quando a antropologia se defronta com a educação

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69 PRO-POSIÇÕES | V. 24, N. 2 (71) | P. 69-80 | MAIO/AGO. 2013 Resumo O artigo analisa os processos de formação de professores indí- genas no Brasil, que têm mobilizado esforços governamentais e boa parte da reflexão acadêmica nos últimos anos. Tomando os contextos formais de escolarização indígena como lócus produti- vos de enunciados culturais, postula, no embate transdisciplinar e intercultural, um lugar para a Antropologia na formação de ín- dios como professores. Palavras-chave Antropologia; educação escolar indígena; formação de professo- res indígenas; políticas públicas. Quando a Antropologia se defronta com a Educação: formação de professores índios no Brasil Luís Donisete Benzi Grupioni* * Coordenador do Iepé – Instituto de Pesquisa e Formação Indígena, São Paulo, SP, Brasil. luisdonisete@institutoiepe. org.br

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Luis Donizete Grupioni

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  • 69Pro-Posies | v. 24, n. 2 (71) | P. 69-80 | maio/ago. 2013

    ResumoO artigo analisa os processos de formao de professores ind-

    genas no Brasil, que tm mobilizado esforos governamentais e

    boa parte da reflexo acadmica nos ltimos anos. Tomando os

    contextos formais de escolarizao indgena como lcus produti-

    vos de enunciados culturais, postula, no embate transdisciplinar

    e intercultural, um lugar para a Antropologia na formao de n-

    dios como professores.

    Palavras-chaveAntropologia; educao escolar indgena; formao de professo-

    res indgenas; polticas pblicas.

    Quando a Antropologia se defronta com a Educao: formao de professores ndios no Brasil

    Lus Donisete Benzi Grupioni*

    * Coordenador do Iep Instituto de Pesquisa e Formao Indgena, So Paulo, SP, Brasil. [email protected]

  • 70 Pro-Posies | v. 24, n. 2 (71) | P. 69-80 | maio/ago. 2013

    AbstractThe article analyzes the processes of indigenous teachers

    training in Brazil, which have been mobilizing government

    efforts and much of academic reflection in recent years. Taking

    into account the distinct formal indigenous educational system

    as a productive locus to enunciate cultural statements, the article

    postulates, within the transdisciplinary and intercultural clash, a

    place for Anthropology in the training of indigeneous teachers.

    Key wordsanthropology; indigenous school education; training of

    indigenous teachers; public policies.

    When anthropology is faced by education: indigenous teachers training in Brazil

  • 71Pro-Posies | v. 24, n. 2 (71) | P. 69-80 | maio/ago. 2013

    Nas ltimas duas dcadas, estruturou-se uma nova poltica pblica no Brasil, vol-

    tada oferta da educao escolar em comunidades indgenas. Concebida como um

    direito dos ndios, ancorada em noes como diversidade, diferena, especificidade,

    bilinguismo e interculturalidade, essa poltica colocou frente um novo modelo de

    escola nas aldeias membros das prprias comunidades indgenas. A formao do-

    cente de membros dessas comunidades para atuar nas escolas indgenas, iniciada

    nos anos de 1980 na Amaznia, expandiu-se nos anos de 1990, tornando-se uma das

    principais facetas da poltica pblica de construo de uma educao diferenciada

    para os grupos indgenas no Brasil. Tais iniciativas de formao indgena deixam

    para trs o modelo que imperou durante dcadas, em que professores no ndios

    assessorados por monitores indgenas responsveis pela traduo daquilo que se

    pretendia ensinar lecionavam em portugus para alunos monolngues em suas ln-

    guas maternas. Hoje, disseminou-se o modelo em que ndios pertencentes s suas

    respectivas comunidades so por elas escolhidos para serem formados e assumirem

    a docncia das escolas indgenas, como protagonistas de uma nova proposta de edu-

    cao. Nesse percurso, o que era alternativo, porque construdo margem do Esta-

    do, foi, aos poucos, sendo reconhecido e fornecendo matrizes, a partir das quais o

    Estado brasileiro configurou uma nova poltica pblica, que pretendia valorizar as

    lnguas e as culturas indgenas no ambiente escolar, tendo, como docentes, membros

    das respectivas comunidades indgenas.

    A proposta deste texto apresentar uma reflexo sobre o percurso recente das

    ideias e das prticas que balizam a formao de ndios como professores no Brasil

    e seus percalos; e sobre o lugar da Antropologia nesses processos formativos, que

    ensejaram o surgimento de um novo ator poltico e de uma nova categoria profissio-

    nal: os professores indgenas.

    A formao diferenciada de professores indgenasFoi a partir de um conjunto determinado de experincias em andamento nos anos

    de 1980 e 1990 que ocorreu o processo de discusso e de proposio de novas prti-

    cas de formao de professores indgenas. Prticas essas que impactariam o modelo

    de escola diferenciada que se procurava difundir, como marco de uma nova poltica

    pblica a viabilizar o direito dos grupos indgenas a uma educao diferenciada. Na

    base desse novo modelo, estava a ideia de que ele s seria possvel e vivel se esti-

    vessem frente da escola indgena professores indgenas, oriundos das comunida-

  • 72 Pro-Posies | v. 24, n. 2 (71) | P. 69-80 | maio/ago. 2013

    des em que a escola estava inserida (Brasil, 1993). Tratava-se, assim, de restringir a

    docncia nessas escolas a esses novos profissionais, considerando provisria a atua-

    o de professores no ndios, a ser superada em curto espao de tempo. A proposta

    de formar ndios como professores foi uma decorrncia dos qualificativos que se apli-

    cavam a essa nova educao e que encontravam, num conjunto de experincias em

    andamento, a confirmao de que se tratava de algo possvel. Tais experincias tam-

    bm forneciam modelos prticos de como essa formao poderia ocorrer, medida

    que fosse incorporada na agenda das polticas pblicas (Grupioni, 2008; Silva, 2001).

    Em sua origem, esses programas foram construdos como alternativas s prti-

    cas integradoras do rgo indigenista e estiveram, quase todos, vinculados a mo-

    vimentos de reconhecimento tnico e de luta pela terra, respondendo ao desejo de

    comunidades indgenas de qualificar seus membros para uma relao menos desi-

    gual e exploratria com segmentos da sociedade envolvente. Alfabetizar e repassar

    conhecimentos instrumentais de portugus e matemtica foram prticas presentes

    no incio de vrios processos de formao indgena que, com o passar dos anos, iriam

    se configurar como processos de formao de professores indgenas. De modo ge-

    ral, esses projetos assumiram o pressuposto epistemolgico de que a escola deveria

    ser o espao em que se valorizassem e sistematizassem conhecimentos e saberes

    tradicionais e se reforasse o uso da lngua indgena, e no somente um lugar para

    a entrada dos conhecimentos exteriores aos grupos. Conduzindo-se pela prtica de

    alfabetizar indivduos e torn-los professores de seus filhos e sobrinhos, esses pro-

    gramas pautaram-se por formar um agente comunitrio que trabalharia voltado para

    e afinado com sua comunidade.

    Tais programas estiveram associados a outras iniciativas de desenvolvimento co-

    munitrio e proteo territorial, em que a escola no era um fim em si, mas integrava

    outras aes de interveno e formao de quadros indgenas. Foram conduzidos e

    assessorados por formadores tanto indigenistas, quanto pesquisadores vinculados

    a universidades que prestavam assessoria a projetos locais e mantinham diferentes

    tipos de vnculos com as comunidades indgenas envolvidas nos projetos. Antroplo-

    gos, linguistas e educadores juntaram-se com matemticos, bilogos, historiadores,

    assumindo a docncia e a orientao de pesquisas e a preparao de materiais did-

    ticos para uso nas escolas indgenas em que lecionavam os professores em formao.

    Formuladas fora do Estado e, em algumas situaes, em contraposio s prticas

    estatais, essas experincias acabaram por impactar a formulao de novas polticas

  • 73Pro-Posies | v. 24, n. 2 (71) | P. 69-80 | maio/ago. 2013

    pblicas; e tornaram-se referncias para prticas inovadoras de formao de ndios

    como professores, a partir das quais se pode atender demanda crescente de esco-

    larizao, proveniente de vrias comunidades indgenas (Grupioni, 2008).

    A formao de professores indgenas como poltica do EstadoTais processos ensejaram um movimento que, nos anos de 1990, transformou em

    ao governamental a formao de membros das comunidades indgenas para atua-

    rem como professores das escolas das aldeias (Brasil, 2002). As secretarias estaduais

    de Educao ficaram formalmente incumbidas de promover a formao inicial e conti-

    nuada de professores indgenas em seus respectivos sistemas de ensino. Tal atribui-

    o de responsabilidade marcou a expanso e a institucionalizao dos programas de

    formao de professores indgenas pas afora.

    Esses programas de formao, que passaram a ser geridos pelos sistemas de

    ensino governamentais, partiam de uma perspectiva que se centrava na expanso

    dos nveis de ensino nas aldeias e na continuidade dos estudos por parte dos estu-

    dantes indgenas. Com isso, foi o modelo de escola nacional que passou a orientar

    as propostas pedaggicas de formao de professores, em que a seriao escolar

    ganhou importncia cada vez maior. Tais propostas se iniciaram a partir de docu-

    mentos formalizados no mbito dos sistemas de ensino, aprovados por seus rgos

    reguladores e com recursos financeiros previamente alocados. A terminalidade dos

    cursos era prevista desde o incio, nesses projetos, assim como nveis prvios de

    escolarizao foram exigidos como forma de ingresso aos programas de formao.

    Canonizou-se um modelo de quatro a cinco anos para formao, com dois mdulos

    presenciais anuais, intensivos, em contextos multitnicos, conduzidos por forma-

    dores oriundos das equipes pedaggicas dos sistemas de ensino e sem vnculos

    prvios com as comunidades indgenas. Uma empobrecida grade curricular se im-

    ps, cada vez menos ancorada nas especificidades dos grupos envolvidos, resul-

    tando numa perda de densidade antropolgica e lingustica, em prol do repasse

    de contedos e competncias exclusivas funo docente nas primeiras sries do

    Ensino Fundamental.

    O tempo e a formao interculturalA proposio de que seria possvel formar indivduos de comunidades indgenas

    como professores, ao mesmo tempo que seriam alfabetizados; teriam acesso a co-

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    nhecimentos bsicos do processo de escolarizao nacional; e investigariam e sis-

    tematizariam prticas e saberes prprios ao seu universo cultural, para inclu-los na

    escola diferenciada, vinculava-se diretamente possibilidade de contar com diversos

    mecanismos e procedimentos, exercitados ao longo de um conjunto de anos.

    No documento do MEC (Brasil, 2002) proposto como orientador para a elabo-

    rao de novas propostas de formao de professores indgenas, tanto o perfil

    do que se espera desse profissional a ser formado quanto as competncias que

    deve desenvolver e dominar, ao longo dessa formao, conduzem a um profis-

    sional que congrega em si muitos papis e habilidades. Espera-se, entre outras

    competncias, que o professor indgena seja um profundo conhecedor da his-

    tria e das prticas culturais de seu grupo; que seja capaz de pesquisar e sis-

    tematizar conhecimentos; que tenha interesse e conhecimento por sua lngua

    materna, de modo a ser capaz de compreender sua estrutura e a gerar materiais

    para seu estudo em sala de aula; que exera o papel de mediador e articulador

    de informaes entre sua comunidade, a escola e a sociedade envolvente; que

    seja capaz de propor uma organizao curricular que oriente o trabalho a ser

    desenvolvido na escola, sequenciando conhecimentos e habilidades que seus

    alunos iro desenvolver.

    Como a maior parte dos atuais projetos de formao se desenvolve por meio de

    uma ou duas etapas presenciais por ano, variando de 30 a 60 dias de durao, esta

    uma proposta de formao de professores que coloca inmeros desafios, para serem

    equacionados em tempos extremamente exguos, uma vez que, em seu cerne, est a

    proposio de formar pesquisadores indgenas.

    Possibilitar uma reflexo sobre o tempo, uma categoria cara ao pensamento an-

    tropolgico, em suas diferentes dimenses e apreenses, inclusive de como o veem

    os sujeitos da formao, parece ser uma questo que os antroplogos deveriam tra-

    zer para o dilogo com os outros profissionais envolvidos em tais processos.

    A pesquisa e os conhecimentos indgenas na formao intercultural

    Comparando as propostas pioneiras de formao de professores indgenas, con-

    duzidas por organizaes no governamentais, leigas e religiosas, com aquelas que

    tm origem nos sistemas de ensino, percebe-se que estas ltimas, de modo geral,

    no priorizam a formao para a pesquisa, necessria para a produo de materiais

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    didticos e para a construo de projetos poltico-pedaggicos para as escolas ind-

    genas, como parte integrante das competncias que se pretende desenvolver nos

    cursos regulares de formao. O que se pode concluir, analisando as propostas curri-

    culares desses cursos, que essas competncias passaram a ser vistas como poss-

    veis, a partir do momento em que o professor indgena estiver efetivamente formado,

    e essa uma das diferenas mais marcantes entre tais iniciativas.

    Outra questo determinante para o contexto da pesquisa a forma como os pro-

    gramas de formao percebem o conhecimento indgena. Muitos trabalham como se

    este estivesse formalizado na mente dos professores em formao, bastando que

    tenham incentivo para transpor para o papel algo que naturalmente j est dado.

    Partem do pressuposto de que os professores em formao so depositrios do co-

    nhecimento do grupo e de que basta dominar algumas tcnicas (a da escrita, entre

    elas) para que possam produzir materiais especficos para a escola indgena. Como

    sabem os antroplogos, mas no necessariamente outros profissionais que atuam

    na formao de professores, o conhecimento indgena no est dado, ele precisa ser

    sistematizado e formalizado para que possa ser trabalhado como conhecimento es-

    colar (Gallois, 2005). O que se percebe, em muitos materiais didticos publicados sob

    a chancela do diferenciado, uma simplificao de frmulas, estratgias cognitivas,

    lgicas culturais e formas de organizao do conhecimento que pouco contribui para

    sua continuidade e valorizao no ambiente escolar.

    Vista no seu conjunto, trata-se de uma produo que institui uma cultura ind-

    gena escolar. Esta, ainda que tenha feies tnicas particulares ou multitnicas re-

    gionais, cria algo novo, para consumo prioritrio no ambiente escolar e com srios

    impactos nas formas tradicionais de conhecer, prprias a cada grupo indgena. No

    raro, percebe-se que esses materiais veiculam uma cultura coletivizada que apaga ou

    ignora distines de papis e prerrogativas, caras internamente aos grupos dos quais

    esses professores so originrios (Cunha, 2009). Sobre isso, os antroplogos, por

    ofcio de profisso, tm muito que dizer e propor.

    A orientao para pesquisas sobre aspectos do modo de vida indgena, incluindo

    questes relacionadas lngua e a sistemas de classificao, pressupe um mnimo de

    conhecimento e interao no s com os indivduos em orientao, mas tambm com o

    contexto sociocultural em que a pesquisa vai ser realizada. Quando esses processos so

    conduzidos por antroplogos, linguistas e outros estudiosos do grupo em questo, re-

    sultam, no raro, em produes que, alm de contedos especficos, revelam modos de

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    pensar, de classificar e de conceber prprios aos grupos dos quais se originam os autores

    daquelas produes. Quando, porm, so conduzidos por formadores oriundos das equi-

    pes tcnicas das secretarias de educao, sem formao antropolgica e lingustica, que

    desconhecem a bibliografia a respeito dos grupos indgenas com que trabalham, levam es-

    ses professores indgenas, salvo rarssimas excees, a produes com pouca densidade.

    Prticas e discursos indgenas em torno da noo de culturaPercebe-se que, nos cenrios multifacetados, de complexa interao, em que es-

    to inseridos cada vez mais os representantes indgenas, no se produz um nico dis-

    curso ou um nico uso da cultura, mas muitos discursos, que se adaptam e so mol-

    dados de modo prprio a cada contexto particular de interlocuo. Nesses contextos,

    tal como prope Cunha (2009), produz-se como discurso uma cultura (com aspas),

    que utilizada em polticas tnicas que visam afirmao da diferena por meio de

    enunciados a respeito da indianidade. Falar sobre a inveno da cultura, de acordo

    com essa autora, no falar sobre cultura, mas, sim, sobre cultura (com aspas); isto

    , o metadiscurso reflexivo sobre a cultura. Abre-se aqui um campo importante de

    reflexo e de atuao para os antroplogos, junto com os demais profissionais envol-

    vidos na formao de professores indgenas, uma vez que a construo de certo tipo

    de discurso a respeito da cultura indgena , talvez, o resultado menos conhecido e,

    portanto, menos refletido, sobre o impacto da instituio escolar em meio indgena.

    A Antropologia tem empreendido um esforo de reflexo analtica a respeito dos

    processos de objetivao da noo de cultura, particularmente, mas no s, entre

    grupos indgenas. Tais processos tm sido objeto de investimentos por parte da etno-

    logia amerndia, a partir de um conjunto dinmico de diferentes categorias de inter-

    pretao (indigenizao, metaforizao e coletivizao da cultura, entre outras), de

    que se tem lanado mo para compreender o processo pelo qual hoje, cada vez mais,

    no contexto ampliado de relacionamentos em que se encontram, os grupos indgenas

    tm formulado enunciados sobre cultura.

    Nesse movimento, importante considerar que o conceito de cultura adquire no-

    vos sentidos prticos e polticos, passando a ser de uso corrente em outras disci-

    plinas, inclusive fora da academia e tambm por representantes indgenas. Se sua

    origem se deve aos antroplogos, e a eles o conceito continua a interessar, fato que

    a educao indgena diferenciada criou um campo frtil para que outros profissionais

    dele se apropriassem ainda que em verses desatualizadas e ultrapassadas e, por

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    seu intermdio, tais sentidos flussem para os professores indgenas (Silva, 2001).

    Perceber o contexto em que se realiza essa apropriao e seu impacto nos discursos

    indgenas a respeito da prpria cultura uma tarefa para os antroplogos e se impe

    no dilogo com outros profissionais que atuam na formao de professores indgenas.

    Enunciao sobre pertencimento tnico e diferena culturalOs processos de formao de professores ndios para as escolas de suas comu-

    nidades e o funcionamento dessas escolas em terras indgenas, a partir do paradig-

    ma da educao diferenciada, com a produo e o consumo de materiais didticos

    prprios, propiciaram o surgimento de espaos formalizados e, muitas vezes, ri-

    tualizados no s de reflexo a respeito de formas de expresso cultural indgena,

    mas tambm de produo de formulaes acerca da diferena cultural. Ainda que

    compartilhem de algumas caractersticas comuns, os diferentes programas de forma-

    o de professores indgenas, desenvolvidos hoje em praticamente todo o Pas, so

    extremamente heterogneos, em termos no s do tipo de formao oferecida, mas

    dos contextos muito particulares, em que a reflexo sobre pertencimento tnico e

    diferena cultural se torna possvel.

    Programas de formao focados num nico grupo indgena tm propiciado uma

    maior oportunidade de aprofundamento de questes relativas especificidade cultu-

    ral e lingustica do grupo, uma vez que podem contar, em diferentes situaes, com

    competncias distintas dos vrios professores participantes da formao, fazendo

    afluir diferenas e distines existentes, que se expressam medida que so verba-

    lizadas e postas em confronto. J em programas que contemplam uma diversidade

    de representantes de grupos indgenas de uma dada regio ou de um determinado

    estado, a questo da diversidade e da diferena cultural tem estado presente de for-

    ma muito mais premente. Neles, muitos professores vivenciam, pela primeira vez,

    a experincia de convivncia intertnica e so instados a refletir sobre histrias e

    identidades comuns e a buscar a diversidade de concepes sobre um mesmo tema

    ou problemtica, nas quais se procuram ressaltar diferenas entre os participantes.

    O processo de reflexo a respeito da diferena cultural e sua enunciao tambm

    tem sido condicionado pelo grau de proximidade e distncia, bem como pela intensi-

    dade das relaes que se estabelecem entre os professores indgenas, seus formado-

    res e outros atores envolvidos nesses processos de formao. Esses so quase sem-

    pre contextos que ampliam os crculos de relaes sociais dos professores indgenas,

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    e as respostas que eles formulam complexificao dessas relaes so dependen-

    tes da qualidade da interao com seus interlocutores. Tal como nos prope Wagner

    (1981), eles se inventam a partir do nosso olhar, e esse nosso olhar radicalmente

    diverso, se ele parte de um antroplogo, de um funcionrio do governo, do vizinho

    fazendeiro, do indigenista, do missionrio ou de outro representante indgena. As-

    sim, programas que contam com profissionais sem nenhuma interface prvia com

    os grupos indgenas participantes da formao propiciam um tipo de reflexo e de

    produo a respeito do contexto sociocultural desses professores, distinta daqueles

    programas que contam com profissionais com um conhecimento qualificado e man-

    tm relaes acumuladas com os grupos indgenas envolvidos em tais processos. A

    qualidade dessa interao percebida pelos professores indgenas, ainda mais quan-

    do tm diante de si diferentes atores.

    A Antropologia na formao de ndios como professoresA expanso dos cursos de formao de professores indgenas no Brasil, nos lti-

    mos anos, evidencia um descompasso entre o que apregoam os documentos oficiais

    propostos pelo MEC e o que se tem praticado em termos de formao de professores

    indgenas nos sistemas de ensino. Em sua maioria, esses cursos no tm propiciado

    aos professores indgenas a oportunidade de pensar coletivamente um projeto es-

    pecfico e prprio de escola, que lhes permita sair de uma genrica escola indgena

    com ensino de baixa qualidade. Cristalizam-se, assim, impasses, na medida em que

    prticas oriundas de outros contextos etnogrficos e arranjos institucionais espec-

    ficos so transpostos como paradigmas de uma nova poltica pblica e resultam em

    propostas de formao de professores indgenas que no correspondem s deman-

    das de qualificao esperadas.

    Nos diferentes e variados contextos de formao de professores indgenas, no

    raro marcados por disputas disciplinares, a Antropologia deve conquistar seu espa-

    o, dando a conhecer a natureza da reflexo que ela propicia no s aos sujeitos

    sociais que procura compreender, mas tambm a outros profissionais, evidencian-

    do a especificidade e o alcance de suas reflexes para a construo de dilogos in-

    terculturais e de prticas transdisciplinares. Impe-se, nesses contextos, mais que

    a reflexo por parte dos antroplogos que participam dessas iniciativas de forma-

    o. Se, como antroplogos, possvel reconhecer que os cursos de formao de

    professores indgenas suscitam reflexo e enunciao a respeito da cultura, como

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    modos de pertencimento; e da cultura, como modos de afirmao da identidade,

    importante ser tambm possvel comunicar isso aos outros profissionais que atuam

    nesses processos de formao. na proposio da reflexo sobre tais processos que

    os antroplogos podem fazer uma diferena importante e marcar sua contribuio no

    dilogo com a Educao.

    No encontro entre a Educao e a Antropologia nos processos de formao de pro-

    fessores indgenas, os antroplogos tm que evidenciar a sua contribuio. Isso no

    est dado de antemo. No porque os processos educativos lhes interessam, no

    porque os grupos indgenas tm tradicionalmente se constitudo como sujeitos de

    suas investigaes, no porque acumulam conhecimento sobre essas sociedades

    que os antroplogos tm um papel reconhecido nesse campo. Ao contrrio, a confi-

    gurao do campo da formao de professores indgenas mostra que, se os antro-

    plogos tiveram papel importante no desenho inicial de prticas de formao inter-

    culturais, em oposio ao modelo integrador que o Estado propagava; e, se tiveram

    papel central na configurao de uma nova poltica pblica para a educao escolar

    indgena, esta, ao ser implementada, acabou por alij-los do processo.

    Tanto os cursos de formao em nvel mdio quanto as atuais licenciaturas indge-

    nas criam novas arenas polticas, em que a Antropologia e os antroplogos se veem

    diante do desafio de pensar a teoria e a prtica na formao de diferentes sujeitos

    sociais. Se possvel uma Antropologia da Educao, na afirmao do mtodo de

    pesquisa dos antroplogos; no aprofundamento de questes de sua disciplina;

    no desvendamento das conexes entre o local e o global; na demonstrao de sua

    capacidade de ouvir e dar voz aos sujeitos que procuram compreender, que ela se

    realizar. Para tanto, um compromisso entre reflexo e ao se impe.

  • 80 Pro-Posies | v. 24, n. 2 (71) | P. 69-80 | maio/ago. 2013

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    Submetido publicao em 10 de janeiro de 2013. Aprovado em 08 de maro de 2013.