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A HOMILIA SOB A PERSPECTIVA DOS GÊNEROS DISCURSIVOS/TEXTUAIS
Resumo: Todo gênero textual reflete a esfera social da qual participa, sendo formado por características sociais, funcionais e estruturais próprias. Nesse sentido, interessamo-nos em investigar como se configura o gênero discursivo/textual homilia, a fim de compreender como esse gênero, que participa de uma situação comunicativa muito específica, promove a interação entre as pessoas, e é formado por elementos linguísticos-discursivos. Para tanto, pautamo-nos nos preceitos de Bakhtin (2003) e de autores especialista no referido gênero. Os resultados apontam que esse gênero é milenar e participa da esfera social religiosa, mais especificamente, da religião católica, e as características discursivas e linguísticas se relacionam de forma bastante direta com o tema que constitui o referido gênero.
Palavras-chave: Gênero discursivo/textual. Homilia. Esfera social religiosa.
Abstract: Every textual genre reflects the social sphere in which it takes part, being formed by very social, functional and structural characteristics. In this sense, we are interested in investigating how it is configured the discursive/textual genre homily, in order to understand how this genre, which participates of a very specific communicative situation, promotes an interaction among people, and it is composed by linguistic-discursive elements. Therefore, we based on Bakhtin (2003) and expert authors in genre. The results point out that this genre is millenarian and participates in the religious social sphere, more specifically, the Catholic religion, and the discursive and linguistic characteristics are very directly related to the theme that constitutes the said genre.
Keywords: Textual/discursive genre. Homily. Religious social sphere.
Introdução
Todo e qualquer gênero discursivo/textual é fruto dos meios culturais, cognitivos e da
situação social da qual participa os indivíduos. Para Marcuschi (2008), por assim se
configurarem, os gêneros são eventos comunicativos se concretizam em textos. Ou seja, os
gêneros são textos materializados e produzidos em nosso cotidiano. De acordo com Bakhtin
(1997) “falamos apenas através de determinados gêneros do discurso, isto é, todos os nossos
enunciados possuem formas relativamente estáveis e típicas de construção do todo” (p. 282 -
grifos do autor).
Assim, os gêneros são, de acordo com Marcuschi (2008), formas construtivas de
participação das pessoas nas infinitas situações comunicativas existentes na sociedade.
Fazemos uso de inúmeros gêneros, os quais, por sua vez, possuem características sociais,
funcionais e estruturais próprias, como aponta Bakhtin (1997). Nesse sentido, interessamo-nos
em investigar como se configura o gênero discursivo/textual homilia, a fim de compreender
como esse gênero, que participa de uma situação comunicativa ou prática social muito
específica, é formado por elementos socio-comunicativos, discursivos e linguísticos-
discursivos. Para tanto, tomamos o dispositivo didático elaborado por Barros (2012), com as
devidas adaptações que se fizeram necessárias diante de nosso objetivo de pesquisa, e
analisamos dois exemplares do gênero homilia divulgados em páginas especializadas na
divulgação de eventos católicos.
Fundamentação teórica
Para Bakthin (1997), a utilização da língua é algo indispensável para que a interação
entre as pessoas acontece, e essa tal utilização se faz de forma diversificada. Segundo o autor,
a língua acontece através de formas orais ou escritas e se alicerça em esferas comunicativas,
uma vez que,
Todas as esferas da atividade humana, por mais variadas que sejam, estão sempre relacionadas com a utilização da língua. Não é de surpreender que o caráter e os modos dessa utilização sejam tão variados como as próprias esferas da atividade humana, o que não contradiz a unidade nacional de uma língua. A utilização da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos), concretos e únicos, que emanam dos integrantes duma ou doutra esfera da atividade humana (BAKHTIN, 1997, p.279).
Portanto, os gêneros fazem parte do cotidiano das pessoas seja em situações de mais
informalidade até as que requerem mais formalidade, dependendo do objetivo na interação, do
ambiente em que a interação acontece, e outros muitos fatores que cercam a interação
humana. E ainda, de acordo com Bakhtin (1997), a utilização da língua acontece através de
enunciados que se estruturam em construção composicional, estilo verbal e conteúdo
temático. Dessa forma, a língua gera tipos relativamente estáveis de textos, o qual dá-se o
nome de gêneros do discurso ou gêneros discursivos (BAKHTIN, 1997). Para o referido
autor,
O enunciado reflete as condições específicas e as finalidades de cada uma dessas esferas, não só por seu conteúdo (temático) e por seu estilo verbal, ou seja, pela seleção operada nos recursos da língua — recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais —, mas também, e sobretudo, por sua construção composicional. Estes três elementos (conteúdo temático, estilo e construção composicional) fundem-se indissoluvelmente no todo do enunciado, e todos eles são marcados pela especificidade de uma esfera de comunicação. Qualquer enunciado considerado isoladamente é, claro, individual, mas cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo isso que denominamos gêneros do discurso (BAKHTIN, 1997, p.279).
O tema, então, é, inicialmente, o assunto tratado em um texto, mas não se limita a isso.
Nas palavras de Saito e Nascimento (2010):
Bakhtin (1992) representa como sendo a primeira característica o tema, que dá unidade de sentido ao texto, que por sua vez é individual, não é reiterável, porque expressa uma situação histórica concreta (a origem do texto), é determinado pelas formas linguísticas (palavras, formas morfossintáticas, sons, entonação) e pelos elementos não-verbais da situação e do contexto sócio histórico mais amplo que envolvem (p.37).
Para Bakthin (1997), o tema, ou conteúdo temático, é, portanto, o elemento mais
importante na formação da unidade de um texto. Para que o leitor possa compreender o tema
de um texto é necessário analisar o texto e as valorações que ele recebe do autor, do leitor
considerado na produção do texto, do momento histórico e o lugar em que o texto foi
produzido, qual o objetivo da interação proposta. Sendo assim, Rojo e Barbosa (2015)
afirmam:
E o que vem a ser tema na abordagem de Bakthin? Para o Círculo de Bakthin, ele é mais que meramente o conteúdo, assunto ou tópico principal de um texto (ou conteúdo temático). O tema e o conteúdo inferido com base na apreciação de valor, na avaliação, no acento valorativo que o locutor (falante ou autor) lhe dá. E o elemento mais importante do texto ou do enunciado: um texto é todo construído (composto e estilizado) para fazer ecoar um tema (p.87).
Bakthin (1997) apresenta dois sentidos em se tratando de conteúdo temático: o tema
do signo e o tema do enunciado/enunciação. O primeiro está ligado ao sentido que damos aos
enunciados, ou seja, ao ler um texto vamos atribuindo significados as palavras, em outras
palavras, o valor ideológico do enunciado pode se alterar, transformar. O segundo não está
atrelado somente as estruturas das palavras, mas também por elementos não verbais na
comunicação. De acordo com Bakthin (1997),
O tema da enunciação é determinado não só pelas formas linguísticas que entram na composição (as palavras, as formas morfológicas ou sintáticas, os sons, as entonações), mas igualmente pelos elementos não verbais da situação. Se perdermos de vista os elementos da situação, estaremos tão pouco aptos a compreender a enunciação como se perdêssemos suas palavras mais importantes. O tema da enunciação é concreto, tão concreto como o instante histórico ao qual pertence. Somente a enunciação tomada em toda a sua amplitude concreta, como fenômeno histórico, possui tema (p.133).
Sobre a estrutura composicional, esta refere-se à maneira de organização do texto, suas
partes, ou propriamente dizendo, sua estrutura formal. Conformem apontam Saito e
Nascimento (2010, p. 37), “a construção composicional – é a estrutura e organização do texto
de um determinado gênero, que é resultante de vários fatores: as necessidades da situação de
interação e da tradição, pois os gêneros nos são dados pelas gerações anteriores que dele se
utilizaram”.
A forma de composição, portanto, trata da “organização e o acabamento de todo o
enunciado”, como afirmam Rojo e Barbosa (2015),
E a organização e o acabamento do todo do enunciado, do texto como um todo. Está relacionada ao que a teoria textual chama de “(macro/super) estrutura” do texto, a progressão temática, a coerência e coesão do texto. [...] O acabamento e dado pelos pronomes interrogativos, pela entonação ascendente, na modalidade oral e, na escrita, pelo ponto de interrogação. Em gêneros mais complexos e padronizados, como as fabulas e os contos da tradição oral posteriormente transcritos, o acabamento pode ser dado por formulas (“E foram felizes para sempre”) ou pela moral (p.94).
Por fim, o estilo verbal que diz respeito à seleção operada de recursos linguísticos que
formam um texto, entre eles os recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais que unidos aos
demais elementos tornam o enunciado real. Para Saito e Nascimento (2010, p. 37), “é a
escolha do agente produtor por formas da língua – as seleções lexicais, as formas gramaticais,
a organização dos enunciados – que darão o acabamento ao enunciado/gênero. E para Rojo e
Barbosa (2015), o estilo são “escolhas linguísticas que fazemos para dizer o que queremos
dizer (“vontade enunciativa”), para gerar o sentido desejado” (p.96).
Desta forma, pode-se compreender que para Bakthin (1997) o gênero trata-se de um
fenômeno organizado e estruturado textualmente. Por assim ser, o gênero acaba por se
constituir de características comuns, e é, então, concebido pela corrente teórica do
Interacionismo Sociodiscursivo (ISD) como representante das práticas discursivas existentes
na sociedade. E, para conhecer de forma mais específica um gênero, os estudiosos do ISD
elaboraram um procedimento de análise de textos, o qual foi didatizado por Barros (2012), em
um quadro de preguntas-chave, denominado de Dispositivo didático, o qual é a ferramenta
norteadora de nossas análises. A seguir reproduzimos o dispositivo com as adaptações que se
fizeram necessárias de acordo com nosso objetivo de pesquisa:
Quadro 1: Dispositivo didático elaborado por Barros (2012)
A qual prática social o gênero está vinculado?É um gênero oral ou escrito?A qual esfera de comunicação pertence (jornalística, religiosa, publicitária, etc.)?Quem produz esse gênero (emissor)?Para quem se dirige (destinatário)?
Qual o papel discursivo do emissor?Qual o papel discursivo do destinatário?Sobre o quê (tema) os textos desse gênero tratam?Qual o meio de circulação (onde o gênero circula)?Qual o tipo de discurso? Do expor? Do narrar?É um expor interativo (escrito em primeira pessoa, se reporta explicitamente ao interlocutor, tenta manter um diálogo mais próximo com o interlocutor, explica o tempo/espaço da produção)?Como é a estrutura geral do texto? Qual a sua cara? Como ele se configura? É dividido em partes? Tem título/subtítulo? É assinado? Qual a sua extensão aproximada? Acompanha fotos/figuras? Quais as características gerais?Qual o tipo de sequência predominante? Sequência narrativa? Descritiva? Explicativa? Argumentativa? Dialogal? Injuntiva?Qual a variedade linguística privilegiada? Mais formal? Mais informal? Coloquial? Estereotipada? Respeita a norma culta da língua? Usa gírias? Como se verifica isso no texto? Pelo vocabulário empregado? Pela sintaxe?Como se dá a escola lexical? Qual o tom do texto? Mais descontraído? Humorístico? Objetivo? Poético? Coloquial? Sisudo? Familiar? Moralista? De poder?Que vozes são frequentes no texto? Do autor? Sociais? De personagens?De que instâncias advêm essas vozes? Do poder público? Do senso comum? De autoridades científicas?
Fonte: adaptado de Barros (2012).
A homilia
Os dois exemplares do gênero homilia reunidos como corpus foram retirados da
internet, um deles é uma homilia realizada pelo padre Reginaldo Manzotti, no dia 03/05/2017,
disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=dH_ZBfH8K9s; e o segundo é de um
padre (nome não identificado no vídeo), no dia 20/03/2016, disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=Rx5TYQecgVw&t=136s.
Iniciamos nossa abordagem realizando uma abordagem aos fatores históricos que
constituíram o gênero. A palavra “homilia” provém do grego “homilein” e significa
“conversa” (MOURÃO, 2010, p.78). De acordo com Gonçalves (2012), a homilia surgiu na
Mesopotâmia há três mil anos, sendo utilizada pelos sacerdotes com o objetivo de convencer
seus discípulos da existência e manifestação dos deuses naquele momento cultuados. Além
disso, servia para “auxiliar a necessidade que os sacerdotes tinham de prestar contas das
receitas e gastos das corporações a que pertenciam e faziam suas prédicas em defesa da
existência miraculosa dos deuses do paganismo” (GONÇALVES, 2012, p. 33). Contudo, de
acordo com os estudos de Costa e Pinto (2014), o primeiro registro documental a respeito da
homilia afirma que o gênero em questão originou-se da seguinte forma:
[...] dentro dos domínios da sinagoga de Nazaré, e tem como pregador e protagonista a personagem histórica fundadora da prática religiosa sob análise, o próprio Jesus (Lc 4, 16-30). O discurso sobre o pão da vida relatado em João 6, 59 também se deu em uma sinagoga e se constituiria como homilia, pois nele há um longo comentário de diversos textos do Antigo Testamento que foi aplicado ao momento presente dos ouvintes que ali se encontravam (COSTA, PINTO, 2014, p. 2).
Assim, os estudos de Costa e Pinto (2014) demonstram que com o passar do tempo,
com o estabelecimento do cristianismo, firmou a característica da homilia ser uma espécie de
conversa realizada pelos pastores com os fiéis, dentro das sinagogas, após o término da leitura
do texto bíblico.
No século III d.C., conforme Gonçalves (2012), foram realizadas homilias eloquentes
que versavam sobre capítulos bíblicos ou esclarecimentos pastorais que estimulavam a
perseverança diante das ameaças e perseguições aos cristãos do primeiro século. E, por volta
dos séculos IV, V e VI, os textos receberam o caráter de doutrinação e a oratória passou a ser
valorizada devido à estética proposta à pregação. Surgiram no referido período, célebres
pregadores, tais como: Pedro de Alexandria, Hilário de Poitiers, Atanásio de Alexandria,
Pseudo-Atanásio, Efrém, Basílio de Cesaréia, Cirilo de Jerusalém, Ambrósio de Milão e João
Crisóstomo.
Na Idade Média, os homiliastas, pessoas encarregadas de pregar a homilia, tinham
como objetivo a racionalização da fé. Naquele momento, a igreja estava voltada mais a arte
sacra e aos ritualismos litúrgicos do que na própria pregação bíblica, assim, de acordo com
Gonçalves (2012), a homilia ganhou notoriedade por estar atrelada à filosofia de Agostinho de
Hipona, Tomás de Aquino, Boaventura, Alberto Magno, dentre outros, deixando assim de ser
um discurso simples, se voltando mais para um discurso filosófico-teológico. Floresceu
também a utilização de histórias, lendas e fábulas como formas de conduzir a moralidade dos
fiéis.
Ainda na Idade Média, os fiéis leigos eram proibidos de executarem as pregações sem
aval do bispo. Caso houvessem leigos que pregassem, deveriam seguir rígidas normas para
que se evitassem abusos em suas oratórias. Nesse interim, a leitura da Bíblia Sagrada por
parte da população católica também era vedada. Sendo assim, a pregação homilética foi
perdendo a sua força e poucos eram os pregadores nas igrejas que a realizavam. Entretanto, o
discurso católico manteve-se graças a figura de Francisco de Assis, fundador da Ordem
Franciscana e que realizava suas pregações nas praças públicas (GONÇALVES, 2012). Logo,
a partir do modelo de vida franciscana, surgiram pregadores místicos que nas suas homilias
buscavam inspiração na natureza, davam ênfase à humildade e à pobreza evangélica vividas
por Jesus Cristo, e buscavam orientar moralmente as condutas dos seus ouvintes
(GONÇALVES, 2012, p.39).
No período da Idade Moderna, a pregação homilética católica pouco diferenciou-se do
período anterior, entretanto, com florescimento da Revolução Protestante, passou por
importantes transformações. Para Martinho Lutero, o meio mais eficaz para se chegar a Deus
era o conhecimento da sua Palavra que acontecei por meio das pregações. Clareza,
organização, boa memória, bom timbre de voz e conhecimentos sólidos eram características
de um bom homiliasta daquele período. Conforme Gonçalves (2012):
Os protestantes deram enorme importância à pregação e ao ensino das escrituras a partir do púlpito. A pregação é “o mais excelente meio pelo qual a graça de Deus é conferida aos homens”. Os sermões de Lutero e Calvino eram caracterizados por uma doutrina evangélica e uma metodologia de exposição bíblica. Segundo Lutero um bom pregador deveria seguir o seguinte roteiro: clareza na exposição; ordem dos argumentos; exercitar a memória; possuir voz bem dotada; aptidão para o estudo – para saber o que diz. Lutero afirma ainda que o pregador deveria ter disposição para morrer pela mensagem pregada, abrir mão dos seus bens e adotar uma vida simples. Tornou a Bíblia Sagrada o centro da pregação (p. 40-41).
Assim, a igreja protestante valorizava cada vez mais a leitura e estudo da palavra de
Deus e a pregação dos sacramentos conferindo a qualquer fiel protestante autoridade para ser
um ministro da palavra (GONÇALVES, 2012, p.41).
Na década da 1960, de acordo com Souza (2014), o mundo conheceu um dos maiores
eventos da cristandade: o Concílio Ecumênico Vaticano II, o qual teve por objetivo a
evangelização do mundo atual. O papa João XXIII deu abertura ao Concílio, mas faleceu nas
primeiras sessões, restando ao papa Paulo VI a condução do evento religioso. Estabeleceu-se
naquele momento, dentre muitos outros documentos e decretos, uma regulamentação para a
homilia, dentro do chamado Sacrosanctum Concilium.
O Sacrosanctum Concilium, conforme Gonçalves (2012) é um documento formado
por dois capítulos e tem como objetivo reforçar a ideia de que a Liturgia tem sua expressão
máxima nas Sagradas Escrituras, as quais devem ser esclarecidas através da pregação, ou seja,
no momento de realização da homilia. Orienta-se que nos livros e folhetos litúrgicos indique-
se o momento adequado para se proferir a homilia, evitando excetuá-la nas celebrações, nos
ritos de matrimônio, deixando-a exclusiva à celebração da missa. Assim, uma das
características da construção composicional (BAKHTIN, 1997; SAITO, NASCIMENTO,
2010) do gênero é, segundo os preceitos de Costa e Pinto (2014):
[...] a homilia é inerentemente intertextual porque, antes de qualquer coisa, é construída sobre as bases firmes da Primeira Leitura, da Segunda Leitura e do Evangelho. A partir do Concílio Ecumênico Vaticano II, sobretudo com as determinações da Constituição Sacrosanctum Concilium, a homilia passa, obrigatoriamente, a ter de se referir às leituras bíblicas propostas pela liturgia porque está a serviço “do texto sagrado” (SC, 2007, n. 52) e a partir dele são apresentados aos fiéis os mistérios da fé e as normas da vida cristã (SC, 2007).
Assim, a homilia é até hoje realizada durante a missa, onde é vista como pregação, ou
seja, uma prática oratória. Portanto, seguindo as perguntas-chave presentes no dispositivo
didático de Barros (2012), a homilia pertence a esfera social (BAKHTIN, 1997) religiosa, de
forma mais específica da igreja católica. É um gênero oral, tendo a missa como meio de
circulação.
A prática social refletida pelo gênero é, conforme estudos de Gonçalves (2012), o de
pregar e explicar as Sagradas Escrituras, propondo reflexões sobre os acontecimentos da vida
cotidiana das pessoas, ou melhor, dos fiéis católicos. Segundo Costa e Pinto (2014):
A homilia, atualmente, é compreendida como uma pregação cristã que ocorre no âmbito de uma celebração litúrgica, e, como tal, abarca duas características: a de ser pregação e a de ser pregação litúrgica. Como pregação, deve corresponder às características fundamentais da tarefa pastoral da Igreja, posto que “a fé [...] vem da pregação, e a pregação é feita por mandato de Cristo”, de modo que a sua “proclamação verbal permanece sempre como algo indispensável” (EN, 2006, n. 42). Como pregação litúrgica, deve reunir e refletir os traços e os elementos essenciais de toda a liturgia. O termo pregação encerra em si três outras características que lhe conferem significado mais amplo: apregoar ou proclamar, anunciar e ensinar (MALDONADO, 2002) (p.3).
Tem-se nas palavras de Maldonado (2002) a configuração do conteúdo temático
tratado no gênero (BAKHTIN, 1997; ROJO, BARBOSA, 2012).
Na Exortação Apostólica Pós-Sinodal Sacramentum Caritatis, publicada em 2007,
pelo Papa Bento XVI, afirma-se:
os ministros ordenados devem «preparar cuidadosamente a homilia, baseando-se num adequado conhecimento da Sagrada Escritura». Evitem-se homilias genéricas ou abstratas; de modo particular, peço aos ministros para fazerem com que a homilia coloque a palavra de Deus proclamada em estreita relação com a celebração sacramental e com a vida da comunidade, de tal modo que a palavra de Deus seja realmente apoio e vida da Igreja. Tenha-se presente, a finalidade catequética e exortativa da homilia (SACRAMENTUM CARITATIS, 2007, n. 46).
Os ministros ordenados que se refere à citação, são os padres, os únicos produtores
legitimados como autores do gênero, ou seja, apenas os padres têm autoridade (como papel
discursivo) para proclamar a homilia. Nos exemplares analisados, uma das homilias é
proclamada pelo padre Reginaldo Manzotti, durante uma missa do dia 03/05/2017, e a outra é
por um outro padre que não tem o nome anunciado no vídeo, acontece em uma missa do dia
20/03/2016.
No dia 24 de novembro de 2013, o Papa Francisco publicou a Exortação Apostólica
Evangelii Gaudium sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual. Nessa Exortação, o papa
discorre acerca da preparação e dos recursos pedagógicos utilizados para a exposição, e a
maneira de como deve ser exposta pelos padres aos fiéis. Afirma Francisco:
A homilia é o ponto de comparação para avaliar a proximidade e a capacidade de encontro de um Pastor com o seu povo. De fato, sabemos que os fiéis lhe dão muita importância [...] A homilia pode ser, realmente, uma experiência intensa e feliz do Espírito, um encontro consolador com a Palavra, uma fonte constante de renovação e crescimento (EVANGELII GAUDIUM, 2013, p.82, n.135).
O pregador torna-se canal entre Deus e o povo, o qual é formado, então, pelos fiéis
católicos, sendo estes os destinatários do gênero (conforme Dispositivo de Barros, 2012).
O líder católico ainda reforça que a homilia deve ser levada a sério, e deve ser
preparada com carinho pelo homiliasta, não se tornando numa palestra, onde fala-se
delongamente e nada é transmitido. Pelo contrário, a estrutura geral da homilia (BARROS,
2012) deve ser breve, harmônica. A homilia do padre Reginaldo Manzotti tem duração de 18
minutos e a do segundo padre, 14 minutos. Não há um tempo determinado e restrito, mas
compreende-se que a homilia deve ter um tempo de duração coerente com o tempo de
celebração de uma missa que aproximadamente é realizada dentro de 60 a 75 minutos.
O tipo de discurso que configura o gênero, conforme questão do dispositivo didático
(BARROS, 2012), é um expor interativo, o padre se apresenta em seu discurso como o
representante da igreja e a autoridade em apresentar e explicar as palavras sagradas e envolve
os fiéis presentes na missa, buscando assim a construção de um diálogo mais próximo entre os
interlocutores, para que o objetivo de interpretar a palavra de Deus e aproximá-la da realidade
das pessoas aconteça. Exemplos: na homilia do Padre Reginaldo Manzotti o discurso
interativo é construído pelo uso de recursos linguísticos como a primeira pessoa do discurso,
no singular e no plural. Exemplos: “... nós estamos tomando posse daquilo que Deus nos
deu...”; “...isso nós sabemos pela vida, esse mês de maio é o mês de Maria...”; “... nós
podemos sentir acolhidos por nossa senhora...”. E na homilia do segundo padre os exemplos
do emprego da primeira pessoa do discurso marcando a interação pode ser visto em: “...eu
gostaria de ressaltar aqui dois pontos principais, Lucas é o único evangelista que...”; “...vejam
essa prece de Jesus...”; “...assim como nós que ao celebrarmos...”.
Sobre o tipo de sequência predominante do gênero, considerando a caracterização
dada por Maldonado (2002), supracitado, da homilia ser uma pregação que deve proclamar,
anunciar e ensinar o que dizem as liturgias, as sequências explicativas e argumentativas se
entrelaçam. Ao padre cabe durante sua fala explicar o evangelho do dia e argumentar sobre a
importância das reflexões que podem ser feitas sobre as palavras sagradas e o que vivem hoje
os fiéis católicos. Por exemplo:
A narrativa da paixão de Lucas tem vários pontos interessantes e típicos do próprio Lucas, mas eu gostaria de ressaltar aqui somente dois pontos principais. Em primeiro lugar, Lucas é o único evangelista que relata que Jesus ao ser crucificado, enquanto ele estava sendo pregado na Cruz, ele ia dizendo: “Pai, perdoa, eles não sabem o que fazem”. Vejam essa prece de Jesus, essa manifestação de Jesus. É como Jesus estivesse ali celebrando a santa missa, e toda missa começa com um pedido de perdão. [...] Nós podemos aqui colher o fruto dessa realidade quando em nossas orações vamos sabendo que Ele vai pedindo perdão por nós... (segundo padre/sem identificação de nome).
Logo, A homilia é a experiência humana de aproximar-se e conversar com Deus a luz
de sua Palavra; sua função não está apenas em fazer um relato das passagens bíblicas, mas,
principalmente, refletir os textos sagrados a fim de torná-los mais claros àqueles que
constituem o público alvo, isto é, os fiéis.
Sobre a variedade linguística empregada, considerando a fala do papa Francisco, “a
homilia não pode ser um espetáculo de divertimento, não corresponde à lógica dos recursos
midiáticos, mas deve dar fervor e significado à celebração” (EVANGELII GAUDIUM , 2013,
p.84, n.138), portanto, o tom deve ser mais formal, mais moralista, e a linguagem a ser
utilizada deve ser conciliada ao público da missa, levando-se em consideração a região, a
cultura do local, a idade dos fiéis, já que é um hábito as missas serem direcionadas conforme
o horário em que elas acontecem, por exemplo: a missa realizada aos domingos, no período da
manhã, é geralmente elaborada para as crianças.
Como exemplo de que a variante empregada pelo padre busca adequar-se ao público
participante da missa, é o que ocorre na missa do padre Reginaldo Manzotti. Pela reprodução
da imagem do vídeo, figura 1, é visível que o público é formado de adultos, assim, ao
perceber que empregou uma palavra de forma inadequada à gramatica normativa o padre se
corrige: “Esses dias nós falávamos sobre as mulheres nas sagradas escrituras e um
personagem.... uma personagem muitas vezes é.....” (padre Reginaldo Manzotti).
Figura 1:
Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=dH_ZBfH8K9s
Uma outra característica da linguagem a ser destacada é o fato de que os exemplares
que formam nosso corpus são homilias realizadas em missas transmitidas por emissoras de
televisão, por esse motivo, considera-se também os telespectadores, e no caso do Reginaldo
Manzotti, a missa é toda reproduzida na língua de sinais. Como pode ser comprovado pela
reprodução da imagem:
Figura 2:
Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=dH_ZBfH8K9s
Sobre as vozes frequentes no gênero, a homilia é formada pela voz do padre que a
proclama; a voz dos evangelizadores, como no caso de São Lucas, na homilia do segundo
padre, como já mencionado; a voz de Jesus, de Maria presente em muitas citações diretas
realizadas pelos padres, e ainda outras vozes que se julgue necessário para que a explicação e
a argumentação se estabelece na organização do conteúdo temático, como é o caso do padre
Reginaldo Manzotti que diz:
...quem assistiu o filme “300”, fala Rodrigo Santoro, inclusive brasileira que faz o papel de Gerdis que é o rei da Pérsia, o grande imperador da Pérsia, nesse contexto Ester vai pedir: “olhe para o meu povo” e é impressionante como em um primeiro momento o rei diz: “quem é capaz de colocar a tua vida em jogo...” (padre Reginaldo Manzotti).
Tais vozes conferem autoridade ao discurso do padre, pois são pessoas/personagens
que têm autoridade religiosa para legitimar o tema tratado.
Considerações finais
Com o objetivo de investigar como se configura o gênero discursivo/textual homilia, a
fim de compreender os elementos que o caracterizam, após nossas análises a constatação é a
de que esse gênero participa da esfera social religiosa, mais especificamente, da religião
católica, e é proferida, apenas por padres, só eles têm autorização da igreja para realizar a
homilia, que só acontece na missa, ou seja, em outras celebrações esse gênero não é
produzido. Tem como conteúdo temático (BAKHTIN, 1997) interpretar os textos sagrados, a
fim de propor reflexões sobre as práticas na vida cotidiana atual das pessoas tomando como
ponto de partida os referidos textos sagrados. É um texto oral, fazendo uso de uma linguagem
mais formal, o que pode variar diante dos interlocutores diretos. Existe há muitos séculos,
sendo regulado depois de um determinado tempo até hoje pelos preceitos da igreja.
Logo, conhecidos alguns dos elementos que caracterizam o gênero, esperamos poder
colaborar com aqueles que participam das situações comunicativas onde a homilia acontece,
podendo assim, os fiéis católicos, participar de uma forma mais efetiva da prática da qual
emerge o referido gênero.
Referências
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