publicidade de alimentos funcionais uma análise retórico...
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ALTAIR ACHETTA SCHENEIDER
Publicidade de alimentos funcionais – uma
análise retórico-discursiva.
Universidade Metodista de São Paulo
Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social
São Bernardo do Campo-SP, 2012
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ALTAIR ACHETTA SCHENEIDER
Publicidade de alimentos funcionais – uma
análise retórico-discursiva.
Dissertação apresentada
em cumprimento parcial às exigências do
Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social,
da UMESP-Universidade Metodista de São Paulo,
para obtenção do grau de Mestre.
Orientadora: Profª. Drª. Elizabeth Moraes Gonçalves
Universidade Metodista de São Paulo
Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social
São Bernardo do Campo-SP, 2012
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FOLHA DE APROVAÇÃO
A dissertação de mestrado sob o título “Publicidade de Alimentos Funcionais
uma análise retórico-discursiva”, elaborada por Altair Achetta Scheneider, foi defendida
e aprovada no dia 18 de Maio de 2012, perante banca examinadora composta por Profa.
Dra. Elizabeth Moraes Gonçalves (Presidente/UMESP), Profa. Dra. Magali do
Nascimento Cunha (Titular/UMESP) e Prof. Dr. Vander Casaqui (Titular/ESPM).
__________________________________________
Profa. Dra. Elizabeth Moraes Gonçalves
Orientador/a e Presidente da Banca Examinadora
__________________________________________
Prof. Dr. Laan Mendes de Barros
Coordenador/a do Programa de Pós-Graduação
Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social,
da UMESP-Universidade Metodista de São Paulo,
Área de concentração: Processos Comunicacionais
Linha de pesquisa: Processos de Comunicação Científica e Tecnológica
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Dedicatória:
Dedico esta obra a meu pai (in memorian), que aos meus sete anos me disse que seu
melhor amigo era o livro.
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Epígrafe:
“Se você falar com um homem numa linguagem que ele compreende, isso entra na
cabeça dele. Se você falar com ele em sua própria linguagem, você atinge seu
coração."
Nelson Mandela
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Agradecimentos:
Agradeço em primeiro plano à minha família, cuja educação me permitiu chegar
onde estou hoje.
Agradeço, especialmente, a minha orientadora Profª. Dra. Elizabeth Moraes
Gonçalves, pela simpatia e paciência que teve comigo durante esse processo.
Ao Prof. Dr. Paulo Rogério Tarsitano agradeço pela forma carinhosa com que
me auxiliou nesse momento tão caro à minha formação educacional e profissional.
Aos meus amigos do programa de pós-graduação em comunicação, e aos
colegas fiéis e sempre solícitos da Universidade Metodista de São Paulo, meu profundo
agradecimento pelo apoio incondicional durante esta dura jornada, sem citar nomes
para não cometer a indelicadeza de esquecer algum, mas com a certeza que se
encontrarão e se identificarão, nesse singelo agradecimento.
Agradeço ainda a colaboração e compreensão do pessoal da agência em que
trabalho pela ausência em período tão longo.
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Lista de tabelas
Tabela 1 - Protocolo de análise de discurso – BECEL peça 1 ................................................. 113
Tabela 2 - Protocolo de análise de discurso – BECEL peça 2 ................................................. 120
Tabela 3 - Protocolo de análise de discurso – BECEL peça 3 ................................................. 126
Tabela 4 - Protocolo de análise de discurso – BECEL peça 4 ................................................. 130
Tabela 5 - Protocolo de análise de discurso – BECEL peça 5 ................................................. 134
Tabela 6 - Protocolo de análise de discurso - ACTIVIA peça 1 ................................................ 140
Lista de ilustrações
Figura 1 – Cena Inicial – Comercial 1 ........................................................................................... 114
Figura 2 – Cena final – A oradora e o cuidado com “seu” coração. ......................................... 118
Figura 3 - Marília Gabriela e o filho Cristiano .............................................................................. 120
Figura 4 - Sequência: carinho de mãe .......................................................................................... 122
Figura 5 - Sequência: "TUM, TUM, TUM" e "Guerra de Corações" ......................................... 122
Figura 6 - Marília Gabriela de branco ............................................................................................ 126
Figura 7 - Cuidamos de nossos corações .................................................................................... 129
Figura 8 - Marília Gabriela e Gabriel ............................................................................................. 131
Figura 9 - Tim, tim ............................................................................................................................ 133
Figura 10 - Peça final da campanha - Todos juntos ................................................................... 134
Figura 11 - Sequência - Todos aqui... ........................................................................................... 136
Figura 12 - Gestual final: Pequeno, Grande, Comemoração .................................................... 137
Figura 13 - Brinde Final ................................................................................................................... 138
Figura 14 - Bexiga em Movimento ................................................................................................. 141
Figura 15 - Figurantes e seus problemas de inchaço................................................................. 142
Figura 16 - Intestinos e Activia ....................................................................................................... 144
Figura 17 - Degustando Activia ...................................................................................................... 145
Figura 18 - Adeus balão .................................................................................................................. 145
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Sumário
Introdução .......................................................................................................................................... 12
Capítulo I – O indivíduo e a contemporaneidade. ................................................................... 18
1.1 - Modernidade e Contemporaneidade .................................................................................. 18
1.1.1 – A transitoriedade das coisas, a liquidez. ...................................................................... 19
1.1.2 – O indivíduo e a contemporaneidade. ............................................................................. 26
1.1.3 – O Narcisismo e hedonismo na contemporaneidade. ................................................ 30
1.1.4 – A velocidade da contemporaneidade – o aqui e o agora ......................................... 31
1.1.5 – Individualismo competitivo .............................................................................................. 35
CAPÍTULO II – Grupos sociais, cultura, consumo: o culto à beleza, à saúde e ao corpo.
............................................................................................................................................................... 41
2.1 – Cultura ....................................................................................................................................... 41
2.1.1 – Identidade com um grupo. ................................................................................................ 43
2.1.2 – Hegemonia ............................................................................................................................ 46
2.1.3 – Cultura do Consumo .......................................................................................................... 49
2.1.4 – Cultura do EU ....................................................................................................................... 53
2.3 – Grupo Social e Consumo ..................................................................................................... 56
2.4 – Saúde, beleza e culto ao corpo como paradigma para um grupo ............................ 59
2.5 – Produtos e alimentos – contribuição e promessa ......................................................... 66
Capítulo III – Discurso publicitário, análise discursiva e retórica....................................... 70
3.1 – A Publicidade na contemporaneidade.............................................................................. 74
3.2 – A análise de discurso na publicidade. .............................................................................. 78
3.2.1 – Pós-estruturalismo e retórica .......................................................................................... 79
3.2.2 – Nova retórica ........................................................................................................................ 82
3.3 – A nova retórica ........................................................................................................................ 85
3.3.1 – Análise da argumentação publicitária ........................................................................... 85
3.3.2 – Persuasão retórica.............................................................................................................. 86
3.3.3 – Auditório ................................................................................................................................ 87
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3.3.4 – Tipos de argumentação ..................................................................................................... 88
3.3.5 – O acordo ................................................................................................................................ 89
3.3.6 – A argumentação .................................................................................................................. 90
3.3.6.1 – Estrutura do real .............................................................................................................. 91
3.3.6.2 – Quase-lógica ..................................................................................................................... 94
3.3.6.3 – Dissociação de argumentos ......................................................................................... 98
3.3.6.4 – Interação de argumentos ............................................................................................... 99
3.4 – Análise retórica ....................................................................................................................... 99
3.4.1 – Contexto .............................................................................................................................. 100
3.4.2 – Invenção .............................................................................................................................. 100
3.4.3 – Dispositio ............................................................................................................................ 101
3.4.4 – Elocutio ................................................................................................................................ 102
3.4.5 – Actio ..................................................................................................................................... 103
Capítulo IV – Publicidade de alimentos funcionais, contexto, texto e cenas da
enunciação ....................................................................................................................................... 105
4.1 – Publicidade e publicidade de alimentos funcionais ................................................... 106
4.1.1 – Contexto, texto e cenografia .......................................................................................... 110
4.1.2 – Ame seu Coração .............................................................................................................. 112
4.1.2.1 – Peça 1 – Marília Gabriela e Becel .............................................................................. 113
4.1.2.2 – Peça 2 – Marília Gabriela e o filho Cristiano ........................................................... 119
4.1.2.3 – Peça 3 – Marília Gabriela e Júlia ................................................................................ 125
4.1.2.4 – Peça 4 – Marília Gabriela e Gabriel ........................................................................... 129
4.1.2.4 – Peça 5 – Marília Gabriela e todos os convidados ................................................. 133
4.1.3 – DanRegularis ...................................................................................................................... 138
4.1.3.1 – Peça 1 – Bexiga Desafio 2010 – Patrícia Travassos ............................................. 139
Considerações Finais ................................................................................................................... 147
Referências ...................................................................................................................................... 154
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Título: Publicidade de alimentos funcionais, uma análise retórico-discursiva.
Autor: Altair Achetta Scheneider
Resumo
Produtos funcionais fazem parte do nosso cotidiano, cada vez mais
caracterizado pela ênfase na saúde e qualidade de vida. A pesquisa proposta, com
abordagem qualitativa, objetiva analisar a propaganda de produtos e alimentos
funcionais que utilizam como elemento persuasivo expressões ou conceitos
científicos, considerando o status e a credibilidade que a ciência tem em nossa
sociedade. O corpus constitui-se de duas peças comerciais de produtos (margarina
e iogurte) que utilizam esse expediente em sua comunicação. Busca-se analisar a
bibliografia existente sobre alimentos funcionais, contemporaneidade, cultura,
grupos sociais, publicidade, análise do discurso e retórica, porém, centra-se a
análise na organização da mensagem, especialmente no que se refere à
argumentação retórica e ao discurso, ensejando, uma visita crítica da persuasão
disfarçada sobre a argumentação ligada à beleza e saúde. Espera-se com o trabalho
entender o processo de construção retórica da argumentação, para a persuasão, em
torno de alimentos funcionais, que utilizam em sua comunicação expressões
científicas ligadas aos princípios de funcionalidade desses produtos, entre outras
características desse discurso especializado.
Palavras–chave: publicidade, comunicação, retórica, análise de discurso,
contemporaneidade.
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Abstract:
Functional products are part of our everyday life, characterized more and
more by health and welfare improvement. The research aims at analyzing, by means
of the qualitative approach, the advertisement of functional products and food that
use scientific expressions or concepts as persuasive elements, considering the
status and credibility that science has in our society. The corpus is composed by
commercials of two products (margarine and yogurt) which use that device in your
communication. The research seeks to analyze the current bibliography on functional
food, contemporaneity, culture, social groups, advertisement, speech analysis and
rhetoric; however, it is centered in analyzing the organization of the message,
especially regarding rhetorical argumentation and speech, entailing a critical view of
the disguised persuasion on argumentation concerning beauty and health. It is
expected with the work understand the process of rhetorical construction of argument
for persuasion, about functional foods, which use in their communication scientific
expressions relating to the principles of functionality of these products, among other
characteristics of specialized discourse.
Key-words: advertisement, communication, rhetoric, speech,
contemporaneity
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Introdução
Atualmente observa-se uma enorme preocupação, na sociedade ou ao
menos em alguns grupos muito bem delimitados, com a beleza, saúde e o culto ao
corpo. Esse comportamento tem despertado em diversos setores da economia o
interesse por entender e atender a uma demanda por produtos destinados a
propiciar ou a facilitar o encontro dos consumidores com um padrão de beleza e de
saúde, que pode ser observado exteriormente pelas formas do corpo.
Diante desse comportamento e da necessidade que a sociedade tem
demonstrado em cuidar melhor da saúde, com os reflexos no corpo e na beleza,
várias empresas de segmentos diversos tem se esforçado por criar e divulgar
produtos que sejam capazes de atender a essa demanda, os quais, por sua vez, têm
a capacidade de propiciar algum benefício que contribua para o consumidor ao
utilizá-lo, na busca desse equilíbrio entre saúde, beleza e um corpo perfeito.
De um modo empírico observa-se, em uma boa parte da população, essa
necessidade de se enquadrar em um estereótipo de beleza, que muito bem poderia
ser chamado de ditadura da beleza. Esses padrões de beleza se apoiam em
características corporais que remetem a um nível de cuidados com o corpo elevado,
muitas vezes apoiado no argumento da saúde propiciada por esse culto ao corpo.
Para alcançar esse objetivo muitas pessoas buscam, além dos exercícios
físicos, um padrão de alimentação que possa contribuir, de alguma forma, para o
sucesso dessa empreitada.
Vários foram, então, os produtos criados para atingir essa necessidade
latente dos consumidores. São eles produtos e serviços com o objetivo principal de
propiciar aos seus usuários esse padrão que denota, por meio das formas do corpo,
uma saúde e uma beleza, ligados a padrões socialmente estabelecidos. São
produtos das mais variadas linhas e setores: desde calçados e roupas para a prática
de esportes; serviços, como as academias, spas e centros estéticos; profissionais de
saúde especialistas em alimentação e metabolismo; remédios e cosméticos com
capacidade de melhorar a saúde e a aparência; alimentos com nutrientes e
componentes que auxiliam na busca e manutenção de uma saúde e beleza
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equilibrados; o que se reflete em um corpo bonito, dentro de padrões estabelecidos
pela sociedade.
Dentre os produtos acima, os alimentos têm um destaque na vida das
pessoas, e um tipo especial de alimento surgiu, com a promessa de auxiliar nesse
processo da busca da perfeição corporal, beleza e saúde: o alimento funcional.
O alimento funcional teria a capacidade de auxiliar, de alguma forma,
processos metabólicos os quais favorecem a manutenção de um corpo são, com
reflexos na beleza e na saúde. Muitos desses produtos se utilizam de expressões
cujo fundamento é científico, com o uso de denominações e de palavras originadas
nas ciências, o que não deve ser feito simplesmente por acaso.
É relevante entender esse processo comunicacional em torno dos alimentos
funcionais e do uso dessas expressões de caráter científico, de forma a
compreender como esse discurso persuasivo é construído.
Para tanto serão analisadas as campanhas publicitárias de dois dos
alimentos funcionais de maior exposição na mídia, Activia (da empresa Danone) e
Becel ( da Unilever). As peças analisadas, num total de 6, sendo 5 de Becel e 1 de
Activia, foram veiculadas no meio televisão, no período de janeiro de 2010 e
dezembro de 2010, em São Paulo, eventualmente com abrangência nacional. Esses
produtos foram escolhidos por conta da representatividade e importância dos
mesmos nesse seguimento de produtos funcionais e sua exposição na mídia,
nacionalmente.
As peças de Becel foram escolhidas porque são parte de uma campanha em
que os filmes ficaram uma semana no ar e foram sendo sucedidos pelos próximos,
inclusive com um relacionamento entre essas propagandas, um gancho, no início de
cada uma delas, resgatando o conteúdo das anteriores, por isso o conjunto de 5
filmes da margarina, já o filme do iogurte foi escolhido pelo tempo que ficou sendo
exibido, voltando ao ar várias vezes durante o ano.
A metodologia dessa pesquisa será qualitativa, de caráter exploratório e
descritivo, entendida, então como uma pesquisa bibliográfica e documental, para a
conceituação e debate das teorias sobre: contemporaneidade, estudos culturais,
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análise de discurso e retórica, construindo um referencial para verificar o texto, o
contexto e as cenas enunciativas das peças publicitárias escolhidas.
A análise dessas peças publicitárias será baseada na análise do discurso,
com ênfase na análise retórica, especialmente a ‘nova retórica’, assim chamada
após os recentes estudos feitos por Perelman em sua obra: “Tratado de
Argumentação, Uma Nova Retórica”, porém se apoiará em outros teóricos da
linguagem e da análise de discurso como: Saussure, Bakhtin, Pêcheux,
Maingueneau, Charaudeau, Barthes e Gonçalves entre outros.
Será feito um estudo, também, do contexto contemporâneo em que essa
comunicação se estabelece e qual a influência deste no resultado da argumentação.
O contexto levantado será o da contemporaneidade, do individualismo,
narcisismo e hedonismo dos indivíduos, da impermanência, fluidez e liquidez desses
tempos contemporâneos, trazendo contribuições da filosofia, da sociologia e dos
estudos culturais. Para esses conceitos serão utilizados textos de Bauman,
Lipovetsky, Hall, Thompson, Williams, Canclini, Barbero, Maffesoli, entre outros.
A questão girará em torno do discurso e da persuasão, presentes na
publicidade, com o apoio de expressões e linguagem científica. Esse estudo visa
entender esse processo e os argumentos utilizados para a persuasão, baseados nas
expressões científicas e nos resultados prometidos por essa funcionalidade dos
alimentos, que com isso seriam capazes, de alguma forma, de possibilitar aos
consumidores se identificar ou contemporizar com grupos específicos de consumo e
de comportamento.
O problema geral, então, girará em torno da seguinte questão: “O discurso
publicitário na propaganda de alimentos funcionais, com o apoio das expressões
científicas, e os argumentos discursivos utilizados nessas campanhas, têm um
caráter meramente persuasivo, buscando aumentar a adesão dos consumidores e
os resultados para os clientes?”
Essa grande questão será respondia com base em outras questões menores
que nortearão a pesquisa e suas conclusões. As questões de pesquisa procurarão
elucidar ou esclarecer o que é a contemporaneidade e como ela é vivida pelos
consumidores, como os consumidores vão se comportar diante desses novos
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tempos em relação ao consumo, o paradigma de saúde beleza e culto ao corpo na
contemporaneidade, o que são os alimentos funcionais, quem são os consumidores
que se identificam com esses produtos, quais os recursos discursivos que são
utilizados nas campanhas, qual a argumentação, e como se estrutura, com base na
retórica.
Após responder a essas questões importantes, para entender como a
publicidade tem estruturado sua argumentação em torno dos alimentos funcionais
para melhor persuadir os consumidores, refletir e considerar, então, sobre o tema e
o trabalho no seu todo.
Para atender às demandas geradas com as questões de pesquisa, o
trabalho será organizado em quatro capítulos, os quais estão divididos de forma a
apresentar uma parte da solução para cada problema encontrado.
O primeiro capítulo versará sobre a contemporaneidade e os indivíduos, mas
sem discutir as terminologias que se tem utilizado para definir esses novos tempos
como: modernidade tardia, modernidade fluida, modernidade líquida, pós-
modernidade e contemporaneidade.
Ainda nesse capítulo trataremos de assuntos ligados ao ser humano, ao
sujeito, contemporâneo e seu modo de agir e de pensar. Como esses novos tempos
estão interferindo e alterando o comportamento dos indivíduos. A velocidade e a
transitoriedade das coisas, dos desejos e das necessidades, o encurtamento do
ciclo de vida produtivo e dos produtos, como isso influi nos desejos e necessidades.
Como o indivíduo tem se tornado hedonista e narcisista, a preocupação do
sujeito girando em torno da sua aparência e como isso está se refletindo numa
forma cada vez mais acentuada em um individualismo crônico, o abandono da vida
em comum e da preocupação com o coletivo em detrimento do pensamento em
torno do “eu”.
A nova velocidade imposta pela contemporaneidade, o aqui e agora como
fator marcante dessa era, viver o momento é o mais importante, o que redunda em
um comportamento competitivo e individualista.
No segundo capítulo trataremos da cultura e de seus estudos, o consumo
como lugar da cultura, o pertencimento e a identificação com determinados grupos.
Terá ainda lugar o estudo sobre a identidade e a hegemonia, ligados,
especialmente ao processo de criação, manutenção e filiação aos grupos sociais, a
ligação disso com a comunicação e a globalização, como os indivíduos se sentem
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parte desses grupos, ou são reconhecidos como pertencentes, mesmo estando
fisicamente longe dos agrupamentos de engajamento.
Veremos como a saúde, a beleza e o culto ao corpo, são hoje formas de
reconhecimento de um grupo social específico, entenderemos um pouco sobre seu
funcionamento e alguns fatores de consumo ligados a esses grupos que permitem
ao indivíduo a filiação ou a identificação pela compra e uso de produtos destinados a
essa importante parcela da população mundial.
Inseriremos o conceito de alimento funcional, como sendo um dos produtos
de ligação e pertencimento dos indivíduos ao grupo escolhido no recorte do trabalho,
como sendo parte dos hábitos de consumo dos participantes do agrupamento social
que se identifica com padrões de saúde, beleza e corpo sadio, propagados pelos
produtores e meios de comunicação, dentro do processo de hegemonização.
O capítulo três abordará as formas de análise de discurso e as teorias que
serão utilizadas para a verificação das mensagens publicitárias que fazem parte do
corpus de estudo.
Falaremos sobre a publicidade e seu discurso especializado, como ela tem
se comportado na contemporaneidade, como tem se apropriado de vários aspectos
da vida pós-moderna para estruturar seu discurso e sua argumentação.
Estudaremos a análise de discurso, especialmente no que diz respeito à
publicidade, aplicando à publicidade seus conceitos de verificação do texto, contexto
e cenário enunciativo.
Tomaremos a retórica como forma de argumentação e de análise do
discurso para, em conjunto com a análise de discurso tradicional, verificarmos como
se constrói e quais elementos estão presentes na mensagem publicitária, quer
sejam eles internos, externos, escritos, falados e, inclusive, os não-ditos, na forma
das imagens e gestuais.
O ethos, pathos e logos, serão conceituados e discutidos nesse capítulo. A
retórica como argumentação será a chamada “nova retórica”, uma releitura da
retórica aristotélica feita por Perelman, inclusive com seu olhar sobre a retórica na
publicidade, como instrumento persuasivo, revisitaremos os conceitos sobre a
argumentação segundo esse autor, para posteriormente usá-los na análise do
discurso do corpus escolhido.
O quarto, e último capítulo, falará, especificamente, sobre a publicidade
ligada aos alimentos funcionais e como está estruturada sua argumentação e
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discurso, como ela interage e se relaciona com o contexto da contemporaneidade e
o indivíduo nesta contemporaneidade, quais são os elementos da cena enunciativa,
analisará o corpus proposto e fomentará uma reflexão à luz do que for encontrado.
A análise iniciará com um estudo sobre a propaganda de alimentos
funcionais, resgatará, dos primeiros capítulos, as importantes informações sobre o
indivíduo e a vida nos dias atuais para preparar um contexto de inserção das peças
publicitárias.
Faremos a análise das peças (cinco) da margarina Becel e (uma) do iogurte
Activia, produtos das empresas Unilever e Danone, respectivamente, para entender
como se estrutura o que se diz e mesmo o que não se diz em cada uma das
mensagens, considerando o panorama e contexto levantado na primeira parte do
trabalho. Buscaremos qual o sentido que se encontra nesses filmes publicitários com
a análise.
E finalmente, faremos nossas considerações finais sobre tudo o que se
estudou e se verificou por meio deste trabalho.
18
Capítulo I – O indivíduo e a contemporaneidade.
Vivemos em um mundo em que há uma preocupação extrema com o lado
externo, com o exterior, com o que aparentamos. Cada vez mais as pessoas estão
preocupadas com a sua aparência, sua beleza. Não obstante essa preocupação há,
também, uma conscientização maior em torno da importância da saúde e de tudo o
que a ela se refere, no nosso cotidiano. Os hábitos saudáveis de vida estão em
pauta, com grande importância na vida dos indivíduos. Em decorrência desses
fatores, em contrapartida, aparece o culto ao corpo como uma forma de exteriorizar
a saúde de cada um, mas também de se encaixar num estereótipo de beleza.
Essa problematização, de se encaixar em estereótipos, parece ser um
problema ligado ao estilo de vida contemporâneo, em que as identidades estão
sendo “descentradas”, isto é, deslocadas ou fragmentadas, conforme assinala Hall
(2005, p. 8) em que as pessoas buscam resultados rápidos, com receitas e soluções
imediatas para seus problemas, essa busca se escora em um modelo de
pertencimento novo, em que o “EU” assume papel importante, satisfazendo a si
próprio, comparando-se com o paradigma escolhido basta para que o indivíduo se
sinta participante de determinado grupo, que se identifique com ele, essa “identidade
é formada da ‘interação’ entre o eu e a sociedade” (HALL, 2005, p. 11).
1.1 - Modernidade e Contemporaneidade
Estamos diante de um mundo em que o moderno dá lugar ao
contemporâneo, onde as pessoas buscam se encaixar em padrões que mudam
rapidamente, Hall (2005, p. 14) enfatiza que as sociedades modernas são por
definição sociedades de mudanças constantes, rápidas e permanentes, assim em
todas as seções que a vida possui há um quê de transitoriedade, uma constante
mudança de hábitos e de aparências, há uma necessidade de se encaixar em
grupos, de alguma forma, esses grupos, agora, têm uma aparência mais globalizada
e menos localizada.
19
(...) estamos passando de uma era de ‘grupos de referência’ predeterminados a uma outra de ‘comparação universal’ em que o destino dos trabalhos de autoconstrução individual está endêmica e incuravelmente subdeterminado, não está dado de antemão, e tende a sofrer numerosas e profundas mudanças antes que esses trabalhos alcancem seu único fim genuíno: o fim da vida do indivíduo. Hoje, os padrões e configurações não são mais ‘dados’ e menos ainda ‘autoevidentes’; eles são muitos, chocando-se entre si e contradizendo-se em seus comandos conflitantes, de tal forma que todos e cada um foram desprovidos de boa parte de seus poderes de coercitivamente compelir e restringir.(BAUMAN, 2001, p. 15)
Indivíduos pensam em alta velocidade, desejam cada vez mais e mais,
encontram em novas manias e modas o respaldo para a falta das relações, não se
identificam mais com as pessoas e as coisas como antigamente, “as velhas
identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio,
fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo contemporâneo, até
aqui visto como um sujeito unificado”. (HALL, 2005, p.7)
Esse momento tem recebido várias nomenclaturas, Hall a chama de
modernidade tardia, Bauman de modernidade fluida, outros de segunda
modernidade, última sociedade moderna ou pós-moderna e ainda contemporânea.
Nesse estudo trataremos a modernidade tal e qual Bauman, na obra Modernidade
Líquida e Hall, em A Identidade Cultural na Pós-modernidade, a tratam,
independentemente de chamá-la de fluida, líquida ou de tardia, não entraremos no
mérito de discutir qual a melhor forma de chamar esse novo tempo, o importante
será ter em mente que o tempo é a contemporaneidade, o aqui e o agora.
1.1.1 – A transitoriedade das coisas, a liquidez.
Nosso tempo tem mudado muito as coisas e elas têm se tornado
descartáveis, pois de modo muito consciente, os produtos todos são feitos para
durar menos, não pelo aspecto da qualidade, mas pela voraz capacidade de evoluir
e criar novas necessidades nos consumidores. Esse ciclo de vida diminuído permite
que a roda do consumo não pare e que o faturamento das empresas se mantenha
sempre em marcha, sobre o que Featherstone (1995, p. 31) explica: “é a concepção
de que a cultura de consumo tem como premissa a expansão da produção
capitalista de mercadorias, que deu origem a uma vasta acumulação de cultura
material na forma de bens e locais de compra e consumo”.
20
Nesse mesmo sentido e observando esse comportamento consumista e a
capacidade de produção em massa, De Santi (2005, p. 183) afirma que “a imagem
paradigmática é a da indústria automobilística, que, percebendo seu potencial de
produção em massa, passou a criar mecanismos para seu escoamento, e isso se
fez pela transformação da mão de obra – o trabalhador – em consumidor”, sem
dúvida uma estratégia inteligente para manter a roda capitalista constantemente
girando.
Essa marcha do consumo, que é um dos hábitos mais arraigados nos seres
humanos da atualidade, ajuda a forjar, neles, um tipo de transitoriedade, uma
impermanência diante das coisas e dos seus desejos. Os desejos, que são criados
com o consumo e a velocidade das mudanças nas linhas de produtos, causam
efeitos em outras áreas da vida humana, como nas relações em sociedade, o bom
sempre estará a sua frente e não ao seu alcance, parece que tudo escorre por suas
mãos, especialmente quando se conquista um objetivo qualquer.
(...) um Estado de perfeição a ser atingido amanhã, no próximo ano ou no próximo milênio, algum tipo de sociedade boa, de sociedade justa e sem conflitos em todos ou alguns de seus aspectos postulados: do firme equilíbrio entre oferta e procura e a satisfação de todas as necessidades; da ordem perfeita, em que tudo é colocado no lugar certo, nada que esteja deslocado persiste e nenhum lugar é posto em dúvida; das coisas humanas que se tornam totalmente transparentes porque se sabe tudo o que deve ser sabido; do completo domínio sobre o futuro - tão completo que põe fim a toda contingência, disputa, ambivalência e consequências imprevistas das iniciativas humanas. (BAUMAN, 2001, p. 38)
Pensamos nessa velocidade das mudanças, mas não das mudanças
exteriores apenas, o indivíduo internamente também muda, também sucumbe diante
nas mudanças da vida e sofre mudanças, de paradigmas e de objetivos.
O mercado está atento a isso e retroalimenta esse fluxo criando sempre
novos produtos, alterando assim as necessidades dos indivíduos, vivemos:
num mundo cheio de oportunidades - cada uma mais apetitosa e atraente que a anterior, cada uma ‘compensando a anterior, e preparando o terreno para a mudança para a seguinte’ - é uma experiência divertida. Nesse mundo, poucas coisas são predeterminadas, e menos ainda irrevogáveis. Poucas derrotas são definitivas, pouquíssimos contratempos, irreversíveis; mas nenhuma vitória é tampouco final. Para que as possibilidades continuem infinitas, nenhuma deve ser capaz de petrificar-se em realidade para sempre. (BAUMAN, 2001, p. 74)
21
Com esse sistema de cobertura de um produto por outro de uma moda por
outra, de forma a manter acesa e incompleta a satisfação da necessidade humana,
nenhum objetivo alcançado pelo ser humano é bom o suficiente, pois sempre haverá
outro para ser galgado. O indivíduo ficará eternamente em busca de novas coisas
que completem ou satisfaçam suas já inquietas vontades.
Esse processo é impulsionado pelos produtores que entendem o
comportamento e exploram essas fragilidades, disponibilizando novidades com
prazos cada vez mais curtos, em relação a um passado recente. O ciclo de vida dos
produtos diminuiu drasticamente, especialmente quando falamos de produtos
ligados à tecnologia. Por trás desse movimento há a necessidade de manter acesa
uma chama dentro de cada consumidor para que a demanda seja sempre crescente,
apoiando a roda da procura, demanda, consumo e oferta.
Um estimulante mais poderoso, e, acima de tudo, mais versátil é necessário para manter a demanda do consumidor no nível da oferta. O ‘querer’ é o substituto tão necessário; ele completa a libertação do princípio do prazer, limpando e dispondo dos últimos resíduos dos impedimentos do ‘princípio de realidade’: a substância naturalmente gasosa foi finalmente liberada do contêiner. Citando Ferguson uma vez mais: ‘Enquanto a facilitação do desejo se fundava na comparação, vaidade, inveja e a "necessidade" de auto-aprovação, nada está por baixo do imediatismo do querer. A compra é casual, inesperada e espontânea. Ela tem uma qualidade de sonho tanto ao expressar quanto ao realizar um querer, que, como todos os quereres, é insincero e infantil.(BAUMAN, 2001, p.90)
Esse processo de aproveitar o querer é facilitado pela velocidade com que
as demandas dos indivíduos mudam com o passar do tempo. E para atender melhor
esse modo de pensar e de desejar líquido, os produtores ou as empresas,
encontraram uma fórmula mágica para manter essa roda consumista funcionando e
sempre buscando por novos produtos e serviços, além disso, podemos verificar
outra forma de ver o processo de substituição dos bens de consumo:
A produção de mercadorias como um todo substitui hoje ‘o mundo dos objetos duráveis’ pelos ‘produtos perecíveis projetados para a obsolescência imediata’. As sequencias dessa substituição foram sagazmente descritas por Jeremy Seabrook: O capitalismo não entregou os bens às pessoas; as pessoas foram crescentemente entregues aos bens; o que quer dizer que o próprio caráter e sensibilidade das pessoas foi reelaborado, reformulado, de tal forma que elas se agrupam aproximadamente (...) com as mercadorias,
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experiências e sensações (...) cuja venda é o que dá forma e significado a suas vidas.(BAUMAN, 2001, p. 100)
Essa realidade, no entanto, não vem sem que algum tipo de efeito colateral
seja sentido. Essas mudanças acabam por gerar quebras de paradigmas para cada
um dos indivíduos que acabam se associando a esse ou àquele grupo, pela compra
e consumo de determinados bens, esse fenômeno é causado pela constante
mudança da vida pós-moderna, com toda a sua liquidez e impermanência.
Um fator importante, que influencia o uso de bens marcadores nas sociedades capitalistas, é que a taxa de produção de novos bens significa que a disputa para obter “bens posicionais” (Hirsch, 1976) – bens que definem o status social nos níveis mais altos da sociedade – é relativa. A oferta constante de novas mercadorias, objetos de desejo e da moda, ou a usurpação dos bens marcadores pelos grupos de baixo, produz um efeito de perseguição infinita, segundo o qual os de cima serão obrigados a investir em novos bens (...) a fim de restabelecer a distância social original. (FEATHERSTONE, 1995, p. 38)
Além dos problemas causados para o próprio indivíduo, aqueles que estão
ao seu entorno, especialmente os que se encontram assentados sobre as bases
fornecidas pelo sujeito em questão, serão atingidos por efeitos colaterais que,
dependendo o caso podem ser muito importantes, esses indivíduos que se
encontram no entorno do sujeito observado, por sua vez, nem sempre poderão
exprimir ou exteriorizar sua forma de pensar a respeito dessas mudanças de
paradigmas, com influências as mais diversas possíveis.
Mudar de identidade pode ser uma questão privada, mas sempre inclui a ruptura de certos vínculos e o cancelamento de certas obrigações; os que estão do lado que sofre quase nunca são consultados, e menos ainda têm chance de exercitar sua liberdade de escolha.(BAUMAN, 2001, p. 105)
Diante da fluidez e da liquidez de todas as coisas na contemporaneidade a
comunicação também aderiu a esse processo, sendo muito mais atenta às
mudanças de cenários ao seu redor e capaz de entender e exteriorizar isso na sua
programação, quer seja por novos formatos, quer seja por novos conteúdos,
atualizados na mesma velocidade com que os indivíduos se atualizam e mudam
suas perspectivas de vida e de objetivos. Uma forma bastante interessante de se
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analisar e que serve de analogia para qualquer modelo comunicacional, ou tipo de
programa veiculado, é verificar o formato e o conteúdo dos noticiários, que refletem
esse estilo frenético em sua produção, tanto no meio televisão, quanto nos meios
eletrônicos, os quais, especialmente, têm a característica da impermanência e da
rapidez ainda mais presente, pela velocidade e volatilidade com que as notícias
deixam de ser manchete para dar lugar a outras, mais “frescas”, acompanhando a
capacidade de absorção cada vez maior dos indivíduos. Essa volatilidade reflete a
volatilidade com que o público se comporta diante dos fatos, a capacidade de
sobrescrever uma determinada informação com outra nova que julga mais
importante. Esse modelo se retroalimenta, na medida em que o conteúdo é feito
para atender a essa volatilidade e é atualizado com a mesma velocidade que o
público se atualiza e abastece de informações. É o continuísmo do processo de
liquidez, alimentado pelo grande volume de informações disponíveis, absorvidas, ou
não, pelo público, que aproxima o indivíduo, bem como os meios de comunicação,
da transitoriedade que se instala ao manter uma velocidade absurda de mudanças
nos conteúdos disponibilizados pelos meios de comunicação. É a constatação e a
alimentação por parte dos meios de comunicação da transitoriedade das coisas, por
meio da sobreposição das informações, por outras mais recentes. Além disso, o
próprio conteúdo se coaduna com essa velocidade, é tão fluído quanto durará sua
exposição, é a transitoriedade das coisas invadindo a mídia e levando sempre uma
novidade para seu público, o qual se identifica com novas informações, novas
modas, novas tendências e muda seu estilo de vida e seus objetivos para atender a
essas mudanças tão repentinas e passageiras, de uma efemeridade sem tamanho,
característica da contemporaneidade, nesse sentido:
E aquilo sobre o que a informação mais informa é a fluidez do mundo habitado e a flexibilidade dos habitantes. ‘O noticiário’ - essa parte da informação eletrônica que tem maior chance de ser confundida com a verdadeira representação do "mundo lá fora' e a mais forte pretensão ao papel de "espelho da realidade" (e a que comumente se dá o crédito de refletir essa realidade fielmente e sem distorção) - está na estimativa de Pierre Bourdieu entre os mais perecíveis dos bens em oferta; de fato, a vida útil dos noticiários é risivelmente curta se os compararmos às novelas, programas de entrevistas e programas cômicos. Mas a perecibilidade dos noticiários enquanto informação sobre o "mundo real" é em si mesma uma importante informação: a transmissão das notícias é a celebração constante e diariamente repetida da enorme velocidade da mudança, do acelerado envelhecimento e da perpetuidade dos novos começos. (BAUMAN, 2001, p. 179)
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Não há como negar a momentaneidade das coisas, dos desejos e das
necessidades. Parece correto afirmar que esse processo em que os objetivos são
transitórios, muitas vezes nem alcançados e substituídos por outros novos e mais
contemporâneos, do ponto de vista dos modismos e das necessidades geradas por
estes, causa um processo de valorização dessa busca pelos novos objetivos os
quais, por sua vez, serão substituídos por outros novos, e assim sucessivamente,
como um motocontínuo, impulsionando os indivíduos no sentido de que sempre
haverá uma meta a ser seguida, mesmo que nunca alcançada.
É estranho falar assim pois parece que isso nega, frontalmente, o conceito
de imediatez, uma vez que não haverá imediatez nesse processo, mas sim uma
postergação para que algum tipo de objetivo seja alcançado, essa procrastinação
pela substituição de um objetivo por outro, em algum momento aumenta a
percepção de que uma recompensa está a disposição. É algo como colocar uma
cenoura à frente de um cavalo de corrida, e ir substituindo por outros produtos do
agrado dele, fazendo com que ele não pare de correr nunca atrás de vários objetivos
diferentes, mas que no final não passa da vontade primitiva de satisfazer alguma
necessidade, mesmo que esta tenha sido constantemente modificada por outra
vontade. Esse processo parece não ter fim e é uma das molas propulsoras do
capitalismo e da relação entre os produtores e os consumidores.
Paradoxalmente, a negação da imediatez, a aparente degradação dos objetivos, redunda em sua elevação e enobrecimento. A necessidade de esperar magnifica os poderes sedutores do prêmio. Longe de rebaixar a satisfação dos desejos como motivo para os esforços da vida, o preceito de adiá-la torna-a o propósito supremo da vida. O adiamento da satisfação mantém o produtor a serviço do consumidor - mantendo o consumidor que vive no produtor plenamente acordado e de olhos bem abertos.” (BAUMAN, 2001, p. 182)
Esse processo é uma das coisas mais importantes no mundo atual,
dominado pela estética do consumo (BAUMAN, 2001, p.183), a satisfação deve ser
tão breve quanto possível para dar lugar a uma nova necessidade, fomentando o
processo de consumo. Apesar de contradizer a procrastinação, o fato de satisfazer
alguma necessidade e perceber essa satisfação apenas instantaneamente, por um
breve espaço de tempo, tempo esse que não deve durar mais do que o lapso
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suficiente da alegria gerada pela aquisição ou conquista do prêmio esperado pelo
consumidor, para que seja substituída por uma nova necessidade, acaba levando o
indivíduo novamente para dentro do processo de procrastinação da satisfação, já
que o modo efêmero com o qual ele se autossatisfez, não é suficiente para cessar o
círculo vicioso do consumo instalado na sociedade pós-moderna.
O que conta, entre as qualidades das coisas e dos atos é só a ‘autossatisfação instantânea, constante e irrefletida’ Obviamente, a demanda de que a satisfação seja instantânea vai contra o princípio da procrastinação. Mas, sendo instantânea, a satisfação não pode ser constante, a menos que também seja de curta duração, impedida de se estender além da duração de seu poder de diversão e entretenimento. (BAUMAN, 2001, p. 183)
A obsolescência que se transforma não somente num fim diante da
transitoriedade das coisas, mas sim um meio pelo qual as pessoas justificam a sua
necessidade de mudar seus sonhos e suas metas, de reclassificar sua visão de
mundo e a sua necessidade, ou não, de pertencimento de algum grupo, por
qualquer uma das maneiras que estamos estudando. É a substituição de uma
vontade por uma nova que se apresenta ao consumidor, quer seja pela satisfação já
atingida com a aquisição do novo, quer seja pela simples mudança no objeto de
desejo do indivíduo, por ter tido acesso a um novo objeto, melhor, mais atual ou
ainda que lhe confira um benefício, emocional ou racional, maior que o oferecido
pelo desejo que ora se abandona. É a fluidez das necessidades, a liquidez dos
desejos, apontando sempre para o novo, o atual, o que sobrepuja o anterior numa
velocidade cada vez maior, de forma impressionante, é a canibalização dos desejos,
dos produtos, dos portfólios das empresas por novos desejos, produtos e portfólios
mais novos e mais atuais.
Essa nova velocidade dos tempos da contemporaneidade, da transitoriedade
de todas as coisas e sentimentos em relação a elas, ou às pessoas, em termos,
justifica a substituição imediata de uma vontade pelo desejo mais atual e mais
contemporâneo. Não se trata apenas de uma vontade isolada, mas da constatação
de que a velocidade com que as mudanças se processam impulsionam um
raciocínio bastante simples na direção da substituição: por que esperar se é possível
obter agora, porque continuar desejando o que já foi suplantado pelo novo? Com
uma possibilidade de mudança em tempos cada vez menores, parece loucura não
aproveitar hoje uma oportunidade, deixando para amanhã, quando na verdade
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poderá não haver amanhã para essa tarefa, que terá se exaurido antes mesmo que
se tenha tido tempo de experimentá-la. É a melhor forma de expressar,
empiricamente, a boa e velha máxima que diz: “Para que deixar para amanhã, o que
pode ser feito hoje?”.
Como na oficina mecânica, assim também na vida em geral: cada "peça" é "sobressalente" e substituível, e assim deve ser. (...) Num mundo em que o futuro é, na melhor das hipóteses, sombrio e nebuloso, porém mais provavelmente cheio de riscos e perigos, colocar-se objetivos distantes, abandonar o interesse privado para aumentar o poder do grupo e sacrificar o presente em nome de uma felicidade futura não parecem uma proposição atraente, ou mesmo razoável. Qualquer oportunidade que não for aproveitada aqui e agora é uma oportunidade perdida; não a aproveitar é assim imperdoável e não há desculpa fácil para isso, e nem justificativa. (BAUMAN, 2001, p. 187)
Esse processo de transitoriedade acaba transformando as pessoas em
seres consumistas, ávidos por receber sempre uma novidade, um produto novo,
uma nova salvação para suas angústias e desejos.
1.1.2 – O indivíduo e a contemporaneidade.
O indivíduo vive nessa contemporaneidade e aqui passa a ter uma
importância maior em todo o contexto sociocultural. “As velhas identidades, que por
tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas
identidades e fragmentando o indivíduo moderno” (HALL, 2005, p. 7). No momento
em que essa fluidez dá espaço a criação de várias formas de pensamento,
desencaixando o ser humano de um único estereótipo, possibilitando ao mesmo se
juntar, mesmo que não literalmente, mas apenas virtualmente, ou por seu modo de
agir e de pensar, relativamente a determinados grupos, ele passa a ter um papel
mais relevante na sociedade, a individualidade aflora e o “eu” parece dominar a
cena, a partir do momento em que esse eu projeta a si próprio nas identidades
culturais dos grupos, como afirma Hall (2005, p.12), internalizando seus significados
e valores, tornando-os parte desse eu, alinhando seus sentimentos com o seu
espaço no mundo e nos grupos. Esse domínio encontra escora no fato de que o
consumidor passa a ser o centro das atenções no lugar do produtor, como era
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outrora, o qual passa a ver o primeiro de uma forma mais aprofundada e não só uma
cadeia produtiva, mas também nos processos e estudos relacionados ao tema:
Em termos diferentes, mas correspondentes, poderíamos dizer que uma ‘crítica ao estilo do consumidor’ veio substituir sua predecessora, a "crítica ao estilo do produtor'. Contrariamente a uma moda difundida, essa mudança não pode ser explicada meramente por referência à mudança na disposição do público, à diminuição do apetite pela reforma social, do interesse pelo bem comum e pelas imagens da boa sociedade, à decadência da popularidade do engajamento político, ou à alta dos sentimentos hedonísticos e do "eu primeiro" - ainda que tais fenômenos sem dúvida se destaquem entre as marcas do nosso tempo. (BAUMAN, 2001, p. 36)
Essa provocação consumista, está ligada ao fato de que todos estão se
prendendo ao que está ao seu redor, ao seu exterior, não notam que deixaram de
dar valor ao que realmente importa, ao seu “eu” interior, ao que são e não ao que
possuem ou demonstram possuir, e isso causa um movimento sem volta no sentido
de desejar cada vez mais e mais o que não se possui, Bauman (2001, p. 39) afirma
sobre essa mudança de paradigma: “Não olhe para trás, ou para cima; olhe para
dentro de você mesmo, onde supostamente residem todas as ferramentas
necessárias ao aperfeiçoamento da vida - sua astúcia, vontade e poder”. Poderia
ainda ser o reflexo de uma crise de identidade por conta do grande volume de
informações e tentações externas que levam o indivíduo a assumir identidades
alternantes em diferentes momentos, que não são unificadas em torno de um “eu”
coerente como postula Hall (2005, p. 13).
Na contemporaneidade os indivíduos não precisam nascer numa
determinada classe social, eles simplesmente se instalam em determinado grupo,
não precisando da “bênção” do grupo, basta apenas, para tanto, que se enquadre no
modelo que escolheu, por seus hábitos e por aquilo que possui, caem as castas e
aparecem grupos sociais definidos e determinados por fatores ligados à aparência e
seus costumes e hábitos, inclusive de consumo, Bauman (2001, p. 42) afirma que “A
modernidade substitui a determinação heterônoma da posição social pela
autodeterminação compulsiva e obrigatória. Isso vale para a ‘individualização’ por
toda a era moderna”, ou seja o indivíduo se vê e se encaixa numa posição social,
por seus hábitos, consumo, conquistas e tantas outras formas de se afirmar,
baseadas nos sinais externos que é capaz de produzir.
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Essa possibilidade de se encaixar em determinado perfil e determinada
“classe” ou “grupo” confere ainda mais liquidez na contemporaneidade, do ponto de
vista social e das relações. Um indivíduo pode ficar migrando de um grupo a outro
quando e como bem entender, as ligações estabelecidas, especialmente por serem
externas, são frágeis e fáceis de se quebrar, não restando entre o indivíduo e o
grupo um vínculo qualquer.
Não são fornecidos "lugares" para a "reacomodação", e os lugares que podem ser postulados e perseguidos mostram-se frágeis e freqüentemente desaparecem antes que o trabalho de "reacomodação" seja completado. O que há são "cadeiras musicais" de vários tamanhos e estilos, assim como em números e posições cambiantes que fazem com que as pessoas estejam constantemente em movimento, e não prometem nem a "realização", nem o descanso, nem a satisfação de "chegar", de alcançar o destino final, quando se pode desarmar-se, relaxar e deixar de se preocupar. (BAUMAN, 2001, p. 48)
Esse momento de busca pode ser ainda marcado pela impermanência, uma
vez que os novos “lugares” na sociedade podem sucumbir antes mesmo que o
indivíduo consiga ascender ao grupo escolhido, isso é outro fator que acaba
aumentando o fardo individualista que carregamos nesses novos tempos. O que não
chega a causar um mal-estar e, só a possibilidade de que isso aconteça, faz com
que essa busca também não tenha a energia que deveria ter, mas torna a mesma
incessante já que pode não terminar nunca, por não ter terminado ou por ter
terminado mas ter se transformado num novo objetivo, tamanha liquidez das coisas
na contemporaneidade.
O indivíduo na contemporaneidade não sabe ao certo se alcançou um
objetivo ou se está em processo de mudança na busca de um objetivo que substituiu
o anterior. Isso causa um “abismo entre a individualidade como fatalidade e a
individualidade como capacidade realista e prática de autoafirmação” (BAUMAN,
2001, p.44).
Ao tentar se encaixar em determinado grupo, o indivíduo se identifica com
ele, no entanto essa identificação deve ser feita de tal forma que seja possível ao
grupo reconhecer o indivíduo para aceitá-lo, esse processo se dá pelo empenho que
o participante que está pleiteando uma “vaga” no grupo, o qual deve ser suficiente
para que haja a aceitação e ao mesmo tempo não pode ser uma amarra, pois diante
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de novas necessidades ou descobertas o postulante pode pretender deixar a tribo à
qual se filiou.
Esse momento da individualidade, da importância do “eu” na
contemporaneidade, é importante ressaltar, sofre a influência de diversos outros
fatores sociais e políticos que exacerbam ainda mais essa busca da solidão. Um dos
principais fatos é o atual contexto relativo à segurança em nossa sociedade, que
acaba por determinar que os indivíduos passem a se sentir presos ou isolados do
mundo, por medo de sair e de frequentar lugares públicos, exceto alguns poucos em
que ainda acredita ter uma relativa segurança, nos quais infelizmente, acaba por
desfrutar de momentos em que está ao lado de outras pessoas mas não convive
com elas, está só mas não está sozinho, é um isolamento dentro de si mesmo.
Esses locais são os Shopping Center, verdadeiros templos do consumo, em que os
sujeitos acabam se entrincheirando para que sintam um pouco de segurança, mas
de forma a manter o padrão solitário contemporâneo, inclusive o momento da
compra e da satisfação de seus desejos e necessidades, prazeres ligados ao ato de
comprar são extremamente solitários e principalmente individualistas.
Esses lugares encorajam a ação e não a interação. Compartilhar o espaço físico com outros atores que realizam atividade similar dá importância à ação, carimba-a com a ‘aprovação do número’ e assim corrobora seu sentido e a justifica sem necessidade de mais razões. Qualquer interação dos atores os afastaria das ações em que estão individualmente envolvidos e constituiria prejuízo, e não vantagem, para eles. Não acrescentaria nada aos prazeres de comprar e desviaria corpo e mente da tarefa. A tarefa é o consumo, e o consumo é um passatempo absoluta e exclusivamente individual uma série de sensações que só podem ser experimentadas - vividas - subjetivamente. (BAUMAN, 2001, p. 114)
Óbvio é que não se trata apenas desse momento individualista quando se
está dentro de um Shopping Center, mas por analogia podemos entender que esse
fenômeno e esse comportamento pode ser atribuído a diversas outras formas de
processos de compra, nos dias de hoje, inclusive, devemos levar em conta as
formas de aquisição de bens ou serviços por meio da internet e de todas as suas
ferramentas de comércio eletrônico, entre outras mais. O Importante mesmo é
entender que o processo de individualização e de isolamento está muito ligado
também à falta de segurança e acaba por interferir e influenciar os hábitos dos
indivíduos nessa contemporaneidade.
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1.1.3 – O Narcisismo e hedonismo na contemporaneidade.
A partir do momento que cada indivíduo passa a buscar o seu espaço, ou
seu lugar, numa sociedade fragmentada, marcada por relações frágeis, muitas
vezes ligadas pelo consumo e pelo resultado passageiro que essa atitude
consumista causa nas pessoas, elas acabam se isolando, não no mundo, em uma
caverna como forma de autoconhecimento, mas sim dentro de si mesmas, com seus
problemas, suas angústias, suas qualidades e defeitos, para que possam identificar
o que desejam e o que estão em busca. Esse momento introspectivo acaba por
tornar as pessoas mais apaixonadas por si mesmas, pois elas idealizam uma
pessoa que não são, e saem em busca desse modelo na sociedade, projetando em
si, para que possam se encaixar em algum tipo de grupo ou “casta”, com isso
querem a aceitação e o afeto do grupo.
O que emerge no lugar das normas sociais evanescentes é o ego nu, atemorizado e agressivo à procura de amor e de ajuda. Na procura de si mesmo e de uma sociabilidade afetuosa, ele facilmente se perde na selva do eu (...) Alguém que tateia na bruma de seu próprio eu não é mais capaz de perceber que esse isolamento, esse ‘confinamento solitário do ego’: é uma sentença de massa
Mais complexo ainda é o processo de não aceitação, no qual o indivíduo
acaba por culpar a si mesmo por não ter conseguido transpor qualquer barreira para
se equiparar ao grupo escolhido, a culpa não é do grupo, mas sim do próprio sujeito
que não soube, não teve como, ou não se adaptou corretamente as “normas” do
grupo. Em algum momento esse processo de amor próprio pode ruir de forma a
levar a pessoa a algum desgaste psicoemocional, de intensidade variada, pelo
simples fato de que o indivíduo não foi aceito ou não se sentiu acolhido.
O hedonismo presente nas sociedades pós-modernas, tanto é benéfico
quanto traz prejuízos aos indivíduos. Os benefícios estão ligados ao fato da
satisfação das necessidades, o prazer que se tem com a conquista dos benefícios,
factuais ou apenas psicológicos, prometidos por determinada ação. Entretanto se
houver alguma frustração e esse prazer não se cumprir, como as pessoas estão
acostumadas a receber a satisfação de seu desejo, elas sofrerão um abalo intenso
nas suas estruturas psíquicas, causando um desconforto que vai contra o princípio
hedonista de viver.
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Viver diariamente com o risco da autorreprovação e do auto- desprezo não é fácil. Com os olhos postos em seu próprio desempenho - e portanto desviados do espaço social onde as contradições da existência individual são coletivamente produzidas -, os homens e mulheres são naturalmente tentados a reduzir a complexidade de sua situação a fim de tornarem as causas do sofrimento inteligíveis e, assim, tratáveis. (BAUMAN, 2001, p. 49)
Nem nesse momento a pessoa deixa de colocar a si mesma em primeiro
plano, culpando-se, quando, talvez, nunca foi sua culpa, mas, quem sabe, um
problema social mais amplo, que a excluiu do grupo escolhido.
O indivíduo acaba por colocar-se acima de qualquer bem social mais amplo,
nada é mais importante que o “eu” na satisfação de seus desejos. É nesse momento
e contexto que o indivíduo se insere nessa contemporaneidade, o da satisfação dos
seus prazeres, Featherstone (1995, p. 48) afirma nesse sentido que “a cultura de
consumo usa imagens, signos e bens simbólicos evocativos de sonhos, desejos e
fantasias que sugerem autenticidade romântica e realização emocional em dar
prazer a si mesmo, de maneira narcísica, e não aos outros” num claro sinal de que o
que importa é o individual, a própria imagem, a que se tem de si e a que o sujeito
quer que tenham dele. Um dos prazeres que o mundo tem propiciado é a
possibilidade de melhorar a imagem dos indivíduos por diversas formas de
tratamento, cuidados médicos, estéticos, corporais e de alimentação, o que deflagra
um processo de cuidado com o “eu” exterior, a aparência, e por meio dela se
identificar com algum grupo social. O narcisismo então é uma característica ligada a
um fim que vai ao encontro dessa cultura da beleza, culto ao corpo e saúde.
1.1.4 – A velocidade da contemporaneidade – o aqui e o agora
Em algum momento todos estão buscando fazer muito mais do que
antigamente, resolver e interagir com tantas coisas quantas são possíveis,
administrando o tempo como se fosse possível desdobrá-lo. Para tanto utilizam de
todo arsenal tecnológico possível para dar uma dimensão maior na sua capacidade
de realizações o que pode mostrar uma ruptura com a contemporaneidade, uma
contemporaneidade dura, diante de uma nova realidade mais maleável, mais mole,
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um passo a frente de tudo o que havia antes sido considerado como a segunda
modernidade.
O que leva tantos a falar do ‘fim da história’ da pós-modernidade, da ‘segunda modernidade’ e da ‘sobremodernidade’ ou a articular a intuição de uma mudança radical no arranjo do convívio humano e nas condições sociais sob as quais a política-vida é hoje levada, é o fato de que o longo esforço para acelerar a velocidade do movimento chegou a seu ‘limite natural’ O poder pode se mover com a velocidade do sinal eletrônico - e assim o tempo requerido para o movimento de seus ingredientes essenciais se reduziu à instantaneidade. Em termos práticos, o poder se tornou verdadeiramente extraterritorial não mais limitado, nem mesmo desacelerado, pela resistência do espaço (o advento do telefone celular serve bem como ‘golpe de misericórdia’ simbólico na dependência em relação ao espaço: o próprio acesso a um ponto telefônico não é mais necessário para que uma ordem seja dada e cumprida (BAUMAN, 2001, p. 18-19).
Nesse ponto as pessoas se tornam multiconectadas e globalizadas podendo
querer ou necessitar de coisas que nunca antes tiveram acesso, as distâncias
caíram drasticamente, por conta dessa evolução tecnológica e da comunicação,
além da economia de tempo que se tem, pois a informação está em todas as partes
ao alcance das mãos. Esse momento da velocidade e da capacidade de se
desdobrar em vários, articulando várias ações ao mesmo tempo caracteriza uma das
mais importantes expressões da contemporaneidade que, consigo, traz também um
alto nível de impermanência e desapego pelas coisas e pelas pessoas.
Esse desapego, em partes, está ligado ao simples fato de que as coisas hoje
são impermanentes, estão em constante evolução, gerando entre elas (bens,
serviços ou pessoas) uma constante competição. Essa competição acaba por
proporcionar a todos os envolvidos nesse processo consumista uma nova dimensão
de velocidade e duração da permanência com os produtos, os quais serão
substituídos brevemente por outros novos, melhores, ou com mais utilidade e
funções. Sobre o desapego e a impermanência nas sociedades de consumo pós-
modernas:
Sennett ficou particularmente impressionado pela personalidade, desempenho e pelo credo publicamente articulado de Bill Gates. Gates, diz Sennett, ‘parece livre da obsessão de agarrar-se às coisas. Seus produtos surgem furiosamente para desaparecer tão rápido como apareceram enquanto Rockefeller queria possuir oleodutos, prédios, máquinas ou estradas-de-ferro por longo tempo Gates repetidamente declarou preferir ‘colocar-se numa rede de
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possibilidades a paralizar-se num trabalho particular’. O que mais chamou a atenção de Sennett parece ter sido o desejo explícito de Gates de ‘destruir o que fizera diante das demandas do momento imediato’ Gates parecia um jogador que ‘floresce em meio ao deslocamento’. Tinha cuidado em não desenvolver apego (e especialmente apego sentimental) ou compromisso duradouro com nada, inclusive suas próprias criações (BAUMAN, 2001, p.144).
Essa fase em que o desapego parece dar o tom para a impermanência e
constante mudança e evolução das coisas, nesses tempos de contemporaneidade,
acabam por colocar à prova algo que até então era considerado como uma das
coisas mais importantes do cotidiano que era o longo prazo e a continuidade. Esse
fenômeno recente mostra um novo modo de se comportar diante das coisas, a
busca pela satisfação imediata dos desejos e necessidades, bens e serviços
capazes de satisfazer milagrosamente os anseios dos indivíduos.
Esse modo de viver e de desejar de modo instantâneo são, então, uma
consequência de encurtamento do ciclo de vida dos produtos, da transitoriedade e
da liquidez modernas de todas as coisas que os indivíduos necessitam ou desejam.
Cai por terra tudo o que se pensava sobre os produtos, do ponto de vista do prazo e
de sua duração. O longo prazo do ponto de vista da materialidade das coisas deixa
de existir, o que importa são as novas modas e necessidades criadas pela rápida
revolução que a tecnologia faz em grande parte dos produtos e serviços
disponibilizados a todos, com a competente e sempre presente força que a
comunicação e o marketing dão e sua contribuição pra construir um novo imaginário
e outro rol de vontades e de objetivos para os consumidores, os quais dentro dessa
sua própria transitoriedade acabam por encontrar nesse processo a maior expressão
da satisfação aqui e agora de suas vontades, por todos os motivos que já
expusemos anteriormente.
A instantaneidade (anulação da resistência do espaço e liquefação da materialidade dos objetos) faz com que cada momento pareça ter capacidade infinita; e a capacidade infinita significa que não há limites ao que pode ser extraído de qualquer momento - por mais breve e ‘fugaz’ que seja. O ‘longo prazo’; ainda que continue a ser mencionado, por hábito, é uma concha vazia sem significado; se o infinito, como o tempo, é instantâneo, para ser usado no ato e descartado imediatamente, então ‘mais tempo’ adiciona pouco ao que o momento já ofereceu. Não se ganha muito com considerações de ‘longo prazo’ Se a modernidade sólida punha a duração eterna como principal motivo e princípio da ação, a modernidade ‘fluida’ não
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tem função para a duração eterna, O ‘curto prazo’ substituiu o ‘longo prazo’ e fez da instantaneidade seu ideal último. Ao mesmo tempo em que promove o tempo ao posto de contêiner de capacidade infinita, a modernidade fluida dissolve - obscurece e desvaloriza - sua duração (BAUMAN, 2001, p.145).
Apesar de buscar respaldo nessas constatações sobre a velocidade da
contemporaneidade, não sabemos ainda, ao certo quais os verdadeiros efeitos, ou
pelo menos todos os efeitos, desse movimento de volatilização do tempo em
detrimento da necessidade de satisfazer suas vontades e suas necessidades, afirma
Bauman (2001, p. 149) que “o advento da instantaneidade conduz a cultura e a ética
humanas a um território não mapeado e inexplorado, onde a maioria dos hábitos
aprendidos para lidar com os afazeres da vida perdeu sua utilidade e sentido”,
denotando que nem o próprio indivíduo aprendeu ainda como lidar com essa sua
vontade de atender a si mesmo “para ontem”, mas talvez sejam, em algum
momento, uma grande pista para a forma individualista que os sujeitos estão
encarando suas vidas e suas decisões e comportamentos, inclusive de consumo.
Mesmo não conhecendo os efeitos, as causas, especialmente quando
falamos de consumo e contemporaneidade, estão intimamente ligados à
efemeridade com que as modas passam. A própria moda, como sinônimo de alta
costura, ou de qualquer outro tipo de vestuário, não dura mais que uma estação, em
muitos casos divididos em quatro estações definidas e com a opção das meias
estações, sempre antecipando uma tendência para a próxima estação, já nesta
estação. Isso causa um frenesi no público consumidor ávido pelas novidades que
virão, que se seguirão, à estação presente, ou seja, torna o modelo de roupa de hoje
obsoleto no desejo dos indivíduos, mesmo antes de terem usado a coleção em
curso.
As modas vêm e vão com velocidade estonteante, todos os objetos de desejo se tornam obsoletos, repugnantes e de mau-gosto antes que tenhamos tempo de aproveitá-los. Estilos de vida que são ‘chiques’ hoje serão amanhã alvos do ridículo (BAUMAN, 2001, p. 186).
Essa velocidade parece ser a tônica de toda a liquidez da sociedade nesses
tempos contemporâneos, velocidade que deixa transparecer toda a insegurança dos
indivíduos, ou por estarem sempre atrás de um objetivo, ou por sempre substituírem
por um novo produto, ou meta, ou ainda migrando de um grupo social para outro. É
35
a velocidade que permeia todas as atitudes dos indivíduos nesse mundo tão fluido.
Tudo é rápido e efêmero, some como apareceu, praticamente do nada, modismos,
dietas, celebridades, tão rápidos quanto um cometa em sua breve passagem
próximo à Terra, essa rapidez é que abre espaço para novos caminhos, pessoas e
produtos. A sensação que se tem é que sempre perdemos tempo, sempre estamos
atrasados em relação a algo ou a alguma coisa. Parecemos, todos, com o Coelho
Branco, personagem do conto Alice no País das Maravilhas, sempre atrasados para
alguma coisa, assustados e com medo disso. O único local que parece seguro é o
aqui e o agora.
‘Indivíduos frágeis’ destinados a conduzir suas vidas numa ‘realidade porosa’: sentem-se como que patinando sobre gelo fino; e ‘ao patinar sobre gelo fino’: observou Ralph Waldo Emerson em seu ensaio ‘Prudence’ ‘nossa segurança está em nossa velocidade’. Indivíduos, frágeis ou não, precisam de segurança, anseiam por segurança, buscam a segurança e assim tentam, ao máximo, fazer o que fazem com a máxima velocidade. Estando entre corredores rápidos, diminuir a velocidade significa ser deixado para trás; ao patinar em gelo fino, diminuir a velocidade também significa a ameaça real de afogar-se. Portanto, a velocidade sobe para o topo da lista dos valores de sobrevivência (BAUMAN, 2001, p. 240).
Assim, ser um indivíduo que vive a contemporaneidade, é ser um ser
apressado. Apressado em ver seus prazeres (hedonismo) satisfeitos, sua beleza
preservada ou “recriada” (narcisismo) sentir a satisfação das suas expectativas
atendidas e com isso se sentir seguro, no sentido mais amplo da palavra, que vai
encontrar respaldo na felicidade que o indivíduo demonstra pela aquisição e pelo
consumo.
1.1.5 – Individualismo competitivo
A expressão “individualismo competitivo” é usada por Lash, pela primeira
vez, em 1983 para descrever como o indivíduo tem se comportado na
contemporaneidade e:
descreve um modo de vida que está moribundo – a cultura do individualismo competitivo, o qual, em sua decadência, levou a lógica do individualismo ao extremo de uma guerra de tudo contra tudo, a busca da felicidade em um beco sem saída de uma preocupação narcisista com o eu” (LASH apud DE SANTI, 2005, p. 175).
36
Apropriaremo-nos desse conceito para raciocinar em torno dessa
necessidade premente do indivíduo de se preocupar consigo mesmo, em detrimento
de todos os processos pelos quais o mesmo passa na contemporaneidade. Esse é
um fator importante para entender o porquê da extrema preocupação consigo
mesmo, e da diminuição da importância que o sujeito revela em relação ao seu
entorno. Além desse fato a própria liquidez da contemporaneidade atua de maneira
importante sobre o modo de ser e de viver do indivíduo, “a cultura do narcisismo não
se segue (ou se opõe) a uma ordem tradicional, mas sim ao individualismo
contemporâneo, ao qual torna mais agudo ou supera” (DE SANTI, 2005, p.175).
O problema nessa contemporaneidade líquida em que impera a falta de
forma e de padrão se exacerba de tal forma que o próprio indivíduo, narcisista, é
incapaz de pensar coletivamente, redundando num processo de destruição de
comportamentos voltados à coletividade, por conta da solidão causada pelo
consumo e suas causas e efeitos, nos tempos atuais, ele se identifica sem participar
do convívio, apenas pela posse dos bens.
(...) o retrato da individualização liberta de suas roupagens transitórias, hoje mais obscurecedoras que clarificadoras da compreensão (antes e acima de tudo, liberta de suas visões do desenvolvimento linear, uma progressão assinalada ao longo dos eixos da emancipação, da crescente autonomia e da liberdade de autoafirmação), expondo assim para exame a variedade de tendências à individualização e seus produtos, e permitindo uma melhor compreensão das características distintivas de seu estágio presente (BAUMAN, 2001, p. 41).
Essa independência está intimamente ligada ao fato de que as pessoas
estão tão preocupadas com o que aparentam que deixam de lado sua própria
personalidade para apenas praticar os atos que a vida espera e exige, um momento
automatizado de ser e de agir. A busca por novos produtos é necessária para se
sentir livre dentro do círculo consumista que se acerca do indivíduo, são seus atos
que importam, tornando-o cada vez mais individualista, especialmente se ele
consegue consumir aquela mercadoria que o distinguirá das demais de maneira
inequívoca, tornando-o único, e ao mesmo tempo capaz de se sentir junto de um
grupo que possui suas mesmas características e produtos.
37
Esse processo pode ser ainda ligado, ou ancorado, no fato de que a
impermanência compele os indivíduos a se preocupar exageradamente com o hoje
sem medir esforços ou consequências para que se sintam satisfeitos, que tenham o
seu bem estar atingido, isso por si só é capaz de apresentar algumas tendências
sobre o individualismo que mostram como ele divide, compete, com as formas
coletivas ou ainda com os outros indivíduos da sociedade e do seu entorno, os
indivíduos na contemporaneidade competem para ser ou parecer melhor do que
todos a sua volta, os quais por sua vez farão o mesmo, criando assim um ambiente
altamente competitivo em torno da posse e consumo de produtos com o intuito de
externar qualquer identidade que se possua.
(...) a tendência é o surgimento de formas e condições de existência individualizadas, que compelem as pessoas - para sua própria sobrevivência material - a se tornarem o centro de seu próprio planejamento e condução da vida (...) De fato, é preciso escolher e mudar a própria identidade social, e assumir os riscos de fazê-lo (...) O próprio indivíduo se torna a unidade de reprodução do social no mundo da vida. A questão da exequibilidade do progresso, seja ela vista como destino da espécie ou tarefa do indivíduo, permanece como estava antes que se instalassem a desregulação e a privatização - e exatamente como articulada por Pierre Bourdieu: para projetar o futuro, é preciso estar firmemente plantado no presente. A única novidade aqui é que o que importa é a ancoragem do indivíduo em seu próprio presente (BAUMAN, 2001, p. 156-157).
O individualismo irá competir, então, com o coletivo, com o social, na medida
em que cria para si só um novo ordenamento e uma nova identidade de si para o
mundo exterior. O sujeito projetará para a sociedade um indivíduo que na verdade
não passa de uma invenção temporária, que tem desejos e necessidades de curto
prazo, até que a próxima moda ou o próximo produto venha e mude sua forma de
agir e de pensar, tão efêmero quanto a própria moda ou o próprio grupo que ele
almeja fazer parte. Esse processo cada vez mais veloz deixa os indivíduos cada vez
mais competitivos, com a sociedade como um todo, ou com seus pares. O presente
e a necessidade da satisfação agora, em detrimento do futuro, também gera uma
competição pelo tempo, uma ruptura com padrões antigos de permanência e de
acumulação e planejamento da vida no longo prazo. É a importância de um novo
tempo para a vida, uma impermanência ligada ao fato de que talvez não haja
amanhã, então “devo resolver tudo hoje e agora”, o futuro perde força no contexto
geral da vida, para que acumular se tudo estará diferente no dia seguinte? Obter
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hoje, agora, satisfazer já a necessidade e o desejo, para que novos desejos e novas
necessidades apareçam e criem um novo motivo para consumir, competindo (com
todos ou consigo mesmo) para que se mantenha sempre atualizado em relação ao
mundo e sua velocidade.
Quanto menor é a firmeza no presente, tanto menos o "futuro" pode ser integrado no projeto. Lapsos de tempo rotulados de "futuro" encurtam, e a duração da vida como um todo é fatiada em episódios considerados ‘um de cada vez’ A continuidade não é mais marca de aperfeiçoamento. A natureza outrora cumulativa e de longo prazo do progresso está cedendo lugar a demandas dirigidas a cada episódio em separado: o mérito de cada episódio deve ser revelado e consumido inteiramente antes mesmo que ele termine e que o próximo comece. Numa vida guiada pelo preceito da flexibilidade, as estratégias e planos de vida só podem ser de curto prazo (BAUMAN, 2001, p. 159).
Se o futuro perde força e importância no contexto geral da vida, então é
simples de entender que o que importa é o hoje, o agora, nada mais terá valor, se
não for possível de ser consumido agora, os efeitos têm de ser imediatos, não há
que se pensar em tratamentos prolongados, em qualquer tipo de comportamento
cuja recompensa demore por ser recebida e percebida, “o sentimento coletivo
dominante é que se deve viver o momento presente e exclusivamente para si” (DE
SANTI, 2005, p. 176).
Tudo o que o indivíduo pensa e faz é baseado no processo da
autossatisfação instantânea, se essa satisfação for positiva, não importa se terá
efeitos colaterais posteriores, para o sujeito ou para os que estão ao seu redor.
Depois que o agente perceber a satisfação momentânea e imediata que sua escolha
lhe proporcionou, tudo estará bem para ele (individualismo exacerbado), pouco
importando o entorno, importa apenas estar adiante dos que o cercam na obtenção
do prazer e da satisfação das necessidades.
O que conta são os efeitos imediatos de cada movimento: os efeitos devem ser passíveis de ser consumidos no ato. Suspeita-se que o mundo esteja repleto de pontes demasiado longínquas, o tipo de pontes que é melhor não pensar em atravessar até encontrá-las, o que não acontecerá tão cedo. Cada obstáculo deve ser negociado quando chegar sua vez; a vida é uma seqüência de episódios - cada um a ser calculado em separado, pois cada um tem seu próprio balanço de perdas e ganhos. Os caminhos da vida não se tornam mais retos por serem trilhados, e virar uma esquina não é garantia de que os rumos corretos serão seguidos no futuro (BAUMAN, 2001, p. 160-161).
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As soluções imediatas para as necessidades individuais são uma forma
importante de entender a impermanência, a transitoriedade, a velocidade e a
liquidez da contemporaneidade. É como se a vida fosse vivida em capítulos de um
seriado da TV, curtos, com começo meio e fim definidos, mesmo que por algum fato
estejam conectados entre si, mas todos possíveis de serem vivenciados
individualmente, sem que haja uma subordinação ou uma concatenação entre eles
que os impeça de existir ou ser vivenciados isoladamente, pulando esse àquele
capítulo, sem maiores problemas, traumas ou cerimônia.
As pessoas nesse novo modelo contemporâneo de agir e de pensar não são
simplesmente dominadas, elas precisam de um líder e não de um agente
controlador, elas são suficientemente individualistas e são capazes de se manter
bem sem que haja para isso a necessidade de qualquer tipo de relação de
dominação.
As relações estão, na verdade, nas mãos dos próprios indivíduos, uma vez
que estes é que buscam os grupos para se afiliar, para se identificar, eles escolhem,
segundo as suas conveniências e as sua vontades e quando esses laços não
atenderem mais as suas necessidades eles podem simplesmente deixar este grupo
e num exemplo claro de impermanência das pessoas e das coisas vão se filiar a
outros e novos, ao menos para o sujeito, grupos de interesse. Essa é uma decisão
feita intimamente, dentro do indivíduo, que vai resolver esse problema com seus
mitos, é uma escolha individualista mesmo.
O ato de consumir, inclusive, para se fazer pertencer a este ou àquele grupo,
é também uma característica muito individualista, fruto da contemporaneidade, que
denota a fragilidade das ligações dos indivíduos com seus grupos de afinidade,
explicando, ao menos em partes, a constante e fluida mudança entre os locais
escolhidos para fazer frente ao processo de pertencimento.
Há ainda outra ligação entre a "consumização" de um mundo precário e a desintegração dos laços humanos. Ao contrário da produção, o consumo é uma atividade solitária, irremediavelmente solitária, mesmo nos momentos em que se realiza na companhia de outros (BAUMAN, 2001, p. 189).
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Esse momento pelo qual estamos passando em que os indivíduos, desde a
mais tenra idade, se entrincheiram em suas casas, por conta da falta de segurança,
que buscam a comodidade e a facilidade de fazer compras em templos de consumo,
de ficarem horas à frente da TV no aconchego de seus lares, apenas com seus
pensamentos, aponta para um meio de vida extremamente solitário, mesmo que
haja pessoas ao seu lado naquele momento.
O que mais acontece, nesses dias contemporâneos, é a solidão
acompanhada, que assola as pessoas, imersas em seus pensamentos e seus
próprios mundos, traçando objetivos pessoais e individualistas, sem se importar com
o que pode acontecer com as pessoas que estão ao seu redor. Isso fragiliza as
relações interpessoais, diminui os encontros sociais, afasta as pessoas umas das
outras, vulgariza a distância como forma de autoproteção. Cada um desses
momentos solitários de definição e busca de metas e objetivos individuais
recrudescem ainda mais as relações. É um processo que parece sem fim e sem
volta da esfacelação da sociedade como um todo, transformando-a em um conjunto
de fragmentos. É o ápice da individualização, é a derrota do coletivo frente ao
individualismo tardio.
Um aspecto muito visível do desaparecimento das velhas garantias é a nova fragilidade dos laços humanos. A fragilidade e transitoriedade dos laços pode ser um preço inevitável do direito de os indivíduos perseguirem seus objetivos individuais, mas não pode deixar de ser, simultaneamente, um obstáculo dos mais formidáveis para perseguir eficazmente esses objetivos - e para a coragem necessária para persegui-los. Isso também é um paradoxo - e profundamente enraizado na natureza da vida na modernidade líquida (BAUMAN, 2001, p. 196).
Esses traços humanos na contemporaneidade, como Bauman (2001, p. 244)
assinala é “viver entre uma multidão de valores, normas e estilos de vida em
competição, sem uma garantia firme e confiável de estarmos certos, é perigoso e
cobra um alto preço psicológico”, e isso leva sempre o indivíduo a buscar uma nova
etapa, um novo momento, um novo objetivo, saciar uma nova necessidade.
A contemporaneidade é um pano de fundo importante para o estudo e está
caracterizada pelo que se acaba de evidenciar. Esse pano de fundo no qual o sujeito
está inserido é também um momento de identificação e participação do ser humano
em grupos sociais, os quais serão objeto do próximo capítulo.
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CAPÍTULO II – Grupos sociais, cultura, consumo: o culto à beleza, à saúde e ao
corpo.
Como a contemporaneidade aponta novas formas de comportamento e de
visão de mundo, também traz consigo novas formas de agrupamento social, ligados
à cultura e ao consumo. Neste capítulo busca-se entender como a cultura influi
nesse processo de pertencimento e identificação e como o culto à beleza, à saúde e
ao corpo podem ser diferenciais de um grupo social, bem determinado com
características bem específicas.
2.1 – Cultura
A cultura ora tratada não reflete a chamada alta cultura, mas a cultura como
conjunto de seus valores, ideias e crenças, a cultura de um determinado grupo, com
seu modo de pensar, agir, vestir e consumir. Essa cultura, que vai do popular ao
erudito, traz em seu bojo uma série de modos de pensar que são encontrados em
locais ligados à produção dos sentidos, por meio da observação empírica de
comportamentos dos grupos. Assim é possível encontrar dentro de cada cultura, ou
formas de cultura, um conjunto de ideias centrais que norteiam o pensamento e a
conduta de todos os que se agregam ao agrupamento social em questão, como
assinala Williams (1977, p. 25) “conceito de cultura como um processo social
constitutivo, que cria ‘modos de vida’ específicos e diferentes”.
Assim sendo não é possível tratar desse termo no singular mas sim no
plural, pois temos várias “culturas”, todas se interrelacionando, nesse mundo
contemporâneo. Desta forma entende-se que há num mesmo momento várias
culturas vivendo em paralelo, em harmonia ou não, às vezes num mesmo espaço
territorial.
Se o termo cultura encerra, em si mesmo, um conjunto tão amplo de
aspectos, podemos aproximá-lo de outro importante conceito que é o de ideologia.
A ideologia nesse sentido foi estudada por autores dos estudos culturais,
tanto os ingleses quanto, mais recentemente os latino-americanos, em seus estudos
sobre comunicação e cultura.
Assim a ideologia é importante muito mais pelo seu papel na sociedade pós-
moderna e na comunicação do que por conta de seu conteúdo propriamente dito. O
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fato é que uma ideologia pode ser vista como um fator agregador de indivíduos por
conta da identificação com uma determinada forma de pensar, em torno de
determinado assunto.
Em um de seus trabalhos Thompson (1995, p.75) ao rever alguns autores
esclarece: “a ideologia é concebida, de maneira geral, como sistema de crenças, ou
formas e práticas simbólicas (...)”, ele ainda revela que “estudar a ideologia é
estudar as maneiras como o sentido serve para estabelecer e sustentar relações de
dominação” (THOMPSON, 1995, p.76).
Seguindo nessa linha de raciocínio podemos entender o que a ideologia é
capaz de fazer para agrupar indivíduos, no momento em que estes se identificam
com elementos emanados por algum sujeito dominante, os quais podem ser valores,
sinais, tipologias ou qualquer outra forma que seja capaz de fazer identificar os que
pertencem a um grupo.
Isso só faz sentido diante de um momento histórico e social bem definido, ou
seja, é um contexto especial, que dá lugar à possibilidade de que haja certos
símbolos e signos capazes de agregar esses grupos, identificando-os e
diferenciando-os dos demais, no entanto em função da passagem do tempo esses
sinais e signos podem muar seu significado.
Assim entendido esse conceito, vemos:
(...) chama nossa atenção para as maneiras como o sentido é mobilizado a serviço dos indivíduos e grupos dominantes, isto é, as maneiras como o sentido é construído e transmitido pelas formas simbólicas e serve, em circunstâncias particulares, para estabelecer e sustentar relações sociais estruturadas das quais alguns indivíduos e grupos se beneficiam mais que outros, e que alguns indivíduos ou grupos têm interesse em preservar, enquanto outros procuram contestar (THOMPSON, 1995, p. 96).
Ainda sobre a ideologia aproximando ainda mais do que é necessário para
unir um determinado grupo social, Williams (1977, p. 71) esclarece que “ ‘ideologia’
oscila então entre ‘um sistema de crenças características de certa classe’ e ‘um
sistema de crenças ilusórias – falsas ideias ou falsa consciência – que se podem
contrastar com o conhecimento verdadeiro, ou científico’ ”.
Essa visão de dominador e de dominado, hoje desconstruída pelo conceito
de poder hegemônico, é entendida como uma faculdade de ser influenciado e não
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dominado. Não é uma via sem saída, sem opção, e pode ajudar a construir o motivo
pelo qual as pessoas se agrupam segundo suas ideias e pensamentos, sendo que
alguns vão liderar esse processo por algum motivo que as coloquem numa posição
de hegemônicos.
A cultura, em estudo, então, dentro desse contexto, aparece como um
processo de significações, que podem ter um caráter territorial, mas pode também
transcender as barreiras das fronteiras dos países, especialmente nesse mundo
globalizado e com acesso direto ao conteúdo de outros países, por meio da
evolução da comunicação e do meio internet. Esse processo ganha força na medida
em que é capaz de envolver as pessoas no seu convívio social, seja no seu
trabalho, sua família e o entorno desses dois pequenos grupos sociais, ou ainda
outros agrupamentos que estejam unidos, mesmo que apenas simbolicamente, por
meio da anexação do indivíduo que se sente pertencente por compartilhar dos
mesmos hábitos, explicitados pelos processos comunicacionais.
Podemos ver adiante no conceito de hegemonia, que está para além do
conceito de domínio, algumas características importantes para entender melhor
esses fenômenos ligados ao pertencimento.
2.1.1 – Identidade com um grupo.
Em algum momento ao interagir com um grupo as pessoas se identificam
com as características necessárias ao pertencimento dessa tribo, essa identidade de
um indivíduo com o grupo é o que se chama de identificação do sujeito. Esse
processo de buscar se identificar é, ao mesmo tempo, um processo para se
diferenciar dos demais que não fazem parte do grupo social em questão, é se isolar
dos demais. Ser igual significa se identificar, encontrar identidade com esse extrato
social, há que se solidarizar com essa classe ou grupo, quer seja pela sua igualdade
com o mesmo ou a diferença com os demais, já que entre os processos sociais que
se criam dentro ou no entorno desse agrupamento há forças de atração entre os
indivíduos e os grupos com os quais se identificam.
A análise da identidade comum e coletiva nos conduz até a terceira questão que abarca a identidade: a questão da solidariedade. Este aspecto da identidade tem que ver com a forma em que as conexões
44
e as diferenças se convertem em bases sobre as quais se pode provocar a ação social (GILROY, 1998, p. 71, tradução nossa).
Identificar-se é buscar a satisfação da necessidade, no contexto em que
estamos estudando, é participar do grupo, é se capacitar para entrar num mundo
que não era o seu, buscar se adaptar culturalmente ao agrupamento.
A adaptação ao grupo se dá de forma que pode o indivíduo se observar nos
outros, por comparação ou analogia de si com os participantes do grupo que almeja
participar. De alguma maneira são criadas relações, podem haver relações de:
(...) interdependências e balanças de poder com outras pessoas, podemos argumentar que persiste a necessidade de coletar pistas e informações sobre o poder potencial, status e prestígio social do outro, mediante a leitura do comportamento da outra pessoa. Os estilos e marcas diferentes de roupas e produtos da moda, conquanto estejam sujeitos a mudanças (...) constituem um conjunto de pistas usado no ato de classificar os outros (FEATHERSTONE 1995, p. 39).
Esse “outro” que estamos analisando seria um integrante do grupo ao qual
almejamos nos integrar e com o qual interagimos e terminamos por nos identificar,
assim é importante entender esses sinais para classificar a que grupo o outro
pertence, sendo assim encontra-se o modo como o indivíduo deve se comportar
para que o mesmo seja identificado como parte do mesmo grupo.
Esse processo de identificação com um grupo que se escolhe e se
assemelha, na contemporaneidade, é separado de conceitos históricos, é
instantâneo, com duração efêmera. A globalização e a fluidez pós-moderna
influenciam, na medida em que, com os modernos processos comunicacionais e a
velocidade estonteante da internet, não param de bombardear os sujeitos com
novas possibilidades e vertentes de qualquer parte do mundo, possibilitando ao
indivíduo um vasto elenco de grupos e modelos aos quais pode se integrar.
Quanto mais a vida social se torna mediada pelo mercado global de estilos, lugares e imagens, pelas viagens internacionais, pelas imagens da mídia e pelos sistemas de comunicação globalmente interligados, mais as identidades se tornam desvinculadas – desalojadas – de tempos, lugares, histórias e tradições específicos e parecem ‘flutuar livremente’ (HALL, 2005, p.75).
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Essa integração, ou a possibilidade dela, na verdade, pode causar um
esfacelamento da identidade local, mas permite ao indivíduo se sentir integrado a
qualquer tipo de grupo e em qualquer parte do planeta. A localidade ou a
regionalidade deixam de ter a importância que tinham antigamente.
Uma forma de acontecer esse processo é pelo consumo, mas não só por ele
é possível se estabelecer uma identidade, mesmo que haja distância com um grupo:
No interior do discurso do consumismo global, as diferenças e as distinções culturais, que até então definiam a identidade, ficam reduzidas a uma espécie de língua franca internacional ou de moeda global (...) (HALL, 2005, p.75).
Esse processo salienta Hall (2005, p. 78), é mais provável que vá produzir,
simultaneamente, novas identificações “globais” e novas identificações “locais”,
salientando-se que ambas não são mutuamente excludentes, mas, sim, podem
coexistir pacificamente.
Essa coexistência pode, inclusive, mostrar um novo modelo cultural ou de
identidades, misturadas, fluidas, líquidas, híbridas na verdade, fundindo diferentes
tradições culturais (HALL, 2005, p. 91), a partir das quais as possibilidades que se
apresentam aos indivíduos se multiplicam, favorecendo a transitoriedade e a
mudança constante de paradigmas e de grupos de adesão e solidariedade.
Além desse panorama, a identidade está sofrendo um processo de
hibridização, ou de hibridismo, em que as culturas e suas tradições estão se
fundindo e tornando as diferenças mais tênues, as identidades como conhecidas no
passado não existem mais, nos tempos da contemporaneidade sofrem influências
de todas as partes, com a modernização dos processos comunicacionais, “o
‘hibridismo’ [...] – a fusão entre diferentes tradições culturais – são uma poderosa
fonte criativa, produzindo novas formas de cultura, mais apropriadas à modernidade
tardia...” (HALL, 2005, p. 91).
Esse processo pode proporcionar a faculdade de qualquer indivíduo de se
identificar com grupos de qualquer parte do globo (globalização) o que pode, de
alguma forma, propiciar um tipo de uniformização global de paradigmas de
comportamento, usos e costumes, em contraposição a uma dissociação da
identidade cultural local, “juntamente com as tendências homogeneizantes da
globalização, existe a ‘proliferação subalterna da diferença’ ” (HALL, 2008, p.57).
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Essa diferença é marcada nos dias de hoje, especialmente entre os jovens,
os quais só se sentem à vontade quando se encaixam em algum tipo de grupo, pelo
modismo, pela forma de vestir e comportar de determinado grupamento social.
Assim muito mais do que classes sociais temos a fixação de grupos específicos,
com características próprias aos quais o importante é a adesão, o pertencimento.
Os jovens, por exemplo, adotam modas excludentes. Há, entre eles, uma verdadeira tirania de modelos. Quem não se encaixa, é rejeitado. Antes, a juventude seguia o modelo dos pais. Isso acabou. Também o critério de classe social cedeu lugar à predominância dos grupos de filiação. Os adolescentes têm obsessão por marcas e agem por mimetismo, em função do grupo que integram, gerando, sob pretensa forma de diferenciação, um intenso conformismo (LIPOVETZKY, 2000, p. 8).
Esse mimetismo caracteriza o processo de engajamento no grupo, tornando
factual a participação para aqueles que se identificam com suas características.
Esse processo, no entanto, não é imposto, os participantes escolhem a que grupos
pertencerão, num processo não ditatorial, mas com características hegemônicas, a
esse respeito Featherstone (1995, p. 38) esclarece que essas escolhas consideram
que “o conhecimento se torna importante: conhecimento dos novos bens, seu valor
social e cultural, e como usá-los de maneira adequada. Esse é, especificamente, o
caso dos grupos aspirantes, que adotam uma atitude de aprendizes perante o
consumo e procuram desenvolver um estilo de vida”.
2.1.2 – Hegemonia
Esse processo de pertencimento e de influência que os grupos exercem
sobre os indivíduos, pode ser encarado com uma das expressões de hegemonia
presentes na sociedade e nas comunicações contemporâneas.
A hegemonia não é exercida somente pelos mass media, mas por um
grande número de influenciadores que participam do mesmo meio, como a família, o
bairro e o grupo de trabalho.
Sobre a hegemonia, nesse mundo globalizado, em que a
contemporaneidade tem contornos fluídos, não existe uma relação direta de
dominação entre os indivíduos e qualquer tipo de poder hegemônico, especialmente
47
pelos mass media, principalmente em decorrência da alta contingência de
individualização de cada sujeito, capaz de decidir se segue ou não determinada
corrente hegemônica, seja ela do mercado, da cultura anglo saxã ou qualquer outra
que seja. É o indivíduo que escolhe a que tipo de grupo vai se filiar, por simpatia, ao
que estão vendo, e àquilo que está sendo exposto, além do que o poder
hegemônico também deve se render e fazer concessões aos interesses e
necessidades dos subordinados, num processo de negociação e modificação. Esse
processo tem um grande aliado, que encontra nos meios de comunicação o respaldo
necessário para incutir em parte da sociedade seus valores e suas crenças, por
meio da manipulação do conteúdo midiático. Esse expediente encontra respaldo
especialmente na massificação do acesso aos meios de comunicação
especialmente os digitais, nos quais a notícia tem papel preponderante na formação
do capital social, que consiste na bagagem sociocultural que o indivíduo assimila no
decorrer da vida.
Essa formação do capital social é afetada por uma nova forma de relação,
uma relação que na verdade não domina de fato, que apenas se impõe como um
tipo de liderança, tem um poder hegemônico, o qual pode ser aceito ou não pelo
sujeito hegemonizado, por concordar ou não com o que esse poder quer colocar e
incutir em suas mentes, hoje, especialmente com a possibilidade do dialogismo que
os novos meios de comunicação, especialmente a internet, possibilitam, a audiência
deixa de ser passiva e passa a ser ativa, podendo inclusive de um momento a outro
passar de receptora a emissora de novas mensagens, influenciando também a
quem estiver acompanhando esse processo e à própria classe dominante. Não
obstante essa nova alternativa comunicacional que revela outra possibilidade, que é
a de deixar de apenas receber e concordar com o que lhe é informado, mesmo que
o público não interaja diretamente no processo comunicacional, ele pode, com o
apertar de um simples botão mudar o que está assistindo sem maiores esforços, o
que por si só mostra que a audiência tem, também, seu poder diante das
transmissões, característica marcante em que a negociação o e consentimento
afetam as relações de dominação.
Essas pessoas são, como a maioria antes delas, dominadas e ‘remotamente controladas’; mas são dominadas e controladas de uma maneira nova. A liderança foi substituída pelo espetáculo: ai daqueles que ousem lhes negar entrada. Acesso à ‘informação’ (em
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sua maioria eletrônica) se tornou o direito humano mais zelosamente defendido e o aumento do bem-estar da população como um todo é hoje medido, entre outras coisas, pelo número de domicílios equipados com (invadidos por?) aparelhos de televisão (BAUMAN, 2001, p. 179).
O processo hegemônico como tal, abarca e transcende em si dois conceitos
importantes que acabamos de visitar, a cultura e a ideologia, sobre o que
encontramos:
A ‘hegemonia’ é um conceito que inclui imediatamente, e ultrapassa, dois poderosos conceitos anteriores: o de ‘cultura’ como ‘todo um processo social’, no qual os homens definem e modelam todas as suas vidas, e o de ‘ideologia’, em qualquer de seus sentidos marxistas, no qual um sistema de significado se valores é a expressão ou projeção de um determinado interesse de classe (WILLIAMS, 1977, p.111).
A junção desses dois conceitos permite inferir sobre o fato de que os
indivíduos, como não são mais uma audiência simplesmente receptora, podem optar
por esse ou aquele caminho, para se identificar com determinado grupo que esteja
exercendo uma determinada hegemonização. Assim sendo eles se adaptam e se
encontram dentro de determinada ideologia.
Não obstante esse fato de se articular com a ideologia do grupo escolhido,
não é apenas uma questão de dominação que vai unir o indivíduo ao grupo, mas sim
sua escolha de vida, pois a hegemonia na verdade deve ser encarada muito além
disso, como:
(...) um conjunto de práticas e expectativas, sobre a totalidade da vida: nossos sentidos e distribuição de energia, nossa percepção de nós mesmos e nosso mundo. (WILLIAMS, 1977, p.113).
A ligação com a cultura vem no fato de que a própria hegemonia é uma
“cultura”, mas considerada como domínio e subordinação vividos de determinadas
classes (WILLIAMS, 1977, p.113), mas que só existe de fato quando o subordinado
aceita se colocar sob a égide da dominação. Não é uma dominação imposta por
qualquer forma coercitiva, ou mediante sanções, políticas ou sociais, é muito mais
que isso, um processo de se encontrar e se sujeitar, é a negociação que os
subordinados podem impor ao processo, mas em qualquer instância, de se adaptar
para fazer parte de um processo ou grupo social pré-existente e com regras claras e
predefinidas.
49
No contexto de nosso trabalho é importante entender esse processo para
que se veja de que forma os indivíduos, por conta da moda e da cultura da saúde,
corpo e beleza vão buscar se encontrar com esses grupos hegemônicos.
2.1.3 – Cultura do Consumo
A cultura do consumo de hoje é diferente da de ontem, hoje ela faz parte do
dia a dia das pessoas, que só se sentem à vontade e satisfeitas, quando suas
necessidades são saciadas, aquietando seu espírito, num momento de paz que dura
o exato instante em que a ação está em consonância com o pensamento.
Como observou Arthur Schopenhauer, a ‘realidade’ é criada pelo ato de querer; é a teimosa indiferença do mundo em relação à minha intenção, a relutância do mundo em se submeter à minha vontade, que resulta na percepção do mundo como ‘real’, constrangedor, limitante e desobediente. Sentir-se livre das limitações, livre para agir conforme os desejos, significa atingir o equilíbrio entre os desejos, a imaginação e a capacidade de agir: sentimo-nos livres na medida em que a imaginação não vai mais longe que nossos desejos e que nem uma nem os outros ultrapassam nossa capacidade de agir. O equilíbrio pode, portanto, ser alcançado e mantido de duas maneiras diferentes: ou reduzindo os desejos e/ou a imaginação, ou ampliando nossa capacidade de ação (BAUMAN, 2001, p.25).
É interessante esse olhar sobre o consumo e suas causas. Parece sensato
falar que o ato de consumir está ligado ao fato de que as pessoas estão muito mais
ativas, numa contemporaneidade que influi com seus meios de comunicação e
conexão velozes a tudo no mundo, de maneira hegemônica. Esse excesso de
atividade parece dar lugar a uma necessidade muito maior de consumir, e o
consumo como tem padrões que se alteram rapidamente e com o acesso a esse tipo
de informação de maneira instantânea parece não ter fim a angústia por possuir o
próximo “brinquedinho da moda”, esse processo não se extingue com a aquisição
desse “gadget” pois adquirir um novo se faz necessário para se manter atualizado e
feliz, isso mexe também com a sua identidade, como consumidor e como indivíduo.
Ser moderno passou a significar, como significa hoje em dia, ser incapaz de parar e ainda menos capaz de ficar parado. Movemo-nos e continuaremos a nos mover não tanto pelo "adiamento da satisfação' como sugeriu Max Weber, mas por causa da
50
impossibilidade de atingir a satisfação: o horizonte da satisfação, a linha de chegada do esforço e o momento da auto-congratulação tranquila movem-se rápido demais. A consumação está sempre no futuro, e os objetivos perdem sua atração e potencial de satisfação no momento de sua realização, se não antes. Ser moderno significa estar sempre à frente de si mesmo, num Estado de constante transgressão(...); também significa ter uma identidade que só pode existir como projeto não-realizado (BAUMAN, 2001, p. 38).
Esse momento quase instantâneo se revela mágico para as pessoas, como
defende , Featherstone (1995, p. 31) “há a questão dos prazeres emocionais do
consumo, os sonhos e desejos celebrados no imaginário cultural consumista e em
locais específicos de consumo que produzem diversos tipos de excitação física e
prazeres estéticos”. Mas a insatisfação dos desejos pode trazer consequências
desastrosas para os indivíduos. Só a diminuição dos desejos, muito difícil de
alcançar pelo volume de “tentações” do mundo contemporâneo, exteriorizadas pelos
mass media, ou o aumento na capacidade produtiva e de realização dos homens,
pode aplacar essa sede de consumo. No entanto essa visão não pode mais seguir
um modelo antigo de dominação dos receptores, mas de um processo mais
dialógico ou ainda de conversão das vontades, uma vez que os receptores de hoje
têm muito mais discernimento que simplesmente uma massa manipulada
(CANCLINI, 1996, p. 52).
Além dessas consequências, da insatisfação dos desejos, há uma outra
faceta que merece ser analisada, que é o fato de que há tamanho número de
oportunidades de consumo que nem sempre o consumidor fica satisfeito, pois é
obrigado a abrir mão de algumas opções, esse momento pode gerar muitas tristezas
para o consumidor, pois o mesmo deve em algum momento decidir e abrir mão de
alguma coisa, em detrimento de outras (BAUMAN, 2001, p. 75).
Ao consumo estão ligados os processos de comunicação e recepção dos
bens simbólicos (CANCLINI, 1996, p,53), isso decorre do fato do processo de
consumo derivar não só do ato final do processo econômico e produtivo mas sim
das necessidades de cada um. Traça-se, assim, um paralelo entre o produtor e o
consumidor e os emissores e receptores do processo comunicacional.
No consumo se revela uma forma de diferenciação de classes e grupos,
chamando a atenção para aspectos simbólicos e estéticos da racionalidade
51
consumidora (CANCLINI, 1996, p. 55), a qual encontra respaldo no processo de
consumir para pertencer.
Nesses tempos contemporâneos, o ato de ir às compras pode ser encarado
então como uma forma de se fazer pertencer ao grupo. As mudanças de hábitos de
consumo podem ser encaradas como mudança também nos grupos de
pertencimento ou a migração para outros grupos. Esse processo mostra uma coisa
nova no processo de consumir que é o sentir-se livre, pois consumindo o indivíduo é
capaz de exercer e atender suas vontades de maneira independente. Nesse
momento o sujeito pode encontrar sensações e sentimentos que se contradizem e
se contrapõem.
Em suma: a mobilidade e a flexibilidade da identificação que caracterizam a vida do ‘ir às compras’ não são tanto veículos de emancipação quanto instrumentos de redistribuição das liberdades. São por isso bênçãos mistas - tanto tentadoras e desejadas quanto repulsivas e temidas, e despertam os sentimentos mais contraditórios (BAUMAN, 2001, p. 106).
Mesmo com todos esses aspectos de ligação do consumo com a adesão
aos grupos sociais, é nesse processo de consumo que se constrói parte da
racionalidade integrativa e comunicativa de uma sociedade (CANCLINI, 1996, p.56).
Não obstante o que acabamos de afirmar não podemos nos furtar da
interessante análise que foi feita com base no padrão de comportamento dos
indivíduos nos Shopping Center, por Bauman, a qual é muito interessante para
auxiliar na compreensão e construção desse individualismo contemporâneo e sua
forma de interagir com o consumo, além da possibilidade de pertencer a algum tipo
de grupo, quer seja pelo fato de estar frequentando este local dedicado ao consumo,
quer seja por que está consumindo e com isso buscando enquadrar-se em algum
grupo de seu interesse e escolha, o indivíduo consome para si e não para os outros.
Dentro de seus templos, os compradores/consumidores podem encontrar, além disso, o que zelosamente e em vão procuram fora deles: o sentimento reconfortante de pertencer - a impressão de fazer parte de uma comunidade. Como sugere Sennett, a ausência de diferença, o sentimento de que "somos todos semelhantes' o suposto de que "não é preciso negociar pois temos a mesma intenção' é o significado mais profundo da idéia de "comunidade" e a causa última de sua atração, que cresce proporcionalmente à pluralidade e multivocalidade da vida (BAUMAN, 2001, p. 117).
52
Mas nesse consumo há o fator importante, que não podemos deixar de
observar que é o papel da mídia em relação à capacidade de, ao menos, influenciar,
ou tentar, ditar moda e padrão para comportamentos. Os indivíduos, então, tendem
a aderir a esses discursos por diversas formas, pois assim se acham merecedores
de participação dos grupos pela simples identificação com o discurso apresentado.
A possibilidade em questão é, de fato, bastante questionável. Numerosos estudos mostram que as narrativas pessoais são meramente ensaios de retórica pública montados pelos meios públicos de comunicação para "representar verdades subjetivas": Mas a não-autenticidade do eu supostamente autêntico está inteiramente disfarçada pelos espetáculos de sinceridade - os rituais públicos de perguntas pessoais e confissões públicas (...) (BAUMAN, 2001, p.102).
Esse papel dos mass media é importante. Estudar as formas e maneiras de
persuadir, usando desses artifícios contextualizantes e o tipo de discurso e
argumentação é uma maneira interessante de melhor observar o uso que a
publicidade faz desse novo modelo cultural para atingir aos seus objetivos
mercadológicos.
Mas não é só o mass media que pode ser responsabilizado por isso tudo, o
ser humano contemporâneo, com seu estilo de vida, é também responsável por
aceitar e se adaptar as novas exigências da vida contemporânea. Como vimos, ao
tratar a hegemonia, o indivíduo, antes de tudo, tem o poder do livre arbítrio e com
isso pode escolher ou não se vai se sujeitar ou se render ao que os poderes
hegemônicos estão lhe propondo. Mais que isso ele se identifica e acredita que pode
se filiar a esse grupo por várias formas como veremos logo mais. Quando o
consumidor vai em busca daquilo que o aproxima do grupo, uma das formas é
encontrar o produto adequado para essa ligação, esse produto pode ser que já se
encontre disponível, mas deve, em suma, ser capaz de dar ao indivíduo a satisfação
que ele procurava, o prazer almejado, caso contrário o consumidor poderá de
alguma forma se sentir lesado, o que ensejará uma atitude por parte deste, com
vistas a expurgar o mal estar que sentiu, independente do caminho que tenha
escolhido para exorcizar essa sensação de insatisfação que tenha lhe acometido. A
pior das sensações que o consumo pode proporcionar é a dissonância cognitiva,
53
especialmente se causada por falta de satisfação com o produto consumido, quando
o mesmo não entrega o que prometeu.
E, em vez disso, uma questão de obter satisfação de um produto pronto para o consumo; se o prazer obtido não corresponder ao padrão prometido e esperado, ou se a novidade se acabar junto com o gozo, pode-se entrar com a ação de divórcio, com base nos direitos do consumidor. Não há qualquer razão para ficar com um produto inferior ou envelhecido em vez de procurar outro "novo e aperfeiçoado" nas lojas. O que se segue é que a suposta transitoriedade das parcerias tende a se tornar uma profecia autocumprida (BAUMAN, 2001, p. 189).
Se em algum momento podemos afirmar que a lógica do consumo tem seu
fundamento baseado em uma lógica do capital, da produção de bens de consumo,
com o que acabamos de ver, podemos estabelecer uma ligação muito estreita com
uma nova “lógica do consumo”, a qual apontaria para outras modalidades de
estruturas sociais de utilizar os produtos para marcar e demarcar as relações sociais
(FEATHERSTONE, 1995, p. 35).
2.1.4 – Cultura do EU
O consumo não é mais hoje um momento apenas de se fazer pertencer ao
grupo, ou um fator de aprovação do grupo para que o indivíduo pertença a ele. É
muito mais que isso, é um momento em que o “EU” de cada um se revela, se
mostra, e pela simples observação dos hábitos é possível classificar o indivíduo
como pertencente a este ou àquele grupo. É um momento de autoafirmação, muito
mais que de permissão de pertencer, é hora da autoinclusão, da autoexpressão, da
satisfação do desejo como ligação ao grupo.
A noção de desejo, observa Ferguson, liga o consumo à autoexpressão, e a noções de gosto e discriminação. O indivíduo expressa a si mesmo através de suas posses (BAUMAN, 2001, p.90).
É no momento do consumo que o indivíduo se faz presente, mesmo que à
distância, do grupo, o que importa é a percepção que tem de si como participante,
54
como pertencente. Para que isso ocorra ele vai mergulhar em um momento de
interiorização para que se conforme com a nova condição buscando construir em si
e pra si uma nova dimensão de comportamento e de vestir, que lhe farão bem, do
ponto de vista da construção de uma obra de arte que se inicia e se acaba nele
mesmo.
Esse processo de cultivar em si, e para si, essas novas características em
busca de um ideal respaldado no imaginário criado pelo estereótipo do grupo que o
indivíduo busca alcançar, inclusive com o consumo, ou a frequência em locais que
pertencem aos participantes do grupo, estão ligados a fluidez e a liquidez dessa
nova era, em que as pessoas são tão preocupadas com sigo mesmas e pouco
interessadas no coletivo. É a criação de uma identidade nova, a cada novo ciclo de
reinvenção, de padrão de moda ou de comportamento, ou seja, de uma nova “tribo”
para que o sujeito se adapte e procure se encaixar.
Somente a experiência, que é um fator extremamente pessoal, e portanto
muito interior, evidenciando essa cultura do “eu” como uma forma especial de buscar
o engajamento em determinado processo de pertencimento, é capaz de, por vezes,
trazer alguma paz e conforto ao indivíduo, por achar que neste momento está fixo a
um determinado padrão e assim pode descansar até a próxima onda. Não obstante
essa possibilidade de assentamento no grupo, essas situações são tão líquidas
quanto às vontades e percepções dos indivíduos, fazendo com que haja sempre um
motivo para a preocupação e a valorização do “eu” em detrimento do coletivo, pois é
necessário para ser feliz se manter em constante mudança, para atingir ou se
manter num grupo, ou para migrar de um grupo de interesse que deixou de ser
atrativo para o novo grupo de predileção, que tenha surgido repentinamente e tenha
causado no “eu” uma nova paixão e necessidade de aderência a nova moda. É a
busca pela identidade, mas a identidade do ponto de vista do identificar-se com algo
que está fora do sujeito, pela busca dentro de si do que é necessário para se
identificar e ser identificado por quem observa o sujeito.
E tendo-as visto assim, lutamos para fazer o mesmo: ‘Todo o mundo tenta fazer de sua vida uma obra de arte’. Essa obra de arte que queremos moldar a partir do estofo quebradiço da vida chama-se ‘identidade’. Quando falamos de identidade há, no fundo de nossas mentes, uma tênue imagem de harmonia, lógica, consistência: todas as coisas que parecem – para nosso desespero eterno - faltar tanto e tão abominavelmente ao fluxo de nossa experiência. A busca da
55
identidade é a busca incessante de deter ou tornar mais lento o fluxo, de solidificar o fluido, de dar forma ao disforme. Lutamos para negar, ou pelo menos encobrir, a terrível fluidez logo abaixo do fino envoltório da forma (...). Então há necessidade de outra tentativa, e mais outra (...). As identidades parecem fixas e sólidas apenas quando vistas de relance, de fora. A eventual solidez que podem ter quando contempladas de dentro da própria experiência (...) parece frágil, vulnerável e constantemente dilacerada (...) (BAUMAN, 2001, p.98-99).
Estamos então tratando de algo novo e que se apresenta tão mudado se
comparado à era moderna, hoje, nesse modelo contemporâneo, a instabilidade da
própria identidade dos indivíduos, que só se processa pelo modo individualista de
vivar contemporâneo, a preocupação apenas consigo mesmo. É uma transitoriedade
tão grande das coisas que o próprio indivíduo não para de mudar, a própria
identidade se tornou efêmera, pela ligação muito íntima entre a identidade e as
coisas do mundo, e o consumo de tudo o que está disponível, sejam bens, produtos
ou serviços, além de todo arsenal midiático com novas identidades sendo
veiculadas:
Num mundo em que coisas deliberadamente instáveis são a matéria-prima das identidades, que são necessariamente instáveis, é preciso estar constantemente em alerta; mas acima de tudo é preciso manter a própria flexibilidade e a velocidade de reajuste em relação aos padrões cambiantes do mundo ‘lá fora’ (BAUMAN, 2001, p.100).
O cidadão só se aceita ou se sente aceito, se for capaz de se adaptar com a
mesma velocidade com que as mudanças se manifestam. O mundo muda e as
pessoas para não se sentirem deslocadas devem mudar com ele, acompanhar e
pertencer a esses novos mundos e grupos que compõe a contemporaneidade.
Essa nova maneira de encarar as identidades, com essa velocidade de
mutação, acaba por caracterizar os novos indivíduos não pelo que são mas pelo que
aparentam ser, e estes mesmos, hoje, buscam mais demonstrar com sinais
exteriores do que com alguma forma de exteriorizar o que realmente são. Um
indivíduo para demonstrar riqueza acaba por se travestir como se rico fosse,
independente de ter posses ou vasto conhecimento, para denotar saúde ele exibe
um corpo esculpido a duras penas em academias, com o uso de diversas formas de
regimes, alimentação especial ou balanceada, mesmo que isso em algum momento
esteja debilitando a sua saúde de fato, temos casos de algumas doenças modernas
56
fruto desse tipo de comportamento, como a bulimia ou a anorexia, uso de esteroides
anabolizantes e tantos outros.
Chega a ser irônica essa dualidade entre o ser interior e o ser exterior, e
essa diferença, às vezes, apenas o “eu” de cada um é capaz de enxergar e de
compreender, tamanha sua capacidade de encobri-lo com o novo personagem
criado para o mundo exterior.
(...) as coisas poderiam ser um tanto diferentes, ainda que nunca fundamental ou radicalmente diferentes. Em tal mundo, o cuidado com a identidade tende a adquirir um brilho inteiramente novo: A ‘idade da ironia’ foi substituída pela ‘idade do glamour’, em que a aparência é consagrada como única realidade. A modernidade, assim, muda de um período do eu ‘autêntico’ para um período do eu ‘irônico’ e para uma cultura contemporânea do que poderia ser chamado de eu ‘associativo’ - um "afrouxamento" contínuo dos laços entre a alma "interior" e a forma "exterior" da relação social (...). As identidades são assim oscilações contínuas (...) (BAUMAN, 2001, p. 102).
Então o “eu” interior dá espaço ao “eu” exterior, a criação de uma
personagem que fará a ligação do indivíduo ao seu grupo de interesses com base
em sua aparência. No seu hábito de consumir.
2.3 – Grupo Social e Consumo
O consumo é uma porta de entrada, mesmo que seja “virtual” (sem o devido
pertencimento, de fato, pessoalmente, por dentro), de um grupo, quer seja pela
simples sensação de pertencer por usar os mesmos tipos de roupas, objetos ou
alimentos, quer seja pelo fato de frequentar os mesmos lugares em que aqueles que
pertencem ao grupo vão ou compram, Bourdieu (apud FEATHERSTONE, 1995, p.
38) associa que “o gosto classifica, e classifica o classificador”, para designar que
além de ser codificado pelo seu gosto, aquele que lhe codifica também está sendo
de alguma forma classificado, no caso podemos, por analogia dizer que o grupo que
conhece, também reconhece, pelo gosto e pelo hábito, seus semelhantes, o
indivíduo que busca ser classificado vai procurar “imitar” o modo de consumir dos
sujeitos pertencentes ao grupo, Bauman, citando Michael Parenti, diz que isso é
como se fosse comprar uma receita de vida:
57
O código em que nossa "política de vida" está escrito deriva da pragmática do comprar. Não se compra apenas comida, sapatos, automóveis ou itens de mobiliário. A busca ávida e sem fim por novos exemplos aperfeiçoados e por receitas de vida é também uma variedade do comprar, e uma variedade da máxima importância, seguramente, à luz das lições gêmeas de que nossa felicidade depende apenas de nossa competência pessoal mas que somos (como diz Michael Parenti) pessoalmente incompetentes, ou não tão competentes como deveríamos, e poderíamos, ser se nos esforçássemos mais (BAUMAN, 2001, p. 88).
Assim podemos, também, relacionar esse modelo de vida que é almejado
pelos consumidores, nesse mundo fluído da contemporaneidade, com os estudos de
Canclini que afirma:
Vivemos um tempo de fraturas e heterogeneidade de segmentações em cada nação, e de comunicações fluidas, com as ordens transnacionais da informação da moda e do saber. Em meio a esta heterogeneidade encontramos códigos que nos unificam, ou que ao menos permitam que nos entendamos (CANCLINI, 1996, p.61).
Ambos concordam com o fato de que há hoje um modelo despedaçado de
sociedade, com diversas divisões, não importando, inclusive se o processo de
pertencimento está ligado por questões de povos ou geográficas, a distância não
separa mais as pessoas de um mesmo grupo, o fenômeno da globalização e o
acesso à comunicação, com sua nova velocidade de atualização global, por conta
da rede mundial de computadores, acaba por “aproximar” indivíduos que na verdade
nunca se conhecerão, mas que apenas se sentirão parte de um mesmo coletivo,
pelas questões ligadas a seus hábitos, roupas, alimentos e comportamentos
parecidos ou mesmo idênticos. São esses os códigos aos quais Canclini faz
referência no trecho acima e que nos parece bastante factual aceitar como uma
verdade, ainda nesse sentido, afirma Maffesoli (1995, p. 67) que “(...) é o estilo de
vida que tende a predominar (...) hedonista, estético, místico. Estilo de vida que
enfatiza os jogos da aparência e os aspectos imateriais da existência (...) pelo
manejo das imagens, ou mesmo pelo consumo desenfreado dos objetos” que se
enquadrem nos padrões dos grupos. Sobre esse jogo de aparências e manipulação
de imagens Featherstone acrescenta que:
É nesse sentido que podemos designar o aspecto “duplamente” simbólico das mercadorias nas sociedades ocidentais contemporâneas: o simbolismo não se evidencia apenas no design e no imaginário embutido nos processos de produção e de marketing;
58
as associações simbólicas das mercadorias podem ser utilizadas e renegociadas para enfatizar diferenças de estilo de vida, demarcando as relações sociais (LEISS apud FEATHERSTONE, 1995, p.35).
Essa pseudo-hegemonia dos grupos sobre seus participantes não importa
mais em aceitação expressa para que haja a aceitação dos indivíduos, estes se auto
intitulam participantes por meio do ato de compartilhar das mesmas formas de se
comportar daqueles, não falamos mais de estruturas tradicionais de grupos, mas de
novas estruturas, as quais apenas têm entre si identidades culturais idênticas, com
complexidade e velocidade de mudança incríveis, nesses tempos da
contemporaneidade.
(...) descobrimos que a separação entre grupos hegemônicos e subalternos já não se apresenta principalmente entre o nativo e o importado, ou entre o tradicional e o moderno, mas como adesão diferencial a subsistemas culturais de diversa complexidade e capacidade de inovação... (CANCLINI, 1996, p. 63-64).
Ainda nesse sentido de pertencimento e de buscar formas de pertencer,
Featherstone (1995, p. 31) afirma que “as pessoas usam as mercadorias de forma a
criar vínculos ou estabelecer distinções sociais”. Se se estabelece distinção social,
também se estabelece identidade social, o que pode prescindir de uma necessidade
de ser competente, do ponto de vista de estar apto a se identificar a um determinado
grupo social, Bauman faz um paralelo entre ser competente e participar de um
grupo, e para provar essa competência em determinada área da vida é necessário
consumir e usar o produto adquirido para que haja um ajuste do indivíduo ao formato
que o grupo aceita como sendo verdadeiro para se inserir no contexto apropriado.
Há muitas áreas em que precisamos ser mais competentes, e cada uma delas requer uma ‘compra’. ‘Vamos às compras’ pelas habilidades necessárias a nosso sustento e pelos meios de convencer nossos possíveis empregadores de que as temos; pelo tipo de imagem que gostaríamos de vestir e por modos de fazer com que os outros acreditem que somos o que vestimos; por maneiras de fazer novos amigos que queremos e de nos desfazer dos que não mais queremos; pelos modos de atrair atenção e de nos escondermos do escrutínio; pelos meios de extrair mais satisfação do amor (...) (BAUMAN, 2001, p.86).
Não obstante essas novas formas de grupos sociais, em sociedades antigas
os bens, seu consumo, ou a capacidade de adquiri-los já era, por si só, um fator de
demonstração de poder ou de participação de determinado grupo ou casta,
demonstrando que esse fenômeno não é um privilégio da contemporaneidade, mas
59
existe há muito mais tempo, ele apenas tomou novos contornos nesses nossos
tempos atuais e líquidos.
O confronto das sociedades modernas com as arcaicas permitem ver que em todas as sociedades os bens exercem muitas funções, e que a mercantil é apenas uma delas. Nós homens intercambiamos objetos para satisfazer necessidades que fixamos culturalmente, para integrarmo-nos com outros e para nos distinguirmos de longe, para realizar desejos e para pensar nossa situação no mundo, para controlar o fluxo errático dos desejos e dar-lhe constância ou segurança em instituições e rituais (CANCLINI, 1996, p. 66-67).
Esses novos contornos estão ligados, principalmente, à fluidez de todas as
coisas e dos próprios grupos, por conta das mudanças aceleradas nos padrões de
consumo. Então os grupos sociais mudam tão rapidamente quanto mudam seus
participantes, ou se esvazia, pois estes vão em busca de novos grupos que sejam
capazes de satisfazer suas novas necessidades e carências, a esse respeito:
A obediência aos padrões (uma maleável e estranhamente ajustável obediência a padrões eminentemente flexíveis, acrescento) tende a ser alcançada hoje em dia pela tentação e pela sedução e não mais pela coerção - e aparece sob o disfarce do livre-arbítrio, em vez de revelar-se como força externa (BAUMAN, 2001, p. 101).
Mas esse novo modo de pensar e de consumir, não está desvinculado de
uma coisa muito importante que é a satisfação dos desejos e necessidades e que
são extremamente individualistas e muito ligados ao “eu”, e não uma coisa que é
lançada de fora para dentro, esse processo só acontece se o indivíduo se permitir.
2.4 – Saúde, beleza e culto ao corpo como paradigma para um grupo
Há a necessidade de participação ou a importância de participar de um
determinado grupo social, o indivíduo anseia por isso, especialmente sob o ponto de
vista de aceitação pelo grupo e da gratificação ou autoaceitação das próprias
características, como suficientes ou capazes de permitir a participação no grupo
social, no caso do nosso estudo, ligado a fatores de beleza, saúde e culto ao corpo.
Sobre esses aspectos do pertencimento e o consumo de produtos ligados à
beleza, saúde e culto ao corpo podemos buscar respaldo ao que Featherstone
60
(1995, p.36) encontrou nas obras de Douglas e Isherwood sobre a relevância e
ênfase do modo como produtos são usados para demarcar fronteiras em relações
sociais, o que ao nosso modo de ver também demarcaria os grupos sociais contidos
nessas fronteiras, pelas características que os revestem, especialmente pelos
hábitos de consumo (locais e produtos), em seguida afirma “que nossa fruição dos
bens está apenas parcialmente relacionada com o seu consumo físico, associando-
se ainda de modo crucial ao seu uso como marcadores: apreciamos, por exemplo,
compartilhar os nomes dos bens com os outros (...)” (DOUGLAS E ISHERWOOD
apud FEATHERSTONE, 1995, p. 36-37).
Isso leva as pessoas a sacrifícios e atitudes, compatíveis com a sua
necessidade de pertencer e ser aceitos em determinados grupos sociais, com
características hegemônicas, principalmente quando ligadas à moda. São várias as
formas, então, de se fazer participar do grupo daqueles que cultuam o corpo como
forma de manter a beleza e saúde, e uma delas é consumindo produtos e serviços
que propiciem ou favoreçam condições de se adequar aos padrões impostos pelos
grupos, isso pode gerar, mesmo que apenas psicologicamente, uma identidade com
o agrupamento.
Essa percepção de si, que o indivíduo tem, deve estar de acordo com a
percepção média do grupo que o mesmo pretende se inserir, ou seja, atender às
expectativas que o grupo tem, seja por conta de um estereótipo, que é o padrão
hegemônico, ou da sua capacidade de se transformar nesse padrão. Padrão esse
que se transforma, para o grupo social, como um senso comum de beleza, de
parâmetro de corpo e de comportamento ligado à saúde ao qual o indivíduo deve se
submeter para ser aceito.
Olhando ao nosso redor, podemos perceber a importância que essa ditadura
da beleza e da saúde tem no cotidiano. As publicações, os programas de TV, a
publicidade e outras formas de comunicação se utilizam de personagens que se
encontram dentro de um padrão de beleza e saúde, que pode ser observado pela
forma como exibem seus corpos esculpidos, o que causa um desejo inconsciente da
população de obter o mesmo resultado como forma de participar, mesmo que
indiretamente, de um grupo social que tem sucesso, status, reconhecimento e poder.
61
Apesar da forma cultural não ser imposta, pois não há um poder coercitivo e
de intransigência da vontade do grupo, imposto por este ou por qualquer meio de
comunicação de massa, esta se estabelece de maneira a ser o padrão para ser
aceito num determinado grupo social. Assim como na teoria dos usos e
gratificações1, os receptores só aceitam e se identificam com aquilo que lhes agrada
e faz bem, e entre os influenciadores desse comportamento estão a família, o
entorno social e o grupo ao qual querem pertencer, mas especialmente a sua
vontade, sua necessidade de pertencer ao grupo, o que de certa forma faz com que,
mesmo que inconscientemente o indivíduo se submeta a esse comportamento ou a
essa cultura hegemônica ligada a saúde, beleza e culto do corpo.
(...) Um bom número de estudos sobre comunicação de massa tem mostrado que a hegemonia cultural não se realiza mediante ações verticais, onde os dominadores capturariam os receptores: entre uns e outros se reconhecem mediadores como a família, o bairro e o grupo de trabalho (CANCLINI, 1996, p.52).
Temos visto no noticiário que até as crianças já aderiram a esse padrão de
comportamento, com o Bullying em relação àqueles que não seguem esse rígido
padrão de beleza e saúde, exteriorizado pelo que o corpo mostra.
Uma das formas de se sentir parte do grupo, é ter comportamentos de
compra que se encaixam dentro do perfil do público, que tem hábitos ligados a essa
cultura em que a beleza, o culto ao corpo e a saúde se fazem presentes e
importantes para os indivíduos.
Consumir é tonar mais inteligível um mundo onde o sólido se evapora. Por isso, além de serem úteis para a expansão do mercado e a reprodução da força de trabalho, para nos distinguirmos dos demais e nos comunicarmos com eles, como afirmam Douglas e Isherwood, ‘as mercadorias servem para pensar’ (CANCLINI, 1996, p.59).
Os comunicólogos, especialmente os publicitários, sabendo desse
comportamento utilizam em suas peças de propaganda desses artifícios, buscando
1 Teoria dos usos e gratificações segundo a qual se faz um estudo sobre as atividades da audiência em relação
aos programas que assistem e como se relacionam com estes, buscando apenas os que satisfaçam suas necessidades.
62
identificar o produto com o comportamento ligado à saúde, beleza e a um corpo
bonito, magro e definido. Apoiam-se na atitude de que comprar e usar determinados
produtos pode levar o indivíduo ao grupo, ou por torná-lo de fato um representante
que se identifica com o perfil ou que tenha ao menos um comportamento igual
àquele esperado dos participantes dessa cultura hegemônica, mesmo que seja
apenas pelos hábitos de compra.
É nesse jogo entre desejos e estruturas que as mercadorias e o consumo servem também para ordenar politicamente cada sociedade. O consumo é um processo em que os desejos se transformam em demandas e em atos regulados (CANCLINI, 1996, p.59).
Dentre os vários produtos e serviços que foram colocados à disposição dos
consumidores, para auxiliá-los na busca pelo padrão ideal de corpo, saúde e beleza,
estão os alimentos funcionais que representam hoje um volume de vendas elevado
no portfólio de diversas empresas. Esse fato é facilmente percebido com a forte
exposição que esses produtos têm nas gôndolas dos supermercados, os quais, não
dariam tanto espaço a produtos com pouca saída ou baixa capacidade de venda. A
receptividade destes produtos, em virtude da atual preocupação com a beleza e
saúde por parte dos consumidores é elevada.
Esses hábitos, então, servem para ajustar os padrões hegemônicos que têm
eco na cultura que aponta no sentido de cultuar a saúde e o corpo como o padrão
aceito de beleza.
O gosto dos setores hegemônicos tem esta função de “funil”, a partir do qual vão sendo selecionadas as ofertas exteriores e fornecendo modelos políticos-culturais para administrar as tensões entre o próprio e o alheio (CANCLINI, 1996, p.61).
O consumo e o mundo de cada um fica, assim, interligado, possibilitando ao
indivíduo, por meio de uma ideologia, não no sentido político, mas no sentido geral
de conjunto de ideias e valores hegemônicos, culturalmente falando, se filiar a um
grupo social.
O espaço de reflexão sobre o consumo é o espaço das práticas cotidianas enquanto lugar de interiorização muda da desigualdade social, desde a relação com o próprio corpo até o uso do tempo, o habitat e a consciência do possível para cada vida, do alcançável e do inatingível (BARBERO, 1997, p.290).
63
Esse grupo social ligado à beleza encontra eco no discurso de Bauman
sobre modernidade líquida quando ao observar o programa de saúde e beleza de
Jane Fonda afirma:
(...) a instrutora se oferece como um exemplo (...) mais do que como uma autoridade (...) a mulher que se exercita possui seu próprio corpo pela identificação com uma imagem que não é a sua própria mas a dos corpos que lhe são oferecidos como exemplo. Jane Fonda é bastante explícita sobre a essência do que oferece e bastante direta sobre o tipo de exemplo que seus leitores devem seguir: "Gosto muito de pensar que meu corpo é produto de mim mesma, é meu sangue e entranhas. É minha responsabilidade (BAUMAN, 2001, p.79).
Uma coisa muito importante a se destacar é que quando falamos de saúde,
na verdade não estamos nos referindo mais ao modelo tradicional de saúde que é
mensurável pelos médicos por meio de um sem número de exames, mas sim de um
valor externo ao corpo, da sua aparência, e da sua beleza, como o novo paradigma
de saúde. Esse novo protótipo de pessoa saudável é explorado pelos produtores
que ligam seus bens e serviços, os quais serão oferecidos para atender a uma
demanda que anseia pela participação nesses grupos criados pela exposição de
padrões estéticos de beleza humana, nas mais diversas formas de publicações. Os
consumidores acabam por aceitar e buscar esse padrão de academia como ideal de
corpo e beleza, tratando dos mesmos como sinônimo de cuidado com a saúde, o
que por si só pode ser um erro. A saúde em si é marcada por parâmetros médicos
que avaliam o bem-estar geral do indivíduo, ao passo que ter um corpo bonito é um
fator externo que não quer dizer exatamente que se tenha saúde, mas pode em
algum momento significar que isso seja verídico. De alguma forma esses dois
discursos distintos acabaram por se aproximar, de tal forma que parece mesmo que
se fundiram os conceitos, propiciando a exploração de uma coisa como se fosse a
outra.
Bauman (2001, p. 92) observou isso muito bem e afirmou que “se a
sociedade dos produtores coloca a saúde como o padrão que seus membros devem
atingir, a sociedade dos consumidores acena aos seus com o ideal da aptidão
(fitness). Os dois termos - saúde e aptidão - são frequentemente tomados como
coextensivos e usados como sinônimos (...). Tratar esses termos como sinônimos é,
porém, um erro”. A apropriação desses termos pode ser em primeira instância
entendida como uma forma de transformar um discurso em outro, para que o sujeito
64
acabe por se identificar com o padrão saúde ligado a beleza e ao corpo, por que isso
poderia indicar que o mesmo é saudável, ao contrário da forma clássica de se
entender a “saúde, circunscrita por seus padrões (quantificável e mensurável, como
a temperatura do corpo ou a pressão sanguínea) e armada de uma clara distinção
entre ‘norma’ e ‘anormalidade’” (BAUMAN, 2001, p.93).
A esse processo da luta contra a falta de saúde, e por “osmose”, a procura
por um corpo bonito, estão ligados vários comportamentos muito bem distintos e
possíveis de se observar.
Os indivíduos que pretendem de algum modo se sentirem como
participantes desse grupo vão, em algum momento, passar a frequentar os mesmo
lugares: academias, restaurantes de comida natural, médicos especialistas em
esporte e nutrição e outros; bem como irão passar a consumir diversos produtos
ligados a esse tipo de conduta: calçados e roupas apropriados à prática do esporte,
alimentos com características que possam contribuir aos efeitos esperados com um
regime especial, bebidas com características repositórias, complementos
alimentares e outros na mesma linha.
Essa busca de um estilo de vida saudável também foi observada por
Bauman, que acrescenta que esses hábitos estão em eterna transição e fazem parte
do modo de vida na contemporaneidade, com toda a fluidez que lhe é conferida, pois
os padrões mudam, os produtos se alteram, a moda em si se modifica, quantas
vezes não somos surpreendidos com novas informações sobre determinado
alimento, alçando o mesmo a herói em tempo recorde, quando ainda “ontem” o
mesmo era considerado o maior vilão em qualquer dieta.
(...) o significado de um "regime saudável de vida" não fica parado. Os conceitos de "dieta saudável" mudam em menos tempo do que duram as dietas recomendadas simultânea ou sucessivamente. O alimento que se pensava benéfico para a saúde ou inócuo é denunciado por seus efeitos prejudiciais a longo prazo antes que sua influência benigna tenha sido devidamente saboreada (BAUMAN, 2001, p. 93).
Esse aspecto ligado aos alimentos ou a qualquer outro tipo de produto
alimentar como suplementos, etc. requer um “tratamento prolongado” para que surta
os efeitos pretendidos pelos consumidores, o que é um contra senso, já que a
impermanência ou a volatilidade das vontades no mundo da contemporaneidade é
65
diretamente oposta a esse “tempo” mais lento que esses produtos requerem dos
usuários para operar a sua “mágica”.
Outra colocação importante que podemos fazer é em busca de que,
realmente, estão essas pessoas que pretendem se enquadrar pela sua
autoexpressão ou autoinclusão nos grupos, elas buscam a saúde, realmente ou isso
é apenas um subterfúgio para se atingir outro objetivo ligado à beleza e ao corpo,
dentro de padrões pré-estabelecidos, pelos produtores ou pela mídia, não deixando
de lado o poder hegemonizante daqueles que estão no entorno como a família,
amigos, bairro, etc.
Há por trás disso a busca por uma gratificação, de sensações positivas, que
o processo, ou seu fim, é capaz de propiciar, lembrando que esses fins podem não
ser alcançados, por conta da fluidez e da volatilidade do padrão, que poderá ser
alterado, criando novas necessidades nos postulantes ao pertencimento do grupo.
Os consumidores podem estar correndo atrás de sensações - táteis, visuais ou olfativas - agradáveis, ou atrás de delicias do paladar prometidas pelos objetos coloridos e brilhantes expostos nas prateleiras dos supermercados, ou atrás das sensações mais profundas e reconfortantes prometidas por um conselheiro especializado (BAUMAN, 2001, p. 96-97).
Essa observação de Bauman traz ao nosso estudo uma figura importante
que é o conselheiro especializado, o qual possui um discurso autorizado, quer seja
pela sua reputação e competência técnica (sobre o assunto, como um médico,
nutricionista ou outro profissional ligado a saúde), quer seja pela sua notoriedade por
pertencer ao grupo, simplesmente por compartilhar com as características de
autoexpressão conforme o padrão de saúde, corpo e beleza vigentes (um ator,
formador de opinião, ou um tipo qualquer que tenha alguma fama).
O indivíduo vai se identificar com o “conselheiro” especializado, pois com
este, aquele quer se igualar de alguma forma. Uma das possibilidades que esse
indivíduo poderá usar para se equiparar como sujeito que participa do grupo é se
transformar em alguém igual ou muito parecido com ele.
Dentre as diversas formas de encontrar essa satisfação do seu desejo de
participar e de se identificar, o consumo, como paradigma de comportamento ou de
uso de produtos, é uma delas. O indivíduo consumindo, comprando, os mesmos
66
produtos dos participantes do grupo, mesmo que não seja aceito expressamente,
tacitamente se sentirá inserido nesse contexto, e pela sua aparência ou seu modo
de agir poderá, inclusive, ser reconhecido até por não participantes do grupo, como
um dos integrantes deste.
Para exemplificar melhor, usando a moda como exemplo, o modo de vestir
dos skatistas é muito peculiar e mesmo que não se ande de skate, um indivíduo
pode ser considerado como tal, pelo seu comportamento, músicas que houve ou
mesmo suas roupas e locais que frequenta.
Com as questões ligadas a saúde, ao corpo e à beleza, não é diferente. O
uso de produtos (dos mais diversos tipos como cosméticos, alimentos, roupas, etc.),
a frequência à locais que concentram pessoas ligadas a esses indivíduos
(academias, parques, etc.) e a absorção de outros hábitos específicos dos grupos,
podem acabar por identificar um sujeito como pertencente à esse grupo social.
Haverá então a contemporização do indivíduo com o seu grupo de interesse,
pelo consumo e por atitudes, ou tão somente por “copiar” o conselheiro
especializado.
2.5 – Produtos e alimentos – contribuição e promessa
Dentre as maneiras de se sentir participante dos grupos que estamos
estudando, o consumo de produtos e alimentos, ligados de alguma forma à saúde, à
beleza e ao culto ao corpo, aparecem na atualidade como uma tábua de salvação
para a transformação do indivíduo no sujeito que o mesmo projeta de si para o
pertencimento e o autoconsentimento.
Dentre todos os produtos encontrados, vamos observar, exclusivamente, os
alimentos, que, de alguma forma, possam contribuir para o indivíduo alcançar seu
objetivo de pertencer ao grupo social em questão, esse será um recorte para o
trabalho, no entanto não desconsideramos quaisquer outros produtos como capazes
de propiciar aos consumidores a satisfação de suas necessidades.
Todos os alimentos, em maior ou menor grau, possuem características que
os tornam diferentes entre si, as quais auxiliam o ser humano no processo de gerar
energia para se manter vivo. Essas características exclusivas de cada tipo de
67
alimento, que favorecem a funcionalidade do organismo, e sua manutenção, são
muitas vezes explicitadas por estudos, os quais por sua vez são levados pelos mais
variados processos comunicacionais à sociedade como um todo.
Cada uma dessas funcionalidades especiais, ou específicas, poderá ser
exortada com base em um tipo de expressão de cunho científico (nome de uma
substância encontrada no produto, por exemplo) que se evidenciará e o tornará um
alimento especial, em detrimento de outros.
O fato de determinado produto ter essa substância o transforma em uma
classe especial de alimentos, chamada de funcionais, o que, no entanto, não exclui
os outros alimentos de possuírem suas características funcionais, mas os distingue
e difere pela maneira com a qual são conhecidos.
O conceito de alimento funcional tem várias vertentes. No Brasil a
responsável por legislar, fiscalizar e controlar esses alimentos é a Agência Nacional
de Vigilância Sanitária (ANVISA), a qual, por intermédio das suas resoluções 16, 17,
18 e 19 (RDC – Resolução da Diretoria do Colegiado), de 30 de Abril de 1999,
conceitua alimento, risco e segurança oferecidos, análise e comprovação de
propriedade funcional ou de saúde e os procedimentos para registro destes
alimentos.
A própria ANVISA conceitua como funcional o produto que em sua
embalagem conter qualquer alegação de propriedade funcional ou de saúde, assim
entendidos: “O alimento ou ingrediente que alegar propriedades funcionais ou de
saúde pode, além de funções nutricionais básicas, quando se tratar de nutriente,
produzir efeitos metabólicos e ou fisiológicos e ou benéficos à saúde devendo ser
seguro para consumo sem supervisão médica” (BRASIL 1999a; BRASIL 1999b).
É considerada para a ANVISA propriedade funcional: “aquela relativa ao
papel metabólico ou fisiológico que o nutriente ou não nutriente tem no crescimento,
desenvolvimento, manutenção e outras funções normais do organismo humano”
(BRASIL 1999b). Entende, também, a ANVISA como propriedade de saúde: “aquela
que afirma, sugere ou implica a existência de relação entre o alimento ou ingrediente
com doença ou condição relacionada à saúde.” (BRASIL 1999b).
68
Sobre esses produtos, a própria ANVISA, possui uma Comissão
Tecnocientífica de Assessoramento em Alimentos Funcionais e Novos Alimentos
(CTCAF), a qual esclarece que a busca das empresas por inovações capazes de
agregar valor aos produtos que comercializam, levam à utilização do argumento de
funcionalidade de seus ingredientes e que essa comissão tem papel fundamental na
garantia destas características, propiciando segurança no consumo e também na
veracidade das alegações funcionais em suas embalagens e consequentemente na
publicidade dos mesmos. Em diversos outros países essa utilização é muito antiga e
também têm definições parecidas, especialmente os países orientais.
Segundo a ANVISA (BRASIL, 1999a) não é possível utilizar no rótulo ou
ainda indicar que o produto tenha componentes com características funcionais, sem
que as mesmas sejam comprovadas cientificamente, e não poderão alegar poder de
cura.
Então do ponto de vista legal não se deve alegar em publicidade, de acordo
com a ANVISA, nenhuma característica funcional ou de saúde dos alimentos, sem
que os mesmos tenham sido registrados como tais na referida agência, o que só se
processa após a devida comprovação das características que serão mencionadas
em publicidade ou em sua embalagem.
Para isso deve-se requerer à ANVISA o registro do alimento como novo ou
por conter novas substâncias, também deve se obter a avaliação básica de risco e
segurança referente aos alimentos, além disso fornecer a análise e comprovação de
propriedades funcionais e ou de saúde, as quais serão utilizadas nos rótulos dos
alimentos.
Aliás, a própria ANVISA, em sua RDC 18, alerta sobre os motivos que a
fizeram atentar para esses tipos de alimentos e da importância de legislar sobre
eles, principalmente diante da relevância nesses tempos contemporâneos, em que
os alimentos têm funções importantes na sociedade e a publicidade envolvendo tais
alimentos precisa de regulamentação.
Entre os motivos apresentados na RDC 18 a ANVISA considerou o seguinte:
“que diversas forças motivadoras em todo o mundo têm fortalecido o interesse no
uso da alimentação como determinante importante da saúde” (BRASIL, 1999a) e
69
pondera também “que frequentemente o consumidor é confundido com uma
nomenclatura e alegações (‘claims’) de propriedades não demonstradas
cientificamente” (BRASIL, 1999a), com o que nos coloca diante de um paradoxo,
pois se não é permitido que se alegue, sem que haja uma comprovação e registro
do alimento como sendo funcional ou de saúde, como o consumidor poderia ser
induzido a erro com nomenclaturas e alugações de propriedades não
demonstradas? Nosso trabalho, não visa entender esse processo, mas vai basear-
se no fato de que todos os alimentos cujas peças publicitárias serão analisadas
estarão no rol de produtos com o devido reconhecimento das autoridades
competentes. Dessa forma não se questiona a eficácia do alimento, mas sim o fato
de usar as expressões ou alegações de propriedades que se apoiam em
nomenclatura notadamente ligada as ciências, com o aspecto técnico científico que
as revestem. Outrossim é importante ressaltar que a autoridade competente para
validar a funcionalidade desses produtos é também muito preocupada com a
influência que essas expressões podem causar nos consumidores e que esses
consumidores fazem parte de um movimento (ou poderíamos falar em grupo, como
temos tratado até agora?) preocupado com a saúde (e por que não acrescentar a
beleza e o culto ao corpo?).
O fato de possuir em sua embalagem e, ou, rótulo essas expressões
científicas é o mais importante para a análise que será feita do discurso publicitário
do corpus escolhido, utilizando para tanto da análise discursiva, com apoio na
retórica.
70
Capítulo III – Discurso publicitário, análise discursiva e retórica.
As teorias que embasam este trabalho são aquelas ligadas à análise do
discurso, especialmente no pós-estruturalismo, mas dentre as diversas formas e
ferramentas disponíveis, a argumentação retórica será a teoria principal para estudo
dos conteúdos e da persuasão existentes nas mensagens publicitárias do corpus.
O referencial teórico envolve a análise discursiva com o uso de autores do
pós-estruturalismo francês como Peucheux, Charaudeau, Maingueneau, Barthes e
outros, referente à argumentação e análise de discurso, haverá, também, ênfase na
retórica, como recurso de persuasão, mais exatamente na Nova Retórica, retomada
pelos estudos de Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca e de todos os autores
por eles considerados em seu trabalho: “Tratado da argumentação: a nova retórica”.
Essa aceitação no grupo é uma característica que não passa despercebida
pelos criadores das campanhas publicitárias que exploram essa intenção latente no
consumidor. Assim usa com grande propriedade do conceito de contrato tácito,
estudado por Charaudeau, como a pressuposição de haver entre o locutor e o
interlocutor o conhecimento do assunto e a partilha de um mesmo contexto para que
haja a interação e interpretação por parte do leitor.
O estudo da retórica, no sentido amplo, somando-se a conceituação
Aristotélica aos recentes estudos de argumentação promovidos por Chaiim
Perelman, levam a crer que em todo discurso são encontrados recursos retóricos.
Na publicidade não é diferente, visto que a mesma usa de várias
ferramentas para o fim exclusivo de persuadir o consumidor sobre os produtos que
estão sendo promovidos.
A retórica contemporânea veio cheia de saúde: não mais pretende, especificamente, ensinar a produzir textos, mas, sobretudo, objetiva oferecer caminhos para interpretar os discursos. Alargou-se e não se limita aos três gêneros oratórios, pois incorpora todas as formas modernas de discurso persuasivo (a publicidade, por exemplo, e até a própria poesia, considerada tradicionalmente não persuasiva) (FERREIRA, 2010. p.46).
Essa característica dos novos estudos retóricos ou da nova retórica que
tomaram grande impulso na década de 1980, permite olhar para diversos discursos
71
e suas estruturas argumentativas pelo viés e sob os conceitos dos estudos retóricos,
assim lançaremos um olhar para a campanha sob os aspectos ligados a algumas
características dessas teorias.
Cabe ressaltar que essa nova retórica propõe que “(...) toda argumentação
visa à adesão dos espíritos e, por isso mesmo, pressupõe a existência de um
contato intelectual” (PERELMAN, 2005, p. 16) quando fala sobre a capacidade de
um auditório de se filiar a determinado discurso, sendo influenciado, persuadido ou
convencido de algo. Essa adesão do auditório está intimamente ligada aos conceitos
de ethos. Esse ethos carrega um elo entre o enunciado e o enunciador com o
auditório, criando um vínculo entre eles, de forma a fortalecer a capacidade
persuasiva, de convencimento ou de influenciar.
Inicialmente, então, utilizaremos uma análise do ethos, envolvido em todo
discurso, e para tanto procuraremos uma conceituação para melhor compreender o
termo, o qual se traduziu de forma errônea como sendo caráter, no entanto quando
se procura o seu uso na análise discursiva, sua tradução melhor seria o “tom” do
discurso, ou qual o sentimento maior embutido no mesmo.
(...) qualquer discurso escrito, mesmo que a negue, possui uma vocalidade específica, que permite relacioná-lo a uma fonte enunciativa, por meio de um tom que indica quem o disse: o termo ‘tom’ apresenta a vantagem de valer tanto para o escrito quanto para o oral: pode-se falar do ‘tom’ de um livro (MAINGUENEAU, 2005, p.72).
Esse tom discursivo pode também “ser entendido como um conjunto de
traços de caráter que o orador mostra ao auditório para dar uma boa impressão.
Incluem-se nesses traços as atitudes, os costumes, a moralidade, elementos que
apareçam na disposição do orador” (FERREIRA, 2010. p. 21).
Podemos inferir então que esse ethos não é exatamente a personalidade do
enunciador, mas aquilo que o mesmo transmite ao auditório de si, por meio do tom
do discurso, do enunciado.
O auditório deve ou não aderir a esse ethos. Para que haja um processo de
troca que leve ao objetivo principal da publicidade essa adesão deve ocorrer
construindo uma ligação entre o enunciador e seu interlocutor, inclusive pelo
imaginário, penetrando nesse imaginário da audiência e nele se perpetuando ou
modificando-o.
72
Essa imagem do enunciador é estudada por Maingueneau (2005. p. 69) que
traz importantes contribuições sobre o conceito de ethos e sua ligação com a
publicidade: “Além da persuasão por argumentos, a noção de ethos permite, de fato,
refletir sobre o processo mais geral da adesão de sujeitos a certa posição discursiva.
O processo é particularmente evidente quando se trata de discursos como o da
publicidade (...)”.
Essa adesão é tanto maior por parte do auditório quanto maior for a “força”
que o orador possuir, dentro e fora do discurso. Maingueneau na mesma obra faz
uma taxonomia do ethos, quando observado do ponto de vista discursivo,
distinguindo o mesmo em duas formas: ethos discursivo e ethos pré-discursivo. O
primeiro se apresenta no discurso, na sua construção, na enunciação. O segundo
tem sua origem numa fase pré-discursiva, é chamado também de ethos prévio ou
uma imagem pré-concebida do enunciador por parte do auditório o qual acaba por
criar uma expectativa em relação à enunciação, antecipadamente. Isso é
amplamente explorado pela publicidade e a autoridade que confere, previamente, ao
orador, ou ainda na construção da enunciação para atingir um auditório que se filie
ao discurso.
A filiação ao discurso se processa pelo conteúdo do próprio discurso e
também da imagem que o auditório tem do enunciador, ethos discursivo e ethos
prévio, respectivamente, o qual empresta para o discurso a sua imagem, construída
pelo interlocutor, assim como uma fiança.
O ‘fiador’, cuja figura o leitor deve construir com base em indícios textuais de diversas ordens, vê-se, assim, investido de um caráter e de uma corporalidade, cujo grau de precisão varia conforme os textos. O ‘caráter’ corresponde a um feixe de traços psicológicos. Quanto à ‘corporalidade’, ela é associada a uma compleição corporal, mas também a uma forma de vestir-se e de mover-se no espaço social (MAINGUENEAU, 2005, p.72).
A fiança transmite uma certa segurança ao interlocutor, o qual tem mais
facilidade em aderir ao discurso, por conta da transmissão para o enunciado de suas
características pessoais, ou daquelas “projetadas” pelo auditório. Esse pensamento
é corroborado pela definição que Ferreira (2010, p. 17) dá para orador: “simbolizado
pelo ethos. Para Aristóteles o orador tem credibilidade assentada no seu caráter, na
sua virtude, na sua honra, na confiança que lhe outorgam”.
73
Essa fiança leva a um acordo entre o auditório e o enunciador, de forma a
que o auditório se identifique e aceite o enunciado proposto pelo orador. Esse
casamento do auditório com a mensagem é amplamente explorado pela publicidade.
Em retórica, como visto por Bakhtin e Perelman algo parecido é o conceito
de contrato para o primeiro e de auditório para o segundo, no qual o orador sabe
exatamente o que deve dizer para persuadir sua audiência, que está esperando por
algo pré-estabelecido, esse recurso também está presente nessa análise.
Esse auditório, que em nosso estudo é o público alvo das peças
publicitárias, influencia o enunciador, como sendo seu construtor no momento da
elaboração da argumentação, Perelman (2005, p.20) sustenta que “A maior parte
das formas de publicidade e de propaganda se preocupa, acima de tudo, em
prender o interesse de um público indiferente, condição indispensável para o
andamento de qualquer argumentação.” e Perelman (2005, p. 21) continua, sobre o
mesmo tema: “percebemos melhor a argumentação quando é desenvolvida por um
orador que se dirige verbalmente a um determinado auditório (...)”, onde esse
auditório não deixa de ser o público que se identifica com o grupo social preocupado
com a saúde, beleza e o corpo.
Mais além vai Charaudeau (2006) ao analisar o discurso propagandista:
“Discurso informativo e discurso propagandista têm em comum o fato de serem
particularmente voltados para seu alvo” e continua afirmando que é importante
pensar no imaginário do leitor para se produzir o discurso. Adiante na mesma obra,
Charaudeau (2006) afirma: “O necessário reconhecimento recíproco das restrições
da situação pelos parceiros da troca linguageira nos leva a dizer que estes estão
ligados por uma espécie de acordo prévio sobre os dados desse quadro(...)” a que
ele chama de “contrato de comunicação”.
Então há uma exploração por parte da publicidade quando da confecção das
suas peças do ethos, do estreito conhecimento do auditório, do contrato entre
enunciador e interlocutor, há ainda a fiança que transmite um tipo de discurso que é
autorizado, tem autoridade, não só pelo papel ou importância do fiador ao enunciar,
quanto da própria característica dos produtos e de quem os produz, podendo ser
chamado de retórica dos competentes.
74
O discurso autorizado camufla-se, muitas vezes, em discurso competente porque é natural em nossa sociedade premiar aqueles que ganham evidência profissional, intelectual, esportiva, política etc. (FERREIRA, 2010, p.95).
A publicidade será analisada como o plano de fundo da comunicação social
que fornecerá o corpus de análise do trabalho, assim é de bom tom que se entenda,
mesmo que sucintamente sobre a publicidade na contemporaneidade.
3.1 – A Publicidade na contemporaneidade.
Campo da comunicação social, a publicidade, é tida como a arte da
persuasão, razão pela qual se aproxima demasiadamente da retórica. Essa
persuasão se faz pelo discurso especializado que se encerra em todas as peças
publicitárias. Essa persuasão está, em boa medida, ligada à sedução que o discurso
publicitário carrega, no afã de conquistar a atenção dos consumidores, essa
sedução é um importante elo com a contemporaneidade.
Por ser assim uma ferramenta de comunicação e de persuasão de
consumidores, a publicidade é parte importante do processo de promoção o qual é
tão difundido como um dos quatro pilares principais do mix de marketing, disciplina
esta especializada no processo de criação e venda de produtos.
Nesse contexto o importante é compreender que nos tempos
contemporâneos a publicidade não é uma ferramenta de comunicação que domina,
mas que encanta, os indivíduos escolhem se participam, se aceitam, ou não, se
aderem ou não ao conteúdo e aos produtos divulgados, se vão ou não adquiri-los
por filiarem-se ao que veem nas peças de propaganda.
Vivemos uma busca de estilos que devem exprimir, não a posição social, mas o gosto pessoal e a idade de cada um. Esta tornou-se mais importante do que a expressão de uma identidade socioeconômica. Em tudo isso, reaparece sempre o mesmo elemento: a suposição de uma influência nefasta da mídia sobre os indivíduos. Ora, os grupos de filiação são mais importantes e filtram todas as mensagens (LIPOVETSKY, 2000, p.8).
Ao fazer parte desses tempos contemporâneos, os publicitários passam a
trabalhar as mensagens publicitárias segundo essas características dos
consumidores. Assim buscam entender qual o contexto em que está inserido seu
público alvo, para que se faça uma ligação entre este e a mensagem publicitária. É
75
trazer essas experiências do cotidiano da contemporaneidade para a mensagem
publicitária, Featherstone (1995, p. 33) afiança que “a publicidade é especialmente
capaz de explorar essas possibilidades, fixando imagens de romance, exotismo,
desejo, beleza, realização, comunalidade, progresso científico e a vida boa dos bens
de consumo (...)” com o que nos identificamos.
Essa ligação se fará justamente pelo uso do encantamento, que se dará de
diferentes formas, lembrando que estar encantado é como se colocar numa posição
em que se admira e se deseja, não se questiona, mas se associa, é a busca da
sedução do receptor da mensagem publicitária. Lipovetsky (1989, p. 188) trata o
processo como “apoteose da sedução (...), a publicidade criativa solta-se, dá
prioridade ao imaginário (...), a sedução está livre para expandir-se por si mesma
(...)” nas propagandas com vistas a persuasão.
Nesse mesmo sentido podemos afirmar que a publicidade tem o poder de
“influenciar os consumidores (...), porém, (...) não é capaz de criar novas
necessidades, mas apenas de retardar ou acelerar as tendências existentes”
(BROWN apud VESTERGAARD, 2000, p. 9), vai fomentar um desejo latente, não
criar novos.
O imagem que se quer projetar dos produtos passa a se construir não
somente pelos textos, mas especialmente pelas imagens, pois é uma condição
imperativa nos tempos da contemporaneidade, pela velocidade com que se vive, as
imagens são capazes de transmitir mais em menos tempo, ou ao menos de
conseguir a atenção do receptor mais rapidamente para a mensagem publicitária, e,
ai sim, confrontar o consumidor com o texto.
Como toda mensagem publicitária é persuasiva, ela tem em si mesma uma
carga de argumentação que remete à lógica retórica, que vai buscar esse processo
de encantamento, e como acabamos de salientar o processo é feito pelo texto, pelas
imagens e por todos os elementos, textuais ou não, presentes nas peças
publicitárias, além disso a intertextualidade e o não-dito fazem parte desse processo,
não se pode mais dissociar a propaganda do contexto histórico e cultural em que se
situa, indo ainda mais longe, das especificidades contextualizadas de cada
agrupamento social com o qual se buscará estabelecer um diálogo.
Essa argumentação, para ser contextualizada, é preparada na forma da
construção de imagens do cotidiano, ou dos grupos de pertencimento que os
produtores querem atingir, devendo refletir personagens que também se identificam
76
com os agrupamentos envolvidos no processo de sedução, como afirma
Vestergaard (2000, p.9) “é de esperar que a propaganda reflita muito de perto as
tendências do momento e os sistemas de valores da sociedade”, assim não só a
forma de construção, mas a linguagem, como um todo, é “caracterizada por
participar do contexto social, apropria-se de elementos culturais e traduz a realidade
conforme esses padrões” (GONÇALVES, 2006, p.27).
Os indivíduos ao serem impactados pela mensagem publicitária se
encontram dentro do que veem e se identificam, assim acabam por ligar o produto
ao seu mundo e a sua realidade, causando o encantamento e estabelecendo um
processo que possibilite a persuasão. Esse processo, no entanto, não é feito
somente na direção emissor receptor, uma vez que o consumidor apenas aceitou o
processo por já ter se associado a determinado grupo e assim tem uma necessidade
latente a ser satisfeita, além disso, ele tem o poder de não ver a mensagem,
simplesmente mudando de canal, pulando a página, trocando a emissora em que a
peça estiver sendo veiculada ou simplesmente rejeitando a mensagem, os
publicitários cientes disso devem buscar a melhor estratégia argumentativa no afã
de atingir os seus objetivos mercadológicos.
Nenhum anúncio publicitário, por mais sedutor que seja, convencerá os consumidores pós-modernos a abdicarem da liberdade de escolha que arduamente conquistaram. Aos demais, resta encontrar criatividade para fazer valer seus argumentos no concorrido mercado das ideias (LIPOVEZKY, 2000, p. 13).
Assim a publicidade nesses tempos da contemporaneidade tem um papel
muito mais amplo e uma linguagem muito diferente da que se usava no seu início
em que “o apelo publicitário permanecia sujeito às coações do marketing, era
preciso curvar-se à racionalidade argumentativa, justificar promessas de base (...) a
sedução devia conciliar-se com o real da mercadoria, expor seus méritos e a
excelência dos produtos” (LIPOVETSKY, 1989, p. 188).
A argumentação lógica e racional em torno do produto e suas características
e qualidades deixa de ser o foco, mas não desaparece totalmente, o qual se
transfere para o que o produto pode propiciar enquanto objeto de criação do
imaginário e de pertencimento de um determinado grupo social. As mensagens
passaram a mostrar não só o produto, mas o contexto social e personagens que se
77
identificam com o público, para que o mesmo possa se filiar e buscar o produto,
sendo então, assim, persuadido a adquiri-lo.
Além dessa faceta a publicidade, nos tempos contemporâneos, se ocupa
também de forjar o próprio consumidor, além de tudo o que acabamos de discutir.
Esse processo se dá pela percepção de como o consumidor se sente e age diante
das coisas e desses novos tempos, tão fluidos, onde o ato de consumir passa a ter
uma importância sem precedentes e a insatisfação e a impermanência geram um
processo de sobreposição de desejos, por outros ligados às constantes novidades
divulgadas pela propaganda, isso causa no consumidor um processo de eterna
insatisfação, ele ficará inquieto em uma eterna busca pela felicidade. Essa felicidade
só será alcançada se as necessidades forem satisfeitas, mas as necessidades não
se satisfazem porque o processo de desejo vai sempre ser novamente alimentado. É
um novo paradigma de publicidade que não mostra só o produto, mas introduz no
imaginário do consumidor a necessidade de ter para ser, ou para pertencer, e como
dissemos anteriormente, trazer para o processo comunicacional o indivíduo, pela
associação, pela adesão e pela identificação. Isso se faz com a demonstração de
que a solução para os conflitos internos do sujeito na contemporaneidade, com o
individualismo exacerbado, o hedonismo e o narcisismo idem, está no consumo dos
produtos que salvarão e trarão o complemento para sua solidão, que foi causada
pelo modo de vida contemporâneo e segregador, que afasta as pessoas do convívio
social e as remete para uma substituição disso tudo por novas sensações e formas
de satisfazer a si.
Em uma época mais simples, a publicidade meramente chamava a atenção para o produto e exaltava suas vantagens. Hoje em dia, ela procria um produto próprio: o consumidor, perpetuamente insatisfeito, intranquilo, ansioso e entediado. A publicidade serve não tanto para anunciar produtos, mas para promover o consumo como um modo de vida. Ela “educa” as massas para ter um apetite inesgotável não só por bens, mas por novas experiências e satisfação pessoal. Ela defende o consumo como a resposta aos antigos dissabores da solidão, da doença, da fadiga, da insatisfação sexual; ao mesmo tempo, cria novas formas de descontentamentos peculiares à era moderna. Ela joga sedutoramente com o mal-estar da civilização industrial (LASH apud DE SANTI, 2005, p. 183).
É um novo momento e um novo formato publicitário que se enxerga na
atualidade, ela muda o foco do produto para o consumidor, buscando formas de
fazer com que este se encontre e se situe dentro do processo de comunicação,
muito mais pela identificação com a peça que observa e pela sensação de que
78
solucionará suas vontades com o consumo, daquilo que é consumido pelo indivíduo
que se apresenta na propaganda, ou ainda, em outra visão, faz com que esse
indivíduo, ciente de que está com um vazio, ao ver a publicidade, encontre no
consumo proposto um lugar de contentamento e de satisfação possíveis para seus
dilemas internos.
Estamos diante do encontro entre a publicidade e sua capacidade
persuasiva e a incessante necessidade de escoação da produção, que parece não
ter fim. É um mundo em que a publicidade propaga a solução dos conflitos com o
consumo, mesmo que o consumo não seja possível para todos, ao menos é uma
possibilidade de solução dessas angústias contemporâneas.
3.2 – A análise de discurso na publicidade.
Não podemos negar que Saussure tem grande importância, nem sua
contribuição, muito menos o fato de ser considerado o iniciador do estruturalismo.
Esse primeiro período dos estudos da análise discursiva se concentrava tão
simplesmente no texto, na estrutura da fala, desprezando todo o conjunto externo,
contextualizante que passou a fazer parte dos estudos da análise do discurso, além
dos franceses, especialmente, pela contribuição de Bakhtin ao introduzir o conceito
de enunciação, onde os fatores externos ao texto, à língua, passam a ser
considerados, aliados a participação do “outro”, ou seja, do interlocutor, no processo
comunicativo com o objetivo de aprofundar a análise do discurso.
É nesse contexto que surge o pós-estruturalismo que passa a considerar o
social como parte integrante do processo de estudo linguajeiro, indo além da língua
e sua estrutura, passando a estudar o discurso como um fenômeno mais amplo e
complexo com uma cenografia própria, que se importa com o lado “externo” do texto,
o que, segundo Orlandi (1986, p.60), são as “chamadas condições de produção do
discurso: o falante, o ouvinte, o contexto da comunicação e o contexto histórico-
social (ideológico). Essas condições estão representadas por formações
imaginárias(...)”.
A publicidade como um processo comunicacional, pode ser estudada por
meio dos estudos da análise do discurso, vez que pode ser considerada, como
afirma Gonçalves (2006, p. 15), “um tipo específico de linguagem, pelo qual o
produtor representa o universo sob uma determinada ótica, fazendo interagir
79
diferentes signos a fim de seduzir o interlocutor de uma realidade construída” e por
assim dizer devemos observar muito mais que somente o texto, mas sim todas as
formas de expressão discursivas contidas na mensagem, incluindo aquelas externas
a ela, o contexto, e os sentidos provocados pelo texto suas condições de produção e
de recepção (GONÇALVES, 2006, p. 16).
É o ponto de partida nos estudos da análise discursiva da publicidade, de
sua intencionalidade, aquilo a que ela se propõe, com seu texto, suas imagens e o
contexto em que se situa, ou seja, a tentativa de persuadir por meio da mensagem.
É a escolha das palavras, das imagens, segundo o momento histórico,
cultural e social, que representa o mundo que se quer projetar pela publicidade, mas
esta não pode estar descolada da realidade, caso contrário não terá identificação
por parte dos receptores, que não se reconhecerão, nesse mundo imaginário
projetado pela propaganda, dessa forma a comunicação não surtirá os efeitos
esperados. Nesse processo a linguagem utilizada pela publicidade tem papel
importantíssimo.
A linguagem publicitária, caracterizada por participar do contexto social, apropria-se de elementos culturais e traduz a realidade conforme esses padrões, por isso, em épocas, sociedades e até em grupos diferentes da mesma sociedade, a publicidade é elaborada com uma relação específica entre os signos que a compõem, revelando ideologias pelo envolvimento de fatores psicosocio-econômicos (GONÇALVES, 2006, p. 27).
3.2.1 – Pós-estruturalismo e retórica
É com essa ruptura entre a análise apenas linguística do texto e a
extrapolação para o cenário, o contexto social, o momento histórico, a participação
do interlocutor, “o outro” no texto, que surge o pós-estruturalismo, vertente de
estudos europeia que trata do discurso e não mais da língua simplesmente.
Esse entorno, em que as mensagens são produzidas, passa a pertencer ao
corpus de estudo dos textos, o que vai além do estudo da língua, observando o todo
do discurso, incluindo nesse campo o “não-dito” como sendo importante para
compreensão dos enunciados.
Brandão (2004, p.16-17) esclarece que a análise de discurso estende o seu
campo de estudo para outras áreas do conhecimento, com isso somam-se aos
estudos puramente estruturais do texto, da língua, aspectos ligados ao social ao ser
80
humano participante do processo, dando espaço a várias das ciências humanas
interagir no processo de análise do discurso como: a sociologia, a filosofia, história,
psicologia. Não há como dissociar o sujeito e toda a sua subjetividade, apoiada no
contexto e na historicidade, na construção do seu capital social (personalidade) da
sua produção, da sua fala, muito menos da contribuição que “o outro” faz nesse
processo, Bakhtin leva essa preocupação para os estudos da análise de discurso, o
que abre as portas para a possibilidade de analisar os discursos de pontos de vista
como o da filosofia e da retórica. O próprio ser humano não só é conhecido pelos
textos como também se constrói neles ou por meio deles, como propõe Barros
(2001, p.23), em estudo sobre a obra de Bakhtin.
Outro nome se junta ao pós-estruturalismo francês, Michel Pêcheux, com
importantes contribuições acerca da enunciação e das condições de produção do
texto, em contrapartida aos estudos puramente estruturalistas, dizendo:
Colocando que ‘todo fato já é uma interpretação’ (referência antipositivista a Nietzsche), as abordagens estruturalistas tomavam o partido de descrever os arranjos textuais discursivos na sua intrincação material e, paradoxalmente, colocavam assim em suspenso a produção de interpretações (de representações de conteúdos, Vorstellung) em proveito de uma pura descrição (Darstellung) desses arranjos. As abordagens estruturalistas manifestavam assim sua recusa de se constituir em ‘ciência régia’ da estrutura do real. No entanto, veremos daqui a pouco como elas puderam ceder a este fantasma e acabar por aparentar uma nova ‘ciênica régia’(...) (PÊCHEUX, 2002, p.44).
Assim pregando a crítica do ponto de vista ideológico, acrescenta que o
discurso não deve ser visto apenas como um estudo da estrutura e sim como um
todo muito maior, marcando de modo definitivo o início do pós-estruturalismo
francês.
Essa mudança na forma de leitura e estudo na análise de discurso pregada
por Pêcheux pode ser observada em:
Encarada seriamente (isto é, de outro modo que apenas uma simples ‘troca cultural’) essa aproximação engaja concretamente maneiras de trabalhar sobre as materialidades discursivas, implicadas em rituais ideológicos, nos discursos filosóficos, em enunciados políticos, nas formas culturais e estéticas, através de suas relações com o cotidiano, com o ordinário do sentido (PÊCHEUX, 2002, p.49).
Nesse sentido o pós-estruturalismo acaba por vislumbrar não só a estrutura,
mas as condições de produção, acrescentando ao estudo a participação efetiva, do
81
ponto de vista de várias ciências humanas, não só do enunciador, mas também do
interlocutor e do contexto social e histórico, com a possibilidade de acrescentar
ainda a experiência e o capital social dos indivíduos, o cenário, o gestual e todo o
conjunto de “coisas não ditas” na enunciação.
Quanto às condições de produção Pêcheux (2002, p.44) fez uma grande
contribuição ao tentar definir como isso se processa e a “vantagem de colocar em
cena os protagonistas do discurso e o seu ‘referente’ permite compreender as
condições (históricas) da produção de um discurso” os quais por si só são capazes
de representar não só a si mesmos mas também o local, o grupo a que pertencem, a
classe social, etc.
Muitos outros autores importantes se filiam à escola, com estudos
importantes para o pós-estruturalismo incluindo-se ai nomes como Maingueneau,
Barthes e Charaudeau, todos com estudos que aliam e se correspondem com
aspectos ligados à retórica, fazem um diálogo com ela e sua argumentação, com o
apoio da filosofia, à análise do discurso. Chamam, inclusive, pelo caminho da nova
retórica, com a aplicação de conceitos que permitem observar a argumentação
retórica e seus elementos persuasivos, além dos três tipos clássicos de discurso
retórico: laudatório, político e jurídico.
Maingueneau (2005, p. 69) passa a estudar o “ethos” discursivo buscando
esses fundamentos na tradição retórica clássica além da referência clara sobre a
adesão dos sujeitos (ou espíritos) ao enunciado, do discurso autorizado e do fiador,
o que em certa medida se aproxima do que Bauman chamou de especializado e já
citamos no capítulo primeiro. Essa figura é importante no processo de adesão e de
identificação do auditório ou da recepção ao discurso, pois ela irá transferir para a
mensagem a credibilidade que sua imagem ou a imagem que o auditório faz dela.
Essa figura que se apresenta no discurso, a este possibilita se enquadrar em seu
mundo, com o qual o auditório se identificará e promoverá a adesão ao contrato
comunicacional.
Barthes (1988, p.97) trabalha com a busca da objetividade por meio da
argumentação retórica ao analisar no discurso a “doxa” bem como a proposição
aristotélica de que há dois tipos de provas para a argumentação, ligados ao poder
(discurso autoritário) que chama de: encrático e acrático.
Charaudeau (2006, p. 104-105) trabalha o contrato de comunicação onde se
observa uma ligação com o conceito retórico de auditório e adesão das almas ao
82
discurso, a emoção e o sentimento do discurso (pathos) são fundamentais nesse
processo.
A mesma proposta tem o autor polonês Chaïm Perelman, quando no
desenvolvimento dos seus estudos como filósofo do direito acaba por enveredar no
estudo da retórica, identificando-a como uma estratégia argumentativa possível de
ser utilizada em quaisquer tipos de enunciação em que esteja presente a persuasão,
dando a esse estudo o nome de Nova Retórica.
3.2.2 – Nova retórica
A persuasão está para a publicidade, assim como a argumentação e o
convencimento está para a retórica. A essa possibilidade de utilizar ferramentas de
persuasão, mesmo que sem a possibilidade de provar, mas apenas pela
argumentação sobre o verossímil e “técnicas discursivas que permitam provocar ou
aumentar a adesão dos espíritos às teses que se lhes apresentam ao assentimento.”
(PERELMAN, 2005, p. 4) deu-se no nome de nova retórica.
Os estudos de Perelman se assentam na dialética aristotélica e sobre a
capacidade de raciocinar em torno de conceitos e preceitos geralmente aceitos, os
quais são usados para argumentar no sentido melhor de persuadir e de convencer.
É bom ressaltar que entre convencer e persuadir há uma distinção que envolve a
razão ou a exclusão dela pela emoção, respectivamente. Enquanto na persuasão a
emoção do outro (interlocutor) acaba por conduzir o fio discursivo do enunciador
(orador) no convencimento é a razão e a capacidade de demonstrar de forma
racional que traçam o roteiro do enunciado.
A esses preceitos geralmente aceitos pela maioria, ou por grupos sociais,
nomeia-se de doxa, como muito bem definiu Barthes (1988, p.97) “doxa (opinião
corrente, geral, ‘aprovável’, mas não ‘verdadeira’, ‘científica’)” completando que
qualquer discurso contra a doxa é paradoxal.
Esse dilema entre doxa e paradoxa é base da dialética aristotélica, e do
discurso retórico, no qual, como na publicidade, busca-se a adesão de um
determinado auditório, pela persuasão, diante de uma determinada questão
controversa para suas causas (FERREIRA, 2010, p. 15).
Assim os estudos de Perelman acabam por resgatar nos conceitos latinos e
gregos clássicos, que foram esquecidos por muito tempo pelos lógicos e filósofos
83
modernos, o que define a proposta de chamar de “Nova Retórica” seu estudo e o de
outros autores que se seguem ao trabalho proposto.
Ao se referir à retórica o tratamento é de questões verossímeis, de
conjecturas, próprios do raciocínio dialético, diferente das questões analíticas nas
quais não há necessidade de adesão, pois é possível de se provar a argumentação.
Se não há certeza, há conflito e onde este estiver presente, opiniões divergentes e
contraditórias, abrindo espaço para a argumentação retórica.
A adesão é o pressuposto básico da antiga retórica, na medida em que
prescinde da necessidade de haver um auditório para que haja uma discussão ou
que se desenvolva um tipo qualquer de argumentação. No mesmo sentido já
mencionamos o contrato comunicacional, que também considera o interlocutor, no
processo comunicacional, sem o qual não há sentido em haver um discurso e ainda
leva em conta o dispositivo que serve de suporte para a mensagem conforme
argumenta Charadeau (2006, p. 104) ao propor o contrato midiático.
Nos discursos o enunciador imprime sua marca, dá um tom ao mesmo, a
esse tom damos o nome de ‘ethos’ do discurso. Há alguns discursos que somente
pela qualificação de quem será o enunciador já temos uma boa pista do tipo de
argumentação que estará por vir, tamanha a força do ‘ethos’ deste, da sua marca.
Além dessa conceituação, sobre o tema, dentro da análise do discurso pós-
estruturalista, essa capacidade de pré-identificar o “tom” do discurso pelo simples
conhecimento prévio do enunciador foi chamada por Maingueneau (2005, p.70) de
ethos pré-discursivo, também chamado por outros analistas como ethos prévio,
enquanto aquele encontrado durante a enunciação, na fala, é o ethos discursivo,
este por sinal, não tem ligação direta com o enunciador, mas com o tom do discurso.
Para a nova retórica, ou simplesmente a retórica, considera-se apenas o ethos
retórico, aquele ligado a argumentação, ao discurso.
Enquanto acabamos de nos referir a um dos polos do processo
argumentativo, o enunciador, como sendo o ethos, ainda resta mencionar duas
outras partes importantes: o pathos, que nada mais é que o sentimento do auditório,
que deverá ser convencido ou persuadido (seriam os consumidores, seu sentimento,
ideologia, no caso da publicidade), e o logos que é o discurso em si, o conteúdo com
o qual se pretende a persuasão (seria a própria mensagem publicitária, para usar da
mesma analogia anterior), é a palavra ou a razão a tese que será desenvolvida e
defendida.
84
O pathos é o sentimento que move o auditório em razão do acordo, ele é
necessário para comover ou seduzir, segundo as crenças e paixões mútuas entre o
auditório e o orador, segundo Ferreira (2010, p. 17).
Àqueles a quem o discurso é proferido, o auditório, com seu pathos, o
enunciador pode atribuir funções, em relação ao que está sendo dito, essas
atribuições são três como assinala Ferreira (2010, p.22): juízes, assembleia ou
espectadores. Perelman (2005, p.53), da mesma forma, caracteriza de maneira
clássica os três tipos de discurso segundo o debate proferido: judiciário, político e
epidíctico, respectivamente com atribuições de juízes, assembleia ou expectadores.
No entanto na nova retórica, não há a pretensão de engessar o uso do estudo da
argumentação apenas a esses três modelos clássicos, mas sim se estendem a
outros desde que se apropriem da persuasão como uma forma de discurso. Assim
podemos incluir a publicidade, o cinema, a poesia, e qualquer outra manifestação
enunciativa como eivada de características retóricas em seu bojo. Isso não afasta,
de forma alguma, a nova retórica da essência dos processos retóricos clássicos,
apenas aproxima aquela das novas manifestações comunicacionais, dos novos
formatos de discurso, desde que estes pretendam a persuasão ou o convencimento,
de um auditório, de algo que não esteja assentado simplesmente no lógico e no
racional, bastando para tanto que haja verossimilhança, uma aparência de
verdadeiro na construção argumentativa.
O auditório ficará, então, com o poder de decidir, a respeito do que se
argumentou, aderindo ou não seu espírito ao que foi dito. Esse auditório pode ser de
três tipos (essa classificação é especialmente interessante para a publicidade)
sendo um deles universal, o outro particular e o terceiro o próprio sujeito.
O auditório particular é aquele em que a audiência é a formada no diálogo,
pelo interlocutor, esse auditório apresenta uma peculiaridade que é a de poder
influenciar no discurso.
O auditório universal é aquele formado por todos, pela universalidade de
indivíduos que podem ser atingidos por um discurso. Esses auditórios podem ser
homogêneos ou heterogêneos, do ponto de vista do conhecimento acerca do
discurso.
85
3.3 – A nova retórica
A nova retórica é a reencarnação, ou melhor, é o reaparecimento da retórica,
uma vez que essa não morreu, segundo Ferreira (2010, p.44), isso se deu na
Europa a partir de 1960. Seu objetivo principal deixou de ser a fabricação de textos e
passou a ser a análise destes, com a ampliação do espectro de atuação, conforme
já afirmamos, para além dos modelos clássicos, o que permite que a mesma seja
utilizada em qualquer campo do conhecimento humano para entender melhor o
discurso e as estruturas argumentativas. No caso específico do trabalho em
questão, o uso que se fará será o da análise do discurso publicitário e de sua
argumentação.
3.3.1 – Análise da argumentação publicitária
A publicidade, na medida em que é a arte de persuadir, só por isso é em
grande medida um sistema de argumentação retórica por excelência. O discurso
publicitário tem por objetivo primeiro a adesão do seu auditório para fazer com que o
mesmo acabe por entrar em comunhão com o orador. Essa comunhão se traduzirá
em última instância no consumo do produto ou serviço, ou mesmo de uma ideia. Por
meio dos instrumentos retóricos de persuasão isso é possível. Entretanto isso só
será possível se ocorrer, de fato, a adesão dos espíritos à mensagem publicitária, o
que de fato só acontecerá se houver um orador capaz de prender a atenção do
público alvo e a mensagem seja estruturada de forma a atingir um auditório
universal, o que vai ao encontro ao contrato de comunicação proposto por
Charaudeau. Esse contrato ou o estabelecimento de uma identidade entre o orador
e o auditório, é o mesmo que dizer que o auditório aderiu ao discurso. O publicitário
que é enunciador experiente, enquanto prepara a enunciação da mensagem, sabe
como se aproximar do público alvo e com este estabelecer o vínculo, baseado em
pesquisas realizadas, sua experiência pessoal e toda sorte de informações sobre o
auditório.
É importantíssimo, ainda, que o contexto retórico seja conhecido pelo
enunciador para que esse faça a inserção do discurso nesse contexto, de modo a se
identificar com a doxa, assim temos que um discurso não existe sozinho e isolado,
mas este se inter-relaciona com diversos outros discursos, e no caso, o discurso
86
dominante da doxa que se pretende atingir, trazendo para próximo de si a atenção
desta.
O orador, de posse de uma linguagem compreendida por seu auditório, só pode desenvolver sua argumentação conectando-a a teses admitidas por seus ouvintes (...) (PERELMAN, 1999, p.305).
Além desse expediente de se apropriar do discurso predominante, outra
estratégia é o uso de oradores cujo discurso seja autorizado, colocando-os na
posição de fiador, seja pela sua posição social, profissional ou outra qualquer que
lhe permita com o discurso compartilhar com o auditório um momento de
congraçamento capaz de persuadir.
Dentro do discurso várias ferramentas retóricas e figuras de linguagem vão
conduzir o auditório ao objetivo desejado de persuadi-lo. Esse momento se afigurará
como o fechamento do acordo entre orador e auditório.
3.3.2 – Persuasão retórica
Para que haja qualquer tipo de persuasão por meio da retórica é necessário
um esforço inicial, antes mesmo, do orador ao proferir o seu discurso. É o momento
em que o enunciador deve parar para pensar e exercitar o que será dito de forma a
estruturar o que será dito, como será dito, a quem será dito, onde será dito.
O que será dito pode também ser chamado de questão retórica, que é o
assunto que vai atrair a doxa, o auditório, quer seja por concordância ou por
discordar, mas deve causar o impacto suficiente para prender a atenção do público.
Essa questão retórica depois de levantada deverá ser respondida, salientando que
há a possibilidade de que sejam levantadas várias respostas a mesma. Caberá ao
enunciador que estiver estruturando o discurso trabalhá-lo de forma a buscar o
consenso, no caso da publicidade em específico, a favor do processo de persuasão
em curso. Essa questão deve levantar polêmicas, mas é função do orador: “confortar
o espírito do auditório para obter assentimento às teses que apresentar sobre o
assunto...” (FERREIRA, 2010, p.29).
Conhecer bem o auditório pode ser o caminho para o enunciador atingir
seus objetivos, no entanto isso por si só não é suficiente, é necessário ainda que se
conheça os formas que o auditório tem de se auto-defender e a força que o mesmo
possui. Mais uma vez o contexto retórico é importante para melhor entender o
87
auditório. Todo esse conjunto de ações deve levar para a consecução dos objetivos
discursivos, pois acabarão por remontar toda uma argumentação que produzirá
provas (mesmo que apenas verossímeis), desde que formuladas de forma a
convencer o auditório que a decisão certa a se tomar é a decisão que o enunciador
previamente estipulou para o discurso.
O contrário também é verdadeiro, se o discurso não for bem elaborado
poderá de alguma forma ser encarado pelo auditório como uma violência, o que na
verdade sempre é, pois pretende sempre, de uma forma ou de outra, causar uma
mudança de uma ordem inicial, quase num movimento de agressão, a menos que
esse recurso seja usado deliberadamente, com o intuito de causar uma mudança
repentina de padrão de comportamento ou de percepção sobre determinado
assunto, como, por exemplo, uma campanha publicitária educativa sobre o uso de
armas, drogas ou qualquer outra coisa que se queira proibir, como muito bem
pontua Perelman (2005, p. 61): “Pode-se, de fato, tentar obter um mesmo resultado
seja pelo recurso da violência, seja pelo discurso que visa à adesão dos espíritos. É
em função dessa alternativa que se concebe com mais clareza a oposição entre
liberdade espiritual e coação”.
3.3.3 – Auditório
O enunciador deve saber exatamente como é o seu auditório, para diante
dele se comportar e poder sustentar a sua tese, seu discurso. Em que pese toda a
preparação prévia do discurso, há que haver por parte do orador alguma qualidade,
capaz de assumir e de prender a atenção do auditório, essa qualidade pode ir desde
o modo de vestir e de comportar-se até o fato de ser uma figura pública de
reconhecida capacidade intelectual, artística ou outra capaz de sensibilizar seu
público.
O auditório pode não se encerrar naquele com o qual se fala diretamente,
mas pode, no intertexto, estar ligado a outros que porventura o discurso possa estar
atingido indiretamente, e nada impede que esse seja mesmo o objetivo específico do
discurso, ao se dirigir a determinado público, desejar na verdade atingir a outro
público. Perelman (2005, p.21) relata, sobre isso: “o deputado que, no Parlamento
inglês, deve dirigir-se ao presidente pode estar procurando convencer não só os que
o ouvem, mas ainda a opinião pública de seu país.”
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Há intrínseca relação entre o auditório e o público alvo na publicidade, na
medida em que ambos são uma construção do enunciador com base num processo
deliberado e racional de segmentação, por várias características sejam elas
demográficas, etnográficas, psicográficas ou outra forma qualquer de classificação
de audiência.
Perelman (2005, p. 23) defende que “O conhecimento daqueles que se
pretende conquistar é, pois, uma condição prévia de qualquer argumentação eficaz.”
Quanto à homogeneidade ou heterogeneidade do auditório, sendo a
segunda a mais comum das duas, o enunciador deve se precaver com argumentos
tais que sejam suficientes para atingir a todos, obtendo assim a aderência destes,
talvez com um discurso mais amplo e genérico, universal, mas em caso contrário
(colocações pontuais para vários públicos) fazê-lo sem que caia em contradição.
3.3.4 – Tipos de argumentação
A argumentação para Perelman se subdivide em três tipos fundamentais já
citados: a universal, o particular e o próprio sujeito.
Na argumentação perante um auditório universal, o enunciador deve buscar
a adesão do auditório com base no verossímil, não é baseado em experiência, essa
argumentação está baseada em uma unanimidade (doxa) que o enunciador imagina,
desconsiderando aqueles que não participam desse auditório (PERELMAN, 2005,
p.35).
Esse auditório universal é marcado pela heterogeneidade antes exposta, o
que pode resultar na falta de argumento diante de uma proposição desconhecida,
por parte de algum grupo ou indivíduo que não fora antecipadamente apreendido e
analisado. Pode ainda incorrer no aparecimento de colocações frontalmente contra a
sua linha argumentativa, destruindo assim o discurso, caso o enunciador não seja
capaz de se emoldurar na nova perspectiva proposta pelo auditório.
Esse é um auditório (universal) que parece, no final das contas, confundido
com os demais, na medida em que Perelman diz que os dois tipos a seguir são
válidos quando são universais.
O auditório particular é aquele formado por um único ouvinte, o interlocutor,
o que acaba transformando o discurso em diálogo, logo quebrando as regras de
adesão do auditório ao discurso do orador. Isso acontece, pois, a partir do momento
89
em que se instaurar o diálogo, o interlocutor irá influenciar o discurso, podendo
inclusive tomar para si o papel de orador, ou refutar todos os argumentos propostos
pelo orador. Assim contrariamente ao primeiro caso em que a persuasão gira em
torno do discurso do orador, nesse caso isso pode acontecer, mas pode acontecer o
contrário, ou ainda haver mais de uma resposta para a proposição, já que uma parte
ouve a outra, refuta ou concorda com seus argumentos durante o diálogo.
Por fim o discurso com o próprio sujeito é o discurso solitário, do enunciador
com suas próprias razões, quase um ato esquizofrênico, onde o sujeito está, antes
de deliberar com os outros, fazendo isso consigo mesmo, o que, por não haver um
auditório físico, contrariaria a própria retórica que prescinde de um auditório para ser
persuadido, no entanto há uma pessoa que está sendo convencida ou persuadida, o
próprio enunciador. Isso acontece quando, por exemplo, o enunciador está se
convencendo de alguma crença ou algo que precise formular um juízo de valores
próprios, para decidir ou mesmo para deliberar posteriormente com um auditório
particular ou outro universal.
3.3.5 – O acordo
O acordo com o auditório está assentado em premissas, que são
antecipadamente aceitas pelos ouvintes, elas servem para o enunciador introduzir o
assunto, o objeto, o que pode produzir os seguintes efeitos no auditório:
- aceitação
- recusa (pela falta de adesão ou por não aceitar um processo unilateral de
imposição ou pela condução tendenciosa do objeto)
Os objetos de acordo podem ser fatos e verdades ou presunções. Os fatos
são objetos que designam acordos precisos, limitados; as verdades encerram a
sistemas complexos que se relacionam a fatos, para Perelman (2005, p.77).
As presunções são admitidas pelos auditórios, estão intimamente ligadas
com o conceito já exposto de verossimilhança, onde para cada fato ou tipo de
comportamento há um que seja considerado o normal, o que pressupõe
determinada conclusão sobre o assunto.
Esses tipos, citados, são característicos de acordos com auditórios
universais. Com auditórios particulares temos outras formas, dentre as quais citamos
agora os valores, estes não são comuns a todos, mas a grupos particulares e são
90
usados pelo enunciador de forma a possibilitar que o auditório se motive a fazer as
escolhas pretendidas pelo enunciador.
Os valores podem ser categorizados entre abstratos e concretos. São
abstratos os valores como a justiça ou a verdade e concretos aqueles ligados a
entes como a igreja e a França, Perelman (2005, p.87).
Há ainda certas hierarquias que auxiliam na argumentação, no acordo,
conforme a ascendência de poder entre os entes, o divino sobre o terreno, por
exemplo. Além disso, pode ser algo que seja também quantificável, do ponto de
vista de valor ou tamanho ou peso, por exemplo.
Outra qualificação é a de lugar, há lugares de quantidade, de qualidade, e
outros. O primeiro destes classifica as coisas segundo um processo quantitativo
(maior, melhor, etc.). O segundo classifica as coisas do ponto de vista qualitativo, o
que é de difícil aferição, pois, passa pela subjetividade do auditório e do enunciador.
O terceiro grupo indica uma ordem de superioridade de uma coisa sobre a outra, o
anterior pelo posterior, alternadamente entre causa e princípio ou o fim e o objeto.
Com auditórios particulares temos outras classificações a respeito dos
acordos, as quais vão além do senso comum, sendo um senso específico de um
determinado grupo social menor que aquele considerado na universalidade do senso
comum.
3.3.6 – A argumentação
O processo argumentativo inicia-se antes mesmo da fase oratória
(discursiva), com a seleção dos argumentos que serão utilizados. O contexto retórico
em que o discurso vai se inserir é também um modificador dos efeitos produzidos
pelos argumentos, salientando da complexidade que esse momento apresenta,
aumentando a dificuldade do enunciador em preparar seu discurso. A aproximação
que se pretende com o início do discurso com os espíritos, de forma a buscar uma
ligação, adesão, do auditório ao orador, não pode ser analisada ou pensada
isoladamente, ela é parte constituinte de um todo contextualizado e contextualizante,
externo e interno ao discurso, deve se comprometer com o texto como um todo.
Não bastasse esse cuidado com a argumentação, não se pode deixar de
pensar que o auditório normalmente faz sua interpretação do conteúdo do discurso,
podendo em alguns casos, em virtude do caráter subjetivo da leitura feita do
91
discurso, completar algumas lacunas por ventura deixadas na argumentação, de
forma a melhorar o sentido para ele. Essa complementação por parte do auditório
pode causar um problema comunicativo no qual o objetivo primeiro do enunciador,
não é alcançado pelo seu enunciado, uma vez que o interlocutor usa suas próprias
razões para “fechar” o texto.
Perelman (2005, p.212) afiança que “o sentido e o alcance de um argumento
isolado não podem, senão raramente, ser compreendidos sem ambiguidade; a
análise de um elo da argumentação, fora do contexto e independente da situação
em que ele se insere, apresenta inegáveis perigos”, continua, mais adiante, no
mesmo sentido “para discernir um esquema argumentativo, somos obrigados a
interpretar as palavras do orador, a suprir os elos faltantes, o que nunca deixa de
apresentar riscos”.
Por essa forma de ver Perelman acrescenta à retórica clássica um fator
claramente apoiado em conceitos e observações de cunho socializante, de
comportamento social, na metodologia de análise do discurso (FERREIRA, 2010,
p.145).
Assim reforça essa lógica participativa com a presença do verossímil, do
razoável, que reforçam o acordo entre as duas partes (FERREIRA, 2010, p.145).
3.3.6.1 – Estrutura do real
São estruturas argumentativas que se fazem valer do real, na ligação entre
as coisas e os fatos, não se aproximam da lógica formal, mas da experiência que se
tem da própria vida exigem uma grande dose de explicação sobre as coisas. Como
quaisquer elementos estão ligados entre si no mundo real, fica muito fácil
estabelecer entre eles uma coligação para usar como argumento de persuasão.
Essa ligação entre os elementos pode ser dar de várias formas.
Entre essas formas estão as “ligações de sucessão” na qual os
acontecimentos se sucedem de forma ordenada, o que por si só favorece o
encadeamento de ideias e argumentos retóricos de forma a sensibilizar o auditório,
por meio de juízos de valor e de dependência entre os acontecimentos.
Dentre as ligações de sucessão encontramos o “argumento pragmático” o
qual, segundo Perelman (2005, p.303) “permite apreciar um ato ou um
acontecimento consoante suas consequências favoráveis ou desfavoráveis”. É um
92
importante modo de se atingir o juízo de valor sobre determinado assunto uma vez
que por intermédio dos efeitos se pode entender os meios ou acontecimentos.
Ainda que estejamos apreciando um fato ou acontecimento para estruturar
nosso discurso, podemos nos referir aos acontecimentos de forma a argumentar
sobre o “argumento do desperdício” no qual nos baseamos na premissa de que
uma vez iniciada determinada atividade, parar seria um prejuízo, um desperdício de
todo o tempo e recurso já empregado na ação até aquele momento.
Nessa mesma linha de raciocínio sobre o fim e os meios, de maneira mais
detalhada encontramos argumentações que se utilizam do “argumento de direção”,
essa estrutura discursiva procura a direção que cada etapa quer tomar, ou onde a
mesma deseja chegar com o enunciado, Perelman (2005, p.321) a esse respeito diz
“o argumento de direção implica, de um lado, a existência de uma série de etapas
direcionadas a certo objetivo, o mais das vezes temido, e, de outro, a dificuldade,
senão a impossibilidade, de deter-se, uma vez que se toma o caminho que se leva a
ele”.
Ultrapassar essa linha, atingir mais que o limite, dentro do discurso,
ultrapassar o temor, possibilitando ir mais longe é a estrutura utilizada no
“argumento da superação” no qual se coloca em primeiro plano, em evidência o
sucesso que se vai alcançar, usa os obstáculos como mais um motivo para
prosseguir e atingir o objetivo, “o que vale não é realizar certo objetivo, alcançar
certa etapa, mas continuar superar, transcender, no sentido indicado por dois ou
vários pontos de referência” (PERELMAN, 2005, p.328).
Há ainda outra forma de ligações dos argumentos, chamadas por Perelman
“ligações de coexistência” nas quais a temporalidade é irrelevante, diferentemente
das ligações de sucessão, o que realmente interessa é a ligação de dois argumentos
de ordem diferente, de realidades diferenciadas, nesse ponto se introduz a questão
e o conceito de pessoa, pois em várias estruturas se atribuem às pessoas condições
e qualidades, ou seja, uma coexistência da pessoa e de características percebidas
pelo exterior. Há uma pressuposição de que atos são atribuídos a pessoas,
qualificando-as.
A essa estrutura qualificadora nomeia-se de “argumento de autoridade”,
segundo o qual a pessoa tem autoridade a partir de suas características,
profissionais, intelectuais, etc., apoiados no prestígio atingido pela mesma a respeito
de uma dessas características. Ferreira (2010, p.166) com muita propriedade afirma
93
que “o prestígio, o caráter, o ethos da pessoa é fator crucial para a validação das
intenções. O discurso dos competentes sustentam esse argumento”. Isso em muito
relembra o conceito de ethos pré-discursivo de Maingueneau, ou ainda os conceitos
do discurso encrático e acrático proposto por Barthes.
Essa técnica argumentativa se desdobra em outras menores, que encaram a
ruptura e o refreamento opostas à interação entre o ato e a pessoa, usada quando
há divergência entre o que se pensa da pessoa e o que se vê do ato. Nessas
ocasiões o ato discursivo toma proporções maiores, merecendo mais atenção, como
um ato do enunciador, primeiro porque ele é uma pessoa, segundo pela sua
importância no processo enunciativo. O indivíduo não pode ser visto isoladamente,
mas como um membro de um grupo, ao qual se filia por uma série de vínculos,
interações e argumentações que geram uma ligação entre ambos.
Assim é que podemos repetir aqui o que dissemos da relação entre a pessoa e seus atos: os indivíduos influem sobre a imagem que temos dos grupos aos quais pertencem e, inversamente, o que achamos do grupo nos predispõe a certa imagem daqueles que dele fazem parte; se uma academia dá lustre aos seus membros, cada um deles contribui para apresentar e para ilustrar a academia (PERELMAN, 2005, p.366).
É importante acrescentar a ligação entre o ato e a sua essência, pois os atos
se inter-relacionam com o meio, e por este é influenciado, pela época em que
ocorre, o estilo, o regime ou a estrutura vigente (PERELMAN, 2005, p.372).
Ainda sobre as ligações de coexistência há uma importante ligação, na
argumentação entre os símbolos e os simbolizados, é tão estreita que muitas vezes
o símbolo por si só já é capaz de expressar todo o significado e a personalidade do
ente simbolizado, gerando essa relação de coexistência entre ambos, o contrário
também se apresenta, uma pessoa pode imediatamente remeter a um símbolo ou a
representação de um grupo.
Para comparações, há ligações específicas de coexistência e de sucessão,
ligados ao “argumento de hierarquia dupla” onde a estrutura argumentativa recorre
a uma hierarquia existente para discutir outra, dentro do discurso, Ferreira (2010,
p.166) exemplifica: “Fulano é mais rico do que Beltrano”, para caracterizar um tipo
de comparação proporcional. Esse argumento nem sempre é expresso tacitamente,
podendo vir implícito no discurso e pode ser diretamente ou inversamente
proporcional. Essa hierarquia dupla pode ser quantitativa ou qualitativa, o que se
94
exprime em hierarquia de grau (intensidade por exemplo) ou de ordem (primeiro,
segundo...) respectivamente.
A estrutura do real se fundamenta em ligações, essas ligações se assentam
em argumentações específicas, quando falamos de casos particulares. Essa
fundamentação pode ser dividida em três categorias: o exemplo, a ilustração e o
modelo (ou antimodelo).
São aquelas que lidam com as argumentações fundamentadas pelo recurso ao particular, em três maneiras distintas, a saber: - como exemplo: permite uma generalização, tem como função fundamentar uma regra; - como ilustração: embasa uma regularidade já estabelecida, reforçando-a; - como modelo (ou antimodelo): incentiva ou evita a imitação, inspirada em um caso particular (FERREIRA, 2010, p.167).
Além dessas há ainda nessa subcategorização a analogia onde podemos
comparar assuntos diferentes, mas com a mesma estrutura, o direito usa quando
não regra pra determinado assunto a análise de suas características para decidir
com base em uma norma que julgue algo com estrutura semelhante, Perelman
(2005, p.423) diz que “a analogia faz parte de uma série, identidade-semelhança-
analogia, da qual constitui o elemento menos significativo. Seu único valor seria
possibilitar a formulação de uma hipótese que seria verificada por indução”.
Na analogia encontramos elementos que são definidos por Ferreira (2010, p.
167) como: “um, mais conhecido, denominado foro, serve de apoio para o raciocínio
que será estabelecido. Outro, menos conhecido, denominado tema, conduz à
conclusão”.
Dentro da analogia uma figura de linguagem se destaca como estrutura
discursiva, a metáfora, em que temos a mudança de sentido de um termo ou
expressão pela comparação, redundando em uma analogia, Perelman (2005, p. 453)
assim descreve o processo: “o vínculo entre metáfora e analogia significa, aliás,
retomar uma tradição antiga, a dos filósofos e, em especial, dos lógicos, de
Aristóteles a John Stuart Mill”.
3.3.6.2 – Quase-lógica
Essa estrutura de argumentação se fundamenta na aproximação com a
lógica formal, muito embora não haja lógica de fato, usa a mesma estrutura. Como
95
não há lógica realmente, essa maneira de argumentar permite que o auditório
contra-argumente, na intenção de minar ou mesmo de contestar a argumentação, o
auditório assume uma postura, quando isso acontece, de adversário.
Perelman (2005, p.220) afirma que “pode parecer que nossa técnica de
análise dá uma primazia ao raciocínio formal sobre a argumentação (...) mas dada a
existência admitida de demonstrações formais (...) os argumentos quase-lógicos
tiram sua força persuasiva de sua aproximação desses modos de raciocínio
incontestados”.
Então pela estrutura, mas não pelo conteúdo, essa estratégia argumentativa
é chamada de “quase-lógica”, o objetivo é procurar a demonstração por meio da
argumentação.
Essa argumentação se dá por várias estruturas, entre as quais temos a
contradição e a incompatibilidade, o uso da contradição leva o auditório a crer que o
orador não quer dizer alguma barbaridade, fazendo com que o mesmo se questione
a respeito do assunto, buscando uma forma de se compatibilizar e não ficar de fora
do entendimento.
É precisamente nesse momento que entra em ação a figura retórica do
“ridículo”. A estrutura toda se baseia em uma argumentação inicial a qual o
auditório se filia, num segundo momento o enunciador cria uma incompatibilidade,
por meio de uma contradição, e essa situação acaba por fazer a exposição de uma
situação ridícula, que é reconhecida pelo ouvinte que então se convence da
argumentação inicial, para não se identificar com o ridículo apresentado, Perelman
(2005, p. 233) afirma que “fica de imediato ridículo aquele que peca contra a lógica
ou se engana no enunciado dos fatos, contanto que não o considerem um alienado
ou um ser que nenhum ato pode desqualificar, por gozar do menor crédito”, no
mesmo sentido Ferreira (2010, p.153) “o resultado é visível: ao entrar em conflito
com uma opinião já aceita, sem justificativa, uma contradição torna-se ridícula”.
Ambos os autores afirmam de forma acertada que é o uso da ironia a maior
ferramenta para obter o sucesso com a figura do ridículo, que acaba por ser muito
difícil de ser refutado, pela falta de coragem no ouvinte, pois estará se
contemporizando com o mesmo.
Outra técnica quase-lógica é a identidade e definição, uma estrutura bem
conhecida dessa técnica é a conceituação, a definição, que após ser apresentada é
96
acompanhada do discurso que tem adesão ao conceito e por isso com ele se
identifica, assim torna-se verdadeiro.
Para Perelman há quatro espécies de definições, que levam a identificação:
1) as definições normativas, que indicam a forma em que se quer que uma palavra seja utilizada. Tal norma pode resultar de um compromisso individual, de uma ordem destinada a outros, de uma carga que se crê que deveria ser seguida por todos; 2) as definições descritivas, que indicam qual o sentido conferido a uma palavra em certo meio, num certo momento; 3) as definições de condensação, que indicam elementos essenciais da definição descritiva; 4) as definições complexas, que combinam, de forma variável, elementos das três espécies precedentes (PERELMAN, 2005, p.239).
Uma boa forma de fazer uso dessas definições, segundo Ferreira (2010, p.
155) é que “o caráter argumentativo das definições se potencializa quando (...)
temos definições variadas de um mesmo termo e, por isso, o orador pode fazer
escolha por definir apenas as condições suficientes da aplicação de um termo (...)
em síntese (...) podem conter apenas o que interessa ao orador.”
Há ainda a “regra da justiça” segundo a qual os iguais são tratados com
igualdade e os desiguais com desigualdade, conceito emprestado do direito, que se
apropriou da filosofia, para demonstrar uma situação de equanimidade entre
elementos de um mesmo grupo, quer sejam pessoas ou coisas. Essa regra trabalha
com fatos do passado para a justificativa dos fatos da atualidade ou do futuro,
fundamentando-os.
O apelo a essa regra apresenta um aspecto de inegável racionalidade. Quando se demonstra a coerência de uma conduta, quase sempre se fará alusão ao respeito da regra de justiça. Esta supõe a identificação parcial dos seres, mediante sua inserção numa categoria, e a aplicação do tratamento previsto para os membros dessa categoria (PERELMAN, 2005, p.249).
Ainda nessa categoria encontramos os “argumentos de reciprocidade”, em
que há a verificação de simetria e de equivalência entre ações, não importando a
ordem em que ocorrem, são relações em que ambos ganham ou ambos perdem, na
mesma proporção. Nessa estratégia argumentativa caso haja assimetria, os
argumentos poderão ser refutados.
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Ferreira (2010, p.157) assenta que “a simetria facilita a identificação entre os
acontecimentos e entre seres porque enfatiza um determinado aspecto que parece
impor-se em função da própria simetria colocada em evidência.”
Ainda como argumentos quase-lógicos, temos os chamados “argumentos
de transitividade” na qual os discursos que servem para uma determinada
circunstância ou pessoa, servem para aqueles que com estes são ligados de alguma
forma, transitando assim de um para o outro, pela ligação que há entre eles, Ferreira
(2010, p.158) assim exemplifica: “os amigos do amigo merecem tratamento igual ao
que se dá ao próprio amigo, o orador demonstra que a amizade possui uma relação
transitiva”.
Mais uma estratégia discursiva é a “inclusão da parte no todo” na qual,
assim como no argumento de transitividade, há uma correlação entre as partes
envolvidas, na qual o que serve para o todo serve para a parte e vice-versa.
Perelman (2005, p.262) assim descreve essa relação: “os argumentos quase-lógicos
do primeiro grupo, que se limitam a confrontar o todo com uma de suas partes, não
atribuem nenhuma qualidade particular nem a certas partes, nem ao conjunto:
tratam-se como igual a cada uma de suas partes”.
Da mesma forma que se inclui a parte no todo, há a “divisão do todo em
suas partes”, os antigos já usavam essa ferramenta retórica, na medida em que
para provar que uma parte existe divide, fragmenta, o todo. Outra forma é negar a
existência de uma parte para provar a existência da outra, em detrimento do todo.
Após todas essas ferramentas e estratégias retóricas, não há como deixar
de observar uma técnica muito utilizada, “argumentação de comparação”, muito
simples de compreender, basta pensar na possibilidade de comparar objetos e
pessoas com o intuito de buscar argumentos para a persuasão do auditório,
Perelman (2005, p. 274) no demonstra com um exemplo clássico: “suas faces estão
vermelhas como maça”, no qual a comparação com a maça dá a exata medida do
quão vermelho se encontram as faces do interlocutor.
Uma das formas de comparação existente é o “argumento por sacrifício”
no qual se exalta que tipo de sacrifício se pode fazer para atingir determinada
situação, muito usada nos processos comerciais, mas não exclusivamente da área
econômica, qualquer relação de troca pode ser contemplada.
98
3.3.6.3 – Dissociação de argumentos
Contrariamente a tudo que foi dito até agora, sobre a busca da associação
entre ideias, coisas e pessoas no processo argumentativo, também é aceito e
utilizado o inverso. Perelman chamou de dissociação das noções, onde propõe a
ruptura, na argumentação, das ligações entre os termos utilizados ou em sua
estrutura.
Os argumentos por dissociação são aqueles que procuram solucionar uma incompatibilidade do discurso para restabelecer uma visão coerente da realidade. A dissociação resulta da depreciação do que era até então um valor aceito (FERREIRA, 2010, p.167).
A dissociação de argumentos trabalha com pares de ideias, conflitantes, que
possibilitem separar e observar essas duas metades, mas como um todo, gerando
uma verdade que pode ser trabalhada no futuro, utiliza a negação do conceito para
criar a verdade, Perelman cita um exemplo clássico:
Para compreender bem a técnica da dissociação das noções e apreciar melhor seus resultados, parece-nos útil examinar com maior atenção um caso privilegiado, aquele que consideramos o protótipo de toda dissociação nocional, por causa de seu uso generalizado e de sua primordial importância filosófica: trata-se da dissociação que dá origem ao par ‘aparência-realidade’ (PERELMAN, 2005, p.472).
Sobre a noção de pessoas, ou grupo, Ferreira faz uma divisão dos
procedimentos de dissociação, com vistas a estabelecer a forma de aplicação do
argumento.
Ad hominem: é o argumento que serve à opinião particular ou do grupo. Uma subdivisão do argumento ad hominem está no argumento ad personan, notadamente um ataque à pessoa do adversário para desqualificá-lo. Ad humanitatem: o que serve para toda a humanidade: todo o homem tem direito à liberdade. Petição de princípio: supor, no discurso, que o interlocutor já aderiu a uma tese que o orador justamente se esforça por fazê-lo admitir. É falacioso no caso da não adesão do auditório. É manobra usada por quem, muitas vezes, não tem como comprovar o que diz (FERREIRA, 2010, p.167-168).
Essa divisão proposta por Ferreira demonstra claramente a ruptura que se
pretende com a dissociação de ideias, noções e pessoas, no primeiro caso por meio
de um ataque ao adversário, da sua desqualificação em relação ao grupo a que
pertence; no segundo é um conceito genérico relativo a todos, mas que pode ser
quebrado para justificar uma ação, ao usar o exemplo de que todos têm direito a
99
liberdade, pode-se acrescentar que se há por parte de um indivíduo a ruptura com
os padrões de comportamentos ele deve ser privado da sua liberdade; finalmente no
terceiro grupo a dissociação é com o próprio processo persuasivo, ao estabelecer de
imediato que o auditório já aderiu ao discurso, mas de uma maneira forçada.
3.3.6.4 – Interação de argumentos
O processo discursivo não pode ser empreendido sem que haja uma
coerência de ideias e de argumentos, de forma a formar um encadeado de
informações e técnicas com a busca da persuasão. Isso só fará efeito se os
argumentos se interarem, se completarem de forma a buscar uma unidade
discursiva a qual se dará pela força que os argumentos apresentam na fala. É
importante, pois, assegurar que toda a argumentação tenha a força necessária para
persuadir e convencer o interlocutor a aderir ao discurso.
Entretanto o enunciador não pode perder de vista que os argumentos terão
maior ou menor força na medida em que os auditórios variam na sua concepção,
quer de maneira particular, quer de modo universal.
Para guiar-se em seu empenho argumentativo, o orador utiliza uma noção confusa, mas ao que parece indispensável: a força dos argumentos. Esta é certamente vinculada, de um lado, à intensidade de adesão do ouvinte às premissas, inclusive às ligações utilizadas, de outro, à relevância dos argumentos no debate em curso, Mas a intensidade de adesão e, também, a relevância estão a mercê de uma argumentação que viria combatê-las. Por isso a força de um argumento se manifesta tanto pela dificuldade que haveria para refutá-lo como por suas qualidades próprias (PERELMAN, 2005, p.524).
3.4 – Análise retórica
O processo de análise retórica pode ser dividido em fases para a melhor
compreensão ou para um resultado mais objetivo. Esse roteiro se assentará na obra
de Luiz Antonio Ferreira, que propõe este esquema, que pretendo usar para a
análise das peças publicitárias do presente trabalho, sem prejuízo de outras análises
e inferências que se façam necessárias.
Nesse caso devemos ter em mente que o discurso, não é por si só suficiente
para atingir os objetivos da persuasão e que o mesmo não está isolado do mundo,
100
ele se encontra num contexto retórico e histórico e ao mesmo tempo é
contextualizante, ele pode concordar ou discordar de outros discursos antecedentes
ou sucedâneos, “toda persuasão, exerça-se ela pela fala ou por escrito, supõe um
auditório, aqueles que se procura persuadir, e com isso se introduz na prova um
elemento social que nenhuma retórica pode desprezar” (PERELMAN, 1999, p.269).
O processo proposto pelo autor em primeira análise, fundamentalmente, visa
um diálogo com o texto (FERREIRA, 2010, p.51), os quais devem passar a
subjetividade do leitor, sem desconsiderá-la. Assim o mesmo texto pode ser
analisado por vários prismas.
Será nesse momento que se fará importante entender do discurso analisado,
o ethos, o pathos e o logos, assim teremos o “quem”, e o “como” sobre o texto.
3.4.1 – Contexto
Como acabamos de afirmar não há discurso isolado do mundo, assim é
necessário entender esse contexto histórico e porque não chamá-lo de contexto
retórico, em que se insere e se relaciona com o mundo e o auditório.
Um primeiro levantamento deve considerar qual a relação do texto com seus
antecessores e sucessores, com o auditório, com o próprio orador e com o próprio
discurso.
O objetivo não é dizer se o texto tem ou não razão, esse leitura retórica vai
buscar os elementos persuasivos dentro do discurso, suas formas e encadeamento
de ideias e argumentação.
3.4.2 – Invenção
A invenção é observada como o momento de analisar os gêneros
discursivos, com os quais o enunciador procurará buscar a adesão do auditório, é o
lugar da demonstração de controle do enunciador sobre a matéria, seu
conhecimento, sua autoridade, para assim assumir a confiança necessária dos
espíritos para que possa persuadi-los. É o início do discurso que buscará o acordo
com o auditório. O orador deve levar o auditório a construir o ethos segundo a sua
intencionalidade persuasiva. O processo persuasivo do discurso vai utilizar um vasto
estoque de argumentos, os quais devem, em primeiro plano, conduzir o auditório a
101
crer nas crenças e valores importantes para a adesão deste ao discurso, este é o
lugar retórico.
É importante compreender que apesar de usar vários temas e argumentos, o
discurso sempre versará sobre um tema central, uma questão maior (questão
retórica), e essa questão gerará outras questões que deverão ser respondidas no
processo persuasivo. Esse processo se dará em torno do logos que priorizará a
demonstração do que é verdadeiro, com base no conhecimento e na persuasão,
para o auditório pelo orador.
O processo de invenção se faz valer de um raciocínio que é desencadeado
pelo enunciador com o objetivo de levar o auditório à compreensão e adesão a seu
pensamento e com isso obter sua aprovação e concordância com o discurso.
O homem que vive em sociedade discute com seus semelhantes, tenta levá-los a compartilhar algumas opiniões, a realizar certas ações. É relativamente raro que recorra, para tanto, unicamente à coação. Em geral, procura persuadir ou convencer e, com esse intuito, raciocina – na acepção mais ampla deste termo -, administra provas (PERELMAN, 1999, p.219).
A Tradição antiga de retórica divide os raciocínios em:
- apodíticos: demonstrativos ou científicos, muito utilizados na publicidade, se
apoiam na verdade ou na construção de uma verdade (verossimilhança).
- dialéticos: raciocínios prováveis concordam com os princípios geralmente aceitos
pela maioria ou por todos, essencialmente argumentativo, busca persuadir com base
na opinião geral, logo não se baseiam na verdade, mas, também, na
verossimilhança.
- falaciosos: quando o fio condutor do raciocínio ou sua fundamentação são fracos, o
enunciador recorre à falácia, com o objetivo de conquistar a adesão do auditório,
mesmo sendo inconsistente. A falácia nada mais é do que um discurso elaborado
com a intenção de parecer convincente mesmo que não haja provas ou força,
utilizando então de argumentos ligados à emotividade e não a razão.
3.4.3 – Dispositio
É a estruturação do texto, a maneira pela qual se distribui a argumentação
no discurso, de maneira lógica, com o objetivo de construir um cenário capaz de
persuadir. Essa estrutura pode ser dividida em partes.
102
A primeira dela diz respeito à introdução do discurso para que se estabeleça
um elo entre o orador e o auditório, é o exórdio.
O segundo momento do discurso é a narração, que após obter a atenção do
auditório passa a descrever os fatos a este, mostra qual a tendência do enunciador
dentro do discurso.
A seguir vem a confirmação, trecho que procura provar os fatos, é este o
momento mais denso e de refutação dos ataques dos adversários, em que o
enunciador defende seus pontos de vista e procura comprovar suas afirmativas,
estabelecer a credibilidade em seus argumentos.
Por último, mas não menos importante, o enunciador fecha o discurso,
buscando a efetiva adesão dos espíritos, podendo recorrer à recapitulação, apelo ao
ético (ou ao patético) e a amplificação, é a peroração.
3.4.4 – Elocutio
A elocutio não é nada mais que a própria elocução, é o tratamento dado a
linguagem, a estrutura, diz respeito à forma e ao conteúdo do discurso. É essa
elocução que vai de encontro ao auditório, que serve de ponto de contato entre o
orador e o auditório. Uma grande virtude da elocutio é justamente a sua adaptação
ao conteúdo, sua adesão ao discurso em si, aproximando o auditório para a adesão
do mesmo à argumentação.
Com a análise da elocutio podemos saber muito sobre o discurso, por
exemplo, verificando em que pessoa está o texto, se em primeira (personalização do
discurso), com que linguagem (informal, causa um sentido mais descontraído) está
escrito, entre outras coisas, passando por uma análise até hermenêutica das
palavras, especialmente as repetições, com o objetivo de verificar o sentido que se
dá as mesmas no decorrer do discurso.
Dentro das formas de estruturar o estão, algumas são tradicionais (para os
clássicos), como as falácias em que o enunciador, apesar da fraca consistência dos
fatos, dá ao discurso autenticidade pelo encadeamento de ideias durante o discurso
por meio de argumentos que sustentem a fala. Nessa fase da análise é que
verificamos com maior atenção as técnicas argumentativas e a construção dos
argumentos com base na estrutura do real, quase lógica, a dissociação e a
interação de argumentos, com todos os seus modelos argumentativos. Esses
103
modelos argumentativos vão aparecer em estruturas maiores denominadas figuras
retóricas, as quais se subdividem em: figuras de presença, figuras de comunhão,
figuras de escolha e analogias. As figuras retóricas têm por objetivo maior ser
percebidas e assimiladas pelo auditório, mesmo que seja de forma implícita, para
que o enunciador seja capaz de atingir seu objetivo persuasivo.
As figuras de presença buscam fixar na mente do auditório o objeto
principal do discurso, criar uma consciência, mesmo que inconscientemente, nos
ouvintes; é muito utilizada na propaganda.
Diferentemente dessa construção inconsciente, as figuras de comunhão
têm o objetivo de fazer com que o auditório participe ativamente no processo, pelo
envolvimento do mesmo no discurso. Vai buscam pontos em comum entre o orador
e o ouvinte, para entre eles instalar um elo, um vínculo, podendo para tanto
relembrar passagens de sua trajetória, buscar argumentos emotivos e outros que
liguem o auditório ao discurso de forma participativa.
Com o objetivo de versar melhor sobre o tema, segundo seu objetivo no
discurso, o enunciador pode se fazer valer das figuras de escolha, nas quais
escolhem de maneira consciente as expressões e palavras que vai usar, para
causar um impacto no auditório, essas escolhas permitem alterar o sentido ou a
percepção do auditório pela simples substituição dos termos empregados no
discurso. Podem suavizar uma notícia ou uma característica de algo, como, por
exemplo, o uso de transpiração no lugar de suor em um discurso publicitário, para
evitar uma sensação desagradável no ouvinte.
As analogias já foram bem exploradas acima, no entanto,
complementarmente, como figura retórica seu objetivo é causar no auditório
sensações como a emoção e outras com o intuito de levar o auditório à adesão ao
discurso.
3.4.5 – Actio
Após todo o esforço para estruturar, preparar o discurso, os argumentos que
serão utilizados, não faz sentido não buscar o objetivo final da retórica que é a
persuasão, o que somente se processará mediante a enunciação de fato, a emissão
pelo orador do discurso, frente o auditório. É a ação discursiva, o momento de
interação do orador com o ouvinte, para que, finalmente, haja contato com a
104
argumentação previamente preparada. Esse momento transcende o texto, forma um
contexto, alia ao dito o não-dito, inclui o gestual e a cenografia com o objetivo único
de atrair e prender a atenção dos espíritos a discurso. Configura um momento em
que a estrutura básica da comunicação se instala, com o emissor (orador), o
receptor (auditório) e a mensagem (discurso com a argumentação, gestual), em um
objetivo único e específico de persuadir o ouvinte.
É o momento em que o locutor trava com o interlocutor uma batalha pela
atenção e pela adesão, com o objetivo de buscar a empatia do auditório, isso é feito
pela construção do ethos no discurso (ethos discursivo) para que haja confiança
entre auditório e orador. É o momento em que o orador mostra qual o grau de
preocupação que tem em relação ao auditório, em face da necessidade de interação
e adesão. Esse processo em que o orador busca o contato com o auditório é
chamado de estratégias de polidez, pois denota o tratamento dado ao auditório e a
posição em que o locutor se coloca perante o mesmo, podendo ser mais ou menos
polido, não deixando de considerar que essa percepção pode mudar de auditório
para auditório ou de um lugar para outro, inclusive em relação ao contexto histórico-
cultural-social em que o discurso se processa.
A atitude diplomática evita resolver as dificuldades, aplainá-las. Procura adiar-lhes a solução fechando tanto quanto possível os olhos para o fato de que a dificuldade de que se foge assim suscita amiúde uma nova dificuldade. Ela espera, seja que o tempo as elimine, seja que um movimento mais oportuno permita uma solução menos onerosa (PERELMAN, 1999, p.391).
Todo o esforço até agora empreendido pelo enunciador vai causar no
auditório uma percepção do ponto de vista emotivo e racional, ao qual se dá o nome
de efeitos passionais que é observado no auditório diante da argumentação, é o
sentido que o auditório percebe do discurso e como reage diante dele. Em última
instância é como o pathos é trabalhado pelo enunciador, são as paixões (no sentido
positivo e negativo da palavra) que são despertadas no auditório pelo enunciador
(texto, fala e gestual integrados num único sistema), o mais importante é que se
encontrem quais são as paixões que despertadas levam o auditório de encontro com
o objetivo persuasivo do autor.
105
Capítulo IV – Publicidade de alimentos funcionais, contexto, texto e
cenas da enunciação
A partir da análise discursiva das peças selecionadas como corpus nesta
pesquisa, buscaremos compreender como o texto é influenciado pelo contexto e
pelas cenas da enunciação, na mensagem publicitária de cada uma delas.
Para tanto é necessário que se tenha um entendimento do que é e como
funciona de forma geral a publicidade dos produtos componentes do corpus de
estudo proposto.
Esse entendimento virá por meio da análise, a qual deverá obedecer a um
protocolo mínimo de itens, que possibilite dar consistência ao estudo e possível
comparação, de forma a propiciar que se tenha uma reflexão baseada em fatores
qualitativos bem definidos em todas as peças, igualitariamente.
Esse protocolo, doravante denominado protocolo de análise, será
responsável por condensar as informações básicas sobre cada peça publicitária
analisada, bem como possibilitará o início da análise, dos elementos principais que
serão melhor verificados, ato contínuo, com o auxílio das técnicas da análise de
discurso e da análise retórica, dos elementos de cada peça, buscando compreender
a estrutura argumentativa proposta.
O protocolo de análise trará os seguintes elementos:
- Ficha técnica da peça publicitária, com o produto, nome da campanha, e da peça,
o meio em que foi veiculada, sua duração, período de exibição, a agência de
publicidade responsável pela campanha bem como a produtora do filme, o
protagonista, a expressão científica apresentada, a transcrição do texto e a
descrição do cenário.
- Estrutura do texto, falado e escrito, que se apresenta na peça publicitária, discurso
direto ou indireto, sintaxe.
- Conteúdo, sentido conotativo de palavras e expressões, de acordo com a
mensagem publicitária.
- Estética, análise global da peça ligando o dito com o não-dito, o texto o intertexto e
as imagens.
- Definição do ethos, pathos e logos presentes no discurso.
Assim que esse protocolo inicial for elaborado e a análise mais
detalhada for feita, ligaremos esses elementos mais textuais e imagéticos ao
106
contexto contemporâneo e à análise retórica, entrelaçando o conteúdo teórico
levantado nos primeiros capítulos com o corpus de análise buscando assim
encontrar os subsídios para responder à questão geral da presente dissertação. Isso
se fará seguindo o roteiro proposto por Ferreira (2010) e que serve bem a nosso
propósito, mas além da nova retórica vamos acrescentar outros elementos
importantes da análise de discurso, todas essas ferramentas foram explicitadas nos
capítulos anteriores.
Na sequência analisaremos: o contexto retórico, a invenção, a dispositio, a
elocutio e a actio, expostos no capítulo três.
4.1 – Publicidade e publicidade de alimentos funcionais
Para melhor compreendermos esse contexto faremos um breve resgate da
publicidade e do texto publicitário no Brasil, especialmente para o veículo televisão.
A publicidade se inicia no Brasil com o advento da atividade de agro
exportação, no início do século XIX, em jornais, para suprir a necessidade de
informar sobre a produção e comercialização de bens e outros artigos como
escravos, não obstante a concentração nessa mídia, outros como panfletos cartazes
e painéis também foram utilizados, como explica Brasil (2009, on line).
Esse processo vai seguindo a modernização do parque gráfico e em 1914 é
inaugurada a Eclética, primeira agência de publicidade no Brasil, mais exatamente
em São Paulo. A esse período se segue a implantação das primeiras indústrias no
país e na década de 20, mais exatamente no seu final, para atender à indústria
automobilística que se instala no país, chegam as primeiras agências de grande
porte como a J.W.Thompson, por exemplo, o que definiria o modelo publicitário
brasileiro com o mesmo padrão norte-americano, como esclarece Gonçalves (2006,
p. 28).
Na sequência, a publicidade vai se expandindo no Brasil, surge o programa
patrocinado Repórter Esso, no meio rádio e com este veículo os jingles, mas
também se popularizam os painéis de estrada, outdoors e as revistas e jornais se
sofisticam como assenta Rebouças (2012, on line), 60% da verba publicitária era
aplicada no rádio, como assegura Brasil (2009, on line) o estilo americano ainda
107
persiste nessa época, mas começa a tomar contornos próprios, num processo que
se acentua na década de 1960, quando passa a ser reconhecida por sua criatividade
e originalidade como enfatiza Gonçalves (2006, p. 29), além disso, o mercado passa
por um processo de organização e surge a Associação Brasileira de Propaganda
(ABA), o Conselho Nacional de Imprensa (CNI) em 1949, e posteriormente a
Associação Brasileira de Agência de Propaganda (ABAP).
Em 1950 a TV entra nesse processo e passa a integrar o rol de meios
disponíveis para a veiculação comercial de propaganda. Anúncios são feitos, como
toda a programação, ao vivo. Tão importante quanto o desenvolvimento da TV
nesse período é o desenvolvimento da publicidade que permite custear o
crescimento desse meio.
Os Diários e Emissoras Associados, de Assis Chateaubriand, só conseguiram ser o que foram e ter veículos líderes em todos os meios que atuavam porque a atividade de mídia era muito intensa, forte, regular. Faziam-se planos anuais! Em TV, verbas muito acima do necessário eram comuns, porque ainda não haviam sido criados o "sistema GRP" e seus conceitos balizadores para deixar os esforços de veiculação dentro de níveis adequados. E era preciso arrumar muito espaço para tantos comerciais. Quem é vivo há de lembrar que quando a TV Record era líder, seus programas de maior audiência tinham intervalos com até 15 minutos, e os blocos dos programas, cerca de 10 minutos (Veronezzi, 2012, on line).
O país segue crescendo e com isso a indústria da publicidade e propaganda
e todos os seus atores sociais vão acompanhando essa evolução. Por conta da
indústria automobilística instalada no estado de São Paulo, as agências se
concentram neste local. Nas décadas de 70 e 80 o videotape chega e os anúncios
de televisão vão deixando de ser ao vivo, é uma mudança importante e definitiva
nesse veículo, para a propaganda. Surgem grandes nomes na publicidade brasileira
como Washington Olivetto, Alex Periscinoto, Duailibi, Zaragoza, Nizan Guanaes e
outros expoentes como afirma Brasil (2009, on line), e a produção publicitária
brasileira passa a ser considerada das melhores do mundo, especialmente pelos
prêmios internacionais que vai conquistando.
Ainda nessa época, um pouco antes, a publicidade, em plena ditadura
militar, conquista uma das suas maiores vitórias ao convencer o governo de que era
capaz de se autorregulamentar conforme o modelo inglês de controle de conteúdo,
108
sem que a censura, sempre uma privação prévia dos direitos de expressão, fosse
instaurada para a propaganda.
As mudanças de ares que chegam com o século XX, conforme explica Brasil
(2009, on line), com a globalização e a remodelação dos paradigmas de comunicação
com a rede mundial de computadores, possibilita um ganho expressivo na
criatividade, maturidade, capacidade de atendimento e eleva o país à condição de
terceira potencia mundial em produção e criação publicitária.
Hoje o mercado é maduro e muito importante para a economia,
movimentando bilhões reais.
Nesse processo de amadurecimento do mercado publicitário e do conteúdo
encontrado nas campanhas, é óbvio que houve também um acompanhamento por
parte do texto, e do discurso. A linguagem publicitária é, como já dissemos, sensível
aos tempos e as suas relações com a sociedade, refletindo o que esta atravessa em
cada momento.
Por estar assim tão vinculada à história social, é que a publicidade apresenta-se tão atrativa e torna-se, de certa forma, tão íntima do seu público alvo, que na verdade, mais que receptor, é um cúmplice do emissor, seu parceiro no jogo de interlocução, responsável por contextualizar, por atribuir coerência a enunciados aparentemente incoerentes (GONÇALVES, 2005 p. 27).
Essa cumplicidade no processo comunicacional está diretamente ligada ao
fato de que o receptor acaba por se identificar, é o processo de reconhecimento do
“eu” do consumidor dentro da mensagem, é a decodificação no mesmo sentido da
codificação pela filiação entre o público alvo e o produtor, pela interação entre texto,
intertexto, contexto e cena da enunciação. Esse processo se completa pela
interatividade criada no contrato comunicacional, entre locutor e interlocutor, como
prescrevia Charaudeau e já debatido anteriormente, neste trabalho.
Mas esse processo não é estanque e foi sendo construído e evoluiu na
mesma medida que o mercado evoluiu, até a forma atual, considerando, inclusive, a
interatividade, a globalização e os meios digitais de comunicação. Mas para nosso
trabalho resta verificar como essa linguagem acompanhou essas mudanças dentro
do meio televisão.
109
O conteúdo ligado inicialmente a uma estética poética, cheia de adjetivos,
bem em consonância com a época, foi sendo alterado para uma linguagem muito
mais coloquial e com mensagens mais preocupadas em seduzir, óbvio é que essa
estética que foi mudando com o passar do tempo, acompanhou o estilo de vida e a
cultura da época. Outra mudança importante que se observou, isso mais
recentemente, é a passagem de receptor para interlocutor, a constatação do
processo de hegemonização, interligando as teorias de análise do discurso e dos
estudos culturais, fundamental para observar e compreender esse fenômeno,
iniciado na modernidade e que persiste até nossos tempos contemporâneos.
Essa mudança da linguagem e da possibilidade de interação avançou muito
com o advento do microcomputador e da web, possibilitando ao receptor se tornar
emissor, abrindo então um canal para o dialogismo dentro da comunicação, inclusive
na publicidade, quando usa esses meios.
Mas há que se avaliar qual a influência que essa interatividade dos meios
digitais está exercendo sobre os meios tradicionais e sobre isso, acertadamente
Gonçalves (2006, p. 30) nos esclarece “(...) a noção de interatividade, característica
da mídia moderna, influencia também a mídia convencional. Esta, por sua vez,
passou a repensar sua forma de veicular a mensagem”.
Dentro desse contexto evolutivo, o que vemos é uma valorização da imagem
se relacionada ao texto, isso se opera pelas novas características do público, o qual
com sua pressa desenfreada, fruto do estilo contemporâneo de vida, prefere a
mensagem mais lúdica, reflexo do hedonismo, e com movimento, do que ler.
Isso acrescenta, então, uma importante variável no processo comunicacional
e que a análise do discurso vai dar conta por meio do estudo das cenas
enunciativas, como faremos à frente.
Toda essa evolução do ponto de vista do conteúdo e sua forma na
propaganda, como vimos, é acompanhada pela observação e inserção nas
mensagens publicitárias, do contexto social, cultural, econômico e por que não dizer
histórico. Assim o surgimento de novas demandas sociais, ligadas ao culto ao corpo,
à saúde e à beleza, são incorporados, também, principalmente, pelo impacto
imagético que proporcionam no público, nos interlocutores. O mercado produtor,
110
atento a essas mudanças socioculturais busca atender ao desejo dos consumidores
criando produtos que possam corresponder a esses anseios, e nesse momento
surgem as peças publicitárias para divulgar e procurar persuadir esse público a
interagir e adquirir esses produtos. Uma das características desses produtos é
conter em seu nome, ou ainda na mensagem publicitária e embalagens, expressões
ligadas a uma linguagem técnica científica, essa terminologia está ligada em muitos
dos casos à capacidade funcional que os produtos têm e que por ventura possa
contribuir com a saúde, a beleza ou o culto ao corpo dos consumidores.
A esse grupo especial de propaganda, chamaremos de publicidade de
alimentos funcionais, objeto de nosso estudo, sobre esses alimentos já tratamos
nesse trabalho, restando então observar, analisar e verificar como se dá a
comunicação desses produtos.
As propagandas de produtos e alimentos funcionais buscam de alguma
forma sensibilizar o consumidor da importância que certos atributos ou substâncias
contidas nos mesmos têm na vida e na alimentação do público consumidor. Essa
função, que esses produtos propiciam, pode, em certa medida, trazer benefícios aos
usuários ou ser apenas mais um modelo de persuasão mercadológica. Diante desse
problema discutiremos essas mensagens publicitárias, do ponto de vista da análise
de seu discurso para os produtos Becel e Actvia.
4.1.1 – Contexto, texto e cenografia
A atualidade, conforme amplamente estudado em capítulo precedente, se
reveste de características muito específicas do comportamento humano. Esse
processo de entendimento do contexto, e das cenas da enunciação é importante
para analisarmos o contexto retórico que se apresenta.
Esse contexto é marcado pelo narcisismo, hedonismo sem limites, onde
somente o prazer das coisas e da vida parece ter importância, se não houver prazer
não haverá lugar no cotidiano da contemporaneidade.
Diante da fluidez da contemporaneidade, que torna efêmero e volátil o
ambiente atual, com a impermanência das coisas e dos produtos e assim ampliando
o horizonte de possibilidades, de desejos e necessidades, pela velocidade com que
há a sobreposição de novos produtos e serviços. Esse processo tem se agravado,
111
primeiro com a grande velocidade com que a tecnologia avança, possibilitando
novas fronteiras de uso para velhos bens, remodelados, e segundo, pela
necessidade do mundo capitalista de se manter em constante movimento, o que tem
se conseguido pelo crescente declínio do ciclo de vida dos produtos e serviços
oferecidos aos consumidores, pela substituição (canibalização de portfólio) e
modernização, causando um transtorno de dissonância cognitiva em torno das
necessidades e desejos dos consumidores. Um desejo ou necessidade mal acaba
de ser aplacado e já é substituído pela próxima novidade, em alguns casos esse
anseio de consumo nem chega a ser satisfeito e já muda, pois o objeto de desejo se
altera, tamanha a velocidade das mudanças no mercado.
Há uma incessante busca pela satisfação imediata, a moda passa a ser
muito mais efêmera, para acompanhar esse ritmo frenético do consumo e das
mudanças nos padrões, como afirma Lipovetsky (2000, p. 8): “A posteridade é como
o horizonte, uma linha que se afasta à medida que o indivíduo se aproxima. Se
existe, permanece um mistério. Não se podem estipular os critérios de acesso a ela.
Como a moda, tudo é passageiro.”
Esse contexto de impermanência, volatilidade, e hipervelocidade existente
na sociedade contemporânea é um fator que acaba de alguma forma sendo
incorporado às mensagens publicitárias como vimos no início deste capítulo, mas
não somente ao conteúdo e forma, mas também às estratégias gerais da
propaganda.
Os textos refletem essas características, tornam-se mais curtos, a linguagem
se modifica, a imagem aparece com muito mais força e simbolismos, especialmente
no meio televisão, observa-se que há uma valorização desses elementos, do
movimento, do individualismo, do narcisismo, do hedonismo, da competição, da
inquietude e da impermanência, superficialidade e a velocidade, enfim do
comportamento dessa sociedade contemporânea.
A pós-modernidade encarna, aparentemente, apenas o superficial. Mas, ao mesmo tempo, representa o contrário: obrigação de rentabilidade, competição, performance, ser operacional, ter sucesso. Significa também inquietude com o futuro, com a saúde, angústia provocada pela insegurança e pelo desamparo. A existência cotidiana é mais complexa do que indicam os anúncios publicitários. E sabe-se disso. Ninguém quer voltar atrás no individualismo (...) (LIPOVETSKY, 2000, p. 13).
112
Ainda dentro do contexto do narcisismo e hedonismo as campanhas
publicitárias, especialmente de televisão, passam a apresentar fatores que se
encaixam dentro desses padrões, o mundo e as pessoas são sempre “lindos”, aos
olhos do padrão vigente de beleza.
O ambiente, ou cenário, em que a enunciação se apresenta, também se
encaixa nesse padrão. Como vimos há pouco, a publicidade incorpora e expõe o
que o mundo vive, para que possa buscar uma ligação com o seu público alvo,
assim o que vemos nas peças publicitárias não deixa de ser, em última instância,
uma constatação da realidade do indivíduo do mundo contemporâneo, pinçado de
seu grupo social, ou daquele agrupamento que o público alvo, da publicidade, faz
parte ou almeja participar.
Para buscar um entendimento melhor desse fenômeno da comunicação
faremos a seguir a análise do discurso de duas campanhas de produtos funcionais
de destaque no mercado brasileiro.
4.1.2 – Ame seu Coração
Do ponto de vista histórico, os produtos Becel, especialmente as margarinas,
foram os primeiros reconhecidos pela ANVISA como alimentos funcionais, pela
presença dos fitoesteróis, que são substâncias extraídas dos óleos vegetais que
inibem a absorção do colesterol ruim no intestino, com os produtos na linha Pro-
Activ, (UNILEVER, on line, p.5), o que é para o produto um ponto a favor na análise,
mas não o isenta da observação atenta do estudo, outra característica funcional do
produto é a presença de ômega 3 e 6, que são gorduras poli-insaturadas não
produzidas em nosso organismo. Essas gorduras são encontradas em óleos
vegetais (girassol, soja e milho) e também em peixes (cavala e salmão) e têm o
papel de reduzir o mau-colesterol do sangue, quando substituem as gorduras
saturadas, auxiliando nos cuidados da saúde do coração (UNILEVER, on line, p. 3)
O próprio nome do produto tem sua origem e conceito ligados aos cuidados
do coração: “Becel – cujo nome se originou de B-C-L, iniciais de “Blood Cholesterol
Lowering” (diminuição do colesterol sanguíneo) – tornou-se disponível como
alimento, sem restrições de consumo, sendo muito bem recebida pelos europeus”.
(UNILEVER, on line, p. 4)
113
A campanha que será analisada foi veiculada no primeiro semestre de 2010
e era composta por 5 peças de televisão, sendo 4 de 30 segundos e a última de 60
segundos. Para melhor compreender as análises, elas serão separadas por peça, no
entanto é um discurso único, em que o encadeamento das peças e sua continuidade
faz toda diferença na análise.
4.1.2.1 – Peça 1 – Marília Gabriela e Becel
Protocolo de análise de discurso – BECEL 1
Ficha Técnica
Produto Margarina becel
Campanha Corrente do Coração – Ame o seu coração
Peça Marília Gabriela e Becel
Meio Televisão
Duração 30’
Período de exibição 12/04/2010 a 19/05/2010
Agência de publicidade NeoGamaBBH
Produtora do filme New Content
Direção Geral Criação Alexandre Gama
Direção Criação Márcio Ribas e Wilson Mateos
Protagonista Marília Gabriela
Expressão científica Ômega3 e Pró-Active
Texto (transcrição)
Marília Gabriela: Outro dia eu estava pensando, será que se eu pudesse ver o meu coração eu não cuidaria melhor dele? Mais tarde eu passei no supermercado e decidi: de hoje em diante no meu café da manhã só Becel. Depois eu voltei pra casa, eu moro no segundo andar, e eu falei: não quero mais saber de elevador. E o seu coração? Não tá na hora de cuidar melhor dele? Faça como eu, comece a usar Becel hoje. Por que pequenas mudanças agora podem fazer uma grande diferença.
Descrição do cenário
- Ambiente, clean, branco, artista sentada num sofá, branco, segurando e afagando um coração de pelúcia vermelho, em alguns momentos contracena diretamente com ele, olhando e apontando como se estivesse de fato olhando seu coração. No final abraça o coração. Aparecem o site do produto, e em uma caixa para dar destaque o nome do produto e da campanha: Ame o seu coração.
Estrutura do texto
Texto em primeira pessoa, linguagem mais coloquial, informal, frases curtas e diretas. Frases curtas, fáceis de ouvir e de entender, bem ao estilo contemporâneo do texto publicitário. Frases construídas no estilo direto.
Conteúdo
Convencionalidade proposital, utilização de sentido denotativo em todo texto.
Estética
Esteticamente o anúncio chama a atenção pelo uso do branco em quase toda a sua cenografia, exceção feita a roupa (preta) da apresentadora e o coração vermelho. Além disso o gestual da protagonista se aproxima muito do texto. Um elemento cheio de significado é o coração (uma pelúcia) que a atriz segura durante a peça e o seu “relacionamento” com o mesmo. São afagos, olhares e outras formas de interação.
Ethos, pathos e logos
O discurso é o publicitário, mas não podemos deixar de observar que há um tom (ethos) emotivo e amoroso em todo o discurso, com o qual se pretende interação com o público (pathos). O logos apresenta um discurso baseado na autoridade do orador, o discurso competente.
Tabela 1 - Protocolo de análise de discurso – BECEL peça 1
A peça inicia com a protagonista sentada no ambiente descrito no protocolo
acima, como podemos observar na figura abaixo, segurando o coração.
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Figura 1 – Cena Inicial – Comercial 1
Essa cena pode comprovar a cenografia, as cores brancas utilizadas, exceto
da roupa da protagonista, o coração vermelho em suas mãos, com a qual ela vai se
relacionar e interagir, enquanto conta a mudança que fez em seu estilo de vida, para
cuidar da saúde, do coração.
O coração é um elemento fundamental na cena, pois representa, não só o
órgão humano, mas, também, a ligação afetiva que se tem com a própria vida e a
saúde, é, em toda a campanha, o símbolo expressando de maneira completa, plena,
o simbolizado, usando então a estrutura retórica de ligação entre símbolo e
simbolizado, ao longo de todas as peças desta campanha.
É importante notar que o logotipo do produto permanece durante todo o
comercial presente, numa clara intenção de ligar o que está se passando com a
marca, não bastasse, a margarina é citada textualmente durante a propaganda.
O contexto retórico é o da contemporaneidade, do narcisismo, hedonismo,
da impermanência, de pessoas mais preocupadas com sua saúde e em
consequência disso com sua beleza e seu corpo, o publicitário, entende esse
contexto e dele se apropria para gerar um ambiente propício para a adesão dos
espíritos em toda a campanha. É importante aqui ressaltar que a grande questão
retórica é justamente a ligada à saúde, que pode ser alcançada por meio de hábitos
saudáveis de vida.
A apresentadora, com a voz em um tom sereno, diz sobre sua mudança de
hábitos, e do acréscimo em sua dieta alimentar do produto, para, em conjunto com
as novas atitudes de vida, obter um resultado que deve lhe trazer benefícios de
saúde, especialmente ao coração. Há uma argumentação lógica por trás dessa
construção: se faz bem para mim (oradora), fará bem para você (auditório).
115
O texto e a peça seguem com a apresentadora Marília Gabriela convidando
o público para fazer o mesmo que ela, ou seja, para “olhar” para o seu coração e a
maneira que vem tratando o mesmo, numa confirmação da lógica argumentativa que
acabamos de ressaltar.
Esse convite só vem depois dela ter dito que fez isso, e aí temos a figura do
“fiador”, como o chama Maingueneau, que transmite ao público sua experiência e o
convoca para partilhar da mesma, esse fiador pode ser chamado também de
conselheiro especializado, como dito por Bauman ou do orador competente como
visto em retórica (muitas vezes confundido com o autoritário) pelos seus
antecedentes (ethos prévio).
Essa característica importante sobre a figura da oradora escolhida para o
filme é a sua notoriedade perante um vasto público, fruto de sua carreira como
jornalista, e apresentadora, culta, inteligente e bem informada, o que a transformaria
em uma pessoa com o chamado “ethos pré-discursivo” (taxonomia de Maingueneau,
para o ethos que se tem do orador, antes mesmo do discurso, pelo seu passado, a
imagem que o mesmo transfere ao discurso, antes mesmo de proferi-lo) muito bem
pré-estabelecido, favorecendo a adesão do auditório à sua argumentação, é um tipo
de discurso competente, há, também, características de discurso encrático, pelo
empréstimo da imagem, de si, que o orador faz para a mensagem, e sobre o bem
que os seus novos hábitos vão lhe fazer, esse ethos, prévio é, entre outros fatores
que estamos analisando, importantíssimo para validar o discurso e auxiliar no
processo persuasivo, já que a oradora vai projetar sobre o discurso o “seu” ethos
prévio de especialista, na argumentação que estamos analisando, sem prejuízo do
ethos desse discurso, mas se associando e complementando o processo
persuasivo.
Aliás, essa argumentação, do ponto de vista retórico está baseada na lógica
do verossímil, do razoável, segundo a qual é fácil se supor que se esse orador com
toda sua experiência e cultura está mudando seus hábitos, isso deve ser bom, se é
bom pra ele é bom para o auditório, é o argumento retórico da autoridade, baseado
na estrutura do real, apresentada no capítulo dois, presente na peça publicitária. É
uma estrutura de ligações de sucessão, segundo a qual há uma ligação de causa e
efeito, que para funcionar corretamente depende do acordo entre o auditório e o
orador, para que este se estabeleça. O publicitário ao preparar o texto, escolher a
protagonista, montar o cenário está plenamente ciente destes detalhes, mesmo que
116
não faça a mesma análise que ora desenvolvemos, tudo é feito de modo
estrategicamente pensado, articulado intencionalmente.
Mas não só essa estratégia argumentativa está presente nesse texto, temos
ainda o argumento de direção, segundo o qual um determinado fim será obtido por
algum tipo de meio, em nossa peça o fim é a saúde do coração e o meio para tanto
está ligado aos hábitos saudáveis de vida dentro dos quais o enunciador insere o
consumo da margarina Becel, usando do seu discurso encrático e da sua autoridade
(lembrando que essa autoridade é na verdade característica do discurso
predominante que é competente, é a autoridade pela competência previamente
conquistada pela oradora) como apresentadora com credibilidade ilibada.
Mas isso, por si só não é capaz de persuadir, é necessário que se prove ou
ao menos se demonstre o porquê deste produto ser capaz de auxiliar no processo
de cuidar do coração e isso se faz justamente com o apelo de funcionalidade que há
na margarina, exaltado pelo apoio das expressões científicas Pró-activ e Ômega 3 e
6 presentes em sua formulação. Essa informação não está explícita na peça
publicitária, no entanto, o público alvo conhece o produto, justamente pelas suas
características funcionais, há durante toda a peça uma implicitude dos benefícios
dessas substâncias, ao ligar o produto ao bem estar e à saúde do coração.
Mas nada disso seria possível se não houvesse um auditório (público alvo)
para o qual se deseja fazer o discurso e sem o qual a argumentação se esvaziaria.
Do ponto de vista retórico esse auditório é do tipo espectador, o qual após o
discurso irá se posicionar a respeito do mesmo, aceitando ou não a sua
argumentação, se identificando ou não, caso haja essa identificação ele irá buscar o
melhor para si, esse processo analisado dentro do contexto social contemporâneo,
em que os espíritos buscam a adesão ao texto, nada mais é que o modo de
persuadir da publicidade em ação, pela argumentação elaborada, propositalmente
pelo publicitário. Esse auditório é composto justamente pelos consumidores de
produtos funcionais, que como já dissermos tem em sua formulação ingredientes
que seriam capazes de melhorar, de alguma forma sua saúde e, indiretamente, seu
corpo e sua beleza, um grupo com características bem definidas, as quais
encontramos na campanha.
Esse indivíduo que será impactado pelo discurso publicitário da peça
analisada é o sujeito da contemporaneidade que estudamos no capítulo um, que
117
está à procura de satisfazer o seu “eu”, dentro do contexto narcisista e hedonista
dos dias atuais.
A invenção em nossa peça publicitária se dá pela argumentação centrada
no “lugar da saúde”, mas não sem se coadunar com outros lugares, como o da
beleza e do culto ao corpo, os quais estão inseridos no rol dos chamados lugares da
qualidade na retórica antiga. A protagonista como se pode observar está em “ótima
forma”, como costumamos dizer, ou ainda, dentro de um padrão hegemônico de
beleza e saúde: magra.
A invenção nesse caso, conforme vimos anteriormente, se baseia em um
raciocínio dialético. Ao partir de uma verdade conhecida pelo auditório (questão da
saúde e dos hábitos saudáveis) e apelando para a emoção (pathos), utiliza da
argumentação competente e leva o auditório a acreditar que se a alimentação e os
hábitos forem saudáveis, o coração ficará bem, numa estrutura lógica (logos) bem
definida. Essa argumentação dialética é extremamente persuasiva a partir do
momento que parece demonstrar um caminho que pode ser escolhido pelo auditório,
mas que, no entanto, já está definido, traçado, ao qual o auditório (público alvo bem
definido) certamente aderirá pela familiaridade.
A dispositio está, inicialmente (exórdio), baseada no ethos pré-discursivo,
que se utiliza para a busca da identidade e da contemporização. Ato contínuo o texto
se desenrola, é a narração, como vimos, e o orador diz ter mudado seus hábitos e
acrescentado a sua dieta a margarina, que passou a cuidar da sua saúde e com isso
de seu coração (mais um exemplo de construção lógica no texto). O passo seguinte
da oradora na busca da confirmação é dizer que são os pequenos atos (como
consumir margarina e usar escadas) que vão fazer toda diferença (cuidar melhor do
coração). No final do texto (peroração) a oradora afirma: “Faça como eu comece a
usar Becel hoje. Porque pequenas mudanças podem fazer toda a diferença”.
A elocutio se baseia no discurso direto, no gestual, que aponta para o
coração e para o público, no uso da primeira pessoa e de perguntas diretas ao
auditório. A linguagem informal é outra arma para a adesão dos espíritos. Como
vimos logo acima impera a estrutura do real na formulação da argumentação. Uma
figura retórica presente no discurso acima é a analogia, pois é o enunciador quer
causar no auditório várias emoções, ligadas ao cuidado com a saúde, e com isso
buscar a adesão desses espíritos, além disso, se coloca na posição de participante,
118
de igual, que tem hábitos saudáveis e usa a margarina como um desses hábitos, e
por analogia se é bom pra ela (oradora) é bom para o auditório.
Na peça estudada o momento culminante é a actio, é a pergunta que busca
trazer para o discurso o auditório. É quando a oradora além de perguntar, interage
de forma meiga e carinhosa com o coração, como se estivesse cuidando de uma
criança ou de um bichinho de estimação muito querido, indo muito além do que foi
dito, vejamos o recorte da peça, abaixo, que comprova essa leitura.
Figura 2 – Cena final – A oradora e o cuidado com “seu” coração.
Todo o processo de argumentação, de discurso, se assenta no ethos
publicitário e emotivo, o texto e o intertexto, além das cenas da enunciação, seguem
essa direção, o auditório está bem definido na contemporaneidade, sua
impermanência, velocidade, consumo, narcisismo e hedonismo.
A construção retórica baseada na lógica principal é a de que hábitos
saudáveis fazem bem à saúde (do coração) e consumir o produto é um ato saudável
(meio) que vai levar a uma condição saudável (fim) de vida, é o ato de persuadir
ligados ao raciocínio lógico, é a forma de provar pela lógica (centradas no logos).
O publicitário partiu da premissa de que o auditório tem conhecimento prévio
e aceita a argumentação em torno das questões de saúde (conhece o indivíduo
contemporâneo e suas aflições, desejos e necessidades), apelando para sua razão,
usando a emoção no discurso apresentado, com argumentos ligados à competência
da oradora (seu ethos pré-discursivo) escolhida para protagonizar a peça, usa o
raciocínio lógico e a analogia para persuadir o auditório em busca de hábitos
119
saudáveis de vida, entre os quais está o uso da margarina (produto funcional),
atestado pelo uso das expressões científicas em seu rótulo e na publicidade.
4.1.2.2 – Peça 2 – Marília Gabriela e o filho Cristiano
A segunda peça é uma continuação da primeira, com o acréscimo de um
sujeito novo, a presença do filho Cristiano, o qual se junta, como a uma corrente, à
mãe, isso vai facilitar a análise, pois os mesmos elementos retóricos e discursivos
estão presentes na argumentação, não sendo então necessário se alongar nas
explicações, mas manteremos a classificação de cada elemento argumentativo
presente, como fizemos na peça anterior, e destacando aqueles que forem
específicos dessa peça.
Protocolo de análise de discurso – BECEL 2
Ficha Técnica
Produto Margarina Becel
Campanha Corrente do Coração – Ame o seu coração
Peça Marília Gabriela, o filho Cristiano e Becel
Meio Televisão
Duração 30’
Período de exibição 12/04/2010 a 19/05/2010
Agência de publicidade NeoGamaBBH
Produtora do filme New Content
Direção Geral Criação Alexandre Gama
Direção Criação Márcio Ribas e Wilson Mateos
Protagonista Marília Gabriela
Expressão científica Ômega3 e Pró-Active
Texto (transcrição)
Marília Gabriela: Na semana passada eu decidi cuidar melhor do meu coração, começando por Becel a minha margarina. No dia seguinte, Cristiano meu filho, diz que se empolgou com minha história, não foi. Cristiano: É verdade, no café da manhã lá de casa agora também só tem Becel. Marília Gabriela: Pois é eu tenho certeza que se as pessoas pudessem ver seu coração ela cuidariam melhor dele. Cristiano: Tem mais, hoje pra vir pra cá eu troquei o carro pela bicicleta. Tá vendo, visitar a mãe faz bem para o coração.
Descrição do cenário
- O ambiente é o mesmo da peça anterior, a forma de segurar e tratar o coração também. No entanto no final entra o papel da mãe, tratando o filho com carinho, brincando e acariciando o mesmo e fazendo sons de coração batendo e juntando o coração dela com o do filho.
Estrutura do texto
Texto em primeira pessoa, linguagem mais coloquial, informal, frases curtas e diretas. Frases curtas, fáceis de ouvir e de entender, bem ao estilo contemporâneo do texto publicitário. Frases construídas no estilo direto.
Conteúdo Convencionalidade proposital, utilização de sentido denotativo em todo texto.
Estética
Mesma cenografia, exceção feita à roupa da apresentadora que passa a ser de um tom cinza. Permanece o coração e seu significado e elemento significante. O gestual da protagonista se intensifica, especialmente por conta da introdução do filho, com o qual a mesma passa a interagir praticamente com o mesmo carinho (um pouco mais) com que se relaciona com o coração. Permanecem presentes os afagos, olhares, beijos e outras formas de interação, com o
120
coração.
Ethos, pathos e logos
O discurso é o publicitário, mas não podemos deixar de observar que há um tom (ethos) emotivo e amoroso em todo o discurso, com o qual se pretende interação com o público (pathos). O logos apresenta um discurso baseado na autoridade do orador, o discurso competente.
Tabela 2 - Protocolo de análise de discurso – BECEL peça 2
Permanecem presentes a maior parte dos itens da análise anterior, o
contexto é o mesmo, da contemporaneidade. O ethos pré-discursivo permanece,
porque a oradora continua a mesma, apenas há o acréscimo de uma figura que vem
para “testemunhar”, a qual já aderiu, como um dos espíritos do auditório que se
solidarizou, e por isso serve de exemplo e paradigma dos novos hábitos saudáveis
de vida para os espectadores que estão assistindo, o auditório.
Figura 3 - Marília Gabriela e o filho Cristiano
Uma característica importante é uma leve alteração no comportamento por
parte da oradora, é o aumento das demonstrações de carinho especialmente por
que a testemunha que vem a público dar seu depoimento é seu filho. A
apresentadora inicia sua fala com a retomada da peça anterior, falando que está
engajada na corrente pelo coração há uma semana, isso é relevante, pois leva aos
espíritos do auditório um tipo de comprovação de que o orador continua firme em
seu propósito e em sua jornada em busca da saúde, beleza e bem-estar geral e o
mais importante: já há uma adesão confirmada, e pela ligação com a jornalista, a
relevância do seu depoimento é maior, isso aumenta o efeito da argumentação
retórica. Em seu depoimento, Cristiano, o filho, além de ratificar o uso da margarina
objeto da peça publicitária comenta como se comprometeu com hábitos de vida mais
saudáveis, informando ao público que está andando de bicicleta.
Esse fato, primeiro da oradora de estar usando escadas e agora de seu filho
de andar de bicicleta ao invés de carro é importante na construção do perfil do
auditório, o qual para se identificar deve ser praticante de hábitos saudáveis, ou
121
começar a tê-los, é a demonstração do padrão hegemônico, para que o público alvo
se identifique e passe a se comportar como ele. É um ingrediente a mais no
processo argumentativo.
Assim sendo o contexto retórico, permanece praticamente inalterado, bem
como o ethos, pathos e logos, não há mudanças quanto ao discurso encrático,
competente, que usa da figura do fiador ou do consultor especializado, apenas
temos a presença de um novo interlocutor com a oradora, o qual demonstra já ter
aderido, não só ao discurso, mas, principalmente ao novo estilo de vida preocupado
com a beleza, a saúde e o corpo. Segue a mesma estrutura argumentativa e de
persuasão.
A presença do filho só aumenta a intensidade da emoção no contexto
(pathos) na busca da adesão dos espíritos do auditório, causada pela figura da
oradora que agora assume um novo papel, na verdade, acrescenta um elemento ao
seu ethos pré-discursivo, o de mãe, não é mais só a apresentadora e jornalista
competente, mas a autoridade materna. Essa estratégia amplia o poder de
persuasão, mais que uma conselheira especializada (conforme Bauman) é também
uma fiadora com dupla qualificação.
O tom de voz da apresentadora sobre uma leve alteração, fica um pouco
mais “entusiasmado” com a adesão do filho, ela parece mais alegre, quase
recompensada. O discurso continua em primeira pessoa, inicialmente faz uma
recuperação, no início do filme, da peça anterior, marca nessa fase inicial o prazo
decorrido de uma semana com os seus novos hábitos, numa tentativa clara de
demonstrar a permanência na escolha feita na semana anterior, em seguida muda o
discurso que até agora era com o auditório e passa a se dirigir ao filho, que dá seu
testemunho de adesão aos novos hábitos saudáveis de vida, inclusive com o
consumo do produto, há aí um recurso retórico da lógica e da analogia: se é bom
para minha mãe, é bom para mim. Ao mesmo tempo, para o auditório a mensagem
é: se é bom para o filho dela, se ela recomenda para ele, é bom para o auditório,
pois ninguém quer o mal para o filho.
É importante realçar que há uma mudança na ordem dos fatos apresentados
pelos atores, na primeira peça os hábitos saudáveis de vida vinham em primeiro
plano e depois o consumo da margarina era mencionado e incorporado aos hábitos
propostos, nesse segundo filme a situação se inverte, e o hábito saudável é o
consumo da margarina, acompanhado dos hábitos saudáveis (exercícios físicos
122
regulares), mostra uma mudança de posição e de importância do produto dentro do
discurso e da estrutura argumentativa retórica, como que informando ao auditório
sobre esse fato e esse grau de relatividade da importância.
A última frase da oradora e seu gestual reforçam essa ligação mãe e filho e
a preocupação com a saúde e o bem estar, ela diz, textualmente: “Tá vendo, visitar
a mãe faz bem para o coração”. Essa colocação da apresentadora é feita logo após
o seu filho afirmar que trocou o carro pela bicicleta para ir à casa dela. Outra
passagem importante para nossa análise é a afirmação, novamente nesta peça, de
que se as pessoas pudessem ver o coração, representado pela “pelúcia” que os
protagonistas seguram, elas cuidariam melhor dele, além disso, o relacionamento
dos dois entre si e com o “coração” é muito mais próximo e afetivo como podemos
ver na sequência de cenas abaixo.
Figura 4 - Sequência: carinho de mãe
Outro momento que devemos destacar vem logo a seguir, no final do filme, e
não aparece na transcrição textual é o uso da onomatopeia “Tum, Tum, Tum, Tum”
para simbolizar o coração batendo, num momento que exprime alegria, vida, saúde,
pelo coração que bate, lindo e saudável, e ato contínuo, a “batalha de corações”
com os dois atores segurando seus corações próximos e rindo, em uma referência à
proximidade dos corações e da importância do relacionamento mãe e filho. Essa
sequência final é acompanhada da aplicação do logo da campanha e do site da
empresa, num gesto de aproximar o produto dessas circunstâncias tão emocionais,
ligadas à saúde e à família.
Figura 5 - Sequência: "TUM, TUM, TUM" e "Guerra de Corações"
Essa cena é uma constatação da intencionalidade do texto em mostrar outro
lado da oradora, com o seu discurso competente, por seu passado como jornalista
123
(sua credibilidade, emprestada à campanha, na forma de seu ethos pré-discursivo)
que é o lado de mãe, carinhosa e afetuosa, aumentando a carga emocional. Esse
momento parece uma transição, ou ao menos um tentativa de equalizar o peso, do
discurso competente e o discurso autoritário (relação mãe e filho) o que pode dar
uma nova dimensão argumentativa no discurso.
Continuamos com a lógica do verossímil, do razoável, pois a mudança do
discurso apenas serve para aproximar mais a oradora do seu auditório, com a
adição de um elemento novo, fortalecendo o acordo (ou o contrato, como preferia
Charadeau) entre ambos. A ligação de causa e efeito permanece: bons hábitos de
vida (inclusive o consumo do produto no foco da campanha) traz benefícios ao seu
coração, ainda é uma ligação sucessiva de argumentos, como na primeira peça.
O orador agora passaria a emprestar para o discurso um duplo ethos prévio,
o de jornalista, apresentadora, com alta credibilidade e o de mãe (nada poderia ter
credibilidade maior que a mãe em relação ao bem estar do filho), mas ambos se
complementam no sentido de que essa argumentação se assenta no discurso
competente.
A estrutura do discurso continua a estrutura do real, com base na
competência (autoridade dos competentes) do orador que com isso vai buscar a
adesão dos espíritos do seu auditório.
A base da argumentação em torno do produto, especialmente por ser uma
continuação da primeira peça, vai se manter inalterada em suas propriedades
funcionais, de ajudar no combate ao colesterol ruim, implícito, mas de conhecimento
do auditório específico que o publicitário escolheu ao montar as cenas de
enunciação pois o próprio produto tem sua imagem perfeitamente posicionada
perante o público que deverá ser atingido, como já analisamos no primeiro filme da
campanha.
A invenção passa a agregar, além do lugar da saúde, da beleza e do culto
ao corpo, o lugar da tradição, no momento em que recorre às tradicionais ligações
familiares, mais especificamente de mãe e filho, que são atemporais, logo parte da
contemporaneidade, que por mais que os indivíduos sejam solitários e
individualistas, sempre há espaço para essa relação, recheada de emoção e
simbolismo, ainda é o lugar da qualidade que se manterá inalterado até o final da
campanha, como veremos.
124
O raciocínio dialético é mantido pelo publicitário, ele se assenta na premissa
de que o auditório é parte, ou ao menos deseja ser, do grupo social preocupado com
a saúde, beleza e o corpo, mas o apelo emocional no discurso (pathos) é
aumentado com a introdução do filho da oradora. A estrutura lógica (logos) que se
criou entre hábitos saudáveis de vida (prática de atividade física regular) e hábitos
de alimentação saudáveis (que incluem o consumo do produto) se mantém também.
A dispositio permanece, como na primeira peça, baseada, em primeiro
plano, no ethos pré-discursivo da oradora, ora incrementado com o status de mãe de
um espírito que aderiu ao seu discurso inicial. A relação mãe e filho vem na
narração, com o desenrolar desse segundo filme publicitário, que também explicita
a adesão do filho ao grupo de pessoas preocupadas com a saúde, além de reafirmar
sobre o fato de que as pessoas se pudessem ver o coração cuidariam melhor dele.
É uma confirmação, não só do discurso atual, como do proferido no primeiro filme,
é a ligação que se faz para manter alinhada a argumentação, quando recupera o
filme anterior na frase: “Na semana passada eu decidi cuidar melhor do meu
coração, começando por Becel a minha margarina”. A peroração está ligada mais
ao bem estar e ao gestual, e não ao texto propriamente dito, no trecho das imagens
que chamamos de “batalha de corações” e mostramos na sequência acima.
A elocutio ainda está baseada no discurso direto, mas agora há uma
mudança na estrutura, pois o texto é ora direcionado ao auditório, ora ao novo
elemento participante da cena enunciativa (o filho Cristiano), que tem um caráter
mais testemunhal (permanece a primeira pessoa). A linguagem é a informal (como é
de se supor em um relacionamento tão estreito como o de mãe e filho), em ambos
os casos, ou seja, quando é dirigido ao auditório e quando é dirigido ao filho. A
estrutura lógica continua a mesma, baseada na figura retórica da analogia: se é
bom para o filho da oradora, é bom para qualquer pessoa, então é bom para os
espíritos presentes no auditório.
A actio, então se apresenta na força desse relacionamento entre mãe e
filho, nas cenas que observamos na Figura 4 acima, o carinho de mãe. A esse
gestual ligamos o carinho de propiciar ao filho a oportunidade de compartilhar os
novos hábitos de vida.
Em toda a peça o ethos publicitário se assenta nas relações entre os
protagonistas e a saúde e bem estar, provocando uma aproximação com o auditório
125
pela emoção (pathos), especialmente ao introduzir o filho e demonstrar a relação
entre ambos.
4.1.2.3 – Peça 3 – Marília Gabriela e Júlia
A terceira peça é uma continuação da segunda, Marília Gabriela, agora,
contracena com Júlia, arquiteta do filho Cristiano, o qual não participa dessa peça.
Essa continuação segue o mesmo padrão dos dois filmes anteriores, então os
comentários se restringirão à análise e classificação segundo foi proposto
inicialmente, com o que foi adicionado, ou seja, com os novos elementos, sem
explicações que sejam redundantes com as que já fizemos, simplificando o
entendimento.
Protocolo de análise de discurso – BECEL 3
Ficha Técnica
Produto Margarina Becel
Campanha Corrente do Coração – Ame o seu coração
Peça Marília Gabriela, Júlia e Becel
Meio Televisão
Duração 30’
Período de exibição 12/04/2010 a 19/05/2010
Agência de publicidade NeoGamaBBH
Produtora do filme New Content
Direção Geral Criação Alexandre Gama
Direção Criação Márcio Ribas e Wilson Mateos
Protagonista Marília Gabriela
Expressão científica Ômega3 e Pró-Active
Texto (transcrição)
Marília Gabriela: Na semana passada o Cristiano, meu filho, contou que como eu começou a usar Becel. E hoje eu to aqui com a Julia, arquiteta do Cristiano. Julia: Gabi, eu também acho que se as pessoas pudessem ver o seu coração, elas cuidariam melhor dele. Marília Gabriela: É isso, são pequenas mudanças que fazem uma grande diferença. Julia: É eu agora caminho no parque três vezes por semana... e também coloquei Becel no meu café da manhã. Marília Gabriela: Três vezes por semana Julia? Julia: Não...rs...Becel é todo dia. Marília Gabriela: Ah bom.... Risos e afagos nos corações.
Descrição do cenário
- Ambiente, clean, branco, artista sentada num sofá, branco, segurando e afagando um coração de pelúcia vermelho, em alguns momentos contracena diretamente com ele, olhando e apontando como se estivesse de fato olhando seu coração (final da peça). Contracena com Júlia, arquiteta do filho e influenciado por este, Discutem novos padrões de vida. No final abraça o coração. Aparecem o site do produto, e em uma caixa para dar destaque o nome do produto e da campanha: Ame o seu coração.
Estrutura do texto
Texto inicia em terceira pessoa, mas passa para primeira pessoa com os depoimentos, linguagem mais coloquial, informal, frases curtas e diretas. Frases fáceis de ouvir e de entender, bem ao estilo
126
contemporâneo do texto publicitário.
Conteúdo
Convencionalidade proposital, utilização de sentido denotativo em todo texto.
Estética
Mesma cenografia, exceção feita à roupa da apresentadora que passa a ser branca. Permanece o coração e seu significado e elemento significante. O gestual da protagonista se retrai um pouco, aparentemente por que a interlocutora não faz parte de seu círculo familiar, apesar de lhe parecer íntima. Permanecem presentes carinhos como formas de interação com o coração.
Ethos, pathos e logos
O discurso é o publicitário, mas não podemos deixar de observar que há um tom (ethos) emotivo e amoroso em todo o discurso, com o qual se pretende interação com o público (pathos). O logos apresenta um discurso baseado na autoridade do orador, o discurso competente.
Tabela 3 - Protocolo de análise de discurso – BECEL peça 3
Na terceira peça dessa campanha que analisamos, a cenografia permanece
a mesma, uma coisa que chama a atenção é a mudança na cor da roupa da
protagonista, que vai clareando, no decorrer da campanha, e nessa peça é branca.
Isto poderia indicar uma intenção, talvez, de mostrar que os hábitos saudáveis,
quando cultivados, trariam benefícios acumulativos na mesma proporção que as
roupas vão clareando, no entanto a análise da próxima peça trará uma roupa escura
novamente, mostrando que é apenas uma coincidência, mas isso só pode ser
verificado por que agora temos o conjunto completo de filmes para assistir na
sequência.
Figura 6 - Marília Gabriela de branco
O coração se mantém como peça fundamental para a cena e para a
enunciação e a interação permanece, numa tentativa de mostrar que o coração, se
pudesse ser visto, seria melhor tratado, com os mesmo carinhos e afagos que os
atores dispensam às “pelúcias” que ostentam durante as filmagens.
A estratégia de manter o logotipo por todo o filme é mantida, bem como a
aparição do nome da campanha, nome do produto e do site ao final da peça.
O contexto retórico não se modifica, mas os atores se revezam, agora
temos a apresentadora Marília Gabriela e a convidada Júlia, que é do círculo de
127
amizades do filho Gabriel e que, como ele, foi impactada pela corrente em prol da
saúde, aderindo assim seu espírito, antes era parte do auditório e agora participa do
grupo que tem hábitos saudáveis e dentre eles o consumo da margarina, se
identificou com o agrupamento social em questão, e vai dar seu testemunho sobre
isso.
A jornalista mantém voz e posturas coerentes com o novo contexto,
restringindo a interação com a convidada, em relação ao que apresentou quando o
convidado era seu filho, demonstrando claramente que o relacionamento de mãe e
filho era diferente, mais próximo e emotivo.
Novamente faz o resgate da peça anterior, fazendo a marcação do tempo
transcorrido de uma semana, que estivera com seu filho e que agora está com a
nova convidada, apresentando-a.
A importância de “olhar” para o coração agora vem em primeiro plano, em
segundo plano aparecem a citação dos pequenos gestos e mudanças como
operadores de grandes mudanças, as quais se identificam imediatamente na
sequência do texto, os hábitos saudáveis de vida: exercícios físicos regulares e
consumo de produtos adequados a esse estilo de vida.
Permanece o ethos da protagonista, prévio, que dá fiança e passa
credibilidade, é a conselheira especializada dizendo que os pequenos gestos
contam e transformam, é a manutenção da estratégia comunicacional baseada no
discurso competente da oradora.
A figura da interlocutora introduzida tem um papel importante e como
Cristiano vem demonstrar, por meio de seu depoimento, que aderiu ao discurso
proposto, se identificando com o grupo social preocupado com a saúde.
Essa construção argumentativa tem um claro objetivo, sensibilizar o auditório
e buscar com que esses espectadores também se contemporizem e passem a
participar desse grupo, praticando atividades físicas regulares e introduzindo outros
hábitos saudáveis, como a alimentação, consumindo então o produto objeto da
campanha.
Mantém se as mesmas técnicas retóricas anteriores: lógica do verossímil, do
razoável, retórica da autoridade (discurso competente), estrutura do real, ligações de
sucessão, causa e efeito e o estabelecimento de contrato ou acordo entre orador e
auditório.
128
O discurso encrático permanece presente, a argumentação de direção, em
que um fim é alcançado com um determinado meio, também fica inalterada.
O auditório que se busca é o mesmo, daqueles que pertencem ou desejam
pertencer ao grupo social preocupado com uma vida saudável, quer seja por
questões de saúde mesmo, ou de preocupações mais narcisistas e hedonistas
(beleza e culto ao corpo).
A análise da invenção volta a ter foco nos lugares da saúde, beleza e culto
ao corpo, como no primeiro filme, diminuindo a carga de emoção (pathos). Como
nas duas peças anteriores, os atores escolhidos para participar das filmagens
gozam de excelente “saúde”, possível de se verificar pela silhueta esbelta e a
aparência geral. O raciocínio dialético ainda é a base da argumentação, pois a
pressuposição de que o auditório conheça o produto e suas características e o bem
que o mesmo pode trazer ao indivíduo, propiciando a participação no grupo social
almejado, é a tônica do discurso (implicitamente dito, na intertextualidade). A
estrutura lógica (logos) que envolve os pequenos atos de consumir produtos como a
margarina e fazer exercícios regularmente podem trazer benefícios à saúde, logo
para ficar bem o auditório deve se “enquadrar” nesse perfil, é mantida, quando a
convidada afirma: “É, eu agora caminho no parque três vezes por semana... e
também coloquei Becel no meu café da manhã”.
Vemos na dispositio o mesmo exórdio das peças anteriores com a
permanência da mesma protagonista e toda a carga que seu ethos prévio carrega. A
narração segue normalmente, sem intercorrências em relação às peças anteriores,
mantendo o mesmo padrão, exceto pela alternância da ordem de “prioridades”
quando no texto temos a disposição em primeiro lugar dos pequenos gestos, em
segundo da inclusão dos hábitos saudáveis (primeiro cita os exercícios físicos
regulares e depois o consumo da margarina), numa provável intenção de
reestabelecer os valores numa escala de importância. A confirmação vem
justamente na resposta da convidada à pergunta da protagonista da campanha
sobre os três dias de prática saudável durante a semana, e aquela responde à
segunda que a margarina é consumida todos os dias (logo os exercícios físicos são
em três dias na semana). A peroração, onde a afetividade se une à ação aparece
na cena final com o gestual das atrizes em relação ao coração, afagando,
apertando, aproximando do rosto, num sinal claro de que metaforicamente estão
cuidando do órgão como estão fazendo com a “pelúcia” em seu poder.
129
Figura 7 - Cuidamos de nossos corações
A elocutio é igual à do segundo comercial, inicialmente o texto é em terceira
pessoa, para resgatar a peça passada, passa para a primeira pessoa quando se
iniciam os testemunhais. Primeiro a interação é com o auditório depois passa a ser
entre as duas atrizes, em busca do testemunho e da confirmação deste.
A linguagem continua a ser a informal, a analogia se mantém presente na
construção lógica: é bom para os personagens do filme é bom para o auditório,
apoiado na fiança que a oradora cede ao conteúdo do discurso. Essa ainda é a
estrutura principal do texto.
A actio se estabelece com a afirmação textual que os pequenos gestos é
que contam e com a cena final do cuidado metafórico com o coração de pelúcia,
buscando a adesão dos espíritos espectadores, com o poder de decidir se o farão
ou não.
O publicitário mantém a estrutura central do processo argumentativo, nos
três filmes analisados, esse repetição, muito utilizada na propaganda, na retórica é
chamada de figura de presença, se partirmos para uma análise da campanha como
um todo, vamos verificar a ocorrência dessa estratégia argumentativa, a qual vai se
preservar nas próximas peças.
4.1.2.4 – Peça 4 – Marília Gabriela e Gabriel
A quarta peça é uma continuação da terceira, Marília Gabriela, agora,
contracena com Gabriel, irmão de Júlia, a qual, assim como Cristiano, não participa
dessa peça.
130
Protocolo de análise de discurso – BECEL 4
Ficha Técnica
Produto Margarina Becel
Campanha Corrente do Coração – Ame o seu coração
Peça Marília Gabriela, Gabriel e Becel
Meio Televisão
Duração 30’
Período de exibição 12/04/2010 a 19/05/2010
Agência de publicidade NeoGamaBBH
Produtora do filme New Content
Direção Geral Criação Alexandre Gama
Direção Criação Márcio Ribas e Wilson Mateos
Protagonista Marília Gabriela
Expressão científica Ômega3 e Pró-Active
Texto (transcrição)
Marília Gabriela: A corrente do coração não para de crescer. Começou comigo, passou para o Cristiano meu filho e depois pra Julia, arquiteta do Cristiano. E hoje eu estou aqui com o Gabriel, irmão da Julia. Gabriel você não acha que se as pessoas pudessem ver o seu coração, elas cuidariam melhor dele? Gabriel: Olha Gabi, antes eu decidia o cardápio, ouvindo só o meu estômago. Agora eu procuro escutar também o meu coração. Marília Gabriela: Então já sei, sua margarina é? Gabriel: Becel é claro... Marília Gabriela: Clarooo... RS.... Brinde com o coração e afagos, sob sorrisos.
Descrição do cenário
- Ambiente, clean, branco, artista sentada num sofá, branco, segurando e afagando um coração de pelúcia vermelho, em alguns momentos contracena diretamente com ele, olhando e apontando como se estivesse de fato olhando seu coração (final da peça). Contracena com Gabriel irmão de Júlia, e influenciado por esta, Discutem novos padrões de vida. No final abraça o coração. Aparecem o site do produto, e em uma caixa para dar destaque o nome do produto e da campanha: Ame o seu coração.
Estrutura do texto
Texto inicia em terceira pessoa, mas passa para primeira pessoa com os depoimentos, linguagem mais coloquial, informal, frases curtas e diretas. Frases fáceis de ouvir e de entender, bem ao estilo contemporâneo do texto publicitário.
Conteúdo
Convencionalidade proposital, utilização de sentido denotativo em todo texto.
Estética
Mesma cenografia, exceção feita à roupa da apresentadora que passa a ser cinza. Permanece o coração e seu significado e elemento significante. O gestual da protagonista se mantém retraído um pouco, aparentemente por que o interlocutor não faz parte de seu círculo familiar, apesar de lhe parecer íntimo. Permanecem presentes carinhos como formas de interação com o coração.
Ethos, pathos e logos
O discurso é o publicitário, mas não podemos deixar de observar que há um tom (ethos) emotivo e amoroso em todo o discurso, com o qual se pretende interação com o público (pathos). O logos apresenta um discurso baseado na autoridade do orador, o discurso competente.
Tabela 4 - Protocolo de análise de discurso – BECEL peça 4
É a quarta peça da campanha e agora a intencionalidade do publicitário em
fazer com que a estrutura discursiva e argumentativa se repita está clara e
comprovada. As únicas mudanças ficam por conta dos argumentos utilizados dentro
dessa estrutura. Assim, o recurso da figura de presença se confirma, na análise
mais estrutural, se bem que apesar de mudarem os termos e argumentos presentes
no texto e na cena da enunciação eles ainda mantém coerência com o discurso
inicial em torno da saúde, bem-estar, beleza e culto ao corpo.
131
Os elementos fundamentais assim como o cenário estão mantidos intactos,
exceto pela roupa da protagonista da campanha, que agora é cinza.
Figura 8 - Marília Gabriela e Gabriel
Assim o contexto retórico é o mesmo, sem que haja nenhuma alteração,
bem como a argumentação lógica em torno dos benefícios para a vida, o coração
em especial, de atitudes saudáveis, incluindo a alimentação. Assim se para a
oradora, eivada de um ethos prévio que lhe confere a aura de fiadora, com seu
discurso de conselheira especializada (mais pela imagem e credibilidade que tem do
que pelo conhecimento do assunto), praticar ou fazer algum tipo de atividade física e
se alimentar corretamente a deixa bem, bonita, saudável (pela sua aparência), então
qualquer dos indivíduos (espíritos) do auditório, poderá seguir seus passos e obter
os mesmos resultados. Esse processo permitirá ao sujeito se identificar e se sentir
pertencente ao grupo.
Ainda dentro do contexto, as mesmas técnicas retóricas anteriores são
novamente utilizadas: lógica do verossímil, do razoável, retórica da autoridade
(discurso competente), estrutura do real, ligações de sucessão, causa e efeito e o
estabelecimento de contrato ou acordo entre orador e auditório. O discurso encrático
permanece presente, a argumentação de direção, em que um fim é alcançado com
um determinado meio, também fica inalterada.
Os lugares encontrados na invenção, são os mesmos da saúde, beleza e
do culto ao corpo. Assim como nas peças anteriores os atores têm um padrão de
corpo (magro, esbelto) e de beleza que se segue e proporciona um paradigma
dentro dos padrões hegemônicos atuais.
A persuasão continua a usar a lógica da argumentação dialética que
dissemos acima.
132
Na dispositio, o exórdio é exatamente o mesmo, no entanto na narração,
o texto se difere. Há a citação explícita da “corrente do coração”, o tom emotivo
divide a cena com um tom de entrevista, um pouco mais objetivo. A estratégia de
marcar o tempo da campanha e da mudança dos hábitos persiste, não com a
indicação do tempo, mas, agora, da quantidade de pessoas envolvidas no processo:
já são três os espíritos do auditório que aderiram à corrente, ou seja, o contrato de
comunicação funcionou para esses três indivíduos que se identificaram e passaram
a fazer parte do grupo social que estamos estudando.
O convidado é indagado diretamente em relação ao cuidado do coração e à
possibilidade de vê-lo como um fator de convencimento para melhor cuidar dele.
Após esse convite ele (Gabriel) faz a confirmação, com a frase: “Olha Gabi,
antes eu decidia o cardápio, ouvindo só o meu estômago. Agora eu procuro escutar
também o meu coração”. Após isso vem a peroração com a confirmação de que a
margarina é parte do processo de se integrar ao novo estilo de vida, preocupado
com a saúde o corpo e a beleza, com o seguinte diálogo extraído da transcrição:
Marília Gabriela diz: “Então já sei, sua margarina é?”
Gabriel responde: “Becel é claro...”
Marília Gabriela, novamente: “Clarooo... RS....”
É a confirmação de que o produto tem as características (implicitamente)
que podem contribuir para uma vida mais saudável.
O discurso é exatamente o mesmo que o anterior, assim a elocutio, não se
altera, com o texto passando da terceira pessoa para a primeira, primeiro de
dirigindo ao auditório e depois ao “entrevistado”, respectivamente. Esse processo
está ligado ao fato de que há o uso do testemunhal na segunda parte do texto. A
argumentação segue a figura retórica da analogia, bem eficiente na busca da
adesão dos espíritos uma vez que se funciona para a protagonista e para seu
convidado, e eu quero pertencer ao mesmo grupo que ela, vai funcionar pra mim.
A actio no caso desta peça se centra na frase final da protagonista: “Claro...”
e no seu gestual em torno dos corações das cenas finais, mostrando a felicidade em
ter alcançado seu objetivo e ter persuadido mais um participante da corrente:
133
Figura 9 - Tim, tim
4.1.2.4 – Peça 5 – Marília Gabriela e todos os convidados
A quinta peça é uma continuação da quarta e dá um tom de final e
despedida, agora Marília Gabriela contracena com todos os seus convidados.
Protocolo de análise de discurso – BECEL 5
Ficha Técnica
Produto Margarina Becel
Campanha Corrente do Coração – Ame o seu coração
Peça Marília Gabriela, Gabriel e Becel
Meio Televisão
Duração 60’
Período de exibição 12/04/2010 a 19/05/2010
Agência de publicidade NeoGamaBBH
Produtora do filme New Content
Direção Geral Criação Alexandre Gama
Direção Criação Márcio Ribas e Wilson Mateos
Protagonista Marília Gabriela
Expressão científica Ômega3 e Pró-Active
Texto (transcrição)
Marília Gabriela: Há cinco semanas eu comecei a usar Becel. Depois eu troquei o elevador pela escada. O que eu não podia imaginar é que essas pequenas mudanças, transformariam não só a minha vida, mas a do Cristiano, meu filho, trocou o carro pela bicicleta. Da Julia, arquiteta do Cristiano, que agora acorda mais cedo pra caminhar. E do Gabriel, irmão da Julia, que já não esquece o seu coração na hora de escolher o que comer... Quando a gente se pergunta não dá pra negar, se nós pudéssemos ver o nosso coração, a gente cuidaria melhor dele, não é verdade? É por isso que no café da manhã de todo mundo aqui, só tem Becel...rs... Agora é a sua vez acesse becel.com.br e inicie uma corrente pra cuidar melhor do coração de quem você ama. Comece a usar becel hoje, porque pequenas mudanças agora, podem fazer uma grande diferença. RS Vocês estão mais bonitos até.... Brindes de coração e afagos no mesmo.
Descrição do cenário
- Ambiente, clean, branco, artista sentada num sofá, branco, segurando e afagando um coração de pelúcia vermelho, em alguns momentos contracena diretamente com ele, olhando e apontando como se estivesse de fato olhando seu coração (final da peça). Contracena com todos os convidados das peças anteriores, agora contaminados por hábitos saudáveis de vida como a protagonista. No final abraça o coração. Aparecem o site do produto, e em uma caixa
134
para dar destaque o nome do produto e da campanha: Ame o seu coração.
Estrutura do texto
Texto inicia em primeira pessoa, e se alterna com a terceira pessoa, linguagem mais coloquial, informal, frases curtas e diretas. Frases fáceis de ouvir e de entender, bem ao estilo contemporâneo do texto publicitário.
Conteúdo
Convencionalidade proposital, utilização de sentido denotativo em todo texto.
Estética
Mesma cenografia, exceção feita à roupa da apresentadora é branca (análise que notamos no decorrer do tempo ser irrelevante). Permanece o coração e seu significado e elemento significante. O gestual da protagonista se mantém retraído um pouco. Permanecem presentes carinhos como formas de interação com o coração.
Ethos, pathos e logos
O discurso é o publicitário, mas não podemos deixar de observar que há um tom (ethos) emotivo e amoroso em todo o discurso, com o qual se pretende interação com o público (pathos). O logos apresenta um discurso baseado na autoridade do orador, o discurso competente.
Tabela 5 - Protocolo de análise de discurso – BECEL peça 5
Essa peça tem uma dinâmica diferente das anteriores, a começar com a
presença de mais de um convidado junto da protagonista, o tom de entrevista sai de
cena e o discurso é proferido inteiramente pela jornalista. Podemos ver todos os
participantes, na cena extraída do filme:
Figura 10 - Peça final da campanha - Todos juntos
Essa mudança na estrutura do filme não muda apenas ratifica todo o
processo utilizado da campanha, explicitando todas as figuras que encontramos nas
peças. O convite ao auditório (actio) agora vem explícito por exemplo.
A repetição em todas as peças da mesma estrutura discursiva e
argumentativa, o uso do ethos prévio da atriz principal como estratégia importante
na busca da adesão dos espectadores ao discurso caracteriza o uso de outra
estratégia superveniente, que estava latente e só depois de ver o conjunto da obra,
completa se pode ter certeza da sua utilização: o recurso da figura de presença
que caracteriza essa repetição, e como vimos anteriormente, muito usada na
publicidade. Apesar das mudanças no texto, nas palavras usadas, no fundo não há
grandes mudanças e na verdade a última peça mais longa funciona mesmo como
135
um capítulo final em uma estória. A coerência entre as peças da campanha se
confirma, os argumentos presentes no texto e na cena da enunciação mantém
coerência com o discurso inicial em torno da saúde, bem-estar, beleza e culto ao
corpo.
O contexto retórico sofre uma pequena mudança, pela alteração da
quantidade de participantes e a quebra do ritmo com o discurso sendo proferido de
maneira individual pela protagonista, não há mais a estratégia de “entrevista”.
Historicamente e estruturalmente os demais elementos se mantêm inalterados em
relação à peça inicial. A argumentação baseada na lógica da analogia é consagrada
como a grande maneira de construir o discurso.
A invenção se dá, ainda, como em todas as outras peças, no lugar da
beleza, da saúde e do culto ao corpo, explicitado na maneira de demonstrar que
hábitos regulares de saúde podem desencadear uma mudança na vida e na saúde
das pessoas.
O raciocínio dialético parte do princípio de que o auditório conheça o produto
e estes hábitos saudáveis, mas nesta última peça ele abre um novo patamar na
construção, trazendo para dentro do discurso os personagens que já foram
aplacados pelo estilo de vida baseado na saúde, beleza e culto ao corpo, mostrando
inclusive uma conexão entre estes e o estereótipo hegemônico (magro, belo,
saudável) para facilitar o processo de adesão dos demais espíritos que por ventura
ainda estejam em dúvida quanto ao contrato e sua adesão.
Assim o texto começa com o resgate da história de todos os participantes
das peças anteriores, e com a demonstração de seu novo estilo de vida e de como
estão fazendo isso acontecer. Cada qual com sua nova conduta ligada aos hábitos
saudáveis de vida. Mas a grande questão retórica central se mantém: “Se
pudéssemos ver nossos corações nós cuidaríamos melhor deles”. E a resposta que
está nos hábitos saudáveis de vida, como atividades físicas regulares, também está
no consumo da margarina, da qual a campanha se ocupou o tempo todo em ligar
aos hábitos saudáveis, construindo esse desfecho, com a resposta para essa
pergunta, ao enfatizar: “Por isso no café da manhã de todo mundo aqui, só tem
Becel”. Então fica claro que a lógica da argumentação é a seguinte: se você quer
cuidar do seu coração, você precisa ter hábitos saudáveis. Entre os hábitos
saudáveis estão a alimentação saudável (que inclui o produto da propaganda que
estamos analisando) e a atividade física regular, mesmo nos pequenos gestos você
136
vai encontrar a vida saudável que você procura, veja, nós encontramos, você
também pode (analogia). Essa construção ao longo da campanha, é o que se leva a
crer, é a responsável pela adesão dos espíritos daqueles indivíduos da
contemporaneidade que estão imbuídos de se sacrificarem para participar do grupo
social que se importa e cuida da sua saúde, corpo e beleza.
Na dispositio, o ethos (prévio) da protagonista ainda domina a cena, e é o
fator preponderante para que o auditório pare e a ouça, pela imagem que o auditório
tem construído dela como apresentadora e jornalista. É essa capacidade de
transferir ao discurso a imagem de si, dando à argumentação a mesma consistência
que sua reputação possui. Na narração o histórico e adesão dos três convidados
reforça essa lógica de pertencimento, mesmo que com pequenos gestos. Outro fator
importante é a marcação, novamente, do tempo que a protagonista já faz parte do
grupo, da corrente, de cinco semanas. E surge a lógica retórica para reforçar a
construção do processo argumentativo, ligando a saúde com os hábitos saudáveis e
com o produto que a campanha está divulgando. Esse momento da confirmação da
campanha, como um todo, se dá nesta quinta peça como se fosse o fechamento de
um ciclo quando a jornalista afirma que: “O que eu não podia imaginar é que essas
pequenas mudanças, transformariam não só a minha vida, mas a (...)” das outras
pessoas a volta dela também.
Esse momento da campanha serve também para propiciar dentro da própria
peça sua confirmação. É como se tivéssemos dois momentos: um em relação à
peça individualmente e outro em relação à campanha como um todo.
A peroração se faz observar nos atos finais da peça sob análise, tanto pelo
texto quanto pelo gestual da protagonista, quando ela diz: “É por isso que no café da
manhã de todo mundo aqui só tem Becel”. Ao mesmo tempo que diz isso (no final da
frase) ela faz um gesto com a mão como se estivesse demonstrando que todos
aderiram ao discurso, como vemos abaixo:
Figura 11 - Sequência - Todos aqui...
137
Esse gesto simboliza um fechamento de ciclo, um ponto final na escolha,
acertada, que todos fizeram de passar a cuidar mais do coração, com seus novos
hábitos de vida saudável.
A elocutio permanece a mesma o discurso vai da primeira a terceira
pessoa, variando, conforme se refere aos convidados. A interação com o coração, o
carinho como é segurado, tudo isso mostra que se pudéssemos vê-lo cuidaríamos
dele da mesma forma, com carinho e responsabilidade, então por que não começar
a fazê-lo, para tanto temos que nos adaptar com novos hábitos de vida saudáveis, já
que não é possível afagá-lo de fato. É mantida a linguagem mais informal, isso
aproxima a oradora de seu auditório. Esse processo todo está baseado na figura
retórica da analogia, mas o mais importante é a actio, que surge com força de
forma inequívoca nesta quinta peça, servindo a ela e à campanha como um todo. A
fala e o gestual da apresentadora deixa claro o convite a todo o auditório a
pertencer ao grupo social que inteligentemente está sendo chamado de “corrente
para o coração”, Segue o trecho retirado da transcrição:
Marília Gabriela convida a todos para participar da corrente do
coração dizendo na peça: “Agora é a sua vez acesse becel.com.br e
inicie uma corrente pra cuidar melhor do coração de quem você ama.
Comece a usar Becel hoje, porque pequenas mudanças agora,
podem fazer uma grande diferença”.
Essa fala é complementada com o seguinte gestual da protagonista:
- no primeiro quadro simboliza o pequeno gesto
- no segundo quadro simboliza a grande diferença
- no terceiro quadro o brinde comemorando a adesão dos convidados ao proposto
no convite que fecha a campanha.
Figura 12 - Gestual final: Pequeno, Grande, Comemoração
Uma última observação é importante, na última frase a jornalista diz: “Vocês
estão mais bonitos até”, essa referência, que só se faz presente no final da
campanha, ratifica o que estudamos nesse momento da contemporaneidade, em
138
que o narcisismo é muito importante, aproveitando para incluir o hedonismo ai,
porque parece que há um “que” de lúdico nesse discurso, pela maneira que todos
interagem durante a campanha com os corações, e podemos compartilhar essa
felicidade geral nessa última cena captada no filme, observemos a sequência da
última cena descrita acima:
Figura 13 - Brinde Final
Uma observação muito importante é sobre a capacidade do enunciador de
escolher o perfil dos convidados, os quais podem ser identificados como parte do
público alvo do produto, eles são brancos, de meia idade, bonitos e com aparência
saudável, bem sucedidos e ativos, enquanto a apresentadora tem um perfil um
pouco mais velho, é mãe, e tem uma reputação já construída, o que denota o papel
de conselheira, com seu discurso competente, autorizado. Isso facilita a adesão do
auditório pretendido, pois o mesmo se identifica e se reconhece no filme analisado.
O papel mais importante que vemos na campanha é o de fiador, enquanto
depoentes a respeito dos novos hábitos de vida, e dos benefícios que podem colher
com esses comportamentos simples para a saúde do coração.
4.1.3 – DanRegularis
O produto Activia é um iogurte, da empresa Danone, presente no mercado
desde 2004 e é considerado um alimento funcional, com estudos que comprovam
cientificamente. A expressão científica que ele utiliza para dar ciência da sua
propriedade funcional é “DanRegularis”, um bacilo que auxilia no trato intestinal, mas
que só faz efeito se for consumido regularmente e associado a atividades físicas
regulares, segundo a própria empresa (ACTIVIA, 2008, on line).
Segundo o fabricante o produto é capaz de auxiliar no funcionamento
intestinal, pois possui em sua composição o bacilo “DanRegularis” nome dado pela
Danone (e registrado como marca própria) para o probiótico “Bifidobacterium
animalis DN173010” o qual segundo a empresa:
139
Activia é o único produto no mundo inteiro que contém o exclusivo bacilo DanRegularis. A maioria das bactérias não sobrevive a passagem pelo estômago, não chegando vivas ao intestino em quantidade suficiente para produzir qualquer benefício, ao contrário do que acontece com o bacilo DanRegularis, que é capaz de sobreviver ao trato intestinal e chegar vivo ao intestino em grandes quantidades (ACTIVIA, 2008, on line).
Assim como o produto da análise anterior, neste caso, a empresa se apoia
nessas expressões científicas para diferenciar e “marcar” como funcional o seu
produto.
Diferentemente da Becel que tinha uma campanha estruturada com várias
peças concatenadas entre si, a Activia, não usa essa estratégia comunicacional,
mas sim peças individuais, com o intuito de comunicar sobre o produto, a marca ou
uma promoção em especial.
4.1.3.1 – Peça 1 – Bexiga Desafio 2010 – Patrícia Travassos
A primeira peça que analisaremos refere-se a um desafio que o fabricante
lançou aos consumidores, para que usassem o produto, mas esse uso deveria
obedecer a uma condição específica, a qual é ligada ao uso prolongado do produto,
por pelo menos quinze dias, ou seja, consumir quinze unidades do iogurte,
diariamente, e caso não houvesse nenhum tipo de benefício em relação ao
funcionamento intestinal o consumidor seria ressarcido, desde que comprovasse a
aquisição e consumo, mediante apresentação de tampa ou rótulo da embalagem.
Protocolo de análise de discurso – ACTIVIA 1
Ficha Técnica
Produto Activia
Campanha Desafio – 2010
Peça Desafio 2010 – Patrícia Travassos
Meio Televisão
Duração 30’
Período de exibição 1º Semestre 2010
Agência de publicidade Y & R Propaganda Ltda
Produtora do filme Bossa Nova Films
Direção Geral Criação
Direção Criação
Protagonista Patrícia Travassos
Expressão científica DanRegularis
Texto (transcrição)
Patrícia Travassos: - Sabia que uma em cada duas mulheres se sente inchada quando o intestino sai do ritmo? Olha só: Caixa de texto durante a fala apresenta o seguinte texto: “Pequisa realizada pelo Instituto INS com 1002 mulheres entre 18 e 70 anos das classes ABCD das regiões NE SE e SUL Figurante 1: - Sinto a barriga meio inchada menina é um desconforto, Nossa Senhora! Figurante 2:
140
- Intestino fora do ritmo, eu me sinto inchada, roupa nenhuma me cai bem! Patrícia Travassos: - Activia pode ajudar... e de um jeito bem gostoso... Caixa de texto durante a fala apresenta o seguinte texto: “Seu consumo deve estar associado a uma alimentação equilibrada e a hábitos de vida saudáveis. Narração em off: Patrícia Travassos: “Ele contém DanRegulares que ajuda a manter o intestino no ritmo.” Patrícia Travassos: _ O que reduz a sensação de inchaço. Caixa de texto durante a fala apresenta o seguinte texto: “Contribui para o equilíbrio da flora intestinal.” Patrícia Travassos: - Aceite o desafio. Tome Activia e tchau sensação de inchaço. Narração em off: Patrícia Travassos: “Se não funcionar a Danone devolve o seu dinheiro.” Caixa de texto durante o off apresenta o seguinte texto: “Acesse o regulamento no site: www.activiadanone.com.br”
Descrição do cenário
- O cenário alterna entre uma sala vazia, enquanto a protagonista fala, passa para uma oficina de costura com a primeira figurante, na sequência um escritório de arquitetura com a segunda figurante. Esses dois últimos apresentam ambientes de trabalho com todas as suas características, inclusive outras pessoas no fundo, como se fosse um depoimento tomado de modo natural. No início da peça a protagonista segura uma bexiga verde e quando fala em inchaço a posiciona em frente de sua barriga, quando no final ela dá adeus ao inchaço, solta a bexiga. Durante o filme animações sugerem o funcionamento do intestino e do produto. Ao final da peça aparece em destaque o produto, com um fundo repleto de produtos e frutas frescas em primeiro plano. Durante toda a peça duas tarjas verdes ocupam o alto e a base da tela, sendo que o logo do produto fica exposto o tempo todo no alto.
Estrutura do texto
O Texto tem três formas de expressão na peça: - Falas dos personagens - Locuções em “off” - Texto escrito na faixa verde na base. As falas se dividem em dois tipos bem específicos: - A protagonista falando sobre o produto e dando informações spbre o mesmo. Usa em vários momentos a forma imperativa nos verbos. - As figurantes dando testemunhais em primeira pessoa. A linguagem é bem coloquial, informal, frases curtas e diretas. Frases fáceis de ouvir e de entender, bem ao estilo contemporâneo do texto publicitário.
Conteúdo
Convencionalidade proposital, utilização de sentido denotativo em todo texto. Sentido conotativo nas cenas da enunciação com a bexiga significando intestino ou barriga inchados.
Estética
Predomínio do verde, nas molduras inferior e superior, que são as cores dos produtos. Além dos textos escritos com informações importantes, o gestual da protagonista e suas expressões faciais enquanto degusta o produto tem grande significado. Outro elemento cheio de significado é a bexiga que a protagonista segura diante do seu ventre, simbolizando o inchaço.O gestual das figurantes também é importante pois sempre faz com que as mãos se dirijam a área do baixo ventre, com movimentos circulares. Outra observação importante é a ênfase no sabor do produto.
Ethos, pathos e logos
O discurso é o publicitário. Há um tom (ethos) mais racional, que apela para a razão dos consumidores em todo o discurso, com o qual se pretende interação com o público (pathos). O logos apresenta um discurso baseado na autoridade do orador, o discurso competente.
Tabela 6 - Protocolo de análise de discurso - ACTIVIA peça 1
A primeira coisa que chama a atenção no início da peça é o fato da
protagonista estar segurando um balão de gás, podemos ver isso na sequência
abaixo:
141
Figura 14 - Bexiga em Movimento
Podemos notar a entrada da protagonista com o balão de gás, o movimento
e o posicionamento diante do ventre, bem como a inserção dos textos com
estatísticas e fonte das pesquisas que dão embasamento às estatísticas. Outra
observação importante a fazer é sobre o cenário, escuro, apenas com uma janela
para ventilação.
A protagonista é a atriz e apresentadora (de rádio e TV) Patrícia Travassos,
com um currículo que envolve diversas outras atividades como escritora, roteirista e
diretora. Mais recentemente ela se envolveu num projeto ligado a saúde e bem estar
em um canal de TV fechado, explorando esse lado intelectual da mesma. Além do
lado culto a atriz é vegetariana e sempre esteve ligada as questões da saúde e
beleza feminina durante sua carreira.
Esses atributos conferem à protagonista um ethos pré-discursivo em relação
ao público ao qual se destina a peça publicitária e, mais uma vez, estamos diante da
construção de um discurso baseado na fiança que o orador empresta ao discurso, é
o depoimento do consultor especializado.
Como na campanha anterior o contexto retórico permanece o da
contemporaneidade, as figuras do individualismo, narcisismo e hedonismo
continuam presentes, mesmo por que o público alvo (auditório) é o mesmo grupo
social que está preocupado com sua saúde, beleza e culto ao corpo. A questão
retórica principal ligada a manutenção da saúde, bem estar físico, beleza e culto ao
corpo permanece como plano de fundo para o processo de persuasão que o
publicitário pretende desenvolver ao longo do filme.
Se o ethos publicitário é inquestionável, o pathos nesse filme está apoiado
nas questões ligadas à razão, a busca da persuasão é pala racionalidade em torno
dos benefícios, e não pela emoção. Assim a apresentadora durante a peça traz
diversos argumentos e construções textuais com o intuito de demonstrar que os
benefícios que o produto em questão tem a oferecer são muito interessantes para a
142
saúde e bem estar dos espectadores, mas sem deixar de lado, nunca outros hábitos
saudáveis de vida, implicitamente falando em alimentação em geral e em atividades
físicas.
O uso de estatísticas é uma forma de corroborar essa afirmação da
racionalidade presente na peça publicitária, é uma ferramenta pouco questionável
quando a fonte é confiável. Além dessa construção racional de argumentos com o
uso de elementos textuais, há elementos gestuais que são muito importantes pela
sua simbologia, como a soltura do balão ao fim da peça, simbolizando, após o
consumo (que também aparece no vídeo), o alívio que o produto pode propiciar.
A argumentação lógica de que se faz bem para uma oradora com um ethos
prévio, como o que a protagonista possui, deverá fazer bem para o espectador
(auditório), o qual passará a se sentir tão bem quanto a mesma e quanto às
figurantes aparentaram estar é uma estrutura bem definida no filme.
Figura 15 - Figurantes e seus problemas de inchaço
O uso desta protagonista é ligado ao seu ethos pré-discursivo,
imprescindível para que haja a aproximação entre a oradora e o auditório, bem
definido, que por pertencer ao grupo pré-estabelecido conhece as qualidades da
oradora, proporcionando uma facilidade de ligação dos espíritos espectadores ao
discurso, é o uso do conceito retórico de orador competente, pelo que ele representa
e pela sua imagem, a qual será emprestada para o discurso, validando o mesmo,
com a projeção sobre ele do seu ethos prévio, sendo assim mais uma forma de
atuar dentro da persuasão publicitária.
Além da oradora ter sido escolhida pelos motivos acima expostos, as atrizes
que dão seu testemunho, também são escolhidas com base no público alvo do
produto, são maduras, trabalhadoras (ativas), bonitas (e em ótima forma), além de
que uma é branca e outra é negra.
143
Conhecer o público alvo (auditório) é uma obrigação do publicitário e na
retórica vemos que esse processo é indissociável ao tipo de estrutura argumentativa
e de argumentos que vamos escolher para processar a persuasão. O discurso não
existe sozinho, é dirigido à doxa, no nosso caso o publicitário localiza dentro da
contemporaneidade o grupo social que se identifica com questões e preocupações
em torno da saúde, do corpo e da beleza para discursar para ele. Essa propaganda
tem todos esses elementos presentes e com isso se dirige exatamente para esse
grupo, com o uso do discurso autorizado da protagonista.
Esse auditório que o orador procura persuadir é universal em torno das
questões acima descritas, ele é quase homogêneo. Essa homogeneidade encontra
no conceito de doxa respaldo para que o publicitário desenvolva sua estrutura
argumentativa buscando assim a adesão, ou o acordo, já que esse grupo escolhido
como público alvo aceita antecipadamente as premissas apresentadas na peça.
Está presente a estrutura do real, com seus argumentos de pesquisa para
mostrar que metade dos espectadores “precisam” do produto, numa ligação de
sucessão, apoiados no uso proposto no desafio dos quinze dias do iogurte, cada
etapa vencida no processo, mostrados no enunciado, leva a uma direção bem
definida: o alívio do inchaço, a barriguinha “sarada”, caber dentro de qualquer roupa
e o funcionamento regular do intestino. Toda essa argumentação está muito bem
assentada no auxílio do argumento da autoridade da oradora que tem um discurso
competente (fiadora).
Outra característica importante encontrada é a da ligação de coexistência,
onde os símbolos (balão de gás) e os simbolizados (intestinos) estão ligados e o
primeiro por si só representa o segundo e sua sensação de alívio com o uso do
produto.
Usando os passos da análise retórica proposta por Ferreira (2010) temos na
fase da invenção a argumentação baseada no lugar da saúde, até pelo tipo de
produto centro da peça (funcional), ao qual podemos somar os lugares da beleza e
do culto ao corpo. A oradora é um exemplo desse tipo de lugar por toda a sua
história e com isso transfere para o discurso e para a argumentação (fiança) parte
do seu ethos prévio.
Como o público alvo (doxa) escolhido pelo publicitário é bem definido a
argumentação é presumidamente aceita pelo auditório e o orador apela para a razão
(pathos). O uso e divulgação das propriedades funcionais do produto, aliados ao seu
144
uso constante e aos hábitos saudáveis de vida (todos informados no filme), levam a
crer que alcançando um estado saudável nos intestinos, em contrapartida
alcançarão um corpo bonito (testemunho sobre “caber novamente nas roupas”) e
ficarão com isso bonitos. Essa estrutura argumentativa busca levar o auditório, que é
do tipo espectador a comungar da mesma opinião e da mesma aparência da
oradora, por identificação ou familiaridade.
A dispositio se baseia na fiança da oradora (seu ethos prévio) usado pelo
publicitário para facilitar o processo de identidade e pertencimento. Na narração a
oradora mostra os benefícios, apoiada pelos dois testemunhais, dizendo que o
produto pode ajudar diminuindo a sensação de inchaço com o auxílio ao bom
funcionamento dos intestinos, além disso, o publicitário insere uma imagem que
ilustra o funcionamento do produto nos intestinos, a qual, apesar do gosto duvidoso,
sem sombra de dúvidas é muito elucidativa e chama a atenção, bem ao gosto dos
indivíduos na contemporaneidade, com a força da imagem em relação ao texto,
como já discutimos anteriormente.
Figura 16 - Intestinos e Activia
A peroração está bem clara e definida, com a oradora usando de verbo no
imperativo para demover o público a aderir ao seu discurso ao dizer: “Aceite o
desafio, tome Activia e diga tchau ao inchaço”.
A elocutio está baseada nesse uso dos verbos no imperativo, no discurso
direto, nos testemunhais em primeira pessoa, no gestual (especialmente ao
consumir o produto e em relação ao balão). A linguagem é bem informal, a figura
retórica da analogia está presente, entre o uso do produto e todo o bem estar que o
145
mesmo pode propiciar, ligando esse bem estar às questões imbricadas com a
beleza, saúde e culto ao corpo.
Figura 17 - Degustando Activia
O fato da protagonista pertencer ao grupo é um aliado na adesão dos
espíritos do auditório à argumentação e ao processo persuasivo, se ela consome o
produto, com toda sua autoridade sobre saúde e bem estar e está em uma forma
invejável, o auditório terá o mesmo efeito.
A actio é a comprovação de que o produto é bom, pois além de toda a
argumentação montada, o fabricante ainda se coloca a disposição para ressarcir o
consumidor se o mesmo usar o produto como recomendado, culminado com a frase:
“Se não funcionar a Danone devolve o seu dinheiro”, parte da promoção que está
por trás da campanha publicitária. Além disso, o gestual de soltar o balão de gás,
também é ponto culminante, pois tem uma conotação de solução, de alívio, e
acontece bem após o consumo do produto na peça analisada.
Figura 18 - Adeus balão
Essa peça do produto é mais um exemplo de como a retórica é usada pela
publicidade e da importância, além do texto, do conhecimento do contexto e das
formas não textuais para a persuasão. Elementos como gestos, cenário, ethos
prévio e outras componentes da cena da enunciação são capazes de melhorar a
argumentação e o processo de persuasão, aliados ao discurso competente e de
146
conselheira (fiadoras) da oradora e das testemunhas convocadas a depor sobre o
produto.
A lógica envolvida nessa peça leva a acreditar que alimentos funcionais,
podem de fato trazer benefícios aos consumidores (faz bem aos personagens fará
bem ao consumidor), desde que consumidos com regularidade, outra característica
marcante é a de que os hábitos saudáveis de alimentação por si só não são
suficientes para levar o consumidor a seus objetivos, mas devem sempre vir
acompanhados de atividades físicas regulares.
147
Considerações Finais
O presente trabalho buscou uma forma de melhor entender e contextualizar
a comunicação de produtos que se apoiam em expressões científicas para auxiliar
no processo persuasivo, como os alimentos funcionais, usando a análise de
discurso, especialmente a retórica, no contexto do momento em que vivemos: a
contemporaneidade.
Pelos estudos apresentados foi possível construir um perfil do consumidor
contemporâneo, o qual sofre de dilemas moldados aos nossos tempos, em que tudo
é impermanente. Essa impermanência gera no sujeito uma aflição pois o mesmo
acaba por se render a uma vida em que a velocidade é muito mais do que ele
poderia suportar. Tudo para o indivíduo dessa contemporaneidade é efêmero, tem
curta duração, inclusive os seus prazeres. Isso torna a satisfação dos prazeres um
motocontínuo, sem fim, em que um desejo é satisfeito e outro já se avizinha. Por
muitas vezes essa impermanência é impulsionada também pelos produtores e sua
capacidade de constante renovação de portfólio de produtos e serviços. Essa
renovação tão rápida acaba gerando uma tensão maior nos desejos, anseios e
necessidades dos consumidores, os quais por vezes substituem um desejo por
outro, sem, nem mesmo, ter satisfeito o desejo anterior, ou ainda, como afirmamos
logo acima, o desejo recém satisfeito, mesmo porque já foi satisfeito mesmo, dá
lugar a um novo, causado pelo lançamento de outro produto mais atual do que o que
acabou de ser adquirido.
Esse indivíduo, com todas essas angústias, aliadas à conturbada e
acelerada demanda da vida contemporânea, em que é compelido a realizar diversas
tarefas concomitantemente, é afastado do convívio social, pela pura falta de tempo,
e isso o isola tornando-o solitário e individualista.
Esse individualismo se recrudesce na medida em que as pessoas se isolam,
também pelas questões de segurança, preferindo ficar recolhidas a ambientes
fechados, os quais acreditam ser mais seguros.
A quantidade de produtos e serviços disponíveis acaba por incentivar esse
comportamento, proporcionando ao indivíduo um nível de conforto que permite
substituir o convívio social pela solidão. Essa solidão leva o indivíduo a raciocinar
em torno, apenas, de si mesmo, tornando-o muito preocupado consigo, deixando de
lado a coletividade. Esse comportamento vai se refletir no aparecimento do
148
narcisismo, como forma de compensar a solidão e de se ver e se sentir bem consigo
mesmo. A necessidade de se sentir bem, de se satisfazer, da busca do prazer,
encontra no hedonismo outra característica marcante do indivíduo dessa
contemporaneidade em que vivemos.
Esse narcisismo gera então uma preocupação, exagerada, talvez, com o
visual, com o exterior dos indivíduos, fazendo com que fatores como a beleza, o
culto ao corpo e a saúde, sejam uma preocupação premente nos dias atuais.
Essa preocupação acabou por propiciar a criação, mesmo que
desestruturada, informal, de um grupo social bem distinto na sociedade, ligado à
beleza, culto ao corpo, busca e manutenção da saúde. Esse grupo se destaca na
sociedade e as empresas, e consequentemente os publicitários, passam a
“enxergar” esse grupo com potencial de consumo, para tanto lançam produtos
específicos e atraem os participantes do agrupamento com a propaganda desses
produtos, usando atores e personalidades que reflitam o perfil do grupo de
consumidores, aos quais se destinam os produtos.
Além dos pertencentes ao grupo, outros indivíduos têm acesso a essa
comunicação, em que os estereótipos das pessoas ligadas à beleza, culto ao corpo
e saúde predominam e passam a desejar se enquadrar nesse grupo. Esse processo
se retroalimenta de forma a criar um volume cada vez maior de indivíduos que se
identificam com o padrão “imposto”, num processo de hegemonização, pelos meios
de comunicação. Apesar da capacidade de escolha do consumidor esse padrão
hegemônico se alastra e hoje em dia é uma preocupação de grande parte da
população, especialmente no Brasil, com seu clima e sua geografia propícios à
exibição dos corpos das pessoas.
Mais e mais produtos vão surgindo, e no ramo alimentício, alguns se
destacam por conter substâncias que auxiliam no processo de busca da saúde e em
consequência disso da beleza e de um corpo saudável. Esses produtos são
denominados produtos funcionais e se colocam como uma das ferramentas para o
indivíduo se tornar mais belo, com um corpo mais são e com uma saúde melhor.
Os produtos funcionais se apresentam, na sua grande maioria, baseados em
substâncias que são reconhecidas e disseminadas com seus nomes científicos, ou
ainda, são criadas expressões, para designar esses produtos com um fundo
científico e isso passa a ser utilizado nos processos midiáticos de divulgação da
funcionalidade dos produtos.
149
Os consumidores entendem que os produtos são propícios para esse fim, e
apoiados em campanhas publicitárias passam então a consumir esses produtos.
Como pudemos observar, dentro desse contexto social da
contemporaneidade, a publicidade desses produtos é uma realidade que merece ser
observada.
Assim como o sujeito, o público alvo, está inserido no contexto da
contemporaneidade, a publicidade também está imersa nesse momento refletindo e
refratando esse contexto e o comportamento do ser humano contemporâneo. O
enunciador se apropria dessa realidade contemporânea em que está inserido e a
retrata nas campanhas publicitárias, sendo assim um fomentador do processo de
construção da cultura do consumo e dos produtos contemporâneos.
Em nosso trabalho essa observação demonstrou que há um discurso
especializado, publicitário, que tem o objetivo de persuadir o consumidor a adquirir o
produto, por conta das suas características funcionais. Essas características
funcionais dos produtos, nas mensagens publicitárias ficam “amarradas” ao uso das
expressões científicas que os produtos ostentam, como substâncias que são
capazes de propiciar aos indivíduos da contemporaneidade os prazeres oriundos da
obtenção da saúde, da beleza e de um corpo bonito.
A amarração das expressões científicas ao processo de construção da
argumentação publicitária nas peças analisadas mostra que a funcionalidade se
explicita pela indicação do bom (melhor) funcionamento do coração e do intestino.
Esse processo faz parte do procedimento da gestão de si, da própria existência dos
sujeitos que são o público alvo das campanhas publicitárias.
Esse processo de se identificar, de pertencimento, que o indivíduo acaba por
projetar, gera nele o desejo de consumir os produtos que vão lhe dar suporte para
atingir esse objetivo. O atingimento desse objetivo pode se dar, até, pelo simples
fato do consumidor adquirir o produto e com isso se sentir pertencente ao seu grupo
social de desejo, mesmo que apenas pelo fato de consumir os mesmos produtos ou
serviços, ou ainda frequentar os mesmo locais que os integrantes do grupo social
determinado.
Esse processo de pertencimento é para o consumidor uma maneira de
realizar seu desejo, dentro da efemeridade contemporânea. Ele pode pertencer
mesmo sem nunca ter se relacionado efetivamente com o grupo, mas apenas por ter
inserido em sua vida os mesmos hábitos de consumo. Esse comportamento não só
150
causa no indivíduo essa sensação de pertencimento, como causa nos indivíduos
que o cercam a impressão que o mesmo pertence a esse agrupamento, pelo
reconhecimento de seus hábitos e de seu estereótipo como adequado e em
consonância com aquele apresentado pelos indivíduos que são identificados como
ligados ao culto da saúde, beleza e corpo são.
As campanhas analisadas deixam claro que se apropriam dessas
circunstâncias do mundo contemporâneo, utilizando para tanto figuras conhecidas
na mídia e com uma reputação bem construída (ethos prévio), para que transfiram
junto com as expressões científicas, ao produto divulgado um caráter de maior
credibilidade. Além disso, o cenário e a aparência dos protagonistas (mais o ethos
prévio) constroem uma imagem para o consumidor de sucesso na busca pela
beleza, saúde e o corpo são, essa estratégia argumentativa está baseada na figura
do fiador (conselheiro, orador competente) que desloca a imagem de sucesso de si
para o produto, transferindo para este a credibilidade daquele. As duas campanhas
usam essa estrutura retórica, e além do ethos prévio do orador principal
(protagonistas), trazem para a mensagem publicitária a figura dos testemunhos de
outros personagens que acabam por prestar fiança e confirmar o discurso do orador.
A imagem dessas testemunhas está, também, ligada a imagem que se tem do
público alvo ,estudado e projetado pelo publicitário, para facilitar a adesão dos
sujeitos ao discurso em busca da persuasão.
Os textos evidenciam, ou as características, diretamente, dos produtos e de
suas substâncias funcionais (como o apoio das expressões científicas), ou mostram
os resultados que podem se obtidos com esses produtos, declarando implicitamente
os benefícios funcionais dos produtos. Há ai no intertexto, a intencionalidade de
persuadir, de fazer com que o público se identifique com a mensagem o que é feito
pelo nível e estrutura da argumentação baseada na retórica moderna.
Complementando esse evidenciamento do funcionamento, da
funcionalidade, dos produtos, um deles, inclusive, propõe a devolução do dinheiro
dispendido na aquisição do produto se o mesmo não surtir o efeito desejado pelo
consumidor, prometido pelo enunciador, mas só nos casos em que o consumo
obedecer a determinadas quantidades e procedimentos de uso do produto.
Essa argumentação, extremamente persuasiva, conduz o indivíduo ao
processo de identidade e contemporização com as cenas da enunciação, com o
texto, e o contexto apresentados, a retórica conduz esse auditório especializado
151
pelos caminhos do convencimento, encontrando eco na sociedade que responde
com o consumo dos produtos.
Esse processo, no entanto, não é fruto, ou invenção da publicidade e dos
produtores. É, sim, um processo que como acabamos de discutir, nasce de uma
necessidade da própria sociedade, que só é identificada e ampliada pela
propaganda no intuito de aumentar as vendas de seus clientes. A necessidade, na
verdade já está lá, é latente. A própria vida contemporânea, o narcisismo, o
hedonismo, a impermanência, a globalização e os processos hegemônicos que os
próprios grupos sociais exercem são os fatores que impulsionam esse
comportamento que a publicidade se apropria para melhor persuadir.
Assim as campanhas apresentadas e estudadas, com sua estrutura
argumentativa, retórica e discurso especializado, refletem o mundo contemporâneo
e nele se inspira no afã de conquistar mais clientes. Utilizam de estéticas, textos,
palavras, diálogos, que permitam ao consumidor se ver “dentro” da propaganda, a
figura retórica da analogia, traz o auditório para dentro do discurso e aproximam o
orador de seus espectadores, criando uma empatia que vai além de processo de
simples comunicação e demonstram claramente a intencionalidade de persuadir.
As peças publicitárias da Becel, inclusive, com uma campanha bem
estruturada, chegam a convidar, diretamente, o consumidor a participar dessa
corrente do bem, que pode ser identificada como um grupo social bem definido de
pessoas que se preocupam com o bem estar, e indiretamente mostram que para
participar basta que se tenha hábitos saudáveis simples, como subir escadas, andar
no parque, andar de bicicleta, escolher melhor a comida, e é claro, consumir o
produto rico em substâncias funcionais. Fazendo isso, tendo esses pequenos gestos
saudáveis no dia a dia, o consumidor será como os personagens da peça
publicitária. O consumidor, ávido por meios rápidos (impermanência da
contemporaneidade), vai acabar se identificando com a campanha e será
persuadido a participar da “corrente do coração”, adquirindo o produto.
A campanha da Activia, que convoca o consumidor para usar o produto por
um prazo de quinze dias usa a mesma estrutura persuasiva, apesar de estar
baseada na racionalidade e nas características funcionais (usando diretamente as
expressões científicas) para convencer e persuadir ao consumo, também utiliza
estratégias de promoções mercadológicas, mas ligados ao processo persuasivo,
pois demonstra que o produtor acredita no seu produto, já que possibilita a
152
devolução das quantias pagas aos consumidores que se dispuserem a participar do
desafio, e assim podendo comprovar as características funcionais dos produtos.
Essa estratégia retórica do argumento de direção é bem convincente.
Ambas as campanhas lançam mão de uma estratégia de ligações
coexistentes ao utilizar símbolos (coração de pelúcia e bexiga de gás verde) como
maneiras de mostrar os órgãos simbolizados (coração e intestinos respectivamente)
para exemplificar e se “relacionar” simbolicamente com eles.
O processo argumentativo em ambos os caos se baseia: na estrutura do real
e nas ligações de sucessão, com o argumento da autoridade, o fiador, emprestando
ao discurso sua reputação e afetando o auditório com seu ethos prévio em direção à
identificação, levando os indivíduos a sentir o pertencimento em relação ao grupo
que está sendo representado pela figura dos protagonistas.
O único senão que a análise encontrou dentro de ambas as campanhas é o
fato de que os produtos, na contramão da contemporaneidade e da sua imediatez,
só fazem efeitos no longo prazo e se forem acompanhados de uma mudança nos
hábitos de vida, para um modelo chamado de atitude saudáveis, que incluem além
do consumo dos produtos cuja publicidade está sendo analisada, atividades físicas
regulares e alimentação saudável (como um todo). Cada uma das campanhas trata
esse fato de uma forma, na campanha da Becel, os hábitos saudáveis ficam
evidentes e a estes se soma o consumo do produto, ambos de maneira regular, mas
para isso apelando para o emocional; na campanha da Activia, o tratamento é
diverso, o produto é inserido no contexto dos hábitos saudáveis, mas pela porta da
promoção comercial, pela razão e pela experimentação, dentro dos padrões
mínimos pré-estabelecidos de consumo para se observar um benefício que é
propagado, mas não deixa de alertar sobre os hábitos saudáveis, a diferença que
isso aparece em texto, com menos destaque que o produto anterior. Uma das
possibilidades para esse tratamento, diferente entre ambos é o posicionamento
deles, o primeiro é claramente um produto ligado à saúde do coração, desde a
concepção de seu nome, portanto não pode se distanciar de hábitos saudáveis, o
mesmo não acontece com o segundo produto, de uso mais racional sem ligações
emocionais, inclusive pelos gráficos com a alusão ao aparelho digestivo (intestinos).
Dentro da proposição inicial, então, a publicidade se beneficia dos aspectos
funcionais, das expressões científicas que cada produto carrega em seu rótulo e em
sua comunicação, mas sem abrir mão de outros recursos de persuasão pela
153
argumentação retórica, especialmente a argumentação da autoridade, ou o discurso
autorizado da análise de discurso francesa, o fiador e o conselheiro especializado,
esses dois elementos em conjunto são a base da argumentação persuasiva em
torno da comunicação dos dois produtos.
Assim as campanhas são feitas e estrategicamente pensadas no intuito de
aproveitar as características do ser humano contemporâneo e suas necessidades, a
publicidade está inserida no contexto social contemporâneo e com ele interage, seu
discurso reflete e refrata o contexto (retórico) atual. Os profissionais de marketing e
comunicação estudam grupos sociais bem definidos (público alvo), estruturam as
cenas da enunciação, o texto e se apropriam do contexto, para, explorando as
características e benefícios funcionais dos produtos, persuadir os consumidores no
sentido de adquirir os produtos que estão propagando nas mais diversas mídias.
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