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  • 9 seminrio docomomo brasil

    interdisciplinaridade e experincias em documentao e preservao do patrimnio recente braslia . junho de 2011 . www.docomomobsb.org

    Quando documentar no suficiente: obras, datas, reflexes e construes tericas

    Ruth Verde ZEIN*

    *Arquiteta FAU-USP 1977, Mestre e Doutora em Teoria, Historia e Critica da Arquitetura, PROAR/UFRGS 2000/2005, Professora e pesquisadora da FAU-UPM

    Rua Vieira de Moraes 762 #35 04617-002 So Paulo SP Brasil [email protected]

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    Resumo

    A idia de transposio cultural parece permear de maneira explcita ou no os estudos historiogrficos sobre arquitetura tratando de modernidades no europias, estabelecendo como corolrio implcito a noo de que os fatos, obras, discursos, tendncias e debates arquitetnicos necessariamente ocorrem primeiro l e depois aqui. Se bem seja instrumento vlido para compreender algumas manifestaes da primeira modernidade (~1920-1945), sua adoo indiscriminada e acrtica no reconhecimento de fatos, obras, discursos, tendncias e debates arquitetnicos da segunda modernidade (aps 1945) tende a prejudicar ou impossibilitar outras possibilidades mais apropriadas de compreenso critica do campo. Na ausncia desse instrumento, e a partir do exame atento e da interpretao rigorosa e sistemtica da documentao disponvel, em especial, dos projetos e obras de arquiteturas e de sua correta datao, sugere ser possvel estabelecer outras possibilidades de leitura e interpretao do campo, usando a documentao e seu exame como instrumento hbil para superar tais cristalizaes conceituais acrticas. D como exemplo estudos recentes que pretendem rever criticamente as definies cannicas sobre o tema do brutalismo, possibilitando o estudo de suas obras a partir de sua apreciao como documentos, de cunho arquitetnico, construtivo e visual.

    Palavras-Chave: documentao, critica, brutalismo

    Abstract

    This text dispute the idea of cultural transposition that frequently pervade the historiographic architectural studies dealing with non-European modernities and its consequences, mostly its implicit corollary - that facts, works, discourses, tendencies and architectural debates necessarily occur first there then here. It accepts that such idea may be useful when dealing with some restrict local manifestations on the first modernity period (~1920-1945), but argues that its indiscriminate adoption and extension to explain facts, works, discourses, tendencies and architectural debates of the second modernity (after 1945) tends unnecessarily to be inappropriate; and that its crystallization as a common, a-critical tool, tends to blur or to preclude other more

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    concerted studies. Suggests that other more appropriate conceptual tools would construct distinct and more precise interpretations, mostly when one takes into account an extensive, rigorous and systematic examination of the documentation, including the projects and architectural works themselves, and taking good notice of their correct dates. Exemplifies with a brief summary about the recent researches being held by the author on the subject of the brutalism, studies supported by the careful study of the documentation, mostly the works themselves and their dates, considered as liable documents capable of activating other, nonaligned, architectural, constructive and visual interpretations.

    Keywords: documentation, critic, brutalism

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    preciso respeitar os documentos. Mas os documentos no falam por si mesmos: aguardam ser interpretados. E nunca demais lembrar, como bem apontou Marina Waisman, que se bem os objetos da reflexo provm da realidade, a problemtica que comportam no se revela neles de um modo direto e evidente; ser a reflexo que h de descobrir ou revelar problemas e questes que subjazem na realidade ftica, pois o ato de formular questes ou perguntas se apia em conceitos, em idia; com base neles que se produzem as descobertas; e logo ser a prxis que responder positiva ou negativamente s perguntas ou exigncias formuladas pela reflexo1.

    Os documentos, incluindo-se as obras de arquitetura que so tambm documentos da maior importncia e densidade para nosso campo de estudos aguardam pacientemente por nossas reflexes. Mas jamais sero esgotados por elas: a qualquer momento um outro olhar lhes trar nova vida. Os mesmos documentos, iluminados por outras perguntas, sugeriro precises e revises, de singelas a revolucionrias. Mas para que isso ocorra preciso se permitir fazer novas perguntas. Sem a dvida sistemtica no h ampliao ou reviso de campo; mas ela s pode consistentemente ocorrer se aceitarmos que nem tudo est claro, dito e definido. E sem nos darmos ao trabalho de voltar s origens documentao e novamente interrog-la.

    Por exemplo.

    Parece haver uma idia subjacente e prevalente permeando quase todas as historiografias cannicas da arquitetura moderna, em especial daquelas que tratam de outras modernidades no europias. Trata-se de uma idia cuja presena sutil e difcil de apontar, j que subjaz na base de muitas assunes, sendo dada por sentada, e no sendo muito discutida por se acreditar evidente. Trata-se da noo de transposio cultural - de idias, modelos, formas, etc.. No caso dos estudos sobre as nossas arquiteturas ocorrendo sempre e necessariamente segundo um eixo imaginrio, originado no norte e repercutindo no sul. Aceita tal idia, de imediato se estabelece um corolrio implcito: a noo de que os fatos, obras, discursos, tendncias e debates arquitetnicos necessariamente ocorrem primeiro l e depois aqui. A partir desse corolrio, e para confirm-lo, se constroem explicaes - reais ou supostas - de como e porque isso assim; e finalmente, se validam essas explicaes adotando-se a crena de que elas mesmas seriam a causa eficiente e necessria para que as coisas sejam assim mesmo (em um crculo vicioso to bem fechado que quase ningum se d conta disso).

    1 Waisman, 1990, p.35.

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    Estando as coisas postas assim e uma vez postas, a lei da inrcia as faz imveis at que se as empurre com muita fora - pode acontecer, por exemplo, que algum pesquisador menos bem informado - nem tanto sobre as obras e os documentos e sim sobre como e o que se deve pensar (ou melhor, sobre o que se considera licito pensar) -, decida pesquisar novamente os fatos: as obras arquitetnicas concretas, suas datas de projeto e obra, suas caractersticas peculiares, etc. Digamos hipoteticamente que esse pesquisador perceba que, seja no norte, seja no sul, arquiteturas que poderiam ser chamadas de modernas2 ocorrem mais ou menos ao mesmo tempo, com diferenas de menos de meia dcada em muitos casos, em datas portanto muito prximas; eventualmente, at poder encontrar obras, ditas modernas, e com datas anteriores quelas dos supostos pioneiros do norte. E pode at mesmo achar uma quantidade tal de excees que, com esses fatos na mo, pode vir a duvidar que as coisas tenham acontecido conforme afirmam tais historiografias; e que quem sabe, seria o caso de revis-las.

    Entretanto, tal pesquisador/a hipottico descobrir rapidinho que difcil muito difcil convencer seus pares de que, o que tem em mos, algo mais que um punhado de anomalias. Se duvidar de seu trabalho, se acusar de distoro ou de erro; se isso no for suficiente, se acusar de nomes feios (nacionalista, regionalista, chauvinista, etc.); e se desconsiderar suas dvidas, seus fatos e suas construes tericas pelo simples motivo de que as coisas no podem ter acontecido como aconteceram - pois esto impedidas a isso pela construo terica prevalente. Nascida talvez de outros fatos; mas para a qual foi outorgada validade universal - por extenso, por costume e por preguia.

    Trata-se, claro, de um caso hipottico: nada desse tipo jamais ocorreu entre ns - especialmente se estivermos lidando com obras da chamada primeira modernidade, ou seja, na dcadas de 1920-1945. Ou melhor: claro que aconteceu e acontece; evidente que vrios autores j toparam com essa situao e trataram desse tema, de diversas maneiras. Mas sua contribuio, se for relutantemente aceita, tender a ser classificada,

    2 No ser neste artigo o lugar para se discutir como se valida essa qualificao de moderno. No

    porque no seja um detalhe muito importante, mas apenas para no fugir ao tema. Mas tenho claro e consciente que a definio no nem pacfica nem simples, e que sobre ela tambm pesam alguns dos preconceitos ideolgicos e geogrficos que aqui se vo expor. E por isso, necessito debat-los antes, para depois discutir a classificao de moderno, que vir em outro momento. Mas adianto que compartilho as dvidas de autores como Goldhagen (2005) sobre a classificao meramente estilstica da modernidade; mas no meu caso, no para abolir os parmetros de estilo e forma, e sim para conceder que no necessitam ser os nicos parmetros de julgamento. At porque, para ns o que interessa abrir o campo, e no validar novas barreiras ideolgicas que nos impeam de nele entrar.

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    na melhor das hipteses, como um evento episdico, uma distoro pontual, um caso menor e menos significativo, considerando-se o considerao o conjunto, etc. Nem mesmo o acmulo de estudos de tal tipo parece ser suficiente para romper facilmente essa barreira. E talvez esses casos sejam mesmo anmalos mas talvez, no sejam. E a documentao por si s insuficiente para demonstrar o ponto se no for acompanhada de novas perguntas, outras reflexes, e do questionamento das construes tericas vigentes.

    O assunto fica ainda mais tenso quando se trata de interpretar os fatos da arquitetura moderna correspondentes s dcadas seguintes - ou seja, ~1945-19753.

    Apesar da mudana de fase e de dcadas, a idia de transposio cultural que seguramente tem seu valor na compreenso, anlise e estudo do momento da chamada primeira modernidade foi-se entranhando de tal maneira nos estudos historiogrficos tratando da arquitetura do sculo 20 que de alguma maneira se cristalizou e se instalou, passando a ser indiscriminadamente adotada, sem maior exame, inclusive de ali em diante. Mas mantida nem tanto porque os novos fatos tambm a chamam arena, mas quase sempre apenas por inrcia: de fato, no segue sendo empregada graas a um exame aprofundado e bem fundamentado dos fatos que ao contrario, se examinados fossem, a caducariam. Por inrcia, torna-se um dispositivo, ou uma ferramenta, ou uma idia prevalente de segundo grau: um a priori. E assim, sem muito os pesquisadores se darem conta, seguem adotando-a como base para interpretar tambm as obras ps 1945 e suas relaes com aquele imaginrio eixo norte-sul. O qual, idem idem, segue-se acreditando existir, e seguir norteando-nos a todos, e funcionando sempre com mo de direo de l pra c, aparentemente ainda apto para a compreenso das chamadas segundas modernidades. Tal ferramenta a transposio cultural extrada das fronteiras temporais nas quais parecia ter certa pertinncia (no mximo, antes da 2 Guerra), e se a faz sobreviver mais alm de sua data de criao e validade. Transborda-se, assumindo um papel de no lhe compete: o de instrumento cannico e inquestionvel, que seque sendo invocado porque sim, mesmo quando sua prevalncia e utilidade se mostram cada vez menos defensveis e cada vez mais indevidas; e se aplica, de cima abaixo, por sobre as modernidades destas outras dcadas, e claro, destes outros lugares.

    3 Tambm no ser aqui o momento de discutir porque o panorama muda radicalmente a partir de 1945, e

    de qualquer maneira o assunto est presente em muitos e variados autores. seja implicitamente como por exemplo no livro de Montaner (1993); seja explicitamente (Bastos, Zein, 2010).

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    Imaginemos ento que aquele tal hipottico e intrometido pesquisador/a volte cena e se ponha a constatar, com base nos fatos no estudo dos documentos, das obras e projetos, das duas datas de projeto e construo, das suas caractersticas, etc - arquiteturas projetadas e construdas nos anos 1945-75. Digamos que os documentos, e principalmente suas datas, sugiram no caber no caso sugerir simplesmente a existncia de uma mera transposio cultural, nem muito menos indiquem a prevalncia do ponto cardinal norte no eixo imaginrio dos caminhos do sul. Pode haver, e h, influncias4; mas seu desenho de rede, teia e nuvem, e no de eixo com sentido nico.

    Mesmo assim, vai continuar sendo difcil muito difcil fazer crer aos seus pares que pode haver algo de podre na percepo simplificadora e transpositora como base de explicao, de validade universal, para o que ocorre nos reinos ao sul da Dinamarca nessas modernidades ps ~1945. Claro, poderamos sugerir de novo que esse tal pesquisador/a hipottico mas neste caso, e considerando-se tudo o que tem sido estudado e publicado nem que seja apenas no mbito do Docomomo brasileiro, nem eu nem vocs podemos em s conscincia acreditar mais nisso. E no entanto, eppur non si muove.

    Outro exemplo.

    Por muitas e boas razes se aceitam as datas de ~1920-1945 para definir o momento de origem e de definio da modernidade arquitetnica do sculo 20. Tal afirmao, mesmo se aceita e aplicada, no nasceu espontaneamente: tem origem circunstanciada e limitada, foi deduzida, bem ou mal, da anlise de algumas obras modernas - mas no de todas. Entretanto, os historiadores que a corroboram no se pejam em imediatamente universaliz-la, por efeito da sndrome do umbigo do rei (que dita que um cidado de um lugar que se cr central tende a crer que o que pensa compartilhado pelo universo).

    Dessa definio se desdobra outro corolrio: que o que vem depois de 1945 seguir sendo sempre, necessariamente e apenas um desdobramento; mais do mesmo; consolidao de pautas j claras e definidas, estabelecidas e plenamente conformadas. E se por acaso os fatos arquitetnicos desse outro momento que se segue no permitam,

    4 A autora usa o termo influncia em sua tese de doutorado (Zein, 2005) a partir de uma leitura critica da

    contribuio de Harold Bloom (2002, p.23-4), como fardo estimulante, interpretao criativa, apropriao potica; e principalmente, como escolha da parte do influenciado e no como imposio ou transposio (termo que sugere certa inevitabilidade passiva de quem sofreria o processo). A influncia no precisa resultar em diminuio do valor do ato criador, e tanto o mais presente quanto mais forte for o/a poeta e/ou, o/a arquiteto/a.

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    por sua natureza documental, ser claramente includos nessa continuidade, a soluo para explicar tal aparente paradoxo considerar esses outros fatos com sinal negativo: como distoro, deturpao, desvio e perda de um verdadeiro sentido; esse sim original, de uma vez e para sempre fundado e estabelecido; e claro, pertencendo a outro tempo e a outro lugar, que no aqui (nem pode ser, por efeito dos axiomas anteriores).

    Pois bem: volta ao nosso incauto hipottico e abusado personagem pesquisador/a e resolve perguntar, pensar e demonstrar com base na documentao disponvel - outras possibilidades de interpretao que lhe parecem ser mais plausveis e conformes com os fatos, abrindo outras possibilidades para se compreender tais fenmenos.

    De novo, ser difcil que seus pares aceitem o que tem a dizer, e/ou que compreendam, na devida extenso e plenitude, as alternativas de interpretao que estiver propondo. No bastam os fatos: as teorias e interpretaes historiogrficas vigentes que regulamentam o campo tendero a seguir impvidas, sem dobrar-se facilmente constatao de quaisquer fatos novos que ponham em risco a sua validade5. No exatamente elas, mas o campo que elas desenham e determinam, onde repercutem e por onde afetam a todos os demais. Novas interpretaes baseadas no reexame da documentao que podem parecer atos inocentes de fato tendem a produzem importantes fissuras, que at certo ponto podem ser apenas absorvidas pelo campo; at se admitir que de fato se trata de um terremoto coisa muito mais penosa e complicada.

    E assim, as arquiteturas modernas situadas em outros stios geogrficos, que se tenham historicamente estabelecido nas dcadas depois, seguem sendo constrangidas a serem lidas e interpretadas, sempre e necessariamente, como atrasadas, como influenciadas em mo de direo nica (de l pra c), como posteriores e secundrias, mesmo quando no forem. E possivelmente sobre elas se aplicar tambm o primeiro axioma: sero consideradas (porque esto depois e alhures), fatos necessariamente nascidos da transposio cultural. Se trata, como j foi dito, de um crculo vicioso; e os perdedores somos sempre os que estamos neste outro ponto cardeal.

    5 As teorias, obviamente, no pensam: para ser sutil, o texto ativa uma prosopopia. Mas evidentemente

    somos ns, os pesquisadores, que relutamos em rever nossas verdades prontas e definidas. Infelizmente, quanto mais experientes somos mais a situao se agrava: se j publicamos muito, perceber que nossos textos podem se tornar anacrnicos por fora de novas pesquisas tende a na melhor das hipteses nos desagradar, na pior, nos enfurecer: da natureza humana. Mas tambm da natureza da pesquisa, quando boa, que ela seja subversiva. E melhor nos prepararmos, pois nos tocar nossa vez mais adiante.

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    Por sorte, estamos no sculo 21. Vivemos em uma poca onde possvel e vivel a admisso da variedade e da complexidade. Passamos a valorizar as aberturas a outras possveis abordagens. Vivemos a admisso da pluralidade; podemos abrir e variar.

    Mas na maioria dos casos, abrir e variar no necessariamente questionar: pode ser apenas (ou querer ser apenas) contribuir educadamente, sem por em risco o status quo. Permitem-se aberturas, claro - mas sempre quando se limitem a ser superficiais e epidrmicas. Podem se pensar outras coisas, claro sempre quando no se chegue a provocar nenhuma convulso importante. A diversidade bem comportada est admitida, e ademais, gosta de sua posio secundria, porque aspira ser aceita pela hierarquia vigente; e bem-vinda por esta porque politicamente correta. permissvel porque refresca a arena com novos temas e pautas e sugere que o campo livre, at porque est sendo enriquecido com outras vises geogrfico-culturais. Sempre quando, claro, aceitem seu papel de alteridade admissvel, qual no cabe enfrentar de maneira demasiado dura o que ali j est, repousado e se supondo bem estabelecido. Podemos, nos permitem mas s se soubermos encontrar nosso lugar prprio. Que ser preferencialmente margem, de maneira a no colocar em dvida o ncleo mesmo das verdades fundantes vigentes (que j perderam a memria de terem sido e de seguirem sendo apenas meias verdades) e das teorias vigentes (que por inrcia e abuso da autoridade se deixam perpetuar).

    E entretanto, ampliar o campo talvez possa ser mais do que permitir ao outro seu lugar perifrico. Talvez seja, perigosamente, por em dvida a existncia de um centro, de onde supostamente emanariam e de onde supostamente se comandariam, antes e sempre, as polaridades. E talvez no seja necessrio substituir um centro por outro, mas admitir a pluralidade de maneira menos preconceituosa, e mais ampla.

    Estas consideraes seriam apenas exerccios sobre o nada se no fosse porque, se bem elas aqui se apresentam de maneira abstrata, de fato nasceram de situaes bem concretas. E so reflexes que tomam por base algo aparentemente bsico e inofensivo: a documentao. E que percebem o seu potencial de transformao do campo - sempre quando o olhar que sobre elas pousar se permita fazer novas perguntas e no aceitar idias prontas que no passem pelo crivo da razo e mais que isso, dos fatos. So idias que nasceram da cuidada e demorada apreciao dos nossos mais densos documentos: os projetos e as obras; e da verificao acurada das suas datas. Parece pouco, mas no .

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    Enquanto a pesquisa se limita a constatar, parece inofensivas. Quando se prope a analisar e comparar documentos - inclusive obras - de quaisquer partes do mundo, considerando-as todas, a princpio, no mesmo p de igualdade (ou seja, sempre como documentos, e no a partir do filtro de explicaes ideolgicas e/ou historiogrficas nelas incrustadas a priori) pode acontecer que a pesquisa perceba e revele outras coisas, muito distintas. E pode acontecer e acontece que inviablilizem, entre outras ferramentas, a idia da transposio cultural; pois esta tende sempre a empanar o olhar, a impedir que quem estude os documentos encontre outra coisa que no uma continuidade posterior, ou a polaridade, ou o atraso, etc. Mas caso se supere essa barreira, as demais caem muito facilmente: os documentos, se examinados em sua prpria natureza, no s validam como veementemente sugerem miradas distintas.

    Mas se bem as consideraes acima tenha nascido do estudo dos documentos projetos e obras, suas datas, suas caractersticas, etc.; se bem cheguem a concluses claras e que se pretendem honestas, terminam sendo afetadas pelos vcios e preconceitos do campo, e por isso, podero ser recebidas com certa incredulidade. Podem ser difceis de compreender e aceitar em toda sua plenitude e conseqncias, porque quem as l ou v, no as pode aceitar, estando a isso impedido pela crena nas construes tericas prevalentes - sem perceber que estas acabaram de se tornar anacrnicas.

    Os mesmos fatos os documentos -, se vistos de outros ngulos, podem dar lugar a outras premissas e a distintas conseqncias. Que finalmente, talvez possam chegar a ter certo potencial para minar, nem que seja em parte, o que j parece estar bem sentado e estabelecido. E talvez por isso mesmo essas interpretaes, nascidas da reflexo sobre a documentao, tem dificuldade em se tornar criveis: no porque no sejam plausveis, mas porque esto sob a sombra ocultadora das construes tericas prvias, que sem nos darmos muita conta disso, esto empatando o campo.

    A modo de posfcio, algumas consideraes finais.

    O contedo deste artigo nasceu a partir da reflexo critica, talvez um tanto irnica, sobre uma situao pessoal e concreta. Meus estudos sobre as obras brutalistas dos anos 1950-70, primeiro paulistas, depois brasileiras, e nos desdobramentos mais recentes da pesquisa, incluindo exemplos colhidos em vrias partes do continente americano (e pretende-se ir alm), tem buscado apoiar-se na fora dos documentos as obras, suas datas, sua comparao sem preconceitos ou apriorismos, e sem aceitao a-crtica das explicaes cannicas previamente existentes; ao menos, sem antes pass-las pelo crivo das informaes concretas que se ia recolhendo. A somatria desses estudos vem

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    resultando na necessidade de se proceder a uma reviso historiogrfica do assunto brutalismo; a qual ainda est se processando, mas que j tem claras algumas premissas e resultados, que adiante exponho muito resumidamente.

    Mesmo assim, quando esses estudos so comunicados em textos, eventos, aulas; e muito especialmente quando so comunicados aos pares aos que sabem mais, e no aos que nunca pensaram nada sobre esse assunto - tendem a ser recebidas com certa atitude de incredulidade. Em geral, no se questionam os fatos, porque estes sequer so re-examinados para conferir se minhas hipteses e concluses sobre eles se sustentam. Duvida-se, quase sempre e apenas porque outras autoridades - vindas do reino, claro - dizem que no assim, de outro jeito: e estamos6. como se a memria de textos cannicos lidos na infncia de nossa formao tivessem mais precedncia e mais autoridade do que estudos contemporneos, sistemticos, cuidadosos e bem fundamentados, que pem em dvida esses textos porque demonstram suas fraquezas e insuficincias. Nesse caso, uma questo de outorga ou no autoridade s pessoas - e no, como seria correto, aos seus estudos.

    Entretanto, temo que, com o tempo, as interpretaes que venho sugerindo se tornem por sua vez cannicas, mas que isso ocorra apenas no mau sentido: porque de tanto eu as repetir, ou serem repetidas meio rapidamente por outros, se tornem aceitas tambm por ganho de autoridade e mesmo sem um acurado exame critico de seu contedo. E assim, passaro de subversivas a bvias sem que de permeio se examine com cuidado o trabalho que as props. Ento, gostaria de deixar claro que no meu objetivo convencer ningum a no ser pela fora dos fatos, ou seja, pela documentao e interpretao e no, de maneira ideolgica ou consuetudinria. E igualmente, assim aspiro que o trabalho seja criticado, e no por mera antipatia a priori.

    E para no perder o costume, volto a afirmar as concluses de meus estudos recentes e em andamento sobre o brutalismo dos anos 1950-70, que agora parecem fazer sentido no apenas para o caso paulista, mas para muitos outros casos j em estudo.

    Que o brutalismo 7 pode ser entendido como uma tendncia arquitetnica muito prevalente nas dcadas de ~1950-1970 em todo o planeta, podendo ser entendido como

    6 Outro questionamento comum e recorrente dos que pretendem que no se pode dizer essas coisas

    porque sero mal-interpretadas por alunos e outros receptores. Trata-se de uma critica de juzo moral que no pode ser considerada, sob pena de eliminarmos a pesquisa, e at mesmo a escrita, vez que tudo pode ser mal interpretado na vida. 7 Conforme definido em textos anteriores da autora, Zein (2005, 2007).

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    conformando um outro tipo de estilo internacional daquele momento, pois que foi adotado em uma enorme variedade de obras, por quase todos os arquitetos vivos e atuantes naquelas dcadas. Que foi sempre mal amado e at execrado pelos crticos e historiadores imediatamente posteriores sua consolidao, expanso e decadncia, os quais ajudaram a desprezar e esquecer essas obras (as ruins como as boas, e as h e muitas). Que entretanto segue vivo atravs dos rastros que imprimiu na formao de muitos arquitetos mais jovens e hoje atuantes, e pode ser percebido como impregnando algumas das tendncias arquitetnicas presentes na prtica projetual contempornea. E que por estar em parte redivivo, bem convinha proceder recuperao historiogrfica do brutalismo e das suas mais importantes e melhores obras, nem que fosse para qualificar quem sabe at, superar - sua presena oculta no ambiente projetual contemporneo. Para recuperar seu status, ou melhor, para lhe outorgar um renovado status, importante admitir que o brutalismo pouco menos que um estilo, mas tendia a s-lo; que provavelmente no foi um movimento, e foi parco de discursos auto-referenciados; que se configura e estabelece temporalmente e espacialmente mais ou menos ao mesmo tempo em quase toda parte; e que a fora dos fatos e das datas indicam no ser de origem britnica, nem predominantemente influenciado pelo caso britnico, que sem dvida um caso importante, mas apenas tanto quanto outros mais; e que assim, obviamente, no tem nada a ver com a efgie dos deuses nrdicos em uma moeda. Que foi um fenmeno amplo e universal e que mesmo assim, admitiu variaes locais que tambm so de interesse; que embora tenha ocorrido em toda parte do mundo ao mesmo tempo, sem que seja possvel detectar uma origem central predominante, deve sua origem certamente contribuio magistral de Le Corbusier e, de maneira secundaria mas tambm importante, a Mies; que talvez ocorra com certa anterioridade, e talvez com mais vigor e inveno, nos pases que ento se denominavam de terceiro mundo. E que finalmente, no uma tica, mas uma esttica - mesmo quando se tenha que admitir que na maior parte das vezes seus autores parecem privilegiar uma certa moral operativa que busca evidenciar estruturas e limitar a paleta dos materiais construtivos. Que no tem uma essncia, pois o que tem em comum todas suas obras so as superfcies. Que ainda um tema maldito, tabu, provocativo e por isso mesmo, muito interessante.8

    8 Uma verso parcial deste texto foi apresentada no Seminrio Internacional Puntos Cardinales de la

    Teora de La arquitectura 1920-1950 e publicada nos seus anais (Universidad Nacional de Rosrio, 2011). O debate critico que se seguiu sua exposio foi muito intenso e rico, e sem dvida colaborou para a reviso e preciso do presente texto. Mesmo se, de fato, os mesmos fenmenos de no aceitao priori das minhas proposies tenham ocorrido ento, o embate direto com os colegas de alto nvel intelectual que discordaram das minhas posies me foi extremamente til, seno ao menos, para

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    Referncias

    GOLHAGEN, Sarah Williams. Something to Talk about: Modernism, Discourse, Style. Journal of the Society of Architectural Historians, Vol. 64, No. 2 (Jun., 2005), pp.144-167. University of California Press on behalf of the Society of Architectural Historians disponvel em http://www.jstor.org/stable/25068142 . Acesso em 24/03/2011.

    WAISMAN, Marina. El interior de La historia. Historiografia arquitectnica para uso de Latinoamericanos. Bogot: Escala, 1990.

    ZEIN, Ruth Verde. A arquitetura da Escola Paulista Brutalista 1953-1973. Tese de doutorado apresentada ao PROPAR-UFRGS. Porto Alegre, 2005.

    ZEIN, Ruth Verde. Brutalismo, sobre sua definio (ou, de como um rtulo superficial , por isso mesmo, adequado). Arquitextos (on-line) 084.00, ano 07, mai 2007. Disponvel em http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/07.084/243, acesso em 04/05/2011.

    confirmar que essa no aceitao a priori a partir de convices ideolgicas arraigadas que no se desejam questionar, por razes polticas ou consuetudinrias no apenas uma figmento da minha imaginao.