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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 7 a 10 de junho de 2016
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QUANDO AS IMAGENS RASGAM O TECIDO DO SENSÍVEL
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WHEN THE IMAGES TEARS THE FABRIC OF SENSIBLE
Thales Vilela Lelo2
Resumo: Inspirado por um conjunto de considerações teóricas que balizam as
pesquisas recentes em estética da comunicação, esse artigo se propõe a
compreender, no âmbito dos estudos de mídia contemporâneos, como o registro
estético é incorporado às reflexões de autores que problematizaram, de um ângulo
normativo, os desafios implicados na representação midiática da alteridade,
conferindo relevância às reações morais e afetivas do espectador no contato com as
imagens. Tecendo uma crítica ao modo como esses autores lidaram com a questão,
propõe-se: a) uma interface entre estética e política forjada na desconstrução do
nexo causal entre o conteúdo político de uma mensagem e sua repercussão na
esfera da recepção; b) uma defesa da “livre inatividade” do espectador na
apreciação estética intensa, concebida como chave de uma redistribuição dos
regimes de sensibilidade que configuram a repartição singular dos objetos da
experiência comum.
Palavras-Chave: Midiatização. Estética. Política.
Abstract: Inspired by a group of theoretical considerations that guide the recent
researches on aesthetics of communication, this article intends to understand, in the
context of contemporary media studies, how the aesthetic register is incorporated
into the reflections of authors that problematized, from an normative angle, the
challenges involved in the media representation of otherness, giving relevance to
the moral and emotional reactions of the spectator in contact with images. Weaving
a critique of how these authors have dealt with the issue, it is proposed: a) an
interface between aesthetics and politics forged in the deconstruction of the casual
link between the political content of a message and its impacts on the reception
sphere; b) a defense of the “free inactivity” of the viewer in the intense aesthetic
appreciation, designed as key to a redistribution of sensitivity regimes that makes
up the singular partition of the common experience objects.
Keywords: Mediatization. Aesthetics. Politics.
1. Introdução
No âmbito dos atuais debates em torno de uma estética da comunicação é possível
detectar, como já esboçado em Braga (2010), um conjunto substancial de hipóteses
1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Comunicação e Experiência Estética do XXV Encontro Anual da
Compós, na Universidade Federal de Goiás, Goiânia, de 7 a 10 de junho de 2016. 2 Doutorando em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas. Mestre em Comunicação Social
pela Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: [email protected]
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heurísticas que balizam as reflexões dos pesquisadores que se inserem nesse campo,
oferecendo às incursões investigativas uma forma mais ou menos partilhada de compreensão
das interlocuções entre a experiência estética e os processos comunicativos.
Uma primeira dimensão do atual estágio dessa articulação pode ser vislumbrada,
segundo Shusterman (2008), na proposição desses autores de uma semântica transformativa
de entendimento das interfaces entre estética e vida cotidiana. Isso corresponde, para
Guimarães (2006), Gumbrecht (2010) e Seel (2010), a uma contraposição às teorias clássicas
que tendiam a julgar a percepção estética intensificada como experiência de verdade e
conhecimento revelada pela relação autêntica com as obras de arte - não acessível dentro das
fronteiras cognitivas que guiam a nossa compreensão habitual do mundo. Na atual
conjuntura, há um esforço por tratar a estética em sua relação de articulação com as demais
formas de manifestação do sensível, apreendendo-a como uma alteração nos modos de
percepção convencionais que encontra realização ao “sermos atraídos para as possibilidades
de percepção e compreensão, dentro e fora da arte” (SEEL, 2014, p.36). Ou seja,
virtualmente qualquer objeto pode ser tratado de maneira estética, e vice-versa3.
Estando a racionalidade estética inserida nos contextos de comunicação e ação que
compõem o tecido de racionalidades do mundo da vida, então (e esse é um segundo ponto de
relativo consenso na atual conjuntura) o traço definidor dos objetos estéticos não deriva de
suas propriedades internas, mas de sua inscrição relacional. Isso significa - acompanhando os
direcionamentos de Guimarães (2006), Lopes (2006), Valverde (2007), Braga (2010),
Cardoso Filho (2011) e Picado (2015) - que a suposta origem “artística” das obras não
determina a qualidade estética que as define – melhor vislumbrada através da
“comunicabilidade” da experiência suscitada por meio delas. Deslocando o enfoque dos
produtos para os processos e das artes para a experiência, considera-se que o aparecer estético
não pode ser limitado a um arroubo subjetivo de matriz solipsista, já que ser afetado por uma
experiência também significa poder objetiva-la, de modo a compartilhar a singularidade do
momento vivido, reconstruindo-o no quadro mais amplo da experiência mundana. Salienta-se
uma ligação entre a experiência vivida e sua expressão, socialmente forjada por meio de um
“vocabulário” estabelecido e uma compreensão partilhada: “sem a preparação prévia de
3 Lopes (2006), Valverde (2007), Braga (2010) e Duarte (2015) também tematizam essa aproximação entre arte
e vida cotidiana, frisando que quaisquer circulações de materiais expressivos podem estimular a fruição estética.
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outras „falas‟ que nos ensinem o que sentir e como sentir, o próprio momento psicológico
emocional seria outro” (BRAGA, 2010, p.84).
Para além da dimensão comunicativa, a situação de impregnação estética também
adquire destaque em Valverde (2007) e Cardoso Filho (2011). Há uma preocupação,
ancorada especialmente no pensamento pragmatista, em delinear a inscrição situacional da
experiência estética no que diz respeito aos rastros que os momentos singulares deixam no
ambiente como traços/indícios de um encontro estético, podendo ser futuramente acessados
por outros que também queiram vivenciar determinada experiência intensa.
Há também uma inclinação, por parte destes estudiosos, de enfatizar um aspecto
valorativo da experiência estética, entendido como aparição que pode “perturbar nosso senso
de ordem e nos oferecer um sentimento de choque e irrupção que proporciona uma percepção
valorosa (...) para experimentar” (SHUSTERMAN, 2008, p.86-7). Guimarães (2006)
assevera que a percepção estética nos permite alargar e corrigir uma pré-compreensão dada
ou ainda introduzir, de maneira provocadora, um ponto de vista desviante, confrontando as
práticas da vida ordinária. Já Valverde (2007), Braga (2010) e Duarte (2015) afirmam que a
experiência estética parece apontar para uma desvinculação do objeto e dos contextos
conceituais e materiais aos quais pertencem normalmente, instaurando um deslocamento
perceptivo com potência para enriquecer os padrões cognitivos e emocionais habituais que se
acumularam em um patrimônio comum4. Deixar com que esses deslocamentos despontem
pode envolver, segundo Gumbrecht (2010), uma serena disponibilidade, que antecipa a
presença energética de um objeto de experiência futura.
Encerrando essa breve excursão a algumas chaves conceituais que pavimentam o solo
das pesquisas em estética da comunicação nos últimos anos, uma última interface, entre a
experiência estética e os processos contemporâneos de midiatização, funda o percurso que
será trilhado ao longo das próximas seções deste texto. Embora Lopes (2006), Valverde
(2007) e Picado (2015) tenham se debruçado sobre esse vínculo, sugerindo a extinção da
hierarquização de qualidades entre as experiências propiciadas pela produção artística
canônica e os produtos culturais midiáticos, é Braga (2010) quem se dedica mais a fundo na
intersecção entre experiência estética e interações comunicacionais sob o prisma da
4 No início do século XX John Dewey (2010) também já apontara esse deslocamento das rotinas habituais
propiciado pela experiência estética, deslocamento esse que nos capacitaria a interagir com o mundo de formas
até então imprevistas.
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midiatização, afirmando que tais processos atuam como vetores que potencializam a
emergência difusa desse tipo de experiência. Isso, pois, “quando enfatizamos a experiência
estética mais que a „obra‟, deixamos de ter a possibilidade de gerar raridade através da
adoção de critérios maximizadores e de sistemas críticos voltados para a seletividade”
(BRAGA, 2010, p.78) de modo tal que “decorre daí uma dispersão e uma ampliação da
possibilidade de experiências estéticas não controláveis dentro de um único padrão de valor
nem asseguráveis em sua realização” (BRAGA, 2010, p.78). Destarte, em um cenário de
ascendente midiatização das práticas interacionais, a circulação das experiências estéticas
demanda uma competência afetiva e expressiva na composição de um material que saiba
“dizer essas percepções em termos e modos que talvez não seriam obtidos por quem as vive
na cotidianidade; mas que podem ser compreendidos e – mais que isso – que tragam à tona
(da percepção) aquelas emoções” (BRAGA, 2010, p.80).
Em linhas gerais, o objetivo desse ensaio é inicialmente depreender, no âmbito dos
estudos de mídia contemporâneos, como o registro estético é incorporado às reflexões de
autores que tematizaram, de uma perspectiva normativa, os desafios envolvidos na
representação mediática da alteridade (particularmente candentes em situações de crise
humanitária), conferindo relevância às modulações comunicativas (sobretudo afetivas e
morais) de reação do espectador diante de cenas de injustiças ou de infortúnio que ferem
física e simbolicamente sujeitos identificados como vítimas. Esse esforço expositivo
permitirá identificar nessas pesquisas uma tendência a apreender a experiência estética como
uma interferência às possibilidades de politização do espectador diante do espetáculo do
sofrimento mediatizado. Nas seções seguintes, tentar-se-á delinear uma alternativa a essa
cisão entre estética e política, sob influência da filosofia política de Jacques Rancière e da
teoria estética de Martin Seel, no intento de descontruir uma premissa implícita responsável
por minar a articulação entre as duas instâncias, a saber: a pressuposição de uma ligação
causal entre o conteúdo político de uma mensagem e sua repercussão na esfera da recepção.
Propondo o rompimento desse modelo linear de apreciação dos processos comunicacionais
como margem para a conceituação de uma política da imagem, o terceiro tópico será
reservado para uma defesa da “livre inatividade” do espectador na apreciação estética intensa
(em seu sentido transformador) como chave de uma redistribuição dos regimes de
sensibilidade que configuram a repartição singular dos objetos da experiência comum.
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2. A categoria estética como irrefletida contemplação
Percebe-se, como frisa Ong (2014), que os Estudos Culturais e de mídia vêm
testemunhando uma virada “ética e moral” nos anos recentes, enfatizando questões
normativas (mormente de relacionamento com a alteridade distante) supostamente deixadas
de lado em etapas de investigação anteriores, pautadas ora nos efeitos de discursos midiáticos
específicos ora no destaque à atividade das audiências ao conferir sentidos aos textos que
defrontam. Para os representantes dessa nova agenda de estudos, informada por expoentes da
filosofia política e da moral (tais quais Adam Smith, Immanuel Kant, Jacques Derrida e
Emmanuel Lèvinas), o horizonte analítico se delineia, segundo Orgad e Seu (2014), na
exploração dos dilemas que emergem do processo de mediação tecnológica da alteridade,
acenando para uma arena de conflitos sobre os modos (apropriados ou não) de representação
midiática (principalmente a representação daqueles expostos a uma situação de
vulnerabilidade, penúria e sofrimento).
Nesse cenário, Dayan (2013) discorre que os media possuem uma dimensão
“mostrativa” (ligada à visibilização seletiva de determinados agentes e situações) aliada às
suas competências para convocar a atenção pública para determinados eventos que tomam a
cena, e incitando o engajamento sensível da audiência (que pode ou não assumir uma face
ética) em conexão a interesses econômicos, políticos e culturais. Estudos classificados sob
esse panorama se direcionam, predominantemente (ONG, 2014; ORGAD e SEU, 2014), a
uma análise textual da representação do sofrimento à distância, enfatizando as formas
semântico-simbólicas de construção da alteridade vulnerável pela via das imagens mediadas,
e tangenciando, na esteira, as implicações dessas imagens para o cultivo de uma solidariedade
cosmopolita e para a promoção da ação humanitária.
Através de um instrumental advindo da análise crítica do discurso, da análise de
conteúdo, e da pesquisa sobre enquadramentos, esses trabalhos abrangem desde incursões
sobre a cobertura noticiosa de desastres humanitários, passando por campanhas de ONG‟s, de
celebridades e mesmo a produção cinematográfica. Conforme Ong (2014) um elemento
chave para essas investigações diz respeito ao seu empenho em detectar, nas narrativas
averiguadas, o grau de agência e auto determinação da alteridade retratada. É mesmo viável
considerar que, para essa corrente de estudos, a agência atribuída ao outro em situação
vulnerável adquire o status de referência normativa, de modo que se considera que as
narrativas midiáticas que retratam a alteridade sob essa guia podem fomentar uma
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identificação afetiva da audiência com a situação de sofrimento experimentada por esses
atores - enquanto que aquelas que narram os mesmos eventos negando a agência aos
sofredores podem os privar de sua humanidade básica.
Lançado em 1993, o trabalho de Luc Boltanski em Distant Suffering (2004) é
provavelmente o mais influente desses estudos, tendo motivado, a partir de suas conclusões a
nível teórico, uma miríade de pesquisas empíricas. Boltanski (2004) parte da constatação de
que à distância da situação de agonia experimentada pelo outro, não há como um espectador
agir diretamente em seu socorro. Haveria, em tese, uma vantagem reflexiva na posição do
espectador, decorrente de sua distância à situação de penúria experimentada pela alteridade
representada nas tramas midiáticas: por não vivenciar as últimas consequências a extrema
tensão emocional daqueles que se encontram vitimados por uma tragédia, os públicos podem
fabular sobre a gravidade dessa agonia de uma maneira moralmente equilibrada,
correspondendo, pela via da linguagem, com uma reação compassiva à dor alheia. O
sentimento político originário desse esforço comunicacional de partilha de um desconforto
diante dos dramas midiaticamente representados é, segundo Boltanski (2004), a piedade, que
pode, na melhor das hipóteses, fomentar a constituição de um público sensivelmente
engajado em prol da correção de injustiças sociais ou de assistência àqueles que são
acometidos por um grave traumatismo.
Na sequência do argumento, o pesquisador francês oferece três categorias que
nuançam as modulações afetivo-comunicacionais de resposta do espectador diante do
sofrimento à distância (modulações que podem se entrelaçar em sua manifestação empírica
enquanto conduta): a) denúncia: o espectador se transmuta, discursivamente, em um
acusador, se concentrando em identificar o responsável pela dor infligida às vítimas; b)
sensibilidade: o público é preenchido de compaixão pela dor alheia e simpatia por aqueles
que, presencialmente, se dirigem ao seu amparo. Esse sentimento inspira urgência na
resolução do sofrimento e não mobiliza nenhum tipo de julgamento, como no caso da
indignação (já que a vítima não sofre em decorrência de um ofensor identificável); c)
estética: acrescenta às imagens do ofensor e do benfeitor uma feição artística, capaz de
desvelar o caráter sublime da dor e instigar uma reflexão sobre a condição humana.
A categoria de reação estética surge sob um prisma de indiferença em relação às
outras duas. Nela, o sofrimento à distância não é apreciado nem como injusto nem como
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comovente, mas sim em sua face sublime5. Nessa forma de engajamento espectatorial,
qualquer fagulha de piedade é contida, e a audiência é “entregue ao sofrimento nu, não
imputável a ninguém e sem esperança de remissão” (BOLTANSKI, 2004, p.116). Tomado
pelo impacto e sem perspectiva de identificar benfeitores que possam socorrer os afligidos ou
ainda incriminar os responsáveis pelo ocorrido, não resta ao espectador mais que a coragem
para encarar as imagens em sua crueza.
A experiência de se deparar com a aspereza do sofrimento produz no espectador uma
atenção à presença contemplativa da cena do horror, que a aparta de seu contexto de
referência (usualmente capaz de instigar um engajamento político-moral) em benefício a uma
apreciação livre de seus elementos plásticos e a um julgamento artístico das competências do
responsável pela produção das imagens (que assumem os contornos de uma “obra de arte”).
Boltanski (2004), entretanto, afirma que na contemplação estética das imagens
midiáticas ainda é possível aflorar uma simpatia pelos injustiçados ou desamparados quando
eles ganham o primeiro plano nas cenas, fitando com o seu olhar os públicos que assistem
uma agonia desvestida de razões. Apesar disso, o autor salienta que a empatia manifesta não
equivale a um engajamento de ordem política, tal como ocorre nos tópicos da denúncia e da
sensibilidade. Em sua ótica, a categoria estética renuncia a justificação em termos de
reciprocidade de perspectivas ou de um bem comum, criando um espaço de radical diferença
e autonomia das instâncias típicas de mobilização ética e moral.
A influência do horizonte teórico desenhado por Boltanski em Distant Suffering é
patente em diferentes investimentos de análise textual e em esforços de categorização
suplementar das narrativas midiáticas segundo seus artifícios de afetação sensível das
audiências. Nos investimentos de Lilie Chouliaraki (2006a, 2006b), Marita Sturken (2011) e
Shani Orgad (2012), é notória uma tentativa de apreciação empírica dos gradientes de
“sublimação” do sofrimento à distância sob os marcos da reflexão empreendida por Boltanski
(e das tensões instauradas entre política e estética no tocante à sensibilização moral dos
públicos diante de um outro que se encontra em situação vulnerável).
5 A definição de sublime em Boltanski (2004) obedece à formulação de Kant em Crítica da Faculdade de Juízo
(2002): um arrebatamento que excede os esquemas cognitivos convencionalmente utilizados na percepção do
mundo; acometimento singular, que independe de propósitos ou funções e que suscita uma experiência de
contemplação que toma os sujeitos de estupor.
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Por esse eixo investigativo, Chouliaraki aciona o registro estético identificado pelo
sociólogo francês no ímpeto de oferecer, em suas palavras, “uma particular interpretação
sobre como o sofrimento à distância aparece na televisão e os possíveis efeitos que isso gera
nas disposições éticas e nas crenças dos espectadores” (CHOULIARAKI, 2006b, p.263).
Recuperando uma vez mais Boltanski, a autora indica que a resposta emocional diante dos
recursos semiótico-expressivos que compõem uma narrativa noticiosa amparada por essa
configuração “desencoraja os espectadores de sentir ou denunciar o sofrimento”
(CHOULIARAKI, 2006b,p.267), em privilégio à contemplação do horror das cenas. Por essa
razão, o sublime seria fundado sob a condição de inatividade do espectador, que se furta de
forjar uma simbologia de sentidos para o evento midiatizado. A disposição à percepção
sensível de eventos turbulentos que deixam suas marcas insidiosas nos corpos daqueles que
percorrem as narrativas midiáticas é favorecida pela peculiar distância física da audiência do
contexto no qual o sofrimento emerge (originária do dispositivo de mediação tecnológica).
Segundo Chouliaraki, o tipo de experiência estética acionada nesse evento pode ser
apreendido como um arranjo que conforma as imagens em objeto passivo do olhar da
audiência (consumida pela disposição esteticamente impactante dos elementos plásticos,
textuais e sonoros que compõem a cena). Esse tipo de engajamento não mobiliza uma
conduta de indignação ou compaixão, mas sim de distanciamento do referente. “A implicação
dessa não obrigação em relação ao objeto de sofrimento é essa: ao espectador é dada a opção
de ponderar sobre o horror da guerra fora de seu contexto histórico específico e de seus
interesses investidos” (CHOULIARAKI, 2006b, p.276). Assim, distintamente do convite à
reação moral impulsionado pelos registros da denúncia ou do cuidado (de imputação de culpa
aos responsáveis em um caso; de solidariedade pelos oprimidos do outro), o regime estético
do sublime não conduz a essa forma crítica de engajamento.
Chouliaraki (2006a) oferece, no plano empírico, exemplos de manifestação dessa via
de acesso às imagens. Um dos casos averiguados corresponde às cenas das inundações em
Bangladesh em julho de 2002, que supostamente “removeriam” o acontecimento do fluxo da
experiência vivida por serem compostas de quadros esteticamente envolventes, de forma que
“o fascínio com a paisagem é criado ao invés de uma ligação emocional como o sofrimento
de fato” (CHOULIARAKI, 2006a, p.103-104). Outra experiência estética de natureza similar
parece ter despontado, nos termos da autora, na cobertura ao vivo do céu de Manhattan à
posteriori dos atentados terroristas de 11 de setembro em Nova Iorque. Apreciado como uma
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pintura, o horizonte de fumaça e destroços condensado ao vívido céu azul deslocaria a
percepção do acontecimento de sua historicidade própria, inserindo-o na temporalidade de
um presente estendido - desligado momentaneamente de passado ou futuro e atrelado a um
sistema semiótico de relevo icônico.
Shani Orgad (2012) e Marita Sturken (2011) detectam, em suas análises críticas da
escritura imagética da campanha humanitária We Are the World 25 for Haiti e da banalização
midiática das práticas de tortura perpetradas por soldados norte-americanos contra detentos
em Abu Ghraib e na Prisão de Guantánamo, respectivamente, os mesmos efeitos de
“estetização” do sofrimento à distância, que aplacariam uma sensibilização política dos
públicos no encontro com uma alteridade fragilizada por uma catástrofe natural ou por ações
ilegítimas do Estado. No caso do clipe gravado em comemoração aos 25 anos da versão
original da canção de Michael Jackson em assistência às vítimas dos terremotos que
devastaram o Haiti em janeiro de 2010, Orgad (2012) opera uma averiguação discursiva dos
closes de câmera em crianças sorridentes vitimadas pela tragédia, assinalando que a repetição
dos mesmos rostos esperançosos ao longo do vídeo acompanhados de banda sonora com
trilha popular reificariam a consternação alheia em um espetáculo sublime, “representando
um sentido universal de dor e sofrimento humano ao invés de um envolvimento com a
impotência e a agonia daqueles sofredores, suas causas e as formas de aliviá-las” (ORGAD,
2012, p.145). Sturken (2011), por sua vez, evidencia como a domesticação da tortura
difundida na tessitura midiática em território estadunidense através de fotografias insidiosas
de presos subjugados de forma degradante por forças militares instauraria uma “estética da
trivialização”, que destitui de humanidade àqueles submetidos a um tratamento injusto ao
mesmo passo em que fomenta no espectador uma apreciação dos elementos plásticos de tais
imagens, incapacitando-os a uma mobilização moral efetiva contra o sistema abusivo
banalizado pelas forças oficiais.
3. A eficácia paradoxal do regime estético das imagens
Se o presente artigo se propõe a reestabelecer os vínculos cindidos entre experiência
estética e política no tocante à midiatização do sofrimento à distância, se revela fundamental,
em primeira instância, problematizar, nos estudos supracitados, o suposto implícito de que há
uma correspondência direta entre os conteúdos propositivos de uma narrativa e o seu
resultado no campo da recepção (sobretudo de uma recepção moralmente engajada),
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potencializada por um marco normativo de representação da alteridade quando inserida em
um contexto de injustiças e catástrofes que irão circular em processos interacionais
midiatizados.
Conforme Ong (2014) e Orgad e Seu (2014), as investigações de escopo textualista
atinentes a uma “virada moral” dos estudos de mídia apresentadas na seção anterior são
recorrentemente criticadas por incorrerem de determinismo ao superestimarem os nexos entre
o teor moral das narrativas midiáticas e seu potencial de implicação do espectador (direta ou
indiretamente), resvalando em uma simplificação da complexa relação que existe entre as
narrativas e sua recepção em uma lógica de causa-efeito já há muito superada nos estudos em
Comunicação. Acrescenta-se a esse campo de problematizações a assunção à priori, nessas
pesquisas, de que o grau de “agência” atribuído à alteridade nas cenas do sofrimento à
distância por si só adquire status normativo de referência para o comprometimento moral
apropriado dos públicos, fazendo crer que haveria um modo correto de retratação dos sujeitos
- de modo a fomentar no espectador um engajamento sensível com suas agruras.
Mas as considerações críticas mais acuradas a essa linearização do circuito
comunicativo sob o “pressuposto de uma continuidade sensível entre, por um lado, a
produção das imagens, gestos ou palavras, e, por outro, a percepção de uma situação que
compromete os pensamentos, sentimentos e ações dos espectadores” (RANCIÈRE, 2010,
p.82) emergem na incisiva reflexão do filósofo francês Jacques Rancière (2010) sobre os
paradoxos da arte política.
O autor (RANCIÈRE, 2010) detecta uma tendência contemporânea no mundo das
artes de repolitização das obras, acionada pela constatação, por parte de especialistas, de um
vínculo mimético entre arte e política, sustentado pelo argumento de que o papel das
produções nesse campo seria o de responder às formas de dominação econômica, estatal e
ideológica. Assim, ao “desmascarar” as faces da opressão em âmbito material ou simbólico, a
arte, se movendo para fora de seus espaços consagrados, por implicação lógica transformaria
os espectadores em opositores das injustiças sociais apresentadas (e devidamente rechaçadas)
no campo imagético.
O que Rancière quer evidenciar com a problematização dessa orientação diretiva da
compreensão do espectador na “arte política”6 produzida nas últimas décadas (e que pode ser
6 Hussak (2014) percebe, dentre os expoentes dessa política da arte contemporânea, uma releitura da estética
marxista que teria adotado como premissa a noção de que seria papel da obra atingir um efeito no espectador, no
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extrapolada para circulação mais difusa de imagens no espectro dos processos de
midiatização, tal qual o fenômeno de mediação do “sofrimento à distância” identificado no
tópico anterior), segundo Pedro Hussak (2014) e Ângela Marques (2014), é que não há uma
ligação pedagógica, aos moldes de um roteiro prévio, entre o que é configurado em imagens e
seus modos de recepção sensível. A politicidade da imagem não estaria situada no gesto de
transcendência da obra, alçando à “mensagem” passada através dos componentes semióticos
próprios ao produto em tela à qualidade de guia para a prática política concreta ou
instrumento de conscientização massiva e reconstituição de vínculos sociais (degradados
pelos mecanismos de dominação). Conforme Marques, “análises que consideram que a
imagem é apenas um gatilho para que se encontre a política em outro lugar desconsideram
elementos estéticos e discursivos próprios da imagem” (2014, p.67-68). O que esse raciocínio
quer reivindicar é que a política da imagem não deve se situar fora do campo imagético,
tendo em vista que, como já assinalado, nem mesmo as adequações ou inadequações na
representação das condições de vulnerabilidade de sujeitos expostos a uma situação social de
penúria e desamparo garantem a produção de um conteúdo que possa ser tomado como
marco de comprometimento sensível da audiência com causas sociais – e modelo de
orientação para futuras obras de mesmo escopo.
Se não há como um artista, um diretor ou produtor cultural, afirmar com clareza a
policitidade de sua obra (pois ele não possui controle total sobre os efeitos e apropriações de
seu trabalho), qual a consequência filosófica de uma preocupação excessiva com a reação do
público em face de cenas que supostamente o deveriam afetar moralmente? Na perspectiva
defendida por Rancière (2010), o resultado desse esforço seria uma laceração da competência
interpretativa do espectador, reduzida nesse horizonte à função de compreensão adequada dos
sentidos propostos pelo realizador em sua composição narrativa (com o subsequente
endereçamento de atitudes – ora revelando indignação pela condição injustiça aos quais
determinados humanos são submetidos, ora expressando simpatia por aqueles que tornam a
vida desses seres menos intolerável).
Em O espectador emancipado, Rancière (2010) transpõe as considerações sobre a
emancipação intelectual sob o primado da igualdade de inteligências como princípio da ação
política (teorizada anteriormente em O Mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação
ímpeto de extraí-lo da esfera passiva da contemplação - uma vez que somente a política enquanto práxis seria a
responsável pela emancipação social.
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intelectual (2002)) para o campo da comunicabilidade estética instaurada no ato de
apreciação das formas artísticas. O autor indica que no modelo pedagógico de representação
há uma disparidade a ser corrigida, pelo veículo das imagens, entre o saber dos públicos e o
dos realizadores, de forma que o conhecimento detido pelos segundos (previamente
sensibilizados a uma determinada causa social) deve entrar em ressonância ao
desconhecimento preliminar dos primeiros - corrigindo o intervalo existente no
comprometimento de ambos diante de um evento problemático que clama por mobilização
pública. A escritura narrativa é então estruturada no intento de garantir a eficiência dessa
sintonização de sensibilidades desiguais. Nos termos de Rancière (2005), trata-se de um
“regime representativo das artes”, que “versa sobre o modo de expressão correto para a
transmissão de uma mensagem, levando-se em conta tanto o público-alvo (...) quanto o estilo
adequado para o tema tratado” (HUSSAK, 2014, p.136).
Em contraposição a esse sistema delineado a partir da relação causal entre a validade
moral ou política da mensagem transmitida pelo dispositivo representativo e seu impacto na
conduta efetiva do espectador (e sustentada por uma pressuposição acerca da desproporção a
ser sanada entre o ímpeto crítico do artista e a compreensão sensível dos públicos), Rancière
(2010) propõe a desconstrução desse raciocínio simplificador ao recuperar um argumento
presente em sua obra sobre as lições emancipatórias de Joseph Jacotot: “A distância não é um
mal a abolir, é antes a condição normal de toda a comunicação” (RANCIÈRE, 2010, p.19);
para logo em seguida atestar que
A performance não é a transmissão do saber ou do respirar do artista
ao espectador. E antes essa terceira coisa de que nenhum deles é
proprietário, da qual nenhum deles possui o sentido, essa terceira
coisa que se mantém entre os dois, retirando ao idêntico toda e
qualquer possibilidade de transmissão, afastando qualquer identidade
entre causa e efeito (RANCIÈRE, 2010, p.24-25).
A hipótese sobre o poder comum da igualdade de inteligências (defendida
enfaticamente por Rancière), provoca uma suspensão e descontinuação da intersecção
sequencial entre: a) a intenção do artista; b) uma forma sensível apresentada como arte; c) o
olhar de um espectador (alvo do efeito da obra) e; d) o estado da comunidade; desvelando
outro horizonte de entrelaçamento entre a experiência estética e a política.
O filósofo francês apreende esse deslocamento teórico sob o modelo da “eficácia
estética”: “é a eficácia da própria separação, da descontinuidade entre as formas sensíveis da
produção artística e as formas sensíveis através das quais essa mesma produção é apropriada
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por espectadores, leitores ou ouvintes” (RANCIÈRE, 2010, p.85)7. Sob os ditames desse
sistema, política e experiência estética se cruzam quando se anuncia uma experiência de
dissentimento, onde as produções são entregues a um olhar (e a um processo de circulação
interacional, cabe acrescentar) que se encontra desligado de qualquer prolongamento
sensório-motor estanque ou significação precisa (nenhuma resposta crítica ou empática é
solicitada ao espectador), aberto às disputas hermenêuticas de recombinação de signos
capazes de perturbar as evidências sensíveis dos registros discursivos dominantes -
naturalizados na topografia do visível segundo a partilha do sensível8 vigente.
Nesse intervalo instaurado entre os produtores e os públicos no regime da “eficácia
estética”, a política da imagem precede às políticas dos produtores enquanto “repartição
singular dos objetos da experiência comum, que opera por si mesma independentemente dos
desejos que possam ter os artistas de servir esta ou aquela causa” (RANCIÈRE, 2010, p.95-
96), produzindo experiências singulares que têm a potência para determinar capacidades
novas em rotura com a antiga configuração do possível (redefinindo o que é visível, o que
pode dizer-se sobre o visível e quais os sujeitos que são capazes de fazê-lo).
4. Da “livre inatividade” do espectador como potência de redistribuição do sensível
Como fica patente à posteriori da incursão às críticas tecidas por Jacques Ranciére a
um modelo mimético de política da imagem (que supõe um continuum entre o teor moral de
uma mensagem traduzida em imagens e a afetação sensível dos receptores), percebe-se,
recuperando os dois primeiros registros de tomada de conduta afetivo-comunicacionais do
espectador em face do espetáculo do sofrimento à distância representado na tessitura
midiática - a saber, denúncia e sensibilidade (com suas consecutivas possibilidades de
moralização dos públicos em decorrência dos artifícios empregados para a construção da
alteridade na escritura discursiva das imagens) -, uma manutenção do dispositivo
representativo tencionado na seção anterior, em decorrência de sua constrição às
competências hermenêuticas de leitura.
7 Rancière (2010) menciona, em diversas oportunidades, o Torso Belverde esculpido por Apolônio como um
exemplo dessa paradoxal “eficácia estética”. Ele seria um Hércules em repouso, uma figura ociosa que não
exprime nenhum sentimento e não propõe nenhuma ação a ser imitada, simbolizando uma passividade radical
originária de uma suspensão de quaisquer sensos de continuidade entre formas sensíveis e percepção estética. 8 Segundo Rancière, o conceito de partilha do sensível corresponde ao “sistema de evidências sensíveis que
revela, ao mesmo tempo, a existência de um comum e dos recortes que nele definem lugares e partes
respectivas” (RANCIÈRE, 2005, p.15).
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No esquema conceitual forjado pelos expoentes contemporâneos de uma analítica da
moralidade no âmbito dos estudos de mídia, a desconexão entre o conteúdo propositivo de
uma narrativa e seu “efeito” de comprometimento moral dos públicos com a ilegitimidade
das experiências funestas vivenciadas por sujeitos localizados em diferentes pontos do globo
aconteceria, sobremaneira, na postura estética, pautada por uma livre inatividade do
espectador no encontro com a sublimidade do horror. A entrega à contemplação da
plasticidade da trágica paisagem a abstrairia de seu contexto de urgência humanitária em
benefício a uma atitude desinteressada de imputar culpabilidade ou identificar razões para o
desastre.
Sob esse construto teórico, a manifestação do sublime na percepção estética das
imagens é, recuperando a leitura que Rancière desenvolve em El Malestar en la estética
(2012) do conceito kantiano, uma potência singular de presença que rasga o ordinário da
experiência e que se ergue sobre a ruína das perspectivas de emancipação política. Entretanto,
se esse ensaio planeia operar uma reconciliação entre a experiência estética e a política no
campo da mediação do sofrimento à distância, então é necessário, nesse momento, avançar da
proposição feita na seção anterior sobre a politicidade da imagem (acionada, potencialmente,
no rompimento dos nexos entre as mensagens e suas expectativas morais de recepção) em
direção às possibilidades de reconfiguração dos regimes do sensível na livre inatividade dos
públicos quando imersos na intensidade estética das cenas de sofrimento que afligem uma
coletividade.
Perseguir essa trilha exige a desconstrução e a reavaliação de premissas implícitas que
inviabilizaram, nos investimentos de pesquisa apresentados anteriormente, o estabelecimento
de uma articulação possível entre a política da imagem e a intensificação da percepção
estética de um evento. Uma vez mais sob a ótica de Rancière, compreende-se que o estado
estético, em seus termos, “é pura suspensão, momento em que a forma é experimentada por si
mesma” (2005, p.34). Essa apreensão do fenômeno coincide com aquela indicada por Martin
Seel em sua proposição de uma teoria estética fundamentada no aparecer9. Para esse autor
(SEEL, 2010), a experiência estética é entendida como um livre movimento cuja finalidade
está em sua própria processualidade. “A experiência estética tem de acontecer e somente
9 Segundo Seel, a percepção estética consiste “em perceber as coisas e os acontecimentos momentânea e
simultaneamente, tal e como aparecem diante de nossos sentidos” (2010, p.7) - ou seja, perceber algo em nossos
sentidos aqui e agora (sinestesicamente).
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pode acontecer se os sujeitos se envolvem com o fazer presente sensual de fenômenos e
situações que alteram a percepção do que é real e do que é possível (...) de forma totalmente
imprevista” (SEEL, 2014, p.28).
Em função dessa entrega da percepção à abertura de um aparecer em sua qualidade
sensível, a experiência estética “permite que o indeterminado no determinado, o que não é
realizado no realizado e o que é incompreensível no compreensível se tornem evidentes,
gerando assim a consciência para a abertura da presença” (SEEL, 2014, p.36), ultrapassando
todas as certezas que impregnam uma forma de disposição dos elementos do mundo. Por essa
razão, a reorganização do sensível virtualmente tecida na experiência estética adquire feição
política ao tomar uma distância artificial das formas naturalizadas de representação das
estruturas da sociedade, dos conflitos ou das identidades dos grupos sociais, contribuindo
para “desenhar configurações novas do visível, do dizível e do pensável e, por isso mesmo,
uma paisagem nova do possível” (RANCIÈRE, 2010, p.112-113).
Nessa esteira, a livre inatividade do espectador não é pura passibilidade que exerce
interferência sobre a ação política nesse domínio estético, mas outro registro de agência. Para
Yves Citton (2009), nós só desenvolvemos nossa sensibilidade porque há um tipo de
atividade envolvido no processo, concebida como a consciência de um intérprete ativo que
confirma ou transforma a distribuição dos corpos em uma topografia do sensível,
participando do espetáculo que lhe é proposto (no ato de observar, apreender e comparar o
que vê às experiências prévias) e o refazendo a sua maneira.
Conforme Peter Hallward (2009), a teoria da igualdade em Rancière aplicada à
espectatorialidade credita ao público o poder de alterar as modalidades de seleção dos dados
sensíveis, já que é o intérprete que seleciona (de modo direto ou indireto), dentre a
superabundância de sentidos, aqueles que serão contabilizados e aqueles que serão
descartados. Na explanação de Citton (2009), qualquer partilha do sensível consiste na
contabilização de certo estado de coisas e no abandono de outras. Isso, pois, em toda situação
de percepção, como corrobora Seel (2010), há mais elementos presentes no ambiente do que
aquilo que pode ser efetivamente captado, e cada objeto da percepção possui seu excesso. Em
função disso, retomando Citton (2009), uma política molecular propulsionada na emergência
da experiência estética operaria no cerne da filtragem dos dados sensíveis, realizando uma
mudança nas modalidades de seleção que não envolvem, necessariamente, uma atuação em
público ou a expressão de um desconforto (tal qual as categorias de denúncia e sensibilidade
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propostas por Boltanski insinuam), mas sim a recomposição do que até então estava
naturalizado na percepção.
No ensaio On the aesthetic variant of freedom (2008), Martin Seel destaca o potencial
transformador das reconfigurações de um determinado regime do sensível, acionadas na
atitude de livre inatividade do espectador10
no encontro com cenas que despertam uma
experiência estética. De acordo com o autor, é no contato com determinadas obras de arte
(mas o argumento poderia ser estendido, sem prejuízos, para o campo das imagens
midiáticas), que nossas crenças e atitudes normativas mais enraizadas são colocadas em jogo.
Em suas palavras, “o poder da experiência estética deriva de uma repetida extração daquilo
ao qual nos tornamos acostumados (...) a práxis estética permite um permanente processo de
nos acostumar com aquilo que não somos acostumados” (SEEL, 2008, p.279). E esse
deslocamento dos regimes de sensibilidade habituais deriva, em estreita aproximação com o
conceito de “eficácia estética” apresentado na seção anterior, do fato de que essa forma de
consciência nos desliga do telos que norteia nosso comprometimento habitual com o mundo
da vida (com suas consequências práticas - que no caso específico da representação midiática
da alteridade em um quadro de latente sofrimento, implicam em uma reação moral
apropriada).
Segundo Seel (2008), a experiência estética é caracterizada por uma disponibilidade
do intérprete para a possibilidade de ser sensivelmente afetado de uma maneira imprevista.
Por isso, na irrupção dos objetos que tocam à percepção não só tomamos tempo para o seu
aparecer, mas também nos “entregamos” a um encontro involuntário com nós mesmos e com
o mundo a nossa volta (que pode adquirir tonalidades antes nunca vislumbradas e agora
destacadas em sua diferença sensível).
5. Considerações finais
A tentativa de reconciliação promovida ao longo desse trabalho entre estética e
política (forjada na suposição de uma dimensão política das imagens inscritas no universo
dos processos de midiatização; e manifesta na emergência de experiências estéticas com
potencial de transformação das partilhas de sensível vigentes), nos possibilita inserir, na
10
Seel (2008) distingue duas formas de manifestação dessa livre inatividade: uma primeira na qual o sujeito é
arrebatado, sem qualquer resistência, das faculdades cognitivas que utiliza para apreensão do mundo; e uma
segunda, a qual ele se filia, que entende a livre inatividade como uma forma de entrega que permite ao sujeito se
embrenhar em uma auto experimentação, através dos atos não funcionais propiciados pela experiência estética.
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agenda dos estudos de mídia contemporâneos (preocupados com a encenação da alteridade
em situações de sofrimento), as valiosas contribuições de um mapa conceitual proveniente de
pesquisas que se detiveram na dimensão estética dos processos comunicativos.
Assim, embora não seja admissível inferir que a irrupção de uma percepção estética
vívida ocasionada na contemplação de uma cena e de seus elementos em sua plasticidade
visual, sonora ou textual garantirá na totalidade de suas manifestações um momento para a
transformação das formas de percepção e de codificação semiótica do mundo e de seus
agentes, também não parece razoável supor, na trilha de Boltanski, uma cisão integral entre a
politicidade das respostas morais do espectador (dispostas em categorias ideais previamente
delimitadas) e o “desinteresse” crítico inerente à contemplação estética. A ausência de uma
conduta reativa não deve ser diagnosticada como a falência de um comprometimento com as
coisas do mundo, mas sim como uma oportunidade para imersão em uma experiência que se
recusa a ser subordinada aos esquemas cognitivos e pragmáticos que restringem o campo do
possível ao que se presume como mais eficaz.
Se a experiência estética possui um caráter transformador no sentido político do termo
(embora a política aqui não seja entendida em sua face teleológica, mas sim processual), a
comunicabilidade que permeia suas aparições pode instaurar, na melhor das hipóteses, uma
sedimentação dos contextos propícios à entrega à duração de sua presença, e a gradual
recomposição dos regimes sensoriais e afetivos convocados (fundados, como sinaliza Picado
(2015), em sua potencial comunicabilidade) - a serem captados pelos “radares teóricos” dos
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