quando há vida na antessala da morte. um olhar sobre a ... · o lugar do hospital no imaginário...

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1 Quando há vida na antessala da morte. Um olhar sobre a atuação da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre no tratamento de variolosos e outros doentes no século XIX Jaqueline Hasan Brizola 1 Vinte e cinco de abril de 1863, o ferreiro Francisco Marques, homem branco, com apenas 18 anos de idade, ingressava no Hospital Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre portando bexigas, natural da Província, Francisco era solteiro e pobre, buscou a Caridade, talvez pelo medo de morrer em casa, coberto de pústulas purulentas e sentindo fortes dores pelo corpo. Curiosamente, no dia vinte e seis de maio do mesmo ano, Francisco recebera alta da Misericórdia, saíra curado. Assim como ele, muitos outros homens e mulheres buscaram o mesmo auxílio, à época, carregando consigo alguma intenção. O lugar do hospital no imaginário daqueles que procuravam curar-se de males diversos no século XIX, ainda é um ponto pouco debatido no campo da história e da medicina. Em que pese, ao longo dos últimos 30 anos, muitos estudiosos tenham aprofundado questões relativas ao nascimento da clínica, 2 e ao papel de representantes da medicina dita acadêmica na formação do Estado, no século XIX, pouco se avançou na obtenção de respostas acerca do desempenho do hospital, no tratamento e na cura das pessoas 3 1 Mestre em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul 2 Ver: FOUCAULT, Michael. Microfísica do poder.. op.cit. p. 99 e também: FOUCAULT, Michael. O Nascimento da Clínica. 2.ed. Rio de Janeiro: Graal, 1980. 3 Sobre o nascimento do hospital no Brasil, seguindo a mesma linha interpretativa de Foucault ver: MACHADO, Roberto. Danação da norma: medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro, Graal. 1979 e também: BERTOLLI FILHO, Claúdio. História da Saúde Pública no Brasil. 11. ed. São Paulo: Ática, 2008.

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1

Quando há vida na antessala da morte. Um olhar sobre a atuação da Santa Casa

de Misericórdia de Porto Alegre no tratamento de variolosos e outros doentes no

século XIX

Jaqueline Hasan Brizola1

Vinte e cinco de abril de 1863, o ferreiro Francisco Marques, homem branco,

com apenas 18 anos de idade, ingressava no Hospital Santa Casa de Misericórdia de

Porto Alegre portando bexigas, natural da Província, Francisco era solteiro e pobre,

buscou a Caridade, talvez pelo medo de morrer em casa, coberto de pústulas purulentas

e sentindo fortes dores pelo corpo. Curiosamente, no dia vinte e seis de maio do mesmo

ano, Francisco recebera alta da Misericórdia, saíra curado. Assim como ele, muitos

outros homens e mulheres buscaram o mesmo auxílio, à época, carregando consigo

alguma intenção.

O lugar do hospital no imaginário daqueles que procuravam curar-se de males

diversos no século XIX, ainda é um ponto pouco debatido no campo da história e da

medicina. Em que pese, ao longo dos últimos 30 anos, muitos estudiosos tenham

aprofundado questões relativas ao nascimento da clínica,2 e ao papel de representantes

da medicina dita acadêmica na formação do Estado, no século XIX, pouco se avançou

na obtenção de respostas acerca do desempenho do hospital, no tratamento e na cura das

pessoas3

1 Mestre em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul 2Ver: FOUCAULT, Michael. Microfísica do poder.. op.cit. p. 99 e também: FOUCAULT, Michael. O

Nascimento da Clínica. 2.ed. Rio de Janeiro: Graal, 1980. 3 Sobre o nascimento do hospital no Brasil, seguindo a mesma linha interpretativa de Foucault ver:

MACHADO, Roberto. Danação da norma: medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio

de Janeiro, Graal. 1979 e também: BERTOLLI FILHO, Claúdio. História da Saúde Pública no Brasil.

11. ed. São Paulo: Ática, 2008.

2

Partindo de um projeto maior, onde se insere nosso trabalho de mestrado

acadêmico, a presente comunicação tem como proposta demonstrar que, tal qual

Francisco, o homem de 18 anos que ingressara na Santa Casa de Porto Alegre em 1863,

outros tantos indivíduos em situação semelhante a sua estiveram buscando a Caridade e

seus auxílios em um momento de fragilidade e adoecimento.4 Entre os anos de 1846 e

1874, quatrocentos e cinquenta e três pessoas estiveram nas enfermarias da Instituição

portando varíola. Acompanhamos, por meio do livro de matrícula geral de enfermos,

caso a caso destes indivíduos – conhecendo seus nomes, idades, origens, condição civil,

se livres ou escravos, os nomes de seus pais ou seus senhores, profissões e cor em

alguns casos, sua situação ao deixar a Misericórdia, e seu tempo de permanência no

hospital.

A partir da análise do perfil social dos variolosos ingressantes na Misericórdia,

durante os vinte e oito anos que marcam nossa pesquisa, foi possível entender um pouco

mais sobre o funcionamento do hospital, estabelecendo, também, uma ideia mais

precisa acerca do destino que tiveram os enfermos que lá ingressaram em sua busca por

tratamentos. Nossa opção pelo uso do termo; “enfermos”, parte da ideia de que o doente

no século XIX, portador de uma enfermidade, era alguém passível de cuidados e

atenção, merecedor de um tratamento diferenciado, mas não era, entretanto, um

“paciente”, aos moldes previstos pela medicina moderna. 5 As concepções de cura

vivenciada dentro da Misericórdia de Porto Alegre, certamente, partiam de elaborações

diversas e terapêuticas diferenciadas, não sendo tarefa de um agente somente, o médico,

conhecedor da solução para todos os males.

4 A pesquisa que desenvolvemos enfocou a presença da varíola e os meios constituídos visando seu

combate em Porto Alegre entre os anos de 1846 e 1874. Ver: BRIZOLA, Jaqueline Hasan. A Terrível

Moléstia. Vacina, epidemia, instituições e sujeitos. A história da varíola em Porto Alegre no século XIX

(1846 – 1874). Dissertação, Mestrado. UFRGS, 2014. 5 A figura do paciente enquanto um ente isolado inexistia no período em questão. Roy Porter nos lembra

que a doença, no século XVIII e XIX, não possuía um saber universal e totalizante, podendo ser atacada

sob diferentes pontos de vista. Neste cenário, o doente e sua doença eram objetos de diferentes meios de

tratamentos experenciado pelo próprio sofredor, mas também pela comunidade em que este estava

inserido. PORTER, Roy. Pain and suffering. In. BINUN, W.F. and PORTER, R (Ed.s), Companion

Enciclopedy of the History of Medicine. Vol. 1. London and New York. Routledg, 2002

3

Longe de interpretar o passado enquanto uma rede intransponível de estruturas,

onde os atores se movimentam apenas enquanto peças de um jogo, cujo final já está

previsto, pensamos, tal qual Edward P. Thompson, que o historiador(a) examina vidas e

escolhas individuais, e não apenas acontecimentos históricos, (processos). 6 Daí a

necessidade de dar voz aos indivíduos, considerando suas experiências e possibilidades

de ação.

Compreendendo a doença enquanto fato social, cuja existência, como afirma

Nascimento & Carvalho, depende tanto do espaço e do tempo, como das características

dos indivíduos e dos grupos atingidos,7 buscar-se-á estabelecer nexos causais, entre as

condições de combate e tratamento da doença e a ordem social existente à época,

relacionando tais questões com aspectos sociais e culturais da porto-alegrense

oitocentista.

A instituição Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, nasce no bojo de uma

sociedade que não concebia os hospitais como centros da cura por excelência.8 Como se

sabe, o tratamento de enfermos pobres era apenas uma das atividades desempenhadas

pela Caridade e, embora muitas das pessoas que recebiam cuidados dentro desse espaço

tivessem seus problemas de saúde efetivamente resolvidos, esse não era o objetivo

elementar de sua existência.9

Em verdade, a recusa por parte da elite em receber tratamentos na Misericórdia

esteve relacionada com o estigma que a Instituição carregava por ser um espaço

6THOMPSON, E. P. A miséria da teoria, ou um planetário de erros. Uma crítica ao pensamento de

Althusser. ZAHAR, Ed. 1981; p. 61 7 NASCIMENTO, Dilene R. e CARVALHO, Diana Maul (orgs). Uma história brasileira das doenças.

Brasília, Paralelo 15, 2004, pp.13-30. 8 WITTER, Nikelen A. Males e epidemias. Sofredores, governantes e curadores no Sul do Brasil (Rio

Grande do Sul – Século XIX). 267 f.; il. (Tese Doutorado) – Universidade Federal Fluminense, 2007 9 Para mais detalhes sobre as funções da Santa Casa, no século XIX, ver: TOMASCHEWSKI, Cláudia.

Entre o Estado, o Mercado e a Dádiva. A distribuição da assistência a partir das irmandades da Santa

Casa de Misericórdia nas cidades de Pelotas e Porto Alegre, Brasil, c- 1847 c-1891. – Tese (doutorado)

PUCRS – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – Programa de Pós-Graduação em História. Porto

Alegre, RS – BR. 2014,

4

destinado aos pobres. No imaginário dos homens e mulheres mais ricos, aquele era um

lugar para assistência e/ou caridade, e o tratamento dos pobres, antes de ser um

problema de Estado, tal qual concebemos hoje, era visto como um ato de generosidade.

Contudo, em meados da década de 1850, do século XIX, a Santa Casa continuava sendo

o único espaço “público” onde existiam condições mínimas de acolhimento para

enfermos desprovidos de recursos, fator que deve ter contribuído para o aprimoramento

de práticas que levassem ao restabelecimento da saúde das pessoas.

Evidentemente, nem todos os homens e mulheres pobres e doentes buscavam a

Santa Casa em um momento de necessidade. Nikelen Witter afirma que a maioria das

pessoas preferia curar-se em casa, imersos em redes de solidariedade, construídas dentro

da família ou entre amigos.10 Mas, partindo da análise do livro de matrículas geral de

enfermos da instituição, nos vinte e oito anos que marcam nossa pesquisa, pudemos

observar uma quantidade expressiva de pessoas dando baixas nas enfermarias da

Misericórdia. Este dado nos levou, inicialmente, a pensar que todos aqueles que se viam

ameaçados pela proximidade da morte buscavam o auxílio da Caridade com o intuito de

receber, talvez, os últimos sacramentos.

Entretanto, a análise do perfil social dos variolosos ingressantes na Misericórdia,

pelo menos entre os anos que investigamos, nos apontam outros caminhos

interpretativos. Conhecendo caso a caso daqueles sujeitos portadores de varíola, vimos

que nem todos eram desvalidos ou se encontravam completamente a margem da

sociedade.11

O tempo de permanência dos doentes de varíola no hospital, por exemplo, era

muito variado, o sujeito tanto poderia sair em poucos dias, como permanecer por meses.

A maioria absoluta dos casos, entretanto, esteve sob os cuidados da Caridade por mais

de 10 dias, como podemos apreender do gráfico abaixo:

10 WITTER, Nikelen A. Males e epidemias... p 174 a 178. 11 Um dado que leva a esta interpretação é a profissão dos doentes, que só começa a aparecer nos livros de

matrícula geral a partir da década de 1860. Ferreiros, Booleiros, Carpinteiros e até um Orives aparece na

Santa Casa para tratar-se da varíola – o que indica que nem todos eram sujeitos absolutamente pobres e

desvalidos. Ver: CEDOP – ISMPA - Livro de Matrícula Geral de Enfermos (1 a 4)

5

Fonte: ISCMPA – CEDOP – Livro de matrícula geral de enfermos – (livros 1 a 4)

O período de incubação e manifestação do vírus poderia variar entre 12 e 14

dias. Já o tempo entre o contato com o vírus e o desaparecimento dos sintomas, caso a

pessoa sobrevivesse, não ultrapassaria a marca das três semanas.12 De qualquer maneira,

a varíola atacava duramente o sistema imunológico do indivíduo, o que poderia

acarretar uma maior vulnerabilidade as infecções secundarias. 13 Talvez este fato

explique a longa permanência de alguns doentes no hospital. Dos casos que analisamos

21%, pelo menos, permaneceu nos quadros da Caridade por mais de 30 dias. Estas

pessoas podem ter sido vítimas de novas doenças, uma vez que sua imunidade se via

ameaçada pela varíola.

Se esta perspectiva estiver correta, poderíamos supor que não era tão alto o risco

de contaminação por outras doenças no hospital, tendo em vista que a grande maioria

das pessoas permanecia de dez a trinta dias somente, um período coincidente com

aquele que necessitava o varioloso para voltar ao convívio social, isto é, se fosse capaz

de resistir à doença. Entretanto, tal afirmação seria demasiado precipitada, somente um

estudo detalhado do livro de matrícula geral de enfermos, considerando outras doenças

12 Brasil. Fundação nacional de saúde. Guia de vigilância epidemiológica/ Fundação Nacional de Saúde.

5. Ed. Brasília: FUNASA, 202 p. 853 13 Ibden

23,45%

51,45%

21,17%

3,9%

Tempo de permanência/ variolosos SCMPA -

(1846-1874)

até 10 dias

entre 10 e 30 dias

entre 30 e 60 dias

Mais de 60 dias

6

contagiosas, poderia nos responder tal questão. Por hora, seguimos analisando os dados

que dispomos.

Para entender a presença daqueles que permaneciam pouco tempo nos quadros

da Caridade, algumas hipóteses poderiam ser levantadas. Mas, ao analisarmos caso a

caso especificamente, logo observamos algo que parecia lógico. Se o sujeito permanecia

menos de dez dias no hospital, teria boas chances de não resistir à varíola. Neste caso, o

quadro da doença poderia estar bastante avançado e a busca pela Santa Casa deveria ser

a última opção antes da morte.

Contudo, este comportamento não era regra para a maioria dos sujeitos que

estiveram na Instituição. Como vimos, um número alto de doentes de varíola

permaneceu, pelo menos, mais de dez dias sob os cuidados despendidos nas enfermarias

da Santa Casa. Resta-nos saber, quantos destes voltaram vivos para casa após a

passagem pelo hospital.

Fonte: SCMPA – CEDOP - Livro de Matrícula Geral de Enfermos, (livros 1 a 4)

0%

20%

40%

60%

80%

100%

até dez diasentre 10 e

30 diasentre 30 e

60 dias mais de 60

dias

49%

80%89%

83,30%

51%

20%

11% 16,70%

Tempo de permanência x altas e óbitos

(1846 - 1874)

altas

óbitos

7

Como se pode observar, a grande maioria dos variolosos que ingressaram na

Santa Casa saíram vivos algum tempo depois. Os números eram tão expressivos que

chegamos a questionar quão alta era a letalidade da varíola.14 Que fatores devemos

considerar para compreendermos os porquês de tantas altas? Teriam os doentes, saído

do hospital para morrer em casa em um estágio avançado da doença? Provavelmente

não. Se havia algum lugar adequado para aguardar a morte por varíola, certamente não

era o lar, onde outras pessoas poderiam ser infectadas. Além disso, no século XIX, o

sujeito somente buscaria os auxílios do hospital, mediante uma situação de pobreza e

vulnerabilidade – quando não possuísse recursos financeiros para custear um médico

particular, nem tampouco contasse com a ajuda da família para os cuidados em casa.15

Desta maneira, se recebesse alta do hospital, provavelmente estaria apto a

retomar a vida normal, muito embora fosse obrigado a carregar as marcas e o estigma da

varíola por toda a vida.16 Se observarmos o tempo de permanência em conjunto com o

número de altas, veremos que eram boas às perspectivas de vida daqueles que

permaneciam por mais de dez dias sob os cuidados da Caridade, e as chances de

sobreviver aumentavam, se o sujeito permanecesse entre trinta e sessenta dias, por

exemplo. Destes, apenas onze por cento foram a óbito. E, por fim, se a estadia do

varioloso ultrapassasse os sessenta dias, as chances de sair vivo eram ainda maiores.

Dos casos que analisamos, 83% sobreviveram, sendo, a grande maioria destes, homens

livres, encontramos apenas um escravo.

14 Segundo o guia de vigilância epidemiologia, a varíola matava em média um terço das pessoas

infectadas e não imunizadas até sua erradicação na década de 1970. Ver: Brasil. Fundação nacional de

saúde. Guia de vigilância epidemiológica/ Fundação Nacional de Saúde. 5. Ed. Brasília: FUNASA, 202

p. 853. Ver também o interessante trabalho de GAZETA, Arlene. Uma contribuição a história da

varíola no Brasil. do controle à erradicação. Tese doutorado. Agência FIOCRUZ, 2006 15 WITTER, Nikelen... Males e epidemias... 2007 16 Martins analisou os estigmas criados pela varíola para aqueles que sobreviviam a ela na cidade de

Fortaleza, em meados do século XIX, e observou que aqueles sujeitos eram vítimas de inúmeros

preconceitos, tendo dificuldades de inserir-se socialmente, principalmente no mundo do trabalho, uma vez

que a varíola deixava cicatrizes na pele, especialmente na face. Outras seqüelas, menos comuns, como a

cegueira e a deformidades nos membros, também ocasionavam preconceitos. Ver: MARTINS, Letícia

Lustosa. Praticas sanitárias e o surgimento do estigma social sobre os variolosos em Fortaleza de

1877 até 1879. Graduação em História. Universidade Estadual do Ceará. Fortaleza, 2008.

8

Um dos dados mais completos encontrados nos dois livros de matrícula geral,

depois dos nomes do paciente, é sua condição ao deixar as enfermarias do hospital.

Infelizmente não há informações detalhadas, apenas a designação “óbito ou alta”, o que

nos priva de conhecer as condições de saúde do enfermo ao deixar a Caridade. Não é

possível afirmarmos que todos os doentes que deram alta da instituição saíram

realmente curados. Há possibilidades concretas de terem falecido após a saída do

hospital, embora tenhamos boas razões para crer que este não era um cenário

corriqueiro.

No gráfico abaixo, analisamos dez anos de entradas e saídas de pacientes,

incluindo todos que estiveram no hospital, independente de sua doença, e concluímos,

que o número de altas era bastante superior ao de óbitos. Vejamos:

Fonte: CEDOP. SCMPA - Livro de matrícula geral de enfermos. 1 e 217

17 Selecionamos dez anos, entre os vinte e oito que marcam nossa pesquisa, para demonstrar o índice de

“enfermos” que receberam alta do hospital. Cabe salientar que, a leitura das doenças e da condição do

sujeito ao deixar a Caridade, nestes anos, foi facilitada pelo estado do documento, por isso a escolha deste

período.

512563

911 887

752 789

643

1012

1178

714

59 61106 104 80 93 98 126 136

93

1849 1850 1851 1852 1853 1854 1855 1866 1867 1868

Entradas x Óbitos - Público geral

(1849 a 1855 e 1866 a 1868)

Entradas

Óbitos

Linear (Óbitos)

9

Não apenas os variolosos tiveram êxito em suas passagens pela Santa Casa.

Doentes, sofredores de outras enfermidades, também encontraram à cura na Caridade.

Os números absolutos indicam que as altas ultrapassam os óbitos significativamente nos

dez anos referidos. Enquanto o número de entradas poderia aumentar ou diminuir, os de

óbitos apresentaram certa estabilidade, variando entre 10% e 14%. Mediante uma razão

tão pequena de falecimentos, não podemos supor que o hospital Santa Casa de

Misericórdia de Porto Alegre fosse visto, em meados do século XIX, enquanto um

espaço destinado apenas àqueles que aguardavam a morte certa.

A guerra do Paraguai, iniciada em 1864, deve ter contribuído para a elevação do

número de óbitos nos anos finais que marcam esta pesquisa, tendo em vista as

condições especiais verificadas em épocas de conflitos.18 Observamos um aumento de

entradas e também de óbitos neste período. Dos cento e três variolosos que estiveram na

Misericórdia entre 1864 e 1868, por exemplo, trinta e quatro não sobreviveram – o que

em termos percentuais – representa 33% dos casos. Mesmo assim, o número de altas

continua sendo bastante expressivo, 69 indivíduos ou 66% dos casos.

Em 1855, o presidente da Província, senhor Barão de Muritiba, exaltando os

feitos da Misericórdia de Porto Alegre, informava em seu relatório:

Achavam-se no hospital em 1 de Julho do anno passado, 99 enfermos,

sendo 69 homens e 30 mulheres. Até o fim de julho do corrente anno entrarão

para ser tratados 707, sendo 592 homens e 115 mulheres, elevando-se asín a

806 o número de doentes tratados no hospital, dos quaes sahirão

restabelecidos 627, fallecerão 96 e ficarão no hospital 83, incluindo os

alienados19

18 Doenças contagiosa como a varíola encontram um meio de propagação favorável em época de guerra,

devido as péssimas condições de higiene em que os sujeitos estavam imersos, sem falar nos efeitos

maléficos provocados pelas aglomerações – ambiente favorável para a propagação das moléstias. Ver:

SOUZA, Jorge Prata de. A presença da cólera, da diarréia e as condições sanitárias durante a guerra

contra o Paraguai. In: NASCIMENTO, Dilene; CARVALHO, Diana Maul de; MARQUES, Rita de

Cássia (orgs). Uma História Brasileira das Doenças. V.2, Rio de Janeiro, Mauad X, 2006. 19 AHRS – Relatório do Presidente da Província- Correspondência dos governantes A7.02 – Barão de

Muritiba (1855)

10

O relato otimista de Muritiba em relação à expectativa de vida que “a

humanidade enferma” encontrava na Santa Casa, à época, poderia ser interpretado

enquanto propaganda de governo tão somente. Muito embora, a administração da Santa

Casa não estivesse, como vimos, sob os auspícios do Estado, os homens que ocupavam

cargos importantes nos altos postos da política tinham uma espécie de obrigação moral

com a Caridade, e, portanto, com os resultados “sociais” do Pio estabelecimento.20

Contudo, se confrontarmos as informações de Muritiba, com os dados que investigamos

de entradas de pacientes veremos que seu relatório não era apenas político. Salvo os

números contidos na matrícula geral de enfermos terem sido completamente distorcidos,

não há dúvidas de que existiu expectativa de vida para os enfermos que buscaram

tratamentos naquele lugar.

Assim, ao analisarmos a situação dos enfermos que compuseram o quadro de

doentes da Santa Casa, temos boas razões para acreditar que esta Instituição esteve entre

as opções de muitos homens e mulheres doentes no século XIX. Se não podemos

negligenciar as outras formas de cura existentes à época e as visões divergentes de

terapêutica que aquela sociedade experimentou, tampouco se pode-se afirmar que o

hospital Santa Casa, no século XIX, era apenas a antessala da morte.

Por meio da análise do perfil social dos variolosos que ingressaram na

Misericórdia de Porto Alegre, entre os anos de 1846 e 1874, observamos não apenas o

caráter endêmico da doença na cidade, mas, sobretudo, pudemos refletir o papel

desempenhado pela Instituição onde muitos deles eram tratados, por serem pobres e não

terem ninguém por si, em alguns casos, ou por acreditarem realmente em sua cura,

mediante a observação de outros, que, uma vez internados, obtiveram sucesso em seus

tratamentos.

20 WEBER, Beatriz. As Artes de curar: medicina, religião, magia e positivismo na República Rio-

Grandense – 1889-1928. Bauru: EDUSC, 1992.

11

Longe de esgotar as possibilidades interpretativas para a complexidade de

funções desempenhadas pela Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, no século

XIX, no trato com variolosos e outros doentes, nosso estudo buscou apenas observar o

hospital sob outro ponto de vista, entendendo seus significados para a cura daqueles que

não possuíam recursos nem posses, mas que representavam a ampla maioria da

população.

FONTES

IRMANDADE SANTA CASA DE MISERICÓRDIA DE PORTO ALEGRE – Centro

de documentação e pesquisa: Matrícula geral de enfermos. Livro 1,2,3,4 ( 1846 – 1874)

12

ARQUIVO HISTÓRICO DO RIO GRANDE DO SUL: Relatório do Presidente da

Província – Correspondência dos governantes - A7.02 – Barão de Muritiba (1855)

BIBLIOGRAFIA

BERTOLLI FILHO, Claúdio. História da Saúde Pública no Brasil. 11. ed. São Paulo:

Ática, 2008.

BRASIL. Fundação nacional de saúde. Guia de vigilância epidemiológica/ Fundação

Nacional de Saúde. 5. Ed. Brasília: FUNASA, 2002

BRIZOLA, Jaqueline Hasan. A Terrível Moléstia. Vacina, epidemia, instituições e

sujeitos. A história da varíola em Porto Alegre no século XIX (1846 – 1874).

Dissertação, Mestrado. UFRGS, 2014.

FOUCAULT, Michael. O Nascimento da Clínica. 2.ed. Rio de Janeiro: Graal, 1980.

GAZÊTA , Arlene Brasil.Uma contribuição à história do combate à varíola no

Brasil: do controle à erradicação. Tese doutorado. Agência FIOCRUZ, 2006

MACHADO, Roberto. Danação da norma: medicina social e constituição da

psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro, Graal. 1979 e também: BERTOLLI FILHO,

Claúdio. História da Saúde Pública no Brasil. 11. ed. São Paulo: Ática, 2008.

MARTINS, Letícia Lustosa. Praticas sanitárias e o surgimento do estigma social

sobre os variolosos em Fortaleza de 1877 até 1879. Graduação em História.

Universidade Estadual do Ceará. Fortaleza, 2008

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brasileira das doenças. Brasília, Paralelo 15, 2004

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durante a guerra contra o Paraguai. In: NASCIMENTO, Dilene; CARVALHO, Diana

Maul de; MARQUES, Rita de Cássia (orgs). Uma História Brasileira das Doenças.

V.2, Rio de Janeiro, Mauad X, 2006.

TOMASCHEWSKI, Cláudia. Entre o Estado, o Mercado e a Dádiva. A distribuição

da assistência a partir das irmandades da Santa Casa de Misericórdia nas cidades de

Pelotas e Porto Alegre, Brasil, c- 1847 c-1891. – Tese (doutorado) PUCRS – Instituto

de Filosofia e Ciências Humanas – Programa de Pós-Graduação em História. Porto

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THOMPSON, E. P. A miséria da teoria, ou um planetário de erros. Uma crítica ao

pensamento de Althusser. ZAHAR, Ed. 1981

WEBER, Beatriz. As Artes de curar: medicina, religião, magia e positivismo na

República Rio-Grandense – 1889-1928. Bauru: EDUSC, 1992.

WITTER, Nikelen A. Males e epidemias. Sofredores, governantes e curadores no Sul

do Brasil (Rio Grande do Sul – Século XIX). 267 f.; il. (Tese Doutorado) –

Universidade Federal Fluminense, 2007.

14