seguros de vida, venda de ossos e serviços funerários movimentam um mercado em ascensão Cemitério São João Batista Renata Viot

Upload: dolien

Post on 10-Jan-2017

218 views

Category:

Documents


2 download

TRANSCRIPT

Page 1: quando morrer vira um bom negócio.pdf

morte sempre foi umassunto delicado e

um tanto incô-modo. Ir ao ce-mitério, part i-

cipar de um velório e enterraruma pessoa nunca foram situ-

ações muito agradáveis. Noentanto, de um tempo para cá,todo esse ritual tem sido marcadopelos interesses financeiros. He-ranças que causam disputas fa-miliares, seguros de vida cadavez mais comuns, serviços inusi-

tados oferecidos pelas funeráriase até a compra de ossos humanospor estudantes universitários, set o rnaram atividades lucrativasresponsáveis por um crescimentode um mercado da morte.

Os enterros são bom exemplo

CARLA VENEZUELA, JOANA FRÓES, RENATA VIOT E TATIANE EITELWEIN

Quando morrer viraum bom negócio

A indesejada das gentes13

Seguros de vida, venda de ossos e serviços funeráriosmovimentam um mercado em ascensão

Cemitério São João Batista

Renata Viot

Page 2: quando morrer vira um bom negócio.pdf

desse comércio que gira em tornoda morte. Os rituais estão aindamais diferenciados e, com tantavariedade, atingem praticamentetodos os grupos sociais. Os preçose os serviços variam de acordocom as funerárias e com os ce-mitérios, e o que se pode perceberé que, definitivamente, cuidar demortos virou um negócio lucrati-vo.

A concorrência forte é explici-tada não só pelos diversos opci-onais oferecidos, como tambémpelo “plantão” que os corretoresdas funerárias fazem na porta doInstituto Médico Legal (IML). Aatividade, apesar de não parecereticamente correta, é comum, e

os empregados das casas fu-nerárias aproveitam o momentopara distribuir cartões e fazerpropaganda.

A maior parte das funeráriasdisponibiliza uma espécie deserviço completo para seus cli-entes: possuem um atendimento24 horas, fazem a liberação docorpo junto ao IML, oferecem aseus clientes convênios e planosde assistência, realizam funeraisinternacionais e ainda contamcom uma variedade de tipos deenterros e caixões, conhecidos nomercado como urnas mortuárias.

Os planos oferecidos se encai-xam em diversas categorias, dassimples às s u p e r- l u x u o s a s. Ospreços incluem urnas, flores, tras-lados, maquiagem, tratamentodo corpo e velório. Tais pacotes deserviços têm diferentes valores ecustam a partir de R$ 300, po-dendo chegar a R$ 20 mil. Alémdos gastos com a funerária, afamília também terá que pagarpelo local onde o morto é enter-rado, o chão perpétuo.

Os tipos e preços de cemitériostambém se diferenciam depen-dendo do que a família deseja.Desde os mais simples até osmais sofisticados, oferecem umae n o rme variedade. No cemitérioMemorial do Carmo, no Caju, oúnico vertical do Brasil, hávárias opções de jazigos. O maisbarato deles custa R$ 9 mil eexiste ainda a possibilidade de se

Julho/Dezembro 200414

“Os processos queenvolvem testamentos,

não dependemsomente de leis, mas

também do relacionamento dos

envolvidos”Eduardo Labruna

� Banho, barba e vestimenta. � Tamponamento - Utilização de chumaços de algodão nas cavidades da facepara obstruir o mau-cheiro. � Desodorização - Processo químico que neutraliza o odor do cadáver.� Tanatopraxia - Técnica que utiliza a aplicação correta de produtos químicosem corpos falecidos, visando à desinfecção e o retardamento do processo biológi-co de decomposição, o que permite a apresentação dos mesmos em condições me-lhores para o velório.� Necro-maquilagem – Maquiagem aplicada no morto antes do enterro.

Preparando o corpo

Renata Viot

Cemitério do Caju

Page 3: quando morrer vira um bom negócio.pdf

financiar o pagamento dos títu-los perpétuos em até 12 vezes.

Já no Jardim da Saudade, quesegue a linha de um parque, umpadrão americano, tem um visu-al diferenciado dos outros cemi-térios, com um espaço todo gra-mado e lápides padro n i z a d a s .Nele, só existe uma opção de jazi-go perpétuo, mas de acordo coma localização, os preços mudam.O mais barato é o mais distanteda capela e sai por R$ 16.400, omais caro, que tem melhor loca-lização, custa R$ 58 mil. O cemi-tério também oferece um finan-ciamento de até 10 vezes.

Para quem não pode gastartanto dinheiro, a solução são en-terros mais singelos. No Cemi-tério do Caju, os jazigos perpétu-os custam de R$ 10 mil a R$ 25mil, e ainda há como opção assepulturas de aluguel, que ficamem poder das famílias por trêsanos. Nessa categoria existem oscarneiros – quadrados de cimentoarmado – por R$ 178, as gavetas,no valor de R$ 121, e as sepul-turas rasas, que saem por apenasR$ 27.

No entanto, as variedades nãoacabam por aí. Além de sepulta-mentos tradicionais, existe aopção da cremação. A única urn ac rematória do Rio de Janeiro selocaliza no Cemitério do Caju.Para que uma pessoa seja cre m a-da, é necessário seguir os pro c e d i-mentos normais do enterro eainda pagar pelo Plano deC remação, disponível em todos oscemitérios. Os preços desse planovariam de R$ 200 a R$ 550.

Vale lembrar que, para os quenão querem ter trabalho na últi-ma hora, algumas funerárias

oferecem os planos de assistênciafuneral, no qual os interessadospagam um valor mensal pelosserviços que vão querer em seupróprio enterro. Na Santa Casa,por exemplo, o valor mínimo damensalidade é de R$ 6 e o valormáximo é de R$ 132. Depois dequitar três pagamentos, o enterrojá é inteiramente pago pela fu-nerária, caso a pessoa “morraantes do tempo”.

Seguro de vida: um mercadocrescente

Em outro setor do mercado damorte, encontramos um de seusprincipais financiadores, os se-guros de vida. Cada vez mais pes-soas pagam para garantir a suasfamílias um tipo de remuneraçãopela morte do segurado. A áreaestá crescendo a cada dia quepassa. Os comerciais se propa-garam e as propostas das segu-radoras se tornaram mais atra-entes e mais acessíveis paragrande parte da população.

Marlene Lima, dona de casa de67 anos, já tem o seguro há cincoanos e credita o crescimento doi n t e resse das pessoas em con-tratar planos desse tipo ao fato deos seguros terem se tornado maisbaratos.

– As pessoas passaram a achar aidéia mais aceitável. Antes, fazer

um seguro de vida era estranho,não era algo norm a l . Hoje emdia, não há mais esse tipo de pre-conceito, afirma Marlene.

São muitos os atrativos ofereci-dos, o que aumenta as opçõespara os interessados, e além dasseguradoras, os bancos tambémentraram no ramo, instituindo-seuma forte concorrência na área.Dependendo dos bancos, são ofe-recidas simulações de indeni-zação pela internet, a s s i s t ê n c i afuneral e residencial, que ga-rante a visita de pro f i s s i o n a i s ,sem custos extras, em casos emer-g e n c i a i s .

D e t e rminados tipos de seguropossibilitam ao cliente definir aindenização mais adequada parao bem-estar de sua família. Osp reços das mensalidades mudamc o n f o rme o valor do benefíciodesejado e da idade, sendo esta acausadora de uma variação de até1000% no valor das parcelas. Oss e rviços exclusivos chegam a 40 eem determinados casos é possívelre c o rrer ao seguro até mesmo emsituações banais, como consert ode fechadura, mudança e limpezada re s i d ê n c i a .

O mercado está se mostrandotão lucrativo e com tanta concor-rência que os seguros estão cadavez mais direcionados paraagradar os mais diferentes perfis.Um exemplo é um novo tipo deseguro direcionado apenas paramulheres, que, além das assistên-cias tradicionais, oferece a opçãode cobertura por diagnóstico decâncer de mama ou de colo doútero. Nesta situação, a clientetem o direito de receber o paga-mento do benefício em vida, sema comprovação de gastos.

A indesejada das gentes 15

“Vamos ao cemitérioe pedimos o que precisamos. Os

crânios custam emtorno de R$ 50”

R. C.

Page 4: quando morrer vira um bom negócio.pdf

Todas essas vantagens chama-ram a atenção da psicóloga JoyceQuadros, de 51 anos, que pensaem fazer um seguro de vida.Segundo ela, o atendimento espe-cial para mulheres com câncer éum grande diferencial, principal-mente na sua idade, quando aincidência da doença é maior.

– O seguro de vida é um tipo deconforto, tanto financeiro comopsicológico, na hora da morte dapessoa, diz a psicóloga.

Heranças que dividem asfamílias

O u t ro assunto ligado ao merc a-do da morte e que pode causarmuita polêmica é a herançaf a m i l i a r. Segundo o dicionárioAurélio, herança é aquilo que serecebe dos pais, das geraçõesa n t e r i o res e da tradição, umaespécie de legado, ou ainda,patrimônio (ativo ou passivo)deixado por alguém ao morre r. Jáa definição jurídica de testamentoé: “um ato de última vontade,pelo qual o autor da herança dis-põe de seus bens para depois dam o rte e faz outras disposições”.

O que seria um benefício paraos herdeiros facilmente se trans-forma em motivo de brigas e dis-putas judiciais. O aposentadoArnaldo Engel, 60 anos, já pas-sou por problemas com a he-rança de sua mãe. Há dez anos,quando Olga Engel faleceu, a suairmã passou por cima do testa-mento e desobedeceu a justiça,ficando com todos os bens deixa-dos pela mãe para os três filhos.Como Arnaldo e a irmã mora-vam em estados diferentes, osirmãos iniciaram uma batalhajudicial que durou quatro anos eresultou em um gasto de aproxi-madamente R$ 20 mil.

– Tentamos chegar a um acor-do, mas não conseguimos. Aí,eu e meu irmão optamos porentrar na justiça. Como morá-vamos em locais diferentes, ocaso ficou ainda mais complica-do. Ficamos quatro anos brigan-do na justiça e no final, eugastei um dinheirão com osadvogados – diz.

Segundo Eduardo Labruna, 35anos, advogado especialista naárea de órfãos e sucessões, osprocessos que envolvem herançae inventário são os mais impre-visíveis no direito.

– Os processos comuns geral-mente duram cerca de três anos.No entanto, processos que en-volvem testamentos, não depen-dem somente de leis, mas tam-bém do relacionamento dosenvolvidos – explica.

O testamento garante que bensdeixados pelo morto sejam en-tregues para as pessoas deseja-das. No entanto, nem sempre alei é válida, pois em caso deassassinato do possuidor dosbens, a herança é anulada.

– Existe um dispositivo legalque diz que aquele que atentarcontra a vida do testador, ficaráfora da herança. Por exemplo, seuma filha tenta matar a mãe,conseguindo ou não, ela nãoganhará a parte que lhe cabia naherança – completa.

Compra de ossos: um merc a d oilegal e lucrativo

Embora desconhecida por mui-tas pessoas, a compra de ossoshumanos é outra atividade quefomenta o mercado da morte.Não raramente, estudantes daárea biomédica utilizam partesdo corpo humano para pesquisae estudo na universidade. A com-pra de “peças”, termo usadocomo referência para as partesdo esqueleto, apesar de ser umaprática ilegal, é cada vez maiscomum.

Segundo a estudante de Medi-cina R. C., de 23 anos, os alu-nos procuram os coveiros paraconseguir os crânios e os den-tes.

– Vamos ao cemitério e pedi-mos o que precisamos. Os crânioscustam em torno de R$ 50 e osdentes, R$ 1 cada, conta.

Julho/Dezembro 200416

“Antes, fazer umseguro de vida eraestranho. Hoje em

dia, não há mais essetipo de preconceito”

Marlene Lima

Arnaldo Engel segura o documento“Formal de Partilha”

Renata Viot

Page 5: quando morrer vira um bom negócio.pdf

A compra de restos humanosainda é maior devido aos altospreços dos materiais sintéticos:

– O preço da réplica de umcrânio pode chegar a R$ 150, trêsvezes mais caro do que os ver-d a d e i ros. Além disso, muitasdelas não são perfeitas, não édifícil encontrar uma réplica comdefeitos e falhas, o que atrapalhaos nossos estudos.

De acordo com o advogadoLabruna, esse tipo de atividadeilegal caracteriza o crime devilipêndio de cadáveres e/ou suascinzas.

– O artigo 212 do Código Penaltrata dessa questão. A pena pre-vista para tal crime é de detençãode um a três anos e multa a seraplicada pelo juiz – relata La-bruna. Já a enucleação de olhosde cadáveres para fins didáticosnão é considerado crime.

O médico recém-formado PedroPaulo Ribeiro, 23 anos, afirmatambém que em muitas facul-dades, os funcionários das insti-tuições mantêm um acordo comos coveiros para facilitar a vendapara os estudantes.

– Essas pessoas já têm uma fontefixa no cemitério e funcionam co-mo intermediários. Mesmo sendo

uma atividade clandestina, algunsestudantes pre f e rem esta opçãopor ser mais acessível – revela om é d i c o .

P e d ro Paulo ressalta ainda queo comércio é impulsionado pelafalta de recursos das faculdades.Ele diz que o material disponívelnas universidades públicas é

p recário e antigo, algumas pe-ças chegam a ter mais de 30a n o s.

– Esse fato torna necessária ap rocura pelo material próprio.Isso não acontece nas faculdadesparticulares, que compram ca-dáveres regularmente – conta omédico.

A indesejada das gentes 17

� Uma única urna funerária é resultado do cortede três árvores de, em média, 30 anos cada.

� O vereador Gilson Barreto, do PSDB-RJ, apre-sentou um projeto de lei, em 1997, para proibira madeira como material dos caixões e substi-tuí-la por produtos alternativos como o isopor.

� De acordo com a lei, quem ganha até doissalários mínimos não é obrigado a pagar funeral.

� No cemitério Jardim da Saudade, um funcio-nário busca o interessado na compra do jazigoem casa e o leva para conhecer o cemitério.

� Caso você avise a morte de uma pessoa com 48horas de antecedência, ganhará um abatimentode 30% do valor do funeral.

Você sabia?

Renata Viot