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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ARTES Doutorado em Artes Qorpo Santo - Lanterna de Fogo: QOMPÊNDIO DRAMATÚRGIqO EM Parágrafos E Imagens João André Brito Garboggini Campinas – 2008

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE ARTES

Doutorado em Artes

Qorpo Santo - Lanterna de Fogo:

QOMPÊNDIO DRAMATÚRGIqO

EM Parágrafos E Imagens

João André Brito Garboggini

Campinas – 2008

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE ARTES

Doutorado em Artes

Qorpo Santo - Lanterna de Fogo:

QOMPÊNDIO DRAMATÚRGIqO

EM Parágrafos E Imagens

João André Brito Garboggini

Tese apresentada ao Curso de

Doutorado em Artes do Instituto de Artes

da UNICAMP como requisito parcial para a

obtenção do grau de Doutor em Artes sob a

Orientação da Profª. Dra. Sara Pereira Lopes

Campinas – 2008

Ficha catalográfi ca elaborada pelaBiblioteca do Instituto de Artes da Unicamp

Garboggini, João André Brito. G163q Qorpo Santo - Lanterna de Fogo: qompêndio dramatúrgico em

paragráfos e imagens. / João André Brito Garboggini – Campinas, SP: [s.n.], 2008.

Orientador: Profª. Drª. Sara Pereria Lopes. Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas,

Instituto de Artes.

1. Teatro Brasileiro. 2. Dramaturgia Audiovisual. 3. Qorpo Santo. I. Lopes, Sara Pereira. II. Universidade Estadual de

Campinas. Instituto de Artes. III. Título.

(em/ia)

Título em inglês: “Qorpo Santo - Fire Flashlight: dramaturgic compendium in paragraphs and images.”Palavras-chave em inglês (Keywords): Brazilian Th eater ; Audiovisual Dramaturgy ; Qorpo Santo. Titulação: Doutor em Artes.Banca examinadora: Profª Drª. Sara Pereria Lopes.Prof. Dr. Mário Fernando O. Bolognesi.Profª. Drª. Priscila Rosinetti Rufi noni.Prof. Dr. Carlos Eduardo Albuquerque Miranda. Prof. Dr. Antônio Fernando da Conceição Passos.Prof. Dr. José Simões de Almeida Júnior.Prof. Dr. Adilson José Ruiz.Data da Defesa: 05-12-2008Programa de Pós-Graduação: Artes.

Para Flávia

E para os que acabaram de chegar:

Helena e Joaquim

Para

Rubens José Souza Brito (in memorian),

um amigo sempre presente.

Por sua colaboração e amizade é impossível agradecer bastante:

À Sara Pereira Lopes, pelo acompanhamento desde o começo

e pela valiosa acolhida para terminarmos esta empreitada juntos.

Aos Professores e Funcionários do Departamento de Artes Cênicas, por sua

atenção e disponibildade. Em especial Neyde Venziano, Helô Cardoso, Maria

Lúcia Candeias, Wanderley Martins, Adilson Ruiz.

Aos amigos queridos e parceiros preciosos

Glauco Manuel dos Santos, Alcides Fernando Gussi,

Vani Ing Burg, Amaranta Krepschi,

Céci Campos, Zandra Miranda,

Fabiana Grassano, Berba Fernandes,

Dácio Rodrigues, Marco Antônio Scarassati,

Brisa Vieira, Hugo Burg Cacilhas, Guilbert Nobre,

Ivan Ortiz, Hidalgo Romero.

À minha família, pelo apoio, sempre.

Resumo

Esta tese apresenta uma jornada pela dramaturgia do autor José Joaquim de Campos Leão

Qorpo Santo (1829-1883). Tem como objetivo transcriar sua escritura, inventando uma biografi a

poética do escritor gaúcho, por meio da elaboração de uma dramaturgia audiovisual. Trata-se de um

mosaico de referências e citações composto por fragmentos dos textos do próprio Qorpo Santo, das

lembranças de algumas encenações de suas peças teatrais, de artigos jornalísticos e de alguns escritos

de outros autores que se aproximaram de sua obra. A peça audiovisual que integra este trabalho aparece

como um capítulo da tese e foi construída a partir de uma série de imagens que podem caracterizar

o universo de Qorpo Santo. Estas imagens foram selecionadas da obra de artistas como James Ensor,

Edvard Munch e Oswaldo Goeldi entre outros.

Palavras-chave: Teatro Brasileiro; Dramaturgia Audiovisual; Qorpo Santo

Abstract

Th is thesis presents a journey through the dramatic work of the brazilian author José Joaquim

de Campos Leão Qorpo Santo (1829-1883). It has the objective of transcreate his scripture, inventing a

poetic biography of the “gaucho” writer, in a audiovisual dramaturgy. It consists in a mosaic of references

and citations, composed by fragments of Qorpo Santo’s own texts, memories of some staging of his

theatrical plays, journalistic articles and some works of others writers who had contact with his work.

Th e audiovisual piece that composes this work, appears as a chapter of the thesis and was constructed

from a series of images that can characterize the Qorpo Santo’s universe. Th ese images were selected

from the work of the James Ensor, Edvard Munch, Osvaldo Goledi and others artists.

Key Words: Brazilian Th eater; Audiovisual Dramaturgy; Qorpo Santo

sumÁrio

15 Introdusão

19 Parte I – Para Inventar um Qorpo Santo21 1. Desde Quando Qorpo Santo: anotasões inisiais

23 2. Lembransas de Ensenações de Qorpo Santo

31 3. Sobre os Disparates Teatrais de Qorpo Santo

37 4. Uma Ensiqlopédia de Vanguardas

43 5. Pistas para uma posível Biografi a Fiqsional

45 6. Dona Fulana de Qampos Leão: bisneta de Qorpo Santo

49 7. Uma Posibilidade de Funsionamento da

Masa Cinzenta de Qorpo Santo

53 8. O Rei da Qonfusão

57 Parte II – Para juntar os Pedasos do Qorpo Santo59 9. Uma Vizão Pensamento sobre Qorpo Santo

63 10. Uma Serta Teatralidade na Pintura

65 11. O Jogo do Qorpo Santo

69 12. Qolagem: Dramaturgia e Imagem

75 Qonsiderasões sobre Qorpo Santo-Lanterna de Fogo

80 Referênsias Bibliográfi cas

85 Aneqsos

15

P ara esta tese mergulhei num

emaranhado de textos e de

imagens com o objetivo de

reescrever a dramaturgia de

Qorpo Santo, pseudônimo do gaúcho José

Joaquim de Campos Leão (1829 - 1883). Para

tanto procedi a montagem de um almanaque

que utiliza variados elementos1, partindo da

obra de Qorpo Santo, para a elaboração de

uma dramaturgia audiovisual referente ao autor

gaúcho.

Machado de Assis nos conta que o

tempo inventou o almanaque; compôs um

simples livro, seco, sem margens, sem nada; E

prossegue:

Um dia ao amanhecer, toda a terra

viu cair do céu uma chuva de folhetos;

creram a princípio que era geada de nova

espécie, depois vendo que não, correram

todos assustados; afi nal, um mais animoso

pegou de um dos folhetos, outros fi zeram

a mesma coisa, leram e entenderam. O

almanaque trazia a língua das cidades e dos

1 O caráter do elemento é genérico, ist o é, vários artífi ces po-

dem empregar os mesmos elementos na geração de obras, as

quais, invariavelmente, apresentam resultados dist intos entre si.

BRITO, Rubens José Souza e J. Guinsburg, Análise Matricial:

uma metodologia para a invest igação de processos criativos em Ar-

tes Cênicas. In DA SILVA, Armando Sérgio (org.), J. Guinsburg:

Diálogos sobre Teatro. São Paulo: Editora da Universidade de São

Paulo, 22. p. 277- 286.

campos em que caía. Assim toda a terra

possuiu, no mesmo instante, os primeiros

almanaques.2

Qorpo Santo escreveu suas peças

teatrais no ano de 1866 – publicou-as em 1877.

Suas peças podem ser encaradas como um

Almanaque de 1866, de onde brotam ruínas3

de palavras que engendram personagens. A

estas personagens e palavras atribuí um caráter

biográfi co donde montei uma biografi a fi ccional

de Qorpo Santo, que nos faz saber de sua vida

por meio de sua obra.

Utilizei a idéia de Almanaque para não

ter preocupações de encadeamento linear, mas

com o objetivo de arranjar idéias. As formas de

contar Qorpo Santo podem ser rearranjadas

para o entendimento do que se diz, para jogar

com as representações de personagens e palavras

utilizadas por Qorpo Santo; tão colocadas em

dúvida pelo próprio autor, que possuiu uma vida

tão interessante quanto sua obra. Uma idéia

2 ASSIS, Machado de, Como se Inventaram os Almanaques. In MEYER, Marlyse (org.), Do Almanak aos Almanaques. São Pau-lo: Ateliê Editorial, 21. pp. 26-27

3 A fi sionomia alegórica da natureza-hist ória , post a no pal-co pelo drama, só est á verdadeiramente presente como ruína. Como ruína, a hist ória se fundiu sensorialmente com o cenário.(...) O que jaz em ruínas, o fragmento signifi cativo, o est ilha-ço(...). BENJAMIN, Walter, Origem do Drama Barroco Alemão. São Paulo: Editora Brasiliense, 1984. p. 199-2.

Introdusão

16

roubada ao escritor gaúcho Álvaro Moreyra4, que

em suas memórias As Amargas Não, através de

parágrafos independentes, cola num painel suas

lembranças. Moreyra relembra Qorpo Santo:

Há um poeta esquecido demais

no Brasil. Chamou-se José Joaquim de

Campos Leão Qorpo Santo. Eu vi as Obras

Completas dele, em grossos e altos volumes.

Guardei na memória algumas das páginas.

Durante a revolução contra o passadismo,

a ninguém ocorreu dar ao colega de 1880

e de Porto Alegre, o título de precursor da

poesia moderna.5

Realizei, também, um mapeamento

de montagens pioneiras e recentes das peças de

Qorpo-Santo que permitem verifi car possíveis

leituras, em diferentes momentos e com

encenações heterogêneas, para entender como a

dramaturgia do autor antropofagiza elementos

de vocação vanguardista.

Organizei a chuva de folhetos

sugerida por Machado de Assis para construir

uma anatomia dramatúrgica tirada das peças

que compõem a obra teatral de Qorpo Santo,

incluída no volume IV da sua Ensiqlopédia ou

4 Nascido em Porto Alegre, em 1888, e morto no Rio de Janei-ro, em 1964. Como homem de teatro desempenhou um papel relativamente importante nos anos que seseguiram à Semana de Arte Moderna.(...) Sua peça Adão, Eva e Outros Membros da Fa-mília (1925) e o Teatro de Brinquedo são iniciativas e demons-tram, nos anos 192, que os ventos da renovação modernist a atingiram o teatro, mas que também não era fácil quebrar com a resist ência das velhas formas. FARIA, João Roberto, Álvaro Moreyra:Poesia e Teatro no Modernismo. In O Teatro na Est ante: est udos sobre dramaturgia brasileira e est rangeira. São Paulo: Ate-liê Editorial, 1998. pp. 17-112.

5 MOREYRA, Álvaro, As amargas, não... : (lembranças). Rio de Janeiro: Lux, 1954. pp. 126-127.

Seis Meses de uma Enfermidade6, impressas na

Tipografi a Qorpo Santo. Procurei elaborar um

projeto gráfi co semelhante à da Ensiqlopedia

de Qorpo Santo (§26). Uma forma de ajuntar

diversas informações que possam auxiliar na

elaboração de um roteiro e em seguida um story

board7 sobre o autor em estudo, um indivíduo

verborrágico em sua escrita desgovernada.

Em 1978 Martin Esslin já salientava

que:

O drama mecanicamente

reproduzido dos veículos de comunicação de

massa (o cinema, a televisão, o rádio), muito

embora possa diferir consideravelmente

em virtude de suas técnicas, também é

fundamentalmente drama, obedecendo

aos mesmos princípios da psicologia da

percepção e da compreensão das quais se

originam todas as técnicas da comunicação

dramática.

O drama como técnica de

comunicação entre seres humanos partiu

para uma fase completamente nova de

desenvolvimento, de signifi cação realmente

secular em uma era que o grande crítico

alemão Walter Benjamin caracterizou

como sendo a da reprodutividade técnica

da obra de arte.8

6 Essa Ensiqlopedia, na curiosa forma de revisão ortográfi ca propost a pelo dramaturgo, compunha-se de nove volumes, uma espécie de súmula de seu pensamento e de suas idéias.(...) Há dois volumes que, contudo, envolvem temática específi ca: o de n. IV, com sua dramaturgia, e o de n. IX, no qual propõe uma re-leitura dos evangelhos. FRAGA, Eudinyr, Um Corpo que queria ser Santo. In LEÃO, José Joaquim de Campos (Qorpo Santo), Teatro Completo. São Paulo: Editora Iluminuras, 21. pp. 7-8.

7 Story Boards são cenas “imóveis” para fi lmes, pré-planejadas e dispost as em quadros pintados ou desenhados. (...) Não são des-tinadas à “leitura”, mas antes para fazer a ponte entre o roteiro do fi lme e a fotografi a fi nal. EISNER, Will, Quadrinhos e arte seqüencial. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 143.

8 ESSLIN, Martin, Uma Anatomia do Drama. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978. p. 14-15.

17

Debruçado sobre a dramaturgia

qorposantense, procurei identifi car cenas

idealizadas pelo autor gaúcho em sua escritura

que permitiram uma transcriação9 para uma

dramaturgia audiovisual. O procedimento10

desta transposição passou pela elaboração de um

argumento e, posteriormente, de um story board,

numa justaposição de textos e imagens para

possibilitar a visualização das diversas seqüências

que puderam compor a reescritura do universo

de Qorpo Santo em suporte audiovisual.

Por meio da dramaturgia audiovisual

realizei uma transcriação, para identifi car nas

falas e rubricas da dramaturgia qorposantense

analogias com imagens que tirassem o texto

da página impressa e devolvessem signifi cados

para sua dramaturgia em ruínas. Essas ruínas

aparecem como o legado de uma dramaturgia

que só pode ser vista, de fato, como um pitoresco

monte de escombros.11

Neste sentido, reescrever uma

dramaturgia sobre Qorpo Santo consistiu numa

colagem de citações de textos e imagens sem a

intenção de registro histórico. A citação está

ligada àquela idéia benjaminiana de extrair as

coisas de seu contexto original para deixar o

9 Na Tradução Intersemiótica como transcriação de formas o que se visa é penetrar pelas entranhas dos diferentes signos, bus-cando iluminar suas relações est ruturais, pois são essas relações que mais interessam quando se trata de focalizar os procedimen-tos que regem a tradução. Traduzir criativamente é, sobretudo, inteligir est ruturas que visam a transformação de formas. PLA-ZA, Júlio, Tradução Intersemiótica. São Paulo: Editora Perspec-tiva, 21. p. 71.

1 O procedimento é a ação do artist a no uso dos elementos eleitos; est a ação personaliza o ato criativo; conseqüentemente, o caráter do procedimento é específi co: somente um determinado autor produz daquele modo e não de outro. BRITO, Rubens José Souza e J. Guinsburg, Op. Cit., p. 282.

11 BENJAMIN, Walter, Op. cit. p. 2.

pensamento falar12. Trata-se, portanto, de elaborar

uma trama de referências textuais e imagéticas,

pinçadas para devolver signifi cações à obra de

Qorpo Santo; textos e imagens com objetivo de

construir uma “biografi a falsa”13 do autor.

Os elementos selecionados para este

trabalho percorreram um trajeto que parte dos

escritos teatrais de Qorpo Santo, passando

por textos jornalísticos e chegando às imagens

de Oswaldo Goeldi, James Ensor, Edvard

Munch, caricaturas e fotografi as de Qorpo

Santo, instantâneos de Porto Alegre, bem

como outras fontes imaginárias que pudessem

funcionar como inspiração para a escritura aqui

apresentada. Desta forma foi possível estruturar

um almanaque sobre o autor gaúcho, incluindo

uma peça audiovisual, como parte integrante da

tese.

A tese se divide em duas partes: na

Parte I expus o levantamento de informações e

descrições do procedimento para chegar à Parte

II, na qual apresento as etapas para a criação da

peça audiovisual.

12 ROUANET, Sergio Paulo, Não me venham falar em Síntese (entrevist a a Marília Pacheco Fiorillo). In Folhetim – Folha de S. Paulo (9/12/1984).

13 Linda Hutcheon vê a forma mais caract eríst ica de literatu-ra pós-moderna como metafi cção hist oriográfi ca, conceito com o qual ela designa obras de fi cção, acentuando a fi gura do autor e o ato de escrever. Est e tipo de metafi cção est aria presente em obras que tomam como tema personagens e eventos da hist ória conhecida, mas os submetem à dist orção, à falsifi cação e à fi c-cionalização(...). Para Hutcheon, a caract eríst ica principal des-ses textos é expor a fi ccionalidade da própria hist ória. IOZZI, Adriana, Italo Calvino: Entre a Tradição Moderna e a Vanguarda Pós-moderna. In WATAGHIN, Lucia (org.), Brasil & Itália – Vanguardas. Cotia: Ateliê Editorial, 23. p. 229.

Parte IPara Inventar um Qorpo Santo

21

Desde quando Qorpo Santo

§ 1E m 1989, embarcando num avião

com destino à Bahia, levava

comigo uma publicação do Teatro

Completo de José Joaquim de

Campos Leão, Qorpo Santo, embaixo do braço.

Decidi carregar o exemplar comigo, após ter

conhecido Qorpo Santo por meio da leitura

da peça Hoje sou um; e Amanhã Outro como

possibilidade de montagem de espetáculo por

um Grupo de Teatro do qual fazia parte.

Neste vôo para o Nordeste, Qorpo

Santo, um autor do Rio Grande do Sul, tornou-se

silêncio para mim. Completamente desnorteado,

frente a uma lógica inextricável com a qual me

deparei naquelas páginas, mal sabia que aquela

mixórdia teatral havia sido deixada na estante

por cem anos, pois falava numa língua do Século

XIX com o pé quebrado, por força, quem sabe

do seu destrambelhamento mental. Desisti das

peças e continuei olhando as nuvens pela janela

do avião.

§ 2A incomunicabilidade de Qorpo Santo

comigo estava instaurada e foi morar na estante

por mais alguns anos. Sua misantropia, todavia,

inquietava-me. Após vários anos retomei as

peças do gaúcho escritor por meio da realização

de Ciclos de Leituras Dramáticas. Ao lado

de autores como Beckett, Ionesco e Nelson

Rodrigues, incluí Qorpo Santo no Ciclo relativo

ao Teatro do Absurdo14, que aconteceu no espaço

da Ofi cina da Arte, um atelier de artes plásticas,

onde eu coordenava as atividades teatrais que

ocorreram ali entre 1997 e 2002.

O autor de Porto Alegre continuava

indecifrável não apenas para mim, mas também

para os participantes das leituras, bem como

para aspirantes a atores a quem apresentei sua

obra, na tentativa de montar suas peças.

Após ter realizado as leituras dramáticas

e tentativas de montagem de peças de Qorpo

Santo, em 2003, foi possível realizar uma

14 O Teatro do Absurdo procura expressar a sua noção da fal-ta de sentido da condição humana e da insufi ciência da atitude racional por um repúdio aberto dos recursos racionais e do pen-samento discursivo. Tende para uma desvalorização radical da linguagem, onde a comunicação entre os homens é most rada em est ado de desintegração. ESSLIN, Martin, O Teatro do Absurdo. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1968. pp. 2,22,355

22

montagem experimental da peça Certa Entidade

em Busca da Outra. Verifi quei que a encenação,

possibilitada pela trama da peça, exigia a

elaboração de personagens, que se construíssem

como fi guras grotescas, cujas deformidades as

tornassem ridículas e caricatas.15

Esta encenação fez com que o interesse

pela obra de Qorpo Santo se refi zesse e a

proposta desta tese confi gurou-se na forma de

uma pesquisa. A lembrança de encenações

e a observação de montagens recentes que

tive a oportunidade de assistir, levaram-me a

referências outras, não apenas escritas. Elaborei

um repertório de imagens, que pudessem ter

características de anotações visuais sobre Qorpo

Santo e sua obra. Textos, encenações e imagens,

documentais ou não, que contribuiram para

aproximar o universo do autor e transcriá-lo

em uma dramaturgia pensada para um suporte

audiovisual.

Para encontrar pistas sobre Qorpo

Santo, parti do exemplar do Teatro Completo de

Qorpo Santo, publicado pelo Serviço Nacional

de Teatro, da Fundação Nacional de Arte, em

1980, que me chegou às mãos em 1989, devido

à minha formação em Artes Cênicas.

15 FARIA, João Roberto, Qorpo Santo: as formas do cômico. In O teatro na Est ante. Ateliê Editorial, . p. 78.

23

César18 que, em 1962, sugeriu a Fausto Fuser e

a Lúcia Mello, então professores do Curso de

Arte Dramática da Universidade Federal do Rio

Grade do Sul a encenação de algumas pequenas

peças de Qorpo Santo. Fuser mandou copiar

os textos19 os quais, posteriormente, chegaram

às mãos do grupo do Clube de Cultura. Sena,

em 1966, levou à cena três peças: As Relações

Naturais, Mateus e Mateusa e Eu sou vida; eu não

sou morte.

Assis Brasil assistiu às peças, no Teatro

do Clube de Cultura de Porto Alegre - uma

entidade que existia, no bairro judaico de Porto

Alegre e que era mantido por intelectuais dessa

comunidade. Ele diz que era uma montagem até

certo ponto bastante literal, bem comportada,

talvez por ser a primeira vez que aquilo era

apresentado.

18 Guilhermino César (19-1993) que tão bem est udou a obra de Qorpo Santo comentava que em geral, o teatro oito-centist a gaúcho não tivera um desenvolvimento criador. Se na metade do século surgiu o nome de Souza Bast os (Manuel José, 1852-1861) e, no fi nal, o renomado escritor regionalist a J. Simões Lopes Neto (1865-1916), a maioria dos autores dra-máticos dest e período não criou “efetivamente um teatro válido, como expressão inconfundível do meio”(...). FRAGA, Eudinyr, Um Corpo que se queria Santo. In LEÃO, José Joaquim de Campos (Qorpo Santo), Teatro Completo. São Paulo: Editora Iluminuras, 21.

19 CÉSAR, Guilhermino, A Reabilitação de uma Obra. In Programa do Espetáculo apresentado no Teatro do Clube de Cultura de Porto Alegre em Agost o-Setembro de1966.

§ 3O escritor gaúcho Luiz Antônio

de Assis Brasil assistiu, há cerca

de quarenta anos, a primeira

montagem de algumas peças

do Qorpo Santo – a primeira vez que elas

foram levadas. Foi a encenação dirigida por

Antônio Carlos de Sena, no Clube de Cultura

de Porto Alegre. Assis Brasil conta que Aníbal

Damasceno Ferreira recebeu um convite ou algo

assim dos familiares do intelectual Manoelito de

Ornellas16 para conhecer uma biblioteca, onde

encontrou a Ensiqlopedia de Qorpo Santo. 17

As pessoas sabiam da existência desta

obra, mas foi Aníbal que disse: vamos fazer alguma

coisa com isso! E aí mostrou para Guilhermino

16 Autor de diversas obras de cunho sociológico, entre elas a obra fundamental da cultura gaúcha e da cultura brasileira, Gaú-chos e Beduínos.

17 Entrevist a realizada em 17 de Julho de 27, com Luiz Antônio de Assis Brasil, autor do romance Cães da Província.

Lembransas de Ensenasões de

Qorpo Santo

24

Valendo-me do programa do espetáculo

apresentado no Clube de Cultura encontrei,

além do texto de apresentação assinado por

Guilhermino César, um texto escrito por Sena, no

qual ele, em arroubos de entusiasmo, afi rma que

a inautenticidade do falso e medíocre teatro que

era levado na provincianíssima Porto Alegre do

século XIX, fazia mal a Qorpo Santo. O diretor

do espetáculo gaúcho de 1966 chega a colocar

que os méritos de Martins Pena são inegáveis,

mas que se deve a Qorpo Santo alguma parte

do reconhecimento que se devota ao talento do

comediógrafo carioca 20.

2 SENA, Antônio Carlos, Qorpo Santo – um Precursor. In Pro-grama do Espetáculo do Clube de Cultura de Porto Alegre.

Em 1968, a montagem do Clube de

Cultura de Porto Alegre foi apresentada no Rio

de Janeiro, durante o 5º Festival Nacional

de Teatro de Estudantes, organizado

por Paschoal Carlos Magno. O crítico

Ian Michalski fez um entusiástico registro da

revelação de Qorpo Santo ao público carioca.21

No mesmo ano, uma montagem

estudantil da peça Mateus e Mateusa, sob direção

de Djalma Limonge, foi apresentada no “Ciclo

do Teatro do Absurdo”, quando também foram

apresentadas peças de Ionesco e de José Arrabal.22

21 MICHALSKI, Yan, O Sensacional Qorpo Santo. In Jornal do Brasil – 8/2/1968.

22 AGUIAR, Flávio, Os Homens Precários: inovação e convenção na dramaturgia de Qorpo Santo. Porto Alegre: Inst ituto Est adual do Livro, 1975. p. 247.

Elenco do Grupo do Clube de Culura.1ª montagem de peças de Qorpo Santo, realizada em Porto Alegre

25

Também em 1968, Luís Carlos

Maciel23, após uma experiência desagradável de

ter censurada sua montagem da peça Barrela,

de Plínio Marcos, no Teatro Jovem do Rio de

Janeiro, sugeriu ao produtor Ginaldo de Souza

que montassem, então, As Relações Naturais, de

Qorpo-Santo, um autor que, à época, estava

sendo considerado precursor do teatro do

absurdo. O texto foi para a Censura Federal

em Brasília e passou. O espetáculo estreou no

Teatro Glauce Rocha, no Rio de Janeiro, mas

não foi longe. Segundo o diretor, os censores

23 Em maio de 1968 houve a primeira representação de uma peça de Qorpo Santo realizada por um grupo profi ssional. O grupo “Teatro Jovem” encenou As Relações Naturais, sob direção de Luís Carlos Maciel. O espetáculo prolongou-se até o mês de junho, no Teatro Nacional de Comédia, do Rio de Janeiro. AGUIAR, Flávio, Idem ibid.

consideraram que os signos cênicos utilizados

no espetáculo tinham uma intenção crítica

ostensiva e, depois de duas semanas em cartaz,

se tanto, o espetáculo também foi proibido.24

O cineasta Haroldo Marinho Brabosa,

fi lmou Eu sou a vida; eu não sou a morte, baseado

no texto homônimo de Qorpo Santo. O fi lme

participou no Rio de Janeiro do I Festival

Brasileiro de Curta-Metragem, em 1971, quando

foi premiado25. Foi considerada por Ismail Xavier

uma pequena obra-prima26.

24 http://tropicalia.uol.com.br/site/internas/leituras_margina-lia3.php, capturado em 2/5/8.

25 AGUIAR, Flávio, Op. Cit.p. 25.

26 XAVIER, Ismail,O Olhar e a Cena. São Paulo: Cosac & Naify, 23. p. 196.

Cena da montagem dirigida por Djalma Limonge em 1968

26

§ 4Em 1976 estreou no palco do Clube de

Cultura em Porto Alegre, sob direção de Liana Villas Boas, o espetáculo Qorpo Santo um Século Depois , composto pelos dois textos Hoje sou um e amanhã outro e Mateus e Mateusa. A encenadora deu um tratamento mais realista ao texto, vendo menos o aspecto da farsa. Ela considerou as conotações do absurdo com características de comédia séria.27

Em 1979 a peça Lanterna de Fogo, foi levada à cena pela primeira vez, numa criação coletiva do Grupo Circulação de Mercadoria, coordenada por Júlio Zanotta Vieira. A montagem foi apresentada no Teatro Ói Nóis Aqui Traveis, que surgiu numa garagem-boate, no Bairro Floresta, em Porto Alegre, como uma montagem de vanguarda verifi cada à época pelo jornalista Aldo Obino.28

O artista plástico Álvaro Apocalypse, criador do Tetaro Giramundo de Bonecos escolheu a peça As Relações Naturais para ressucitar através da manipulação de bonecos um mundo que tem vagas relações com o real. As cenas mal alinhavadas da peça ganham outra dimensão com o uso dos bonecos - desenhados para acentuar a ironia de Qorpo Santo, lembrando fi guras grotescas com um ar surrealista.29

De lá pra cá, Qorpo Santo foi encenado inúmeras vezes. Algumas encenações profi ssionais e muitas feitas por grupos estudantis e alunos de Cursos de Artes Dramáticas.30

27 HOHLFELDT, Antônio, Espetáculo de Qorpo Santo per-mite novas abordagens do autor gaúcho. In Correio do Povo - 8/11/1976.

28 OBINO, Aldo, A Lanterna de Fogo. In Correio do Povo - 7/3/1979.

29 MENDONÇA, Casimiro Xavier de, Caixa de Sombras. In Revist a Veja - 2/2/1983.

3 Cf. AGUIAR, Flávio, Op. Cit. pp.247-25.

§ 5Recentemente tive a oportunidade de

assistir algumas montagens de peças de Qorpo

Santo:

A Companhia São Jorge de Variedades

(São Paulo) realizou uma montagem da peça

Um Credor na Fazenda Nacional, dirigida por

Georgette Fadel; participou da mostra paralela

do Festival de Teatro de Curitiba de 2000.31

A encenação procurou reproduzir o clima

surrealista que perpassa a dramaturgia de Qorpo-

Santo, num espetáculo com diferentes cenários

- diferentes salas de uma repartição pública -

pelas quais o público é conduzido, sempre na

companhia do protagonista, que tenta em vão

receber um dinheiro que lhe é devido.

Embora mescle trechos de três peças

do autor - Um Credor da Fazenda Nacional, Dous

Irmãos e O Marido Extremoso ou O Pai Cuidadoso

- o eixo central do espetáculo gira em torno do

pesadelo vivido pelo “credor” que, de posse de

um requerimento, já bastante amassado, passa

por uma via-sacra para tentar receber o que lhe

deve a “Fazenda Nacional”.

O público aos poucos vai percebendo

que a peregrinação daquele “credor” começou há

muito tempo. E suas tentativas são marcadas por

uma rotina exasperante, um jogo de empurra que

o faz enfrentar ora a arrogância, ora a indiferença

de funcionários apáticos e desmiolados, que

acabam perdidos no emaranhado da burocracia.

Em 2007, a mesma Companhia realizou

um teleteatro da peça Hoje sou um; e Amanhã

Outro. A encenação expõe os recursos da criação,

31 NÉSPOLI, Beth, Uma bem-sucedida tradução cênica da obra do autor volta ao palco. In O Est ado de São Paulo (22/1/22). - 14/3/28 em www.ciasaojorge.hpg.ig.com.br.

27

deixando as câmeras visíveis. Transposto para a

linguagem televisiva, a releitura do texto utiliza

posicionamentos de câmera acima das cabeças

dos atores, conferindo inferioridade à massa

de soldados que fala ao rei. Em outra tomada,

esses mesmos soldados movem-se em bloco,

formando um desenho geométrico que remete à

falta de autonomia individual.32 Há, no entanto,

uma utilização excessiva de efeitos e recursos de

linguagem que, parece-me, tiram a unidade desta

peça audiovisual, como por exemplo a passagem

da imagem colorida para preto-e-branco, a cena

externa da revolta popular e, mesmo um ‘rap’

apresentado, que parece isolado do restante.

32 http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.asp?cod=434ASP4, - 21/5/8.

§ 6A Boa Companhia apresentou no 9º

Porto Alegre em Cena de 2002 uma compilação

de poemas eróticos e receitas culinárias mais ou

menos afrodisíacas de Qorpo Santo, publicados em

sua Ensiqlopédia. O espetáculo intitulou-se Banqete:

dirigido por Verônica Fabrini, adaptado da obra de

Qorpo Santo pelo grupo Produtos Notáveis.

Numa colagem de textos, que se

confi gura num espetáculo de bolso. São

esquetes, sem um fi o condutor, que poderiam

ser reorganizadas. É possível identifi car a

vocação dos textos de Qorpo Santo para o

nonsense verbal33 onde o instinto do jogo teatral

se liberta da dramaturgia, do conteúdo textual.

A necessidade de recepção racional do que se

passa em cena é descartada.

O cenário se estabelece com a chegada

de dois casais e os preparativos de um banquete. A

sexualidade é evocada no cardápio e no consumo

dos pratos. Há troca de parceiros, beijos entre os

garçons, entre os pares masculinos e femininos...

O grupo de personagens ri, canta, dança, declama

e se digladia no meio dos pratos na mesa, como

se tudo fosse imprevisto. No fi nal, nada fi ca no

seu lugar, e entre banhos de vinho tinto e outras

iguarias, a peça termina deixando uma bagunça

no palco e uma sensação de não sei bem se gostei.

Talvez fosse essa a proposta, mas ela soa tão

frágil quanto um pastelzinho de Santa Clara.34

33 A literatura do nonsense verbal expressa mais do que uma mera brincadeira. Ao tentar dest ruir os limites da lógica e da linguagem, ela invest e contra as próprias muralhas da condição humana. (...) O nonsense verbal é no sentido mais verdadeiro uma tentativa metafísica, uma luta por alargar e transcender os limites do universo material e sua lógica. ESSLIN, Martin, O Teatro do Absurdo. p. 29-291.

34 www.argumento.net/poaemcena/index_22, - 2/5/8.

28

§ 7A Companhia Bonecos Urbanos,

dirigida por Carlota Joaquina, apresentou em

2005 uma montagem da peça Certa Entidade em

Busca da Outra no Teatro Fábrica de São Paulo.

Para a Companhia, a peça de Qorpo Santo é

uma experiência sem foco lógico que permeia o caos

da vida vira-latas pelas ruas sujas e escuras da

cidade grande.35

Neste espetáculo a direção optou por

uma encenação feita com títeres. As personagens

ultrapassam o Brasil do século XIX, quando a

peça foi escrita, trazendo a encenação para o

dia-a-dia dos moradores de rua.

Na montagem apresentada no Teatro

Fábrica São Paulo36, antes do início da peça,

o público aguarda no saguão do teatro. Um

garoto da produção conduz informalmente os

espectadores pelo pátio de um estacionamento

vizinho do teatro. Por uma pequena porta,

entra-se num porão sombrio e úmido, onde o

sonoplasta e seus equipamentos de som fi cam

visíveis emitindo alguns acordes eletrônicos.

Pequenos fachos de luz vindos do chão, difusos

em fumaça, mostram no centro da cena um

obscuro carroção de lixo. O teto baixo, as paredes

sujas, o chão empoeirado, um ambiente lúgubre

causa uma sensação claustrofóbica e de repulsa.

É uma materialização do asco. O público se

acomoda em uma arquibancada de madeira.

Em condições precárias inicia-se o

espetáculo. A movimentação das fi guras expostas

em cena reforça uma aparência desumanizada.

35 Programa do Espetáculo Certa Entidade em Busca da Outra, apresentado em Junho de 25 no Teatro Coletivo Fábrica.

36 www.fabricasaopaulo.com.br/articles.php?id=124 - 2/5/8.

Os movimentos desmantelados dos bonecos37,

construídos a partir de um gestual desleixado,

conferem uma agressividade sarcástica às

personagens.

Os atores que manipulam os bonecos

envergam macacões muito sujos, que escondem suas

identidades e os transformam em sombras cor de

terra. Tem-se a impressão de que os manipuladores

são espectros brincando com a vida de objetos

inertes, como se fossem crianças abandonadas

brincando com bonecos maltrapilhos.

Esta criação de personagens de ação

sem sinergia aparece como uma solução para

causar um estranhamento das personagens

de Qorpo Santo, na medida em que o autor

gaúcho possibilita a criação de alguns tipos

fi xos recorrentes em diversas de suas comédias,

não individualizando suas personagens. Os

bonecos passam uma imagem arrebentada e

se desmontam com muita facilidade, deixando

perceber que são feitos do mesmo detrito que

compõe o carroção de onde saíram.

A personagem protagonista, o velho

Brás, desloca-se titubeante, puxando o carroção

indigente pelo espaço cênico. Em algumas

passagens, o carroção respira com dois enormes

pulmões, como se tivesse vida própria. Funciona

como uma espécie de útero gigante de onde

saem todas as personagens e objetos de cena.

O velho, um catador de lixo ranzinza

e cachaceiro, refl ete um estado de espírito de

insatisfação, de miséria, de tédio, inserindo cacos

no texto original, rosna alguns xingamentos

contra sua existência miserável, contra

37 Os personagens de Qorpo Santo são, além de precários em si mesmos, verdadeiros bonecos nas mãos de uma entidade dramá-tica superior a eles. São marionetes: os fi os est ão patentes. O in-fl uxo principal de vida não lhes vem de si, mas do impulso moral que nasce do próprio autor. AGUIAR, Flávio, Op. Cit.p. 176.

29

§ 8O Depózito de Teatro, sob a direção

de Roberto Oliveira, apresentou em 2007 o

espetáculo Dr. QS – Quriozas Qomédias, no

qual foram reunidos textos das peças Mateus

& Mateusa; As Relações Naturais; O Marinheiro

Escritor; Eu sou vida; Eu não sou Morte; além

de outros textos em prosa, aforismos e algumas

poesias de Qorpo Santo. O grupo também

inseriu fatos constantes da Autobiografi a Ideal de

Qorpo Santo, além de uma cena na qual foi feita

governantes corruptos, Nestas lamentações de

bêbado solitário, invoca o Supremo Arquiteto do

Universo e obtém a reposta de ninguém menos

do que o próprio Satanás.

Na montagem em questão, todas as

falas da personagem Satanás são substituídas pela

aparição de um aparelho de televisão que, do alto

do carroção, responde às interrogações do velho

com um chiado de TV fora do ar. A visão de que

todas as personagens e suas desgraças são expelidas

do carroção, pode proporcionar uma leitura de que

a TV estaria ali funcionando como uma Caixa de

Pandora, que vomita as desgraças do mundo.

“Os Trinta Valérios” (1901) - Valério Vieira

30

uma livre adaptação da obra Cães da Província

de Luiz Antônio Assis Brasil.38

Um espetáculo teatral que pinta um

quadro da obra dramatúrgica e poética de

Qorpo Santo, além de mostrar algumas facetas

da sua existência. A encenação reproduz o

clima surrealista que perpassa a dramaturgia de

Qorpo-Santo.39 O espetáculo transforma Qorpo

Santo em personagem de sua obra e multiplica a

sua presença em cena. Aparecem vários Qorpos

Santos em diferentes situações, como na imagem

forjada pelo fotógrafo Valério Vieira40 (1862-

1941) que realizou o seu auto-retrato de 1901

em diferentes situações, montados em uma só

imagem.41

38 Programa do Espetáculo Dr. QS – Quriozas Qomédias, apresentado em Março de 27 no Espaço Cultural Semente em Campinas.

39 www.depositodeteatro.com.br, capturado em 2/5/8.

4 Valério Vieira aplicou-se ao est udo da fotomontagem; sua produção “Os Trinta Valérios” é um marco na hist ória da foto-grafi a no Brasil. Trata-se de uma obra do princípio do século XX que representa uma situação fest iva harmoniosamente const ru-ída(...); todos os personagens retratados, em número de 3, re-presentam a mesma pessoa: o próprio Valério Vieira. KOSSOY, Boris, Dicionário Hist órico-Fotográfi co Brasileiro. São Paulo: Inst ituto Moreira Salles, 22. pp. 319-32.

41 http://girafamania.com.br/montagem/fotografo-valerio-vieira.htm, capturado em 28/3/27.

31

Sobre os Disparates Teatrais

de Qorpo Santo e Suas Bravatas absolutamente arbitrária, e poderíamos,

inclusive, questionar essa própria divisão.43

O próprio Qorpo Santo admite que

sua escritura é defi ciente e se justifi ca em uma

nota ao fi nal da peça O Marido Extermoso ou o

Pai cuidadoso:

NOTA

Não tendo eu jamais lido o que

escrevi há mais de onze anos, e só agora

corrigindo as provas, não podia saber que

esta comédia encerrava cinco quadros,

lendo-se na página primeira quatro, senão

nas últimas.

Porto Alegre, 11 de junho de 1877

Em seus textos teatrais, ele sugere

alterações. Veja-se como o autor encerra a peça

Dous Irmãos:

Porto Alegre, fevereiro 24 de 1866.

Por José Joaquim de Campos Leão

Corpo Santo

Julgamos quando começamos a

imprimir este Livro – que não bastariam

43 Idem. p. 6.

§ 9E u vejo que Qorpo Santo, no século

XIX, em suas peças pretende

imitar os moldes de Martins Pena,

Joaquim Manoel de Macedo e

José de Alencar. A divisão de suas peças em

atos, quadros e cenas mostra que ele estava

preocupado em escrever peças “bem-feitas”,

dentro dos moldes tradicionais vigentes na época,

tentando, certamente, seguir os parâmetros que

devia conhecer.42

O teatro de Qorpo Santo, no entanto,

despedaça a carpintaria bem feita dos autores das

comédias de costumes do mesmo período ou do

período imediatamente anterior a ele. É possível

afi rmar que Qorpo Santo escreve mal, pois sua

escritura aparece incompleta emperrada.

Fraga coloca que:

Qorpo Santo incorre num erro

muito comum de pessoas que não têm

hábito de lidar diretamente com o palco,

ou seja, não tem noção de tempo em teatro.

A sua divisão em cenas, quadros e atos é

42 FRAGA, Eudinyr, Qorpo Santo: Surrealismo ou Absurdo. São Paulo: Perspect iva, 1988. p. 59.

32

as comédias para preenchê-lo; e por isso

escrevemos em seu princípio –

– ROMANCES E COMÉDIAS

As pessoas que comprarem e

quiserem levar à Cena qualquer das

Minhas Comédias – podem; bem como

fazerem quaisquer ligeiras alterações

corrigir alguns erros e algumas faltas,

quer de composição, quer de impressão,

que a mim por numerosos estorvos – foi

impossível.

Esta declaração confere às peças do

autor gaúcho a possibilidade de deixar de lado

a natureza literária que limita a dramaturgia de

alguns autores brasileiros do século XIX, como

José de Alencar e Machado de Assis, muito presos

ao preciosismo do texto escrito. Estes autores

se dão muito bem nos gêneros narrativos, mas

na dramaturgia parecem esquecer que o teatro

precisa libertar-se da página escrita e subir ao

palco.

§ 10Numa matéria intitulada Quem tem

Medo de Qorpo Santo, publicada no jornal

portoalegrense Correio do Povo, em 1966,

Jeff erson Barros coloca que:

O problema do texto escrito reside na

necessidade da construção de personagens

possíveis de manifestação pela palavra falada,

pelo gesto e, sobretudo, capazes de revelar em

pequenas e intensas ações dramáticas. Esta

exigência de construção cria uma difi culdade

para o trabalho do dramaturgo. Possuindo o

palco por mundo social, e precisando revelar

sua verdade em poucos minutos de ação e de

espetáculo, a tendência do teatro – sobretudo

no Século XIX, um século literário por

excelência – foi no sentido de intensifi car a

ação dos diálogos, dando um destaque maior à

palavra, o que não ocorria no teatro medieval

ou na commedia dell ’arte, por exemplo. Esta

superabundância de palavras, que tem origem

no classicismo francês, dominou o romantismo

e manifestou-se ainda no realismo ou no

naturalismo.44

É importante a compreensão de

que estes problemas, relativos ao trabalho do

dramaturgo, encontravam seus momentos mais

altos justamente neste período. O texto teatral

começava a desgastar seus conteúdos na forma

de propaganda de modelos moralizantes45 que

44 BARROS, Jeff erson, Quem tem Medo de Qorpo Santo. In Cor-reio do Povo – 31/8/1966.

45 Nós todos jornalist as est amos obrigados a nos unir e a criar o teatro nacional; criar pelo exemplo, pela lição, pela propaganda. ALENCAR, José de, A Comédia Brasileira. In Diário do Rio de Janeiro - 14/11/1857. Apud FARIA, João Roberto, Idéias Tea-trais: o século XIX no Brasil. São Paulo: Perspect iva: FAPESP, 21. p.469.

33

deveriam reproduzir exata e naturalmente os

costumes de uma época.

Isto não ocorria com Martins Pena, que

pintava os costumes de seu tempo, mas pintava-

os sem criticar, visava antes ao efeito cômico do

que ao efeito moral, e era isto que José de Alencar

criticava em seu artigo A Comédia Brasileira,

publicado no Diário do Rio de Janeiro.46

A aparição de um autor como Qorpo

Santo nesta época pode ser um indício desta

crise do drama47 que já se anunciava na Europa,

mas que, surpreendentemente, manifesta-se

nas bravatas de um autor como Qorpo Santo;

totalmente ignorado e fora do eixo da produção

teatral mundial. É possível que Qorpo Santo

tenha levado a sério as suas apologias quixotescas

e atirado pedras nas janelas do Teatro São Pedro,

onde ocorria o teatro que ele conhecia em sua

província e que deveria ser mais “intragável” do

que aquele a que Ionesco não aceitava.48.

Assim como José de Alencar, as comédias

de Qorpo Santo procuram criticar a sociedade

de seu tempo. Alencar, pretendendo imitar a

46 ALENCAR, José de, Op.cit. p.47.

47 Peter Szondi const ata que as peças compost as com diálogos trocados entre personagens, como numa conversação quotidia-na, são incapazes de expressar as novas contradições da realida-de. E localiza a crise da forma dramática muito antes, por volta de 186, quando a crescente complexidade das relações sociais já não cabe no mecanismo do drama absoluto que se est rutura a partir das relações intersubjetivas dos personagens. FERNAN-DES, Sílvia, Notas sobre Dramaturgia Contemporânea. In O Per-cevejo, n. 9, Ano 8, 2. p. 26.

48 SENA, Antônio Carlos, Qorpo Santo – um Precursor. In Pro-grama do Espetáculo do Clube de Cultura de Porto Alegre.

realidade, apresenta daguerreótipos morais49

cristalizados e desbotados pela exacerbação de

suas teses, aos olhos daqueles que hoje retomam

sua dramaturgia. As teses de Qorpo Santo

também são exacerbadas, tão exageradas que se

tornam estapafúrdias e acabam por centrifugar

os signifi cados das palavras, tornando-as tão

leves que quase as esvazia. Qorpo Santo é um

verme que principiou a roer as sobrecasacas de

seu tempo e roeu as páginas, as dedicatórias

e mesmo a poeira dos retratos. Só não roeu

o imortal soluço de vida que rebentava, que

rebentava daquelas páginas.50

Décio Pignatari coloca que o autor

gaúcho:

pode ser tido por primitivo; se for,

não é do tipo ingênuo comum, pois em suas

peças é inequívoco o comando da meta-

linguagem, de alusão crítica à linguagem

romântica e ao teatro de costumes da

época. Dá a impressão de um teatro de

costumes que tivesse sofrido desregulagem

de registro: o resultado é um tônus geral

sinistro, entre metafísico e surrealista

(...).51

49 Molière tinha feito a comédia quanto à pintura dos cost umes e a moralidade crítica. (...)Mas esses quadros eram sempre qua-dros e o espect ador vendo-os no teatro não se convencia de sua verdade; era preciso que a arte se aperfeiçoasse tanto que imitas-se a natureza;(...) É esse aperfeiçoamento que realizou Alexan-dre Dumas Filho; tomou a comédia de cost umes de Molière, e deu-lhe a naturalidade que faltava; fez que o teatro reproduzisse a vida da família e da sociedade, como um daguerreótipo moral. ALENCAR, José de, Op.cit. p.471.

5 ANDRADE, Carlos Drummond, Sentimento do Mundo.Rio de Janeiro: Record, 1998. p. 146.

51 PIGNATARI, Décio, Qorpo Santo. In Contracomunicação. São Paulo: Perspect iva, 1973. p. 121.

34

§11Tomo como exemplo a peça Certa

Entidade em Busca da Outra. Este é um dos

textos mais convencionais de Qorpo Santo.

No início da peça, o monólogo do

velho Brás, instaura um nonsense52 comparável às

anedotas contadas na Cena 8 pelas personagens

da peça A Cantora Careca de Eugène Ionesco

ou ao monólogo da personagem Lucky

em Esperando Godot de Samuel Beckett. O

monólogo escrito por Qorpo Santo consiste

num turbilhão de palavras que vão encadeando

idéias desconexas. Os disparates se sucedem,

revelando um pensamento confuso53 que salta

de um assunto a outro, colocando num mesmo

saco a apresentação das personagens da peça,

problemas familiares, críticas ao governo,

passando pela defesa de teses sobre a Nação

e a Pátria, fi nalizando com uma evocação

apocalíptica da vingança do Supremo Arquiteto do

Universo que não tardará a tocar a trombeta fi nal.

Percebe-se um monólogo maçante,

conservador, recheado de intenções ideológicas

do autor e de sua sede de justiça e de moralidade.

A personagem expõe seus enunciados de

modo arbitrário que emperra a troca dialógica

e imobiliza o desenvolvimento da suposta

fábula que, aliás, nem chega ser defi nida pelo

dramaturgo.54

52 “O deleite do nonsense” diz Freud “tem suas raízes na sensação de liberdade que experimentamos quando podemos abandonar a camisa-de-força da lógica.” Apud ESSLIN, Martin, O Teatro do Absurdo. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1968. p. 289.

53 Não se repara no fato de que a confusão tem um sentido posi-tivo, é uma ação mental. (...) O confundir uma coisa com outra é uma maneira de tomá-las intelect ualmente, ist o é, de pensa-las. Y GASSET, Jose Ortega, A Idéia do Teatro. São Paulo: Perspec-tiva, 1978. p. 9.

54 FERNANDES, Sílvia, Op. Cit. p. 27.

Voltando à trama da peça Certa

Entidade...: ao evocar o Supremo Arquiteto

do Universo, aparece, sorrateiramente, a

personagem Satanás, que articula uma

negociação com o velho Brás – um tipo de

“O Fausto” de Qorpo Santo. Surge Micaela, a

taguarela, uma mulher vulgar, de recato ambíguo,

aparece como um empecilho para o pacto entre

Brás e Satanás. Após tentar seduzir Satanás ela

convida Brás para que se metam num quarto,

onde são trancados por Satanás que abandona a

cena de modo jocoso.

No segundo ato, Micaela e Brás,

trancados no quarto, arrombam a porta, derrubando

o cenário, rasgando o fi gurino e quebrando partes

do corpo, enquanto agridem-se mutuamente. Nisso

aparece Ferrabrás, o fi lho de Brás que vive falando

de suas namoradas e nega ser fi lho de Micaela.

Ao fi nal da peça, as personagens são praticamente

desmontadas em cena, numa briga entre Ferrabrás

e Micaela, que perde a cabeleira em cena. Restam

dúvidas sobre a consistência das personagens, o

que pode revelar a insignifi cância da vida daquelas

fi guras execráveis.

Qorpo Santo parece insatisfeito ao

terminar sua pequena obra, pois dá a impressão

de que deixa a peça inacabada, sugerindo

que os cômicos nada devem poupar para tornar

mais interessante e agradável o gracejo. Após o

encerramento do texto, Qorpo Santo, ainda

insiste para que os atores, no início da peça dêem

saltos, proferindo palavras sem nexo ao discurso,

mostrando a respeito de Brás algum desatinamento,

antes da entrada deste último. §12O Teatro do Absurdo procura construir

arcabouços lógicos que se confi guram em dramas

não dramáticos, mas o jogo de linguagem

35

proposto pelos dramaturgos do Absurdo é feito

de maneira racional.

Os confl itos da peça nada mais são

do que peripécias que viram acidentes, onde as

personagens se agridem com certa gratuidade.

Instaura-se um clima de violência entre as fi guras

em cena, que vivem um inferno desprovido de

coerência.

Qorpo Santo parece não estabelecer

sua lógica particular de maneira racional. Em

sua escritura, ele justapõe idéias que voam

de sua mente para a página num movimento

inacabado. A velocidade com que suas palavras

passam por sua mente sobrepuja a velocidade

de sua escrita. É a onipotência da imaginação

sobre a impossibilidade da concretização do

transcrever. Seu pensamento se confunde num

emaranhado de palavras que reúne sexualidade,

política, fi losofi a, criando um enciclopedismo de

lógica aparentemente antinatural.55

É possível, portanto, deduzir que mais

do que o texto parece que Qorpo Santo, de

maneira inconsciente, interpunha entre ele e

a página impressa um fi ltro que agia sobre sua

memória deformando a sua escritura. Essa chave

de leitura remete continuamente a uma cultura

diversa da registrada na página impressa: uma

cultura oral.56

55 Pretendeu-se que o homem primitivo era ilógico. Ist o parece tolice quando o intento de const ruir a lógica, ao mesmo tempo que fracassava descobria a impossibilidade e o caráter utópico do pensamento lógico.(...) Ao nos darmos conta de que somos muito menos lógicos do que reputávamos, perde o sentido en-cerrarmos os primitivos no presumido manicômio que era a sua falta de lógica. O pensamento humano nunca foi, é, nem será genuinamente lógico, assim como nunca careceu de “alguma” lógica. Apud Y GASSET, Jose Ortega, A Idéia do Teatro. São Paulo: Perspect iva, 1978. pp. .87-88

56 Cf. GINZBURG, Carlo, O Queijo e os Vermes: as idéias de um moleiro perseguido pela inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 26. p. 72.

Qorpo Santo, ao destruir a força

signifi cativa e metafórica de suas palavras,

encobre seu nome e sua obra com uma espessa

camada de ridículo; Qorpo Santo dilui-

se no meio de suas personagens grotescas,

ridículas, inautênticas que esbravejam protestos

desprovidos de sentido.57

Qorpo Santo escreveu um texto de

modo sério, não o fez para fazer rir, mas pode

fazer rir, contudo, parece que ele não sabia

quando fez. Não tinha, como Ionesco e Beckett

tiveram, a intenção de induzir a perda do sentido

de suas palavras. O absurdo de Ionesco e Beckett

não está em enlouquecer cada vez mais, está em

tratá-lo como o normal.

57 Cf. AMOROSO, Maria Betânia, Pasolini e a Vanguarda. In WATAGHIN, Lucia (org.), Brasil & Itália � Vanguardas. Cotia: Ateliê Editorial, 23. p. 194.

37

Uma Ensiqlopedia de

Vanguardasde leituras. Qualquer tentativa de rotular sua

dramaturgia torna-se ilusória, na medida em

que sua obra constitui um mosaico onde se

exibem, sem qualquer preocupação sistêmica ou

metodológica, elementos de ruptura59.

Suas comédias estão repletas de falas

inconclusas e de personagens que compõem

ambientações, onde o nonsense caracteriza

um universo “proto-surrealista”. Qorpo Santo

transforma meros esboços do ser humano em

personagens que subvertem a dramaturgia

tradicional do século XIX; cria uma lógica

muito peculiar e de aspecto fragmentário,

possível de aproximar-se de algumas tendências

vanguardistas do fi nal do Século XIX e início do

Século XX.

59 MARTINS, Leda Maria, O Moderno Teatro de Qorpo San-to. Belo Horizonte: Editora UFMG; Ouro Preto: UFOP, 1991. p. 3.

§13E ncontram-se no teatro de Qorpo

Santo algumas características

de anti-romantismo, de

funcionalidade teatral da palavra,

de liberdade para o espetáculo, da criação de

personagens despsicologizadas, além da violenta

velocidade da ação. Mais ainda: é possível que,

embora se possa duvidar que Ionesco e Qorpo

Santo tenham escrito suas obras com o mesmo

grau de consciência, não pode ser esquecido o

fato de que enquanto um viveu em Paris, o outro

escreveu em Porto Alegre, Província de São

Pedro do Rio Grande do Sul, no século XIX.

Qorpo Santo escrevia textos que não

seriam publicadas no Século XIX. Tentou

dominar as tecnologias gráfi cas, em sua época,

e como um produtor gráfi co relativamente bem

sucedido comprou uma tipografi a para editar

seus escritos.58

A escritura dramática de Qorpo

Santo pode proporcionar uma multiplicidade

58 Inst alou sobre a porta um caixote, em cujos lados recortara

as palavras TIPOGRAFIA QORPO SANTO e que enchia de

velas à noite, fazendo o anúncio brilhar na escuridão foi, pos-

sivelmente, o primeiro luminoso de Porto Alegre. AGUIAR,

Flávio,Op. Cit.p. 25.

38

§14O fi nal do Século XIX foi pródigo em

dar nomes a seus movimentos literários, assim

conferindo um peso proporcional às diferenças entre

eles60, é sempre interessante verifi car na obra de

Qorpo Santo suas não-obrigatórias relações com

tais movimentos. Esta analogia possível entre

as vanguardas modernistas e a obra de Qorpo

Santo não tem a intenção de classifi car o autor

gaúcho nesta ou naquela tendência, pois isto já

foi realizado Eudynir Fraga e, anteriormente,

por Flávio Aguiar, que perceberam nas peças

do gaúcho um espectro de tendências que

podem ser complementares, divergentes e até

contraditórias.

O contato com a obra de Qorpo

Santo não precisa identifi car cada vanguarda

com suas respectivas características, afi nal,

isto seria uma conceituação inócua para este

trabalho. Contudo, a observação da obra de do

autor leva-me a entender o enciclopedismo de

Qorpo Santo como o potencial que possibilita

ao autor uma expressão multivanguardista. Um

autor que transpõe os limites das classifi cações

da vanguarda modernista do Século XX. Um

homem que não se decidia entre a aceitação ou

a repulsa do moderno61, ou seja, um homem que

viveu o confl ito entre o passadismo e futurismo.

Décio Pignatari acrescenta que as

peças de Qorpo Santo têm uma linguagem

pop, um vocabulário restrito, popular. As comédias

do autor são abertas e breves, são um convite à

6 Bradbury, Malcom e McFARLANE, James (org.), Modernismo:guia geral 189-193. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 166.

61 ASSIS BRASIL, Luiz Antônio de, Op. Cit. p. 165.

encenação inteligente62. As falas inconclusas, a

fragilidade no traço das personagens permitem

que seus corpos sejam despedaçados em cena,

numa violência libidinosa e indigente que pode

se moldar a uma multiplicidade de leituras.

Nesse sentido, a encenação do grupo

portoalegerense Depózito de Teatro aproxima-

se do que está sendo tratado nesta etapa do

trabalho, pois originou-se da pesquisa sobre

a presença, na obra de Qorpo Santo, do

surrealismo e de elementos do Manifesto

Antropofágico63 lançado por Oswald de Andrade

na década de 1920. O grupo realizou um estudo

sobre dadaísmo, surrealismo, antropofagismo

e tropicalismo, para em seguida procurar um

“corpo grotesco” ou “corpo surrealista” para

abrigar os personagens solicitados pelo autor.64

Como a companhia teatral de Porto

Alegre, também procurei perceber diálogos

entre algumas correntes artísticas do fi nal do

Século XIX e início do século XX com a obra

teatral de Qorpo Santo. Pretendi investigar

como a presença de elementos destas correntes

artísticas proporcionam uma multiplicidade de

leituras que sua obra nos possibilita através de

suas matrizes dramatúrgicas. Valendo-me da

vocação modernista da obra de Qorpo Santo,

detectada pelos autores citados acima, foi possível

aproximá-la de imagens para a confecção da

peça audiovisual que equivale a um dos capítulos

desta tese. A idéia aqui é perceber as possíveis

atmosferas desta dramaturgia para imaginar um

retrato audiovisual de Qorpo Santo.

62 PIGNATARI, Décio, Qorpo Santo. In Contracomunicação. São Paulo: Perspect iva, 1971. p. 122.

63 Cf. ANDRADE, Oswald, A Utopia Antropofágica. São Paulo: Globo, 1995. pp. 47-52.

64 Programa do Espetáculo Dr. QS – Quriozas Qomédias, apresentado em Março de 27 no Espaço Cultural Semente em Campinas.

39

§15As diferentes percepções delirantes que

Qorpo Santo vislumbrou a respeito de suas realidades

criou um universo singular e paralelo, refl etindo

idéias e sentimentos destoantes da dramaturgia de

sua época. É possível querer enxergar as vanguardas

modernistas devoradas por Qorpo Santo, um autor

clandestino e sem nenhuma consciência de que sua

insignifi cância poderia antecipar a antropofagia

oswaldiana para a década de 1860. Isolado numa

Porto Alegre de sobrecenho carregado uma cidade

morta devido à Guerra do Paraguai, Qorpo Santo

vive obsessivamente, enfrenta confl itos pessoais

e sociais, transforma sua profunda melancolia

tropical65 em uma mixórdia de textos criticados

por sua excessiva incomunicabilidade com seus

contemporâneos.

Eudinyr Fraga investiga a obra de

Qorpo Santo como antecipadora do Surrealismo

e do Teatro do Absurdo, aproximando mais

a obra do surrealismo, mesmo identifi cando

elementos do Teatro do Absurdo. É possível

concordar com Fraga. Todavia, Qorpo Santo

vislumbrou realidades e criou uma lógica

construindo arcabouços dramáticos que fl utuam

num universo paralelo.

Fraga, em um outro trabalho seu, este

sobre o Simbolismo no Teatro Brasileiro, coloca

que o movimento simbolista preparou um clima

propício aos subseqüentes grupos de vanguarda:

cubismo, futurismo, dadaísmo e surrealismo66;

Fraga também faz uma sistematização

sobre o teatro simbolista, listando algumas

características, que parecem interessantes:

65 AGUIAR, Flávio, Op. Cit. p. 5

66 FRAGA, Eudinyr, Op. Cit, p. 31.

- Inexistência da intriga tradicional, onde os fatos se sucedem encadeando-se harmonicamente, visando a narrar uma história, substituída por uma atmosfera de tensão e expectativa;

- Inexistência de caracteres precisos e determinados, sem preocupação de desenho psicológico e coerência interna;

- Indeterminação de tempo e de lugar, inspirando-se muitas vezes, na alegoria;

- Criação de dois planos: um visível, e outro, supra-real, que o circundaria, mas que não fi caria claramente explicitado para o público;

- Através da elaboração de uma linguagem poética, repleta de sugestões, ambigüidades e imagens visuais, o espectador seria remetido de um plano a outro, tornando-se ele próprio um intérprete, por meio da sua sensibilidade aguçada pelas correspondências e efeitos sinestésicos;

- A linguagem perdendo, portanto, parte de suas características dramáticas, adquire feição nitidamente lírica, do que decorre um sentimento de profunda e intensa poesia que envolve as personagens e as situações, transformando-as num todo signifi cante e autônomo, fechado em si mesmo e que não corresponde mimeticamente à realidade.67

Todas estas características podem ser encontradas nas peças de Qorpo Santo. Assim é possível inferir que o autor antecipa-se também

ao Simbolismo68.

67 FRAGA, Eudinyr, Op. Cit.p. 56

68 O Manifest o Simbolist a data de 1886 e o marco inicial do simbolismo no Brasil se dá em 1893 com a publicação do Missal de Cruz e Souza. O teatro simbolist a no Brasil recebeu os ven-tos simbolist as que perderam um pouco de suas cores primitivas na longa viagem para além-mar. Duas peças teatrais são citadas como obras primas: A Bela Tarde e A Casa Fechada, ambas de Roberto Gomes. FRAGA, Eudinyr, O Simbolismo no Teatro Bra-sileiro. São Paulo: Art & Tec, 1992.p.182-185.

40

§16As peças de Qorpo Santo podem

funcionar como roteiros de encenação, também

como narrativas curtas, rápidas que podem ser

montadas episodicamente ou isoladamente,

de maneira efêmera. Veja-se o caso de Certa

Entidade em Busca de Outra ou Um Credor da

Fazenda Nacional: são peças curtíssimas, cuja

duração só com prodígios da direção poderá

ultrapassar meia hora.69 Escritos relâmpagos,

como no teatro futurista70, onde a ênfase recai

sobre a brevidade, a velocidade – num espírito

semelhante à impaciência e sensação de

premência dos expressionistas.

Da mesma forma com que poeiras de

simbolismo e futurismo são perceptíveis na obra

do Qorpo Santo, também a atmosfera dadaísta

paira sobre suas peças. O autor pode ser Dadá, se

levarmos em conta que o acaso e a destruição das

tradições dramatúrgicas, advindos do movimento

dadaísta estão presentes em sua obra. Elementos

anti-ilusionistas, a falta de preocupação com o

psicologismo das personagens, a inexistência de

racionalização, a demolição e a ridicularização

do teatro bem feito do Século XIX encontram-

se nos textos de Qorpo Santo.

69 FRAGA, Eudinyr, Qorpo Santo: Surrealismo ou Absurdo. São Paulo: Perspect iva, 1988. p. 6.

7 As melhores obras do teatro futurist a têm um valor durável e consist iam em quadros ultracurtos, chamados de “sínteses” e que não passavam de algumas linhas, no máximo uma ou duas páginas. ESSLIN, Martin, O Teatro Modernist a: de Wedekind a Brecht. In Bradbury, Malcom e McFARLANE, James (org.), Modernismo:guia geral 189-193. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. pp. 453-454 apud McFarlane

§17O expressionismo possível na obra de

Qorpo Santo coincide com algumas fi guras e

situações encontradas nas imagens produzidas

pelo gravurista paraense Oswaldo Goeldi71 e

este com o pintor belga James Ensor72.

Na obra de Goeldi personagens

solitários vagam por ruas escuras, que podem

representar um lado sombrio de Qorpo Santo.

Álvaro Moreyra disse que Qorpo Santo escrevia

“verdadeiras fábricas de gargalhadas”, porém

há no escritor gaúcho certos aspectos que

revelam um lado obscuro, que pode prescindir

das risadas, ou pode fazer aparecer um riso

sardônico e conferir às peças de Qorpo Santo

uma proximidade com o terror. O riso, em

Qorpo Santo, tem pertinência, mas não chega

a ser compulsório e podemos afi rmar que pode

não aparecer enquanto riso de evasão, mas sim

enquanto riso de estranhamento ou provocar

constrangimento, por suas alusões infames e

grotescas.

A utilização comicidade em Qorpo

Santo pode ser uma via de fácil acesso para

aproximar sua obra do público. Contudo esta

71 Oswaldo Goeldi é nosso “verdadeiro expressionist a”, o “avesso” do modernismo solar. (...)Manuel Bandeira cunha a expressão “panteísmo grotesco”. É perceptível em sua obra o di-álogo com as correntes est ´ticas européias e americanas como o expressionismo e o realismo eo surrealismo. Muitos artist as contemporâneos tratam Goeldi como um ícone de nosso tempo - ícone unânime do malogro modernist a, visionário da decadên-cia urbana com suas paisagens trágicas. RUFINONI Priscila Rossinetti, Oswaldo Goeldi: iluminação, ilust ração. São Paulo: Cosac & Naify e Fapesp, 26. pp. 17-19.

72 James Ensor e Edvard Munch foram particularmente importantes como precursores espirituais, visionários que per-maneceram fi éis à sua crença de que a arte deveria expressar a perturbação íntima diante de um mundo em que reinam a incompreensão e a negligência. DEMPSEY, Amy, Est ilos, Es-colas e Movimentos. São Paulo: Cosac & Naify, 23. p. 44 / p. 7-71.

41

comicidade não se sustenta em toda a extensão

de sua dramaturgia. Qorpo Santo pode trazer

o lírico, o erótico, o grotesco, o sardônico, a

melancolia, o ridículo....

Como se todas as peças de Qorpo

Santo fossem uma série de espetáculos sonhados

por seu autor, onde ele desempenha o papel de

protagonista. Qorpo Santo teria encenado a si

mesmo sob o traço de suas personagens, numa

espécie de autobiografi a mimetizada em sua

dramaturgia. É como se ele fosse um raisonneur73

de si mesmo, defendendo teses através de suas

personagens.

Moreyra coloca Qorpo Santo ao lado

de Oswaldo Goeldi74, num mesmo volume, que

por sua vez me leva ou achega-se a James Ensor75.

Nas imagens de Goeldi, o teatro social também

aparece como um reino de aparências que teimam

em dissimular uma realidade incontornável,

fazendo da morte medida reveladora de todas

as hipocrisias76. Esta ambientação conduz às

73 Os autores do realismo teatral francês introduzem um rai-sonneur - personagem típico da comédia realist a - que didatica-mente expõe o pensamento dos autores com o objetivo de rege-nerar a sociedade através de críticas moralizadoras a certos vícios sociais. Cf. FARIA, João Roberto, O Teatro Realist a na França e no Brasil. In O teatro na Est ante. Ateliê Editorial. p. 37.

74 Osvaldo Goeldi quer bem toda a vida. Com melancolia. De quando em quando com desespero. Just amente pode contar traços Poe e Dost oievsky. Sabe como Carlitos é o mais puro dos irmãos. Caminhamos ao longo do tempo, da simplicidade para a simplicidade. Mas, durante a viagem, quantas complicações! No fi m, rest am em nós, com um pouco de fadiga, algumas palavras. Essas são as palavras de Osvaldo Goeldi, que nunca disseram que os homens são maus. Não. Há homens desarmoniosos e de-lirantes. E todos têm um inst ante de poesia, um momento de beleza. MOREYRA, Alvaro, idem. pp.256-257.

75 Por todos os lados a morte most ra sua face agourenta. Uru-bus, caveiras, fi guras sombrias e esqueletos nos lembram que te-mos a sorte selada. Vaidade e arrogância são paixões vãs: a morte tudo iguala e não há quem a ela escape. Também na obra de Ensor – um artist a que Goeldi conhecia e respeitava – esque-letos e mascarados põem frente a frente presunção e futilidade. NAVES, Rodrigo, De Fora: Goeldi. In Coleção Espaços da arte brasileira. São Paulo: Cosac & Naify Edições, 1999. pp.8-9.

76 NAVES, Rodrigo, Idem ibid.

pinturas do belga James Ensor que podem ser

apreciadas como um intrincado de máscaras

onde é possível encontrar um bando de bufões77

análogo às personagens de Qorpo Santo e, assim,

explorar uma leitura visual, uma interpretação

para o teatro de Qorpo Santo.

77 Os bufões e bobos são as personagens da cultura cômica da Idade Média.(...)Os bufões e bobos(...)não eram atores que desempenhavam seu papel no palco(...)eles continuavam sendo bufões e bobos em todas as circunst âncias da vida. BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich, A Cultura Popular na Idade Média: o Contexto de François Rabelais. São Paulo: Editora da Universi-dade de Brasília: Editora Hucitec, 1987. p. 7.

42

§18Pode-se deduzir uma comédia de

costumes desestruturada. Percebe-se na obra do

autor de Um Credor da Fazenda Nacional um

monólogo de fl uxo tão rápido quanto possível, sobre

o qual o espírito crítico do sujeito não faz qualquer

juízo, não se embaraça em seguida com qualquer

reticência, e que é tão exatamente quanto possível o

pensamento falado.78

Os textos de Qorpo Santo

estão fundados sobre meios de expressão

aparentemente irrefl etidos, e que só podem suscitar

irrupção por processos irracionais, do inconsciente,

do espontâneo, do fortuito ou do automatismo, fora

de toda sistematização e de toda codifi cação (Max

Ernst). Um estágio de incomunicabilidade

calcado no desgaste das suas possibilidades de

linguagem.

78 BRETON, André, Manifest o do Surrealismo (1924). Apud NADEAU, Maurice, Hist ória do Surrealismo. São Paulo: Pers-pect iva, 1985. p. 48.

§19É possível verifi car que esta seqüência

de analogias da obra de Qorpo Santo com as

vanguardas modernistas tem como tecido a

conjunção “e...e...e...” Há nesta conjunção força

sufi ciente para sacudir e desenraizar o verbo ser.79

Para descartar a expressão “ou isto ou aquilo”,

que estabelece que a obra de um autor é uma

coisa ou outra. Ela pode ser lida como uma coisa

e várias outras coisas, a partir da identifi cação

de elementos observáveis no interior dos objetos

estudados, que podem levar ao caminho criativo.

De onde vem? Aonde chegar? São questões

úteis. Não partir do zero, buscar começos, ou

fundamentos, implicam numa concepção da

viagem e do movimento a ser desenvolvido.

Inverter, portanto a linha do tempo

para induzir que os ismos modernistas, como o

surrealismo e o futurismo, por exemplo, sirvam

como fonte de inspiração para a transcriação de

uma dramaturgia teatral para outra dramaturgia

audiovisual.

79 DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix, Introdução: Ri-

zoma. In Mil Platôs (vol. 1). Rio de Janeiro: Editora 34, 1995.

p. 37.

43

§20Dentre as 17 peças que compõem a

obra dramatúrgica do gaúcho José Joaquim

de Campos Leão – auto-denominado Qorpo

Santo, é possível perceber certa noções

autobiográfi cas80 do dramaturgo que incluem

referências ao II Império e à Província do Rio

Grande. As peças teatrais encontram-se no

volume IV de sua Ensiqlopedia ou Seis Mezes

de uma Enfermidade, uma publicação folclórica,

impressa com problemas de revisão ortográfi ca e

ausência de planejamento gráfi co81, ou seja, uma

escrita primitiva, rústica.

O naturalista francês Auguste de Saint

Hilaire82 que esteve na segunda década do século

XIX em Porto alegre, publicou um livro sobre o

Rio Grande do Sul. Lá ele fala da rusticidade

do gaúcho. Uma rusticidade que o gaúcho até se

vangloria disso, de ser superior ao tempo, mas na

verdade sente frio como qualquer outro.83

8 A principal fonte a respeito de sua vida é a obra que im-primiu a suas expensas: a famigerada ou famosa Ensiqlopedia. Nela reproduziu inúmeros textos de cunho autobiográfi co (...). AGUIAR, Flávio, Op. Cit.p. 33.

81 Cf. AGUIAR, Flávio, Op. Cit. pp 36-37.

82 SAINT-HILAIRE, August e de, Viagem ao Rio Grande do Sul (182-1821). São Paulo : Comp. Ed. Nacional, 1939.

83 Da entrevist a realizada em 17 de Julho de 27, com Luiz Antônio de Assis Brasil, autor do romance Cães da Província.

Assis Brasil considera Porto Alegre

uma:

Cidade dos apelidos: o Velho da

Matraca, o Cabra-roxa, o Mal-acabado, o

Chico da vovó – este, célebre poeta - , o

Chaves-dos-óculos, o Barriga-me-dói, o

Bunda-amorosa, o José-mulher, o Toma-

largura, o Corre-com-o-saco, o Nariz-de-

papelão, o Pão-de-rala, o Trabuco, o Vareta,

ninguém escapa. Nem governadores-gerais

e presidentes: Lentilha, Diabo-coxo, D.

João Quinto, Sinhá-rosa, Cascudo.

Toda essa gente foi retratada pelo

artista Luiz Terragno, grande na arte

fotográfi ca, estabelecido na esquina das

ruas do Rosário e da Alegria, cuja grande

ciência consiste em botar seus modelos

rigidamente sentados, a cabeça segura

por duas hastes de ferro, ou então de pé,

a mão pousando sobre uma pilha de livros

encadernados; ali fi cam um tempo enorme

debaixo do sol fi ltrado com doçura por

uma chapa de vidro fosco, num intuito de

juntar à beleza a técnica mais esmerada,

como se faz em Paris.84

Qorpo Santo, que também foi um tipo

curioso da cidade, pode ter sido fotografado por

84 ASSIS BRASIL, Luiz Antônio de, Cães da Província, p. 16

Pistas para uma Posível

Biografia Fiqsional

44

Luiz Terragno85, referido por Assis Brasil em

seu romance Cães da Província, que tem como

uma das personagens protagonistas o autor da

Ensiqlopedia.

José Joaquim de Campos Leão – Qorpo SantoProvavelmente fotografado por Luís Terragno

(sem data)

85 Luiz Terragno, italiano, , foi um dos fotógrafos pioneiros do Rio Grande do Sul. Teria chegado a Porto Alegre em 1853 e sua carreira est endeu-se até meados dos anos 188.(...) É de autoria de Terragno uma série de retratos tomados entre 1865 e 1867 de personagens envolvidos na Guerra do Paraguai, como o imperador D. Pedro II e vários soldados paraguaios feitos prisio-neiros em Uruguaiana.´(...) É possível que seu último endereço tenha sido o da Rua General Câmara, 46. Cf. KOSSOY, Boris, Dicionário Hist órico-Fotográfi co Brasileiro. São Paulo: Inst ituto Moreira Salles, 22. p. 37-38.

§21Uma fotocópia da certidão da

Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de

Porto Alegre certifi ca que José Joaquim de Campos

Leão Corpo Santo:

Foi sepultado em 02 de maio de

1883. Branco, casado, teve como “causa

mortis”, tísica pulmonar. Foi sepultado no

Cemitério da Irmandade da Santa Casa

de Misericórdia, na sepultura nº 29 de

entre muros, no 6º quadro, após ter sido

transportado no 1º carro.

Esta cópia de certidão, porém, diz

que, nesta data, Qorpo Santo possuía 50 anos

de idade e em outra referência sugerem que sua

data de nascimento pode ter sido em 19 de abril

de 1829, na Vila do Triunfo, e sua morte ocorreu

em Porto Alegre, em 1º de maio de 188386.

De origem incerta, não interessa aqui

verifi car a veracidade desta certidão, mas sim

levantar uma possível biografi a fi ccional sobre

Qorpo Santo. Por exemplo, o próprio Qorpo

Santo em sua Ensiqlopedia escreve que:

A última capa publica uma

xilogravura, enquadrada numa cercadura

de vinhetas. Dita xilogravura representa

uma capela mortuária, na fachada da qual

se lê: “S [UBIU] AO CEO EM 7 DE

JUNHO 1863”. Nas portas da capela:

“C.S.A.S.J. de L.”

Ou seja, o próprio autor propõe uma

morte fi ccional para si mesmo.

86 Teatro Completo de Qorpo Santo, publicado pelo Serviço Nacional de Teatro, da Fundação Nacional de Arte, em 198.

45

§22Para começar a tatear pistas para

uma fi cção biográfi ca sobre Qorpo Santo,

uma referência utilizada foi o romance Cães

da Província, de Luiz Antônio de Assis Brasil.

A leitura deste romance levou-me a procurar

seu autor e realizar uma entrevista, quando foi

possível esclarecer alguns pontos sobre a vida do

dramaturgo do Século XIX. A carga fi ccional do

romance, possibilita a transformação do Qorpo

Santo histórico em Qorpo Santo fi ccional.

Na entrevista, os fatos foram relatados

através da memória de um escritor gaúcho, que

teve contato com o universo de Qorpo Santo;

que acompanhou as etapas do processo de resgate

da obra de Qorpo Santo; assistiu a primeira

montagem de suas peças, dirigidas por Antônio

Carlos de Sena, no Teatro do Clube de Cultura.

Além disso, Assis Brasil conheceu uma

neta de Qorpo Santo e também é neto de um

homem que foi contemporâneo de Qorpo Santo.

O avô de Assis Brasil - um antepassado pra ele -

era metido a poeta, mas referia-se a Qorpo Santo

como um pseudo-poeta e nunca falou em peças de

teatro. Esse avô de Assis Brasil falava do Qorpo

Santo nestes termos: “Ah! Tinha um louco aqui da

cidade, que subia pra casa dele colocando uma escada.”

§23Na época do Qorpo Santo, Porto Alegre

tinha por volta de 14000 habitantes. E Qorpo

Santo conhecia e era conhecido de todos.

Achylles Porto Alegre em seu Através

do Passado escreve que Qorpo Santo:

Era alto, magro, moreno, de uma

palidez de morte. Usava cabeleira comprida

como os velhos artistas da Renascença.

Morava, nos últimos tempos, na esquina

da Rua dos Andradas com a Ladeira,

onde está agora o “Metrópole Restaurant”

que, para ser o que é hoje passou por uma

completa transformação.87

Porto Alegre prossegue:

Era todo metido a aparecer nos

jornaes, ainda mesmo que a sua colaboração

custasse dinheiro. O que queria era ver

o seu nome em letra de fôrma. Era uma

mania como outra qualquer.88

87 PORTO ALEGRE, Achylles, Através do Passado. Porto

Alegre: Livraria Globo, 192. p. 31.

88 PORTO ALEGRE, Achylles, Op. Cit.p. 95.

Dona Fulana de qampos Leão:

bisneta de Qorpo Santo

46

O velho e feio prédio que pertenceu

a Qorpo Santo, fi cava onde hoje é o palacete

Chaves. Ele não era um homem pobre. Sua casa

fi cava na esquina da Rua dos Andradas, conhecida

como Rua da Praia com a Rua General Câmara,

conhecida como Rua da Ladeira, a mesma rua

do Teatro São Pedro89.

A casa de Qorpo Santo em Porto Alegre

já foi demolida, mas ele tinha um sobrado ali, e

era proprietário de mais quatro casas, subindo a

General Câmara.

Eram mesquinhos sobrados com

duas sacadas verdes, tendo ao meio em

letras grandes, os dois nomes Corpo Santo

(...) era o nome de um velho professor: José

Joaquim Leão de Corpo Santo, actualmente

89 (...)o edifício do teatro São Pedro. Aquele desenho sofi st i-cado, arcadas, ornamentos triangulares ao gost o francês. ASSIS BRASIL, Op. Cit. p. 164.

de memória tão ridicularisada pelos

intelectuaes. Todavia, antes do desequilíbrio

mental de que foi víctima, Corpo Santo foi

homem de certo valor e representação.90

E o Aníbal Damasceno Ferreira relata

um depoimento de uma pessoa que esteve na

casa do Qorpo Santo e se perdeu lá dentro da

casa e não achava a saída. Passou momentos de

terror. Era um tipo assim, um moleque que foi

levar um recado, alguma coisa assim.91

Muitos anos depois, sob o mesmo

tecto do sobrado, onde Qorpo Santo,

com espírito crepuscular, escreveu as suas

célebres insânias, funccionou a sede da

sociedade de lettras Ensaio Literário(...)92

9 PORTO ALEGRE, Achylles, Op. Cit. p. 31.

91 Da entrevist a realizada em 17 de Julho de 27, com Luiz Antônio de Assis Brasil.

92 PORTO ALEGRE, Achylles, Op. Cit.p.94.

Teatro S. Pedro, Rua General Câmara da Praça da Matriz - Porto Alegre entre 1870-1890.In PESAVENTO, 49

47

§24Qorpo Santo, até as encenações de

Antônio Carlos Sena, fora algum círculo

muito restrito de uns poucos intelectuais, era

desconhecido. A partir destas encenações passou

a ser conhecido. Surgiram polêmicas entre Janer

Cristaldo e Guilhermino César (crítico gaúcho

mais antigo e respeitado) e aqui e ali surgiram

alguns interesses. Começaram a publicar

alguma coisa, de tal maneira que QS não fi cou

esquecido, mas aquele momento passou e depois,

digamos, as pessoas do ramo conheciam e de vez

em quando encenavam, até que foi publicado

o romance Cães da Província em 1987. Então

houve um outro renascimento, muita gente se

interessou. Eurydice Silva Filho, que vive nos

EUA, escreveu uma tese sobre o Qorpo Santo.

Quando Assis Brasil escreveu Cães

da Província, não tinha muitas fontes. Tinha

fundamentalmente o livro do Guilhermino

César (Qorpo Santo – Teatro Escolhido), o qual

traz no início uma proposta de biografi a. Foi o

que ele conseguiu na época e não existia mais

nada sobre aquilo. Depois saiu um estudo do

Flávio Aguiar, mas Assis Brasil fez pesquisas

em arquivos para escrever o romance, que tem

muito de fi ccional.

Quando o romance foi publicado, em

1987 ou 1988, uma senhora telefonou para Assis

Brasil e disse:

- Meu nome é Fulana de Campos

Leão.

- Essa Senhora. deve ser parente do

Qorpo Santo.

Ela disse: a minha mãe é neta do

Qorpo Santo, Dona Nadir de Campos Leão.

Assis Brasil relata que era uma senhora

com seus 90 anos. Não era uma pessoa simplória,

não. Ela ofereceu café e conversou com o autor.

Ela disse algumas coisas sobre Qorpo Santo:

Olha! Eu não o conheci, mas a

minha avó eu conheci. Dona Inácia do

Qorpo Santo. Quando eu a conheci ela

tinha muita idade. Ela era uma velhinha

muito simpática, ensinava os netos a fazer

renda de bilro.

Sobre Qorpo Santo, ela disse que:

Um dia ele fi cou louco e expulsou

todo mundo de casa, exceto um fi lho, que

eu (Assis Brasil) não sabia que existia esse

fi lho, que era o pai dessa senhora. Parece

que chamava Francisco. QS expulsou de

casa a mulher e as três fi lhas. Aí ela disse

que QS fi cou com o fi lho, o cocheiro e o

cozinheiro.

Algumas coisas que Qorpo Santo

escreve na famosa Ensiqlopedia, denotam bem o

que ele quis dizer: houve um momento da minha

vida em que eu me afastei de todas as mulheres e

adotei o nome Qorpo Santo.

Assis Brasil complementa da seguinte

maneira:

Se tu me perguntares o que ele era.

Se era louco ou não. Aí que é o problema.

Impossível dizer. Em primeiro lugar dizer a

distância e dizer de uma forma categórica.

Eu diria assim: ele seria um esquisitão. Um

sujeito dado a manias. De fato, a gente

lendo a Ensiqlopedia, realmente é uma

loucura aquilo.93

93 Da entrevist a realizada em 17 de Julho de 27, com Luiz Antônio de Assis Brasil.

49

Uma Posibilidade de funsionamento da Masa Cinzenta de Qorpo Santo

11 horas; morreu em Porto Alegre a 1º de maio de 1883. Inquieto, de uma sensibilidade doentia, atormentado pelos problemas religiosos, sexuais, sociais, políticos e morais, sobre o apelido que acrescentou ao nome, diz-nos ele próprio:

“Se a palavra corpo-santo foi-me infiltrada em tempo que vivi completamente separado do mundo das mulheres, posteriormente, pelo uso da mesma palavra hei sido impelido para esse mundo.(...)95

Obcecado pela idéia fixa da santidade; tendo sofrido em menino, aos três anos, profundo choque moral; crendo-se perseguido pelas autoridades provinciais; reconhecida pela Justiça a sua insanidade mental, com a nomeação de um curador; vendo-se nesse desamparo, o pobre homem voltou-se para dentro de si mesmo, refugiou-se na literatura, e escreveu então uma autobiografia lancinante.

95 LEÃO, José Joaquim de Campos (Qorpo Santo), Teatro Completo. Rio de Janeiro: Serviço Nacional de Teatro – Funda-ção Nacional de Arte, 1980. p. 16

§25A pesar de inúmeros autores94

já terem se aventurado sobre sua obra, acho importante apresentar rapidamente o

Qorpo Santo:

José Joaquim de Campos Leão, conhecido como Qorpo Santo, nasceu na Vila do Triunfo, Província do Rio Grande, às margens do Rio Jacuí, em 19 de abril de 1829, às

94 Companhias de Teatro, Diretores de Teatro e Cineastas: Teatro do Clube de Cultura (Antônio Carlos de Senna), Boa Companhia (Verônica Fabrini), Cia São Jorge de Variedades (Georgete Fadel), Cia. Bonecos Urbanos (Carlota Joaquina), Depozito de Teatro (Roberto Oliveira), Teatro Giramundo (Ál-varo Apocalypse), Luís Carlos Maciel, Haroldo Marinho Bar-bosa, Eduardo Escorel - escritores e poetas: Luiz Antônio de Assis Brasil, Carlos Drummond de Andrade, Álvaro Moreyra, Achylles Porto Alegre; - pesquisadores e jornalistas que cons-truíram uma fortuna crítica sobre o autor: Gulhermino César, Flávio Aguiar, Eudynir Fraga, Denise Espírito Santo, Aníbal Damasceno Ferreira, Yan Michalski, Dario de Bittencourt, Julio Petersen, Júlio Zanotta Vieira, Janer Cristaldo, Décio Pignatari, Fausto Fuser, João Roberto Faria, Leda Maria Martins, Eurídi-ce Silva, Frank Hines, Lothar Hessel, Múcio Teixeira, Olyntho San Martin, Cláudio Heeman, Roque Callage (conhecido como passadista), Athos Damasceno Ferreira, Aldo Obino, Luís Au-gusto Fischer, Lúcia Carvalho Mello, João Batista Marçal, Luis Araújo Filho.

50

Como Jarry (1873 – 1903), criador da Patafísica96, viria a fazê-lo depois, o dramaturgo rio-grandense acomodava-se entre os extremos – realidade e ficção, lucidez e loucura, pondo a serviço da ação uma extraordinária capacidade inventiva cultivada em regiões abissais, onde as contradições desaparecem. Na obra de Qorpo Santo é perceptível uma predominância do modelo interior sobre o exterior, o aprofundamento da relação entre a arte e o mundo dos loucos, dos primitivos e da “arte infantil”.

96 A patafísica é a ciência das soluções imaginárias que con-fere simbolicamente aos contornos as propriedades dos objetos descritas pela sua virtualidade. JARYY, Alfred, Gestes et opinions du Docteur Faustroll. Paris: Fasquelle, 1968.

§26A produção dramatúrgica de Qorpo

Santo está localizada em Porto Alegre, isolada produção teatral brasileira do século XIX. Qorpo Santo, talvez sem ser percebido e sem perceber, constrói uma dramaturgia aberta, incompleta, inacabada, despedaçada, que permite e até exige a complementação de um encenador.

É como se encontrássemos numa escavação arqueológica fragmentos de peças teatrais do período. O dramaturgo gaúcho corrige-se no momento da impressão de seus textos, visto que as peças foram escritas em 1866 e sua impressão só se concretizou em 1877.

Flávio Aguiar coloca que Qorpo Santo escrevia os pequenos textos que mais tarde reuniria na Ensiqlopedia e que admitia estar na verdade, perdendo tempo97. Sua verborragia se desenha em milhares de palavras que permeavam sua imaginação, como uma espécie de compensação.98

Aguiar coloca que QS:Fragmentou sua visão das coisas e do

mundo nos milhares de pequenos “verbetes”(...). Cada um desses “verbetes”, que se apresentam misturados temática e formalmente, tirou do conjunto da Ensiqlopedia qualquer caráter narrativo. Ou seja: ela não possui princípio, nem meio, nem fim, no sentido de uma sucessão organizada e necessária de textos.99

97 AGUIAR, Flávio, Os Homens Precários: inovação e conven-ção na dramaturgia de Qorpo Santo. Porto Alegre: Instituto Esta-dual do Livro, 1975. p. 69.98 LEÃO QORPO SANTO, Jozé Joaquim de Qampos, En-siqlopedia ou Seis Mezez de Huma Enfermidade (II, 12, 2, 4º.), apud AGUIAR, Flávio, idem ibid.99 Idem ibid.

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É possível comparar os verbetes que Qorpo Santo escreveu em sua Ensiqlopedia com instantâneos fotográficos, que foram montando uma obra de natureza fragmentária. As peças teatrais, que constam do volume IV da Ensiqlopedia, foram escritas entre Janeiro e Junho de 1866. São textos e personagens que se apresentam como unidades reorganizáveis e podem possuir um caráter fotográfico100. As personagens da dramaturgia qorposantense podem ser entendidas como verbetes de sua Ensiqlopédia.

Isto é perceptível na peça A Impossibilidade da Santificação; ou a Santificação Transformada. As falas das personagens estruturam-se como verbetes da Ensiqlopédia, ou seja: as personagens vão aparecendo em cena e suas falas podem ser consideradas uma espécie de significação de cada personagem, sobretudo na última cena da peça, na qual aparecem nada menos do que 12 personagens, que nem sequer haviam sido incluídos nas cenas anteriores. É como se fosse uma lista de personagens que vão sendo definidos, de acordo com o que falam. Estes pedaços de textos de Qorpo Santo, que pretendem compor, de modo peculiar, um daguerreótipo moral101 da sociedade gaúcha de seu tempo, podem ser reordenados gerando novas dramaturgias.

Aguiar considera, ainda, a obra de QS um passatempo enganador, aqui e ali seus pequenos textos assumiam um comportamento errático, desviando-se da rota original e provocando pequenas explosões de um outro sentido.102 A

100 AGUIAR, Flávio, Op. Cit., p. 70.101 (...) o “daguerreótipo moral”, isto é, a peça que fotografa a realidade, mas adicionando ao retrato a pincelada moralizadora. FARIA, João Roberto, Idéias Teatrais: o século XIX no Brasil. São Paulo: Perspectiva: FAPESP, 2001. p.103.102 AGUIAR, Flávio, Op. Cit., p. 71.

peça Certa Entidade em Busca da Outra, constitui um desses exemplos. O texto de Qorpo Santo coloca em cena as relações entre rascunhos de personagens que buscam suas identidades ainda incompletas, apoiando-se na perseguição de uma personagem pela outra. Parafraseando Artaud, os temas das peças de Qorpo Santo são vagos, artificiais. O que lhes dá vida é o desabrochar103 de conflitos essenciais, que se desencadeiam descontinuamente, interrompendo muitas vezes um pensamento que se desenvolve através da ação dramática.

103 ARTAUD, Antonin, O Teatro e seu duplo. São Paulo: Ed. Max Limonad Ltda., 1987. p. 72.

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A Enciclopédia escrita por Qorpo Santo e impressa em sua tipografia105, reúne, além de sua dramaturgia, todo um projeto de pensamento sobre o mundo. Qorpo Santo ambicionava realizar uma reforma em inumeráveis aspectos da vida de sua sociedade, pátria e até da humanidade. Qorpo Santo:

produziu numerosos trabalhos sobre todas as ciências, compondo uma obra de mais de 400 páginas, além de interpretar diversos tópicos do Novo Testamento de N. S. Jesus Cristo, que até aos próprios Padres ou sacerdotes pareciam contraditórios! 106

Uma obra maior do que suas possibilidades, um projeto que abrangia:

O estudo da História Universal; da Geografia; da Filosofia, da Retórica - e de todas as outras ciências e artes que o podiam ilustrar. Estudou também um pouco de Francês, e do Inglês; não tendo podido estudar também - Latim,

105 Em 1877, conforme termo de responsabilidade existente no Arquivo da Prefeitura Municipal de Porto Alegre, abria-se na cidade uma tipografia, à Rua General Câmara. (...) O certo é que a Tipografia Qorpo Santo foi mesmo instalada naquela rua, e do seu prelo saíram, ao que sabemos, os fascículos de uma publicação que o autor chamou de Enciclopédia ou Seis Meses de uma Enfermidade. Idem Ibid.106 Ato Primeiro – Cena Primeira da peça Hoje sou um; e amanhã sou outro, pág. 115.

§27O fascículo I da Enciclopédia ou

Seis Meses de uma Enfermidade traz a seguinte informação:

“JOZÈ JOAQUIM DE QAMPOS / LEÃO QORPO SANTO. / ENSIQLOPÉDIA: / OU / SEIS MEZES DE UMA ENFERMIDADE / VOLUME 2. / PENSAMENTOS EM 100 PÁJINAS DE DUAS COLUNAS DE 60 LINHAS CADA HUMA, / DE VINTE QUADRATINS CADA LINHA RÉIS...5$000. / PRODUÇÕES, COM RARAS EXCEPÇÕES DO 1º DE SETEMBRO / DE 1862, ATÉ O 1º DE JUNHO DE 1864, NA VILA / DO TRIUNFO. // TIPOGRAFIA / QORPO SANTO. / Porto Alegre, Maio 2 de 1877.”104

104 CÉSAR, Guilhermino, O criador do teatro do absurdo. In Qorpo Santo: José Joaquim de Campos Leão – Teatro Completo. Rio de Janeiro: Serviço Nacional de Teatro, Fundação Nacional de Arte, 1980. p. 40.

O Rei da Confuzão

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conquanto a isso desse começo, por causa de uma enfermidade que em seus princípios o assaltou. Lia constantemente as melhores produções dos Poetas mais célebres de todos os tempos; dos Oradores mais profundos; dos Filósofos mais sábios e dos Retóricos mais brilhantes ou distintos pela escolha de suas belezas, de suas figuras oratórias!107

Décio Pignatari acha que o autor gaúcho tinha uma telha a menos (ou a mais)108; João Roberto Faria considera Qorpo Santo o “louco manso dos pampas”109. Não interessa aqui tratar da loucura110 de Qorpo Santo, mas acredito ser interessante tentar imaginar o funcionamento da massa cinzenta do gaúcho escritor. Como seria o pensamento deste homem de produção obsessiva?

Como os dois alienistas do romance de Luiz Antônio Assis Brasil quiseram abrir a massa cinzenta111 de Qorpo Santo, também eu sempre me interroguei por que a obra teatral de Qorpo Santo, à primeira vista, não se comunica diretamente com um expectador/

107 Idem ibid.108 PIGNATARI, Décio, Qorpo Santo. In Contracomunicação. São Paulo: Perspectiva, 1971. p. 120.109 FARIA, João Roberto, O Teatro na Estante. Cotia: Ateliê Editorial, 1998. p. 77.110 Isto é, loucura só existe com relação à razão, mas toda a verdade desta consiste em fazer aparecer por um instante a lou-cura que ela recusa, a fim de perder-se por sua vez uma loucura que a dissipa. (...) Pois se existe razão é justamente na aceita-ção desse círculo contínuo da sabedoria e da loucura, é na clara consciência de sua reciprocidade e de sua impossível partilha FOUCAULT, Michel, História da Loucura. São Paulo: Editora Perspectiva, 2004. p.33.111 (...)Você veja as insanidades que ele tem feito, malbara-tando os bens, afugentando os alunos, entrando em casa pelas janelas e não pelas portas, o que você quer mais? Se abríssemos sua massa cinzenta cerebral encontraríamos ali a causa de tudo. ASSIS BRASIL, luiz Antônio de, Cães da Província. 7ª. Edição. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1997. p. 92

leitor desavisado? O conjunto das peças do autor traça um caminho aparentemente linear e revela a inteligência112 do autor. Em muitas delas, no entanto, percebemos becos e ruas percorridas sem continuidade e sem saídas.

112 Mas não no sentido que você pensa, em inteligência como sinônimo de sabedoria; falo de inteligência como capacidade de raciocínio e de atenção nas coisas, não em conhecimento pro-fundo ou em particular agudeza de espírito. Idem, p. 91.

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§29No Segundo Ato da peça Um Parto, a

personagem Ruibarbo verbaliza como poderia ser o funcionamento da escrita de Qorpo Santo e um pouco de seu pensamento sobre a reforma ortográfica115 que propõe em sua enciclopédia:

RUIBARBO - Eu me explico: Quando escrevo, penso, e procuro conhecer o que é necessário, e o que não é; e assim como, quando me é necessário gastar cinco, por exemplo, não gasto seis, nem duas vezes cinco; assim também quando preciso escrever palavras em que usam letras dobradas, mas em que uma delas é inútil, suprimo uma e digo: diminua-se com esta letra um inimigo do Império do Brasil! Além disso, pergunto: que mulher veste dois vestidos, um por cima do outro!? Que homem, duas calças!? Quem põe dois chapéus para cobrir uma só cabeça!? Quem usará ou que militar trará à cinta duas espadas! Eis por que também muitas vezes eu deixo de escrever certas inutilidades! Bem sei que a razão é - assim se escreve no Grego; no Latim, e em outras línguas de que tais palavras se derivam; mas vocês que querem, se eu penso ser assim mais fácil e cômodo a todos!? Finalmente, fixemos a nossa Língua; e não nos importemos com as origens!

Para João Roberto Faria, o teatro de Qorpo Santo é o teatro do homo ludens, isto

115 Em sua reforma ortográfica da língua portuguesa simpli-ficava a escrita de tal modo que cada fonema articulado sonora-mente corresponderia a um único símbolo gráfico. Era o fim dos “SS”, “RR”, “Ç” e outros desperdícios de tinta. Daí lhe viera a grafia especial da alcunha (Qorpo Santo) e do nome Jozé Joaqim de Qampos Leão. AGUIAR, Flávio, Op. Cit.p. 25.

§28Uma visão abrangente das peças de

Qorpo Santo permite perceber o emaranhado em que possivelmente se encontrava a mente do dramaturgo. Um espírito criador que avançava em uma frente ampla e deixava muitas opções em aberto. Com um ponto de vista do conjunto das peças de Qorpo Santo, sem focalizá-las de maneira isolada, é possível elaborar a idéia de um pensamento emaranhado. Uma efervescência de idéias criativas, nem sempre acabadas, que conferiam ao autor uma rapidez na escritura, haja vista que suas dezessete peças foram escritas nos primeiros seis meses de 1866.

Qorpo Santo escrevia suas peças em um dia, ou em uma noite, sendo que as peças Lanterna de Fogo e Certa Entidade em busca de Outra, por exemplo, foram escritas no dia 10 de Maio daquele ano. É como se o autor tivesse passado um tempo em devaneio e como um reformador social113, desejando igualar-se aos comediógrafos brasileiros oficiais do Século XIX114.

113 É quando sua mente começa a trabalhar com mais ener-gia; é quando descobre em si mesmo, nos destroços morais do professor impossibilitado de ter alunos, um reformador social em germe. CÉSAR, Guilhermino, op. cit., p. 25.114 (…)entre 1855 e 1865, em que a alta comédia foi a meta de alguns escritores brasileiros, desejosos de atribuir ao teatro o papel de reformador da sociedade. FARIA, João Roberto, O Teatro na Estante. Cotia: Ateliê Editorial, 1998. p. 76.

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é, um teatro que valoriza o jogo dramático, a representação, o trabalho do ator.116 Desta forma é possível inferir que em Qorpo Santo a escritura aparece como um jogo cujas regras vão sendo formuladas à medida que progredimos, e uma visão clara de seu uso só surgirá depois de terminada uma busca criadora.117.

Qorpo Santo, um tipo folclórico de Porto Alegre, começou a escrever peças sem pé nem cabeça, inventando um mundo ideal, quixotesco. Qorpo Santo viveu sua vida como ela poderia ter sido. Junto com sua obra surgiram histórias contadas que acabaram conservadas pela tradição oral, o que se refletiu em suas peças, por meio de uma linguagem direta, onde a retórica prima pela paródia. Em sua Enciclopédia, uma espécie de caricatura verbal impressa, Qorpo Santo fazia uma inversão de tudo, criticava instituições, religião, o intrincado da lei, demolindo um universo com um turbilhão de palavras do qual não conseguia se desvencilhar.

116 FARIA, João Roberto, op. cit., p. 87117 EHRENZWEIG, Anton, A ordem oculta da arte: um estudo sobre a psicologia da imaginação artística. Rio: Zahar Editores, 1969. p. 52.

§30É possível afirmar que Qorpo Santo

roubou de suas personagens o conteúdo das falas, permitindo o esvaziamento de seus significados e relegando o texto à sua forma. Isto faz com que o desencadeamento dos conflitos, nas peças de Qorpo Santo, não esteja ligado ao conteúdo das falas, mas sim a outros níveis de linguagem, quer seja dentro da própria estrutura idiomática, atingindo profundamente sua dramaturgia, expressando um automatismo na escrita que constrói personagens e narrativas, onde vários textos podem acontecer, simultaneamente.

Parte I IPara juntar os Pedasos do Qorpo Santo

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§31A proposta de construir um

pensamento-visão de Qorpo Santo pode ancorar-se na idéia de que seu processo

criativo funcionaria como um fluxo descontínuo de imagens episódicas, ordenado por acontecimentos que se desenham num devaneio puntiforme e linear, cujo ponto de partida se perde na medida em que nos afastamos dele. Sua linearidade desaparece dando lugar a uma seqüência de imagens justapostas numa cortina de retalhos.

O modo proposto para a transcriação da dramaturgia teatral para uma outra de suporte audiovisual seria o de produzir as cenas a partir de imagens fixas118. As imagens estáticas selecionadas serviram como pontos de apoio para, posteriormente, acrescentar imagens em movimento e som à narrativa.

A utilização de diversas fontes textuais incluiu linguagens imagéticas como

118 Sabe-se que um filme é constituído por um enorme nú-mero de imagens fixas chamadas fotogramas, dispostos em se-qüência em uma película transparente; passando de acordo com um certo ritmo em um projetor, essa película dá origem a uma imagem muito aumentada e que se move. AUMONT, Jacques e outros, A Estética do Filme. Campinas: Papirus, 1995.p. 19.

estímulo criativo, num processo em que cada estágio exposto não ansiava um resultado final fechado, mas sim mais uma parte integrante do processo criativo desenvolvido. A justaposição de referências aparentemente inconectáveis, que se apresentaram durante o processo de pesquisa, tornaram-se passíveis de interação. Os agenciamentos119 entre imagens fotográficas, caricaturas, pinturas e dramaturgia, integraram elementos numa colagem onde o que já estava pôde ser aproveitado e o devir foi aglutinador.

O estudo do Qorpo Santo, montado a partir de imagens imóveis, para a posterior elaboração de imagens em movimento. Em outras palavras, nesta espécie de jogo de imagens e textos pré-determinados reelaborei a dramaturgia de Qorpo Santo, criando um jogo imaginário/textual, como um story board. Estas seqüências de textos e cenas serviram como planejamento visual de um roteiro criado a partir de trechos das peças teatrais de Qorpo Santo, que podem construir um recorte do autor, sem pretensões de retratar um Qorpo Santo histórico, mas um Qorpo Santo personagem.

Experiência de desentender o texto, esvaziar o seu significado para devolvê-lo na

119 Cf. DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix, Introdução: Rizoma. In Mil Platôs (vol. 1). Rio de Janeiro: Editora 34, 1995. pp. 11-12.

Um Pensamento-Vizão de Qorpo Santo

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seqüência com outra significação. Os monólogos de Qorpo Santo tentam dizer algo carregado de significados, contudo, devido à sua prolixidade, tornam-se vazios de conteúdo o que permite que o texto seja jogado fora. Sua libido, sua energia desagregam a racionalidade do texto e conduzem a uma verborragia que esgota os textos. O texto acaba desligado do que o Qorpo Santo quis dizer.

§32Tendo nas mãos imagens dos quadros

de James Ensor, estruturei uma peça audiovisual que devolva os significados para o texto de Qorpo Santo, inicialmente através de uma equivalência do material imagético de Ensor e o do texto de Qorpo Santo. A partir das imagens e dos textos construí um story board.

A conexão entre Qorpo Santo e Ensor possui uma analogia estética pertinente. Trabalhei a relação entre o espaço da tela de Ensor e a rubrica da cena desenvolvida por Qorpo Santo para transcriar da obra de Qorpo Santo para a linguagem audiovisual. Como no filme Prospero’s Book de Peter Greenway, que transpõe a Tempestade de Shakespeare para a linguagem do cinema, sem tentar uma passagem literal da linguagem teatral para a cinematográfica. Teatro e pintura virando uma peça audiovisual.

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§33Devolvi o significado aos textos de

Qorpo Santo construindo pontes entre as pinturas, criando uma estrutura narrativa, amparada nos textos que produzem um imaginário. A sugestão dada por um texto do Qorpo Santo que liga uma tela de James Ensor à outra. Também recuperei referências visuais ligadas ao ambiente de Porto Alegre à época em que Qorpo Santo escreveu suas peças. Puxar a Guerra do Paraguai e um lado obscuro de Porto Alegre deste período.

Para a composição dramatúrgica, portanto, o ponto de partida foi a estruturação de um roteiro e a interferência nas obras de Ensor e outras imagens que possam dialogar com a escritura de Qorpo Santo, elaborando uma colagem de figuras que compõem o universo do autor gaúcho. Ensor, apesar de ser estático, possui uma potencialidade dramática interessante; suas máscaras, a colocação de personagens como num palco italiano. As imagens foram selecionadas de modo a constelar uma imaginação da obra de Qorpo Santo permeando as cenas e desenrolando o fio condutor da ação. No entanto, esse fio em vez de fluir afrouxa-se, podendo ser interrompido, causando a impressão de que a linearidade da dramaturgia estará sempre sob a ameaça de ser rompida.

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§34O bservando uma rubrica da peça

de Qorpo Santo ‘Duas páginas em branco’ (Ato Primeiro – Cena Primeira):

aparecem duas moças, uma assentada sobre uma mesa, outra em uma cadeira; uma luz em cima daquela; e um moço, em pé, ensinando a que está assentada. Chamaremos a uma – Mancília, à outra – Esterqulínia; ao moço, Espertalínio.120

E indicações do Ato Primeiro da peça ‘Eu sou vida, eu não sou morte’:

Fazendo trinta mil caretas para falar, e sem poder ultimamente desprende as seguintes palavras: ‘Ah, mulher, mulher! Diabo, diabo!‘ Mete a mão na algibeira da calça, puxa e aponta um revólver. Passa a derramar lágrimas por um espaço de cinco minutos. Derruba o revólver no chão.121

120 Rubrica de ‘Duas páginas em branco’, Ato Primeiro – Cena Primeira. In LEÃO, José Joaquim de Campos (Qorpo Santo), Teatro Completo. Rio de Janeiro: Serviço Nacional de Teatro – Fundação Nacional de Arte, 1980. p. 355.121 Trecho de ‘Eu sou vida, eu não sou morte’, Ato Pri-meiro. In LEÃO, José Joaquim de Campos (Qorpo San-to), Op.cit. p. 129.

Uma serta Teatralidade na Pintura

É possível perceber, nestas rubricas, uma construção que detalha a cena visualmente, proporcionando ao leitor e ao encenador minúcias para a mise-en-scène, tanto no que diz respeito à composição da imagem, como no que concerne ao movimento e até ao tempo de desenvolvimento cênico.

Com a noção de que algumas imagens construídas por Qorpo Santo em suas peças têm uma visualidade passível de ser desenhada ou pintada, percebi uma possibilidade de aproximá-las de pinturas e ao me deparar com reproduções da obra de Ensor notei analogias quase literais das composições de imagens. Não apenas no que diz respeito à teatralidade122 da imagem, mas nas possíveis sugestões que as imagens de Ensor podem oferecer: quem são as personagens construídas pelas narrativas imagéticas? Como estas personagens estão integradas aos cenários representados nas pinturas?

122 Como esclarece Patrice Pavis, grande teórico e analista do fenômeno teatral, “a teatralidade seria aquilo que na repre-sentação ou no texto dramático, é especificamente teatral (ou cênico) (...) a teatralidade pode opor-se ao texto dramático lido ou concebido sem a representação mental de uma encenação. Em vez de achatar o texto dramático por uma leitura, a espa-cialização, isto é, a visualização dos enunciadores, permite fazer ressaltar a potencialidade visual e auditiva do texto, apreender sua teatralidade” (patrice Pavis, Dicionário de Teatro, São Paulo, 1999). Apud LEÃO, José Joaquim de Campos (Qorpo Santo), Teatro Completo. São Paulo: Editora Iluminuras, 2001. p. 12.

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§35A criação de personagens em Qorpo

Santo é fundamental. Parece que o dramaturgo gaúcho parte da criação de suas personagens para chegar às situações que compõem suas peças que, em alguns casos são esboços de pequenos roteiros, alguns deles inacabados. Também existe uma preocupação do autor em utilizar enquadramentos onde são inseridos grupos de personagens, criando imagens anti-heróicas.

Desta forma, é possível que as personagens possam existir antes da elaboração de um texto dramatúrgico ou de um roteiro e este ser construído a partir de suas características tiradas da observação de imagens associando-as às narrativas propostas em textos compilados. O roteiro pode, também, ter sua forma já estruturada, enquanto seqüência narrativa e, por sua vez, as personagens serem construídas no desenrolar das cenas. Assim, realizei uma garimpagem de textos nas peças de Qorpo Santo, procurando justapor os textos às imagens de algumas pinturas de James Ensor, bem como de procedências diversas que possam adequar-se ao objetivo deste trabalho.

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O Jogo do Qorpo Santo

§36P arece interessante apresentar

os procedimentos de desenvolvimento dos diversos roteiros elaborados para a

produção de uma dramaturgia audiovisual.

Inspirado em diferentes fontes imagéticas pesquisadas e textos dramatúrgicos de Qorpo Santo, provenientes de um processo criativo, os caminhos traçados na Parte I tiveram como objetivo o levantamento de informações para chegar à Parte II, onde passo a apresentar as etapas do processo de criação da peça audiovisual.

O processo de roteirização realizado não se resumiu a um roteiro pré-estabelecido e cristalizado. Foi um processo dinâmico, vivo. A cada estágio apresentaram-se reelaborações necessárias para a concretização da criação. Assim, o roteiro inicial serviu como ponto de partida para a confecção da peça final.

Elaborando um painel múltiplo das expressões identifiquei dois elementos básicos: a imagem e a palavra. Considerando esses elementos como matrizes pude compor uma

dramaturgia. Tendo a idéia de audiofotonovela123, que Décio Pignatari propõe, imaginei um jogo que combinasse as narrativas das imagens e dos textos selecionados para a elaboração do argumento e do story board apresentados em anexo.

123 Há muitos anos, já vem o cineasta Lima Barreto recla-mando para o roteiro cinematográfico o título de novo gênero literário narrativo, ao lado dos gêneros tradicionais: o conto, a novela, o romance. E Guimarães Rosa utilizou elementos da técnica do script em Cara de Bronze. Dando seguimento a essa idéia, publicamos o script de um novo gênero de espetáculo nar-rativo: a audiofotonovela. (...) a audiofotonovela é um médium a meio caminho entre a fotonovela e o cinema falado; entre a baixa definição de imagem daquela e a alta definição deste. PIGNATARI, Décio, Contracomunicação. São Paulo: Perspecti-va, 1973. pp.75-76.

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§37Todo jogo tem suas regras. Tais regras,

em alguns casos, são mais rígidas, em outros, mais flexíveis. No caso do jogo proposto para a construção da peça audiovisual, retomei a história elaborada como argumento inicial e imaginei um número limitado de imagens estáticas que contassem a narrativa, como se fosse uma fotonovela.

Para Décio Pignatari:

Na fotonovela, em geral, a estrutura é centrada em torno de uma figura feminina, cujos anseios, sentimentos se bifurcam :primeiramente em direção ao amor-sonho, que ao depois se revela amor-frustração ou amor-vilão: em seguida, dirige-se ao amor-fiel, ao amor-segurança e ruma para o happy-end: vence a disposição de sistemarsi – como dizem os italianos – ou seja, inserir-se no contexto (via matrimônio). 124

No caso do audiovisual realizado para esta tese, a idéia inicial gira em torno das figuras de personagens sonhadas por Qorpo Santo de onde saem outras imagens e textos que seguem os roteiros apresentados em anexo.

As imagens estáticas selecionadas serviram como pontos de apoio para, posteriormente, acrescentar movimento e som

124 PIGNATARI, Décio, Idem, ibid.

à história. Uma forma de montar uma collage125 para criar uma peça dramatúrgica.

Simultaneamente, fui realizando algumas colagem com imagens que pudessem ou não ser colocadas lado a lado com falas de personagens, rubricas e textos das peças de Qorpo Santo. As outras analogias texto/imagem valeram-se das necessidades que foram sendo demandadas durante o processo de elaboração do story-board e da produção da peça audiovisual em si.

Em seguida, das imagens utilizadas na colagem, algumas foram descartadas e outras selecionadas para serem justapostas aos textos escolhidos, já imaginando uma narrativa que induzisse à confecção do audiovisual.

125 Numa primeira definição, collage seria a justaposição e colagem de imagens não originalmente próximas, obtidas atra-vés da seleção e picagem de imagens encontradas, ao acaso, em diversas fontes. COHEN, Renato, Performance como Lingua-gem. São Paulo: Perspectiva, 1989.

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§38As inúmeras variáveis que vão

aparecendo no decorrer desse quebra-cabeça, levaram-me a gravar imagens em vídeo que fizesse as pontes de ligação entre as imagens estáticas. Foi elaborada, então, uma história um tanto aleatória, principalmente quando me deparei com um jogo por construir, no qual as etapas posteriores mostraram-se incertas. Esta incerteza abriu-se numa rede de possibilidades onde os roteiros iniciais se defrontaram com um texto aparentemente sem lógica que as imagens selecionadas e gravadas em vídeo apresentaram. O quebra-cabeça teve que ser reorganizado e nesse ponto o story board foi refeito como um instrumento valioso no momento da edição de imagens e sons, onde a inclusão das vozes em off e da trilha sonora afinaram o tom e o ritmo do audiovisual.

§39O trabalho desenvolveu-se como se os

verbetes da Ensiqlopedia de Qorpo Santo fossem instantâneos fotográficos. Dessa forma, troquei uma referência pela outra (instantâneos, verbetes, personagens). A inversão que é possível fazer na significação das coisas. A palavra verbete é uma significação que se encontra num dicionário, mas eu posso mudar o significado da palavra verbete e utilizá-la como definição de uma personagem, ou de uma cena que pode ser representada por uma imagem e vice-versa.

Tal como na fotomontagem de Valério Vieira (§7), Qorpo Santo aparece multiplicado nas cenas de suas peças. Por vezes, uma personagem define-se a si mesma, por outra uma personagem define a outra através de sua fala. São personagens que, de um momento para o outro, começam a raciocinar contra a regra do jogo proposto em cena.126

As personagens de Qorpo Santo são entidades escritas; são animais que não vivem, mas que assistem sua vida através de uma lógica infernal127 chamada nonsense. São entes compostos por letras; são sistemas de signos numa lógica em agoniado conflito com sua realidade e consigo mesmas.128

126 PIGNATARI, Décio, Op. Cit. p.172.127 Idem.128 PIGNATARI, Décio, Op. Cit. pp. 170-171.

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§40A palavra Contimpina, por exemplo:

na edição do Teatro Completo de Qorpo Santo, com notas organizadas por Guilhermino César, encontra-se a seguinte referência ao termo: Não sabemos o que seja. Trata-se de uma combinação de letras e sons que podem definir a imagem de uma personagem. Qorpo Santo define sua personagem através da fala de Brás como o meu rapaz, o meu Ferrabrás; o meu contimpina, que de dia dorme, e de noite maquina! (Certa Entidade... Ato Primeiro)

Ferrabrás é o filho de Brás que vive falando de suas namoradas e trata o pai com sarcasmo e desdém. É possível, então, atribuir o significado de sujeito insolente, zangado, malandro, ingrato, como forma de definir esta personagem e, em seguida, encontrar uma imagem que signifique estas características.

§41Com esse procedimento, capturei as

relações entre as materialidades das personagens-verbetes e as imagens que encontrei desde a elaboração do primeiro roteiro até a edição da peça audiovisual. Considerei o verbete como um instantâneo fotográfico que congela uma personagem ou uma cena numa pintura, fotografia ou gravura. A personagem ou a cena pode ser um verbete, que pode ser uma imagem.

Nessa toada, a imagem que identifiquei como seminal para gerar novas associações texto-imagem foi Esqueletos que disputam um Enforcado, de James Ensor, pois ela coincide com a cena final da peça As Relações Naturais, de Qorpo Santo.

§42Não mostrei literalmente uma das

peças do autor gaúcho, mas segui o pressuposto de André Bazin de que o cinema pode induzir uma peça teatral a tornar-se cinema e assim gerar uma nova obra, diferente da primeira.129 Desta forma, a idéia foi apresentar um roteiro para a realização de uma peça audiovisual, colocando lado a lado os trechos selecionados de algumas peças teatrais que devolvem um sentido para a narrativa audiovisual. Um roteiro que permita realizar imagens percebidas nas peças de Qorpo Santo.

Os trechos selecionados para o audiovisual foram retirados das peças: As Relações Naturais; Um Parto; Duas Páginas em Branco; Eu sou vida, eu não sou morte; Certa Entidade em busca da outra; Hoje sou um; e amanhã outro; Lanterna de Fogo, mas também acrescentei frases e rubricas que considerei pertinentes, de acordo com a necessidade de criação. Escolhi textos de Qorpo Santo ou de artistas que fizeram referências a ele.

Procurei colar os textos escolhidos, incluindo diálogos das peças de Qorpo Santo. Todavia, levando em consideração que o texto teatral tende ao teatro e uma possível tentativa de transformá-lo em cinema pura e simplesmente pode esvaziar a obra.130, pretendi eliminar os diálogos e substituí-los pelas ações das personagens encontradas, sobretudo nas rubricas das peças selecionadas.

129 BAZIN, André, Teatro e Cinema. In O Cinema – Ensaios. São Paulo: Editora Brasiliense, 1991.p. 127.130 BAZIN, André, Teatro e Cinema. In O Cinema – Ensaios. São Paulo: Editora Brasiliense, 1991.p. 130.

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§43O objetivo deste trabalho foi

reescrever a dramaturgia de Qorpo Santo pensando numa escritura adequada à linguagem

audiovisual131, como suporte possível para reimaginá-la. Assim surgiu a idéia de imaginar um emaranhado de textos. Isto fez com que o desencadeamento dos conflitos passasse a ser um jogo de desentendimento das palavras132 e permitisse que a ação dramática conduzisse as personagens, elaborando uma lógica aleatória. A idéia de texto aleatório trouxe uma aproximação com obras do Teatro do Absurdo. Considerando que o Teatro do Absurdo roubou de suas personagens o conteúdo das falas é possível

131 Adjetivo e, no mais das vezes, substantivo, que designa (de modo bem vago) as obras que mobilizam, a um só tempo, imagens e sons, seus meios de produção, e as indústrias ou ar-tesanantos que as produzem. O cinema é, por natureza, “audio-visual” (...). AUMONT, Jacques e MARIE, Michel, Dicionário Teórico e Crítico de Cinema. Campinas: Papirus, 2003. p. 25.132 Ora, mudar a destinação da palavra no teatro é servir-se dela num sentido concreto e espacial, na medida em que ela se combina com tudo que o teatro contém de espacial e de sig-nificação no domínio concreto; é manipulá-la como um obje-to sólido e que abala as coisas, primeiro no ar e depois num domínio infinitamente mais misterioso e secreto mas amplo, e não é muito difícil identificar esse domínio secreto porém amplo com o domínio da anarquia formal, de um lado, mas também, de outro com a criação formal contínua. ARTAUD, Antonin, Op. Cit., p. 95.

observar um esvaziamento de seus significados, o que relega o texto à sua forma. Este procedimento pode ser um meio para conseguir outras leituras dos textos, quer seja em outros níveis de linguagem133 (corporais, pictóricos, imagéticos etc.), quer seja dentro da própria estrutura idiomática, alcançando a dramaturgia.

133 Portanto, longe de restringir as possibilidades do teatro e da linguagem, sob o pretexto de que não encenarei peças escritas, eu amplio a linguagem da cena, multiplico suas possibilidades. ARTAUD, Antonin, Op. Cit., p. 142.

qolagem: Dramaturgia e Imagem

70

§44As imagens do pintor James Ensor

apareceram como fonte de inspiração para a criação das personagens e mise-en-scène.

A partir do grotesco134 das figuras expostas nas pinturas de Ensor foi possível pesquisar expressões devolvendo conteúdos visuais para a obra de Qorpo Santo. Na obra do dramaturgo gaúcho, o som de palavras que o feriram135 começou a se desenvolver, guiando seus passos e colocando em cena rascunhos de personagens que buscam suas identidades ainda incompletas. Este caráter inacabado das peças de Qorpo Santo torna possível a justaposição dos textos de Qorpo Santo com pinturas – inicialmente de James Ensor. Apesar de viverem em localizações geográficas totalmente diversas, os dois artistas carregam traços em suas obras as quais podem servir de pretexto para desencadear um processo criativo.

Diferentemente do ostracismo de Qorpo Santo, James Ensor:

em seus últimos anos foi homenageado por várias sociedades de

134 O grotesco tomará todos os ridículos, todas as enfermida-des, todas as feiúras. Nesta partilha da humanidade e da criação, é a ele que caberão as paixões, os vícios, os crimes,; é ele que será luxurioso, rastejante, guloso, avaro, pérfido, enredador, hipócri-ta; é ele que será alternadamente Iago, Tartufo, Basílio; Polônio, Harpagão, Bartolo; Falstaff, Scapino, Fígaro. HUGO, Victor, Do Grotesco e do Sublime: tradução do prefácio de Cromwell. São Paulo: Perspectiva, 1988. p. 33.135 “É para mim problemático – se meu corpo até esse mo-mento era pura carne animada de um pouco de espírito, ou se já nele existia o Santo que na idade de trinta e quatro anos su-biu ao Céu; o qual ao som de palavras que o feriram começou a desenvolver-se guiando meus passos”. LEÃO, José Joaquim de Campos (Qorpo Santo), Teatro Completo. Rio de Janeiro: Serviço Nacional de Teatro – Fundação Nacional de Arte, 1980. p. 13/14.

arte e de literatura. Continuou a escrever ensaios muito críticos sobre as fraquezas da sociedade belga e fazia discursos em banquetes, nos quais assumia o papel de velho sábio. Em 1930 recebeu do rei da Bélgica o título de barão.136

Foi festejado inicialmente pelos simbolistas e visto mais tarde como um precursor do expressionismo e do surrealismo. Esta valorização da obra de Ensor permitiu-me o acesso às reproduções de imagens de suas pinturas, impressas no volume nº 88 da Coleção Gênios da Pintura137, publicado em 1968. Esta coleção de grande tiragem popularizou a obra de Ensor e de muitos outros pintores no Brasil.

Apesar de ter conquistado reconhecimento público em sua época, James Ensor, assim como Qorpo Santo em Porto Alegre, também cultivava uma existência retraída e pessimista. Viveu toda a sua vida na cidade balneária de Ostende, na Bélgica, que descreve ironicamente:

A praia é extraordinariamente animada. É uma mistura da Bruxelas elegante e o público menos elegante de Gand, mundo variado e disparatado. Peralvilhos enflanelados arrastando-se pelo areal. Mocinhas bonitas perturbando

136 CHIPP, H.B., Teorias da Arte Moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1996. p. 107 (nota).137 O primeiro empreendimento da Editora Abril no setor de livros, a luxuosa edição da Bíblia Sagrada em 1965, teve como sub-produto a sua edição em fascículos quinzenais que chega-ram a vender 150 mil exemplares por fascículo, inaugurando uma serie de coleções, inicialmente feitas com material impor-tado, mais tarde produzidos no Brasil e distribuídas amplamen-te por todo o pais. Os Gênios da Pintura, a Enciclopédia Abril, Os Pensadores e muitos outros títulos foram assim colocados ao alcance da população, com tiragens freqüentemente acima de 100mil exemplares. CAMARGO, Mario de, Gráfica: arte e in-dustria no Brasil: 180 anos de historia. São Paulo: Bandeirantes Gráfica, 2003. p. 148.

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James Ensor - A Intriga (1890)

James Ensor – Auto Retrato com Máscaras (1899)

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crustáceos moles. Camponesas pantanosas, bundudas esganiçadas. Labregos ensaboando as chancas imundas.(...) Raça rapace que indispõe os corações sensíveis e macula a praia fina e matizada. Os ingleses por vezes esbofeteiam desvairadamente esses grosseirões insensíveis. 138

Ensor escreveu também dramas nunca encenados, tendo o horror e o fantástico como temas obsessivos.139 Numa das declarações que justificam sua preferência pelas máscaras, pelos esqueletos, pela temática do horror, o pintor afirmou:

“Com alegria, confinei-me no lugar solitário em que domina a máscara feita de violência, de luz e de esplendor. A máscara me diz: frescor de tons, expressão acentuada, cenário suntuoso, grandes gestos inesperados, movimentos desordenados, turbulência refinada”.140

As indagações do artista sobre o significado da vida, da morte, do martírio, da incompreensão, da crueldade humana, espelham-se todas num combate sinisitro em torno da decomposição. A pintura Esqueletos que disputam um Enforcado, de 1891, traz muito da inspiração teatral de Ensor. Os trapos coloridos meramente encobrem a morte, enquanto a assistência contempla, dos bastidores, esse duelo grotesco.141

138 ENSOR, James, A Praia de Ostende, 1896. In CHIPP, H.B., op. cit. pp. 106-107.139 ENSOR, James, Ensor. São Paulo: Abril Cultural, 1968. p. 4.140 ENSOR, James, Op. cit. p. 2.141 ENSOR, James, Op. cit. p. 3-4.

Pode-se dizer que se trata de uma ambientação teatral, devido à colocação frontal do observador em relação às figuras representadas, causando a impressão das mesmas estarem expostas como num palco de teatro, como um cenário construído de seres estáticos com expressões esvaziadas, transmitindo a noção de marionetes, que emanam um caráter de objeto. A gestualidade das figuras representadas; as imagens pintadas pressupondo acontecimentos sórdidos; a frontalidade que enrijece e torna as imagens frias, como se o movimento e a expressão, se pudessem acontecer, seriam mecânicos e inumanos.

O crítico italiano Renato Barilli associa Ensor a Alfred Jarry, autor de Ubu Roi, com sua “patafísica” germinal do teatro do absurdo de Ionesco e Beckett.142

O dramaturgo gaúcho e o pintor belga fazem, em sua obra, construções ácidas da comédia humana. Qorpo Santo e James Ensor, através de devaneios delirantes, vislumbraram suas realidades e as expressaram por meio do esvaziamento das linguagens artísticas que procuravam dominar. Qorpo Santo, provavelmente, não conheceu a obra de Jarry, nem a obra de Ensor. James Ensor tampouco conheceu Qorpo-Santo. Tanto em Ensor, como em Qorpo Santo é possível encontrar Alfred Jarry como um elo de contato. Cada um em sua realidade criou um mundo particular e paralelo, tentando manifestar um estágio de crise e de desagregação, no qual suas personalidades artísticas haviam se deparado no final do século XIX, devido ao desgaste das suas possibilidades de linguagem.

142 ENSOR, James, Op. cit. p. 6.

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James Ensor - Esqueletos que disputam um Enforcado (1891)

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Considerasões sobreQorpo Santo-Lanterna de Fogo

§45A través de sua Ensiqlopedia ou

seis mezes de uma Enfermidade, Qorpo Santo acreditava que teria condições de propagar

suas idéias sobre um exemplo totalmente fora do registro da realidade gaúcha.

A experiência de Qorpo Santo frente aos seus fracassos pessoais e literários leva a pensar numa dramaturgia que nunca se realizará enquanto uma voz presa no papel. Qorpo Santo, um anti-herói da dramaturgia, pode ser também a constatação de que a construção dramatúrgica está na busca constante de simplicidade.

Ao levantar essa suposição, é possível presumir uma destruição de idealizações dramatúrgicas, as quais procuram estruturar roteiros mirabolantes. Trata-se de uma tarefa que não se completa. A palavra impressa, para o teatro, é morta. A fala devolve a alma da palavra.

A dramaturgia de Qorpo Santo está repleta de conflitos que paradoxalmente não são dramáticos, ou por outra, revelam-se essencialmente dramáticos, onde os conflitos são significantes esvaziados de significado.

Uma inércia do movimento permanente, uma verborragia descontínua. As personagens são engessadas em suas travessias pela cena e não conseguem se libertar daquilo que têm que falar e das ações que têm que executar. Os encontros entre as travessias cênicas destas personagens são agenciamentos143, onde seus caminhos mudam de direção.

Numa obra dramatúrgica, há linhas de articulação ou segmentos. Trata-se de uma multiplicidade que compõe organismos significantes, sujeitos que circulam deixando rastros de maior ou menor intensidade.

§46Tendo realizado a peça audiovisual

Qorpo Santo-Lanterna de Fogo foi possível perceber um Qorpo Santo transcriado através de imagens, tendo como pano de fundo o trabalho de reconstrução de sua dramaturgia. No audiovisual procurei recriar um autor paródico e sem nenhuma consciência de sua insignificância, que parte em busca de suas

143 Cf. DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix, Introdução: Rizoma. In Mil Platôs (vol. 1). Rio de Janeiro: Editora 34, 1995. pp. 11-12.

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personagens. Recuperei uma variedade de cenas de suas peças e, em suas entrelinhas, remetendo à lógica do autor, organizei um diálogo entre texto e imagem, onde as imagens são um suporte para significar as diversas referências feitas no conteúdo da narrativa audiovisual.

As peças de Qorpo Santo remontam temáticas e estruturas muito semlhantes entre si, o que permitiu a utilização de diversos trechos de sua obra para compor uma única peça dramatúrgica. Poderia reconhecer aí uma falta de originalidade. No entanto enxerguei uma coerência no que diz respeito à estrutura das peças teatrais e à sua composição de personagens. O caráter autobiográfico da obra de Qorpo Santo reside na dificuldade de tratar de temas diversos. Essa auto-referência pode ser avaliada como uma forma de auto-reflexão sobre temáticas desenvolvidas constantemente em suas peças.

Após o estudo das peças, do entendimento de alguns de seus atos e de quadros realizados nesse trabalho, foi possível perceber que o formato do roteiro, do audiovisual e de sua montagem poderiam construir um fio condutor, uma linha que costurasse os retalhos de uma cortina que se desenrola conforme Qorpo Santo percorre suas divagações.

O autor pensa em voz alta, numa auto-observção que engendra a personagem Qorpo Santo. Suas digressões desenrolam-se, enquanto ele percorre uma espécie de corredor de divagações sobre a escrita e sobre o funcionamento de seu pensamento. Em diversos trechos de suas peças aparece um pensar-falando que explica seu processo de escritura, possível de ser exemplificado por C-S, personagem da peça Lanterna de Fogo:

C-S.- (...)Eu, porém, escrevo que penso e medito para faze-lo, que tenho necessidade de raciocinar e discorrer, que preciso estudar os fatos, conhecê-los, escolher os termos com que mais convém expressar as idéias..., enfim, compor, não um bilhete ou uma carta, mas uma comédia, romance, tragédia, um discurso sobre moral, política, religião ou alguma outra ciência, não posso nos momentos em que estudo estar sendo interrompido, nem mesmo nos em que penso!144

§47Na peça audiovisual Qorpo Santo-

Lanterna de Fogo, Qorpo Santo caminha por um museu virtual, onde se sucedem imagens que não podia deixar de pintar, de pessoas que considerava medíocres. Seu pensamento fala nas locuções dos textos. As vozes subdividem-se nas falas tiradas de textos de Qorpo Santo, quando se trata de um pensamento do próprio autor e em trechos selecionados de A noite145, de Antõnio Álvares Pereira Coruja146 e de As Amargas Não de Álvaro Moreyra.

Qorpo Santo – Lanterna de Fogo pretende mostrar uma colagem que retoma algumas personagens recorrentes das peças teatrais de 144 A Impossibilidade da Santificação o A santificação Transfor-mada. Ato 2º - Cena 1ª. In LEÃO, José Joaquim de Campos (Qorpo Santo), Teatro Completo. Rio de Janeiro: Serviço Nacio-nal de Teatro – Fundação Nacional de Arte, 1980. p. 301.145 CORUJA, Antônio Álvares P., Antigualhas, reminiscências de Porto Alegre. Porto Alegre: União de Seguros Gerais, 1981. p. 27. Apud PESAVENTO, Sandra J., Memória Porto Alegre: espa-ços e vivências. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 1999.146 Literato brasileiro que, juntamente com o Marquês de Marica, inspirou Qorpo Santo em sua Reforma Ortográfica. Cf. ESPÍRITO SANTO, Denise (org.), Qorpo Santo - Miscelânea Quriosa. Rio de Janeiro Casa da Palavra, 2003. p.119.

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Qorpo Santo. As falas de Qorpo Santo colocadas em off foram escolhidas das personagens Brás, da peça Certa Entidade em busca da outra e Robespier, da peça Lanterna de Fogo que juntas podem sintetizar a personagem Qorpo Santo construída na narrativa audiovisual.

A peça teatral de Qorpo Santo Lanterna de Fogo é uma busca da lanterna de Diógenes. A personagem Robespierre procura uma lanterna de fogo, presente que lhe fez seu pai quinze dias antes de morrer. Esta busca é pretexto para um emaranhado dramaturgico: discursos sobre a natureza do homem; conversas com demônios e com mortos; digressões sobre problemas sexuais; invasão do cenário por ratos, galinhas, gatos e frangos.147

A peça audiovisual Qorpo Santo – Lanterna de Fogo realizada para esta tese não quer ser um documentário sobre o autor estudado. Procura mostrar a partir de um fio condutor centrado no autor, como personagem, diversos aspectos da vida de um herói individual.

É possível considerar a peça audiovisual como sendo uma narrativa linear. Apesar de sua linearidade, é possível concordar que, Qorpo Santo – Lanterna de Fogo desdobra o fio condutor em seqüências de narrativa quase autônoma. É bom frisar que a linearidade da narrativa está na presença da personagem protagonista que nunca é abandonada não permitindo que o fio se desenrole de maneira autônoma e se estruturem seqüências independentes da narrativa central.

A narrativa audiovisual de Qorpo Santo – Lanterna de Fogo apóia-se numa linha que liga uma seqüência à outra. Esses fios de linearidade são tênues; são travessias espaciais entre as

147 “A Lanterna de Fogo”: Qorpo Santo revisto em montagem al-ternativa. In Correio do Povo - 15/02/1979.

seqüências. Assim, as seqüências podem parecer episódicas. As visões das pinturas de Ensor aparecem como entreatos narrativos. Pontos que balizam as travessias entre um acontecimento e outro e assim o caminho se compõe. Por mais que Qorpo Santo se afaste de seu caminho inicial, a linearidade frágil não se rompe.

§48Qorpo Santo está em sua casa,

dormindo no seu quarto como dentro da barriga de uma baleia que o protege. Dentro deste casulo, o comodismo da página escrita deixa o autor insatisfeito. Ele parte em busca de pessoas vivas, mas Porto Alegre está morta. Os vivos são suas personagens que se encontram no emaranhado dos galhos das árvores que transporta Qorpo Santo para espaços simultâneos: a Guerra do Paraguai; as realidades das peças teatrais que ele pretende escrever; a história do rapaz que passa a derramar lágrimas e que freqüenta a casa-puteiro onde se encontra com Qorpo Santo, o qual é devorado pelas mulheres.

O rapaz que aparece na seqüência 5 (vide Anexo 1) foi inspirado na personagem Ferrabrás de Certa Entidade em busca da outra, que aparece como filho de Brás, mas que pode ser a face jovem de Qorpo Santo, ou a projeção de Qorpo Santo sobre a idéia de seu filho.

As mulheres que aparecem nesta seqüência são aquelas da peça As Relações Naturais que freqüentam a casa que não se sabe se também é prostíbulo. Mulheres das quais Qorpo Santo ficou afastado no período de seu surto. É interessante perceber que esta peça de Qorpo Santo assemelha-se a Os sete Gatinhos, onde Nelson Rodrigues também mostra uma

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família, apodrecendo em cena, entre o lar e o bordel. Qorpo Santo, em As Relações Naturais, mas também em Mateus e Mateusa mostra uma sátira à família, à paz doméstica148, numa inversão da comédia realista.

Esta sátira apresenta uma visão da decadentista149 da sociedade riograndense. A obra de Qorpo Santo é produzida num período em que aquela região mais parecia um grande caldeirão de água quente prestes a estourar, como de fato estourou150. O Império Tropical de D. Pedro II começava a declinar. Qorpo Santo escreveu suas peças em 1866, um ano após o início da Guerra do Paraguai e a situação de desagregação da época passou a ser uma das marcas que o desgaste de uma Guerra violenta poderia causar nas instituições gaúchas.

Ao centralizar uma narrativa sobre uma personagem que viveu em época e região especificos, o audiovisual não assume o comprmisso de reconstituição histórica. Dessa maneira, o fato de Qorpo Santo trazer para o centro da narrativa temáticas e argumentos recorrentes de sua obra e também da própria história da Província de Rio Grande do Sul, confere ao audiovisual um aspecto ficcional que

148 FARIA, João Roberto, Santo: As Formas do Cômoco. In O Teatro na Estante: estudos sobre dramaturgia brasileira e estrangei-ra. São Paulo: Ateliê Editorial, 1998. p. 83.149 A localização estratégica do movimento decadentista, nas duas últimas décadas do século XIX aponta para o sentimento crepuscular que marca sua estética, derivada da situação aflitiva e agônica experimentada pela sociedade finissecular, expressa por meio de encenações terminais, apatia e ceticismo, que tra-duzem fantasias cerebrais doentias e narcisísticas, eroticamente inspiradas na putrefação e na morte, refletindo fragmentos de esgotamento moral herdados do spleen baudelairiano. FARIA, Flora de Paoli, Decadentismo como Prefácio para a Vanguarda. In WATAGHIN, Lucia (org.), Brasil & Itália – Vanguardas. Cotia: Ateliê Editorial, 2003. pp. 253-254.150 SCHWARCZ, Lilia Moritz, As Barbas do Imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 302.

pode aproximá-lo da fábula com uma conotação histórica.

Assim, o que se vê em Qorpo Santo-Lanterna de Fogo sintetiza um modo de pensar um autor marcado pelo meu ponto de vista. Uma visão artística que compôs a peça audiovisual de forma arbitrária, selecionando elementos que pudessem configurar uma espécie de Almanaque do Qorpo Santo, com objetivos de convidar à investigação de temas relacionados à dramaturgia e à sua história, buscando resgatar um autor brasileiro que pode dialogar com a dramaturgia universal.

§49Qorpo Santo tinha o gosto de deformar

as palavras o que pode ser um convite à criação de simulacros provenientes das máscaras grotescas da Commedia dell ’Arte. Essa forma de pensar o Qorpo Santo a partir de uma visão recortada pode induzir a estereótipos sobre a obra do autor. A minha visão sobre Qorpo Santo reside na necessidade de fazer entender como a linguagem teatral se afasta do realismo. Ao expor na tela um universo estranho à realidade cotidiana, procurei mostrar personagens caricatas, inspiradas nos bufões, nas máscaras da commedia dell’arte, no circo-teatro e isso foi possível encontrar nas telas de James Ensor e outras imagens similares.

Um autor brancaleônico parte em busca de sua imortalidade, marcha em busca do sonho de ter seu nome impresso em letras tipográficas e leva com ele um grupo não muito comum de indivíduos recuperando a imagem de atores de uma peça que jamais se viu, que

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talvez nem mesmo existiu151. A imagem de uma trupe reunida que pudesse nos dar a idéia de uma realidade difícil de ser recomposta em seus movimentos e sons. Uma legião de entes injustiçados, espectros não muito humanos pertencentes a uma galeria de tipos esquisitos compõem a utopia qorposantense de conquistar uma dramaturgia bem feita. Uma realização de poder, mas que também se mostra como uma ilusão e desloca a conquista da utopia para uma busca constante daquilo que não pode existir senão no ideal.

Uma narrativa simples e calcada em moldes reconhecidos como soluções narrativas eficientes possibilita que se garanta uma universalidade no tratamento temático, onde o tempo histórico se transforma num pano de fundo para a narrativa, deixando de ser elemento indispensável para complementar a história narrada. Assim a narrativa de Qorpo Santo – Lanterna de Fogo poderia ser localizada em outro período histórico, como na montagem da Companhia de Bonecos Urbanos que traz uma peça de Qorpo Santo para o Século XXI, numa experiência sem foco-lógico que retoma a formação de grupos de marginais das grandes cidades contemporâneas.

§50Talvez seja possível cartografar um

mapa do trajeto percorrido pela personagem Qorpo Santo em sua jornada particular. Essa definição territorial e temporal, por onde se desenvolve a ação, resgata algumas imagens, onde se incluem personagens, objetos, intrigas, paisagens, sons que se colocam de modo

151 LIBERA, Alain, Pensar na Idade Média. São Paulo: Edi-tora 34, 1999, p. 61.

pertinente nas temáticas tratadas no conteúdo da narrativa audiovisual e que, de algum modo, trazem uma forma a ser considerada como possível fonte de investigações, apesar de sua natureza ficcional.

Sob o trecho final de Overtüre 1812, de Tschaikowsky, a Ensiqlopedia de Qorpo Santo aparece em chamas, numa fusão com um busto pegando fogo. A idéia de queimar a cabeça de um autor do Século XIX, que pode ser Qorpo Santo, surgiu da cabeça em chamas da personagem Robespier, da peça Lanterna de Fogo:

Robespier: (...) Tenho esta cabeça em chamas e, ao ver-vos, sinto mais forte o intenso fogo que nela lavra!(...)152

Os livros queimados não são a fogueira de Fahrenheit 451, pois, apesar da destruição do texto dramático escrito ser uma das prerrogativas para a descoberta do dizer teatral, os livros pegando fogo são a vivificação das escrituras qorposantenses.

O fogo que queima o busto e a obra podem ser de um autor qualquer transformando as ruínas da dramturgia morta numa nova dramaturgia. Das palavras impressas às palavras que voam nas falas das personagens do autor de Eu sou vida; eu não sou morte.

152 Lanterna de Fogo. Ato 2º - Cena 2ª. In LEÃO, José Jo-aquim de Campos (Qorpo Santo), Teatro Completo. Rio de Ja-neiro: Serviço Nacional de Teatro – Fundação Nacional de Arte, 1980. p. 184.

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Programa do Espetáculo Certa Entidade em Busca da Outra, apresentado em Junho de 2005, no Teatro Coletivo Fábrica em São Paulo.

Programa do Espetáculo Dr. QS – Quriozas Qomédias, apresentado em Março de 2007, no Espaço Cultural Semente em Campinas.

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w w w . h a c h m e i s t e r - g a l e r i e . d e /HACHMEISTER_eng/artists/James_Ensor_eng - 06/07/06

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HOJE SOU UM; E AMANHÃ OUTRO - QORPO SANTO

Fonte: As Relações Naturais e Outras Comédias - Qorpo Santo - Co-Edições URGS - Editora Movimento - SEC – 1975

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CERTA ENTIDADE EM BUSCA DE OUTRA - QORPO SANTO

Fonte: As Relações Naturais e Outras Comédias - Qorpo Santo - Co-Edições URGS - Editora Movimento - SEC – 1975

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UM PARTO - QORPO SANTO - Fonte: As Relações Naturais e Outras Comédias - Qorpo Santo - Co-Edições URGS - Editora Movimento - SEC – 1975

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AS RELAÇÕES NATURAIS

As Relações Naturais e Outras Comédias - Qorpo Santo - Co-Edições URGS - Editora Movimento - SEC – 1975

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ANEQSOS

87

Aneqso I

Argumento para Pesa Audiovisual

Qorpo Santo, Lanterna de Fogo

1. vou levantar-me; qontinuÁ-lo; e talves esqrever em um morto:

Qorpo Santo dorme em seu quarto, uma espécie de casulo, uma espécie de cobertor do ser

humano, em que este fi ca embutido com todos os seus acessórios, protegendo e resguardando o seu

rastro assim como a natureza guarda um fóssil. Um espelho refl ete o rosto de Qorpo Santo. Ele

dorme em seu quarto, iluminado pela luz de velas, cercado por livros, objetos e imagens de valor. Com

o avançar da noite seu sono passa a ser acometido por um sonho delirante. Acorda sobressaltado. Em

estado de vigília enxerga à sua frente rostos de um sonho recente. Sonho com personagens, pessoas

conhecidas suas das ruas de Porto Alegre. Deformados pela refração de seu olhar, quem sabe aqueles

rostos podem transformar-se em personagens para uma comédia que está para escrever. Enxerga à sua

frente uma série de máscaras derretendo. Uma pintura hedionda de seu sonho recente.

Projeções de Qorpo Santo nas paredes do quarto, sombras de personagens grotescas;

deformadas pelo olhar sonolento:

Ora homem; ora mulher; ora velha; ora moço; ora criança; ora feio; ora bonita. Cada qual é

ocupado naquilo para que Deus o destina; umas para os ofícios; outros para a pena; a palavra e mesmo

a espada! Alguns para quais pássaros, andarem sempre pelo ar, e a pousar de ramo em ramo ou de

árvore.

As imagens aterrorizantes desaparecem sob seu olhar angustiado. Quem sabe aquelas fi guras

sejam personagens para uma comédia que está para escrever? Sujeitos sem autonomia sufi ciente para

existirem fora do controle dos fi os que ele manipulará em seus escritos com falas isoladas, organizadas

de modo arbitrário numa exposição das mazelas da província gaúcha; um instrumento de denúncia!

Qorpo Santo levanta-se, para começar a escrever sua comédia. Ao ouvir os sinos, calça os

chinelos. Sonhou não sabe com o quê. Anda em direção à luz que emana da janela. Ele sai do quarto.

Aproxima-se de uma mesa. Encontra sobre a mesa moedas, livros, tigelinhas, talheres, caixinhas e

88

estojos. Confere uns papéis; toma uma pitada de rapé, um gole de café; pega numa pena e começa a

escrever.

Em devaneio observa os objetos sobre a mesa. Caindo em si, levanta-se da escrivaninha, bate

na cabeça, calça os chinelos, vai até sua mesa de trabalho. Toma uma pitada de rapé, logo depois de

um gole de café, pega seu casaco e seu chapéu; abre a porta de casa e sai o mais jocosamente que é

possível.

Leve o diabo esta vida de escritor! É melhor ser comediante! Estou só a escrever, a escrever; e

sem nada ler; sem nada ver. Estou aqui me incomodando!

Incomodado por não encontrar no papel as personagens de seu sonho, resolve sair para

caminhar pelas ruas de Porto Alegre à procura daqueles rostos de seu sonho.

2. uma sidade...mortaSai para caminhar pelo Porto Alegre como que perseguindo aqueles rostos de seu sonho. Um

homem que está na vida pública e que há muito reside em Porto Alegre e que, além disso, costuma

quase sempre movimentar-se nas cercanias dos prédios da administração pública. As suas idas e vindas

se dão a intervalos regulares, em uma área limitada, na qual se movimentam pessoas preocupadas com

os seus negócios, de natureza similar aos dele1.

Porém, não encontra uma alma viva nas ruas.

Porto Alegre, o centro de todas as atividades públicas da Província, sofre na carne, diretamente,

os efeitos da Guerra do Paraguai. Numa atmosfera pesada e sombria, a vida social de Porto Alegre é a

de uma cidade...morta. No Beco do Bota Bica as casas de diversões estão de portas cerradas, seus bailes

e recreativas têm salões desertos, rareia cada vez mais a freqüência a seus cafés e confeitarias.2

Perdido nas cercanias da cidade, chega a uma bifurcação. Hesita em qual dos dois caminhos

tomar. Prossegue por um deles. Depara-se com uma árvore, olha para o chão, depois seu olhar sobe

pelo tronco, sobe para os galhos, perdendo-se nas suas ramifi cações. Olha para as copas das árvores,

começa e reconhecer as fi guras de seu sonho. Nesse caso, se imaginarmos que as relações pessoais

de cada uma são equivalentes em número, também serão iguais as probabilidades de que cada uma

encontre o mesmo número de pessoas conhecidas.

1 BENJAMIN, Walter, O Flâneur. in A Paris do Segundo Império em Baudelaire. KOTHE, Flávio R. (org.), Walter Benjamin – Sociologia. Col. Grandes Cientist as Sociais. São Paulo: Editora Ática, 1985. p. 72.

2 FERREIRA, Athos Damasceno, Palco, Salão e Picadeiro. Porto Alegre : Globo,1956. p.96-97.

89

3. a geraQorpo Santo acorda às margens de um rio. Está isolado em uma Porto Alegre de sobrecenho

carregado. Não há porque escrever peças teatrais em uma época sombria como aquela. Como pode

um homem escrever personagens que não tenham ligação com a situação por que passa o Império do

Brasil?

Um outro sonho: um Rei numa batalha que combate alguns vasos de guerra com bandeira

de uma Nação inimiga! Neste sonho Qorpo Santo enxerga o segundo quadro de batalha exposto

por Vitor Meirelles que foi A Batalha de Riachuelo (1872), um dos feitos mais brilhantes de nossa

marinha na guerra contra o Governo do Paraguai.3

Neste sonho o Império será salvo por um homem de mente privilegiada que descobriu que os

corpos não são mais que os invólucros de espíritos, ora de uns, ora de outros. Este homem pode sonhar

que a Guerra havia acabado e, habitando o corpo do Imperador, repelir qualquer tentativa de invasão

estrangeira, a fi m de que não sofra a cidade o menor mal!

4. eu sou a vida; eu nÃo sou a morte.Qorpo Santo sonha que em 1867 a Guerra do Paraguay estava concluída; que estava feita a

paz. Seu corpo está composto de pensamentos de modo que suas memórias começam a caminhar por

um museu imaginário, onde se sucedem imagens de suas comédias e tragédias:

Eu Sou a vida; Eu não sou a morte.

Duas páginas em Branco

Lanterna de Fogo

Espelho de fogo

Mateus e Mateusa

A Impossibilidade da antifi cação: Comédia, romance e refl exões!........

Uma pitada de rapé

Um Credor da Fazenda Nacional,

Um Assovio

Um parto

Os homens enfraquecidos

Os retratos encantados

3 DUQUE-ESTRADA, Luiz Gonzaga, A Arte Brasileira. Campinas-SP: Mercado de Letras, 1995. p 174.

90

5. se a palavra qorpo-santo foi-me infiltrada em tempo qe vivi distante

das mulheresAinda esta noite Qorpo Santo teve um outro sonho, e que sonho? Que havia sido devorado

por fúrias.

De fronte a uma casa fora do tempo, um rapaz, completamente separado do mundo das

mulheres, levanta o olhar, faz trinta mil caretas e passa a derramar lágrimas por espaço de cinco

minutos.

O rapaz é impelido para o mundo das mulheres.

Do lado de fora ele tenta apontar um revólver ou uma arma qualquer, que estava perto de seu

pé. Derruba o revólver no chão.

O rapaz se despede das mulheres, com um ar de desencanto.

Qorpo Santo retorna ao seu lar: um bordel. Encontra três ou quatro mulheres, umas em saias,

outras com os cabelos desgrenhados; pés no chão etc. Moças, que, em troca de instantes de prazeres,

exigem para matar a fome que as devoram, bifes com batatas regados a vinho intragável. Elas habitam

o bordel, são a família de Qorpo Santo. O rapaz, seu fi lho Ferrabrás.

Uma delas insinua-se para ele.

Outra o puxa por um braço.

Outra o abraça por trás.

Qorpo Santo, dominado por elas,

é jogado de um lado para outro

como um boneco inerte,

até que cai de joelhos.

Uma delas mostra-lhe o punho.

Qorpo Santo de joelhos,

suplica com muita humildade.

ELAS dando uma grande gargalhada.

UMA batendo no ombro da outra.

OUTRA apontando com o mostrador4.

4 Ato Segundo - Cena Segunda da peça As Relações Naturais, pp. 73-74.

91

As mulheres vão cercando o homem que se sente sufocado por vozes que vão se

multiplicando em falas esparsas.

6. lanterna de fogoQorpo Santo senta e escreve:

O mordomo da casa que Qorpo Santo habita há 21 dias chama-se Bordini, é talvez irmão de

um acionista do banco da Província de S. Pedro.

O lar pode ser um hospício. Fora do Sanatório a moral é totalmente descolada do mundo lá

fora. A tensão do mundo é racional e a do mundo lá fora é ‘louca’.

Sob badaladas de sinos e estampidos de canhões, a cabeça de Qorpo Santo está em chamas;

As Obras Completas de Qorpo Santo, em grossos e altos volumes pegando fogo.

Há um poeta esquecido demais no Brasil. Chamou-se José Joaquim de Campos Leão Qorpo

Santo. Um amigo que o foi visitar no hospício, perguntou-lhe se tinha escrito alguma coisa nova.

Qorpo Santo responde:

Não, nada. Não é possível. Vontade não me falta. Mas, quando as palavras vão subindo, prontas

para sair, começam essas gritarias, essas alucinações...- largo a pena. Não me aborreço, não me queixo:

- coitados! São doidos!5

5 MOREYRA, Álvaro, As amargas, não... : (lembranças). Rio de Janeiro: Lux, 1954. pp. 126-127.

93

Aneqso II

Qorpo Santo

Lanterna de Fogo

qolagens

94

Qolagem 1 – Emaranhado de Máscaras

95

Qolagem 2 – Teatralidade e Personagens

97

QORPO SANTO – LANTERNA DE FOGO Storyboard final

Seqüências de imagens e sons para vídeo Imagem Som

Abertura

Trilha: Overture 1812 (Tchaikowsky)

Seq 1 Homem deitado numa cama. No meio de um sonho

+ detalhes quarto QS

Trilha: Overture 1812 (Tchaikowsky)

98

(Acorda sobressaltado.)

(a câmera detalha, através de uma panorâmica

em pintura de James Ensor.)

Texto off (QS): Não há uma só noite,

em que deitando-me, logo depois não

apareça, aos pés desta cama, a imagem

ou figura de um morto...

Trilha: Overture 1812 (Tchaikowsky)

Texto off QS: Ora homem; ora mulher;

ora velha; ora moço; ora criança; ora

feio; ora bonita. Cada qual é ocupado

naquilo para que Deus o destina; umas

para os ofícios; outros para a pena; a

palavra e mesmo a espada!

Alguns para quais pássaros, andarem

sempre pelo ar, e a pousar de ramo em

99

QS levantando

ramo ou de árvore. E assim vivendo

qual natureza concebi um interessante

pensamento sobre produções naturais e

intelectuais, de que agora não tenho a

precisa recordação para narrar.

Fusão de trilha com sons de SINOS

100

Seq. 2

QS acorda, se arruma e sai pela cidade.

SINOS

Texto off QS – E assim vivendo qual

natureza concebi um interessante

pensamento sobre produções naturais e

intelectuais, de que agora não tenho a

precisa recordação para narrar.

São hoje 14 de maio de 1866. Vivo na

cidade de Porto Alegre, capital da

Província de S. Pedro do Sul; e para

muitos, Império do Brasil...

SINOS

SINOS

101

SINOS

SINOS

Locutor: Com o início da Guerra do

Paraguai, Porto Alegre está de

sobrecenho carregado. É uma cidade...

morta.

Som em BG de um assovio qualquer

Locutor: No Beco do Bota Bica as casas

de diversões estão de portas cerradas,

seus bailes e recreativas têm salões

102

desertos, rareia cada vez mais a

freqüência a seus cafés e

confeitarias(...).

Um assovio

Fusão com trilha Overtüre 1812

103

Trilha: Overtüre 1812

Locutor: Teatro? Circo? Música?

Dança? Quem é que vai pensar nisso?

Ninguém!

Locutor: Um homem que viveu em

retiro por espaço de um ano ou mais,

onde produziu numerosos trabalhos

sobre todas as ciências, compondo uma

obra de mais de 400 páginas em

quarto, a que denomina Ensiqlopedia

ou Seis Meses de uma Enfermidade.

104

Seq 3 Rei-Ministro/Guerra (foto/pintura/vídeo)

QS na beira do rio

Trilha em bg: Overtüre 1812

(Tchaikowsky).Trecho da Marselhesa

durante toda a seqüência

Texto off QS: Sonhei em 1867 que a

Guerra do Paraguay estava concluída;

que estava feita a paz;...

Texto off: REI - Aproximam-se de

nossas praias alguns vasos de guerra

com bandeira de uma Nação inimiga!

É preciso repelir a audaz invasão! É

preciso darem-se as mais terminantes

ordens a fim de que não sofra a cidade o

menor mal!

105

Texto off QS: Não temais, Senhor

saiba V. M. de uma grande descoberta

no Império do Brasil; 1.ª - Que os

nossos corpos não são mais que os

invólucros de espíritos, ora de uns, ora

de outros; que o que hoje é Rei como V.

M. ontem não passava de um criado,

ou vassalo meu, mesmo porque senti

em meu corpo o vosso espírito, e

convenci-me, por esse fato, ser então eu

o verdadeiro Rei, e vós o meu

Ministro!

2.ª - Que pelas observações filosóficas,

este fato é tão verídico, que milhares de

vezes vemos uma criança falar como

um general; e este como uma criança.

106

Pipocam personagens ao redor de QS

Eu, pois, ontem estava tão acima de

Vossa Majestade, porque sentia em

mim o dever de cumprir uma missão

Divina.

Locutor: O autor de tais descobertas foi

um homem, predestinado.

A sua cabeça era como um centro, donde

saíam pensamentos, que voavam a

compor Tragédias; Comédias; poesias

sobre todo e qualquer assunto;

arranjamentos ortográficos de economia

de tempo e trabalho;

Trilha em bg: Overtüre 1812

(Tchaikowsky).Trecho da Marselhesa;

fusão com trecho mais calmo/passagem

p/ próxima seqüência

107

Seq 4 Cenas das peças de QS

Texto off QS: Se o meu corpo está

atualmente composto de pensamentos

de modo que eu não lhe toco que não

saia algum personagem – de que estará

composta a minha alma?

Ó tipógrafos! Ó revisores!

Por que e para que – mudais vós

palavras e letras em meus escritos?

Aumento de palavras, supressão e

substituição de letras – quem pode

assegurar que escreve certo?

Alguém lendo um escrito meu com as

regras ortográficas que estabeleci,

perguntou-me se eu padecia dos nervos.

Nervo, é moléstia do corpo.

108

Texto off QS: Qual a razão por que eu

não posso escrever com a ortografia que

aprendi?

É simples: os crimes horrorosos de que

fui vítima em 1862. Depois de haver

lutado comigo mesmo. Suprimir, por

exemplo, o U da palavra Que. As

minhas obras, quase só eu as entendo

tantas foram as inutilidades por mim

suprimidas!

Ainda hei de escrever uma comédia com

o título – As verdadeiras relações

naturais e suas agradáveis

conseqüências; e depois – outra com o

seguinte – Hoje sou um e amanhã sou

outro.

Trilha: durante a lista de peças, o

volume vai abaixando, ou

aumentando conforme as imagens e ao

fundo pode-se ouvir um assovio)

Texto off QS: Hei de ainda de escrever

109

as seguintes comédias e trajedias:

Eu Sou a vida; Eu não sou a morte.

trilha

Duas páginas em Branco

trilha

Lanterna de Fogo

Espelho de fogo

Mateus e Mateusa

trilha

A impossibilidade da Santificação:

Comédia, romance e reflexões!........

trilha

Uma pitada de rapé

Trilha

110

Um Credor da Fazenda Nacional,

Um Assovio

Um parto

Os homens enfraquecidos

Os retratos encantados

trilha.

Seq 5 Imagens da personagem Contimpina, Brás,

Mulheres:bordel/casa (foto/vídeo)

(ao fundo parede amarela.)

Trilhas: Overture 1812(trechos

folclóricos); Tango; música cômica

Texto off QS: O meu rapaz, o meu

Ferrabrás; o meu contimpina, que de

dia dorme, e de noite maquina! Oh!

esse, nem por sombras me quer aparecer

111

Locutor: O RAPAZ passa a derramar

lágrimas por espaço de cinco minutos.

Trilha: Overture 1812(trechos

folclóricos)

112

Trilha: Tango

Texto off QS: Se a palavra corpo-

santo foi-me infiltrada em tempo que

vivi completamente separado do

113

mundo das mulheres, posteriormente,

pelo uso da mesma palavra hei sido

impelido para esse mundo.(...)

Trilha: música cômica

Texto off QS: Mulheres! Que fazeis

aqui? Que quereis nesta casa?Tenho

esta cabeça em chamas. Ainda esta

noite tive um sonho, e que sonho?

Que havia sido devorado por estas

fúrias que diante de mim vejo.

114

Locutor: Moças, que, em troca de

instantes de prazeres, exigem para

matar a fome que as devoram, bifes

com batatas regados a vinho

intragável.

Seq 6

Poeta esquecido (vídeo/ensor)

Trilha: Música cômica em fusão com

Overture 1812(trecho final)

Texto off QS: O mordomo deste

hospício chama-se Bordini, é talvez

irmão de um acionista do banco da

115

Província de S. Pedro. Um e outro

ainda não tive a honra de ver nesta

casa em que habito há 21 dias.

FERRABRÁS: Olhe que lhe dou com

a bengala!

BRÁS: Acomodem-se! Senão eu lhes

dou um cachação!

Trilha: Overture 1812

(trecho final)

Locutor : Há um poeta esquecido

demais no Brasil. Chamou-se José

Joaquim de Campos Leão Qorpo

Santo. Um amigo que o foi visitar no

hospício, perguntou-lhe se tinha escrito

alguma coisa nova.

116

off QS - Não, nada. Não é possível.

Vontade não me falta. Mas, quando as

palavras vão subindo, prontas para

sair, começam essas gritarias, essas

alucinações...- largo a pena. Não me

aborreço, não me queixo: - coitados!

São doidos!

Fechamento

Trilha: Overture 1812

(trecho final)

117

SEQ 1

Texto off (QS): Não há uma só noite, em que deitando-me, logo depois não apareça, aos pés desta cama, a imagem ou figura de um morto...

Ora homem; ora mulher; ora velha; ora moço; ora criança; ora feio; ora bonita. Cada qual é ocupado naquilo para que Deus o destina; umas para os ofícios; outros para a pena; a palavra e mesmo a espada!

Alguns para quais pássaros, andarem sempre pelo ar, e a pousar de ramo em ramo ou de árvore. E assim vivendo qual natureza concebi um interessante pensamento sobre produções naturais e intelectuais, de que agora não tenho a precisa recordação para narrar.

+ trilha

trilha

SEQ 2

SINOS

Texto off QS – São hoje 14 de maio de 1866. Vivo na cidade de Porto Alegre, capital da Província de S. Pedro do Sul; e para muitos, Império do Brasil...

Sonoplastia de cidade

Locutor: Com o início da Guerra do Paraguai, Porto Alegre está de sobrecenho carregado. É uma cidade... morta.

No Beco do Bota Bica as casas de diversões estão de portas cerradas, seus bailes e recreativas têm salões desertos, rareia cada vez mais a freqüência a seus cafés e confeitarias(...).

+ trilha

Teatro? Circo? Música? Dança? Quem é que vai pensar nisso? Ninguém!

+ trilha

Um homem que viveu em retiro por espaço de um ano ou mais, onde produziu numerosos trabalhos sobre todas as ciências, compondo uma obra de mais de 400 páginas em quarto, a que denomina Ensiqlopedia ou Seis Meses de uma Enfermidade.

SEQ 3

Trilha: allons enfant de la patrie... : allons enfant de la patrie... une manif le samedi ça m’arrangerai.

Texto off: REI - Aproximam-se de nossas praias alguns vasos de guerra com bandeira de uma Nação inimiga! É preciso repelir a audaz invasão! É

Qorpo Santo – Lanterna de FogoTexto para Loqusão

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preciso darem-se as mais terminantes ordens a fim de que não sofra a cidade o menor mal!

QS - Não temais, Senhor saiba V. M. de uma grande descoberta no Império do Brasil; 1.ª - Que os nossos corpos não são mais que os invólucros de espíritos, ora de uns, ora de outros; que o que hoje é Rei como V. M. ontem não passava de um criado, ou vassalo meu, mesmo porque senti em meu corpo o vosso espírito, e convenci-me, por esse fato, ser então eu o verdadeiro Rei, e vós o meu Ministro!

2.ª - Que pelas observações filosóficas, este fato é tão verídico, que milhares de vezes vemos uma criança falar como um general; e este como uma criança. Eu, pois, ontem estava tão acima de Vossa Majestade, porque sentia em mim o dever de cumprir uma missão Divina.

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Locutor: O autor de tais descobertas foi um homem, predestinado. A sua cabeça era como um centro, donde saíam pensamentos, que voavam a compor Tragédias; Comédias; poesias sobre todo e qualquer assunto; arranjamentos ortográficos de economia de tempo e trabalho;

QS: Se o meu corpo está atualmente composto de pensamentos de modo que eu não lhe toco que não saia algum personagem – de que estará composta a minha alma?

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QS: Sonhei em 1867 que a Guerra do Paraguay estava concluída; que estava feita a paz;...

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SEQ 4

QS: Os crimes horrorosos de que fui vítima em 1862. Depois de haver lutado comigo mesmo. Suprimir, por exemplo, o U da palavra Que. As minhas obras quase só eu as entendo tantas foram as inutilidades por mim suprimidas!

Ainda hei de escrever uma comédia com o título – As verdadeiras relações naturais e suas agradáveis conseqüências; e depois – outra com o seguinte – Hoje sou um e amanhã sou outro.

Eu Sou a vida; Eu não sou a morte.

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Duas páginas em Branco

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Lanterna de Fogo

Espelho de fogo

Mateus e Mateusa

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A impossibilidade da Santificação: Comédia, romance e reflexões!........

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Uma pitada de rapé

Trilha

Um Credor da Fazenda Nacional,

Um Assovio

Um parto

Os homens enfraquecidos

Os retratos encantados

Alguém lendo um escrito meu com as regras ortográficas que estabeleci, perguntou-me se eu padecia dos nervos. Nervo, é moléstia do corpo.

Qual a razão por que eu não posso escrever com a ortografia que aprendi?

Ó tipógrafos! Ó revisores!

Por que e para que – mudais vós palavras e letras em meus escritos? Aumento de palavras, supressão e substituição de letras – quem pode assegurar que escreve certo?

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SEQ 5

Locutor: O RAPAZ passa a derramar lágrimas por espaço de cinco minutos.

QS: O meu rapaz, o meu Ferrabrás; o meu contimpina, que de dia dorme, e de noite maquina! Oh! esse, nem por sombras me quer aparecer

QS: Se a palavra corpo-santo foi-me infiltrada em tempo que vivi completamente separado do mundo das mulheres, posteriormente, pelo uso da mesma palavra hei sido impelido para esse mundo.(...)

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Texto off QS: Mulheres! Que fazeis aqui? Que quereis nesta casa?Tenho esta cabeça em chamas. Ainda esta noite tive um sonho, e que sonho? Que havia sido devorado por estas fúrias que diante de mim vejo.

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Locutor: Moças, que, em troca de instantes de prazeres, exigem para matar a fome que as devoram, bifes com batatas regados a vinho intragável.

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SEQ 6

FERRABRÁS: Olhe que lhe dou com a bengala!

BRÁS: Acomodem-se! Senão eu lhes dou um cachação!

QS: O mordomo deste hospício chama-se Bordini, é talvez irmão de um acionista do banco da Província

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de S. Pedro. Um e outro ainda não tive a honra de ver nesta casa em que habito há 21 dias.

locutor : Há um poeta esquecido demais no Brasil. Chamou-se José Joaquim de Campos Leão Qorpo Santo. Um amigo que o foi visitar no hospício, perguntou-lhe se tinha escrito alguma coisa nova.

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QS - Não, nada. Não é possível. Vontade não me falta. Mas, quando as palavras vão subindo, prontas para sair, começam essas gritarias, essas alucinações...- largo a pena. Não me aborreço, não me queixo: - coitados! São doidos!

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