quando a linguagem escrita se torna objeto escolar · os exames nacionais e internacionais que...
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QUANDO A LINGUAGEM ESCRITA SE TORNA OBJETO ESCOLAR
SILVA, Denise Miyabe1 - UEL
Grupo de Trabalho - Didática: Teorias, Metodologias e Práticas
Agência Financiadora: não contou com financiamento Resumo O presente trabalho analisou 97 produções textuais de 11 alunos da 5º ano do ensino fundamental de uma escola pública do município de Rolândia, cidade localizada no norte do Paraná. O objetivo do trabalho foi de compreender o trabalho pedagógico com a escrita na escola, em particular a produção textual e refletir sobre o papel do professor mediador nesse processo. Para tanto foram analisados os primeiros textos do ano letivo, que faziam parte de uma avaliação solicitada aos professores pela Secretaria Municipal de Educação, com a finalidade de verificar o nível de escrita dos alunos. A análise dos textos prosseguiu durante os meses de fevereiro, março, abril, maio e junho a fim de verificar se houve mudanças na escrita das crianças através da mediação do professor. A abordagem de pesquisa escolhida foi a qualitativa interpretativa, que analisou as produções através da perspectiva enunciativo-discursivo, que considera a linguagem escrita em sua relação com a história (conhecimento) e com a sociedade, com seus diversos usos e apropriações, o que permitiu compreender os sentidos produzidos pelo ensino escolar na interação com as condições socioculturais das crianças. Percebeu-se que o problema está, não só na situação de produção textual que coloca os alunos para escreverem, cada um consigo mesmo, e todos sobre o mesmo assunto, situação esta de produção difícil de encontrar fora da escola, mas no fato de ser ela tão privilegiada em detrimento de outras situações reais. A pesquisa permitiu concluir que quase não houve mediação do professor no trabalho de escrita dos textos em sala de aula, a não ser o de assepsia da língua através das correções de erros ortográficos. Para que haja melhora significativa nas produções textuais dos alunos, é necessária uma mudança na concepção de ensino da linguagem escrita. Palavras-chave: Produção textual. Linguagem escrita. Professor mediador.
Introdução
O ensino da linguagem escrita na escola tem, permanecido “enjaulado” a práticas
tradicionais, a mais conhecida de todas é o ensino da língua portuguesa em etapas.
A preocupação central dessa metodologia, tão utilizada na escola, tem sido colocada
na ortografia e na gramática, deixando em segundo plano a construção e compreensão textual,
1 Mestranda em Educação pela Universidade Estadual de Londrina – Paraná. E-mail: [email protected]
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principalmente quanto ao aspecto discursivo, um enfoque que tem gerado consequências
sérias, como a transformação da escrita de objeto social em objeto escolar, tendo como
reflexo produções textuais sem significado, apenas um amontoado de palavras no papel.
Segundo Gonçalves (2000):
No dizer de Pécora, o que ocorre é que a escola, na sua trajetória histórica, falseia as condições de escrita e não fornece ao estudante as ferramentas de uma prática interativa da língua. [...] com esse falseamento, a escrita torna-se um exercício penoso que cristaliza o discurso. Exemplos disso são as frases-feitas, argumentos de senso comum que, frequentemente, aparecem em textos dos educandos.
Outra consequência foi evidenciada pela Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios (PNAD) 2009, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que
revelou que o índice de analfabetos funcionais corresponde a 20,3% da população com mais
de 15 anos.
Weisz (2009, p.17) ressalta a necessidade de “admitir que nossa incapacidade para
ensinar a ler e escrever tem sido responsável por um verdadeiro genocídio intelectual”. A
autora alerta que nem sempre o professor sabe a diferença entre copiar e escrever e assim
acaba promovendo o “bom copista” e retendo os que leem e escrevem precariamente, o que
explica por que tantos alunos chegam ao 5º ano do ensino fundamental sem compreensão
leitora de um texto simples e até mesmo sem saber escrever.
Os exames nacionais e internacionais que avaliam a educação no Brasil (PISA, Prova
Brasil) evidenciam a dificuldade que os alunos têm em produzir textos de qualidade e de
compreender o que leem. Uma das causas apontadas para esse fenômeno crescente é, para
muitos, a redação escolar ou produção de texto da maneira como vem sendo ensinada.
Diante desse contexto a construção desta pesquisa foi motivada, em particular, por
minhas experiências como educadora, principalmente pelos momentos de produção de texto
junto aos alunos. Momentos em que, como mediadora, percebia que a maior dificuldade nem
sempre era a forma do dizer, mas o próprio dizer.
Dessa forma, este estudo se propôs a refletir sobre a língua escrita para além da sua
forma, debruçou-se sobre seu conteúdo, pois consideramos que os “erros” quanto à forma e
conteúdo, cometidos por crianças que ainda estão na condição de aprendizes, são na verdade,
“preciosos indícios de um processo em curso de aquisição da representação escrita da
linguagem, registros de momentos em que a criança torna evidente a manipulação que faz da
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própria linguagem, história da relação com que ela (re)constrói ao começar a escrever/ler”
(ABAURRE, FIAD e SABINSON, 1997, p.16-17).
Assim, foram analisadas as produções textuais de alunos do 5º ano do Ensino
Fundamental, com o objetivo de compreender o trabalho pedagógico com a escrita na escola,
em particular a produção textual e refletir sobre o papel do professor mediador nesse
processo.
A Linguagem Escrita na Escola
Na escola, as práticas tradicionais de ensino muitas vezes caminham lado a lado das
novas concepções de aprendizagem, talvez pelo mal costume de se apossar do novo apenas
no discurso. Ainda é comum na escola o ensino da linguagem escrita em etapas, da parte
(letras e sílabas) para o todo, numa ordem, a qual supõem, do mais fácil para o mais difícil,
do formar palavras, frases, para mais adiante trabalharem a compreensão e produção de
textos.
Nessa perspectiva o trabalho com a escrita na escola tem se debruçado sobre a
ortografia. Zorzi (1998) ao expor sua experiência no atendimento fonoaudiológico afirma que,
a maioria das queixas da escola está relacionada muito mais a dificuldades ortográficas do que
a ausência de "sentido ou coerência ao seu texto, que os temas são pouco explorados, que há
uma forte influencia de estilos orais [...] Pode-se até pensar que o que mais chama a atenção
não é a dificuldade de construção textual, mas, sim, se a criança escreve de modo
ortograficamente correto ou não (ZORZI, 1998, p. 14).
Não é incomum encontrar crianças do 5º ano produzindo textos que desconsideram o
leitor, que muitas vezes não entendem o que o escritor quis dizer, pois escrevem
mecanicamente, tendo como resultado um produto desinteressante, com uma pobreza de
vocabulário e conteúdo, sem criatividade, sem organização, feito por obrigação.
As criança (e os adultos) tem suficiente conhecimento automatizado da linguagem para gerar peças de discurso relativamente coerentes, passo a passo. O problema com esses textos é que eles costumam ser rotineiros, lineares, clichês, escritos para satisfazer o professor [...] Ao ler esses textos, não acontece nada com o leitor, ele não recebe nenhuma informação que encerre alguma novidade, não encontra nenhuma argumentação demolidora nem tem a oportunidade de se comover com alguma metáfora ou comparação original. Com o escritor também não aconteceu nada comovente; simplesmente obedeceu uma ordem. (LANDSMANN 1998, p.31 grifo nosso).
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O fato de muitos alunos não saberem se expressar através da escrita evidencia que,
muitas vezes, o exercício da cópia e de outras práticas tradicionais no trabalho com a escrita
na escola, leva-os a escrever sobre algo vazio de sentido tanto para o escritor, quanto para o
leitor. Uma vez que a escola, tão a vontade com as práticas tradicionais de ensino, repete
formulas, modelos ineficientes, como o tema sempre solicitado em redações escolares,
“minhas férias”.
Formar pessoas capazes de se expressar através da escrita e também de compreender o
escrito, para além de sua forma, implica em criar situações em que as produções textuais se
aproximem das situações reais ao invés de situações artificiais. O tema "Minha Férias" é um
bom exemplo de uma das muitas situações artificiais em que os alunos são chamados a
escrever. Nem toda criança comunga do mesmo entendimento ou sentido relacionado às
férias. Para muitas crianças, principalmente as de classes populares, férias é o período sem
aulas, não acontece nada de especial em seu meio social, não há uma mobilização familiar em
torno de um projeto de férias, de uma viagem, ou uma vivência do tipo. Assim esse tema
proposto se torna uma atividade superficial, em que a criança não escreve o que viveu, pois
nem sempre aquilo que ela viveu converge com aquilo que a escola espera. E esse
distanciamento entre realidade e as práticas de escrita na escola podem gerar no aluno uma
relação de sofrimento com saber.
O uso da escrita ao longo da história produziu uma variedade de modos discursivos,
textos e temas tão ricos que poderiam ser explorados quanto a sua utilidade, necessidade ou
valor estético, mas que vem sendo trabalhados na escola de maneira superficial,
desconsiderando o fato de que a relação da criança com a linguagem escrita na escola pode
engessá-la ou estimulá-la enquanto escritora. Segundo Bakhtin (2011)
Quanto melhor dominamos os gêneros tanto mais livremente os empregamos, tanto mais plena e nitidamente descobrimos neles a nossa individualidade (onde é possível e necessário), refletimos de modo mais flexível e sutil a situação singular de comunicação; em suma realizamos de modo mais acabado o nosso livre projeto de discurso (p.285).
Dessa forma, o trabalho pedagógico com a escrita na escola com o objetivo de formar
crianças capazes de se expressar através da escrita tendo em mente um projeto de discurso,
implica trazer as situações de produção de textos para situações reais, destacando sua função
social concreta, permitindo e incentivando a construção de textos com significado.
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Contudo, a escola, via de regra, coloca as crianças para escreverem, cada uma consigo
mesma, e todas sobre o mesmo assunto, esse tipo de situação de produção é difícil de se
encontrar fora da escola, e talvez isso seja um dos motivos pelo qual as crianças encontrem
tanta dificuldade. O problema não está na situação de produção textual em si, mas, no fato de
ela ser tão privilegiada em detrimento de outras situações reais em que a linguagem se
materializa. Nesse caso as palavras não são signos para as crianças, porque não tem
significado para além de si, são na verdade uma atividade que se encerra em si mesma.
Metodologia de Pesquisa
Esta pesquisa buscou compreender o trabalho pedagógico com a escrita na escola, em
particular a produção textual, e refletir sobre o papel do professor mediador nesse processo.
As produções textuais analisadas são de alunos do 5º ano do Ensino Fundamental de
uma escola da Rede Pública Municipal de Ensino de Rolândia, cidade localizada no norte do
Paraná.
Para análise foram utilizados 97 textos de 11 dos 20 alunos. A escolha dos sujeitos da
pesquisa e de suas produções foi aleatória. Todos os textos foram produzidos em sala de aula
durante o período de fevereiro, março, abril, maio e junho. A análise foi dividida em duas
etapas, a primeira denominada “A escrita: Momentos Iniciais” e a Segunda, “A Escrita no
Primeiro Semestre”. Inicialmente, foram analisados os textos que faziam parte de uma
avaliação solicitada aos professores pela Secretaria Municipal de Educação com a finalidade
de verificar o nível de escrita dos alunos no início do ano escolar.
Em seguida, foi realizado um estudo das produções escritas pelos alunos ao longo do
primeiro semestre de 2009. Na Segunda etapa, das 11 crianças ficaram apenas 10, pois uma
delas se mudou.
As propostas de produção de texto feitas pela professora incluem, reescrita, biografia,
leitura de imagens, texto coletivo, texto informativo, reprodução, narração e dissertação.
Neste trabalho, a abordagem de pesquisa escolhida foi a qualitativa interpretativa,
dado o interesse de compreender como a escrita das crianças se manifesta na produção textual
através de suas escolhas, conhecimento e no próprio dizer.
Esta pesquisa analisou as produções textuais através da perspectiva enunciativo-
discursivo, que considera a linguagem escrita em sua relação com a história (conhecimento) e
com a sociedade, com seus diversos usos e apropriações, o que permitiu compreender os
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sentidos produzidos pelo ensino escolar na interação com as condições socioculturais das
crianças.
Assim, neste estudo observaram-se dois momentos diferentes, o primeiro que
evidencia o que a criança pode e sabe fazer com a escrita sem a interferência do professor e o
segundo, em que o professor faz a mediação através da “correção” das produções textuais.
Análise do Corpus
A análise das produções textuais no início do ano letivo permite verificar o que cada
criança sabe sobre a linguagem escrita, além de revelar pontos que precisam ser trabalhados
em sala de aula.
Os textos analisados neste estudo são “preciosos indícios” que dão pistas da relação
sujeito e linguagem escrita ao longo do processo de aprendizagem e permitem observar não
só o que as crianças são capazes de produzir sem a interferência do professor, mas também as
escolhas por determinados gêneros discursivos, suas hipóteses, dúvidas e ideias a respeito da
escrita.
Transcrição e análise dos textos
Por se tratar de uma pesquisa de análise qualitativa extensa, aqui serão transcritos
apenas os textos produzidos por 2 das 11 crianças, especificamente, parte do conjunto de
textos de Cibele e Fernando (os nomes foram mudados para resguardar a identidade das
crianças).
Transcrição e análise dos textos de Cibele
Texto 1
Para a produção deste texto a professora deu aos alunos apenas o título: “O Deserto da
Arábia”. A escolha quanto ao melhor tipo de texto, sua finalidade e tudo o mais ficou a
critério da criança.
O Deserto da Arábia Era um dia lindo eles andam no deserto de camelos lá tem tempestade de areia eles usam lenço na cabeça, usam calça brusa comprida até o juelho no deserto não tem rio nem lagoa no deserto tem miragem lá no deserto é muito calor eles moram em casas. (Texto produzido em fevereiro de 2009).
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O texto de Cibele de início apresenta uma expressão própria de narração e logo em
seguida se transforma num texto descritivo. É comum que narração e descrição apareçam
juntas em um texto, contudo essa composição não está nem lá nem cá. Como narração não
apresenta um enredo e como descrição o texto se encontra empobrecido de detalhes que
ajudam a compor os aspectos físicos e/ou psicológicos. Falta elementos que permitam o leitor
criar uma imagem mental mais elaborada a respeito do tema, a impressão que temos é que
conforme lemos seu texto flash de imagens, fragmentadas e caracturizadas, vão se
apresentando, porém não compõem um todo.
Se pensarmos nas etapas de produção textual podemos entender esse texto como sendo
um momento de geração de ideias, colocadas no papel sem um controle intencional e
contínuo da criança. Porém, para esta escritora sua missão foi cumprida, este que devia ser
para ele um esboço é na verdade seu texto final. O tema para essa criança foi um disparador
de ideias, nem todas pertinentes.
Cibele desenvolveu seu texto em apenas um parágrafo, sem coesão nem fluência,
apresentando falta de pontuação, erros ortográficos e uma escrita apoiada na oralidade.
Texto 2
Nesta atividade, a proposta era produzir um texto a partir da leitura de imagens
compostas por quatro quadros, conforme figura 1, que retratavam atividades próprias dos
índios, sendo que a organização da sequência dos quadros e a escolha do título ficavam a
critério dos alunos. O tema “índios” foi escolhido pela proximidade da data comemorativa.
Figura 1- Atividades do índio Fonte: Caderno de produção de texto do aluno, 2009.
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Em uma linda manhã a casa de Cacique caiu e fez a quele barulhão todo mundo que morava perto se assustaram abriram as portas e olharam para fora e ficaram com medo. O outro índio que mora perto da casa de Cacique foi ver se tinha maçã, chegando lá o pé estava carregado, então o indiozinho pegou as maçãs e levol para casa. Então ele entrou na casa dele e entregou as maçãs para o seu irmão, e ele foi fazer o suco, depois que ele acabou foram tomar o suco. Depois que acabou de tomar o suco ele esperou um pouco para depois ir brincar com os tigres e ficaram felizes para sempre (Texto produzido em abril de 2009).
Podemos perceber com este texto que a escrita de Cibele progrediu, já compreendeu a
estrutura de um texto, que deve ter começo, meio e fim. Isso fica evidenciado no inicio
quando usa a expressão “em uma linda manhã”. Depois narra os acontecimentos com base na
leitura de imagens e para finalizar usa o recurso próprio dos contos de fadas “felizes para
sempre”.
Em sua leitura das imagens não fica presa apenas no ilustrado, vai além. No entanto,
seu texto ainda não apresenta uma ideia central que sirva de fio condutor, de forma que os
eventos não apresentam ligação entre si. O primeiro paragrafo se mostra como um
acontecimento totalmente desprendido de todo o resto da história.
Texto 3
Nesta atividade a professora propôs a reprodução da história “E era onça mesmo” de
Monteiro Lobato, correspondente a primeira parte da obra “Caçadas de Pedrino”. A
reprodução, segundo Condemarín e Chadwick (1987) requer que se escreva o substancial do
conteúdo, mobiliza e desenvolve a memória, a habilidade de sintetizar, de verbalizar para si
mesmo, de reformular e de se expressar pela escrita.
E era onça mesmo! Em uma bela manhã Marquês de Rabicó chegou assustado com muito medo contou para Tia Anastácia, Dona Benta e as crianças Pedrinho já ficou com vontade de buscar a onça só que Tia Anastácia e Dona Benta não gostaram. Eles saíram escondido para Tia Anastácia e Dona Benta não ver, chegando lá foram procurar a onça encontrando a onça foram atirar na direção dela. Começou a andar igual gato para dar o bote como as armas não funcionaram então Pedrinho gritou: Salvem-se quem puder. Tinha uma árvore (Texto produzido em maio de 2009).
Nessa atividade Cibele, ao escolher o que reproduzir, deixa de lado informações
importantes, como: Onde o Marquês de Rabicó chegou? O que ele contou? As respostas o
leitor mais familiarizado com as histórias de Monteiro Lobato, popularizadas através da série
televisiva sobre o Sítio do Pica-Pau-Amarelo, e pela informação subsequente, “Pedrinho ficou
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com vontade de buscar a onça”. Sua maneira de recontar a história evidencia sua
despreocupação com o leitor, até porque o leitor de suas produções é justamente sua
professora, que contou a história e, portanto sabe do que ela está falando.
Ao recontar a história comete alguns equívocos, como quando escreveu “contou para
Tia Anastácia, Dona Benta e as crianças”, na verdade Rabicó contou a Pedrinho que viu, mas
não viu. Viu os rastros, o miado, mas não chegou a ver de fato a onça. Pedrinho então conta a
Narizinho e após convencê-la da caçada sai recrutando o restante do grupo para expedição.
No entanto ninguém conta sobre a onça, nem para Tia Anastácia nem para Dona Benta.
Cibele provavelmente confundiu a fala Pedrinho que alertou a Narizinho que se contasse a
avó, ela iria morrer de medo ou os levaria de volta para a cidade. Nota-se que além da
ausência da conclusão do texto há também a dificuldade em utilizar os sinais de pontuação.
Na análise do conjunto de textos de Cibele percebemos que quase sempre os inicia
com a expressão “Era um dia lindo” e suas variantes, “Em uma bela manhã” e “Em uma linda
manhã”, o que demonstra certa limitação em seu repertório. Muitas vezes se perde no
percurso gerativo do sentido. A maioria dos seus textos não apresenta um fio condutor e
praticamente em todas as atividades em que a professora dá o tema ou título, Cibele
desenvolve um texto desconexo dos mesmos. Do primeiro até o último texto analisado, a
criança continua a misturar os tipos textuais, sem intencionalidade, muito dos seus textos
continuam sendo um amontoado de ideias pouco exploradas.
As limitações quanto à estrutura, pontuação, coesão ainda estão presentes em seus
textos, assim como a dificuldade em dar-lhes um desfecho. Quase todos os textos produzidos
por Cibele parecem estar inacabados. Persiste ainda a forte influência da oralidade, além de
outras alterações ortográficas.
Transcrição e análise dos textos de Fernando
Texto 1
O deserto da Arábia A Arábia é um lugar muito quente e as pessoa tenn que andar com chapeu e ropa grosa se não eles se queima. Tannbenn tenn muitas miraje. E nunn dia quente também acontece muitas tempestade de areia e Furacões de área. Os árabes como são chamados eles andão enn canelos eles tenn unn bicho muito perigoso a cobra naja ela e uma cobra muito perigosa e venenosa eles moram numas tenda e os prensepe e ele mora no castelo (Texto produzido em fevereiro de 2009).
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O texto de Fernando está mais para um agrupamento de ideias sobre o tema do que
uma produção textual. Não conseguiu estabelecer uma ligação entre um parágrafo e outro,
talvez porque ainda não aprendeu a criar um fio condutor dentro do texto, o que o ajudaria a
compor um todo bem articulado.
No primeiro parágrafo descreve as vestimentas típicas do povo que lá vive e no
segundo descreve o clima, porém suas descrições não são detalhadas, faltam elementos que
permitam caracterizar melhor o povo e o clima. A mudança de assunto também ocorre dentro
do próprio parágrafo, no terceiro e último parágrafo dá a impressão que vai falar sobre o povo
árabe, em seguida fala da cobra naja e finaliza falando sobre moradia.
Sua descrição sobre o deserto da Arábia apresenta mais aspectos gerais que
particulares, com exceção da atenção especial que dá para cobra naja. Não há uma
continuidade em sua descrição, uma vez que não permite ao leitor ir criando um retrato do
lugar, de maneira que os detalhes vão sendo adicionados parágrafo a parágrafo, até que a
imagem esteja completa. Pelo contrário, é como se fosse dado ao leitor vários retratos em que
ele apenas pudesse olhar de relance.
Há muitas ideias que se bem desenvolvidas resultariam num texto de qualidade,
entretanto não houve revisão e muito menos reelaboração do texto.
Resumindo, seu texto tem coerência, faz sentido, mas não tem coesão, também
apresenta limitações quanto à pontuação, ortografia, vocabulário e gramática, além de
demonstrar que sua escrita tem forte influência da oralidade.
Texto 2
Nesta atividade, de leitura de imagens, conforme figura 1, a mesma feita por Cibele,
Fernado se esqueceu de colocar o título.
Um belo dia Joca estava enchendo ums jarros de água porque ele ia fazer sua casa nova. Na construção de sua casa ele teve que catar um monte de bambu para construir a porta da casa, quando noutou a casa tinha desarrumado com o vento. Ele pesou melhor descansar e foi brincar com seus amigos tigres. E comer as frutas que catou (Texto produzido em abril de 2009).
Seu texto apresenta um fio condutor, a construção da casa, porém faz uma ligação
tênue entre os quadros. A motivação de algumas ações do personagem é meio confusa, por
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exemplo, quando enche os jarros com água porque ia fazer uma casa nova, não explica em
que iria utilizar tanta água. Não articula bem os quadros de forma que o parágrafo final não
conclui sua história.
Texto 3
E era onça mesmo! Era um belo dia rabico estava na floresta comendo frutas quando ouviu um barulho de um gato so que muito mais forte quando ele olhou para o chão viu um monte de pegada de gato so que muito maior. Pedrino teve a ideia de fazer uma reunião para caçar a onsa. Pedrinho levou uma espingarda que fes escondida de sua vó a emilia pegou o espeto de asar (Texto produzido em junho de 2009).
Fernando não chega a concluir o texto. Inicia bem, mas deixa de contar como Pedrinho
ficou sabendo da onça. Não faz nem o encadeamento das ações, nem a articulação entre elas,
causando problemas de entendimento para o leitor, por exemplo: no segundo parágrafo, dá a
impressão de que Pedrinho levou a espingarda para a reunião. A limitação quanto à pontuação
também prejudica a fluência da narrativa.
Percebemos, ao analisar o conjunto de textos de Fernando, que o planejamento não faz
parte de sua rotina de produção textual. Ainda não compreendeu a produção de texto como
um processo, a vê apenas como um produto.
O que revelam os textos
Estes textos apresentam dificuldades próprias de escritores iniciantes que não se veem
como autores, não percebem a produção textual como um processo que deve ser monitorado
por eles, e não somente pela professora, mas se dão por satisfeitos com uma única versão de
seus textos, os quais entendem como produto final.
De modo geral, todas as crianças demonstraram nas atividades de leitura de imagens,
predominância da leitura pontual e descritiva, quadro a quadro, quando na verdade as
ilustrações, para as crianças desta série, já deveriam ser vistas como “janelas”, inspirando-as a
dar vida às cenas, tendo em mente o conjunto da narrativa.
Apresentam uma sequência de ideias e acontecimentos bastante confusa; não
produzem ligação entre um assunto e outro; misturam os tipos e gêneros textuais; fazem uso
excessivo de conjunções e sujeitos explícitos; têm um repertório bastante limitado; controlam
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a produção no nível da frase apresentando grande dificuldade em pensar no todo, na
macroestrutura, além da total ausência de planejamento e pobreza de recursos linguísticos.
Percebe-se que não aconteceu nenhuma grande e significativa mudança nos textos dos
alunos, do começo do ano letivo até este momento, mesmo após a ação intermediativa do
professor. Provavelmente, por não ser também a sua ação significativa e direcionada a auxiliar
as crianças a superarem suas dificuldades objetivando uma melhora qualitativa de suas
produções.
A quase ausência da tarefa de reescrita dos textos \analisados, e a falta de revisão pelo
próprio aluno, demonstra que essa não é uma solicitação comum por parte do professor, de
modo que as operações de revisão se limitam a correções ortográficas decorrentes das
intervenções diretas da professora nos momentos de correção. Perde-se o princípio dialógico
do trabalho pedagógico, uma vez que os textos são em sua maioria textos de uma versão só,
não há mais espaço para interação onde o professor na correção instiga o aluno a dialogar com
o texto, com seus interlocutores, com o contexto e com outros textos. Segundo Souza e
Osório (2003, p. 02),
[...] a natureza da intervenção que o professor realiza, na produção textual do aluno, tem relação direta com a maior ou menor qualidade desse produto. Portanto, essa ação do professor não tem um fim em si mesma, mas só adquire significação se conduz o aluno à reescrita de seu texto com o objetivo de buscar uma escrita qualitativamente melhor.
A ausência da prática da revisão orientada e reescrita dos textos que analisados, como
uma das etapas da produção textual, faz com que uma pergunta ecoe em nossas mentes:
Reescrevendo, o que mudaria?
Considerações Finais
Os problemas encontrados nas produções de textos analisadas neste estudo vão além
dos aspectos notacionais e discursivos. Estão também no próprio dizer, ou seja, no conteúdo,
na visão de mundo ainda pautado mais no mundo da cultura oral do que no mundo da cultura
escrita, o que demonstra que a escola ainda não cumpriu o seu objetivo de mergulhar essas
crianças no mundo da cultura escrita, já que ainda não conseguem se expressar por meio da
escrita. Escrevem o dizer do outro, “Era uma vez”, “Em uma bela manhã”, “Em um lindo dia”
e nunca o seu próprio dizer, porque ainda não aprenderam como fazê-lo.
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Outro problema das produções está, não só na situação de produção textual que coloca
os alunos para escreverem, cada um consigo mesmo, e todos sobre o mesmo assunto, situação
esta de produção difícil de encontrar fora da escola, mas no fato de ser ela tão privilegiada em
detrimento de outras situações reais.
Assim, compreendemos que a escrita, enquanto objeto escolar, aprisiona a mente das
crianças. O despreparo e, consequentemente, a incapacidade dos professores de ensinar “tem
sido responsável por um verdadeiro genocídio intelectual” (WEISZ, 2009). Dessa forma, no
trabalho pedagógico com a escrita, a escola não tem assegurado aos alunos o domínio
eficiente da linguagem escrita, o que nos levou a refletir e repensar o papel da escola e do
professor mediador no ensino da linguagem escrita.
O papel da escola no ensino da escrita envolve grandes responsabilidades, sendo a
maior e mais importante delas dar às crianças as ferramentas necessárias para utilizar a
linguagem escrita em sua completude e concretude. Espera-se que durante o processo de
ensino-aprendizagem da escrita na escola a criança saia da posição de “bom copista” e
reprodutor de frases feitas, para se transformar em autor, através de uma metodologia que
explore a linguagem escrita em sua totalidade e em seu uso real, numa concepção dialógica e
interacionista.
Nesta perspectiva, o professor mediador é aquele que está preparado para trazer a
reflexão e a compreensão dos diversos gêneros textuais e sua construção, a fim de formar
escritores capazes de expressar pela escrita suas intenções, sentimentos, necessidades e tudo o
mais, com autonomia, pois “ao instituir uma prática intersubjetiva, através de uma prática
pedagógica que leve em conta a reflexão, será possível resgatar um discurso mais pessoal,
mais autêntico de nossos sujeitos” (GONÇALVES, 2000). Para tanto, deve ter bem claro o
propósito de que e para que são solicitadas as produções textuais, assim como as formas de
correção, pois a prática pedagógica de tal professor implica utilizar de uma estratégia de
correção que vá além da indicação de erros, ou resolução dos mesmos para o aluno, da
assepsia da língua, deixando-o apenas com a tarefa de copista. Pressupõe uma estratégia que
indica a causa do erro, evidenciando assim o processo e não o produto.
Sendo assim, a avaliação contínua do conhecimento dos alunos e do trabalho do
professor é indispensável para nortear o plano de ação docente. A experiência e história de
vida, o nível socioeconômico cultural e os conhecimentos trazidos pelos alunos são bases
importantes para o trabalho pedagógico. O trabalho pedagógico deve agir a partir de e sobre
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esta “bagagem” das crianças, de maneira que venha preencher as “lacunas conceituais” e
fornecer elementos, conhecimentos intelectuais, científicos e culturais, a fim de ajudá-las a
reelaborarem o seu conhecimento e elaborar um novo repertório, mais amplo e mais
intelectualizado que sirva a elas não só para uso eficaz da escrita enquanto objeto social, mas
também como instrumento de acesso autônomo na participação no mundo da cultura escrita.
Desenvolver um trabalho real e significativo com a escrita tem se mostrado um
desafio, já que a escola tem produzido analfabetos funcionais em massa. Isso denuncia que os
problemas de “ensinagem” têm alcançado os altos níveis da educação e nos leva a
compreender que o trabalho com a linguagem escrita não pode mais se restringir a forma de
dizer, mas deve provocar mudanças no próprio dizer, e isto exige uma mudança na concepção
de ensino da linguagem escrita.
REFERÊNCIAS
ABAURRE, M. B. M. ; FIAD, R. S. & MAYRINK-SABISON, M. L. T. Cenas de Aquisição da Escrita: o sujeito e o trabalho com o texto. Campinas, SP: Associação de Leitura do Brasil (ALB): Mercado de Letras, 1997.
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 6º ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
BRASIL. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira - INEP/MEC. Programa Internacional de Alunos – PISA, Disponível em: < http:/ /www.inep.gov.br/internacional/pisa/novo>. Acesso em: 03 mar. 2009.
BRASIL. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira – INEP/MEC. Prova Brasil, Disponível em: <http: //www.provabrasil.inep.gov.br>. Acesso em 03 mar. 2009.
CONDEMARÍN, M. & CHAWICK, M. A escrita Criativa e Formal. Porto Alegre, Artes Médicas, 1987.
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