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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão Ana Paula Berberian Alexandre Bergamo 2009 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br

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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita:Letramento e Inclusão

Ana Paula BerberianAlexandre Bergamo

2009

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IESDE Brasil S.A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br

Todos os direitos reservados.

© 2009 – IESDE Brasil S.A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais.

Capa: IESDE Brasil S.A.

Imagem da capa: Jupiter Images/DPI Images

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

B427p

Berberian, Ana PaulaPsicogênese das linguagens oral e escrita : letramento e inclusão / Ana Paula

Berberian, Alexandre Bergamo. – Curitiba, PR : IESDE Brasil, 2009.212 p.

Inclui bibliografiaISBN 978-85-387-0468-3

1. Alfabetização. 2. Linguagem e línguas – Estudo e ensino. 3. Escrita. 4. Leitura. I. Bergamo, Alexandre, 1968–. II. Inteligência Educacional e Sistemas de Ensino. III. Título.

09-3479. CDD: 372.4CDU: 37.014.22

15.07.09 20.07.09 013833

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Pós-Doutorado em Letras pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Doutora em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Mestre em Distúrbios da Comunicação pela PUC-SP.

Ana Paula Berberian

Mestre e Doutor em Sociologia, área de concentração Sociologia da Cultura, pela Universidade de São Paulo (USP). Graduado em Ciências Sociais, com ênfase em Antropologia, pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professor As-sistente Doutor da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho onde atua também junto ao Programa de Pós-Graduação.

Alexandre Bergamo

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Sumário

Concepções de linguagem ................................................... 11

O que é a linguagem? ............................................................................................................. 11

Teorias de aquisição da linguagem ................................... 25

Como se adquire a linguagem? ........................................................................................... 25

Linguagem, cultura e poder ................................................. 37

De que forma dimensões culturais e políticas constituem a linguagem? ............ 37

Aquisição da linguagem oral ............................................... 57

Como a criança adquire a linguagem oral? ..................................................................... 57

O papel das narrativas no processo de aquisição da linguagem ............................. 60

Linguagem e pensamento ..................................................................................................... 61

Problemas relativos à aquisição da linguagem oral .... 71

Como lidar com as regularidades e particularidades que caracterizam crianças que encontram dificuldades no desenvolvimento da linguagem oral? ......71

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Aquisição da linguagem escrita: autoria e reescrita .... 91

Como experiências de leitura e escrita vivenciadas pelo adulto e pela criança interferem no processo de aquisição da linguagem escrita por parte da criança? ...91

Como a criança se constitui autora de suas produções de leitura escrita? ......... 95

Aquisição da linguagem escrita: as relações entre a oralidade e a escrita .........................107

Quais são as relações estabelecidas entre a oralidade e a escrita e como essas relações interferem no processo de aquisição da leitura e escrita? .........107

Como é possível apreender as singularidades presentes nos processos de aquisição da escrita? .........................................................................................111

Problemas relativos à aquisição da linguagem escrita: aspectos formais ...............................123

Como são constituídos os problemas de escrita que incidem sobre seus aspectos formais? .............................................................................................123

Por que grande parte da população brasileira tem uma relação negativa com a leitura e a escrita? ...................................................................................128

Como contribuir para que a leitura e a escrita façam parte da vida das pessoas? ..................................................................................................131

Problemas relativos à aquisição da linguagem escrita: aspectos semânticos e estruturais ...................................139

Como são constituídos os problemas de escrita e leitura relativos aos aspectos semânticos e estruturais? .................................................................................139

Como lidar com as dificuldades de interpretação na leitura apresentadas pelas crianças? .............................................................................................141

Como são constituídos os problemas de escrita relativos aos aspectos semânticos e estruturais? .........................................................................145

Como lidar com as dificuldades de elaboração textual apresentadas pelas crianças? .............................................................................................146

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O normal e o patológico na linguagem .........................155

Como definir o que é normal e o que é patológico quando tratamos de linguagem oral e escrita? ..........................................................155

Linguagem e fracasso escolar ............................................167

De que forma questões relativas ao domínio da linguagem interferem no fracasso escolar? ........................................................................................167

De que forma podemos atuar para que todos tenham acesso e domínio das linguagens oral e escrita? ......................................................................171

A linguagem e o ensino no processo de inclusão e de exclusão social .......................................183

De que forma a linguagem age na promoção tanto da inclusão quanto da exclusão social? .................................................................................................183

Forma e linguagem no contexto escolar ........................................................................185

Gabarito .....................................................................................197

Referências ................................................................................205

Anotações .................................................................................211

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Apresentação

A presente disciplina tem por objetivo aprofundar conhecimentos acerca de aspectos relacionados à aquisição da linguagem oral e escrita, bem como, de possíveis problemas que possam ocorrer ao longo desses processos. Para tanto, organizamos nossas aulas a partir das seguintes temáticas:

as principais concepções de linguagem; �

modelos teóricos que explicam os processos de aquisição de lin- �guagem oral e escrita;

possíveis problemas que ocorrem na aquisição da linguagem oral �e escrita;

as relações entre linguagem e fracasso escolar. �

Visando o direcionamento de nossas discussões em torno dessas te-máticas, laboramos para cada aula questões norteadoras. Além de tais questões e dos conteúdos teóricos, tal material prevê atividades e dicas de leitura que deverão ser desenvolvidas pelos alunos para maior apro-fundamento de seus conhecimentos.

Esperamos que este material contribua para o entendimento dos processos de aquisição da linguagem oral e escrita e, portanto, subsi-die propostas e práticas que resultem, efetivamente, no domínio de tais modalidades de linguagem por parte daqueles a quem dirigimos nosso trabalho.

Bom curso!

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O que é a linguagem? Conforme as pessoas crescem, elas passam, de uma maneira geral, a

falar e a escrever sem se indagarem acerca do que a linguagem signifi-ca. Se uma reflexão mais sistemática em torno dessa questão não é pré- -requisito para que as pessoas adquiram a fala e a escrita, tal indagação é imprescindível para quem atua, direta ou indiretamente, com o processo de ensino e de aprendizagem dessas modalidades de linguagem.

É fundamental fazer algumas considerações relativas aos termos que serão utilizados. Ao utilizarmos a palavra linguagem estaremos nos refe-rindo às suas modalidades, ou seja, à linguagem falada e à escrita. Para especificarmos uma ou outra forma de sua realização, adotaremos termos como linguagem oral, fala, oralidade ou, ainda, linguagem escrita, leitura e escrita.

Agora vamos verificar como as suas posições se situam em relação aos estudos que vêm sendo elaborados, especialmente, nos campos do conhe-cimento que têm como objeto de análise e intervenção a linguagem oral e a escrita, ou seja, a linguística, a educação e a fonoaudiologia. Podemos perceber que, de uma maneira geral, tais estudos se opõem ou se aproxi-mam, conforme as posições que assumem em relação à concepção de lin-guagem. Nesse sentido, identificamos três perspectivas predominantes:

Abordagens acerca da linguagem

Linguagem = Comunicação

Linguagem = Representação

Linguagem = Prática Social

Concepções de linguagem

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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão

Linguagem como comunicaçãoConceber a linguagem como comunicação significa estar de acordo com

o pressuposto de que ela existe para que as pessoas possam transmitir ao(s) outro(s) sentimentos, pensamentos e conhecimentos, ou seja, de que ela é um instrumento de comunicação. Com base nessa perspectiva instrumental, a lin-guagem é tratada como um sistema de códigos.

Conceber a linguagem como comunicação significa, também, acreditar que ela se processa a partir do seguinte mecanismo:

Emissor Mensagem Receptor

Código

Como podemos notar, a partir dessa abordagem, que a efetivação da lingua-gem pressupõe a existência de um sujeito-emissor, uma mensagem a ser trans-mitida, um instrumento-código capaz de transmitir a mensagem e, por fim, um sujeito-receptor para recebê-la.

Dessa maneira, a linguagem é tomada como algo “externo” aos sujeitos, como uma ferramenta que possibilita que a comunicação se efetive. Ela existe independentemente dos sujeitos e independentemente de qualquer ação que possa ser feita sobre a própria linguagem. Enfim, a linguagem é abordada como um produto acabado que se transmite de geração a geração.

Mas se é assim, como explicar, então, que a linguagem se modifique com o passar do tempo?

Uma vez que a linguagem é tomada apenas como um instrumento, ela muda apenas porque mudam as necessidades humanas, ou seja, mudam os códigos usados entre as pessoas na sua comunicação.

Linguagem como representaçãoPensar a linguagem como representação significa acreditar que ela tem a

função de representar, de dar forma a conceitos e a significados. A pintura a seguir, de René Magritte, é um bom exemplo disso. Abaixo do cachimbo está escrito: “Isto não é um cachimbo”.

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Concepções de linguagem

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Dom

ínio

púb

lico.

Mas, se vemos um cachimbo, por que dizer que não se trata de um cachimbo?

Pelo simples fato de que a pintura é uma “representação”. Dessa forma, não se trata de um cachimbo, mas da “representação de um cachimbo”. Assim como a palavra cachimbo não é um cachimbo, mas uma “palavra que representa um cachimbo”. A pintura foi elaborada justamente com a intenção de criticar a ideia de que, no caso, tanto a pintura quanto a linguagem são “naturais”, ou seja, têm existência própria independente do ser humano. Não pode, portanto, ser redu-zida a um “código”, a um mero “instrumento”.

Alguns, no entanto, poderiam dizer: “Bem, mas, afinal de contas, o quadro ‘comunica’ algo e usa um ‘código’ específico para isso, a pintura. Qual a di-ferença, então, entre as noções de linguagem como comunicação e como representação?”

Vejamos um outro exemplo, agora uma música de Gilberto Gil:

MetáforaUma lata existe para conter algoMas quando o poeta diz: “Lata”Pode estar querendo dizer o incontívelUma meta existe para ser um alvo

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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão

Mas quando o poeta diz: “Meta”Pode estar querendo dizer o inatingível

Por isso, não se meta a exigir do poetaQue determine o conteúdo em sua lataNa lata do poeta tudo nada cabePois ao poeta cabe fazerCom que na lata venha caberO incabível

Deixe a meta do poeta, não discutaDeixe a sua meta fora da disputaMeta dentro e fora, lata absolutaDeixe-a simplesmente metáfora

A música, de forma muito simples e, também, muito inteligente, mostra que o significado de uma palavra pode mudar e, com isso, o que está sendo dito. Dessa forma, a palavra “lata”, por exemplo, não “representa uma lata”, mas sim outra coisa e, principalmente, outra “ideia”.

Com isso, a noção de que a linguagem é uma “representação” vai na contra-mão da noção de que a linguagem seja, tão somente, um código, uma vez que ela possui características que vão para além disso.

Cabe ressaltar que a noção de representação, central em diferentes campos de conhecimento, como a Psicologia e a Educação, não está restrita apenas à linguagem, mas a qualquer atividade mental. A capacidade de representação é aqui concebida como inerente ao ser humano e como um fenômeno psíqui-co, ligado à consciência e que ocorre intencionalmente. Ligado à consciência porque consiste num processo cognitivo que teria o sujeito em sua origem. In-tencional porque as representações, em razão de sua origem, seriam passíveis de compreensão, uma vez que são geradas por motivações explicáveis.

Assim, a partir da linguagem, os indivíduos representam ideias ou signifi-cados supostamente presentes no seu entendimento. Tais representações são constituídas por imagens, símbolos, que evocam o que deve ser representado.

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Concepções de linguagem

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Apresentadas as principais ideias que norteiam as concepções de linguagem como comunicação e como representação, propomos uma reflexão acerca de algumas questões:

Será que falamos e escrevemos apenas para nos comunicar? �

Se a função da linguagem é representar ou comunicar pensamentos, co- �nhecimentos, informações, como esses aspectos são constituídos?

A linguagem serve para comunicar verdades ou mentiras ou para provo- �car efeitos e transformações em nós mesmos, nos outros e na realidade?

Linguagem como prática socialCertamente a linguagem é utilizada como instrumento de comunicação, por ela comunicamos aos outros nossas experiências e estabelecemos com os outros laços “contratuais” porque interagimos e nos compreendemos, influenciamos os outros com nossas opções relativas ao modo peculiar de ver e sentir o mundo, com decisões consequentes sobre o modo de atuar nele. Mas se queremos imaginar esse comportamento como uma ação livre, ativa e criadora, suscetível de pelo menos renovar-se ultrapassando as convenções e as heranças, processo em crise de quem é agente e não mero receptáculo da cultura, temos então que aprendê-la nessa relação instável de interioridade e exterioridade, de diálogo e solilóquio: antes de ser para a comunicação a linguagem é para a elaboração; antes de ser mensagem, a linguagem é construção do pensamento; e antes de ser veículo de sentimentos, ideias, emoções, aspirações, a linguagem é um processo criador em que organizamos e informamos as nossas experiências. (FRANCHI, 1992, p. 9-39)

Estudos que concebem a linguagem enquanto prática social oferecem ele-mentos para compreender que, apesar da comunicação e da representação constituírem-se como funções da linguagem, elas não definem a sua natureza. Em outras palavras, podemos representar ou comunicar a partir da linguagem. Contudo, a linguagem implica um fenômeno que extrapola tais funções. Conce-be-se, portanto, a linguagem como uma atividade constitutiva dos sujeitos, das relações sociais e das formas de organização da sociedade.

Assim, contrariando as visões instrumentais ou de representação, entende-se que a linguagem não está subordinada ao pensamento, tampouco decorre deste, uma vez que tem função estruturante e organizadora.

Vejamos um exemplo dado por Vigotsky (1998, p. 44):

Um exemplo especial da percepção humana – que surge em idade muito precoce – é a percepção de objetos reais. Isso é algo que não encontra correlato análogo na percepção

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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão

animal. Por esse termo eu entendo que o mundo não é visto simplesmente em cor e forma, mas também como um mundo com sentido e significado. Não vemos simplesmente algo redondo e preto com dois ponteiros; vemos um relógio e podemos distinguir um ponteiro do outro. Alguns pacientes com lesão cerebral dizem, quando veem um relógio, que estão vendo alguma coisa redonda e branca com duas pequenas tiras de aço, mas são incapazes de reconhecê-lo como um relógio; tais pessoas perderam seu relacionamento real com os objetos. Essas observações sugerem que toda percepção humana consiste em percepções categorizadas ao invés de isoladas.

Sem essa capacidade de categorização, o mundo seria um caos que chegaria até nós por meio de nossos sentidos. Um caos, por exemplo, de cores, como no caso acima. Daí o papel estruturante que a linguagem tem: permite que aquilo que se apresenta a nós como cores e formas, simplesmente, possa ser entendido como sendo algo particular no interior dessas mesmas cores e formas. Não vemos apenas branco e preto, vemos um relógio. Identificamos, no meio de todas essas cores e formas uma específica e que se apresenta a nós por meio de um nome. Com isso, os brancos e pretos do mundo não são idênticos.

O depoimento da atriz francesa Emmanuelle Laborit é um dos melhores exemplos do que pode significar a ausência e a presença da linguagem. Surda e muda, só depois de muitos anos ela pôde adquirir a língua de sinais:

Eu não tinha língua. Como pude me construir? Como compreendia as coisas? Pensava? Seguramente. Mas em quê? Em minha fúria de me comunicar. Naquela sensação de estar aprisionada atrás de uma enorme porta que não podia abrir para me fazer entender pelos outros. [...] Até os sete anos, nada de palavras, nenhuma frase na minha cabeça. Imagens somente. (LABORIT apud SANTANA, 2007, p. 205)

Ou seja, por meio da linguagem podemos categorizar e dar sentido às nossas próprias percepções. Por isso, também, as diferenças entre as línguas são, basica-mente, diferenças históricas e culturais, uma vez que elas expressam diferentes formas de percepção e de relação com o mundo.

A partir dessa perspectiva, nega-se o papel central atribuído à percepção e à cognição que, tomadas como uma herança genética, comandariam a apreensão do objeto situado fora. Entende-se, ainda, que não há possibilidade de aquisição de conteúdos cognitivos ou domínios do pensamento fora da linguagem, nem possibilidades integrais de linguagem fora de processos interativos humanos. Ao conceber o homem como ser da linguagem, entende-se que a consciência e o pensamento têm como possibilidades as diferentes modalidades de lingua-gem, e que estas não se estabelecem fora dos signos sociais, mediadores das inúmeras e complexas interações que caracterizam a vida em sociedade.

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Concepções de linguagem

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Conforme Bakhtin (1986, p. 113),

[...] a palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se ela se apoia sobre mim numa extremidade, na outra se apoia sobre o meu interlocutor. A palavra é o território comum do locutor e do interlocutor, que constitui e organiza a atividade mental do sujeito, enfim, que a nomeia e determina sua orientação.

Se a linguagem é uma ponte entre mim e o interlocutor, compreender a lin-guagem significa compreender, necessariamente, como se dá essa ponte, essa ligação entre dois ou mais interlocutores. Significa compreender, também, que essa ligação pode mudar com o tempo.

A música abaixo, de Chico Buarque, é um belo exemplo disso que estamos fa-lando. Conta a história de dois amantes, portanto, a relação entre duas pessoas. Mas conta também da relação deles com algo, o cinema, que fazia parte de suas vidas e, dessa forma, de sua história de amor. As frases ditas em inglês ou francês não podem ser tomadas na sua tradução literal. Isso porque elas traduzem outra coisa: a relação entre eles. Quando essa relação tem um fim, tem um fim também a relação que eles tinham tanto entre si quanto com o cinema e com os filmes de amor que gostavam de ver. Sem essa ligação, as frases perderam seu significado, perderam a possibilidade de traduzir seu amor, “saíram de cartaz”. E uma palavra, que antes não tinha qualquer significado para eles, passou a ter:

Tantas palavrasTantas palavrasQue eu conheciaSó por ouvir falar, falarTantas palavrasQue ela gostavaE repetiaSó por gostar

Não tinham traduçãoMas combinavam bemToda sessão ela virava uma atriz“Give me a kiss, darling”“Play it again”

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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão

Trocamos confissões, sonsNo cinema, dublando as paixõesMovendo as bocasCom palavras ocasOu fora de siMinha bocaSem que eu compreendesseFalou “c’est fini”“C’est fini”

Tantas palavrasQue eu conheciaE já não falo mais, jamaisQuantas palavrasQue ela adoravaSaíram de cartaz

Nós aprendemosPalavras durasComo dizer “perdi”, “perdi”Palavras tontasNossas palavrasQuem falou não está mais aqui

Por que refletir sobre o tema “linguagem” na escola?

(BOSCO, 2005, p. 7-13)

[...]

No que se refere à linguagem oral, acredita-se que a criança venha natural-mente a falar; por isso, não há preocupação com um ensino sistemático a seu

Texto complementar

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Concepções de linguagem

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respeito, nem um questionamento sobre o melhor momento de se começar a falar com a criança – é do senso comum que se deve falar com a criança desde o instante em que ela vem ao mundo.

[...]

A linguagem oral e a escrita são, então, encaradas a partir de pressu-postos diferenciados já na Educação Infantil: a primeira adquire-se natu-ralmente e a segunda necessita de uma ação pedagógica específica para que seja possível adquiri-la. Evidencia-se, nessa perspectiva, a crença de que a uma aquisição natural da linguagem oral segue-se um aprendiza-do dirigido da escrita. (Reflexão baseada nos comentários de De Lemos, 1998, sobre a aquisição da escrita.).

Assim, por um lado, aposta-se de certo modo no diálogo com os adultos e com outras crianças, na interação, como se fosse o suficiente para que uma criança adquira a fala. Ou seja, acredita-se que é na relação dela com a lingua-gem em funcionamento que se funda a aquisição da oralidade, não havendo por parte daqueles que com ela interagem preocupações com metodolo-gias ou com o momento adequado para seu ensino. Por outro lado, quando se trata da escrita, o olhar sobre o processo sofre um desvio. Tomada como mais um objeto de conhecimento a ser adquirido pela criança, a linguagem escrita passa a ser alvo de preocupações pedagógicas entre os profissionais envolvidos, que se voltam para discutir não só sobre qual é o melhor método de ensino para a criança mas, também, sobre qual é o momento mais conve-niente para apresentar a linguagem escrita a ela.

[...]

De que maneira os trabalhos com leitura e escrita têm lugar na Edu-cação Infantil?

Na verdade, é possível encontrar um certo consenso sobre o fato de um dos papéis da Educação Infantil ser o de propiciar um espaço para vivenciar a linguagem em suas várias possibilidades, considerando-se a criança como um sujeito envolvido na história e na sociedade. Sendo assim, indagamos se faria sentido realizar em seu cotidiano tarefas preparatórias, voltadas para o futuro dessa criança na escola – possível, no entanto, constatar a dificul-dade dos profissionais envolvidos em desviar-se totalmente dessas tarefas

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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão

na prática diária na Educação Infantil. Mesmo em escolas nas quais existe uma preocupação em contextualizar as atividades realizadas no dia a dia nos chamados “projetos” (baseados em temas escolhidos como propulsores dos trabalhos a serem realizados por um período de tempo), acaba-se por, de uma maneira ou de outra, incluí-las.

Atividades de recorte, de seriação, de estimulação com cores, sons e letras, entre outras, terminam, de maneira direta ou não, por fazer parte do cotidiano da Educação Infantil. Exercícios que buscam o desenvolvimento da percepção, da coordenação motora, da discriminação visual e auditiva, da lateralidade e da cognição chegam a ser elaborados e introduzidos de algum modo na prática diária, por se acreditar serem necessários, especialmente, à preparação da criança para o ler e o escrever.

[...]

Se no que se refere à aquisição da linguagem oral não se chega a julgar necessário preparar a criança para a fala nem ensinar a ela os sons, os fone-mas, para depois juntá-los em segmentos até formar uma palavra, agregar esta a outras, formando frases e, posteriormente, verdadeiros textos orais, um ensino nessa direção é, aparentemente, considerado necessário quando o foco é a linguagem escrita.

Em função disso, na sequência dos trabalhos, uma das tarefas que essa escola vai realizar é, por exemplo, a apresentação descontextualizada das letras, uma a uma, a fim de que a criança atente para sua forma, discriminan-do-as posteriormente, o que nos leva a supor que a simples apresentação das letras e sua constante retomada seriam, de algum modo, consideradas suficientes para futuros reconhecimentos.

O texto, por sua vez, quando chega a ser utilizado nessas circunstâncias, oferece-se como um objeto a partir do qual se retiram os fragmentos – as letras, as sílabas, as palavras – para que estes e a própria escrita se tornem passíveis de um trabalho pedagógico. Com isso, deixa-se de lado, justamente,

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Concepções de linguagem

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a linguagem escrita como um funcionamento que se revela para a criança num texto, a fim de favorecer uma atividade que se crê facilitadora da apren-dizagem e que prevê que as unidades do escrito sejam assimiladas apenas por suas propriedades percentuais positivas.

Convém esclarecer que os pressupostos que sustentam atividades desse tipo não deixam espaço para o reconhecimento dos efeitos da língua como um sistema em funcionamento nos textos (orais e escritos). E isso impede, de certo modo, a identificação da natureza linguística do processo de aquisição da linguagem escrita. A criança vive em um mundo que se significa na lin-guagem e pela linguagem e nele tanto a oralidade quanto a escrita apresen-tam-se de diversas maneiras em seu cotidiano – e sempre contextualizadas. A escola que dá ênfase às tarefas preparatórias que privilegiam exercícios com fragmentos isolados (letras, sílabas, palavras) acaba por esquecer que, quando se trata de linguagem escrita, está lidando com uma outra realização de língua – de materialidade distinta da linguagem oral mas, ainda assim, lin-guagem – cujo funcionamento se dá em textos, a serem lidos e/ou escritos pelo educador e/ou aluno.

Ao dar destaque a atividades que retirem do texto os elementos que compõem o escrito, o que está sendo colocado em evidência não são pro-priamente a leitura e a escrita, enquanto processos que envolvem o sujeito na interação, mas os pré-requisitos julgados necessários à sua aquisição – pré-requisitos esses que, convém observar, não são linguísticos, mas físicos e psicológicos. Por essa perspectiva, explicar-se-ia a crença corrente em muitas escolas de Educação Infantil na necessidade de se empreender ações peda-gógicas específicas a fim de propiciar o desenvolvimento da linguagem na criança – ações essas que, geralmente, resultam no esquecimento do texto no dia a dia da sala de aula. Mas se a escola pretende promover a linguagem escrita, é a interação com textos que vai abrir as portas para ela, e não o ensino descontextualizado dos elementos que compõem seus segmentos.

[...]

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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão

Dicas de estudoFilme � O Enigma de Kaspar Hauser, de Werner Herzog.

Baseando-se em registros históricos, Herzog nos conta o estranho caso de Kaspar Hauser, um jovem encontrado perdido numa praça em 1828. Ele não falava e não conseguia ficar em pé, pois passara a vida inteira tranca-do num porão. O filme trata do encontro do personagem com uma socie-dade “civilizada” e explora as ligações entre a linguagem e o pensamento.

Filme � Dersu Uzala, de Akira Kurosawa.

Conta a história de amizade entre um humilde caçador e um militar nas florestas da URSS. O choque entre as duas “culturas” e as representações de mundo envolvidas guia a narrativa da amizade entre eles. O choque, assim como a amizade que passa a existir entre eles, se deve à diferença de significados – atribuídos às suas ações, suas formas de compreensão de mundo e, é claro, à sua linguagem – entre eles. A fronteira se rompe, e a amizade deles inicia, quando eles começam a compreender – e a refletir sobre – essa diferença de significados.

Atividades1. Por que a reflexão e o estudo em torno do que é a linguagem oral e escrita

são imprescindíveis para todos os profissionais que atuam com os seus pro-cessos de apropriação e aprendizagem?

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Concepções de linguagem

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2. Quais as diferentes formas de se conceber a linguagem?

3. Elabore uma breve explicação acerca das diferentes formas de se conceber a linguagem.

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Como se adquire a linguagem?As diferentes concepções de linguagem, bem como as diferentes con-

cepções acerca dos aspectos relativos às dimensões política, cultural e de poder que a constituem, são questões da maior importância, já que, de-pendendo de qual seja a nossa concepção em relação a elas, adotamos determinados procedimentos práticos na condução das intervenções clí-nicas e/ou educacionais para a aquisição ou para a reabilitação da lingua-gem oral e escrita.

Em linhas gerais, as teorias que procuram explicar o fenômeno da aqui-sição da linguagem, ou seja, como os sujeitos passam de “não falantes” e “não escritores” a “falantes” e “escritores”, são as seguintes:

Teorias de Aquisição da Linguagem

Comportamentalismo

Inatismo

Construtivismo

Sociointeracionismo

ComportamentalismoA teoria comportamental (behaviorismo), que exerce uma grande in-

fluência nas práticas clínicas e educacionais, tem como um dos seus pre-cursores B. F. Skinner. Segundo o autor, a linguagem deve ser entendida como qualquer outra função comportamental, o que significa que ela é ensinada às crianças a partir daquilo que é designado, em sua teoria, como sendo um “condicionamento”.

Sua teoria fundamenta-se em dois conceitos básicos: o condiciona-mento operante e o reforço, conferindo ao ambiente papel determinante no desenvolvimento humano.

Teorias de aquisição da linguagem

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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão

Há um aspecto aqui, extremamente relevante, sobre o qual devemos chamar a atenção antes de prosseguirmos: todas as teorias de aquisição de linguagem salientam, de uma maneira ou de outra, o papel exercido pelo “ambiente” ou “meio”. Até mesmo para o inatismo, que defende a ideia de uma capacidade inata do ser humano para a linguagem, é necessário um ambiente que possibili-te o desenvolvimento dessa capacidade. Sem esse ambiente, a linguagem seria tão somente uma “capacidade” adormecida, não desenvolvida.

Todas as teorias, portanto, chamam a atenção para o “ambiente” ou o “meio”. O que muda, de uma teoria para outra, é como elas concebem a relação das pes-soas com o ambiente ou meio e como elas concebem a linguagem. Trataremos disso com detalhes mais adiante. Por hora, vamos voltar à teoria de Skinner.

O conceito de condicionamento operante pressupõe que uma dada ação executada pelo organismo é reforçada conforme seu resultado. Caso o resultado seja o esperado, a ação é reforçada, aumentando a probabilidade de ocorrer no-vamente. Se não corresponde ao esperado, suscita a ausência de reforço positi-vo ou ações punitivas, o que diminui a possibilidade de a ação se repetir. Assim, os resultados definem reforços positivos ou negativos para as ações.

Apoiado nessa ideia de aprendizagem, Skinner (1957, p. 33) procurou expli-car da seguinte forma o fenômeno da aquisição da linguagem:

Em todo comportamento verbal sob controle de estímulos há três acontecimentos impor-tantes: estímulo, resposta e reforço. Eles são interdependentes, sendo que o estímulo, agindo antes da emissão da resposta, cria ocasião para que a resposta provavelmente seja reforçada. Sob tal dependência, mediante um processo de discriminação operante, o estímulo torna-se a ocasião em que a resposta, provavelmente, será emitida.

Skinner sustenta a ideia de que a linguagem acontece do mesmo modo que a aprendizagem de outros comportamentos complexos. Para esse autor, o apren-dizado da língua materna não é diferente, em essência, do aprendizado de outras habilidades e comportamentos, como dançar, correr, nadar etc., o que significa, portanto, que a linguagem é definida como sendo um “comportamento”.

Com base nessa premissa, a aquisição da linguagem, ou melhor, do “compor-tamento verbal”, resulta de mecanismos de reforço e modelagem que o adulto exerce sobre a criança, de uma estimulação adequada que vai do ambiente externo para o indivíduo. Em outras palavras, cabe ao adulto selecionar os es-tímulos adequados às respostas esperadas; à criança cabe, apenas, a reação a esses estímulos, repetindo da melhor forma possível os modelos fornecidos pelo adulto numa ordem crescente de complexidade.

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Teorias de aquisição da linguagem

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Considerando que a aquisição da linguagem passa a ser explicada a partir da associação entre estímulo e resposta, para Skinner, o condicionamento operante do comportamento verbal desenvolve-se a partir de reforços seletivos de sons e combinações de sons presentes no meio ambiente:

De acordo com essa posição teórica, a criança inicialmente emitiria sons ao acaso ou por imitação, e receberia, de maneira diferenciada, reforço ou recompensa de adultos que fizessem parte de seu meio ambiente. Aqueles sons que fossem próximos aos usados na fala adulta acabariam se tornando predominantes na vocalização da criança, pois seriam reforçados pela atenção ou elogio dos adultos. (MASSI, 2001, p. 35)

Segundo essa teoria, a linguagem é estudada sob a ótica associacionista e a partir de comportamentos observáveis, ou seja, de produtos observáveis e men-suráveis. Seu aprendizado consiste na nomeação de objetos, ações e pessoas, bem como no mecanismo que se faz entre essas nomeações para a composição de frases. A ênfase recai sobre a estrutura formal da linguagem, e pouca ou ne-nhuma importância é dada aos conteúdos ou significados daquilo que se diz. Com base nessa visão, as propostas educacionais e de reabilitação priorizam:

o treino das habilidades básicas: percepção auditiva e visual, esquema �corporal, lateralidade e noção temporoespacial, coordenação motora;

as atividades de repetição e evocação oral e escrita de palavras a partir de �estímulos visuais e auditivos. Entre tais atividades, podemos destacar o ditado, a cópia e a leitura em voz alta, a separação de sílabas, a formação de frases, a repetição falada e escrita das mesmas palavras;

as atitudes que demonstram satisfação pelas produções corretas das �crianças, reforçando-as com aplausos, palavras de incentivo e pequenos “prêmios”, como quadros de estrelinhas, carimbos coloridos etc.;

as atitudes que demonstram desagrado pelas produções incorretas das �crianças e para as quais são utilizadas punições ou castigos diversos.

InatismoA abordagem inatista tem como o seu principal representante Noam

Chomsky. Ao considerar a linguagem como uma estrutura inata ao ser humano, Chomsky representa uma forte oposição aos princípios behavioristas, conforme podemos acompanhar na citação a seguir:

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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão

Simplesmente não é verdade que as crianças possam aprender a linguagem apenas através de “cuidado meticuloso” por parte dos adultos que modelam seu repertório verbal, através de um meticuloso reforçamento diferencial... É comum observar que uma criança pequena, filha de pais imigrantes, pode aprender uma segunda língua nas ruas, com outras crianças, numa rapidez espantosa e que sua fala pode ser inteiramente fluente e correta... Uma criança pode aprender boa parte de seu vocabulário e “sensibilidade” para as estruturas da sentença a partir da televisão, da leitura, da fala dos adultos etc. Até mesmo uma criança pequena... pode imitar bastante bem uma palavra, numa primeira tentativa, sem qualquer esforço por parte de seus pais para ensiná-la. Também é absolutamente óbvio que, em estágios posteriores, uma criança será capaz de construir e entender vocalizações totalmente novas que, ao mesmo tempo, sejam sentenças aceitáveis em sua língua... Deve haver processos fundamentais, operando independentemente do feedback de seu ambiente. Não há qualquer tipo de apoio para a doutrina de Skinner e outros, segundo a qual uma lenta e cautelosa modelagem do comportamento verbal, através de reforçamento diferencial, é uma verdade absoluta. (CHOMSKY apud MUSSEN et al., 1977, p. 204)

De acordo com a ideia de que as crianças adquirem a sua língua materna com uma rapidez e fluência extraordinárias, Chomsky considera que os eventos que ocorrem após o nascimento da criança não são essenciais para o seu desenvol-vimento. Para esse autor, no caso da linguagem, a criança deve estar (biologi-camente) preparada para processar a fala que ela ouve, e formar as estruturas que são características da língua humana. O papel da experiência é o de ativar uma estrutura interna que a criança possui. Tal autor, por considerar a linguagem como uma estrutura cognitiva inata, herdada geneticamente, propõe o seguinte desafio aos estudiosos da corrente comportamentalista:

No caso da linguagem, deve-se explicar como um indivíduo, a partir de dados muito limitados, desenvolve um saber extremamente rico: a criança, imersa numa comunidade linguística, confronta-se com um conjunto muito limitado de frases, na maioria das vezes imperfeitas, inacabadas etc...; entretanto, ela chega, num tempo relativamente curto a “construir”, a interiorizar a gramática de sua língua, a desenvolver um saber bastante complexo, e que não pode ser induzido só dos dados e de sua experiência. Concluímos, disso, que o saber interiorizado deve ser estreitamente limitado por uma propriedade biológica; e sempre que um saber é constituído a partir de dados muito limitados e imperfeitos (e isto de maneira homogênea entre os indivíduos), poderemos concluir que um conjunto de coerções apriorísticas determina o saber (o sistema cognitivo) obtido. (CHOMSKY, 1977, p. 69)

Chomsky considera que os seres humanos possuem um dispositivo univer-sal e inato para a aquisição da linguagem (DAL). Esse dispositivo permite que a criança desenvolva uma gramática da linguagem que dependerá da língua a que ela está exposta, ou seja, a linguagem não pode ser definida tão somen-te como um “comportamento”. Isso porque uma língua, qualquer que seja, tem uma “estrutura” própria, uma sintaxe, e é sobre essa estrutura que adquirimos a linguagem. Adquirir uma língua, portanto, não é a mesma coisa que adquirir um comportamento. Adquirir uma língua significa interiorizar sua “estrutura”, sua sintaxe. Uma vez interiorizada, as crianças podem elaborar frases mesmo nunca as tendo ouvido. Por exemplo: a criança pode, a partir de uma frase como “eu andei de carro”, elaborar várias outras com base na mesma estrutura: “eu andei

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de ônibus”, “eu andei de barco” etc., independentemente de ter ou não ouvido essas outras frases antes. No caso do comportamentalismo, a criança, necessa-riamente, deveria ter ouvido todas elas antes de repeti-las. Isso significa que a criança consegue elaborar, desde pequena, frases complexas. Quando a criança diz “ele sabe” e “eu sabo”, embora o termo esteja errado (“sabo”), ele foi deduzido, e falado por ela, com base na mesma estrutura sintática da frase anterior (“ele sabe”). As deduções que fazemos sobre a linguagem quando a estamos apren-dendo, com isso, só são possíveis porque partem de uma mesma “estrutura”, de uma mesma sintaxe. “Eu sabo” é uma dedução que se baseia, também, em frases semelhantes: “eu canto”, “eu falo”, “eu danço” etc.

Para Chomsky (1981), essa capacidade, composta por propriedades linguís-ticas universais, é possível graças a um estado mental inicial que caracteriza os seres humanos e que inclui propriedades essenciais, presentes em toda e qual-quer língua e nos indivíduos. Considera-se que a criança, mesmo antes de ad-quirir as primeiras palavras, já tem internalizadas tais propriedades universais, o que lhe confere uma competência (inata) para adquirir a gramática de sua língua materna e, com base nela, elaborar e compreender frases. Por isso também, quando a criança diz “eu sabo”, nós podemos concluir, e portanto compreender, que se trata de “eu sei”, já que “eu sabo” e “eu sei” têm uma mesma “estrutura”, uma mesma sintaxe.

ConstrutivismoO construtivismo foi elaborado por Jean Piaget e influenciou diversas aborda-

gens posteriores, as quais ficaram conhecidas como cognitivismo. Vamos tentar compreender, no momento, como se deu a formulação inicial dessa corrente te-órica, nos termos de Piaget. Seu objetivo prioritário foi o de entender a natureza do conhecimento humano, sendo suas análises sobre a linguagem secundárias e decorrentes dos estudos em torno da questão de como a criança desenvolve a sua cognição, de como ela aprende. De acordo com o autor:

A linguagem não constitui a origem da lógica mas, pelo contrário, é estruturada por ela. Em outros termos, as raízes da lógica terão de ser buscadas na coordenação geral das ações (incluindo condutas verbais) a partir do nível sensório-motor cujos esquemas parecem ter importância fundamental desde o princípio. (PIAGET, 1993, p. 78)

Piaget, assim como toda a geração de intelectuais da qual ele fazia parte, foi fortemente influenciado pela dialética hegeliana. Podemos esquematizar a dia-lética hegeliana da seguinte forma: a transformação dos homens e do mundo depende do conflito que podemos observar entre um certo estado de coisas e

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oposições que se lhes impõem. Podemos definir esse estado “inicial” como sendo a “tese”. As oposições que lhe são feitas pelo mundo são chamadas de “antítese”. Esse conflito encontra, em algum momento, uma solução, a que se dá o nome de “síntese”. A “síntese”, portanto, contém elementos tanto da “tese” quanto da “an-títese”, mas não pode ser tomada como equivalente a nenhuma delas. Uma vez que as coisas não estão paradas no tempo, podemos supor que essa dialética também continuará avançando. A “síntese” é uma “nova tese” que irá encontrar, em algum momento, um novo conflito, ou seja, uma “nova antítese”, gerando uma “nova síntese”, e assim indefinidamente.

A dialética hegeliana influenciou muitos pensadores, e Piaget de uma forma particular. Quando ele afirma que “A linguagem não constitui a origem da lógica mas, pelo contrário, é estruturada por ela”, é exatamente dessa ideia que ele está partindo, ou seja, a criança, ainda bebê, começa a desenvolver sua inteligência a partir das relações que ela estabelece com o mundo por meio de seus sentidos. Essa seria a “tese”. Mas essas relações com o mundo encontram diversos limites. Por exemplo, a criança passa por várias deduções até chegar à conclusão de que um objeto tem “existência própria”, ou seja, que se trata de um objeto, esses limites seriam a “antítese”. Diante desse obstáculo, a mente precisa se reelaborar para dar conta de novos problemas que, no seu estágio atual, ela não é capaz de dar conta. Essa ampliação da cognição para trabalhar cada vez mais com novas questões e novos obstáculos é aquilo que Piaget chama de “equilibração das es-truturas cognitivas”, o que seria, com isso, a “síntese”, e assim trabalharia a mente humana, indefinidamente, já que sempre temos diante de nós novos obstáculos, novos problemas e novas questões com os quais não havíamos nos deparado antes.

A partir do primeiro estágio, a criança constrói um conjunto de estruturas cognitivas que lhe servirão de base para o desenvolvimento da função simbólica, surgindo assim, como uma de suas manifestações, a linguagem. A função sim-bólica “consiste em poder representar alguma coisa, um ‘significado’ qualquer: objeto, acontecimento, esquema conceptual etc. por meio de um ‘significante’ diferenciado e que só serve para essa representação” (PIAGET, 1993, p. 46).

Antes de representar um objeto simbolicamente, a criança tem a noção de que um objeto é um objeto, ou seja, tem uma existência real. Só num estágio posterior é que ela pode pensar o mundo não apenas por meio de seus sentidos (tato, visão etc.), mas também por meio de símbolos, quer dizer, por meio de “re-presentações do mundo”. A relação dela com o mundo, a partir desse momento, deixa de ser direta, uma relação com o objeto, e passa a ser mediada, uma relação

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com algo que representa um objeto, mas que não pode ser confundido com ele: o objeto e sua representação não são a mesma coisa.

É por isso, portanto, que Piaget (1993, p. 78) afirma que “A linguagem não constitui a origem da lógica mas, pelo contrário, é estruturada por ela”. A lingua-gem, para ele, deve ser entendida como parte desse desenvolvimento cogniti-vo mais amplo. Ela só pode surgir num estágio posterior: primeiro é necessário saber que um objeto é um objeto, ou seja, que a criança possa pensar em termos de objetos reais, só depois é que se pode substituir o objeto por sua represen-tação, ou seja, pensar o mundo em termos, também, de representação, além de pensar o mundo em termos de objeto.

Mas como esse é um processo dialético que não tem um fim, embora seja a cognição que estruture a linguagem, Piaget também afirmou que, a partir da sua aquisição, as estruturas cognitivas passam a ser transformadas também pela linguagem, ou seja, pelas formas simbólicas de representação e interpretação do mundo.

SociointeracionismoEntre os autores sociointeracionistas adotados como referência, é importante

destacar L. S. Vygotsky, psicólogo soviético. Sob a influência de suas elabora-ções teóricas, uma série de estudiosos passaram a analisar o alcance social da aquisição da linguagem. O sociointeracionismo proposto por Vygotsky parte do princípio de que pensamento e linguagem não existem separadamente, uma vez que a atividade simbólica, viabilizada pela linguagem, organiza o próprio pensamento.

Dentro dessa perspectiva, ao social é atribuído papel de destaque, uma vez que é a partir dele que ocorre a inserção do sujeito no plano simbólico. Ou seja: a criança, no início da aquisição de sua linguagem, não é um sujeito já constituído, cujo acesso ao objeto linguístico se dá de maneira direta, isto é, não mediado pelo outro. Pelo contrário, Vygotsky considera que o sucesso de tal aquisição por parte da criança depende do outro, de um interlocutor, um “representante da ordem simbólica” que mediará, por sua vez, a relação da criança com estados e coisas do mundo.

Vygotsky compreende que o importante papel da linguagem na constituição do sujeito se manifesta no que ele chama de internalização da ação e do diálogo. Quando nascemos, encontramos um mundo pronto que nos espera: formas de

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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão

diálogo, de conduta, de trabalho etc. Nossa inserção no mundo, com isso, con-siste numa “apropriação” dessas várias relações e mediações. No entanto, a partir do momento que nos apropriamos delas, elas passam a fazer parte constitutiva de nós mesmos, ou seja, o que antes era externo ao indivíduo – o mundo e suas formas de relações e de mediações – vai gradativamente sendo internalizado por ele. De tal forma que, uma vez tendo internalizado todas essas formas de relações e de mediações com o mundo, passamos a pensar que essas formas de conduta são nossas, e não do mundo, como se elas sempre tivessem feito parte de nós mesmos, e não como se fôssemos nos apropriando pouco a pouco de todas elas, nem como se não tivéssemos sido, pouco a pouco, “formados” por elas:

Ao internalizar instruções, as crianças modificam suas funções psicológicas: percepção, atenção, memória, capacidade para solucionar problemas. É dessa maneira que formas historicamente determinadas e socialmente organizadas de operar com informação influenciam o conhecimento individual, a consciência de si e do mundo. [...] A forma como a fala é utilizada na interação social e com adultos e colegas mais velhos desempenha um papel importante na formação e organização do pensamento complexo e abstrato individual. O pensamento infantil, amplamente guiado pela fala e pelo comportamento dos mais experientes, gradativamente adquire a capacidade de se autorregular. (DAVIS; OLIVEIRA, 1993, p. 50)

Podemos dizer que o diálogo passa a ser o lugar de inserção da criança na lin-guagem e, portanto, é a partir dele, e apenas dele, que o desenvolvimento da linguagem pode se efetivar. A atividade interpretativa do interlocutor – no caso, do adulto – é determinante na apropriação da linguagem, uma vez que, quando uma criança produz um som, uma palavra, esse interlocutor os interpreta. Com isso, a criança e o som ou a palavra produzidos por ela são inseridos numa zona simbólica e de significação, ou seja, de “interpretação”. Segundo Oliveira (1993, p. 48), “são os significados que vão propiciar a mediação simbólica entre o in-divíduo e o mundo real, constituindo-se no ‘filtro’ através do qual o indivíduo é capaz de compreender o mundo e a agir sobre ele”.

Para Vygotsky, portanto, a linguagem é uma atividade significante por exce-lência: é por meio dela que nos apropriamos e compreendemos os significados do mundo; é por meio dela também que agimos sobre ele.

O significado de uma palavra representa um amálgama tão estreito do pensamento e da linguagem, que fica difícil dizer se se trata de um fenômeno da fala ou de um fenômeno do pensamento. Uma palavra sem significado é um som vazio; o significado, portanto, é um critério da “palavra”, seu componente indispensável. (VYGOTSKY, 1989, p. 404)

É importante destacar que se essa abordagem confere ao educador um lugar de destaque na constituição do sujeito, é preciso estar atento para o que Oliveira (1993, p. 63) alerta:

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Teorias de aquisição da linguagem

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[...] nem seria possível supor, a partir de Vygotsky, um papel de receptor passivo para o educando. Vygotsky trabalha explícita e constantemente com a ideia de reconstrução, de reelaboração, por parte do indivíduo, dos significados que lhe são transmitidos pelo grupo cultural. A consciência individual e os aspectos subjetivos que constituem cada pessoa são, para Vygotsky, elementos essenciais no desenvolvimento da psicologia humana, dos processos psicológicos superiores. A constante recriação da cultura por parte de cada um dos seus membros é a base do processo histórico, sempre em transformação, das sociedades humanas.

Uma vez que, para Vytgotsky, a linguagem tem papel preponderante na aqui-sição dos conhecimentos, estabelece-se uma interdependência entre os indiví-duos – criança e adulto, ou criança e educador – no seu processo de ensino-aprendizagem.

Texto complementar

Implicações pedagógicas das teorias de Vygotsky e Bakhtin: conversas ao longo do caminho

(FREITAS, 1994, p. 83-89)

O cronista que narra os acontecimentos, sem distinguir entre os grandes

e os pequenos, leva em conta a verdade de que nada do que um dia

aconteceu pode ser considerado perdido para a história.

Walter Benjamin

Além das histórias de vida, outras conversas surgiram no decorrer das entrevistas. Meus interlocutores, considerando suas experiências em sala de aula, iam falando de novas maneiras de se ver a criança, de relação dialógica, de situações de aprendizagem que promovem o desenvolvimento, de alfa-betização e ensino de língua baseados na interlocução, de aluno como pro-dutor de textos. Debatendo alfabetização, logo surgiam referências a Emília Ferreiro, confrontada com Vygotsky. E as conversas sucediam-se, chegando a outros temas como computador, televisão e arte. Preocupados em encontrar uma proposta pedagógica capaz de responder aos desafios enfrentados em seu trabalho como professores, discutiam as possibilidades divisadas a partir das teorias de Vygotsky e Bakhtin.

Que elementos dessas teorias permitem a discussão de questões edu-cacionais? Até que ponto se pode perceber nelas um direcionamento em função da prática pedagógica?

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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão

(X) – Eu acho que a teoria de Vygotsky pode alimentar uma teoria peda-gógica nova, mas eu não a tomo como uma teoria pedagógica. Ela traz uma série de elementos para você pensar uma pedagogia. A meu ver é uma peda-gogia que está, neste momento, sendo começada a pensar, está em constru-ção, mas que não está fechada, pronta. Essa proposta pedagógica é fácil de configurar a partir dos pressupostos psicológicos dessa teoria. Eu acho que é um esforço necessário para quem se interessa pela Educação, pelo ensino que está sendo oferecido aí. Essa teoria tem muito a dizer, mas não pode gerar por si mesma uma proposta pedagógica, nem é em si mesma uma pro-posta pedagógica.

(E) – Mas, de qualquer maneira, acho que eles mudam a prática pedagó-gica completamente. porque ela sempre foi muito marcada pela Psicologia. A Psicologia sempre teve muito peso no curso de formação de professores... é uma quantidade de Psicologia! Na minha pesquisa “O estado do conheci-mento da alfabetização” o grande referencial teórico predominante é a Psi-cologia. Daí dá para dizer que a Psicologia determina muito a prática peda-gógica. Esta acaba sendo o que a Psicologia é. Isso a gente viu aí: quando a psicologia behaviorista foi dominante, imediatamente a prática pedagógica se tornou tecnicista. Quando a Psicologia rejeitou o behaviorismo e se cen-trou na pessoa, aquela fase do Rogers, a prática pedagógica mudou intei-ramente em função disto. Houve um momento do Piaget, que está ainda muito presente, mas que agora vai sendo substituído, de certa forma, pelos psicólogos russos e que acaba atuando na prática pedagógica. Eu quase diria que isso é uma mudança de paradigma que está se dando na Psicologia e, mais amplamente, nas ciências que olham o ensino.

(S) – Na academia achamos que Vygotsky é altamente promissor para a prática pedagógica, que ele tem grandes diretrizes. Mas como tornar essas diretrizes concretas? Para mim, os conceitos-chave dele (relação pensamen-to-linguagem, consciência semiótica, fala interior, internalização, zona de de-senvolvimento proximal) não estão a serviço da prática pedagógica porque não chegam à escola. Vygotsky não está na escola, a não ser na questão que ele valoriza o papel do professor, que ele resgata esse papel. Portanto, as suas grandes diretrizes ainda estão longe de chegar lá.

(P) – É preciso ter cuidado para não fazer uma transposição imedia-ta para a prática e para não desvirtuar a teoria. Ela é inspiradora no senti-do de contribuir para a reflexão do educador sobre o que é a Educação, a aprendizagem.

[...]

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Teorias de aquisição da linguagem

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Dica de estudoO Voo da Gaivota � , de Emmanuelle Laborit, Editora Best Seller.

A atriz francesa surda conta como era sua vida antes e depois de aprender a língua de sinais. Depoimento fundamental para quem quer entender melhor o significado da aquisição da linguagem para a vida das pessoas.

Atividades1. Quais são as principais teorias de aquisição da linguagem e os seus princi-

pais representantes?

2. Se todas as teorias chamam a atenção para o “ambiente” ou o “meio”, o que muda de uma para outra?

3. Relacione as colunas referentes às diferentes concepções de linguagem ado-tadas pelas teorias de aquisição.

(A) Inatismo ( ) linguagem é constitutiva dos sujeitos(B) Sociointeracionismo ( ) linguagem inata(C) Construtivismo ( ) linguagem é condicionada pelo meio(D) Comportamentalismo ( ) linguagem é decorrente da cognição

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De que forma dimensões culturais e políticas constituem a linguagem?

A forma mais visível de desigualdade é a material, aquela que opõe pobreza e riqueza. No entanto, essa não é a única forma de desigualda-de existente. Há muitas outras não tão visíveis, mas nem por isso menos reais.

As questões relativas à linguagem são, assim como a diferença mate-rial entre pobreza e riqueza, questões relativas a formas específicas de desigualdade. A diferença (variedade) linguística que pode ser observada no interior de nossa sociedade não pode ser interpretada apenas como “diferença”. Isso porque, forçosamente, em nossa sociedade a diferença é entendida em termos de desigualdade, em termos hierárquicos. Por exemplo: o uso de termos como “pobrema” e “problema” são entendidos pelas pessoas não como sinal de diferença, mas como sinal de ignorância ou cultura. Ou seja: em termos de desigualdade hierárquica faz com que as pessoas sejam classificadas como se estivessem “acima” ou “abaixo”, em termos sociais.

Isso significa que as questões linguísticas são, necessariamente, ques-tões político-linguísticas. Se ignorarmos essa dimensão política e social da linguagem, muito pouco poderemos compreender a seu respeito. O que significa dizer que a psicogênese da aquisição da linguagem deve ser, também e necessariamente, uma sociogênese dessa mesma aquisição.

Para analisar as dimensões culturais e políticas que a linguagem com-porta, sugerimos uma reflexão em torno de opiniões e afirmações com as quais nos deparamos cotidianamente:

“Como ele quer se candidatar a presidente, não sabe nem falar”; �

“Ele é importante, fala bem, tem cultura, deve ser rico”; �

“Eu detesto falar em público”; �

Linguagem, cultura e poder

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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão

“Eu não consigo expressar aquilo que penso”; �

“Na hora de falar me atrapalho todo”; �

“O português é difícil”; �

“Ele fala que nem doutor”; �

“Falo tudo errado”; �

“Odeio escrever”; �

“Para falar tudo bem, mas para escrever...”; �

“Ele não sabe escrever, parece analfabeto”; �

“Cada vez as pessoas escrevem pior”. �

Para encaminhar nossa reflexão, vamos eleger alguns dos aspectos pertinen-tes ao tema em discussão.

A linguagem não é neutra, nem seus sentidos transparentes

A capacidade de significar faz parte do ser do homem, à maneira de uma segunda natureza, atua de forma tão silenciosa e “natural” que raramente merece a nossa consideração. Ela é o cotidiano que nos escapa. Refletir sobre ela é, entretanto, essencial para compreender o ser e o agir do Homem. (PINO, 1995, p. 37)

Tudo aquilo que escrevemos ou dizemos carrega sentidos a partir de sua ins-crição histórico-social, e é na trama do seu contexto de produção que a significa-ção se constrói e ganha forma. Com isso, queremos dizer que os sentidos que a fala e a escrita carregam não são configurados apenas pelas suas formas linguís-ticas, mas pelos contextos em que são realizados. Os aspectos que caracterizam os infinitos contextos nos quais a fala e a escrita ganham sentido, embora incon-troláveis, podem ser identificados e dizem respeito: à idade, ao sexo, ao país, ao grupo social, ao grau de escolaridade, ao período histórico, à cultura, à profissão, à religião, à intenção etc.

De acordo com Bakhtin, a palavra é um signo neutro. Mas é, ao mesmo tempo, uma arena de conflitos sociais.

O que isso quer dizer?

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A palavra “honra”, por exemplo, pode ser usada por qualquer pessoa, inde-pendente de sua classe social ou sua formação cultural, ou seja, tomada isolada-mente, essa palavra é um signo neutro. Mas não podemos isolar a palavra dos contextos sociais em que ela é utilizada. Dessa forma, diferenças sociais e cultu-rais estão, forçosamente, presentes em seu uso. “Honra”, portanto, é uma palavra que tem significados diferentes para as pessoas em função de sua classe social e de sua formação cultural. Como as classes sociais e as formações culturais são diferentes (ou seja, desiguais) em nossa sociedade, é impossível que a palavra tenha o mesmo significado para todas as pessoas. Em função disso, a linguagem é uma “arena de conflitos sociais” porque vem carregada desses diferentes valo-res sociais.

Ao enunciar algo, o sujeito apenas indica algo e se expõe às diferentes inter-pretações. Chamamos atenção para o fato de que não existe um sentido único e controlado para as falas e escritas que constituem as relações entre as pesso-as. Ao falarmos algo, o sentido do que falamos será construído a partir do que pretendemos dizer, somado à interpretação de quem recebe tal enunciado. O sentido do que dizemos não é único, nem transparente.

Deparamo-nos cotidianamente com situações em que pessoas reclamam não terem sido compreendidas, razão pela qual são corriqueiras frases como: “você não entendeu o que eu disse, não era isso que eu queria dizer”, “é você que está entendendo desse jeito”, ou “eu disse isso, mas não com esse sentido...”.

Concluindo, enfatizamos que o trabalho com a linguagem deve levar em con-sideração o que tão bem coloca Bakhtin (1981, p. 95):

Na realidade não são palavras que pronunciamos ou escutamos, mas verdades ou mentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais, agradáveis ou desagradáveis etc. A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial. É assim que compreendemos as palavras e somente reagimos àquelas que despertam em nós ressonâncias ideológicas ou concernentes à vida.

Apesar das evidências que apontam para os fatos acima analisados, ou seja, de que os sentidos das falas e das escritas não são únicos nem transparentes, ainda impera uma tendência do educador de tratar os enunciados como porta-dores de um único sentido, solicitando, muitas vezes, a partir dos exercícios de compreensão de texto, que as crianças respondam o que entenderam do texto, esperando uma única resposta.

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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão

As noções de bom e mau falante e escritor A língua portuguesa... tem avesso e direito: o direito é como nós a falamos, e o avesso como a falam os naturais... meias línguas porque eram meio políticas e meio bárbaras: meias línguas, porque eram meio portuguesas, e meio de todas as outras nações que as pronunciavam ou mastigavam a seu modo. (Testemunho de Padre Antônio Vieira apud SILVA NETO, 1963, p. 52).

Se a colocação acima foi formulada no período da colonização, a importância de trazê-la para discussão deve-se ao fato de que a ideia de que apenas a norma padrão representa uma língua e as outras são “meias línguas” ainda está pre-sente, influenciando não só a opinião de leigos, como também de profissionais diretamente envolvidos com o processo de ensino e aprendizagem.

Diante das implicações negativas decorrentes de tal ideia, sugerimos que, substituindo os conceitos tradicionais e reducionistas de correto/incorreto, passem a nortear as reflexões e práticas de ensino e de avaliação da lingua-gem os conceitos de: “prestígio social da linguagem; associação entre variantes e poder político-social; ligação entre língua e poder social dos falantes” (PRETI, 1998, p. 85-56).

Para tanto, é importante ter claro que o reconhecimento das variedades lin-guísticas, caracterizando a natureza de toda e qualquer língua, vem sendo discu-tido por linguistas, implicando, conforme Faraco, um rompimento com a imagem da língua cultivada pela tradição gramatical veiculada pela escola, imagem que padroniza a realidade linguística, cristaliza certa variedade como a única correta, identificando-a com a língua e excluindo todas as outras como “incorretas”. Tal autor oferece elementos para compreender que

[...] cada variedade é resultado das peculiaridades das experiências históricas e socioculturais do grupo que a usa: como ele se constitui, como é sua posição na estrutura socioeconômica, como ele se organiza socialmente, quais seus valores e visão de mundo, quais suas possibilidades de acesso à escola, aos meios de informação, e assim por diante. (FARACO, 1991, p. 18)

Consideramos que as relações que estabelecemos com a linguagem e a visão que temos sobre nós mesmos e sobre os outros, em relação à condição de falan-te e escritor, está diretamente relacionada ao fato de reconhecermos ou não que a variedade linguística caracteriza toda e qualquer língua. Em outras palavras, a visão que temos sobre nós mesmos e sobre os outros em relação a sermos bons ou maus falantes e escritores, embora regularmente o uso da linguagem oral e escrita não deva ser tomada como superior ou como a única que tem valor. É importante que a criança seja orientada por educadores que saibam que

[...] as formas dialetais são em boa parte responsáveis pela constituição da identidade dos falantes, o que é um fator que não pode ser desprezado quando a linguagem é invocada para funcionar como um dos elementos de um diagnóstico. (POSSENTI, 1995, p. 21)

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Ideias, representações e afirmações, em torno das noções de bom e mau fa-lante e/ou escritor, pairam sobre as nossas cabeças, sem contudo pararmos para pensar criticamente sobre elas. Ideias são formuladas e veiculadas, construindo um senso comum acerca das imagens do que é falar e escrever bem e, em oposi-ção, falar e escrever mal. De uma maneira simplista, considera-se que os sujeitos que pertencem ao primeiro grupo são os que falam e escrevem certo, sem erros, ou seja, os que reproduzem a norma culta. Em oposição, os sujeitos que fazem parte do segundo grupo são aqueles que se desviam dessa norma.

Primeiramente, é importante perceber que tal norma, descrita em instru-mentos linguísticos como, por exemplo, nos dicionários e nas gramáticas, é fruto de uma construção histórica e que, portanto, não é fixa e nem linguisti-camente superior. A imposição de uma língua padrão, mais do que criar possi-bilidades de troca e de socialização dos conhecimentos, das experiências, dos valores e das informações, passa a ser utilizada como elemento de discrimi-nação social, instaurando uma lógica preconceituosa. Tal lógica resulta numa violência simbólica e material, uma vez que preconiza: aqueles que dominam a norma considerada padrão são superiores intelectual e culturalmente e, por isso, têm maiores condições de ocupar as melhores posições nas relações de trabalho e, portanto, sociais.

A norma culta é uma entre outras formas de manifestação da linguagem, a que todos deveriam ter acesso não por se tratar da forma certa, da mais bonita ou da linguisticamente correta, mas pelo que representa socialmente, ou seja:

acesso às diferentes publicações; �

acesso a um universo cultural socialmente privilegiado; �

acesso ao conhecimento acadêmico; �

maior possibilidade de sucesso escolar; �

maior possibilidade de sucesso em concursos e em entrevistas, ou seja, �em processos de avaliação;

possibilidade de participação ativa nas diferentes esferas sociais; �

acesso a diferentes textos orais e escritos. �

Chamamos atenção para o fato de que o reconhecimento da importância do domínio da norma culta não deve implicar a desqualificação de outras formas de manifestação de linguagem, como se fossem erradas ou sinais de desvios ou

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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão

distúrbios. Estudos que discutem questões relativas à linguagem e às formas de organização da sociedade brasileira têm, sistematicamente, denunciado que a linguagem no país infelizmente vem sendo utilizada como elemento de discri-minação social.

Como resultado desse processo, observamos tentativas de fazer valer as se-guintes ideias referentes aos indivíduos que não dominam a língua padrão: que a causa do seu não aprendizado está associada a falhas e/ou distúrbios cogniti-vos, orgânicos ou culturais inerentes a esses indivíduos e aos grupos a que per-tencem; que esses indivíduos se encontram destituídos não só de uma língua e de uma cultura, mas, sobretudo, do saber que lhes possibilitaria compreender e intervir na realidade.

A compreensão da discriminação social que incide sobre parte da população brasileira, em razão de suas variedades linguísticas, depende de um breve res-gate histórico acerca do processo de oficialização do português como a língua nacional e da definição da norma culta no país.

Talvez nunca tenhamos parado para pensar como esses processos ocorreram por considerá-los uma decorrência natural do fato de o Brasil ter sido, de 1500 a 1822, colônia de Portugal. Contudo, estudos revelam que a oficialização da língua portuguesa não ocorreu de forma natural, mas foi resultado de conflitos de interesses.

Como é de conhecimento de todos, a formação da população brasileira de-correu da miscigenação de diferentes origens populacionais – índios, negros, italianos, portugueses, japoneses –, que possuíam línguas e culturas diversas. Cabe esclarecer que, na primeira década do século passado, o português não era a língua adotada, predominantemente, entre os que viviam no Brasil, nem mesmo nos centros urbanos em formação. Línguas estrangeiras e variedades de línguas indígenas eram utilizadas por um número maior de pessoas do que o português.

Mediante a insistência de tal quadro, grupos dominantes passaram a desen-volver de forma sistemática, a partir do século XIX, uma série de iniciativas obje-tivando a uniformização da língua nacional por meio da imposição do português e em detrimento dos diferentes falares de nossa população. Entre tais iniciativas podemos citar a construção de gramáticas, de dicionários, a obrigatoriedade do ensino da língua portuguesa nas escolas, o fechamento de escolas estrangeiras e a criação de leis específicas.

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Historicamente, a construção de gramáticas e de outros instrumentos lin-guísticos atendem a interesses de grupos dominantes que legitimaram uma de-terminada variante linguística como um dos meios de exercer o poder e, para legitimá-la, desenvolveu-se toda uma perspectiva ideológica. Ao fazer tal cons-tatação, Gnerre (1991, p. 15) afirma que: “a língua dos gramáticos é um produto elaborado que tem a função de ser uma norma imposta à diversidade”.

Importante lembrar que esse é um processo que não se restringe à questão linguística, mas diz respeito à educação como um todo e a toda forma de produ-ção e manifestação cultural. Vejamos um exemplo bastante conhecido entre os historiadores da arte. Foi pedido a Caravaggio, por volta de 1600, que ele fizesse uma tela representando São Mateus escrevendo o Evangelho. A pintura feita por ele, reproduzida a seguir, traz a imagem de um pescador pobre e maltrapilho, com os pés sujos, a pele marcada pelo trabalho manual pesado, segurando algo que era totalmente estranho a um pescador analfabeto: um livro. Ele o segura sem jeito e, não sabendo escrever, um anjo guia sua mão com a pena.

Dom

ínio

púb

lico.

São Mateus, 1602. Caravaggio. Óleo sobre tela.

A Igreja, tendo entendido a pintura como uma grave ofensa a seus princípios, pediu que ele refizesse a tela. Um novo São Mateus foi pintado, dessa vez sendo representado com vestes mais “apropriadas” à importância que a Igreja lhe atri-buía, não mais com a aparência de um pescador que traz consigo as marcas e o cansaço do difícil trabalho diário, mas com a aparência de um homem culto e

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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão

distante do trabalho manual. Até mesmo uma aura foi incluída de forma a deixar clara a santidade do personagem que estava sendo representado. O anjo não mais guia sua mão, agora apenas lhe dita o que deve ser escrito. O livro, antes apoiado sobre o joelho de um pescador, agora é apoiado sobre uma apropriada mesa de trabalho que todo homem culto ou de melhor condição social tem em sua casa para escrever e trabalhar.

Dom

ínio

púb

lico.

A Inspiração de São Mateus, 1602. Caravaggio. Igreja de São Luís dos Franceses. Roma. Óleo sobre tela.

Obviamente, a imagem “oficial” é a segunda. Embora a primeira seja muito mais honesta, o que está em jogo é a definição de certos padrões considerados mais apropriados e a construção de uma certa história e de um modelo de repre-sentação dessa mesma história.

Da mesma forma, Orlandi (1997) nos oferece elementos para compreender como a norma linguística não é neutra, tampouco se justifica por suas qualida-des linguísticas, mas é determinada por questões sociais, políticas e históricas:

A unidade do Estado se materializa em várias instâncias institucionais. Entre essas, a construção da unidade da língua, de um saber sobre ela e os meios de seu ensino (a criação das escolas e seus programas) ocupa uma posição primordial. A gramática, enquanto objeto histórico disponível para a sociedade brasileira, é assim lugar de construção e representação dessa unidade e dessa identidade (Língua/Nação/Estado). (ORLANDI, 1997, p. 6)

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A definição de uma norma linguística e sua identificação com a norma culta decorrem de uma série de conceitos e ações diretamente ligados às condições de domínio e de uso da oralidade e da escrita, conforme analisa Barros (1997):

a existência de um discurso de norma que classifica os fatos linguísticos em bons, corretos, 1. errados, belos etc., de que decorre o caráter prescritivo da norma culta;

a remissão a um aparelho de referência, isto é, a usuários de autoridade e prestígio em 2. matéria de linguagem e a academias, gramáticas e dicionários;

a imposição na escola, na imprensa e na administração pública. 3.

Isso permite entender algumas das justificativas, utilizadas para a imposição do português e da norma culta, formuladas com base na ideia de que o portu-guês foi vitorioso porque as outras línguas faladas em nosso país eram inferiores. Essa visão pode ser percebida nas colocações a seguir:

A língua indígena era pobre, simples, rudimentar, sem passado literário, era instrumento de um povo rude, de cultura primitiva. Ao invés, o português era rico, complexo, maleável, possuidor de uma tradição literária. Esta língua superior era dos invasores e dos dominadores. Passada aquela preponderância do tupi, o português entrou a desenvolver sua força e expansão. Resultado: as populações indígenas que tinham o tupi como língua materna passaram a falar o português, isto é, abandonaram a sua língua e adquiriram a outra. (MELLO, 1971, p. 51)

[...] o português, transplantado, sofreu um rude abalo. Passou por vicissitudes mil, decorrentes das condições históricas, sociais e geográficas da formação brasileira, sofreu concorrência do tupi, foi altamente deturpado na boca de índios e mamelucos, e na boca dos pretos, ficou ilhado em muitos pontos do território nacional, que se imunizaram do bofejo civilizador. Mesmo depois que reagiu e se adaptou às novas condições de vida, mesmo depois que foi tonificado pelas injeções de sangue novo, as levas de emigrantes lusos que, sucessivas, buscavam a Colônia, mesmo depois que se pôde acastelar na língua escrita, teve de ser usado por um povo que já tinha outra afetividade que não a portuguesa, outro espírito nacional, outra maneira de sentir e interpretar a vida. (MELLO, 1971, p. 18)

Contudo, análises que apontam para outra direção vêm sendo formuladas para explicar – ou, melhor dizendo, questionar – a “vitória do português” e “a superioridade da norma culta”. Os próprios Parâmetros Curriculares Nacionais reconhecem que

[...] existe muito preconceito decorrente do valor atribuído às variedades padrão e ao estigma associados às variedades não padrão, consideradas inferiores ou erradas pela gramática. Essas diferenças não são imediatamente reconhecidas e, quando são, são objeto de avaliação negativa.

Para cumprir bem a função de ensinar a escrita e a língua padrão, a escola precisa livrar-se de vários mitos: o de que existe uma forma ‘correta’ de falar, o de que a fala de uma região é melhor, de que é preciso “consertar” a fala do aluno para evitar que ele escreva errado.

Essas crenças insustentáveis produziram uma prática de mutilação cultural [...]. (BRASIL, 1998, p. 31)

A análise acerca da oficialização do português como língua nacional e da de-finição da norma culta como superior mereceria um curso a parte. Para o aspecto

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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão

Violência simbólica nas práticas de letramento(BERBERIAN; MASSI, 2006, p. 19-31)

[...]

Preconceitos processados na e pela linguagem escrita[...]

É com perplexidade que nos deparamos com crianças fragilizadas e in-seguras em relação às suas possibilidades de adquirir, efetivamente, tal mo-dalidade de linguagem. Sentimentos de incompetência, de ignorância e de inferioridade podem ser apreendidos, recorrentemente, nos discursos e nas posturas de tais crianças, bem como de seus familiares, anunciando um des-tino perverso, porém aparentemente lógico e inevitável, marcado pelo seu fracasso escolar e social.

Se crianças ditas normais estão predestinadas a aceitar sua condição de maus leitores e escritores, aquelas portadoras de limitações orgânicas, per-

que estamos discutindo, interessa saber que a oficialização do português não ocorreu pacificamente, porque essa língua não apresentava características su-periores às outras faladas e escritas no país. Tal processo efetivou-se a partir da imposição dos grupos sociais política e economicamente dominantes, como resultado das medidas de unificação da língua, desenvolvidas principalmente pelas escolas e pelos meios de comunicação.

O que foi exposto nesta aula oferece elementos para entender como, histo-ricamente, as representações construídas acerca da linguagem estão ligadas a imagens opostas: aqueles que falam/escrevem o português considerado padrão são considerados brasileiros, patriotas, inteligentes, ricos, cultos, socialmente su-periores; aqueles que não falam/escrevem o português ou não falam/escrevem a sua variante padrão carregam o estigma de subversivos, traidores da nação, ignorantes marginais e, até mesmo, portadores de distúrbios.

Texto complementar

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ceptuais e/ou motoras, uma vez consideradas de alto risco para desenvolver distúrbios de leitura e escrita, devem resignar-se diante de tal destino.

Essa perplexidade se acentua ao evidenciarmos que tal visão, ao ecoar com força nos discursos e nas experiências vividas por tais crianças e seus familiares, não só representa uma voz constitutiva do censo comum acerca de tal problemática, como também é reiterada e legitimada por profissionais que atuam com práticas de leitura e escrita nos campos da educação e da saúde.

[...]

Projeções negativas em torno do percurso que grupos de crianças es-tariam predestinados a trilhar e previsões de que deficiências e alterações devem fazer parte desse percurso reduzem processos de aquisição da leitu-ra e escrita à constituição e/ou à confirmação de problemas precocemente anunciados. Tal armadilha é, sem dúvida, um dos principais problemas vi-vidos pelas crianças ao longo desse processo, bem como por aqueles que participam de sua vida. A expectativa negativa reduz as possibilidades de domínio da leitura e escrita, o que pode resultar em produções escritas avaliadas como pouco elaboradas e com problemas formais, fato esse que, ironicamente, pode ser avaliado como a materialização do problema, já anunciado. É como se o distúrbio de leitura e escrita pudesse, a exemplo de determinados problemas orgânicos, ser avaliado precocemente. A exemplo do que hoje é possível – em razão dos avanços tecnológicos – em casos de perdas auditivas ou de síndromes, enfim, de problemas que às vezes podem ser identificados antes mesmo do nascimento das crianças, medidas para antecipar o diagnóstico e estimular precocemente habilidades consideradas pré-requisitos para o desenvolvimento da linguagem escrita têm sido o foco de atenção de grupos de educadores, médicos e terapeutas.

[...]

Aprisionadas por uma lógica excludente e preconceituosa, crianças têm introjetado uma imagem e uma consciência de si como de maus leitores/escreventes. Enfim, experiências com a linguagem escrita marcadas pelo es-tigma do erro, do desvio e da incompetência balizam de forma negativa a construção da linguagem escrita, configurando trajetórias de sofrimento e de traumas (MASSI, 2004; GARCIA, 2004; DAUDEN & ANGELIS, 2004). Não se

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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão

trata, pois, de uma problemática que se resolve, aos moldes de uma lógica in-dividualista e organicista. Com base na detecção e descrição de deficiências individuais e na elaboração de programas de estimulação. Antes, a resolução dessa problemática passa por uma mudança no olhar dos envolvidos – pais, educadores, fonoaudiólogos, pedagogos, psicólogos, psicopedagogos, sob dois aspectos: o processo de construção da linguagem escrita e a relação dessa modalidade de linguagem com a oralidade.

Quanto à construção da linguagem escrita, é de considerar que esse pro-cesso se dá em duas dimensões francamente interligadas: a escolar e a fami-liar. A construção da linguagem escrita, ou, mais precisamente, a constituição do letramento pode ter início nas práticas de interação familiar ainda me-diatizadas pela oralidade (ROJO, 1998). Nessas práticas, a linguagem escrita pode ser recortada, significada e alçada à condição de objeto culturalmente relevante e privilegiado. Assim, a criança tem a oportunidade de (re)conhecer, precocemente, o que é a escrita, para que ela serve, como e em que situações ela é usada ou quem a utiliza. Essa criança pode, ainda, participar de práticas de escuta da linguagem escrita oralizada, ou seja, os adultos leem para ela e, nesses eventos de letramento, ela acessará a linguagem escrita e poderá compreender a escrita “como um outro modo de falar” (LEMOS, 1988).

[...]

Crianças que brincam de ler e escrever podem assumir, desde cedo, o lugar de quem sabe e pode ler e escrever, e assim têm a chance de construir com a linguagem escrita uma relação prazerosa, significativa e relevante do ponto de vista social e cultural.

Quando essas crianças chegam à escola, já dominam boa parte dos co-nhecimentos necessários ao aprendizado formal. Utilizam-se da chamada variedade linguística padrão ou “norma culta”; (re)conhecem os portadores de textos, seus usos e funções; detêm as competências básicas para as práti-cas de escuta de textos orais e escritos e, por conhecerem ou mesmo domi-narem a fala letrada, acedem à linguagem escrita de maneira “natural”, sem problemas ou dificuldades.

Referimo-nos, pois, aqui, a crianças que advêm de familias que podem usar a linguagem escrita para exercer as mais variadas funções da lingua-gem, desde aquelas em práticas ligadas à organização espaciotemporal (pre-enchimento de cheques, agendas, recados, uso de mapas, guias, agendas)

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até o uso ligado a construção, transmissão e perpetuação do conhecimento. Inclui-se, também, nesse cenário, o uso da linguagem escrita para o entrete-nimento, a diversão e o lazer, além do exercício profissional. Podemos acom-panhar que famílias com tal exercício letrado tendem a pertencer a classes socioeconômicas mais favorecidas. Embora não exista uma determinação absoluta entre classe socioeconômica e grau de letramento, é inegável a correlação entre esses termos. O acesso a bens culturais – livros, revistas, in-ternet, cinema, teatro, exposições, viagens – é, ainda, em nossa sociedade, exclusivo das classes de maior poder aquisitivo, haja vista que as políticas de acesso e distribuição desses bens aos grupos socioeconomicamente desfa-vorecidos são precárias e insipientes.

[...]

Cabe, ainda, apontar para o fato de que as dificuldades e os chamados distúrbios de leitura e escrita, definidos como uma das principais causas do fracasso escolar, não atingem exclusivamente os indivíduos “carentes”. Pes-soas inseridas no sistema particular de ensino, apesar de não sofrerem carên-cias socioeconômicas, não estão livres de serem consideradas portadoras de problemas de aprendizagem/linguagem. É significativo o número de crian-ças envolvidas na rede particular de ensino que buscam sanar dificuldades de leitura escrita em clínicas fonoaudiológicas. Enfim, crianças de diferentes classes socioeconômicas acabam por alfabetizar-se tecnicamente, ou seja, são capazes de codificar e decodificar o sistema linguístico, mas encontram dificuldades em interpretar o que leem, assim como em assumir papel de autoria de seus textos.

Se problemas linguísticos, em geral, estão associados a condutas educa-cionais, desenvolvidas no sistema de ensino tanto público quanto privado, que reduzem a linguagem a instrumento de comunicação e a escrita à trans-crição da oralidade, chamamos atenção para as distintas implicações subjeti-vas e objetivas que sofrem as crianças consideradas portadoras de distúrbios de leitura e escrita provenientes de grupos socioeconômicos diferentes.

Na ânsia de impedir que seus filhos perpetuem as precárias condições de vida a que grupos sociais estão submetidos, crianças são encaminhadas às escolas para que, lá, adquiram os bens de que precisam para ascender social-mente. A mobilidade social desejada é, no entanto, um mito: a escola espera, desde sempre, que tais crianças dominem o que ela teria de ensinar. As

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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão

crianças vão para a escola para aprender tudo, incluindo “falar”, mas quando lá chegam são marginalizadas e discriminadas porque não dominam a va-riedade linguística esperada. Como não a dominam, não compreendem o que o professor explica, não interpretam os textos que leem, não escrevem “corretamente”, posto que escrevem como falam e, então, são consideradas incapazes; crianças problemáticas que não têm as condições cognitivas e lin-guísticas necessárias para aprender. A escola as expulsa sempre. O que varia, apenas, é a quantidade de anos que resistem à miríade de discriminações de que são vítimas. Uma vez fora da escola, tendem a viver relações de trabalho de exploração e de expropriação material e simbólica como seus pais.

Para essas crianças, dominar a linguagem escrita não é um processo natu-ral: ao contrário, demanda um longo tempo para que compreendam o que é a linguagem escrita, qual a sua natureza, quais os seus usos e funções e quais suas inserções nas diferentes práticas sociais.

[...]

A aprendizagem da linguagem escrita não é, no entanto, necessariamen-te um processo artificial e secundário em relação à linguagem oral, como sustentam os muitos modelos teóricos que apostam na precedência da ora-lidade em relação à escrita. Para aquelas crianças cujo perfil de letramento permitiu o contato precoce com a leitura, a escrita e a fala letrada, “aprender” a ler e a escrever é tão comum quanto “aprender” a falar e ouvir. Assim, para essas últimas, a relação entre oralidade e escrita é, como apontou Scarpa (1987), um processo de continuidade, enquanto para as primeiras trata-se de um processo de ruptura.

[...]

No primeiro caso, priorizam-se as relações que regem a conversão grafo-fonológica, e, assim, a percepção de uma relação direta, e até transparente, entre as letras da escrita e os sons da fala é soberana. No entanto, embora não se possa negar o nível gráfico de um sistema alfabético, como é o caso do português, a consideração pela dimensão discursiva permite um redire-cionamento no olhar tanto para o processo de “aprendizagem” da linguagem escrita quanto para os chamados distúrbios de leitura e escrita. Ao convocar o discurso escrito, obriga-se à consideração pela situação de produção da linguagem escrita, e, desse modo, a suposta relação biunívoca entre oralida-de e escrita dá lugar a uma outra mais complexa.

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Linguagem, cultura e poder

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A consideração pela linguagem escrita, em lugar da escrita da linguagem, permite, assim, que os textos, como unidades concretas em que se realizam os gêneros discursivos, sejam entendidos em sua relação com a situação de produção que os engendrou. Situações cotidianas, em que os interlocuto-res guardam uma relação de familiaridade e um alto grau de conhecimento compartilhado, geram textos cujo funcionamento à moda do diálogo pode ser considerado poligestionado (cf. SCHNEUWLY, 1994). A sintaxe e um re-pertório de palavras que sofrem influência de uma tradição oral são caracte-rísticos de textos que podem ir desde o bilhete e a lista até o bate-papo entre amigos ou as compras cotidianas. Bakhtin (1992) irá afirmar que tais textos são gêneros primários, regulados e utilizados em esferas sociais privadas.

Por sua vez, situações em que os interlocutores guardam uma relação hierárquica mais definida e um grau de conhecimento compartilhado vari-ável geram textos cujo funcionamento é monogestionado (cf. SCHNEUWLY, 1994). Aqui os textos são à moda do monólogo, e seu enunciador é o respon-sável pela gestão do que é dito e do como é dito. A sintaxe complexifica-se e o repertório lexical torna-se denso e especializado. A palestra, a entrevista do especialista, o editorial ou o romance seriam bons exemplos desses textos que, segundo Bakhtin (1992), são gêneros secundários, ou seja, ligados a ins-tituições sociais como a ciência, a imprensa ou a literatura.

Assim, a oposição entre gêneros primários e secundários dilui e pulveri-za uma relação simplificada entre oralidade e escrita: não há textos orais e textos escritos simplesmente; em seu lugar, há gêneros primários e secundá-rios que podem, ambos, ser orais ou escritos.

Dessa forma, a atribuição de diversas dificuldades de leitura e escrita àquelas crianças estigmatizadas por suas condições orgânicas, culturais e, principalmente, linguísticas apoia-se fortemente e, na verdade, sustenta-se por uma visão estrutural da língua escrita, na qual o escrito se sobrepõe escri-ta. Assim, pode-se falar em pré-requisitos motores, perceptuais e cognitivos e, consequentemente, culpabilizar a criança por seu fracasso escolar e, sub-sequentemente, social. [...]

São as instituições sociais responsáveis pela alfabetização e pelo letra-mento, das quais a escola é a principal, mas não a única, que não têm sido capazes de inserir as crianças em um mundo letrado. As práticas de ensino de língua materna têm talhado em sua função de promover o acesso, a

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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão

compreensão e a possibilidade de produção dos gêneros secundários, ou seja, dos gêneros formais e públicos. Ensinar a ler e a escrever não é ensinar a grafar os sons, porque a linguagem escrita é bem mais que isso: ela é uma possibilidade de inscrição e participação cidadã numa sociedade letrada.

Essa inserção e essa participação não dependem apenas da “escrita da linguagem”, mas, antes, da possibilidade de ler gêneros discursivos diversos, sendo capaz de abstrair deles a posição enunciativa, política e ideológica de seu autor, de reconhecer e interpretar seus recursos estéticos e de compre-ender (para discordar ou concordar) de seus conteúdos. Dependem também da possibilidade de produzir gêneros discursivos diversos – orais e escritos – para neles imprimir suas posições enunciativas, políticas e ideológicas, por meio do domínio de suas temáticas e de seus recursos linguísticos.

[...]

Dicas de estudoFilme � Amador, de Krzysztof Kieslowski.

O filme discute a questão da memória e do seu apagamento. O que pode ser lembrado? O que deve ser esquecido? Podemos falar de uma “política da memória”? Operário de uma fábrica descobre sua paixão pelo cinema ao adquirir uma câmera de 8mm. Passa a filmar tudo que o cerca, tornan-do-se o cronista oficial da empresa. Ao registrar um acidente de trabalho, é repreendido pelo censor político, descobrindo que nem tudo o que pre-senciava poderia ser mostrado.

1984 � , de George Orwell, Editora Nacional.

Num mundo vigiado por câmeras, onde ninguém dispõe de qualquer tipo de privacidade, o governo, na figura do Grande Irmão (Big Brother), decide o que e como as pessoas devem pensar e agir, para isso, a “linguagem” é um de seus principais instrumentos de dominação.

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Linguagem, cultura e poder

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Atividades1. Partindo do pressuposto de que a linguagem comporta dimensões sociocul-

turais e políticas entende-se que linguagem não é neutra, nem seus sentidos transparentes. Explique tal posição.

2. Partindo do pressuposto de que a linguagem comporta dimensões sociocul-turais e políticas, como as variedades linguísticas podem ser entendidas?

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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão

3. Por que todos os cidadãos deveriam ter acesso à variedade linguística padrão?

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Nesta aula discutiremos, de modo mais aprofundado, como a lin-guagem oral é desenvolvida, para então encaminharmos nossa análise para possíveis problemas que podem ocorrer ao longo desse processo. É importante deixar claro que nossa posição está assentada nos estudos sociointeracionistas, uma vez que concebemos a linguagem enquanto processo de significação, constitutivo dos sujeitos e da realidade social. Feitas essas considerações, passaremos a analisar os aspectos relativos à forma como as crianças adquirem a linguagem oral.

Como a criança adquire a linguagem oral?A criança, quando nasce, manifesta de alguma maneira suas necessi-

dades a partir de movimentos corporais e produção de sons. Tais manifes-tações, inicialmente difusas, produzem efeitos nos adultos responsáveis pela criança, uma vez que estes passam a interpretá-las e a atribuir-lhes sentidos. Essas primeiras evidências da construção da linguagem e do vín-culo adulto-criança podem ser observadas quando uma mãe, diante do choro de seu filho, atribui sentidos a esse choro falando: “o nenê está com fome”, ou “o nenê está com sono”, ou “o nenê está com dor” etc.

Motivada por uma dessas interpretações, a mãe passa a tomar atitu-des visando suprir as necessidades da criança. É a partir desse jogo, que inicialmente depende do interlocutor/adulto como aquele que fala “pela criança” ao atribuir sentido às suas manifestações, que tais manifestações passam a ter uma diferenciação.

Evidenciando o papel determinante desse tipo de atitude adotada pelo adulto no processo de desenvolvimento das crianças, notamos que, desde o nascimento, o bebê é mergulhado num universo significativo por seus interlocutores básicos, que atribuem significado e intenção às suas emis-sões vocais, aos seus gestos, à direção do olhar. Até os diferentes tipos de choro são “interpretados”, “significados” e “classificados” pelo adulto in-terlocutor. O adulto estabelece uma “sintonia fina” com as manifestações

Aquisição da linguagem oral

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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão

potencialmente comunicativas e significativas do bebê, qualquer que seja seu conteúdo expressivo (gesto, voz, balbucios). Há um ajuste mútuo nas conver-sações entre adulto e criança, de maneira que as vocalizações não caem num vácuo comunicativo.

Esse ajuste mútuo nas conversações é aquilo que pode ser chamado de “jogo dialógico”. Segundo Bakhtin, “a fala é prenhe de resposta”, ou seja, toda vez que falamos algo, ou mesmo quando apenas gesticulamos, nossos gestos e nossa fala são dirigidos a outra pessoa. Mesmo quando não estamos diante de nin-guém, isso quer dizer que nunca falamos por falar, mas que sempre falamos algo para “significar”. Esse significado é a “resposta” a qual Bakhtin se refere, e a resposta sempre vem de um outro, de um interlocutor, mesmo que ele esteja ausente. Essa atribuição de respostas, portanto de significados, é o que faz com que a fala seja um “jogo dialógico”. Quando falamos, aquilo que falamos tem um significado que foi construído nas minhas relações com um outro, com um interlocutor, com a sociedade na qual estou inserido. É por meio do diálogo que esses significados são construídos.

Nossa vida em sociedade, seja qual for ela, tem uma “lógica”. Por meio da inte-ração com o outro, por meio do diálogo, é que temos acesso a essa lógica e nela nos inserimos. Essa inserção num mundo de significados por meio da linguagem é aquilo que se pode chamar de “jogo dialógico”.

Se, nos primeiros anos de vida, a criança é interpretada pelos adultos, com o passar do tempo ela, imersa no jogo dialógico, ou seja, cada vez mais imersa na “lógica de significados” de nossa sociedade, começa a se lançar em tentativas de enunciações diferenciadas e direcionadas.

No decorrer do processo de aquisição da linguagem, espera-se que a crian-ça passe a produzir enunciados que, apesar de dependentes da interpretação e estruturação dos adultos, vão se tornando cada vez mais autônomos. Daí a suposição, de acordo com a perspectiva sociointeracionista, de que a criança se “apropria” da linguagem. Uma vez imersa nessa “lógica de significados”, ela deixa de ser simplesmente dependente da interpretação dos adultos e passa a ser, ela também, uma “intérprete” das coisas do mundo e do que é dito a ela.

Para explicar que operações a criança realiza para efetivar esse processo, Lemos (1989) identifica três processos dialógicos: o de especularidade, o de complementaridade e o de reciprocidade.

O processo de especularidade estabelece-se pela iniciativa do adulto em es-pelhar as produções vocais da criança e, ao atribuir sentidos a estas, leva a criança,

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Aquisição da linguagem oral

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por sua vez, a espelhar a forma produzida pelo adulto. Fruto desse mecanismo de recíproco espelhamento, no qual os interlocutores – a criança e o adulto – ocupam seus turnos incorporando pelo menos parte do enunciado produzido pelo outro, são produzidas as primeiras emissões linguísticas da criança, reco-nhecidas como palavras.

O processo de complementaridade prevê, nesse jogo dialógico, a inclusão de um novo elemento, formando uma unidade estrutural com um elemento já incorporado pelo par interacional. Em outras palavras, esse processo refere-se ao momento em que a criança ou o adulto retomam o enunciado, ou uma parte do enunciado do outro, e o complementam. Esse processo dá origem às pri-meiras combinações de palavras e também à própria progressão e coesão da linguagem.

A reciprocidade ocorre quando há reversibilidade de papéis, quando o adulto e a criança interagem de modo a permutar também os seus papéis dialógicos. Para vislumbrar esse processo, podemos nos remeter a uma situação que carac-teriza a relação adulto/criança no período da primeira infância, mais comumen-te entre o primeiro e segundo ano de vida. A situação é a seguinte:

Diante de uma criança que emite sons como a, i ou que, o adulto que compartilha dessa situação passa a dizer: “você quer ‘a?’, é água que você quer?”; “’i?’, você quer fazer xixi?”; ou “quer a bolacha?”. O adulto incorpora os enunciados da criança e os complementa por meio de um jogo interpre-tativo. A partir daí, respondendo às perguntas feitas pelo adulto, a criança elabora respostas como: “qué á-ua”, ou “xixi”, “qué lacha”.

Nesse jogo dialógico, a criança, embora ainda dependa do adulto para in-terpretar sua fala, ocupa nessa interação um lugar de interlocutor que passa a introduzir novos elementos no diálogo e é complementar à fala do adulto.

É interessante notar como, conforme a criança passa a ter maior autonomia no seu discurso, o adulto não se satisfaz mais com o choro ou com a emissão de sons, para lançar interpretações sobre as manifestações da criança. Se, num momento, basta que a criança chore para que o adulto passe a atribuir sentidos a essa manifestação e a agir, no decorrer de seu processo de desenvolvimento, o adulto espera uma linguagem mais elaborada pela criança, colocando-a no lugar de um sujeito capaz de tal realização. É a partir desse momento que os adultos solicitam à criança que se esforce para dizer o que deseja. Se, antes dessa fase, o adulto aceitava uma palavra como uma frase, a partir dessa fase começa a solicitar que ela estabeleça combinações e relações entre as palavras.

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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão

Decorrente dessa posição, é comum escutarmos adultos dizerem às crianças: “chorar não adianta, eu preciso saber o que você quer”; “assim eu não entendo o que você está dizendo”; “se você só aponta, eu não sei o que você quer, vou esperar você dizer”; “dá o quê? doce? Mas que doce você quer?”.

Essa atitude por parte do adulto, fundamental para que o processo de aqui-sição da linguagem se efetive, só é possível quando o adulto deixa de ocupar o lugar daquele de quem a criança depende para dizer o que deseja e passa a esperar que esta assuma, de maneira cada vez mais sistemática, o lugar de um sujeito ativo nesse processo. Ou seja, a criança passa da condição de “interpreta-da” para a condição de “intérprete”.

O papel das narrativas no processo de aquisição da linguagem

Levando em consideração os processos de especularidade, complementari-dade e reciprocidade anteriormente expostos, fica claro que o diálogo é a ativi-dade determinante no processo de aquisição da linguagem.

É importante esclarecer que dialogar não quer dizer apenas emissão e re-cepção de palavras e frases por dois sujeitos. O diálogo tem um papel determi-nante na aquisição da linguagem por parte da criança. Por exemplo, o ato de contar histórias – de conto de fadas, de medo, de aventura, de amor, pessoais ou de outras pessoas – vivenciadas num passado distante ou próximo é uma atividade determinante para que a criança passe a organizar linguisticamente experiências vivenciadas ou não por ela e, portanto, a elaborar seu discurso. Ou seja, essas narrativas são base fundamental para que, depois, a criança elabore as suas próprias.

Para que a criança adquira autonomia nas suas narrativas e, portanto, na elaboração de seus discursos e textos, faz-se necessário que, ao longo de sua infância, compartilhe, de modo recorrente, da experiência de narrar histórias conjuntamente com adultos. Essa ação conjunta é fundamental, pois o adulto, nas suas diferentes formas de contar, e dependendo da forma como insere a criança nesse jogo, pode levá-la a assumir diferentes papéis e modos de parti-cipação. Chamamos atenção para o fato de que uma mesma história pode ser contada e recontada pela criança a seu interlocutor de formas bastante diversas, atribuindo a ambos papéis bastante distintos. Para que a criança tenha a opor-tunidade de vivenciar perspectivas e contextos distintos, é fundamental que ela

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Aquisição da linguagem oral

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e o adulto, nesse jogo de contar histórias, alternem papéis e turnos conversacio-nais, ocupando ora o lugar de quem acompanha/ouve, ora de quem formula a história/narra.

Os diferentes modos de agir, as diferentes posições assumidas pelos parti-cipantes nos eventos narrativos e essa troca de papéis permitem que a criança adquira autonomia narrativa, ou seja, que ela torne a sua narrativa cada vez mais coesa e cada vez mais coerente.

Quando vai para a escola, a criança já percorreu parte de um longo caminho para a elaboração de sua linguagem. Ela continuará a percorrer esse caminho, dentro e fora da escola. Assim, cabe ao educador compreender e respeitar o co-nhecimento que a criança já possui e propiciar novas experiências de maneira que ela adquira, cada vez mais, autonomia em sua fala, de que ela possa, cada vez mais, ser narradora de sua própria história e intérprete de tantas outras.

Linguagem e pensamentoEstá claro, portanto, o papel do interlocutor no processo de aquisição da lin-

guagem. Está claro, também, o papel “estruturante” que a linguagem tem sobre o pensamento. Contudo, há outro aspecto ligado a esse processo que merece uma certa atenção: qual a diferença entre língua e linguagem? Quando dizemos oralidade e escrita, estamos nos referindo a duas “modalidades” de linguagem.

A “linguagem artística”, por exemplo, não tem nada a ver com a linguagem oral ou escrita, ou seja, com uma “modalidade” de linguagem. A mesma coisa pode ser dita da “linguagem musical”, da “linguagem publicitária” ou da “lingua-gem computacional”. Quando vemos uma “pomba branca” pintada, sabemos que ela é uma representação da paz. Assim como uma “boca amordaçada” re-presenta censura. E assim por diante. Todos esses símbolos, embora façam parte de “linguagens” específicas, como a pintura, por exemplo, não se estruturam com base em uma “língua”. São conjuntos de símbolos que podem ser utilizados das mais diversas formas e na combinação com muitos outros. Não existe uma maneira “certa” ou “errada” de se usar uma “pomba branca” num quadro, mesmo quando não sabemos interpretar a intenção estética do artista, ou seja, a idéia que ele quis passar com a pintura.

Muito diferente disso são as linguagens oral e escrita. Quando a criança diz “qué á-ua”, não estamos diante, tão somente, de um símbolo ou de uma repre-sentação, mas diante de uma frase com uma estrutura sintática, ou seja, diante de

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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão

uma “língua”. “Á-ua” não é um símbolo isolado, mas articulado com outro, “qué”, segundo uma lógica estrutural própria. Se compreendemos a frase “qué á-ua” é porque somos capazes de compreender duas coisas ao mesmo tempo: as pala-vras e a estrutura da frase. Estamos diante da combinação de duas dimensões particulares, a semântica (palavras) e a sintática (a estrutura das frases) numa só. É isso que marca a diferença entre uma língua, e, com isso, entre as linguagens oral e escrita, e as demais “linguagens”, como a pintura, por exemplo. A combina-ção dessas duas dimensões confere um caráter às linguagens oral e escrita que é impossível de encontrar nas demais linguagens: todas as dimensões e aconte-cimentos relativos ao nosso dia a dia e ao nosso mundo podem ser “pensados” e expressos por meio da língua. As demais linguagens, como a pintura e a música, por exemplo, podem tão somente “expressar” ou “representar” certas idéias, mas elas não nos permitem “pensar” todas as dimensões da nossa vida.

A partir do momento em que passamos a elaborar “frases”, passamos também a elaborar nosso “pensamento”, ou seja, a “língua” passa a “estruturar” a própria cognição. É aquilo que os neurolinguístas chamam, hoje, de “língua do pen-samento”. Isso representa uma mudança extremamente significativa tanto no processo de aquisição da linguagem quanto no desenvolvimento cognitivo da criança. Significa também dizer que, a partir do momento em que se adquire linguagem, não há possibilidade de “pensamento” fora dela.

E com isso ocorre uma divisão entre os teóricos do interacionismo. Para o sociointeracionismo, a aquisição da linguagem oral deve ser entendida menos como aquisição e mais como uma “apropriação” da linguagem. Isso porque a aquisição da linguagem representa a possibilidade de um “trabalho” sobre ela, ou seja, representa a possibilidade da apropriação dos instrumentos necessários tanto à interação social quanto à afirmação da subjetividade dos indivíduos. Se é por meio da linguagem que eu penso e interajo com o mundo, é só por meio da sua apropriação que posso, efetivamente, pensar e agir sobre esse mesmo mundo.

Há uma outra corrente do interacionismo, no entanto, que, baseada no pensamento de Lacan, afirma que a aquisição da linguagem é, também, uma apropriação. Contudo, não é o indivíduo que se apropria da linguagem, mas a linguagem que se apropria do indivíduo. Se, a partir do momento em que come-çamos a elaborar frases, começamos, também, a organizar nosso pensamento de acordo com a “estrutura” dessas frases, ou seja, com base na sintaxe de uma

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Aquisição da linguagem oral

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língua, significa que só podemos pensar aquilo que essa mesma “estrutura”, que essa sintaxe, nos permite pensar. Se não há possibilidade de pensamento fora da linguagem (após sua aquisição, evidentemente, uma vez que o ser humano “pensa” mesmo quando não possui linguagem), então nosso pensamento passa a ser “determinado” por ela.

Essas duas correntes concordam, no entanto, que a partir do momento que estruturamos nossas frases com base numa sintaxe, estruturamos também o pen-samento com base nessa mesma sintaxe. Não podemos mais pensar o mundo se não por meio da “língua”. Quando vamos aprender uma segunda língua, por exemplo, os erros que cometemos são, na maior parte das vezes e por muito tempo, de sintaxe. Por que isso? Porque nosso pensamento se baseia na nossa “língua do pensamento”, a língua que adquirimos na infância e que tem uma sin-taxe própria. Como “pensamos o mundo” a partir dessa sintaxe, dessa “estrutura”, temos dificuldade de pensar o mundo a partir de outra.

Muitas dificuldades de aprendizagem derivam disso e da questão política, de poder, que há por trás delas. Sabemos, por exemplo, que, numa sociedade, não há “uma só gramática”, mas sim variações linguísticas. Supor que possa haver uma só gramática para uma sociedade é a mesma coisa que supor, segundo Eliseo Verón (1980), que possa haver uma única forma de pensamento para toda a sociedade, ou seja, é a mesma coisa que supor que possa haver uma só sinta-xe, uma só “estrutura” para se pensar o mundo. Não existe uma única sociedade sequer no mundo em que isso possa acontecer, em que haja só uma gramáti-ca, só uma sintaxe, só uma forma de pensamento. Há, isso sim, a imposição, no ensino, de uma forma em detrimento de outras. Uma “gramática” e uma sintaxe, então, consideradas “corretas”, e outras consideradas “erradas”.

O que significa que quanto mais próximo o aluno estiver da “linguagem” uti-lizada no ensino, mais ele terá chances de aprender, e quanto mais distante ele estiver dessa “linguagem”, mais difícil será aprender. As dificuldades que esses alunos têm são muito semelhantes às que nós temos quando vamos aprender uma segunda língua. A sintaxe e os termos utilizados na escola, muitas vezes, estão tão distantes da sintaxe e dos termos que fizeram parte da origem e da infância dos alunos, portanto da sua “língua do pensamento”, que o aprendizado é equivalente à aquisição de uma segunda língua. Muitos têm dificuldade para aprender, portanto, porque as diferenças de sintaxe, de “línguas do pensamen-to”, tornam certos conteúdos incompreensíveis para eles.

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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão

Texto complementar

Linguagem e paralisia cerebral: um estudo de caso do desenvolvimento da narrativa

(MASSI, 2001, p. 53-61)

[...]

O discurso narrativo na infânciaCom o objetivo de explicar como se desenvolve o discurso narrativo oral

na infância, Perroni (1992) faz um acompanhamento longitudinal de duas crianças brasileiras, entre dois e cinco anos de idade. Trata-se de uma pesqui-sa que enfatiza a origem dialógica do discurso, pois analisa a produção lin-guística da criança sem abstraí-la de sua relação com o dizer do outro. Nesse sentido, além de tomar a interação verbal como unidade mínima de análise, a autora considera o contexto em que se dá tal interação e, assim, explica:

A propósito do termo “contexto”, um conceito chave em toda a análise linguística recente, convém lembrar que não é de fácil definição. O termo é usado tanto para a referência a contexto linguístico como para contexto físico imediato (em que são relevantes a localização no tempo e no espaço, e a atividade em que os interlocutores estão envolvidos) e para contexto extrassituacional (que se refere aos conhecimentos e crenças sobre objetos, eventos e estados de coisas), [...]. (PERRONI, 1992, p.12).

[...]

De acordo com a autora, para que um texto seja considerado narrativo, ele deve obedecer aos seguintes critérios linguísticos:

existência de dependência temporal entre um evento � e outro;

uso de enunciados que expressem essa dependência temporal atra- �vés de verbos de ação;

emprego do tempo perfeito. �

Porém, esses critérios têm sido utilizados para identificar textos narrati-vos de adultos e não podem ser levados à risca no início do processo de desenvolvimento linguístico da criança, momento em que ela ainda não é capaz de narrar. [...]

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Aquisição da linguagem oral

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A perspectiva processual adotada pela autora nos auxilia a perceber que as produções linguísticas de suas crianças-sujeito vão apresentando modi-ficações, pois elas gradualmente se apropriam de recursos que as tornam mais independentes de seus interlocutores adultos. Conforme Perroni, as crianças ampliam seu papel no discurso à medida que passam por três fases distintas, constitutivas do discurso narrativo: a fase da protonarrativa, a da narrativa primitiva e a da narrativa propriamente dita.

A protonarrativa é definida como uma estrutura embrionária desse tipo de discurso. Desenvolve-se a partir de uma atividade de construção conjun-ta, na qual adulto e criança estão envolvidos. Por volta de dois anos de idade, a criança apresenta suas primeiras tentativas de narrar em função das per-guntas que o adulto lhe dirige. Segundo a autora, a elaboração de respostas a essas perguntas originará o início da constituição do discurso narrativo. As perguntas do adulto tornam-se cada vez mais constantes e classificam-se em três grupos:

as que recaem sobre a localização espacial do evento a ser evocado – �“Onde você foi?”;

as que incorrem sobre os personagens que participaram do evento – �“Com quem?”; “Quem fez?”; “Quem?”;

as que interrogam a ação em si – “O que aconteceu?”; “O que você �fez?”.

[...]

Neste exemplo, observamos que o papel do adulto é mais ativo nessa fase inicial. Ele pergunta e a criança responde. Assim, os interlocutores constroem, juntos, um verdadeiro “jogo de contar”, no qual a criança mostra-se capaz de perceber os turnos conversacionais e de assumir seu papel no diálogo. Além do jogo de contar que se instaura por perguntas e respostas, num processo em que não existe uma situação completa a ser narrada, a criança também tem acesso à estrutura da narrativa através de “estórias” que o adulto lhe conta. Nesse caso, embora se coloque como espectadora, ao contrário do jogo a criança se vê diante de uma situação completa previamente construída. Assim, desde a sua fase embrionária, a narrativa se desenvolve a partir da ação conjunta na qual estão envolvidos a criança e o adulto, interlocutor básico. Depois dos três anos de idade, a criança vai apresentar, já na fase das narrativas primitivas, formas distintas de narrar identificadas como “estórias”, “relatos” e “casos”.

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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão

As “estórias” assumem grande importância no desenvolvimento desse tipo de discurso, pois se apresentam com “enredo fixo”. É o que ocorre, por exemplo, com as estórias clássicas: “Chapeuzinho Vermelho”, “Os Três Porqui-nhos”, entre tantas outras. Em função da invariabilidade de seus conteúdos, apresentam marcas linguísticas que auxiliam a criança a estruturar suas nar-rativas. Tais marcas caracterizam a abertura da estória (era uma vez), intro-duzem a ação a ser contada (daí; então; depois) e, além disso, são respon-sáveis pelo seu fechamento (foram felizes para sempre; acabou a história). Em princípio, conforme apontamos acima, a criança simplesmente ouve as estórias narradas pelo adulto. Em seguida, ela passa a contá-las e recontá-las em conjunto com seu interlocutor para, mais tarde, narrá-las com maior independência.

Os “relatos”, segundo Perroni (1992), se caracterizam como aquele tipo de narrativa no qual a criança recupera linguisticamente experiências pessoais vivenciadas por ela em momentos anteriores ao da enunciação. Ao contrário das estórias, nos relatos o compromisso do narrador já não é mais com o “enredo fixo” e sim com “verdades” que devem ser respeitadas no momen-to em que a criança relata fatos efetivamente vivenciados e que foram, na maioria das vezes, compartilhados com o adulto. Trata-se de contar eventos/ações tais como viagens, passeios etc. Entretanto, em princípio a criança não consegue elaborar um relato completo. Ela menciona, nas primeiras fases, somente parte de um evento, só um aspecto da situação que vivenciou.

Os “casos”, de acordo com a autora, surgem em um determinado está-gio do desenvolvimento linguístico, em que a criança apresenta dificulda-des para preencher seus turnos. Com o objetivo de suprir essas dificuldades, ela passa a se utilizar de estratégias linguísticas e extralinguísticas definidas como “colagens”, “combinações livres” e “apoio ao presente”.

A “colagem” é identificada como uma estratégia que a criança usa para incorporar em sua narrativa fragmentos do discurso do outro, geralmente retirados de estórias, músicas etc.

As “combinações livres” são estratégias que podem ocorrer no nível do léxico e, nesse caso, caracterizam-se como expressões que não são semanticamente interpretáveis. São construções criativas produzidas pela criança para preencher espaços gramaticais que ficariam vazios. Essas combinações também podem se manifestar no nível do discurso, sendo então percebidas como construções linguísticas que não respeitam a ordem dos eventos/ações.

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Aquisição da linguagem oral

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O “apoio ao presente” é descrito como um recurso extralinguístico através do qual a criança inclui na sua narrativa experiências pessoais vivenciadas por ela no exato momento da interação. Tal recurso também pode ser evi-denciado à medida que a criança, na situação da enunciação, utiliza objetos presentes para desencadear lembranças de eventos que já ocorreram no passado.

[...]

Segundo Perroni (1992), na fase das narrativas primitivas, a criança cons-trói, junto com o adulto, técnicas para narrar. As estórias abrem para ela a possibilidade de construir a ficção através da linguagem, libertando-a do concreto. O relato, por sua vez, faz com que mantenha um compromisso com a plausibilidade, e o caso resulta de uma espécie de cruzamento entre esses dois tipos de narrativa. Em outras palavras, o caso oferece à criança a oportunidade de operar, simultaneamente, com o relato de experiência pes-soal e com a estória de ficção.

Depois dos quatro anos de idade a criança começa a tomar iniciativa para relatar eventos passados. Nessa fase, Perroni reconhece o último estágio do desenvolvimento do discurso narrativo, no qual ocorrerão transformações nos papéis dos interlocutores do diálogo. A criança vai se tornando mais independente nas suas produções discursivas à medida que se utiliza de pontos de referência para ordenar eventos que já aconteceram. Esses pontos de referência surgem através das eliciações de suas lembranças, provocadas pelo adulto ao usar expressões como “lembra” e “sabe”.

A partir daí, o adulto, que assumia uma posição mais ativa, passa a se colocar como um interlocutor que estabelece uma relação de simetria com a criança. Porém, conforme relata Perroni (1992), ao contrário do que pode-ríamos supor, essa situação simétrica não é alcançada de forma suave, pois ao mesmo tempo que a criança adquire uma certa autonomia discursiva, o adulto passa a lhe cobrar mais plausibilidade, limitando suas criações livres e provocando uma situação de tensão na interação verbal.

O interlocutor adulto, que nas fases iniciais aceitava e até mesmo incen-tivava as criações livres da criança, passa a rejeitar aquelas produções lin-guísticas que não refletem a plausibilidade do relato ou a invariabilidade das estórias. A criança, por sua vez, mantém-se em um papel ativo, pois enfrenta o adulto mantenedor de conflito.

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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão

[...]

No âmbito dos estudos sobre a aquisição de linguagem, a pesquisa de Perroni mostra-se fiel à perspectiva sociointeracionista, pois apreende na in-teração, na relação dialógica estabelecida entre o adulto e a criança, o desen-volvimento do discurso narrativo.

Em nenhum momento a autora preocupou-se em descrever produtos lin-guísticos estáticos, colhidos em situações de experimento. Ao contrário, sua atenção – com base numa visão processual – esteve voltada para o processo de construção do discurso pela criança. A orientação pela dimensão discur-siva revelou, na intersubjetividade, a função constitutiva da linguagem para os sujeitos do discurso, pois, sob essa visão, é através da linguagem que a criança se constitui como narradora, reconhece o outro como interlocutor e, a partir dele, mostra-se capaz de elaborar seu discurso, reconstruindo a realidade.

[...]

Dica de estudoFilme � O Garoto Selvagem, de François Truffaut.

Baseado no livro de Jean Itard, a história narra o drama de um garoto no final do século XVIII, que supostamente nunca teve contato com a sociedade do mundo civilizado. Ele não anda como um bípede, não fala, não lê e nem escreve. O garoto é resgatado por volta dos doze anos de idade e passa a ser objeto de estudo de um professor ganancioso, a fim de provar seu conhecimento da condição humana. A história é baseada em fatos reais.

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Aquisição da linguagem oral

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Atividades1. Com base na perspectiva sociointeracionista, para que o processo de apro-

priação da linguagem oral ocorra de forma adequada, é necessário que o adulto medie esse processo de que forma?

2. Quais são as três operações que acontecem no processo dialógico?

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Como lidar com as regularidades e particularidades que caracterizam crianças que encontram dificuldades no desenvolvimento da linguagem oral?

Nesta aula, passaremos à apresentação e à discussão de possíveis pro-blemas que podem ocorrer nos processos de aquisição da linguagem oral. Apresentaremos aspectos que caracterizam quadros denominados como: retardo de linguagem, distúrbio fonológico e, por último, gagueira. Espe-ramos que não se percam de vista que

os termos utilizados para denominar tais quadros foram seleciona- �dos por serem, preferencialmente, adotados por profissionais que desenvolvem uma atuação clínica com crianças que apresentam problemas de fala, os fonoaudiólogos;

optamos por discutir tais quadros por serem os que apresentam �maior ocorrência entre crianças e que não estão associados a com-prometimentos orgânicos e emocionais significativos. Excluímos, portanto, a discussão de quadros de linguagem associados a lesões cerebrais, a perdas auditivas, a problemas de má-formação, a sín-dromes, a psicoses;

optamos em discutir tais quadros, pois reconhecemos um papel im- �portante que os educadores, de modo geral, podem desempenhar em tais casos;

com a apresentação dos aspectos que caracterizam tais quadros não �pretendemos corroborar procedimentos e atitudes que busquem encaixar as crianças em quadros predeterminados. Não pretende-mos que tais apresentações sirvam para encapsular as crianças em determinados quadros e classificações teoricamente construídos;

Problemas relativos à aquisição da linguagem oral

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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão

embora seja possível identificarmos nas crianças certas regularidades que �as inserem num determinado quadro considerado fora dos padrões, é im-prescindível que nosso olhar recaia sobre as suas particularidades. Deve-mos ter cuidado para não tratar tais crianças como “velhas conhecidas”, ou seja, para não transformá-las num exemplo vivo das características espe-radas num determinado quadro considerado desviante;

embora venham a ser discutidas manifestações de problemas de lingua- �gem e aspectos que participam da sua constituição, negamos a possibili-dade do estabelecimento e da identificação da causa dos quadros de lin-guagem. Consideramos inviável, no caso dos problemas de linguagem, a utilização de uma explicação com base numa suposta causalidade. Tanto os sinais dos problemas de fala quanto os de escrita não são estáveis, quer dizer, não se repetem do mesmo modo entre os falantes e escritores. Se a singularidade de uma pessoa pode aproximá-la de um tipo de problema, essa aproximação não deve ser tratada como sendo a repetição de um conjunto de sintomas com as mesmas causas. No máximo, essa aproxima-ção pode ser tomada, tão somente, como uma referência.

Por último, ressaltamos que, com essa apresentação, pretendemos:

oferecer elementos que permitam o acesso ao que vem sendo discutido no �tocante aos chamados distúrbios de fala – e também de leitura e de escrita – e, dessa maneira, ter condições de se posicionar, de forma mais consciente e crí-tica, frente às posições e intervenções desenvolvidas por outros profissionais;

oferecer elementos que permitam realizar, com maior segurança, encami- �nhamentos de crianças com supostos problemas na oralidade e na escrita para profissionais de áreas afins;

oferecer elementos que permitam atuar, de forma construtiva, com crian- �ças que encontram dificuldades no desenvolvimento de sua linguagem.

No que consiste o quadro denominado retardo de aquisição da linguagem?

É comum ouvir pais, parentes próximos e profissionais que atuam com crian-ças referirem-se a uma queixa específica de problemas de linguagem, dizen-do, por exemplo: “ela está demorando para falar”, ou “ela fala muito enrolado”, ou ainda “ela quase não fala”. Tais colocações, em geral, referem-se a crianças

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na faixa etária de quatro a seis anos que, embora se apresentem como capazes de ter um domínio significativo da oralidade, apresentam uma fala limitada em todos os seus aspectos.

Dessa maneira, tal quadro se caracteriza a partir da utilização de gestos, de um vocabulário reduzido e de estruturas sintáticas primárias. Crianças com idades compatíveis com a faixa etária acima sinalizada, que permanecem utili-zando gestos e formas de manifestação oral próprias de crianças menores, são consideradas portadoras de uma fala infantilizada.

Em consequência de uma fala incompatível com as oportunidades e exi-gências que a idade pode trazer, temos, nesses casos, crianças prejudicadas na possibilidade de organizar seu discurso de maneira eficiente e que, portanto, encontram-se limitadas em compartilhar, entre outras coisas, desejos, necessi-dades, acontecimentos e conhecimentos.

Para entendermos aspectos relativos à configuração de tal problema, analise-mos como a criança nos primeiros meses e anos de vida vai modificando as suas formas de manifestação oral em razão e a partir do papel que o adulto se coloca e, portanto, a coloca. Num primeiro momento, a criança depende integralmente das interpretações e da fala do adulto para atribuir sentido às suas manifesta-ções e para instaurar um diálogo. Ao longo de seus primeiros anos de vida, a criança vai gradativamente ocupando o lugar de interlocutor, dependendo cada vez menos da fala do adulto para estruturar a sua própria fala.

Enfatizamos que o sucesso desse processo, ou seja, a constituição da crian-ça como sujeito de sua linguagem, como narradora de sua história e intérprete de tantas outras, depende fundamentalmente do reconhecimento e de atitudes significativas, por parte dos adultos, que levem em conta as seguintes premissas:

a criança é um interlocutor e, como tal, diz coisas, � mesmo que não oral-mente, para serem escutadas, interpretadas e, portanto, para provocarem “respostas” por meio do comportamento das pessoas que as cercam;

a fala do(s) adulto(s) gera efeitos sobre as crianças, tanto no que se refere �a aspectos de seu desenvolvimento global quanto na aquisição de sua linguagem;

nessa relação dialógica é fundamental que adulto(s) e criança alternem �seus papéis, de maneira que, aos poucos, o(s) adulto(s) crie(m) expectati-vas e leve(m) a criança a introduzir o diálogo, a elaborar sua fala de forma a tornar mais explícito o que deseja dizer.

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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão

Resgatamos as premissas acima, pois são imprescindíveis para compreender-mos os aspectos que podem originar a configuração do retardo de linguagem.

Se considerarmos o acima exposto e o fato de a fala de crianças que se inse-rem nesse quadro ser considerada infantilizada por insistirem numa dependên-cia acentuada da(s) fala(s) do(s) adulto(s), podemos supor que esse problema de linguagem está diretamente ligado ao papel que o(s) outro(s) assume(m) na relação com a criança.

Para que o diálogo entre criança e adulto caminhe em direção a uma maior “simetria” de papéis, é fundamental que o adulto vá sucessivamente deixando de se satisfazer com balbucios, choros, gestos, frases incompletas produzidos pela criança e, ao esperar dela manifestações mais elaboradas, possibilita que ela seja colocada no lugar de alguém que pode modificar suas formas de dizer. Caso contrário, se essas formas de manifestação forem “suficientes” para que o diálogo entre o adulto e a criança ocorra sem rupturas, conflitos ou tensões, e eficientes para que, de alguma forma, as necessidades da criança sejam atendidas, a crian-ça pode manter uma linguagem considerada aquém de suas possibilidades.

Tentando retratar diálogos que caracterizam tal dependência, imaginemos duas situações:

Primeira situação �

Uma criança de quatro anos aponta para o armário e diz “dá”. Seus pais, prontamente, passam a elaborar hipóteses para adivinhar o que ela de-seja. A partir desse gesto e desse enunciado, os pais passam a indagar à criança se o que ela deseja é uma bolacha, um chocolate, um copo etc. Uma vez apresentada a alternativa correta, a criança acena positivamente, diz “é” e obtém aquilo que deseja.

Segunda situação �

A professora pergunta para a mesma criança de quatro anos: “como foi o seu final de semana?”. A criança responde: “fui no tio”. A professora diz: “que bom, você foi na casa do seu tio?”, e em seguida indaga: “e o que você fez lá ?”. A criança responde: “brinquei”. A professora responde: “que bom”.

Diante dessas simulações e supondo que é esse tipo de diálogo que essa criança está acostumada a compartilhar com seus interlocutores principais, não precisaríamos do parecer de um especialista para saber que essa criança, embora potencialmente capaz de dizer aos pais o que deseja e de contar outras

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coisas acerca de sua visita na casa de seu tio, apresenta uma fala limitada. Essa contradição, ou melhor, essa incompatibilidade entre aquilo que potencialmen-te a criança pode realizar oralmente e o que efetivamente produz, nos leva a questionar:

O que nesses diálogos nos chama atenção? �

O que neles poderia indicar para as formas restritas e limitadas que carac- �terizam a fala da criança nessas situações?

Por que a criança não se constitui como alguém que tem o que dizer? �

Por que ela não se constitui como um interlocutor com uma autonomia �compatível à sua idade e às suas necessidades?

Por que a fala da criança permanece fixada em formas primitivas de voca- �bulário e de estruturação?

Como estamos lidando com fragmentos de um possível diálogo, como não conhecemos dados da vida dessa criança, tampouco as relações que estabelece com seus familiares e com as pessoas de sua comunidade, vamos fazer um exer-cício de interpretação, buscando compreender, a partir dessa simulação, possí-veis fatores que poderiam levar tal criança a apresentar uma fala considerada fora dos padrões próprios para sua idade:

Nos diálogos acima, os adultos não criaram condições nem expectativas �para que a criança ocupasse um lugar de quem introduz algo. Coube a ela apenas responder ao que lhe foi perguntado, e os adultos se deram por satisfeitos;

As manifestações da criança foram suficientes e, portanto, relativamente �eficientes para que o diálogo ocorresse sem criar expectativas e tensões. Dessa maneira, a criança “não precisa”, ou melhor, não se vê motivada a avançar no seu processo de aquisição;

Os diálogos apontam para uma dependência da criança em relação ao �adulto, dependência essa característica de um período em que a criança, de fato, não consegue elaborar sua fala sem que o adulto assuma um pa-pel estruturante.

As evidências de que o retardo de linguagem ocorre em razão das formas como os diálogos e, portanto, de como as relações adulto-criança se estabe-lecem, levam-nos a concluir que, embora em alguns casos seja necessária a

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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão

intervenção de profissionais da área da fonoaudiologia, profissionais ligados ao processo de ensino e aprendizagem têm um papel importante a desempenhar com crianças que apresentam esse tipo de problema.

É interessante notar que crianças com falas infantilizadas tendem a apresen-tar comportamentos e atitudes que se configuram, da mesma forma, aquém de suas potencialidades. Em geral, são crianças que demoram a adquirir autonomia para se alimentar, para fazer sua higiene, para dormir, para brincar. Esse fato, sem dúvida, não é uma mera coincidência, mas, ao contrário, evidencia a concepção de linguagem já discutida. Resgata nossa perspectiva de que a linguagem e a cognição são fenômenos que se constituem concomitantemente, ou seja, de que conhecimento e linguagem, cultura e linguagem, subjetividade e lingua-gem, vida psíquica e linguagem e, até mesmo, afeto e linguagem são elementos indissociáveis.

Consideramos que as atitudes a serem adotadas com essas crianças e com seus familiares devem visar aos seguintes objetivos:

que a criança seja tratada como sujeito e ocupe o “lugar” de sujeito em seu �contexto de vida, especialmente, no familiar e no escolar;

que a criança seja considerada como alguém capaz de dizer que tem algo a �dizer; que os adultos escutem, interpretem e considerem aquilo que ela diz;

que as experiências da criança caminhem no sentido de que ela venha a �adquirir autonomia no seu discurso e, portanto, nos seus modos de vida.

Chamamos atenção, ainda, para o fato de que quadros de retardo de lingua-gem podem estar ou não associados a problemas na articulação de determina-dos sons por parte da criança. Tais alterações configuram o quadro dos chama-dos distúrbios fonológicos.

No que consiste o quadro denominado distúrbio fonológico?

Antes de iniciarmos nossa análise acerca do problema de linguagem em questão, é importante esclarecer que até a década de 1960 tais distúrbios eram denominados, especialmente na literatura fonoaudiológica, como dislalia. A partir da década de 1970, passou-se a utilizar o termo distúrbio articulatório e, posteriormente, nos anos 1980, passou-se a privilegiar a expressão distúrbio

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fonológico. Cabe ressaltar que, embora essas três denominações ainda sejam utilizadas, optamos pelo termo distúrbio fonológico por estar associado a uma perspectiva teórica mais próxima da que orienta nossas reflexões.

Crianças que são consideradas portadoras de distúrbios fonológicos apre-sentam dificuldade e/ou impossibilidade na articulação de sons da fala. Tais ocorrências manifestam-se durante a produção da fala a partir de omissões, substituições e distorções de sons. Encontramos crianças que, por não terem concluído o processo de aquisição dos sons de nossa língua, realizam, por exem-plo, as seguintes produções:

Omissões: � á-ua para água; u-ia para Júlia, pó-ta para porta, bincá para brincar.

Trocas: � tato para gato, tasa para casa, napis para lápis.

Como uma manifestação recorrente dos distúrbios fonológicos, encontramos distorções na produção dos sons representados pelos fonemas /s/ ou /z/. Tais dis-torções, denominadas ceceio, podem ser verificadas a partir da projeção da língua entre os dentes anteriores ou laterais e pelo escape de ar excessivo.

Além dos exemplos acima citados, outras inúmeras formas de manifestação que configuram distúrbios fonológicos podem ocorrer. Consideramos interes-sante apresentar os exemplos acima apenas para tornar mais visíveis e familia-res as formas como tais alterações se manifestam. Não pretendemos descrever todas as possibilidades de alterações fonológicas. Primeiro, porque basta estar-mos atentos às falas das crianças para verificar outras alterações fonológicas. Se-gundo, porque tal detalhamento não atenderia aos objetivos desse curso.

Portanto, tendo em vista nosso objetivo, ou seja, discutir aspectos relativos a esse quadro que contribuam para a intervenção com crianças que possam apre-sentar problemas dessa natureza, algumas considerações quanto à aquisição e à articulação dos sons se fazem necessárias.

Os sons que compõem a língua são adquiridos pela criança por volta dos quatro anos de idade. Chamamos atenção para o fato de que essa idade deve ser tomada apenas como uma referência, pois várias crianças, mesmo sem apre-sentar qualquer problema, podem concluir tal aquisição por volta dos cinco ou seis anos.

Quanto à fase esperada para que as crianças adquiram determinados sons da fala, vários estudiosos buscaram estabelecer uma hierarquia, assumindo-a como estável. Portanto, o processo de aquisição fonológica seria igual para

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todas as crianças. Com base nessa posição, encontram-se descritas seqüências para a aquisição fonológica e, com isso, parâmetros que apontam para as etapas a serem cumpridas pelas crianças. No caso das crianças não atenderem a tais expectativas, considera-se que apresentam um “desvio” nesse processo. Con-tudo, outros estudiosos apontam para as instabilidades na produção dos sons que ocorrem ao longo do processo de aquisição normal e, diante disso, algumas particularidades e irregularidades desse processo não podem ser vistas como distúrbios.

Diante dos impasses em relação ao que é universal e ao que é particular a cada sujeito, diante da descrição de etapas e sequências de aquisição dos sons que, apesar das evidências empíricas, devem ser relativizadas em razão das inúmeras exceções que as contrapõem, optamos por direcionar nossa atenção para o en-tendimento dos aspectos que constituem a aquisição dos sons, para os possíveis problemas que podem acontecer nesse processo, bem como para as possibilida-des de intervenção em relação a eles.

O processo de aquisição dos sons ocorre da mesma forma que outros aspec-tos da fala, a partir das relações dialógicas que a criança estabelece com seus interlocutores privilegiados. As alterações fonológicas podem estar associadas ao quadro dos retardos de linguagem e podem representar uma das marcas da fala infantilizada, característica de tal quadro. Assim como as crianças com atra-sos no desenvolvimento da sua fala não se encontram motivadas para operar mudanças no seu discurso, insistindo em manter estruturas sintáticas primárias e vocabulário restrito, elas também podem “estacionar”, ficar “paradas” no pro-cesso de aquisição dos sons.

Quando associadas ao retardo de linguagem, dificuldades articulatórias são, em geral, superadas a partir do momento em que a fala da criança, como um todo, torna-se mais autônoma. Mediante tal pressuposto, reforçamos, mais uma vez, a importância dos profissionais envolvidos com crianças que apresentam distúrbios fonológicos lhes propiciarem experiências dialógicas nas quais lhes seja garantido o lugar de um falante competente, capaz de operar sobre o que pretende dizer e sobre a forma como deve dizer.

Na presença de alterações fonológicas, a fala da criança poderá ser interpre-tada de duas formas opostas: como desviante/patológica ou como não desvian-te. É fundamental deixar claro que a interpretação dada à fala das crianças, pelos pais e educadores, determina a noção que a criança tem de si como bom ou mal falante. O reconhecimento por parte da criança de uma ou outra identidade

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tem implicações decisivas nas possibilidades ou nas dificuldades que encontrará para avançar no seu processo de aquisição da linguagem e, portanto, dos sons que a constituem.

Para além do quadro anteriormente referido, temos casos em que crianças, apesar de terem um desenvolvimento de linguagem adequado, apresentam dis-túrbios fonológicos. Em geral, tais alterações estão relacionadas a inadequações anatômicas e/ou funcionais dos órgãos fonoarticulatórios. Aqui não estamos nos referindo a problemas associados a anormalidades físicas gerais (síndrome de Down) ou específicas (fissuras palatinas).

É importante ressaltar que, quando nos referirmos a inadequações anatômi-cas e/ou funcionais dos órgãos fonoarticulatórios (entre tais órgãos, destacamos: boca, lábios, língua, trato vocal, laringe, faringe), não estamos afirmando que tais fatores sejam a causa de possíveis distúrbios fonológicos, mas que tais dis-túrbios se manifestam na presença de inadequações que envolvem tais órgãos.

Para tornar mais clara essa relação, algumas considerações em torno dos as-pectos estruturais e funcionais que envolvem os órgãos fonoarticulatórios se fazem necessárias.

De uma maneira simplificada, podemos dizer que os sons da nossa língua são produzidos a partir da passagem de corrente de ar no momento em que expira-mos. Nesse momento, mecanismos e movimentos são realizados pelos órgãos fonoarticulatórios, criando resistências e bloqueios para a corrente do ar, o que resulta na produção de sons. Conforme esses órgãos se encontrem, estrutural e funcionalmente, executarão movimentos e mecanismos que resultarão em dife-rentes sons e na sua qualidade.

Para que se possa compreender como uma determinada forma de realiza-ção desses movimentos e mecanismos pode estar relacionada a um distúrbio fonológico, suponha uma situação em que, por algum motivo, uma criança apre-sente uma língua excessivamente flácida e, por essa razão, não consiga elevar e afilar a sua ponta. Como esse movimento é necessário para que o som referente ao fonema /l/ seja produzido, essa criança pode não conseguir encontrar um mecanismo de compensação de tal movimento e apresentar dificuldade ou im-possibilidade para realizar e articular tal som.

Em geral, alterações de postura e de tônus que envolvem os órgãos fonoar-ticulatórios são acompanhadas de inadequações nas funções de respiração, de-glutição, sucção e mastigação. Tais comportamentos podem ser observados em

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crianças que respiram pela boca, evitam mastigar alimentos sólidos, projetam a cabeça para trás na deglutição de alimentos e na ingestão de líquidos, babam ao dormir etc. Podendo acompanhar esse quadro, temos, ainda, problemas orto-dônticos, em geral, caracterizados por alterações no posicionamento dos dentes e/ou na oclusão das maxilas.

Embora as crianças com distúrbios fonológicos associados aos problemas acima relacionados necessitem de atendimento fonoaudiológico, consideramos que os profissionais que atuam com elas devem ter um conhecimento sobre os diferentes contextos em que podem estar inseridos tais distúrbios, para estabe-lecer distinções, intervenções e encaminhamentos pertinentes a cada situação.

É importante ressaltar que crianças que se encontram em processo de troca de dentes, muitas vezes, apresentam alterações na articulação de determina-dos sons. Nessa situação, alterações fonológicas são, em geral, passageiras e circunstanciais.

No que consiste o quadro denominado gagueira?Antes de abordarmos especificamente o que se denomina por gagueira, é

importante ressaltar que todas as pessoas, em vários momentos, gaguejam, e que no caso da criança, esse fato pode manifestar-se de forma mais recorrente sem, contudo, representar a presença de um distúrbio.

Estamos afirmando que gaguejar pode fazer parte do processo normal de aquisição da fala e de seu funcionamento ao longo da vida das pessoas, daí a necessidade de refletirmos sobre aspectos que nos permitam distinguir quando gaguejar se constitui ou não num problema.

Podemos constatar que crianças na faixa etária de dois a cinco anos, ao narrar, tendem a gaguejar, realizar hesitações, pausas excessivas em sua fala, quebran-do parcialmente a fluência de seu discurso. Embora em menor frequência e em situações e contextos específicos, jovens e adultos também realizam esses mesmos mecanismos.

Na medida em que se reconhece que tal comportamento ocorre com frequên-cia, em um número significativo de pessoas, surge a seguinte questão:

Mas por que gaguejar pode fazer parte do processo de aquisição e de funcionamento da linguagem oral?

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Uma série de estudos desenvolvidos no campo da fonoaudiologia e da linguís-tica tem tentado formular respostas a essa questão. Entre as explicações formu-ladas a partir dos princípios e das concepções em torno da linguagem, podemos dizer que interrupções no ritmo da fala são recursos que dizem respeito à “orga-nização do discurso”. Embora possa parecer, quando falamos ou escrevemos, que o nosso discurso seja linear e sequencial, isso não corresponde de fato ao que ocorre no processo de sua elaboração. Os discursos e os textos que desejamos falar e/ou escrever têm uma descontinuidade, a qual, na medida do possível, bus-camos ordenar numa estrutura aparentemente organizada.

Observe que quando desejamos contar algo para alguém, por exemplo, uma viagem realizada, muitas vezes não iniciamos nosso discurso pelo primeiro dia da viagem, nem seguimos, obrigatoriamente, uma linearidade no encadeamen-to dos fatos subsequentes. Essa descontinuidade pode ou não nos incomodar e, quando isso acontece, sentimos necessidade de parar e começar novamente, ou seja, de operar uma nova organização de nosso discurso para garantir, a quem nos ouve, a possibilidade de apreensão da experiência que desejamos partilhar.

O que essa explicação tem a ver com a explicação do por que “gaguejar pode fazer parte do processo de aquisição da linguagem e de seu funcionamento”?

O mecanismo de interrupção do ritmo da fala, quando manifestado pelo ato de gaguejar, refere-se a um comportamento semelhante ao acima citado, pois visa realizar uma “pausa” para reorganizarmos o nosso discurso. Todavia, no caso do ato de gaguejar, ao invés de atuarmos consciente e voluntariamente para realizar tal parada, nós o fazemos inconsciente e involuntariamente. Na prática, essa diferença pode resultar nas seguintes situações:

Primeira situação �

Ao narrar algo, a pessoa tem consciência de que precisa reorganizar o seu discurso e diz: “opa!, espera, preciso começar de novo, está confuso, deixe-me organizar o que estava falando”.

Na sequência, retoma sua narrativa tentando uma organização mais ade-quada.

Segunda situação �

Ao narrar algo, a pessoa não percebe nem age conscientemente sobre a descontinuidade de seu discurso e, ao invés de dizer “opa!, preciso pa-rar”, simplesmente para. Assim, pausas, hesitações e repetições passam a

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ocorrer em sua fala com a finalidade de oferecer a essa pessoa um tempo para retomar e reorganizar o seu discurso.

A diferença entre essas duas situações, que revelam mecanismos desenvolvi-dos para a organização e a construção de nosso discurso, reside na “consciência” de que ora dispomos e ora não dispomos para operar sobre ele. Uma vez com-preendida a positividade do ato de gaguejar e o fato de que em alguns tal ato pode ser construtivo, voltamos a discutir a situação das crianças em processo de aquisição da linguagem.

As crianças, no seu processo de aquisição da linguagem, não estão apenas aprendendo a falar palavras, mas, sobretudo, a “construir suas narrativas”. Nesse processo, elas têm uma possibilidade limitada de operar conscientemente sobre a sua linguagem, ou seja, de pensar e de planejar deliberadamente sobre ela. Dessa maneira, os atos de gaguejar podem ocorrer com maior frequência nas falas de crianças visando à criação de espaços e tempos necessários para a orga-nização de seu discurso. Espaços e tempos que, ao longo desse processo, passa-rão a ser produzidos por outros mecanismos de forma intencional.

Feitas as colocações que visam deixar claro que a simples constatação do ato de gaguejar, em crianças, não deve ser indicativo de que estamos diante de um quadro patológico, é importante esclarecer que, para denominar a situação em que gaguejar não é um problema, tem-se privilegiado dizer que a criança apre-senta uma “disfluência”, e não uma gagueira.

Pelo exposto, percebe-se que o fato de gaguejar deve ser analisado com cui-dado. Cuidado esse que deve recair, também, na utilização desse termo.

A partir desse momento, passaremos a analisar, então, quando o termo ga-gueira está associado a um problema. O termo gagueira significa interrupção na fluência da produção verbal que se constitui a partir de repetições ou prolon-gamentos involuntários, audíveis ou silenciosos, na emissão de fragmentos da fala, como de sons, sílabas e palavras. Estas interrupções são recorrentes ou têm caráter marcante e não são prontamente controladas:

Algumas vezes as interrupções são acompanhadas por atividades acessórias, envolvendo o aparelho fonador e relacionado ou não com estruturas corporais ou emissões de fala estereotipada. Estas atividades aparentam ser uma luta relacionada à fala.

Também há, não infrequentemente, indicações ou relatos da presença de um estado emocional que varia de uma condição geral de “excitação” ou “tensão” para emoções mais específicas de natureza negativa, tais como medo, embaraço, irritação etc. A fonte imediata de gagueira é alguma incoordenação expressa no mecanismo periférico da fala: a causa é presentemente desconhecida e pode ser complexa e composta (WINGATE, 1964, p. 484).

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Uma vez apresentadas as principais características que configuram o quadro de gagueira, cabe a seguinte questão:

Como, então, o sujeito se constitui como gago?

Partindo do pressuposto de que as relações sociais são determinantes nos modos de fala dos sujeitos, entende-se que a gagueira é um problema decorren-te da imagem que o sujeito constrói de si como mau falante a partir da imagem que os outros formulam a respeito dele.

A fluência das pessoas que passam a ser consideradas gagas foi, provavelmen-te, em algum momento, menor do que a de outros. Tal fato pode ter ocorrido por causa dos recursos que tal sujeito dispunha para a organização de seu discur-so, ou ainda pela forma menos tranquila de lidar com seus desejos e medos. Se nesses momentos as suas hesitações foram tomadas e tratadas como sinais de um quadro de gagueira, provavelmente essa pessoa passou a perceber-se como sendo gaga e, finalmente, acostumada com essa imagem, convenceu-se dela, tornou-se uma. Nesse contexto, ser gago passou a ser um dado de sua identida-de, a partir do qual decorre o estigma social e pessoal.

Chamamos atenção para a importância dos aspectos psicossociais ligados à identidade e à interação com o outro na constituição do quadro da gagueira. Assim, a origem da gagueira deve ser buscada na história familiar e social da pessoa. É importante, para aqueles que atuam com sujeitos gagos, compreender que, para além do sintoma da gagueira, a imagem que o gago tem de si, sua autoestima, vem compor o quadro no qual as crenças do sujeito com relação ao seu papel e à sua identidade gaga são reforçados pela ansiedade e pelo estresse social.

Quando diante da possibilidade de sentir-se seguro no campo social e fa-miliar, isto é, da possibilidade de lidar com as emoções, preocupações e ten-sões causadas pelas diversas situações em que se espera que o sujeito fale, o sujeito reduz sua disfluência, aproximando-a de padrões mais comuns e menos perceptíveis.

Por último, é importante esclarecer aos educadores que atuam com crianças que, embora não sejam gagas, podem ser assim consideradas pelos seus fami-liares e/ou podem apresentar atos de gaguejar frequentes:

A imagem formulada pelos adultos que participam da formação da crian- �ça é determinante para que ela venha a se tornar ou não gaga. Em outras palavras, a criança considerada e tratada como gaga, por vivenciar seus

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atos de gaguejar como um problema, passa a incorporá-los como caracte-rística de sua identidade;

As manifestações de estresse e ansiedade por parte do adulto, ao atribu- �írem um sentido negativo aos atos de gaguejar da criança, repercutem negativamente nesta. A criança, para evitar tal desconforto manifestado pelo adulto e absorvido por ela, tende a desenvolver e a incorporar movi-mentos corporais desbloqueadores, ou seja, os denominados cacoetes;

Nesses casos, há necessidade de encaminhamento das crianças e de seus �familiares para orientação com profissionais da área fonoaudiológica e/ ou psicológica. É necessário esclarecer que tais encaminhamentos se jus-tificam, pois, caso as relações estabelecidas com elas afirmando a existên-cia de tal problema se perpetuem, corre-se o risco de “transformá-las” em gagas.

Texto complementar

Linguagem e paralisia cerebral: um estudo de caso do desenvolvimento da narrativa

(BERBERIAN; ANGELIS; MASSI, 2001, p. 111-113)

ConclusãoEste trabalho impulsionado por um grande descontentamento com o

modo como os procedimentos de avaliação e acompanhamento de lingua-gem vêm sendo conduzidos junto a crianças portadoras de paralisia cere-bral, procurou demonstrar o papel que a linguística pode desempenhar, tanto para a análise de dados, como para a iluminação do encaminhamento terapêutico.

As avaliações tradicionais buscam unicamente um diagnóstico classifica-tório, o qual não serve para embasar a intervenção terapêutica. A intervenção, assentada em uma noção de língua como código de comunicação, pretende apenas “corrigir” falhas articulatórias e/ou preencher faltas lexicais. Porém, esse tipo de conduta desconsidera o percurso variável que cada criança faz no processo de desenvolvimento da linguagem, os recursos expressivos de

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que ela dispõe, as hipóteses que ela lança sobre o objeto linguístico que está construindo; enfim, as operações epilinguísticas através das quais a criança se relaciona com a linguagem, com o outro e com a própria situação em que opera.

Na tentativa de mostrar a possibilidade de superar a prática fonoaudioló-gica tradicional, apresentamos uma concepção de linguagem que privilegia a interação socioverbal, a relação intersubjetiva. A partir de uma perspectiva discursiva de linguagem, procuramos fazer uma análise das produções lin-guísticas de uma criança portadora de paralisia cerebral. Essa análise, inspira-da no trabalho que Coudry vem desenvolvendo com adultos afásicos, revelou a importância de considerarmos, na prática clínica, a interação estabelecida entre a criança e seu interlocutor-investigador, a construção conjunta das ati-vidades dialógicas. Foi exatamente através dessa construção conjunta que a nossa criança-sujeito elaborou – com o adulto – condições para o exercício da linguagem: falando de si e dos outros, relatando, informando, questionando; ou seja, confrontando os diversos papéis que pode assumir no discurso.

Com esse modo de proceder, pudemos abranger, no uso efetivo da lin-guagem, os processos dialógicos responsáveis pelos progressos da criança, sem perder de vista o contexto imediato em que se deu a interação, o co-nhecimento partilhado, a construção dos interlocutores e de sua imagem, os discursos anteriores etc.

Assim, não estivemos voltados para produtos estanques, observados, em situações de testagem. Antes disso, tendo em vista a perspectiva sociointe-racionista assumida por Lemos, nosso foco de atenção centrou-se no proces-so de desenvolvimento linguístico de G.S.M. Tomando por base as pesquisas realizadas por Perroni sobre o desenvolvimento do discurso narrativo na in-fância, procuramos enfatizar o caminho que a nossa criança-sujeito percor-reu para atuar como uma narradora.

A análise desse percurso nos levou a perceber que, mediante a interlo-cução, G.S.M. ampliou seu papel no diálogo. Observamos claramente como essa criança, de um momento inicial em que apresentava apenas fragmen-tos de enunciados, passou a estruturar narrativas mais completas.

Ao iniciarmos nosso acompanhamento, verificamos que o interlocutor-investigador perguntava e G.S.M. respondia. A partir desse “jogo de contar” que se constituiu por perguntas e respostas, a criança, durante o processo

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interlocutivo, passou a narrar seus relatos de forma mais abrangente: espe-cificando personagens, situando o evento a ser evocado, introduzindo sua abertura, dando-lhe sequencialização e desfecho.

Além do desenvolvimento dos relatos, nossa criança passou também a operar com narrativas de ficção. Inidalmente, G.S.M. aceitou ouvi-las, assu-mindo quase que exclusivamente a posição de ouvinte. Em seguida – entre especularidades e complementaridades – a criança passou a recontá-las em conjunto com seu interlocutor-investigador, mostrando sua dependência em relação ao papel estruturante do adulto. Por fim, G.S.M. tentou assumir sozinha a postura de narradora de uma estória tradicional, utilizando-se apro-priadamente dos chamados operadores da narrativa: “era uma vez”, “daí”, “ficou feliz, feliz...”.

O percurso percorrido por G.S.M. para desenvolver o discurso narrativo oral nos mostrou o quanto ela pode, o quanto é capaz de superar quadros diagnósticos repletos de conotações negativas como disartria, problemas articulatórios, alterações de tônus, retardo de linguagem. Os profissionais que atendiam G.S.M. se utilizavam dessas nomenclaturas para classificar os sintomas detectados em testes tradicionais.

Contudo, constatar simplesmente que a criança apresenta atrasos de linguagem não nos leva a compreender, nem tampouco a favorecer o seu processo de desenvolvimento linguístico. Aliás, falar em atrasos só é possí-vel quando escalas comparativas de padrões de normalidade são tomadas como parâmetro. Ao invés das simples comparações, a análise do processo e não do produto nos levou a acompanhar a evolução da linguagem oral de G.S.M., na interação. Esse acompanhamento nos mostrou, como bem ob-serva Pan (1995, p. 175), que “a única comparação possível de ser feita é do sujeito com ele mesmo”.

Considerando a singularidade de cada sujeito, o fonoaudiólogo deve se dar conta de que avaliações e condutas terapêuticas previamente esti-puladas mascaram o percurso variável que cada criança faz no processo de desenvolvimento da linguagem. Esse profissional precisa considerar que métodos pré-fixados anulam as possibilidades de construir uma relação in-tersubjetiva, na qual há espaço para que os participantes da prática clínica troquem experiências e exercitem a atividade da linguagem. Gostaríamos de finalizar com as palavras de Geraldi (1995, p. XXVIII):

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A práxis exige construção, permanente, sem cristalizações de caminhos. Na práxis alteram- -se os sujeitos envolvidos e percepções sobre o próprio objeto. Em se tratando de objeto que se move, se constitui, a própria natureza do objeto destrói pontes enquanto caminhos que se fixam. Então, é preciso eleger o movimento como ponto de partida e como ponto de chegada, que é partida.

Dica de estudoFilme � A Maçã, de Samira Makhmalbaf.

Mulher cega e seu marido mantêm as filhas gêmeas presas, seguindo va-gos preceitos do Alcorão. As meninas são soltas, após 11 anos em cativeiro, e têm que descobrir o mundo com olhos infantis que nunca conheceram nada além de sua alcova. Em função da prisão em que viviam, mal conse-guiram desenvolver a fala.

Atividades1. Como se caracteriza o quadro denominado retardo de aquisição da lingua-

gem?

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2. Como se caracteriza o quadro denominado distúrbio fonológico?

3. Como se caracteriza o quadro denominado gagueira?

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Como experiências de leitura e escrita vivenciadas pelo adulto e pela criança interferem no processo de aquisição da linguagem escrita por parte da criança?

A criança sabe sobre a escrita antes de saber ler e escrever,

e esse saber primeiro é parte de um processo que passa

pelo segundo e nele não se detém.

Claudia Tereza Guimarães Lemos

Nesta aula será feita a análise de aspectos relativos ao processo de aqui-sição da escrita. Será uma introdução a questões referentes às condições de domínio, de produção e de autoria da escrita, bem como de letramen-to. Elegemos esses aspectos porque nos permitem compreender o fato de que a forma como os indivíduos se colocam em relação à linguagem escrita determina o seu processo de aquisição. Pretendemos discutir tais categorias a partir de contribuições teóricas formuladas no âmbito dos modelos sociointeracionistas.

Elegemos, especialmente, estudos que permitem o aprofundamento teórico acerca das posições e relações que os indivíduos estabelecem com a leitura e a escrita, ou seja, aqueles que convergem para preocupações relativas aos modos como:

a escrita se torna, para o sujeito, foco de atenção e interesse; �

os sujeitos constituem diferentes usos, sentidos e funções sociais fren- �te à escrita;

as relações entre práticas discursivas orais e escritas são processadas; �

constituem-se as possibilidades e os limites de produção e interpre- �tação textual.

Aquisição da linguagem escrita: autoria e reescrita

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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão

A ênfase em torno das condições de domínio e de produção da escrita, da forma como o sujeito ocupa o lugar de autoria e do seu grau de letramento, justifica-se na medida em que partimos da hipótese de que tais aspectos são o mote desencadeador dos processos de aquisição da leitura e escrita.

Partindo do pressuposto de que o entendimento desse quadro nos remete à análise do papel que a escrita assume na vida das crianças, encontramos, nos estudos que priorizam a dimensão social do fenômeno letramento, subsídios para o avanço de nossas reflexões. É importante compreender que o conceito de letramento passou a ser incorporado por pesquisadores brasileiros que, em meados da década de 1980, questionavam a avaliação da presença ou ausência da “tecnologia” do ler e escrever como critério para dispor em lados opostos os sujeitos ditos alfabetizados e os analfabetos. Mais do que isso, por pesquisado-res preocupados em analisar a situação de milhares de brasileiros que, embora engordando os índices de alfabetização anunciados pelos órgãos públicos, evi-denciam não viver em estado ou condição de quem sabe ler e escrever, pois não se apropriam plenamente das práticas sociais de leitura e de escrita.

Tais estudos analisam, entre outras questões, de que modo tipos de estrutu-ras e interações sociais estabelecem relações com os fatos envolvidos no proces-so de aquisição da leitura e escrita. Assim, desafiam-nos a pensar de que maneira práticas constituídas e intermediadas pela escrita e oralidade, vivenciadas social e individualmente, assumem um peso decisivo nas possibilidades ou impossi-bilidades de domínio da escrita pela criança. Desafiam-nos também a pensar sobre as consequências decorrentes das diferentes experiências com a lingua-gem escrita, vivenciadas pelos diferentes grupos sociais.

Quanto à maneira pela qual essas diferenças se configuram, sabemos que as crianças, desde o nascimento, desenvolvem-se na interação com as pessoas de seu convívio social, entrando em contato com seus valores, crenças e costumes. Dessa maneira, mantêm também contato com a escrita, que certamente não é o mesmo para os diferentes grupos sociais existentes na nossa sociedade. Al-gumas crianças, desde pequenas, têm a oportunidade de manusear livros, “ler” diferentes livros, jornais e revistas com o pai e a mãe, “escrever” bilhetinhos com os pais, perceber e vivenciar sua função social. Outras crianças, porém, quase não têm material escrito: na sua casa não há livros, o jornal tem a função de em-brulhar coisas, os pais não leem ou escrevem no seu cotidiano.

Nesse último caso, o prazer e o hábito da leitura e escrita devem ser ensina-dos à criança. Como é possível mostrar à criança que é possível que a escrita e

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Aquisição da linguagem escrita: autoria e reescrita

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a leitura façam parte da sua vida de forma prazerosa? Voltaremos recorrente-mente a esse ponto, contudo, aí vão algumas ideias simples para serem desen-volvidas nas situações de ensino-aprendizagem: é preciso não ter preconceito em relação a tipos de textos e trabalhar textos escritos de várias modalidades; ao invés de exigir a leitura, que o professor partilhe sua própria felicidade de ler, lendo livros em voz alta na sala de aula.

Segundo Rojo et al. (1998, p. 123), o desenvolvimento da linguagem escrita ou o processo de letramento da criança, aqui entendidos como estado ou condi-ção da criança em relação à apropriação das práticas sociais de leitura e escrita, dependem, “por um lado, do grau de letramento da instituição familiar a que pertence – isto é, da maior ou menor presença em seu cotidiano, de práticas de leitura e escrita”; e, por outro, dos

[...] diferentes modos de participação da criança nas práticas discursivas orais em que estas atividades ganham sentido. [...] É o modo de participação da criança, ainda na oralidade, nestas práticas de leitura e escrita, dependentes do grau de letramento familiar (e, acrescentaríamos) da instituição escolar e/ou pré-escolar em que a criança está inserida, que lhe permite construir uma relação com a escrita enquanto prática discursiva e enquanto jogo. (ROJO et al., 1998, p. 123)

Discorrendo a respeito da estreita vinculação entre o desenvolvimento da escrita por parte da criança e o grau de letramento da família e da instituição escolar, Rojo et al. (1998) deixam claro que o acesso da criança ao material escrito não é suficiente para o seu domínio. A natureza das relações estabelecidas entre os adultos e a criança, mediadas de alguma forma pela escrita, pode resultar, ou não, no reconhecimento dessa modalidade de linguagem como elemento constitutivo dos vínculos e papéis sociais. Cabe ressaltar que a qualidade de tais relações depende das experiências e representações que os adultos, que fazem parte da vida da criança, estabelecem com essa modalidade de linguagem. Razão pela qual a avaliação das condições de produção da criança deve levar em consideração as condições de letramento de tais adultos.

Partindo dessa premissa, de que o grau de letramento da criança depende das experiências compartilhadas com os adultos que a assistem, é importante refletir que tais experiências serão construtivas se o adulto tiver prazer na leitura e na escrita. Ou seja: parte-se do pressuposto de que só se pode ensinar aquilo que se faz com prazer, de que é impossível ensinar a importância, o sentido e o prazer da leitura e da escrita se esta não é uma prática autêntica que o adulto/mediador tem com essa modalidade de linguagem. Essa percepção retoma a questão acima formulada e nos remete a outros problemas que dizem respeito ao modo como os adultos que participam da formação das crianças e, em espe-cial professores e pais, relacionam-se com a linguagem escrita:

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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão

Como é possível mostrar à criança que é possível que a escrita e a leitura �façam parte da sua vida de forma prazerosa?

Como pode formar leitores aquele que não é, ele mesmo, um leitor? �

Como se ensina a escrever textos aquele que não os escreve junto com a �criança?

Como partilhar com a criança uma experiência linguística autêntica, sem �ter uma vivência pessoal significativa e prazerosa com a leitura e a escrita?

Chamamos atenção para um segundo ponto, ligado às questões acima ex-postas: para o desenvolvimento da escrita e da leitura e para que a criança incor-pore o hábito dessas práticas, não basta apenas saber ler e escrever, tampouco, a interação com o próprio objeto escrito. Nesse caso, alertamos para práticas e iniciativas educacionais centradas em criar condições para que a criança tenha contato direto com livros e bibliotecas, sem, contudo, investirem em propostas de que adultos partilhem com as crianças situações de leitura e escrita.

Para aprofundarmos nosso entendimento em torno desses dois pressupos-tos, que estão diretamente ligados ao grau de letramento das crianças, concor-damos com Rojo et al. (1998, p. 33) quando afirmam que

[...] os recortes e interpretações que o outro realiza sobre o objeto escrito são também muito variados e bastante dependentes de suas próprias (e variadas) concepções sobre a linguagem escrita e as atividades que se articulam em torno desse objeto. Ou seja: é de diferentes lugares e com diferentes recortes que o outro da cultura foca este objeto – a escrita – e são esses diferentes lugares e recortes (diferentes modos de agir) que vão sendo incorporados pela criança, que, por sua vez, ela também, passa a poder ocupá-los e realizá-los como sujeito letrado.

Assim como Rojo et al. (1998, p. 111), discutindo o papel do adulto no proces-so de aquisição da escrita, atribuem a ele um lugar além de um facilitador e/ou informante: o de um intérprete e de co-construtor desse processo.

É ele quem atribui intenções e interesses à criança, orienta sua atenção para os aspectos da escrita, recortando-a com o seu gesto e sua fala, tornando-a significativa. O modo de falar sobre a escrita, as práticas discursivas do adulto, recortadas e incorporadas pela criança, são, por sua vez, retomadas e incorporadas pelo adulto, num jogo muito mais dinâmico que supõe o elemento letrado como “informante sobre a escrita” e o elemento não letrado como aquele que, a partir da informação recebida, vai construir sozinho, dependendo apenas do seu sistema assimilatório já construído, um conhecimento sobre a escrita.

Nota-se que os estudos aqui discutidos são unânimes em enfatizar a impor-tância da natureza das relações entre adulto/criança/escrita, ainda que estabe-lecidas prioritariamente pela oralidade. Isso implica, também, considerar que as experiências com a oralidade participam de maneira decisiva nesse processo,

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Aquisição da linguagem escrita: autoria e reescrita

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uma vez que determinam a forma como a criança se constitui enquanto sujeito do discurso (condição para o domínio da oralidade e da escrita). É também a partir dela que a escrita se constitui enquanto processo de significação e, como tal, objeto de interesse pela criança.

À luz dessa colocação, pretendemos sinalizar para o fato de que sucessos ou insucessos na aquisição da leitura e escrita apresentados pelas crianças têm uma relação estreita com os jogos de dominação/poder, participação/exclusão, que caracterizam ideologicamente as práticas de linguagem e, portanto, as relações sociais. Partir de tal premissa para a definição dos procedimentos terapêuticos e educacionais implica não perder de vista que os diferentes tipos de escrita e de leitura, com os quais nos confrontamos, não são produtos neutros ou frutos de capacidade ou incapacidade individuais, mas, antes, resultados das relações so-ciais instituídas pelas práticas de linguagem compartilhadas entre as pessoas.

Como a criança se constitui autora de suas produções de leitura escrita?

Consideramos que o domínio da leitura e da escrita refere-se à possibilidade de o indivíduo exercer a leitura e a escrita de forma significativa e prazerosa, de escolher o que quer ler e escrever, de saber que as condições para se constituir como leitor e escritor são precárias e desiguais na sociedade. Implica, ainda, a possibilidade de interagir com diferentes tipos de texto, conforme suas neces-sidades, desejos e contextos interacionais. Contudo, tal domínio depende das condições diferenciadas que distinguem as interações da criança com a escrita e com seus pares privilegiados.

Tais interações se constituem como o cerne do conhecimento que a criança constrói sobre a linguagem escrita. Saber ler e escrever não é saber codificar e decodificar a escrita, mas fazer uso efetivo dessa modalidade de linguagem.

O reconhecimento, por parte da criança, de que ela escreve e lê e a possibi-lidade de se colocar como autora de suas produções são determinantes para que ela venha a ter domínio dos aspectos estruturais e semânticos próprios da linguagem escrita. Em outras palavras, ser reconhecido e reconhecer-se na po-sição de autoria representa um divisor de águas entre os sujeitos que fazem uso efetivo e significativo da linguagem escrita e os que estabelecem uma relação restrita e restritiva com ela. Práticas e condições de produção distintas efetivam-se mesmo que o sujeito assuma ou não tal posição.

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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão

Podemos, agora, perguntar: mas afinal o que demarca a distinção entre ser autor e não ser autor?

Para responder a essa pergunta vamos recorrer mais uma vez a Bakhtin (1992), quando afirma que o autor é aquele que vai à busca da interpretação do texto de forma ativa e que, além de estruturar ativamente o texto, procura produzir no leitor efeitos de sentido, ou seja, procura colocar o leitor em posições específicas de leituras daquele texto. Para Tfouni (2000, p. 54):

Assim enquanto o autor tece o fio do discurso procurando construir para o leitor/ouvinte a ilusão de um produto linear, coerente e coeso, que tem começo, meio e fim, o sujeito está preso à dupla ilusão: de imaginar que é a origem do seu dizer e também de pretender que o que diz (escreve) seja a tradução literal de seu pensamento. Existe no processo de criação de um texto, um movimento de deriva e dispersão de sentidos que a função-autor pretende controlar. O autor, então, é aquele que estrutura seu discurso (oral e escrito) de acordo com um princípio organizador contraditório, porém necessário e desejável.

Segundo a autora, lidar com essa contradição é condição para o domínio de um discurso letrado, uma vez que implica uma tomada de posição por parte do sujeito, de autorreflexão crítica na produção de seu discurso-texto. Posição essa que provocaria um retorno constante à forma como os sentidos estão sendo produzidos por ele, sem que isso impeça que o texto seja constantemente pro-duzido. Tfouni vai mais longe, afirmando que, ao trabalhar na escrita, essa con-tradição confere um sentimento de poder, de controle sobre o texto. A manipu-lação de regularidades, presentes no ato de escrever, nas normas que incidem sobre a palavra, frases e textos

[...] acabam fornecendo uma ilusão de completude do sentido para quem escreve. Por isso, o sujeito da escrita acredita que “planejou” e disse (escreveu) exatamente o que pretende. Ora, acontece que há sempre o Outro atravessando o discurso, tanto oral, quanto escrito. Entra aí a interpretação, trabalho que é determinado tanto por mecanismos sócio-históricos, como mecanismos inconscientes. (TFOUNI, 2000, p. 93-94)

A partir dos referenciais acima apresentados, identificamos alguns dos princí-pios norteadores do conceito de “autoria” do texto escrito:

tornar-se leitor e escritor implica constituir-se como autor; �

ser autor é ser capaz de, para além do domínio de regras e normas, produ- �zir efeitos de sentido pretendidos numa dada situação;

ser autor é constituir-se como um leitor de textos que pode apreender �sentidos formulados por quem escreve e ir mais longe, elaborando seus próprios sentidos e interpretações a partir daquilo que lê;

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Aquisição da linguagem escrita: autoria e reescrita

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as tensões e os movimentos próprios da condição de autoria de um texto �escrito são parcialmente apagados do seu produto final, resultando em uma certa unidade que produz a ilusão de linearidade da escrita.

É importante ressaltar que, no caso da prática da escrita, colocar-se como autor implica conceber a reescrita do texto como inerente ao ato de escrever. O processo de reestruturação textual consiste num dos procedimentos centrais e é o que permite à criança operar sobre seu texto, fazer mudanças, experimen-tar palavras e frases, a fim de provocar determinados sentidos no leitor. Cabe enfatizar que o trabalho de produção textual se caracteriza pelo movimento de distanciamento do texto e de retorno a ele, representando, nessa medida, a pos-sibilidade de a criança se colocar simultaneamente no lugar de quem escreve o texto e de quem o interpretará. É nesse movimento de mudança de papéis que ela passa a se constituir como autora de suas produções.

Ressaltamos a importância de que no processo de aquisição da escrita a criança esteja livre para realizar as reestruturações que julgue necessárias, retorne às suas produções, alterando-as e que essas reformulações percam o estatuto de manifestações de um deficit, para serem encaradas como um trabalho necessário ao se operar com a escrita. (BERBERIAN, 2003b, p. 34)

Entendemos, portanto, a reformulação não como autocorreção, mas como processo de ressignificação que implica cortes imprevisíveis e intermitentes do sujeito nos aspectos formais e semânticos do texto. Episódios de refacção visí-veis na escrita das crianças (apagamentos, substituições, supressões, inserções e outras marcas semelhantes presentes nos textos) são dados que evidenciam momentos por vezes fugazes de uma percepção do autor em relação às suas escolhas e das implicações dessas no texto. Esses sinais de trabalho com o texto apontam para o fato do autor deslocar-se no interior do espaço dialógico, da po-sição de escritor para a de leitor. Dessa maneira, a criança passa a desempenhar o papel de autoria de seus textos ao colocar-se no lugar de leitor de sua escrita e ao reelaborá-la a partir de supostas necessidades dos seus virtuais leitores.

Partindo dessa premissa, chamamos atenção para a importância do educa-dor reconhecer o ato da reescrita como um momento privilegiado para a ação pedagógica. Ao incentivar, solicitar e compartilhar a reelaboração dos textos for-mulados pelas crianças, o educador coloca tais crianças no lugar de quem pode e deve apropriar-se de seus textos, de quem não deve desistir de contar aquilo que tem para contar.

Nesse trabalho de partilhar com a criança a reelaboração de seus textos, o educador pode:

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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão

chamar atenção e interpretar aspectos de forma ou de significação lin- �guísticas que, de alguma maneira, tenham adquirido saliência particular para a criança, provocando inquietações, para as quais ela, com a partici-pação do educador, vai buscar soluções;

assumir o lugar de interlocutor/intérprete de seus textos, formulando �questões que pudessem tornar visíveis à criança os efeitos de suas pro-duções.

Permitir à criança o acesso imediato aos efeitos que seus textos provocam no leitor pode contribuir para que, com o tempo, ela passe a antecipar possíveis efeitos causados pelas suas produções e, portanto, a operar modificações, de forma mais consciente, sobre elas. Podemos notar que, a partir da prática de re-estruturação textual, a criança passa a construir suas produções escritas preven-do formulações imaginárias sobre as necessidades do(s) seu(s) interlocutor(es); a incorporar características específicas da escrita, bem como a atuar de forma ativa sobre a estrutura linguístico-discursiva.

A partir das considerações que enfatizam a importância da criança se cons-tituir como autor de seus textos, devemos estar atentos para o fato de que as causas atribuídas aos problemas de elaboração do texto das chamadas crianças copistas, ou seja, daquelas que, preferencialmente, em vez de assumir o lugar de autoria, reproduzem frases e estruturas, são geralmente associadas à falta de ideias, de criatividade e a problemas de organização mental, ou seja, de dificul-dades intrínsecas a elas.

É importante investigarmos como problemas dessa ordem não refletem limi-tações próprias das crianças, mas as experiências de crianças que estiveram sub-metidas a produções controladas e censuradas. Diferentemente das operações vivenciadas no seu processo de aquisição da oralidade, ou seja, tentar, pergun-tar, comparar, reformular, as crianças são, muitas vezes, impedidas de escrever o que quiserem da forma como sabem, de serem autoras de suas produções.

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Aquisição da linguagem escrita: autoria e reescrita

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Texto complementar

Pais, filhos e letramento: ressignificação de histórias de leitura e escrita no contexto da fonoaudiologia

(BERBERIAN; MASSI, 2006, p. 45-50)

O outro na construção da escritaTendo em vista que nosso estudo está voltado para o processo de apro-

priação da escrita e considerando a perspectiva teórico-metodológica adota-da, cabe evidenciar que entendemos que a aprendizagem/domínio da escrita se dá na interação verbal, na atividade dialógica. Nessa medida, a perspectiva dialógica, que norteia a compreensão da natureza e dos determinantes so-ciais envolvidos com os relatos e as narrativas, encontra-se em consonância com a perspectiva interacionista proposta pela corrente sócio-histórica. Essa corrente, afastada de uma noção mecanicista que converte a linguagem em um simples veículo de informações, nos leva a resgatar, no espaço da inter-locução, o papel do homem que, como um ser histórico e cultural, é sujeito e autor das transformações sociais, na medida em que se constitui a partir do fenômeno linguístico.

Assim, entendendo que não existem enunciados neutros, tampouco sig-nificação monológica isolada, podemos afirmar que, no processo dialógico – o qual circunscreve a existência humana –, a apropriação da escrita pres-supõe, invariavelmente, a possibilidade de significar. Nesse processo, ao nos aproximarmos do entendimento de que o discurso liberta o sujeito de sua condição de mero organismo abstrato, ou seja, de sua condição de objeto, ressaltamos a necessidade de situar o sujeito-aprendiz em uma dimensão histórica e social. Questões referentes a aprendizagem da escrita anunciam uma perspectiva que não se resume ao desenvolvimento orgânico, mas que compreende o próprio universo de representações da consciência marcadas pela intersubjetividade.

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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão

Conforme Pan (1995), é preciso romper com abordagens que enfoquem as relações gramaticais e impessoais, tendo em vista que apenas as relações entre enunciados – dotados de autor e destino – podem apreender o sujeito que fala, que escreve e, assim, depreender o encontro da linguagem com a vida. Nos termos de Bakhtin (1992b, p. 282): “a língua penetra na vida através dos enunciados concretos que a realizam, e é também através dos enuncia-dos concretos que a vida penetra na língua”. Por isso, pelo seu caráter inter-subjetivo, o enunciado verbal não se limita ao indivíduo que o expressa, mas pertence também ao seu grupo social. Como já discutimos em trabalhos anteriores (BERBERIAN, 2003; MASSI, 2004), em consonância com estudos realizados por grupos de fonoaudiólogos (DAUDEN & ANGELIS, 1997, 2002), problemas relativos ao desenvolvimento e domínio da linguagem escrita, apresentados por crianças que buscam atendimento clínico fonoaudiológi-co, dizem respeito à relação restrita e negativa que parcela significativa da população brasileira estabelece com essa modalidade de linguagem.

A exemplo de tal literatura, consideramos que uma certa forma de operar e de se relacionar com a linguagem escrita, marcada pelo desinteresse em torno das atividades de leitura e de escrita, pelo desconhecimento acerca de suas funções, bem como por sentimentos de frustrações e inseguranças, re-presenta problemas sociais a serem superados, uma vez que implica formas restritas de inserção social.

Evidenciando a dimensão social de tal problemática, chamamos a aten-ção para o fato de que, em nossa sociedade, apesar de o acesso a determi-nadas experiências, conhecimentos e posições sociais estar diretamente en-volvido com o domínio da linguagem escrita, parte expressiva da população não vive em estado ou condição de quem sabe ler e escrever, pois não se apropria plenamente das práticas sociais de leitura e de escrita (KLEIMAN, 1995; TFOUNI, 2000; SOARES, 2003).

De acordo com dados do Índice Nacional de Alfabetismo Funcional (Inaf ), divulgados em 2001, além dos 9% de analfabetos, somente 26% da popula-ção brasileira conseguem ler textos longos, relacionando as diversas partes desses textos, compreendendo o conteúdo deles e fazendo inferências (RI-BEIRO, 2004).

Esse quadro denuncia a necessidade de desenvolvermos estudos que analisem não só as relações que as crianças em atendimento clínico-fono-audiológico estabelecem com a escrita, mas também aquelas estabelecidas

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Aquisição da linguagem escrita: autoria e reescrita

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por familiares e educadores envolvidos nos processos de aprendizagem de tais crianças. Em outros termos, salientamos a urgência de refletir sobre o contexto da clínica fonoaudiológica, sem deixar de lado o entendimento de que as práticas constituídas e intermediadas pela linguagem, vivencia-das social e individualmente, têm papel fundamental nas possibilidades ou impossibilidades de aquisição e domínio da escrita pela criança. Considera-mos essencial a análise de como tais práticas interferem na configuração dos chamados distúrbios de leitura e escrita e, portanto, da queixa que gera a demanda pelo atendimento fonoaudiológico.

Partimos do pressuposto de que a apropriação da linguagem escrita ou o processo de letramento da criança, aqui entendidos como estado ou con-dição da criança em relação à apropriação das práticas sociais de leitura e escrita, depende do grau de letramento das instituições familiar e escolar a que pertence, da maneira como as práticas de leitura e escrita estão presen-tes em seu cotidiano (ROJO, 1998).

Os sentidos atribuidos às experiências e práticas de leitura e escrita pelos adultos que fazem parte da vida da criança, bem como os diferentes modos de sua participação em tais experiências são determinantes na relação que a criança constrói com essa modalidade de linguagem. Discorrendo a respeito da estreita vinculação entre o desenvolvimento da escrita por parte da crian-ça e o grau de letramento da família e da instituição escolar, enfatizamos que o acesso da criança ao material escrito não implica, necessariamente, domínio dessa modalidade de linguagem. Conforme Rojo (1998), consideramos que:

Os recortes e interpretações que o outro realiza sobre o objeto escrito são também muito variados e bastante dependentes de suas próprias (e variadas) concepções sobre a linguagem escrita e as atividades que se articulam em torno desse objeto. Ou seja: é de diferentes lugares e com diferentes recortes que o outro da cultura foca este objeto — a escrita — e são esses diferentes lugares e recortes (diferentes modos de agir) que vão sendo incorporados pela criança, que, por sua vez, ela também, passa a poder ocupá-los e realizá-los como sujeito letrado.

Dessa forma, entendemos que a qualidade, a frequência e a natureza das relações estabelecidas entre os adultos e a criança, mediadas de alguma forma pela escrita, podem incorrer, ou não, no reconhecimento e na vivência dessa modalidade de linguagem como elemento constitutivo dos vínculos e papéis sociais. A natureza de tais relações depende das práticas e dos valores que os adultos, que fazem parte da vida da criança, estabelecem com essa modalidade de linguagem. Portanto, a avaliação das condições de produção da criança deve considerar as condições de letramento de tais adultos.

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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão

Discutindo o papel do adulto no processo de aquisição da escrita, Rojo (1998) e Mayrink-Sabinson (1998) atribuem a ele a função de intérprete e de co-construtor desse processo:

É ele quem atribui intenções e interesses à criança, orienta sua atenção para os aspectos da escrita, recortando-a com o seu gesto e sua fala, tornando-a significativa. O modo de falar sobre a escrita, as práticas discursivas do adulto, recortadas e incorporadas pela criança, são, por sua vez, retornadas e incorporadas pelo adulto, num jogo muito mais dinâmico que supõe o elemento letrado como “informante sobre a escrita” e o elemento não letrado como aquele que, a partir da informação recebida, vai construir sozinho, dependendo apenas do seu sistema assimilatório já construído, um conhecimento sobre a escrita. (MAYRINK-SABINSON, 1998, p. 111)

Nesse ponto, ressaltamos a influência da natureza das relações entre adulto/criança/escrita, ainda que estabeleci – das, prioritariamente, pela ora-lidade, nos processos de apropriação da escrita. Afinal, as experiências com a oralidade participam de forma decisiva nesse processo, pois determinam a constituição da criança como sujeito do discurso, condição para o domínio da própria oralidade e da escrita.

É na linguagem que, de acordo com Franchi (1987, p. 12), “se produz, do modo mais admirável, o processo dialético entre o que resulta da interação e o que resulta da atividade do sujeito na constituição dos sistemas linguís-ticos, as línguas naturais de que nos servimos”. É na linguagem, conforme continua o autor,

[...] que se “dicionariza” o significado dos elementos lexicais, que as expressões se conformam a princípios e regras de construção, que se organizam os sistemas de representação de que se servem os falantes para interpretar essas expressões, que se estabelecem as coordenadas que permitem relacionar essas expressões a determinadas situações de fato.

Em consonância com a concepção de linguagem proposta por Franchi (1987), salientamos que a aquisição da escrita não pode ser entendida como a emergência de um sistema linguístico predeterminado ou de um modelo que se reproduz. Antes disso, tal aquisição constitui um processo conjunto de construção de objetos linguísticos envolvendo o jogo dialógico, a utiliza-ção do interlocutor como base para parâmetros de uso e de estruturação da escrita, a construção conjunta da significação.

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Aquisição da linguagem escrita: autoria e reescrita

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Ressignificando histórias de vida em torno da leitura e escrita Os relatos das mães das crianças, sujeitos de nossa pesquisa, foram ela-

borados com base nos diálogos com as pesquisadoras motivados por ques-tionamentos acerca das relações estabelecidas com a linguagem escrita ao longo de suas vidas. O modo como experiências vivenciadas em períodos di-ferentes (infância, adolescência ou a fase adulta) foram relatadas evidências como o tempo subjetivo não segue uma sequência cronológica, tampouco obedece a uma sucessão progressiva de fases estanques. As vivências rela-tadas pelas mães se articulam, se sobrepõem, delineando uma simultanei-dade de tempos em que marcas se inscrevem na história dos sujeitos com a linguagem escrita.

O fato de os episódios terem sido relatados sem seguir uma ordem cro-nológica nos revela que a condição atual de tais sujeitos com a linguagem escrita só pode ser significada e reconhecida na medida em que é visada pelo passado. Ou seja: as consciências de tais sujeitos são objeto de uma construção cujo tempo não é homogêneo e linear, mas um tempo em que a história se faz presente, permanentemente.

Essa heterogeneidade de tempos e sentidos pode ser entendida, com base em postulados de Bakhtin (1992a), como definidora da enunciação como um campo de tensão de forças antagônicas. Para o autor, o enunciado está sempre saturado de sentidos que são delineados social e historicamen-te. Assim, os discursos são compreendidos como processos de significação em permanente conformação, nos quais transitam vozes formuladas em di-ferentes períodos e por diferentes grupos sociais.

Se, conforme postula Bakhtin (1992a), os enunciados, como atos singula-res, emergem do universo de valores em que o sujeito socialmente se situa, os seus sentidos se realizam a partir de uma atitude valorativa por parte da-queles a quem eles se destinam. Tal compreensão nos leva a reconhecer que o papel do pesquisador, ao formular suas análises – aqui acerca das narrati-vas das mães –, é inevitavelmente o de assumir uma posição capaz de atri-buir sentido a respeito de um determinado estado de coisas.

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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão

Dica de estudoA Língua Absolvida � , de Elias Canetti, Editora Companhia das Letras.

Prêmio Nobel de Literatura de 1981, Elias Canneti narra sua infância e ado-lescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um sim-ples livro de memórias, A Língua Absolvida é a descrição do descobrimen-to do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos.

Atividades1. A partir dos referenciais abordados na aula, destaque, pelo menos dois prin-

cípios norteadores do conceito de “autoria” do texto escrito.

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Aquisição da linguagem escrita: autoria e reescrita

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2. No trabalho de partilhar com a criança a reelaboração de seus textos, quais condutas cabe ao educador?

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Quais são as relações estabelecidas entre a oralidade e a escrita e como essas relações interferem no processo de aquisição da leitura e escrita?

O domínio da escrita por parte da criança pressupõe, entre outras coisas, a incorporação das semelhanças e distinções existentes entre as modalidades de linguagem oral e escrita. Dessa maneira, identificamos que uma das intervenções prioritárias, a ser compartilhada entre adultos e crianças que participam do processo de aquisição da escrita, é provo-car discussões sistemáticas em torno das relações entre a oralidade e a escrita. Um dos objetivos de tais discussões é explicitar as implicações e os problemas linguísticos decorrentes do fato de as crianças insistirem no estabelecimento de uma equivalência entre as linguagens oral e escrita.

Para a condução desse processo de reflexão e de entendimento das especificidades da escrita, devemos nos empenhar em buscar respostas à complexa questão:

Quais são, efetivamente, os pontos de convergência e de divergên-cia que essas modalidades de linguagem estabelecem?

Antes de mais nada, é importante levar em conta, de acordo com Mar-cuschi (2001, p. 17 ) que não se pode pensar a relação oral e escrita sem “uma referência direta ao papel dessas duas práticas na civilização con-temporânea”, ou seja, “sem considerar a distribuição de seus usos na vida cotidiana”. O autor ressalta que a escrita se tornou

[...] essencial à própria sobrevivência no mundo moderno. Não por virtudes que lhe são imanentes, mas pela forma como se impôs e a violência com que penetrou nas sociedades modernas e impregnou as culturas de um modo geral. Por isso, friso que ela se tornou indispensável, ou seja, sua prática e avaliação social a elevaram a um status mais alto, chegando a simbolizar educação, desenvolvimento e poder. (MARCUSCHI, 2001, p. 16-17)

Aquisição da linguagem escrita: as relações entre a oralidade e a escrita

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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão

O principal fator que distingue a fala da escrita refere-se às diferentes práti-cas sociais em que essas modalidades de linguagem estão inseridas. Para tornar mais claro esse ponto, é importante levar em conta as seguintes questões:

Em que contextos e condições são usadas a oralidade e a escrita?

Quais são os usos da oralidade e da escrita em nossa sociedade?

A escrita tem usos distintos na escola e fora dela: alguns profissionais têm maior domínio da escrita que outros; o acesso à escrita é diferenciado em rela-ção aos grupos sociais, os contratos e acordos sociais são firmados não mais a partir da fala, mas pela escrita; a fala pode ser informal e contemplar variedades linguísticas, já a escrita, por sua vez, deve seguir uma norma e deve ser praticada apenas por quem tem o domínio dessa norma.

Feitas essas breves considerações em torno de uma das principais diferenças es-tabelecidas entre essas modalidades de linguagem, ou seja, daquela que evidencia os diferentes valores sociais atribuídos à oralidade e à escrita, passaremos a analisar outros pontos, tanto de convergência quanto de divergência entre ambas.

É importante esclarecer que realizaremos tal análise com o objetivo de com-preender as relações que os sujeitos, no processo de aquisição da escrita, esta-belecem entre a oralidade e a escrita. Com base na orientação teórica que tem norteado nossas reflexões, explicitamos alguns de nossos pressupostos:

a escrita não é uma representação da fala; �

a oralidade e a escrita devem ser tratadas como linguagens interativas e �complementares no contexto das práticas sociais e culturais;

a fala e a escrita se constituem como processos discursivos e de significa- �ção que empregam a mesma “estrutura linguística”, a mesma língua.

Tais premissas nos levam a questionar aquelas posições teórico-metodológi-cas que, atreladas a uma concepção da escrita como representação da oralidade e/ou como expressão do pensamento, tratam a relação oralidade e escrita de maneira dicotômica e hierarquizante. Desse modo, analisamos de forma crítica abordagens educacionais e clínicas que avaliam a escrita a partir da verificação de como a fala e/ou a cognição da criança se apresentam e de como ela transpõe essas habilidades para o papel. Tais modelos concebem a linguagem como veí-culo/instrumento e não como constitutiva do sujeito, bem como apostam numa relação direta entre oralidade e escrita.

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Aquisição da linguagem escrita: as relações entre a oralidade e a escrita

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Contrariando tal posição, uma das noções centrais no entendimento da rela-ção estabelecida entre oralidade e escrita refere-se à

[...] impossibilidade de situar a oralidade e a escrita em sistemas linguísticos diversos, de modo que ambas fazem parte do mesmo sistema da língua. São, portanto, realizações de uma gramática única, mas que do ponto de vista semiológico podem ter particularidades com diferenças acentuadas, de tal modo que a escrita não representa a fala. (MARCUSCHI, 2001, p. 38-39)

Do ponto de vista ortográfico, entre os inúmeros eventos que denunciam a falta de correspondência letra/som, podemos destacar:

que uma mesma letra pode ser articulada a partir de sons distintos: a letra �s pode ser representada pelo fonema /s/ em sapato e /z/ em casa;

que um mesmo som pode ser grafado por diferentes letras, como o fone- �ma /g/ pelas letras g e j. Exemplo dessa natureza pode ser verificado no caso das palavras jeito e geladeira, ambas articuladas inicialmente por um único som que é grafado por duas letras distintas;

letras presentes na escrita de palavras que não são articuladas na fala, �como a letra h, de hoje;

que muitas palavras são pronunciadas de diferentes formas em razão das �variedades linguísticas regionais, interacionais, estilísticas etc. A palavra porta, por influência regional, pode ser articulada com uso do “r” retro-flexo (o estigmatizado “r” caipira), no interior do país, e o uso das demais regiões;

o fato de que no português as letras apresentam ou não um uso alfabéti- �co, assumindo, em alguns casos, um valor silábico: a palavra apto é articu-lada /a-pi-tu/, a palavra afta é articulada /a-fi-ta/. Nesses casos ocorre a inclusão de um elemento que não aparece na escrita;

a utilização de duas letras para representar um som: para as palavras � quem e queijo, basta o som de /k/.

Do ponto de vista da elaboração textual, notamos que, fruto de contextos in-teracionais distintos, a produção oral e a produção escrita implicam estruturas “textuais” próprias, inviabilizando o alinhamento da fala com a escrita e vice-versa. Enquanto na produção escrita temos a ausência do interlocutor, o texto escrito deve recuperar fatos e sentidos que na fala são constituídos pelas circunstâncias, pela linguagem corporal e pelas suas características prosódicas. Sobre a orali-dade e a escrita, explicitadas como processos interacionais distintos, Abaurre (1987, p. 20) afirma que:

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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão

Se transcrevermos a fala, vamos notar uma perda considerável de informação, porque não temos mais o contexto em que foi dita e nem as marcas da prosódia. Não temos mais os gestos, nem a postura da pessoa. Onde recuperar o que foi perdido? É aí que o aprendiz de escrita tem que sentir que não pode simplesmente transpor a fala para a escrita. Ele tem que perceber que o que ele usa na fala não funciona na escrita, ele precisa usar outros recursos.

Cabe ainda destacar que se em ambas as linguagens a interação e a realidade dialógica constituem o seu processo de construção, as produções orais e escritas não se diferenciam apenas pela presença ou ausência dos interlocutores, mas pela natureza diversa das suas interlocuções. Recorremos novamente a Abaurre (1987, p. 191) para tornar mais clara essa ideia:

As produções orais implicam, na maioria dos casos, interlocutores presentes que negociam a todo o momento os papéis e os atos de significar através da linguagem. A linguagem escrita existe para possibilitar a leitura através do tempo e do espaço. As situações reais de escrita pressupõem, na maioria dos casos, interlocutores distantes, sendo a interação mediada pelo próprio objeto escrito e sua interpretação. Isso pode modificar consideravelmente os processos de negociação e atribuição de significado e papéis sociais na linguagem, assim como negociações das formas da própria linguagem.

No que se refere às características prosódicas da fala, notamos que os critérios de interrupção da cadeia fônica são significativamente diversos dos critérios de segmentação da escrita, resultando em diferenças entre ambos. Contudo, para a compreensão dos princípios utilizados pelas crianças no processo de aquisi-ção da escrita, durante a adoção de procedimentos de segmentação, deve-se considerar que quando produzem textos sem nenhuma ou com segmentações, aparentemente indevidas, elas podem estar trabalhando com a hipótese de que o que percebem como um fluxo contínuo e não segmentado de fala deve, como tal, ser representado na escrita.

Hipóteses formuladas em relação aos aspectos ortográficos e estruturais presentes nas produções infantis podem ser diagnosticadas equivocadamen-te como sinais de distúrbios de fluência oral e escrita, de percepção auditiva e visual, de atenção, de memória, de noção espacial, quando baseadas na suposi-ção de que existe uma relação direta entre oralidade e escrita.

Para evitar esses equívocos de avaliação, é fundamental o educador reconhe-cer que, para adquirir a linguagem escrita, a criança terá que enfrentar, como um dos principais desafios que marcam esse processo, o fato de que “a relação entre as letras e os sons da fala é sempre muito complicada pelo fato da escrita não ser o espelho da fala” (CAGLIARI, 1989, p. 117).

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Aquisição da linguagem escrita: as relações entre a oralidade e a escrita

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Como é possível apreender as singularidades presentes nos processos de aquisição da escrita?

Atribuir relevância aos dados singulares presentes nos processos de aquisi-ção da escrita vivenciados pelas crianças significa considerar que manifestações escritas que se apresentam na forma de trocas/omissões/inserções de letras, na falta de fluência do ritmo da escrita, nos apagamentos, nas hipo ou hiperseg-mentações, nas reelaborações são indícios de como as crianças atuam nesses processos. Ou seja: tais manifestações são marcas presentes na produção escrita, reveladoras daquilo que a criança sabe e não sabe a seu respeito.

O interesse maior dos educadores deve estar voltado para as singularidades marcadas nas produções escritas. Não pela falta de reconhecimento das regula-ridades que caracterizam essa modalidade de linguagem e de interesse por elas, mas, pelo contrário, por acreditarmos que é a partir do confronto entre o com-portamento regular – definido a partir de um sujeito “abstrato” e “universal” – e o comportamento real dos sujeitos singulares que podemos visualizar a complexi-dade dos processos de aquisição da escrita vivenciados pelas crianças.

Uma vez que nosso interesse se dirige à compreensão de como os dados singulares informam acerca do percurso trilhado por crianças no processo de aquisição da linguagem escrita, o conceito de situações-limite, discutido por Abaurre, nos oferece uma importante contribuição. A autora identifica como situações-limite aquelas em que a natureza cambiante dos dados linguísticos se torna mais evidente, oferecendo pistas visíveis acerca dos processos que partici-pam de uma relação particular da criança com a linguagem escrita.

Como Abaurre (1997, s.p.), concordamos com o fato de que se variações, num movimento descontínuo, ocorrem “em qualquer situação de uso significativo da língua oral e escrita”, existem momentos em que elas acontecem de maneira mais dramática. Tal fato decorre de fatores relativos às próprias características linguísticas ou às interlocuções instauradas entre os participantes nas situações da produção.

Produções de crianças que se encontram em processo de aquisição da escrita tornam visíveis como as situações em que ocorrem variações representam mo-mentos privilegiados de manipulação da linguagem por parte delas.

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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão

Nessa situação, a maior probabilidade de ocorrência de dados singulares, dando visibilidade aos aspectos que têm importância para a criança, acontece a partir de manifestações de escrita que consideram hesitações, apagamentos, repetições, reelaborações e generalizações. Considerando que esses comporta-mentos nos oferecem pistas para a compreensão do processo de aquisição da escrita pelas crianças, cabe ao educador:

surpreender e interpretar “instantes em que a criança, oralmente ou por �escrito, evidencia uma preocupação com aspectos formais ou semânticos da linguagem” (ABAURRE et al., 1997, p. 21);

investigar que aspecto – “de contexto, de forma ou de significação linguís- �tica, ou ainda, que possível combinação desses fatores – pode ter adquiri-do saliência particular para a criança”, gerando inquietações para as quais irá buscar, “ainda que, muitas vezes, episódica e circunstancialmente”, so-luções (ABAURRE et al., 1997, p. 21).

Importante ressaltar que é fundamental que essas marcas de reflexão e cons-trução da criança sobre a escrita apareçam de forma mais sistemática, e, para isso, é fundamental que a criança possa construir suas hipóteses e produzir textos espontâneos. Produções de escrita “controladas” e “censuradas” impedem as crianças de tentar, de perguntar, de comparar, de reformular e de escrever o que quiserem, da forma como sabem.

Por essa razão, consideramos que a aquisição dos aspectos que constituem um texto, os formais e os referentes a sua significação, só pode ocorrer a partir da produção espontânea. Abaurre (1991, p. 22) afirma ser “exemplar, nesse senti-do, a flagrante diversidade manifesta nos textos espontâneos”, uma vez que eles evidenciam os aspectos singulares que fazem parte desse processo.

Ao elaborar esse tipo de produção, as crianças vão ter que lidar, a partir dos recursos de que dispõem, com os aspectos relativos ao tipo de texto, à coerên-cia, à coesão, ao tema, ou seja, com os aspectos que conferem a sua “autoria”, pois são esses os responsáveis por uma produção significativa.

Eventos particulares de uma micro-história da escrita individual, esses momentos constituem-se, na sua singularidade, em indícios que estão a nos revelar movimentos espontâneos do sujeito ao longo do seu processo de constituição e da aquisição da linguagem. Acreditamos, assim, que cada texto espontaneamente produzido por uma criança pode sempre ser visto como fonte riquíssima de indícios sobre a relação sujeito/linguagem. (ABAURRE, 1991, p. 22)

É importante esclarecer que a produção espontânea não deve ser confundi-da com uma “orientação espontaneista” do processo de ensino-aprendizagem.

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Aquisição da linguagem escrita: as relações entre a oralidade e a escrita

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Adotar como proposta a produção espontânea não significa uma falta de con-dução pedagógica a partir da qual o aluno produz o que quer, quando dese-jar. Pelo contrário, as produções textuais serão decorrentes de discussões, de pesquisas, para atender necessidades, como parte de projetos, de experiências compartilhadas pelo aprendiz e pelo educador. Nessa medida, as produções deverão ser motivadas e solicitadas pelo educador e estar articuladas a ex-periências que garantam ao aprendiz, para que as realize, a possibilidade de compreender suas razões. Além disso, cabe ao educador garantir a leitura e as interpretações das produções espontâneas elaboradas pelas crianças, bem como possíveis reestruturações, quando necessárias.

Esperamos ter ficado claro que o educador tem um papel determinante nas produções espontâneas da criança. Como já mencionamos, tal importância de-corre de, no mínimo, dois fatos:

tais produções são reveladoras dos conhecimentos que a criança tem do �mundo, de si e da própria linguagem escrita;

tornar a produção de textos uma prática significativa para a criança é fator �determinante para a efetivação de seu processo de aquisição da leitura e escrita.

Constituímo-nos em leitores e escritores quando temos prazer e somos capa-zes de escrever e ler não apenas palavras, frases ou combinações de frases, mas “textos”. Se a sistematicidade e a ocorrência de produções de texto por parte do aprendiz dependem, sobretudo, da forma como o educador introduz a escrita na prática de ensino; se temáticas devem surgir das discussões, muitas vezes, pro-postas pelo educador, pode-se perguntar: a que se refere o espontâneo nessa proposta de produção escrita?

O caráter espontâneo de tais produções recai, especialmente, sobre a escolha do que e de como o aprendiz irá escrever.

Chamamos atenção para o fato de que crianças condicionadas a produzir es-critas a partir de atividades mecânicas, quando solicitadas à produção de textos, tendem a reproduzir o conjunto de palavras e/ou frases contido nos livros didáti-cos e nas atividades de sala de aula, donde conclui-se que escrevem mal ou que apresentam distúrbios. Devemos estar atentos para o fato de que as causas atri-buídas aos problemas de elaboração do texto das chamadas crianças copistas, ou seja, daquelas que, preferencialmente, reproduzem frases e estruturas, são decorrentes do fato de não serem solicitadas à produção espontânea de textos.

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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão

Com a finalidade de estabelecer uma distinção entre abordagens que privile-giam a produção textual e as que enfatizam a codificação e a decodificação no processo de ensino-aprendizagem da leitura e escrita, é importante tecer algu-mas considerações em torno dessa segunda perspectiva.

Decorrente de uma visão maturacional e associacionista de aprendizagem, define-se como fundamental, para a aquisição da escrita, o treino das chamadas habilidades básicas: percepção auditiva e visual, esquema corporal, lateralidade e noção temporoespacial, entre outras. Como atividades dirigidas à alfabetiza-ção, enfatizam-se a cópia, o ditado e a leitura de textos, frases, palavras, aponta-dos como primordiais para o domínio da correspondência entre sons e letras. As atividades linguísticas, como separar sílabas, ditado, cópia, formar frases interro-gativas, exclamativas, afirmativas, passar frases para o plural, singular, completar palavras consideradas difíceis, escrever várias vezes a mesma palavra para fixar o padrão correto, são entendidas como formas de aprendizagem para o uso cor-reto de regras gramaticais, de pontuação e de ortografia, as quais são realizadas mecanicamente pelo aluno. O aluno tende a realizar tais atividades sem vinculá-las à construção de textos escritos.

Acreditar que o domínio da escrita constitui-se do momento em que o apren-diz passa a conhecer as regras gramaticais significa supor que nesse desenvol-vimento linear e natural ocorrem saltos que vão do domínio do mecanismo de discriminação dos sons e da articulação correta destes para a associação entre sons e grafemas e, por último, para a elaboração e interpretação de textos nos padrões da norma culta.

Apesar da crença de que com a criança bem treinada os saltos irão ocorrer, podemos notar que, embora muitos de nossos adolescentes sejam capazes de codificar e de decodificar a escrita, poucos conseguem fazer uso efetivo dela e, portanto, interpretar e elaborar textos de forma adequada.

Para nos afastarmos de visões que localizam nas habilidades perceptuais os pré-requisitos para o domínio da escrita, privilegiamos uma outra direção. O processo de aquisição da escrita deve ser encaminhado a partir de:

uma releitura do erro, passando a considerá-lo como lugar privilegiado de �análise, indício da relação que a criança tem com a escrita, bem como de seus conhecimentos em relação a ela;

uma concepção que atribui à escrita o lugar de constitutiva do sujeito. �De acordo com a visão sociointeracionista, a escrita tem uma natureza

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Aquisição da linguagem escrita: as relações entre a oralidade e a escrita

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simbólica, e no seu processo de aquisição o outro tem papel primordial, pois é ele quem atribui à escrita significados sociais e a interpreta como atividade simbólica;

uma visão de que a escrita espontânea constitui um espaço necessário �e privilegiado para a produção de textos infantis, pois é quando se dá à criança a possibilidade de escolher sobre o que quer escrever;

uma noção de que é na escrita espontânea que a criança pode ter uma ex- �periência significativa, condição necessária para exercer a autoria de seus textos.

Texto complementar

Letramanento: um tema em três gêneros(SOARES, 2003, p. 15-25)

[...]

Se a palavra letramento ainda causa estranheza a muitos, outras pala-vras do mesmo campo semântico sempre nos foram familiares: analfabetis-mo, analfabeto, alfabetizar, alfabetização, alfabetizado e, mesmo, letrado e iletrado.

Analfabetismo, define o Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, é o “estado ou condição de analfabeto”, e analfabeto é o “que não sabe ler e escrever”, ou seja, é o que vive no estado ou condição de quem não sabe ler e escrever; a ação de alfabetizar, isto é, segundo o Aurélio, de “ensinar a ler” (e também a escrever, que o dicionário curiosamente omite) é designada por alfabetização, e alfabetizado é “aquele que sabe ler” (e escrever). Já letrado, segundo o mesmo dicionário, é aquele “versado em letras, erudi-to”, e iletrado é “aquele que não tem conhecimentos literários” e também o “analfabeto ou quase analfabeto”. O dicionário Aurélio não registra a palavra “letramento”. Essa palavra aparece, porém, num dicionário da língua portu-guesa editado há mais de um século, o Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa, de Caldas Aulete: na sua 3.ª edição brasileira o verbete “letramen-to” caracteriza a palavra como “ant.”, isto é, “antiga, antiquada”, e lhe atribui o significado de “escrita”; o verbete remete ainda para o verbo “letrar” a que,

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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão

como transitivo direto, atribui a acepção de “investigar, soletrando” e, como pronominal “letrar-se”, a acepção de “adquirir letras ou conhecimentos literá-rios” — significados bem distantes daquele que hoje se atribui a letramento (que, como já dito, não aparece no Aurélio, como também nele não aparece o verbo “letrar”).

Certamente, pois, não fomos buscar no “letramento” dicionarizado por Caldas Aulete, e já por ele considerado vocábulo antigo, antiquado, o termo letramento com o sentido que hoje lhe damos. Onde fomos buscá-lo? Tra-ta-se, sem dúvida, da versão para o Português da palavra da língua inglesa literacy.

Etimologicamente, a palavra literacy vem do latim littera (letra), com o sufixo -cy, que denota qualidade, condição, estado, fato de ser (como, por exemplo, em innocency, a qualidade ou condição de ser inocente). No Webster’s Dictionary, literacy tem a acepção de “the condition of being literate”, a condição de ser literate, e literate é definido como “educated; especially able to read and write”, educado, especialmente, capaz de ler e escrever. Ou seja: literacy é o estado ou condição que assume aquele que aprende a ler e escre-ver. Implícita nesse conceito está a ideia de que a escrita traz consequências sociais, culturais, políticas, econômicas, cognitivas, linguísticas, quer para o grupo social em que seja introduzida, quer para o indivíduo que aprenda a usá-la. Em outras palavras: do ponto de vista individual, o aprender a ler e escrever – alfabetizar-se, deixar de ser analfabeto, tornar-se alfabetizado, ad-quirir a “tecnologia” do ler e escrever e envolver-se nas práticas sociais de lei-tura e de escrita – tem consequências sobre o indivíduo, e altera seu estado ou condição em aspectos sociais, psíquicos, culturais, políticos, cognitivos, linguísticos e até mesmo econômicos; do ponto de vista social, a introdução da escrita em um grupo até então ágrafo tem sobre esse grupo efeitos de natureza social, cultural, política, econômica, linguística. O “estado” ou a “con-dição” que o indivíduo ou o grupo social passam a ter, sob o impacto dessas mudanças, é que é designado por literacy.

É esse, pois, o sentido que tem letramento, palavra que criamos traduzin-do “ao pé da letra” o inglês literacy: letra-, do latim littera, e o sufixo -mento, que denota o resultado de uma ação (como, por exemplo, em ferimento, re-sultado da ação de ferir). Letramento é, pois, o resultado da ação de ensinar ou de aprender a ler e escrever: o testado ou a condição que adquire um grupo social ou um indivíduo como consequência de ter-se apropriado da escrita.

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Aquisição da linguagem escrita: as relações entre a oralidade e a escrita

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[...]

É significativo refletir sobre o fato de não ser de uso corrente a palavra alfabetismo, “estado ou qualidade de alfabetizado”, enquanto seu contrário, analfabetismo, “estado ou condição de analfabeto”, é termo familiar e de universal compreensão. O que surpreende é que o substantivo que nega – analfabetismo se forma com o prefixo grego a(n)-, que denota negação – seja de uso corrente na língua, enquanto o substantivo que afirma – alfa-betismo – não seja usado. Da mesma forma, analfabeto, que nega, é também palavra corrente, mas nem mesmo temos um substantivo que afirme o seu contrário (já que alfabetizado nomeia aquele que apenas aprendeu a ler e a escrever, não aquele que adquiriu o estado ou a condição de quem se apro-priou da leitura e da escrita, incorporando as práticas sociais que as deman-dam). A explicação não é difícil e ajuda a clarear o sentido de alfabetismo, ou letramento.

Como foi dito inicialmente, novas palavras são criadas, ou a velhas pa-lavras dá-se um novo sentido, quando emergem novos fatos, novas ideias, novas maneiras de compreender os fenômenos. Conhecemos bem, e há muito, o “estado ou condição de analfabeto”, que não é apenas o estado ou condição de quem não dispõe da “tecnologia” do ler e do escrever: o anal-fabeto é aquele que não pode exercer em toda a sua plenitude os seus di-reitos de cidadão, é aquele que a sociedade marginaliza, é aquele que não tem acesso aos bens culturais de sociedades letradas e, mais que isso, grafo-cêntricas; porque conhecemos bem, e há muito, esse “estado de analfabeto”, sempre nos foi necessária uma palavra para designá-lo, a conhecida e cor-rente analfabetismo. Já o estado ou condição de quem sabe ler e escrever, isto é, o estado ou condição de quem responde adequadamente às intensas demandas sociais pelo uso amplo e diferenciado da leitura e da escrita, esse fenômeno só recentemente se configurou como uma realidade em nosso contexto social. Antes, nosso problema era apenas o do “estado ou condição de analfabeto” a enorme dimensão desse problema não nos permitia perce-ber esta outra realidade, o “estado ou condição de quem sabe ler e escrever”, e, por isso, o termo analfabetismo nos bastava, o seu oposto – alfabetis-mo ou letramento – não nos era necessário. Só recentemente esse oposto tornou-se necessário, porque só recentemente passamos a enfrentar esta nova realidade social em que não basta apenas saber ler e escrever, é preciso também saber fazer uso do ler e do escrever, saber responder às exigências de leitura e de escrita que a sociedade faz continuamente – daí o recente

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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão

surgimento do termo letramento (que, como já foi dito, vem-se tornando de uso corrente, em detrimento do termo alfabetismo).

[...]

Quanto à mudança na maneira de considerar o significado do acesso à leitura e à escrita em nosso país – da mera aquisição da “tecnologia” do ler e do escrever à inserção nas práticas sociais de leitura e escrita, de que resultou o aparecimento do termo letramento ao lado do termo alfabetização – um fato que sinaliza bem essa mudança, embora de maneira tímida, é a alteração do critério utilizado pelo Censo para verificar o número de analfabetos e de alfabetizados: durante muito tempo, considerava-se analfabeto o indivíduo incapaz de escrever o proprio nome; nas últimas décadas, é a resposta à per-gunta “sabe ler e escrever um bilhete simples?” que define se o indivíduo é analfabeto ou alfabetizado. Ou seja: da verificação de apenas a habilidade de codificar o próprio nome passou-se à verificação da capacidade de usar a lei-tura e a escrita para uma prática social (ler ou escrever um “bilhete simples”). Embora essa prática seja ainda bastante limitada, já se evidencia a busca de um “estado ou condição de quem sabe ler e escrever”, mais que a verificação da simples presença da habilidade de codificar em língua escrita, isto é, já se evidencia a tentativa de avaliação do nível de letramento, e não apenas a avaliação da presença ou ausência da “tecnologia” do ler e escrever.

[...]

A diferença entre alfabetização e letramento fica clara também na área das pesquisas em Educação, em História, em Sociologia, em Antropologia. As pesquisas que se voltam para o estudo do número de alfabetizados e anal-fabetos e sua distribuição (por região, por sexo, por idade, por época, por etnia, por nível socioeconômico, entre outras variáveis), ou que se voltam para o número de crianças que a escola consegue levar à aprendizagem da leitura e da escrita, na série inicial, são pesquisas sobre alfabetização; as pesquisas que buscam identificar os usos e práticas sociais de leitura e escri-ta em determinado grupo social (por exemplo, em comunidades de nível so-cioeconômicos desfavorecido, ou entre crianças, ou entre adolescentes), ou buscam recuperar, com base em documentos e outras fontes, as práticas de leitura e escrita no passado (em diferentes épocas, com diferentes regiões, em diferentes grupos sociais) são pesquisas sobre letramento.

[...]

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Aquisição da linguagem escrita: as relações entre a oralidade e a escrita

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Dica de estudoFilme � Meu Pé Esquerdo, de Jim Sheridan.

A história real do escritor irlandês Christy Brown que, apesar de sofrer de paralisia cerebral desde bebê, conseguiu provar ao mundo que tinha inte-ligência e talento. Ele só passou a ser tratado como alguém “normal” quan-do escreveu, com o pé, sua primeira palavra.

Atividades1. Com base na perspectiva sociointeracionista, o entendimento das relações

estabelecidas entre a linguagem oral e escrita, parte de que pressupostos?

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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão

2. Do ponto de vista ortográfico, entre os inúmeros eventos que denunciam a falta de correspondência letra/som, destaque os principais.

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Como são constituídos os problemas de escrita que incidem sobre seus aspectos formais?

Nesta aula, teremos como foco de análise problemas pertinentes à aquisição da escrita, iniciando com aqueles que incidem sobre seus as-pectos formais e, posteriormente, abordando os aspectos estruturais e semânticos.

Entre os aspectos formais, priorizaremos problemas na aquisição da ortografia, bem como na segmentação das palavras e frases, uma vez que esses aspectos têm sido identificados como um dos principais problemas presentes na escrita de crianças consideradas portadoras de distúrbios de leitura e escrita. É importante esclarecer que o termo disortografia tem sido utilizado por alguns profissionais para designar o não domínio da ortografia.

Para tanto, é interessante ressaltar a ideia de que não existe uma cor-respondência entre som e letra. Tal interesse se justifica para o entendi-mento de um dos pressupostos que norteará as análises desenvolvidas ao longo desta aula:

Grande parte das alterações ortográficas, presentes na escrita das crianças, ocorre pelo fato destas buscarem uma correspondência entre a fala e a escrita.

Basta verificar as inúmeras e infinitas exceções que subvertem a corre-lação entre sons e letras para compreendermos que o apoio na fala, para identificação das letras com as quais as palavras devem ser escritas, resul-ta numa série de problemas ortográficos. Relacionados a tais problemas estão as relações cruzadas que existem entre sons e letras, das quais de-correm, entre outras, as seguintes situações:

uma mesma letra ser articulada a partir de diferentes sons; �

Problemas relativos à aquisição da linguagem escrita: aspectos formais

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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão

o mesmo som ser escrito a partir de diferentes letras; �

letras presentes na escrita de palavras que não são articuladas na fala; �

letras que assumem um valor silábico. �

Essa falta de correspondência entre som e letra cria conflitos e tentativas de escrita por parte das crianças que resultam em trocas, substituições, omissões de letras. Podemos identificar e classificar hipóteses e tipos de manifestações orto-gráficas incompatíveis com o padrão ortográfico, mas é impossível prever todas as suas possibilidades de ocorrência. Contudo, apesar de serem infinitas tais pos-sibilidades, podemos identificar algumas alterações ortográficas que aparecem com maior recorrência na escrita das crianças. Entre essas, podemos destacar:

troca e/ou substituição das letras � s, ss, sc, x, z, ç, ch;

troca dos pares de letras � p/b, f/v, t/d/, c/g.

O primeiro caso decorre em razão de essas letras, na formação de palavras, estabelecerem as relações cruzadas acima descritas. Para exemplificar, apresen-tamos algumas trocas ortográficas familiares na escrita de crianças:

Caza � para Casa. A letra s corresponde ao som que também corresponde à letra z;

Séu � para Céu. A letra c corresponde ao som que também corresponde à letra s;

Xapéu � para Chapéu. As letras x e ch correspondem ao mesmo som.

No segundo caso, estamos diante de letras que, quando articuladas em sons, formam o que chamamos de pares mínimos, ou seja, sons que são articulados praticamente da mesma forma, só havendo uma distinção em relação ao traço de sonoridade.

Para tornar clara essa situação, articule, por exemplo, os sons referentes às letras t e d. Perceba que os movimentos de seus lábios e de sua língua são iguais e que a única coisa que muda é o fato de um ser vibrante (sonoro) e o outro não (surdo). O traço de sonoridade distingue-se, portanto, pela existência ou não de vibração das pregas vocais (cordas vocais) no momento da produção do som. Caso queira tentar, coloque a mão na sua garganta, verifique como os seus lábios e língua se movimentam quando produz os sons correspondentes às letras t/d – p/b; c/g – f/v – x, ch/j, g. Note que na articulação do d, b, g, v, j, g ocorre a vibração das pregas vocais, o que não acontece no caso de t, p, f, x, ch.

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Problemas relativos à aquisição da linguagem escrita: aspectos formais

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Uma vez entendida que a forma de articular esses sons são muito semelhan-tes, imagine a dificuldade que a criança encontra quando busca na fala pistas que lhe indiquem como devem ser escritas palavras que apresentam letras cor-respondentes, na fala, aos pares mínimos. Nesses momentos, a criança vê-se diante de um impasse sem solução, pois ao recorrer à fala para solucioná-lo, não encontrará pistas e permanecerá com as dúvidas entre as seguintes possibilida-des: jantar ou xantar? cavalo ou cafalo? vaca ou faca? porta ou porda?

Podemos acompanhar, com frequência, a seguinte cena: crianças paradas, articulando em voz baixa, insistentemente, uma determinada palavra para saber a sua forma convencional de escrita. Afinal, muitas vezes, exaustas por não encontrarem uma pista segura para resolver tal impasse, arriscam uma das possibilidades.

Chamamos atenção para a escolha entre cavalo ou cafalo, em que a criança tem 50% de chance de “acertar” ou de “errar” a letra que corresponde à conven-ção. Razão pela qual, em alguns casos, “acerta” e, em outros, “erra”. Assim, diferen-temente do que consideram muitos educadores e profissionais que atuam com crianças consideradas portadoras de distúrbios de leitura e escrita, o fato de em alguns momentos tais crianças escreverem as palavras da forma convencional e em outros não, longe de representar falta de atenção, de interesse ou de desca-so, está dentro de uma margem de probabilidade estatística.

Somadas às manifestações ortográficas acima discutidas, podemos ainda identificar na escrita das crianças as denominadas hipossegmentações e as hi-persegmentações. A hipersegmentação refere-se às escritas de crianças que não atendem à normalidade, pois apresentam subpartes de palavras, segmentadas além do normal. A exemplo dessa situação, podemos encontrar crianças que, no lugar de achei, escrevem a – chei, no lugar de banana, escrevem ba – nana.

No caso da hipossegmentação, a criança não consegue dissociar elementos como artigos, pronomes, preposições e/ou formas auxiliares de verbos, não es-tabelecendo um estatuto autônomo entre eles. Razão pela qual escrevem, no lugar de eu vou para casa, vou pracasa. Tal ocorrência deve-se ao fato de estes enunciados apresentarem, na fala, um contínuo não segmentado e, assim, serem reproduzidos na escrita.

Avançando em nossa análise, com base na concepção de que a linguagem escrita não é uma representação da fala, voltamos a afirmar que, para a efetiva-ção do processo de aquisição da escrita, é fundamental que a criança venha a compreender as distinções existentes entre essas modalidades de linguagem.

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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão

Feitas essas considerações, chamamos atenção para dois aspectos:

se é fato que, no início do processo de aquisição da escrita, a criança, vo- �luntariamente, busca apoio na fala para realizar suas produções escritas, isso ocorre não porque a escrita seja transcrição ou representação da fala, mas porque a criança tem um domínio oral da língua portuguesa, indo buscar na fala recursos e referências para a aquisição da modalidade es-crita dessa língua;

se o apoio na fala representa um recurso de que a criança dispõe no início �de sua aquisição da escrita, cabe ao educador, ao longo desse processo, explicitar as distinções entre oralidade e escrita, os problemas decorrentes do fato de haver uma insistência no estabelecimento da busca dessa cor-relação e, assim, contribuir para que a criança consiga incorporar outros mecanismos que lhe permitam apreender as especificidades da escrita.

Se com as colocações acima pretendemos deixar claro o porquê de a criança buscar, no seu processo de aquisição da escrita, apoio na fala, esperamos que, da mesma maneira, tenha ficado claro que esse apoio deve, ao longo desse proces-so, ser relativizado e, na medida do possível, deixado de lado e/ou substituído por outros recursos.

Acreditamos que essa mudança de atitude por parte da criança depende da intervenção do adulto, uma vez que aprender a ler e a escrever é, também, aprender as distinções entre essas modalidades de linguagem.

Contudo, caminhando em direção oposta à acima indicada, podemos perce-ber o predomínio de métodos e estratégias de ensino que privilegiam o apoio na oralidade para a aquisição da escrita. Tais métodos pressupõem que, para aprender a escrever, a criança deve ser capaz de isolar e reconhecer auditiva-mente as unidades sonoras para, num segundo momento, relacioná-las às uni-dades escritas.

Em razão da ênfase nessa abordagem estar posta na correspondência entre sons e letras, a discriminação auditiva e a articulação correta passam a ser trata-das como pré-requisitos para o aprendizado da linguagem escrita.

Tal perspectiva pode ser apreendida a partir de orientações dadas por educa-dores às crianças, tais como: “preste atenção no modo como fala e assim saberá a forma de escrever”, “fale devagar e escute com cuidado, assim você vai saber como escrever essa palavra”.

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Problemas relativos à aquisição da linguagem escrita: aspectos formais

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Somadas a essas orientações, são desenvolvidas atividades consideradas pré- -requisitos para o domínio da convenção ortográfica que visam à articulação correta das palavras e ao aperfeiçoamento da discriminação auditiva.

É na insistência dessas práticas que procuram impor ao aluno a ideia de que o melhor recurso para saber a forma da escrita é estar atento à fala, que se cons-tituem os problemas de ortografia.

Ao contrário dessa insistência, consideramos que cabe ao educador mostrar à criança:

que essa correlação que ela busca estabelecer entre som e letra pode lhe �criar vários problemas, pois, em muitos casos, não é viável;

que há outras possibilidades e recursos para resolver os conflitos quanto à �forma ortográfica, como, por exemplo, escrever as palavras das diferentes formas que julgar possíveis, ler tais formas e buscar uma identificação com aquela que lhe parecer mais familiar; ou, ainda, recorrer ao dicionário etc.

Chamamos atenção, ainda, para o fato de que concepções de aprendizagem que privilegiam atividades mecanicistas como a cópia e o ditado para a aquisição da ortografia não se inserem na orientação acima descrita. Tais atividades giram em torno da ideia de treino de palavras, ou seja, da noção de que o aprendizado ocorre a partir da reprodução e repetição delas. Dessa maneira, desconsidera-se a capacidade da criança de pensar, de elaborar e de operar sobre o aspecto orto-gráfico da escrita. Para apropriar-se da linguagem escrita, a criança não apenas reproduz o que vê escrito, mas, principalmente, pensa sobre e como se escreve, elabora hipóteses que vão sucessivamente se transformando e transformando a sua escrita.

Podemos dizer que o não domínio da ortografia se torna um problema quando às crianças não são dadas as oportunidades de tentar, errar, acertar, re-fazer, ou seja, operar sobre esse aspecto da escrita, pensar sobre ele e, portanto, apropriar-se dele. Nesses casos, temos crianças que não avançam em suas hipó-teses e pouco conseguem pensar e falar sobre estas. Afirmamos, com isso, que o problema se constitui a partir da impossibilidade que as crianças encontram para pensar e agir de forma ativa sobre os aspectos ortográficos.

Assim, para a superação de tal dificuldade, torna-se imprescindível que se res-peitem os “erros” da criança, que eles possam aparecer, que sejam objeto de dis-cussão e de reflexão entre a criança e os adultos, que ao invés de “erros”, sejam tratados como conhecimentos que a criança tem sobre a escrita. Ressaltamos que

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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão

adultos também hesitam na escolha de formas “corretas” de escrita de algumas pa-lavras e que, portanto, a aquisição da ortografia é um processo que não tem fim.

Por que grande parte da população brasileira tem uma relação negativa com a leitura e a escrita?

Antes de iniciarmos a análise específica dos problemas de leitura e escrita, res-saltamos que expressões como distúrbios e dificuldades de leitura e escrita, bem como distúrbio de aprendizagem, têm sido utilizados para designar pessoas que não têm o domínio da leitura e da escrita.

Em nosso caso, adotaremos os termos “dificuldades” ou “problemas de leitura e escrita”. Entendemos que o termo distúrbio sinaliza para uma incapacidade ine-rente e/ou localizada no indivíduo, em geral, de natureza orgânica. Subsidiando essa perspectiva de análise, identificamos visões simplistas e equivocadas, uma vez que atribuem a inaptidões orgânicas, perceptuais e motoras, as dificuldades de aquisição da leitura e escrita por parte da criança. Dessa maneira, descon-sidera-se que manifestações de escrita expressam valores, hábitos, comporta-mentos, modos de vida de diferentes grupos sociais geradores de experiências, contatos e conhecimentos acerca da linguagem escrita.

Estudos, relatos de pesquisa, artigos científicos e opiniões de senso comum apontam dificuldades por parte da população brasileira, com relação ao apren-dizado e ao domínio da leitura e escrita, revelando que indivíduos dos mais variados grupos sociais e, portanto, com experiências pessoais, culturais e edu-cacionais distintas, estabelecem uma relação negativa e inadequada com essa modalidade de linguagem. Isso somado ao alto índice de analfabetismo, que, segundo dados do IBGE, corresponde a 15 milhões de brasileiros considerados analfabetos funcionais ou alfabetizados tecnicamente. Considera-se que esses grupos são compostos por indivíduos que sabem codificar e decodificar a escrita, porém não compreendem o que leem nem o que escrevem, ou seja, apresentam dificuldades em interpretar o texto e significar por meio da linguagem escrita.

Reforçando o quadro deficitário de grande parte da população diante da es-crita, acompanhamos, atualmente, um aumento crescente no encaminhamen-to de crianças com problemas de escrita para atendimentos com profissionais especializados.

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Problemas relativos à aquisição da linguagem escrita: aspectos formais

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Retratando a gravidade dessa situação, deparamo-nos com relatos de pessoas que, inseridas nos diferentes níveis de formação – fundamental, médio ou su-perior –, com diferentes idades e pertencentes a diferentes grupos sociais, esta-belecem uma relação negativa com a modalidade de linguagem escrita. Como resultado dessa relação, afirmam não gostar de ler e escrever e assumem uma atitude resistente diante de situações em que são solicitadas à produção e à in-terpretação de textos.

É fato asseverado que dificuldades de leitura e escrita não atingem exclusi-vamente indivíduos “carentes” ou provenientes de classes sociais consideradas baixas. Parcela significativa de indivíduos inseridos no sistema particular de ensino – que, de uma forma geral, não estão sujeitos às carências decorrentes da condição de pobreza – também é considerada alfabetizada tecnicamente. Isso porque são capazes de codificar e decodificar o sistema linguístico, porém não conseguem interpretar o que leem, tampouco se posicionarem por meio da escrita.

É comum vermos crianças com atitudes de medo, angústia, timidez e até de pânico diante de atividades de leitura e escrita. Com a mesma frequência obser-vamos jovens e adolescentes classificarem como piores aulas aquelas em que são solicitados a ler, a interpretar e a escrever textos. Infelizmente, o problema não se restringe às faixas etárias acima mencionadas, mas a um número signifi-cativo de adultos que evidenciam não gostar de ler e escrever; que ler e escrever é coisa para doutor; que não têm cabeça nem tempo para isso, ou, então, que, para exercer a sua atividade profissional, ler e escrever não é necessário.

Salvo as diferenças nas formas de manifestação, notamos que o problema se estende e se configura como um problema de âmbito social, ou seja, existem determinantes sociais na configuração dessa realidade.

É fundamental deixar claro que, ao retratarmos tal realidade, longe de cul-parmos as pessoas pela relação negativa que estabelecem com a escrita, pre-tendemos oferecer elementos que nos levem a compreender os diferentes de-terminantes dessa realidade para, então, atuarmos de forma mais consciente sobre ela. Ressaltamos que tais pessoas têm incorporado valores, definições e julgamentos decorrentes de suas condições socioeconômicas, que dispõem em posições desiguais aqueles que dominam e não dominam a modalidade escrita de linguagem.

Não podemos deixar de analisar criticamente o fato da escrita estar associada ao jogo de dominação/poder, participação/exclusão, que caracteriza ideologicamente

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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão

as relações sociais. Nesse jogo, os sujeitos assumem posições diferenciadas, de-correntes do domínio ou não de tal modalidade de linguagem.

No processo inicial de aquisição da escrita, crianças que vivenciam experiên-cias variadas e significativas de leitura e escrita em seu ambiente familiar e esco-lar encontram-se em vantagem em relação às que não vivem tais experiências. Remetendo-nos, ainda, às diferentes condições de produção das crianças, nota-mos que muitas delas vivem com adultos que têm incorporada a noção de maus leitores e escritores e, portanto, não se consideram, de fato, capazes de orientá-las. Tal posição nos leva a considerar as implicações, para as crianças, tanto objeti-vas quanto subjetivas decorrentes do fato de tais adultos não se autorizarem a ocupar o lugar de corresponsáveis no seu processo de aquisição da leitura e escrita. A qualidade das relações negativas com a leitura e escrita, estabelecidas por adultos responsáveis pela formação de crianças, leva-nos a questionar:

Até que ponto, e de que forma, a escrita se constitui como foco de atenção �e interesse para tais crianças?

Que sentidos e funções acerca da escrita estão sendo compartilhados �com elas?

De que forma ocorrerá a emergência do letramento para tais crianças, �uma vez que a escrita não assume um papel decisivo nas relações estabe-lecidas em seu contexto familiar e educacional?

Feitas estas considerações, afirmamos que os piores sintomas e, portanto, os maiores problemas que caracterizam crianças consideradas portadoras de difi-culdade de leitura e escrita são:

o fato da leitura e da escrita não fazerem parte de suas vidas de forma �significativa e prazerosa;

o fato de, a exemplo de adultos que as acompanham, sentirem-se incom- �petentes e inseguras para o domínio da leitura e escrita. Em outras pala-vras, terem introjetada a noção de incompetência linguística.

A superação desses problemas, dos quais decorrem grande parte das dificul-dades enfrentadas pelas crianças na leitura e na escrita, coloca-se como um dos principais desafios para aqueles que atuam com crianças no seu processo de aquisição.

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Problemas relativos à aquisição da linguagem escrita: aspectos formais

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Como contribuir para que a leitura e a escrita façam parte da vida das pessoas?

Acreditamos que uma série de medidas precisa ser tomada para que, de fato, todos tenham acesso à leitura e à escrita no país. Como já sinalizamos, tal pro-blema assume proporções e dimensões que extrapolam as limitações e/ou ca-pacidades individuais. Já que esse problema tem uma constituição histórica e é decorrente das formas de organização de nossa sociedade, cabe a nós, educado-res, pensarmos até que ponto participamos dessa constituição e como podemos agir para reverter essa situação.

Com certeza não existem receitas nem soluções simplistas ou mágicas para a mudança desse quadro, que tem acompanhado a sociedade brasileira ao longo da sua história. Contudo, existem respostas. Para idealizarmos tais respostas, basta nos inspirarmos no entusiasmo das crianças pequenas, ainda não inseridas no ensino fundamental, em aprender a ler e a escrever. Esse entusiasmo revela que o desejo de se tornar leitor e escritor ainda persiste em muitas de nossas crianças. Trata-se, inicialmente, de não deixar morrer esse entusiasmo, mas, pelo contrário, extrair dele a motivação e a inspiração para, como educadores, contri-buirmos para que as crianças se apropriem efetivamente da escrita.

Podemos intervir e fazer a diferença no âmbito de nossa existência profissio-nal e pessoal, agindo de forma que:

a escrita não seja reduzida às atividades escolares, especialmente de ava- �liação do desempenho dos alunos. Em outras palavras, que as crianças não sejam solicitadas a escrever apenas para fazer provas e trabalhos;

as crianças compartilhem de situações em que estejam garantidos os dife- �rentes usos e funções sociais da escrita;

o adulto atribua sentido às experiências de leitura e de escrita realizadas �em parceria com a criança;

a criança aprenda a ler e escrever “lendo e escrevendo”, e não realizando as �tradicionais atividades pré-requisitos para a leitura e escrita, que pouco têm a ver com a possibilidade de domínio dessa modalidade de linguagem.

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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão

“Sintomas disléxicos”: hipóteses sobre a escrita em construção

(MASSI, 2007, p. 99-102)

Neste capítulo, apresentamos o que a bibliografia que aborda a dislexia toma como manifestações sintomáticas dessa dita síndrome, denunciando descrições incertas e fragilizadas em torno desse suposto distúrbio específi-co de aprendizagemn. Procuramos mostrar que tais manifestações carecem de uma explicitação pautada no entendimento de como a escrita funciona e de como o percurso para a sua apropriação é trilhado pela criança.

[...]

Ao tomar o contexto social e as interações históricas como aspectos fundamentais no estudo da linguagem, esses “erros”, distantes de uma ex-plicação biologizante e reducionista, deixam de ser vistos como sintomas patológicos e, em situação oposta, são encarados, com tranquilidade, como indícios de mecanismos dos quais o aprendiz lança mão para manipular e compreender a leitura e a escrita que estão sendo construídas. Entenden-do com Freitas (1996, p. 173) que “educar não é homogeneizar, produzir em massa, mas produzir singularidades”, chamamos a atenção para o fato de o sistema educacional, afastado de uma concepção de linguagem que privile-gia a sua heterogeneidade e indeterminação, estar transferindo para a área da saúde questões relacionadas à apropriação da escrita, que dizem respeito ao seu cotidiano.

A fragilidade descritiva[...] para alguns estudos não mais convém defender a existência da disle-

xia como uma patologia única, resultante de uma mesma origem e determi-nante de um grupo único de manifestações sintomáticas.

Esses estudos investem na tentativa de propor que tal patologia deveria ser desmembrada em diversas dislexias, originárias de fatores múltiplos e geradoras de sintomas diversos. A título de ilustração, citamos as afirmações

Texto complementar

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Problemas relativos à aquisição da linguagem escrita: aspectos formais

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feitas por Hout (2001, p. VII): “[...] os dados exploratórios da dislexia revelam-nos sua diversificação, tanto em suas causas e manifestações quanto no agrupa-mento dos sintomas: assim, a partir de agora, devemos falar de dislexias, no plural”.

Quanto a essa afirmação, cabe notar que a constatação da contrariedade existente em torno dos fatores causais e da diversidade de manifestações ditas sintomáticas – em vez de levar pesquisadores da área a refletir sobre a necessidade de problematizar a conceituação que envolve a dislexia, apon-tando para a improbabilidade de estarmos perante uma doença – é tomada para reforçar aquela mesma noção patologizante, tradicionalmente reco-nhecida e livre de maiores questionamentos. Essa visão de “doença” parece tão bem-aceita e arraigada que “erros” – transitórios ou próprios de quem usa e manipula a linguagem – são tomados como sintomas de um deficit.

Contudo, ressaltamos que nem todo “erro” ou “desvio” é decorrente de uma patologia, principalmente quando consideramos o sujeito e suas ações linguísticas, pois entendemos que “erros” – pausas, hesitações, reorganiza-ções, lapsos – perpassam, invariavelmente, o uso da linguagem. Além disso, investigando fatos que compõem o processo de apropriação da escrita, [...] compreendemos que “erros”, “faltas” e “inadequações” acompanham esse processo.

Por isso, na descrição dos ditos sintomas disléxicos, preocupa-nos a falta de entendimento da linguagem como um trabalho coletivo, social, histórico, constitutivo de recursos expressivos próprios de uma língua natural. Sem tal entendimento, não é possível perceber que cada sujeito-aprendiz estabele-ce uma relação com a escrita e que, por isso, torna-se confuso discernir entre um sintoma patológico e uma dificuldade ou instabilidade própria de quem está manipulando e construindo a modalidade escrita da linguagem.

[...]

Os ”sintomas disléxicos”Ianhez e Nico (2002) e Cuba dos Santos (1987) listam vários “sinais” e “sin-

tomas” como decorrentes do que tomam por dislexia. [...] centramos nossa atenção em itens descritivos relacionados à linguagem, os quais apresenta-mos e discutimos a seguir [...]:

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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão

desempenho inconstante com relação à aprendizagem da leitura e da �escrita;

dificuldade com os sons das palavras e, consequentemente, com a so- �letração;

escrita incorreta, com trocas, omissões, junções e aglutinações de fo- �nemas;

relutância para escrever; �

confusão entre letras de formas vizinhas, como “moite” por “noite” [...]; �

confusão entre letras foneticamente semelhantes: “tinda” por “tinta”, �“popre” por “pobre”, “gomida” por “comida”;

omissão de letras e/ou sílabas, como “entrando” por “encontrando” [...]; �

adição de letras e/ou sílabas: “muimto” por “muito”, “fiaque” por “fique”, �[...];

união de uma ou mais palavras e/ou divisão inadequada de vocábu- �los: “Eraumaves um omem” por “Era uma vez um homem” , a mi versa-rio por aniversario;

leitura e escrita em espelho. �

De nosso ponto de vista, [...] compreendendo a linguagem como uma ativi-dade que se realiza no espaço interlocutivo, todos esses itens tomados como fenômenos patológicos devem ser questionados, conforme Massi (2004). Ini-cialmente, com relação ao dito desempenho inconstante, não entendemos como o processo de apropriação da escrita – que implica tentativas, “erros”, hipóteses e “acertos” – poderia se desenvolver livre de instabilidades.

[...] para Vygotsky (1991a), não é possível pensar na construção da escri-ta como um processo linear e constante. Durante a aquisição da linguagem oral, a criança também apresenta instabilidades: errando, tentando, mani-pulando e acertando. É preciso aceitar que todo processo de apropriação de novos conhecimentos requer reflexões e comparações em um percurso de idas e vindas, o qual, longe de estabilidades, nos leva a perguntas, indaga-ções e perplexidades.

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[...] quanto aos itens que se referem, respectivamente, à dificuldade com os sons das palavras, bem como em um sistema paralelo de “apoio” a ela, graças aos recursos financeiros da família. Em resumo, falhando no seu papel pedagógico, o sistema escolar parece justificar-se na medida em que aponta uma série de “patologias” nas crianças, refletindo a visão organicista da socie-dade atual, a qual tem negligenciado o caráter social, cultural e histórico do desenvolvimento humano, para evidenciar critérios pouco elucidativos que repousam em noções do tipo acerto/erro, normal/patológico. Nessa direção, o próprio conceito de “normal” precisa ser enfrentado.

[...] O “normal”, longe de ser um conceito estático ou pacífico, é, ao mesmo tempo, a extensão e a exibição da norma. Para o autor, não é possível supor que a saúde possa ser compreendida na medida em que são abordadas questões relativas à doença.

[...]

Dica de estudoFilme � Central do Brasil, de Walter Salles Jr.

Mulher que escreve cartas para analfabetos na Central do Brasil ajuda me-nino, após sua mãe ser atropelada, a tentar encontrar o pai que nunca conheceu, no interior do Nordeste. Retratando a história de uma profes-sora aposentada que ganha a vida escrevendo cartas para analfabetos, na maior estação de trens do Rio de Janeiro e de um garoto pobre filho de nordestinos, o filme evidencia, no contexto de sofrimento próprio de gru-pos de migrantes em busca de melhores condições de vida nas grandes cidades, como as práticas de leitura e escrita estão inseridas.

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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão

Atividades1. Dentre as relações cruzadas que existem entre sons e letras, das quais decor-

rem produções ortográficas fora do padrão, destaque as principais.

2. Como se caracterizam os sons considerados “pares mínimos” e cite as letras que eles correspondem.

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Como são constituídos os problemas de escrita e leitura relativos aos aspectos semânticos e estruturais?

Dentre as principais dificuldades de leitura e escrita, apresentadas por parcela significativa da população brasileira, encontram-se limitações re-lacionadas às possibilidades de produção e apreensão dos sentidos veicu-lados nos diferentes textos escritos.

Nesse sentido, os sintomas mais frequentes e de maior gravidade que afetam crianças consideradas portadoras de dificuldades de leitura e es-crita são:

o fato de a leitura e a escrita não fazerem parte de suas vidas de �forma significativa e prazerosa;

o fato de, a exemplo de adultos que as acompanham, sentirem-se in- �competentes e inseguras para o domínio da leitura e escrita. Em ou-tras palavras, terem introjetada a noção de incompetência linguística.

Destes problemas decorre grande parte das dificuldades enfrentadas pelas crianças na leitura e na escrita. Entre essas, trataremos, nesta aula, das limitações e/ou impossibilidades que as crianças encontram na leitura e na elaboração de textos.

Quais são as principais dificuldades de leitura? Deparamo-nos com crianças e adolescentes que não conseguem re-

produzir o que leram e, mais grave ainda, não conseguem refletir sobre o que leram. A atividade de leitura, nesses casos, é reduzida a um ato de decodificação de um código, que ocorre muitas vezes sem uma fluência.

Problemas relativos à aquisição da linguagem escrita: aspectos semânticos e estruturais

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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão

Diante desse tipo de leitura, que é comum, surgem novamente questões que evidenciam a complexidade da distinção entre o que é normal ou patológico no campo da linguagem:

Essas crianças e esses adolescentes sabem ler? Quando considerar que as crianças apresentam dificuldades na leitura?

Como resposta a essas perguntas, entendemos que problemas na leitura re-ferem-se a quadros em que crianças não conseguem apreender e interpretar o que leem. Diante dessa posição, poderíamos elaborar uma outra questão:

Por que as crianças apresentam dificuldades para apreender e interpre-tar textos?

Para responder a essa questão, fazem-se necessárias algumas colocações em torno de nossa concepção de leitura, ou seja, o que entendemos por ler.

Primeiramente, é importante esclarecer que a interpretação textual é fator determinante para a constituição de um leitor autônomo. Para que ela ocorra, a criança tem de perceber que a finalidade do texto é veicular ideias, experiências, opiniões, formas de pensar a realidade etc. Ou seja: ela tem que aprender que ler significa apreender as intenções de quem escreve e interpretá-las.

Ler, nessa perspectiva, é muito mais que identificar personagens ou detalhes, é observar o que não é dito, mas está nas entrelinhas, é relacionar o que estamos lendo com aquilo que já vimos ou lemos em outros textos, é concordar ou dis-cordar com o que está dito, estabelecendo uma relação de diálogo com o texto e com seu autor.

Para que a criança assuma essa atitude diante dos textos e venha a se cons-tituir como leitora, é necessário que compartilhe com adultos, desde o início de seu processo de aquisição da linguagem escrita, experiências em que este realize interpretações por e para ela, instigue-a a estabelecer relações entre o texto lido e suas experiências de vida. Caso isso não ocorra, ou seja, caso a criança não tenha alguém que lhe ensine o que significa ler, ela não se tornará um leitor de fato.

Afirmamos, portanto, que a constituição do leitor não acontece espontânea e magicamente, tampouco resulta da capacidade de discriminar visualmente as letras, de saber juntá-las e de decifrar palavras e frases. A aprendizagem da lei-tura por si mesma não garante o hábito e o prazer de ler, nem a constituição do

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leitor. Enfatizamos, ainda, que isso não se consegue escolhendo um livro obri-gatório por bimestre para a criança ler em casa, nem realizando provas sobre o conteúdo, as personagens ou sobre a compreensão do texto. Não se consegue desenvolver o hábito e o prazer da leitura cobrando fichas de leitura, ou dizendo a ela que ler é muito importante. Assim como os adultos, uma criança ou um adolescente não tem motivação para se aperfeiçoar em algo por estar sendo avaliado, esse procedimento só causa tormentos.

Da mesma maneira, pedir à criança que leia em voz alta para testar suas habi-lidades perceptivas a afasta do aspecto semântico do texto e de sua constituição dialógica. Tal distanciamento impossibilita a compreensão de que o texto escrito faz parte de uma interação com um outro sujeito e com aquilo que ele tem a dizer. Anulam-se, portanto, o sujeito que escreve e o sujeito que lê o texto, fican-do esse último reduzido à sua habilidade de decodificação do código escrito.

Nessa medida, percebemos que muitas das dificuldades que as crianças apre-sentam em relação à leitura decorrem de práticas que utilizam textos ou pseu-dotextos para a avaliação e treino das habilidades relativas à percepção visual, bem como para o ensino do léxico e de normas gramaticais. Tais práticas, além de desconsiderar o trabalho com os sentidos do texto e, portanto, de interpreta-ção, efetivamente, não o adotam por compreender que é nele que a linguagem se realiza, mas o utilizam como pretexto para extrair formas e regras. Conforme alerta Lajolo (1991, p. 51), essa maneira de apresentar o texto deve ser superada, uma vez que

[...] o texto não é pretexto para nada. Ou melhor, não deve ser. Um texto existe apenas na medida em que se constitui ponto de encontro entre dois sujeitos: o que escreve e o que lê; escritor e leitor, reunidos pelo mesmo ato radicalmente solitário de leitura, contrapartida do igualmente solitário de escrita.

Como lidar com as dificuldades de interpretação na leitura apresentadas pelas crianças?

Para que as crianças interpretem textos, devem ser priorizadas atividades nas quais precisem não somente entender o significado das palavras, mas também realizar associações, apreender sentidos figurados que estejam mobilizados pelo texto proposto, como na leitura de uma piada, de um bilhete, de uma carta, de um recado, de um anúncio no jornal, da sinopse de um filme, de histórias.

Quando trabalhamos a interpretação textual com crianças, é preciso pôr em discussão alguns aspectos que participam da construção dos sentidos do texto,

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ou seja, o sentido conotativo e denotativo das palavras. É importante que a crian-ça entenda que o denotativo das palavras é aquele encontrado nos dicionários, o chamado sentido literal. Já o uso conotativo das palavras é a atribuição de um sentido figurado, portanto, a sua apreensão depende do contexto, da associação com ideias, com fatos, com pessoas etc.

Exemplo disso são as charges, que se baseiam na ambiguidade que pode ser gerada entre os sentidos conotativos e os denotativos da linguagem para a elaboração de uma refinada, e bem-humorada, crítica social e política. As charges abaixo foram vencedoras, em anos diferentes, do Salão de Humor de Piracicaba:

Acer

vo S

alão

Inte

rnac

iona

l de

Pira

cica

ba.

Acer

vo S

alão

Inte

rnac

iona

l de

Pira

cica

ba.

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Acer

vo S

alão

Inte

rnac

iona

l de

Pira

cica

ba.

Acer

vo S

alão

Inte

rnac

iona

l de

Pira

cica

ba.

Essas charges exploram de diferentes maneiras a ambiguidade que pode ser gerada entre os sentidos conotativos e denotativos. Na primeira delas, vemos a “corrida” de um personagem em direção à universidade e, ao final dessa “corrida”, aonde ela o conduziu: ao ponto de partida. Mas há uma diferença, agora ele é um “catedrático”. Essa cátedra, no entanto, não representou mudança alguma em sua vida, salvo o fato de que, agora, ele pode se orgulhar: é um “catedrático”.

Na segunda, há duas ambiguidades sendo exploradas. Na primeira delas a classe média “chega” às posições mais baixas da sociedade. Na segunda observa-se o sarcasmo na ideia de que só “agora” os demais personagens, moradores de rua, que ocupam as posições mais baixas da sociedade, experimentarão a “ruína”. Ou seja: a ideia de que a posição deles expressa uma “ruína” não tinha a menor relevância antes. Eram, com isso, personagens “esquecidos”, à margem de qual-quer lembrança. A “ruína” só ganha destaque porque a classe média, essa, sim, objeto de preocupação das políticas sociais, chegou. A frase expressa, com isso, que, a partir desse momento, eles serão duplamente esquecidos: por serem, já marginalizados e, agora, porque a preocupação central, e principal personagem, das preocupações sociais e políticas, chegou. Obviamente, o destaque passa a ser dada a ela.

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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão

Na terceira charge, a ideia de que a “mulher brasileira”, a mulher levada em conta pelas estatísticas e pelos meios de comunicação, é a “madame” da classe média e média-alta, provavelmente branca. Todas as demais são desconsidera-das. A piada só “funciona” porque é uma outra mulher, a empregada doméstica, que fala, para a “madame”, que o programa voltado “para ela”, e não para a pró-pria empregada, irá começar.

Na quarta não há uma única palavra escrita. Nem por isso os sentidos cono-tativos e denotativos deixam de ser explorados. No caso, o de que não são os bandidos que estão “presos”, e sim as famílias comuns. Essa, no entanto, é uma prisão “voluntária”: são as próprias famílias que levantam grades em torno de si. Quanto mais presas elas estão, mais livremente podem se sentir os bandidos. A charge questiona, com isso, a ideia de “liberdade vigiada”. Esta, no entanto, embora, em termos legais, diga respeito àqueles que cumprem pena, passa a ser mais expressiva da condição em que passaram a viver essas famílias: são os ban-didos que “vigiam” a liberdade dessas famílias no interior da prisão que armaram para si mesmas, mas que, no entanto, acreditam ser a sua “liberdade”.

Outro fator relevante a ser considerado é que não há apenas uma leitura possível, pois cada sujeito impõe o seu conhecimento, os seus valores, a sua experiência à leitura, seja de uma charge, seja de um texto. A partir desse pres-suposto, é importante considerar que a pouca familiaridade com o assunto pode causar dificuldades na sua leitura. O conhecimento prévio sobre o as-sunto tratado num texto, embora não esteja nele explícito, interfere no seu entendimento. Dessa maneira, há que se considerar os tipos de textos traba-lhados com as crianças. É fundamental que o adulto crie situações de leitura de textos de interesse e que tratem de questões que façam parte do universo das crianças.

Feitas essas distinções, é fundamental atuar no sentido de que a criança com-preenda que, embora os textos comportem construções de base denotativa e conotativa, visam sempre a provocar efeitos e reações no leitor. Assim, a criança terá recursos para, primeiro, compreender que ler é apreender as intenções de quem escreve e, segundo, poder agir ativamente sobre elas.

Enfatizamos que desenvolver a percepção da criança de que o sentido do texto não é formulado só por quem escreve, mas depende da sua leitura, é im-prescindível para que ela se coloque como sujeito ativo do processo de aquisição da linguagem escrita. Lembramos que essa é, com certeza, uma das condições para que tal processo se efetive.

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Problemas relativos à aquisição da linguagem escrita: aspectos semânticos e estruturais

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Como são constituídos os problemas de escrita relativos aos aspectos semânticos e estruturais?

Conforme Cagliari (1990, p. 122), consideramos que a produção de um texto escrito envolve os aspectos “específicos de estruturação do discurso, de coesão, de argumentação, de organização das ideias e escolha das palavras, do objetivo e do destinatário do texto [...]. Cada texto tem sua função, e todas essas formas precisam ser trabalhadas”.

De acordo com essa posição, entendemos que as dificuldades referentes a esses aspectos configuram-se como os principais problemas de estruturação de um texto apresentados por crianças, adolescentes e adultos.

Fazendo parte desse grupo, consideramos crianças que não conseguem atuar de forma ativa sobre a estrutura linguístico-discursiva, ou seja, que não se constituem como autoras de seus textos.

A falta de tais elementos que garantam a coesão e a coerência textual, ma-nifestada pela inexistência ou insuficiência de marcas formais na estrutura lin-guística, compromete a organização sequencial do texto, criando problemas re-lativos aos aspectos lexicais, semânticos e sintáticos. Problemas na estruturação textual revelam a dificuldade de crianças em desenvolver mecanismos de ante-cipação que denotem as formulações imaginárias sobre as necessidades do(s) seu(s) interlocutor(es).

Para retratar tais dificuldades, podemos recorrer a uma situação, provavel-mente presenciada por grande parte dos educadores: crianças que, quando confrontadas com suas produções, que não permitem ao leitor apreender os seus sentidos, mesmo após algumas leituras, tendem a não perceber seus problemas.

Por que as crianças apresentam dificuldades para elaborar textos?

Notamos que, entre os fatores relacionados às dificuldades de elaboração de um texto escrito com um conteúdo organizado, que produz um efeito de co-erência sobre o outro a quem se destina a produção, destacamos o fato de as crianças:

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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão

não conseguirem compreender as distinções existentes entre os textos �orais e escritos, realizando, em muitos casos, uma transposição da organi-zação do discurso oral para a produção escrita;

não conseguirem se colocar no lugar de leitor de seus textos e, portanto, �não preverem a necessidade de reestruturações que garantam a sua coe-rência e coesão.

Tais dificuldades ocorrem por causa da experiência restrita que grande parte das crianças possui de elaboração de textos, uma vez que os métodos tradicio-nais de ensino privilegiam, nos primeiros anos de escolaridade, atividades de codificação e de decodifição da escrita, passando a solicitar produções textuais apenas em séries mais avançadas. A recorrência dos problemas de produção tex-tual evidencia que as crianças, em geral, não conseguem estabelecer esse salto esperado pela escola, ou seja, atender à expectativa de que, uma vez dominada a técnica da escrita e da leitura, passem a elaborar textos significativos.

Como lidar com as dificuldades de elaboração textual apresentadas pelas crianças?

Recorrendo às colocações de Geraldi (1995), consideramos que as propostas e as formas de intervenção direcionadas à superação das dificuldades de produ-ção textual, pelas crianças, devem garantir:

que se tenha o que dizer;a.

que se tenha uma razão para dizer o que se tem para dizer;b.

que se tenha para quem dizer o que se tem para dizer;c.

que o locutor se constitua como tal, enquanto sujeito que diz o que diz d. para quem diz;

que se escolham as estratégias para realizar (a),(b),(c) e (d).e.

Em relação à atitude que deve orientar tais propostas e formas de interven-ção, é fundamental que o educador não tenha nenhum preconceito em relação aos tipos de textos e trabalhe trechos escritos de vários tipos: uma bula de re-médio, um salmo da Bíblia, um folheto de propaganda, uma anedota, um jornal, uma revista. As possibilidades são imensas, as opções são variadíssimas. Afinal, vivemos num mundo cercado de escrita. Por que eleger só algumas?

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Problemas relativos à aquisição da linguagem escrita: aspectos semânticos e estruturais

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Ressaltamos a necessidade de que sejam explicitadas e trabalhadas com crianças com tais dificuldades as distinções entre o texto oral e o texto escri-to. Tais distinções ocorrem, fundamentalmente, porque as condições de produ-ção dessas modalidades de linguagem são diferentes. Na oralidade, o sentido do texto constitui-se a partir de elementos que não estão presentes no texto escrito.

O fato de que a fala se realiza, em geral, na presença do(s) interlocutor(es), faz com que seus sentidos sejam constituídos, para além do que é dito, a partir de expressões faciais e corporais, de gestos, da entonação de nossa voz, do ritmo etc. Também aspectos como o local, os objetos e as circunstâncias que circuns-crevem o contexto no qual as falas se realizam podem participar da construção dos seus sentidos.

Nessa medida, é fundamental que seja dada a oportunidade para que o aprendiz de escrita perceba que não é possível, simplesmente, transpor a fala para a escrita, pois isso incorrerá numa série de problemas de organização tex-tual. Para a superação de suas dificuldades e a efetivação de seu processo de aquisição, o aprendiz deverá incorporar recursos que lhe permitam lidar com a especificidade da escrita.

Enfatizamos ainda que a construção do texto depende de um movimento que articula produção, leitura e retorno à produção. Assim, o trabalho com a ela-boração textual deve ter por objetivo explicitar e levar a criança a compreender que esse movimento, denominado de reescrita ou de refacção, faz parte do ato de escrever. Uma nova perspectiva deve ser atribuída à necessidade e a prática de retornar ao texto e de elaborar mudanças: de uma atividade justificada em razão de erros e de inadequações que tornam o texto avaliado como deficitário para uma atividade construtiva, inerente à elaboração textual; de um castigo, de uma tarefa repetitiva, para uma possibilidade que a escrita (diferentemente da fala) oferece ao sujeito de poder ser cuidada, revista, reformulada, alterada, aperfeiçoada, até que seja compartilhada com seu(s) leitor(es).

A adoção dessa segunda perspectiva implica a consciência, por parte de edu-cadores e de crianças, de que a primeira produção não é a produção final de um texto, é apenas a primeira versão de um texto que, para ser considerado concluído, deverá passar por uma ou por várias reformulações. É nessa prática de ler e reler o texto e de realizar mudanças que a criança passa a desenvolver a possibilidade de atuar com autonomia sobre a sua estrutura e a se colocar no lugar de quem lê o seu texto.

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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão

Considerações finais(MASSI, 2007, p. 233-239)

Ao constatarmos, em função de nossa prática em fonoaudiologia, uma procura constante por atendimentos voltados a crianças que, durante o pro-cesso de apropriação da escrita, vêm sendo indicadas pela escola como “pro-blemáticas” e diagnosticadas, por profissionais – médicos, fonoaudiólogos, psicólogos –, como disléxicas ou portadoras de distúrbios de aprendizagem da linguagem escrita, buscamos, neste livro, evidenciar que tais indicações ou diagnósticos mostram-se inconsistentes e equivocados.

Inicialmente, procuramos denunciar que, apesar de bastante difundida em diversos países e do significativo número de pessoas frequentemente apontado como portador de dislexia, a definição dessa suposta patologia

É importante frisar que esse movimento e essa predisposição à reescrita não nascem com a criança nem se desenvolvem apenas a partir de solicitações ver-bais feitas pelos adultos que participam de sua formação. O movimento de reto-mada do texto e de reformulações deve ocorrer a partir das posições, propostas e sugestões indicadas entre a criança e o adulto. Em outras palavras, da partilha e dos conhecimentos entre tais interlocutores.

Fica evidente que os adultos assumem um papel preponderante nas possibi-lidades ou nas dificuldades que as crianças terão para

incorporar a concepção de que a reescrita faz parte do ato de escrever; �

deslocar-se do lugar de quem escreve para colocar-se no lugar de quem �lê o texto;

compreender as distinções entre o texto oral e escrito; �

operar sobre os aspectos formais e semânticos de seu texto. �

A partir das colocações acima, podemos verificar que a forma como os adul-tos participam do processo de elaboração textual realizado pela criança é decisi-va para a constituição desta como autora de textos.

Texto complementar

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Problemas relativos à aquisição da linguagem escrita: aspectos semânticos e estruturais

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apresenta-se imprecisa e obscura. Pois, na tentativa de explicar questões re-lacionadas a atividades humanas, tal definição, pautando-se em um modelo biológico das ciências naturais, afasta-se completamente da compreensão do trajeto percorrido pela criança durante a apropriação da escrita, bem como dos efeitos das práticas discursivas que acompanham esse trajeto.

[...] ressaltamos que a ampla bibliografia sobre essa temática revela um conceito equivocado que, ao divorciar o homem – a criança, o jovem, o aluno – das relações que estabelece com a sociedade, tenta explicitar fatos relacionados à apropriação da escrita apoiado em posicionamentos restriti-vamente organicistas e contraditórios entre si.

Prosseguindo em nosso trabalho, [...] tomamos a linguagem sob uma perspectiva que a concebe como atividade dialógica, constitutiva, resul-tante de um trabalho histórico, coletivo, permanente e inconcluso que se realiza por indivíduos socialmente organizados em diferentes situações de interação.

Compreendendo que tal atividade se dá na prática intersubjetiva, a qual envolve a construção conjunta da significação em um processo de troca es-tabelecida entre um eu e um outro, enfocamos o texto como unidade de produção da linguagem, na qual convergem ações linguísticas, cognitivas e sociais. Desse modo, buscamos denunciar a inconsistência de procedimentos descritivos e avaliativos que, pautados em uma noção que percebe a língua como um sistema fechado de signos, enquadram fatos próprios da escrita que está sendo constituída em supostos quadros patológicos, em função de tarefas embasadas na percepção e discriminação de letras, sílabas e frases independentes de qualquer intenção interativa.

Com relação ao posicionamento descritivo do que tem sido considerado dislexia, denunciamos que os ditos sintomas disléxicos – os “erros”, as “inade-quações”, as refacções – não se justificam como manifestações patológicas, mas revelam atitudes que acompanham o processo de apropriação e uso da escrita. [...]

Tendo em vista que o vínculo entre o sujeito e a linguagem está em per-manente constituição, e entendendo que a apropriação da escrita implica um trabalho, isto é, um processo contínuo de análises, reflexões e tentativas, enfatizamos a necessidade de compreendermos que cada sujeito se relacio-na com a escrita e com o outro participante desse processo de forma única e

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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão

singular. Por meio dessa relação singular, cada um pode percorrer diferentes caminhos até a apropriação do objeto escrito, manifestando maneiras diver-sas de manipular a linguagem. [...]

Investigadas as tarefas avaliativas propostas em manuais, concluímos que elas se revelam inconsistentes por desconsiderarem tanto o processo de construção e utilização do objeto escrito, quanto o próprio sujeito e suas ações linguísticas. Essas tarefas, pelo propósito classificatório que as inspi-ra, pela forma descontextualizada como se organizam, pela falta de critérios linguísticos capazes de elucidá-las, de fato, não avaliam a linguagem escrita. Por isso, elas não podem servir de base para a elaboração de um diagnóstico relacionado a uma suposta patologia refletida na apropriação da linguagem, pois ora se afastam da própria linguagem – que, embasada em uma noção de “prontidão para a alfabetização”, fica reduzida a um conjunto de habilida-des perceptivas e motoras –, ora buscam fundamento em uma abordagem restritiva que torna o sujeito como passivo e a língua como um conjunto imóvel de sinais inertes.

Com a intenção de suplantar procedimentos avaliativos que ignoram a interação socioverbal e descrevem formas linguísticas fragmentadas e dis-tanciadas de um contexto significativo, analisamos casos de sujeitos rotula-dos e diagnosticados como disléxicos ou portadores de dificuldades com a linguagem escrita, sem perder de vista a construção conjunta de atividades dialógicas, o conhecimento partilhado, a constituição dos interlocutores e suas imagens, a situação imediata de manifestação da linguagem e o seu caráter social mais amplo. [...]

No decorrer dessa análise particularizada, pudemos perceber que, ao con-trário dos rótulos ou diagnósticos que carregam, essas crianças não demons-tram “desvios” linguísticos. Antes disso, elas apresentam diferenças individu-ais previstas no processo de apropriação da linguagem, em que prevalecem ritmos e maneiras de atuar sobre a escrita próprios de cada uma, nos valores que atribuem a essa realidade linguística, no modo com que deparam e se relacionam com ela no contexto familiar e escolar, refletindo o encontro com a palavra do outro.

Ao considerarmos características singulares e particulares – dependen-tes da relação estabelecida com a palavra do outro como constitutivas do processo de apropriação da escrita, pudemos perceber que as quatro crian-ças construíram unidades textuais, de acordo com diferentes propósitos e

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Problemas relativos à aquisição da linguagem escrita: aspectos semânticos e estruturais

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situações. Assumiram-se como locutores, ou seja, como sujeitos que tinham algo a escrever para outros, seus interlocutores/leitores. Levando em conta as situações de interlocução das quais participavam, essas crianças produziram textos diversos: escreveram cartas, organizaram convites, criaram histórias de ficção, relataram experiências pessoais, participaram de diálogos comparti-lhados, registraram regras de jogos, lançando mão de diferentes estratégias.

Essas estratégias apontam para o fato de as nossas crianças mobilizarem um conjunto de conhecimentos acerca da linguagem, tanto de aspectos tex-tuais como de questões gráficas e convencionais da escrita. [...]

Além da progressão referencial, verificamos que, ao escreverem seus textos, todas as crianças em questão lançaram mão de vários operadores dis-cursivos, assegurando sequenciação às suas produções, que, dependendo da própria situação interativa, foram encadeadas por meio de marcadores de relações temporais, de articuladores discursivo-argumentativos, de organiza-dores enunciativos. Nesse sentido, entendendo a continuidade tópica como um princípio organizador do discurso, reafirmamos o fato de essas crianças, pautadas em assuntos tratados na própria situação discursiva, introduzirem segmentos tópicos nas suas produções, dando-lhes continuidade e progres-são mediante um constante movimento de “ir-e-vir” que entrelaça as partes do texto. Todos esses aspectos evidenciam ações com, sobre e da linguagem dependentes da escolha de uma configuração textual e de um processo de decisão por parte de cada um dos locutores/escritores, que, engajados no trabalho linguístico, procuraram dar sentido às suas produções.

[...] Nas diferentes produções textuais, pudemos perceber, de acordo com cada caso, diversas reflexões vinculadas à grafia e à convenção da escrita: marcas de sinais de pontuação, o uso de maiúsculas e minúsculas, a regula-mentação ortográfica, a segmentação da escrita.

Verificamos caso a caso que as crianças manuseiam o objeto escrito por meio de estratégias diversas: apoio na oralidade, uso “indevido” de letras em função do próprio sistema ortográfico, hipercorreção, transcrição fonética, gestos de refacção, segmentação por influência da oralidade, ou pelo conhe-cimento já interiorizado acerca da própria escrita. Essas estratégias, próprias do processo de apropriação da linguagem, cooperam para a compreensão da relação que se instaura entre as características gerais dos sujeitos e as diferentes manifestações de sua singularidade e, portanto, não podem ser tomadas como sinais de dislexia. [...]

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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão

Dica de estudoFilme � Sociedade dos Poetas Mortos, de Peter Wier.

Recém-chegado e carismático, professor de literatura revoluciona os mé-todos de ensino de um colégio conservador americano. O professor Kea-tings tem como filosofia ensinar seus alunos a pensarem por si mesmos, sem manuais ou lições de moral. Tal posição evidencia como, a partir do reconhecimento das particularidades dos alunos, as relações estabele-cidas entre o professor e alunos favorecem que esses ocupem lugar de autoria de seus discursos, condição fundamental para a apropriação dos conhecimentos e, portanto, para a constituição de leitores e escritores competentes.

Atividades1. Descreva os sintomas mais frequentes e de maior gravidade que afetam

crianças consideradas portadoras de dificuldades de leitura e escrita.

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Problemas relativos à aquisição da linguagem escrita: aspectos semânticos e estruturais

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2. Quais são as principais razões que levam as crianças a apresentarem dificul-dades na elaboração de textos?

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Como definir o que é normal e o que é patológico quando tratamos de linguagem oral e escrita?

Ao definirmos formas de falar e/ou de ler e escrever como desviantes, erradas ou patológicas, estamos fazendo uso de critérios e de parâmetros de normalidade que, embora sejam adotados como inquestionáveis, foram instituídos por grupos de pessoas com base em posições e visões “arbitrá-rias”. Por “arbitrário” entende-se, em termos sociológicos, duas coisas. Pri-meiro, é “arbitrário” tudo aquilo que é social e culturalmente construído e que, portanto, não tem valor universal. A impossibilidade de atribuição de universalidade aos valores humanos permite concluir que esses mesmos valores são “construções sociais”. A essas “construções” dá-se o nome de “arbitrários sociais”. Segundo, são “arbitrários” porque implicam, na práti-ca, a cobrança de correspondência a eles, ou seja, impõem-se formas de pensar e de agir que estejam de acordo com esses “arbitrários sociais”.

Contudo, percebemos o caráter “arbitrário” desses valores quando po-demos compará-los com os de outros povos, de outras sociedades e de outros contextos históricos. Sem essa visão mais ampla, é impossível uma visão crítica sobre os valores que orientam nossas ações diariamente, o que implica o predomínio de uma posição acrítica das pessoas, em geral, e dos profissionais envolvidos com o processo de ensino e aprendizagem, em particular, frente aos parâmetros de normalidade e de anormalidade, ou seja, frente ao “arbitrário social” que consiste na separação das pessoas e de seus comportamentos com base numa oposição entre normalida-de e anormalidade. Além do aspecto cultural que envolve a construção desses “arbitrários sociais”, acreditamos que um dos principais motivos para a adoção de tal posição – acrítica – decorre do fato de os educadores atribuírem exclusivamente aos profissionais inseridos no campo da saúde a possibilidade de definição de critérios de normalidade e patologia, em linguagem oral e escrita.

O normal e o patológico na linguagem

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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão

Em relação a isso, ressaltamos que a formação dos educadores prevê conhe-cimentos relativos aos mecanismos e processos envolvidos com a aquisição das linguagens oral e escrita, o que lhes confere a possibilidade não só de formular procedimentos que lhes permitam avaliar o desenvolvimento das crianças nesse processo mas, sobretudo, de analisar criticamente critérios adotados para a clas-sificação da normalidade e patologia e, portanto, diagnósticos proferidos com base em tais critérios.

Chamamos atenção para a necessidade de reverter a atitude passiva e acrítica que tem resultado numa conivência de educadores com classificações de qua-dros patológicos, realizadas, muitas vezes, de forma simplista e equivocada. Ou, para sermos mais precisos, de forma “arbitrária”. Não existem respostas fáceis, tampouco receitas, para a definição do normal e do patológico em linguagem. Contudo, esse fato não deve afastar os educadores da discussão dessa questão. Ao contrário, o fato de definições em torno do estado normal e patológico serem complicadas e polêmicas revela a necessidade do educador se comprometer com tal problemática e não se abster diante de posições formuladas por outros profissionais. Não podemos fechar os olhos para o fato de que, apesar das polê-micas em torno de tais definições estarem longe de serem resolvidas, crianças são diariamente diagnosticadas como portadoras das chamadas dislexias, de-ficiência mental leve, dislalias, hiperatividade, retardo de linguagem etc., e que esses diagnósticos implicam rejeição, exclusão e marginalização social dos que são assim diagnosticados.

No caso da linguagem, essa problemática deve se enfrentada, pois, conforme Perroni (1992, p. 21), também permanece indefinida e, portanto, deve ser trata-da como um dos aspectos centrais de nossas reflexões:

A questão de definição de “normalidade” coloca-se com urgência nos dias atuais, em que se assiste a um crescente interesse pelos chamados distúrbios da comunicação por parte de profissionais que trabalham com crianças, em especial fonoaudiólogos, psicólogos e pedagogos. A identificação de anomalias, como seria de se esperar, deve ser feita com base em um parâmetro de normalidade. Entretanto, no caso da linguagem, pergunto, qual é ele? O que é anormal afinal?

Inicialmente, há de se reconhecer que diagnosticar significa tomar uma deci-são sobre normalidade e patologia, uma tomada de posição que envolve valores, hábitos, costumes, ou seja, aspectos culturais e sociais. Convém, portanto, desna-turalizar essa oposição: não existe o que é “naturalmente” normal e anormal. Não há normalidade nem anormalidade em estado puro, fora de um contexto social.

No entanto, pode-se dizer que a complexidade envolvida na delimitação entre o normal e o patológico não tem ocupado lugar de destaque na atenção

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O normal e o patológico na linguagem

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de médicos, professores, fonoaudiólogos, psicopedagogos, psicólogos, enfim, de profissionais que estão diretamente envolvidos com tal delimitação.

Entre os raros trabalhos de reflexão sobre o tema, destaca-se o de Cangui-lhem (1990), filósofo e médico, que desenvolveu uma discussão crítica sobre essa problemática. Canguilhem mostra como, desde o século XIX, coexistem di-ferentes formas de se conceber essa díade, normalidade e patologia, com base na definição em torno dos conceitos de saúde e doença. Tal autor oferece ele-mentos para analisar uma forma de se conceber tais estados, ainda presentes tanto no contexto clínico quanto no educacional, que está assentada na ideia de que os fenômenos da doença diferem da normalidade apenas pela intensidade e, portanto, não se constituem como opostos qualitativos. Nessa perspectiva, toda doença seria apenas uma expressão alterada, perturbada da normalidade. A diferença entre normalidade e anormalidade, nesse caso, é apenas de grau, de distância em relação àquilo que é considerado normal. Canguilhem chama a atenção para o fato de que tal perspectiva, denominada como a “lógica da conti-nuidade”, constitui-se com base na crença na possibilidade de reabilitar, superar a doença, o que acaba por anular a possibilidade de se compreender as especifi-cidades do patológico, as especificidades da sua distância em relação ao normal. Em função dessa concepção, a noção de patológico deriva do “conhecimento” que se tem sobre o estado normal, ou seja, de um estado que sirva como padrão, para então definir o que é patológico.

Contrariando a hipótese de quantidades, Canguilhem considera que o estado patológico não é uma variação para mais ou para menos, que o patológico não se define como desvio do normal. Da mesma forma, ele vê com olhos críticos o conceito de média, a partir do qual a normalidade é entendida como correspon-dente ao que mais se aproxima de um dado estatístico. Nesse caso, a média passa a ser um recurso para a definição da norma, de modo que um estado normal, embora não dedutível da média, é fixado por ela. Chamamos atenção para o fato de que a fixação de tal média parte do pressuposto da existência incontestável de uma regularidade. O autor critica tal lógica, afirmando que algo não é normal por ser frequente, mas ao contrário, é frequente porque é normal.

Um aspecto importante disso, e que escapou a Canguilhem, mas foi aponta-do pelas gerações posteriores de pesquisadores, é que a ideia de “conhecimen-to” foi sendo definida, cada vez mais, em termos numéricos, mensuráveis. Ou seja: muitas vezes aquilo que as pessoas chamam de “conhecimento sobre a nor-malidade” nada mais é que a “informação estatística sobre um número maior de ocorrências”. Obviamente, a informação estatística por si só não estabelece esse

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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão

“valor de normalidade”. Se assim fosse, quanto maior o número de homicídios, mais próximos estaríamos de dizer que a execução de pessoas é “normal”. Não é assim que funciona. Esse “valor estatístico” depende de um “valor social” que lhe é atribuído. Trata-se, portanto, de uma construção social, ou seja, de um “arbitrá-rio social”. Ao definir o patológico ou o anormal pelo viés do excesso ou da falta, admite-se que o estado dito normal é “normativo”, ou seja, é atribuído a ele um valor e é esperado das pessoas que elas correspondam a ele.

Tomar o estado normal como medida do patológico implica anular as possi-bilidades de existência de tudo aquilo que se afasta da suposta “normalidade” e a cobrança constante de sua aproximação dela. Como podemos notar, a partir dessa lógica, afasta-se a possibilidade de compreender aquilo que é peculiar, próprio a um estado que apresenta – ou representa – uma variação em relação ao considerado normal. Afasta-se a possibilidade de compreender as particula-ridades dos sujeitos que se diferenciam do grupo dos normais, o que resulta na impossibilidade de reconhecimento não só de suas dificuldades, mas, especial-mente, de suas potencialidades.

Isso chama a atenção para um outro aspecto que escapou a Canguilhem, mas sobre o qual chamou a atenção um de seus mais importantes alunos, Michel Foucault. A divisão de pessoas entre, de um lado, normais e, de outro, patoló-gicos só foi possível graças a uma outra mudança, esta hierárquica e política: o médico, antes um profissional liberal como qualquer outro, passou a ocupar a posição de “autoridade social e política”. Seu ofício passou a ter um caráter, cada vez mais, político, ou seja, cada vez mais “normativo”. Se hoje se aceita a definição de normal e de patológico da medicina é porque, antes disso, passou-se a aceitar a autoridade política e normativa do médico. Antes dessa mudança “política” do ofício médico, as diferenças linguísticas eram consideradas sinal de mau gosto ou de deselegância, muitas vezes. Só depois da instituição da autoridade médica como uma autoridade “social” é que a “deselegância” e o “mau gosto” foram trans-formados em “incapacidade” e “doença”.

É importante ressaltar que nos campos da educação, da psicologia e da fono-audiologia, ou seja, nas áreas que atuam com a aquisição da linguagem e com a definição de normalidade e patologia em torno desse processo, prevalece o cri-tério de “quantidade” na determinação de quadros considerados patológicos ou que “fogem da normalidade”. Essa é uma “fuga” que, evidentemente, só existe em termos estatísticos. Tal fato pode ser observado na medida em que a aplicação de testes é usual em procedimentos de avaliação clínica e escolar. Contudo, os critérios de média e de normalidade não são colocados em questão. A avaliação

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ou identificação de crianças consideradas anormais ou portadoras de distúrbios ocorre a partir da aplicação de baterias de testes que, tendo sido aplicados em grupos de pessoas consideradas “normais”, oferecem parâmetros de normalida-de para a classificação dos ditos desviantes e, portanto, patológicos.

Cumpre aqui chamar a atenção para um aspecto extremamente relevante no que diz respeito à aplicação desses testes. Eles estão, cada vez mais, restritos aos profissionais da área de saúde. Os profissionais da área de educação têm deixado de usar esses testes. O motivo é que as pesquisas na área de educação e, em particular, na área de sociologia da educação, têm mostrado o quanto esse é um instrumento de avaliação impreciso, pois pouco revela a respeito tanto dos alunos e de suas potencialidades quanto de seus contextos sociais e de suas pos-sibilidades de inserção no mercado de trabalho e na vida cultural. Isso tem pro-movido uma substituição desses instrumentos de avaliação por outros, muito mais refinados, que se preocupam em levar em conta a complexidade da vida das pessoas e dos contextos sociais dos quais fazem parte. Essa “revisão” dos ins-trumentos de avaliação ainda não ocorreu entre os profissionais da área de saúde, pelo menos não de forma tão aprofundada. O uso desses instrumentos ainda se baseia, com isso, muito mais na “crença na autoridade médica” do que num “conhe-cimento aprofundado” a respeito dos próprios métodos de sondagem utilizados.

Já em Canguilhem podia se observar a recusa à ideia de que uma diferença quantitativa pudesse dar conta da distinção entre o normal e o patológico. Ele sustentava a ideia de que o normal não é “fato objetivo”, muito menos “mensu-rável”. Para ele, o termo normal é inadequado, pois indica, ao mesmo tempo, um fato e um valor atribuído a esse fato: define um estado considerado normal em razão da sua frequência e de uma predominância estatística, e define um estado ideal a ser atingido, como superior. Hoje os pesquisadores da área de educação sabem que o “normal” não pode ser aplicado a todos os indivíduos. A “norma” é determinada pelas condições de vida dos sujeitos. Assim, os limites entre o normal e o patológico tornam-se imprecisos quando se consideram vários indi-víduos simultaneamente, principalmente indivíduos de origens sociais e cultu-rais diferentes. Uma imprecisão, contudo, que se mantém em função do uso de tais instrumentos de avaliação por certos profissionais da área de saúde. Cangui-lhem afastava o conceito de normal enquanto realidade estatística, pois, para ele, o levantamento de frequências de comportamento só revela as possibilida-des do humano, desde as mais usuais até as mais raras. Tais possibilidades, além do mais, poderão ser válidas somente em determinados contextos. Mudando o contexto, podem mudar as frequências de comportamento. Em suma: o normal é um valor relativo, mutável e histórico e socialmente constituído.

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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão

Não só a definição de normal muda em função do “momento” histórico em que se vive, como muda também em função do contexto social que a origina. A variabilidade e a flexibilidade que devemos atribuir aos padrões sociais é tão evidente que não representa mistério para ninguém, ou seja, não é necessário ser um grande pesquisador da área para saber que “o que vale para um, nem sempre vale para outro”. Esse é um saber de senso comum. Não significa, no en-tanto que ele esteja nem totalmente certo, nem totalmente errado. É certo que há uma variabilidade de padrões sociais, assim como é errado supor que “tudo vale”. Se assim fosse, a vida em sociedade seria impossível. Em função disso, a de-finição do que é certo e errado, ou do que é normal e patológico, está sujeita não apenas aos valores e padrões de certos grupos e classes sociais, mas também a uma competição entre esses mesmos grupos e classes sociais pela definição do que é correto ou não, do que é normal ou não. Quando Foucault chamou a aten-ção para o fato de que havia se instituído uma nova “hierarquia” para a definição do normal e do patológico, era esse o aspecto a que ele estava tentando chamar a atenção: a autoridade médica estava cada vez mais sendo confundida com uma autoridade social.

Isso nos remete, mais uma vez, à questão da linguagem. A classificação de quadros patológicos, de acordo com o modelo médico, segue uma descrição de causas e sintomas. Com isso, a definição de um determinado problema se dá a partir da seguinte equação: em razão de uma determinada causa, decorrem determinados sintomas que definem um determinado distúrbio e/ou quadro patológico.

O problema de tal equação manifesta-se na medida em que:

nem sempre as causas dos problemas podem ser conhecidas ou isoladas �num único aspecto;

nem sempre essas causas poderão ser associadas a sintomas que estabe- �lecem regularidades;

nem sempre a definição de um quadro patológico, com base em causas e �sintomas instáveis, diferencia-se objetivamente de outros quadros.

A impossibilidade de tal classificação pode ser verificada em estudos que, ao insistirem numa lógica estável entre causas e sintomas, reproduzem inconsistên-cias e equívocos conceituais:

Infelizmente, podemos assistir como aparecem, de uma forma preconceituosa e discrimina-tória, diferentes tipos de distúrbios de escrita, descritos na literatura, oferecendo elementos para que as crianças, adolescentes e adultos possam ser diagnosticados como portadores de

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distúrbios de leitura e escrita. Classificações como dislexias, disgrafias e disortografias estão de forma recorrente nessa literatura, definidas a partir de causas e sintomas que, surpreendente-mente, se alternam, quando não em obras de autorias diferentes, no mesmo texto. É comum a dislexia, a disfunção cerebral mínima, a hiperatividade e os problemas de coordenação motora aparecerem ora como classificação, ora como sintoma, ora como causa de distúrbios da leitura e escrita. Da mesma forma, problemas de discriminação auditiva: trocas, omissões, inversões de letras; problemas de sintaxe, entre outras manifestações, são identificados, simultaneamen-te, como sinais característicos, pelo menos, das classificações acima descritas. (BERBERIAN, 2003a, p. 7-8)

Ou seja, a linguagem não responde a um determinismo da mesma natureza que o organismo, o que inviabiliza a utilização do raciocínio de causa e efeito. Podemos afirmar que, no caso dos problemas de linguagem, não encontra-mos qualquer relação estável entre a natureza das causas e a qualidade dos sintomas.

Texto complementar

Violência simbólica nas práticas de letramento(BERBERIAN; MASSI, 2006, p. 15-19)

Introdução[...] este texto, de caráter introdutório e denunciativo, marca a posição

política e ética que pretendemos construir em torno de abordagens que ob-jetivam modos de participação e usos significativos da linguagem escrita. Tal posição está assentada no entendimento de que as precárias condições de leitura e de escrita, apresentadas por parcela significativa da população brasileira, retratam uma história de injustiças e desigualdades sociais. Cha-mamos atenção para o fato de que essa história não pode ser reduzida a um cenário ou a pano de fundo de nossas reflexões, da qual, uma vez admitida, estamos autorizados a descolar as experiências singulares de leitura e escrita vividas pelos sujeitos. Para além das considerações preliminares de estudos que tratam dos chamados distúrbios de leitura e escrita, há de persistir e de fazer ecoar a consciência de que tais distúrbios referem-se a uma problemá-tica de dimensões sociais, com base nas quais são constituídas as condições materiais e subjetivas que têm historicamente limitado as possibilidades de sujeitos de diferentes idades, sexos, níveis de escolaridade e regiões fazerem uso efetivo da linguagem escrita.

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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão

Ressaltamos ainda que a compilação dos textos presentes neste livro de-ve-se ao fato de seus autores estarem sintonizados com uma dimensão social e crítica na forma de analisarem eventos de letramento e, portanto, de en-caminharem atividades de leitura e de escrita, quer vinculadas ao contexto clínico, quer atreladas a outros contextos sociais, tais como escola e família.

Práticas de normatização da linguagem: uma história de exclusão Se procuramos extrair um significado comum e mais geral dos desencontros apontados, surpreenderemos a dialética de um complexo firmado de tempos sociais distintos, cuja simultaneidade é estrutural, pois estrutural é a sua contradição. O olho do colonizador não perdoou, ou mal tolerou, a constituição do diferente e a sua sobrevivência [...] Sempre uma cultura ou um culto vale-se de sua posição dominante para julgar a cultura ou o culto do outro. A colonização retarda, também no mundo dos símbolos, a democratização. (BOSI, 1998, p. 62)

Mediante evidências históricas que deflagram os mecanismos de exclusão, assimilação e aculturação, processados na e a partir da linguagem, dirigidos a diferentes grupos sociais que compunham e compõem a sociedade brasilei-ra, torna-se fundamental questionarmos abordagens educacionais e clínicas que desqualificam e avaliam como patológicas diferentes formas e processos de fala e de escrita apresentados por um número expressivo de brasileiros.

Estudos impulsionados pela preocupação com o caráter discriminatório (re)produzido por práticas de linguagem, desenvolvidas nas diferentes esfe-ras sociais, têm analisado de que modo medidas de normatização da lingua-gem vêm participando ativamente, desde as primeiras décadas do século XX, da imposição não só de uma norma linguística, como também de cren-ças, comportamentos, valores e tradições subjacentes à projeção de interes-ses de determinados grupos sociais (BAGNO, 1999; BERBERIAN, 1995 e 1999; ORLANDI & SOUZA, 1988; GNERRE, 1991; FARACO, 1991).

Berberian (1999) explicita como esse processo vem resultando numa violência simbólica sem precedentes na nossa história, processada na e pela linguagem oral e escrita. Tal estudo nos permite compreender como a imposição de uma variante linguística como a única correta e legítima, longe de contribuir para a sua expansão, tem implicações preconceituosas e excludentes.

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É preocupante notar como, historicamente, tem predominado a noção de que para abordar questões relativas à linguagem não é preciso analisar suas determinações culturais, sociais e ideológicas, bastando, por meio de instru-mentais e critérios objetivos e, portanto, pretensamente científicos, descre-vê-la, mensurá-la e normatizá-la. Influenciados por essa posição, grupos de fonoaudiólogos, de psicólogos, de psicopedagogos, de educadores, entre outros profissionais, optam por abordar a linguagem com base nas condi-ções psicofisiológicas de quem fala e de quem escreve, tendo como ponto de partida e de chegada a norma linguística.

Entendemos que a atuação de profissionais envolvidos com a linguagem escrita e com seus ditos distúrbios somente concorrerá para uma ação cons-ciente se for encaminhada para contrapor práticas linguísticas que partici-pam das formas de seletividade e exclusão sociais, ou seja, que desvelem as dimensões ideológicas e históricas aí relacionadas. Tal atuação deve estar comprometida com a explicitação de questões essenciais, dentre as quais destacamos: interesses e critérios com base nos quais são estabelecidas con-venções na fala e na escrita; determinantes culturais, históricos e econômi-cos envolvidos com as variedades linguísticas; motivos pelos quais, dentre as inúmeras variedades, apenas uma é considerada correta e assume prestígio social; desiguais práticas de letramento em que estão inscritos os diferentes grupos sociais.

Se essas questões parecem, ainda, sucumbir à lógica que pretende na-turalizar e associar a noção de incompetência linguística (entendida como uma realidade individual e inerente aos sujeitos e suas famílias) às precá-rias condições de vida de parte expressiva da população brasileira, podemos apreender que outras vozes insistam em confrontá-la.

Trata-se de superar as desigualdades de acesso à linguagem, de deflagrar os valores construídos em torno dos diferentes modos de fala e de escrita, de centrar nossas preocupações em torno das condições de domínio e uso da linguagem. Tais questões devem ser entendidas à luz dos conflitos socio-culturais sob os quais se constituem, e não pelos filtros da estereotipia e do preconceito.

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Dicas de estudoOs filmes sugeridos a seguir consistem de interpretações e críticas a dife-

rentes formas de “normatização” da vida. Essa normatização atravessa todas as dimensões de nosso cotidiano, seja a política, caso do primeiro filme, seja a fa-miliar, caso do segundo. Os dois filmes tratam, com isso, de diferentes formas de “imposição” do “normal”, o que evidencia seu caráter “normativo” e, portanto, “arbitrário” e “impositivo”.

Filme/documentário � Arquitetura da Destruição, de Peter Cohen.

O filme de Peter Cohen lembra que chamar a Hitler de artista medíocre não elimina os estragos provocados pela sua estratégia de conquista universal. O nazismo tinha como um dos seus princípios fundamentais a missão de embelezar o mundo. Nem que, para tanto, destruísse todo o mundo. Detalhe importantíssimo é aquele que diz respeito aos grandes dirigentes nazistas. A cúpula era formada, na sua maioria, por médicos. O projeto nazista, com isso, consistia também de uma “correção” da raça humana. Não havia diferença, portanto, entre a “erradicação de bactérias” e a “erradicação de seres humanos”. No caso, todos aqueles que não eram considerados “puros”.

Filme � Uma Lição de Amor.

Ao ter a guarda de sua filha retirada, um homem com deficiência mental recebe a ajuda de uma advogada para provar que pode ser responsável por sua criação. Essa situação coloca em cheque os padrões de normali-dade e patologia que de forma simplista discriminam pessoas com limita-ções específicas. Direção de Jessie Nelson; com os seguintes atores: Sean Penn, Michelle Pfeiffer, Dianne Wiest e Laura Dern.

Atividades1. Porque Canguilhem recusa a ideia de que uma diferença quantitativa seja

adequada para a distinção entre normal e patológico?

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2. Por que a classificação de quadros patológicos, a partir da descrição de cau-sas e sintomas é problemática no caso de problemas de linguagem?

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De que forma questões relativas ao domínio da linguagem interferem no fracasso escolar?

Inicialmente, é importante ressaltar que o processo de escolarização é determinante na formação e veiculação de hábitos, valores e costumes, exercendo papel de destaque na vida das pessoas. Além de tal reconheci-mento, é fundamental considerar que a escola representa uma das princi-pais instituições na definição do padrão, dos usos e valores da linguagem oral e escrita. Tal instituição exerce papel determinante na classificação e no encaminhamento dos chamados distúrbios de linguagem oral/escrita e de aprendizagem.

Referente às questões de nosso interesse, constatamos que, nas últi-mas décadas, as dificuldades e as alterações de linguagem têm sido iden-tificados como uma das principais justificativas para explicar o fracasso escolar, que atinge um número significativo de crianças e de jovens já nos primeiros anos de escola.

Apesar de parecer um avanço, a preocupação cada vez maior dos pro-fessores e especialistas em educação com a linguagem e suas dificulda-des, parece estar ocorrendo apenas uma substituição das justificativas para o fracasso escolar. Deslocado de outros fatores para os aspectos linguísti-cos, o insucesso escolar vem sendo explicado sem que se procure abordar a raiz do problema. Isso porque professores e especialistas da educação têm, em geral, relacionado as dificuldades de linguagem à criança, ou no máximo, ao ambiente social mais próximo, sem relacioná-lo ao processo escolar e à estrutura social.

Essa perspectiva de situar no sujeito ou em sua família a causa dos seus problemas e insucessos afeta, sobretudo, crianças provenientes de grupos populacionais menos favorecidos. As linguagens oral e escrita de tais grupos vêm sendo classificadas como deficientes por profissionais da saúde e da educação, e é bastante ilustrativa do uso da linguagem nos processos de exclusão não só escolar, mas, sobretudo, social.

Linguagem e fracasso escolar

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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão

Tais grupos de profissionais têm atuado na caracterização e no tratamento de tais alterações como se normalidade e patologia pudessem ser tratadas à margem das relações sociais. Dessa maneira, procedimentos de avaliação e de tratamento, desenvolvidos tanto em contextos clínicos como educacionais, priorizam testar e treinar os pré-requisitos que envolvem as habilidades orgânicas e funcionais que participam da produção da fala e da escrita. Entre as tarefas que objetivam avaliar e desenvolver os ditos pré-requisitos da escrita, encontram-se:

organização espacial e temporal; �

noções de lateralidade; �

noções de esquema corporal; �

discriminação e percepção visual; �

discriminação e percepção auditiva; �

memórias tátil e cinestésica; �

memórias imediatas e de longo prazo; �

práxis orofaciais; �

movimentos manuais grossos e finos; �

postura. �

Com base na visão de que, ao iniciar o aprendizado formal, a criança deve ser preparada para a aquisição da escrita a partir do desenvolvimento de tais habilidades, durante os seus primeiros anos de escolaridade ela é submetida a uma série de treinamentos que não garantem a aquisição das linguagens oral e escrita. Uma vez distanciadas das práticas discursivas orais e escritas, as crianças tendem a estabelecer uma relação limitada com sua linguagem, relação essa que tem implicações objetivas e subjetivas, que afetam tanto a sua forma de falar, de escrever e de ler, quanto os sentidos, as representações e as formas como se co-locam em relação a essas práticas de linguagem.

No decorrer do processo de escolaridade, as habilidades pré-requisitos para a escrita deixam de ser priorizadas para serem avaliados e treinados os aspectos convencionais da língua. Assim, as crianças são avaliadas a partir do domínio que demonstram ter em relação à norma ortográfica e às regras gramaticais.

Contribuindo para o aprofundamento da análise das implicações decorren-tes dos princípios e critérios utilizados para o ensino da língua e para a avaliação

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Linguagem e fracasso escolar

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dos chamados distúrbios de linguagem, recorremos às colocações de Smolka (2001, p. 37-38):

[...] a realidade cotidiana escolar e as inúmeras situações de sala de aula [...] são, hoje, resultados ou produtos de um complexo conjunto de condições e circunstâncias em que pesam, obviamente, fatores socioeconômicos, políticos, e ideológicos. Neste contexto, o ensino da escrita tem se reduzido a uma simples técnica, enquanto a própria escrita é reduzida e apresentada como uma técnica, que serve e funciona num sistema de reprodução cultural e produção em massa. Os efeitos desse ensino são tragicamente evidentes, não apenas nos índices de evasão e repetência, mas nos resultados de uma alfabetização sem sentido que produz uma atividade sem consciência: desvinculada da práxis e desprovida de sentido, a escrita se transforma num instrumento de seleção, dominação e alienação.

Para a compreensão de como as relações entre linguagem e dificuldades da linguagem se inserem nesse quadro de fracasso escolar, faz-se necessário reto-marmos alguns aspectos acerca da discriminação produzida pelas variedades linguísticas.

Uma vez que a norma considerada padrão não equivale ao modo de falar de grande parte da população brasileira, sua função principal é impor a autoridade pedagógica, representando um parâmetro para a seleção daqueles grupos cujos modos de fala e escrita, articulados aos seus modos e valores de vida, não aten-dem às exigências da escola.

Quanto à escolha de um estilo, de um padrão de linguagem definido como requisito para o sucesso escolar, podemos perceber, a partir das palavras de Patto (1987, p. 142-143), como esse padrão opera na produção da desigualdade dentro das escolas:

A divisão explícita ou implícita de classes em fracas, médias e fortes, o encaminhamento dos que não renderam para “classes especiais”, a divisão geográfica, na sala de aula, dos que acompanham e dos que não acompanham o programa escolar são práticas tradicionais no sistema escolar público que, ao mesmo tempo, resultam da percepção e das atitudes da instituição em relação à criança pobre e as mantém. Em nosso trabalho pudemos constatar que das classes “fracas”, das classes “especiais” e das crianças que não estão conseguindo acompanhar, muito pouco ou nada se espera além do fracasso, mesmo nos casos em que os professores, movidos pela necessidade de aumentar os índices de aprovação ou pela vontade de ajudar, dedicam a maior parte de seu tempo aos que não aprendem. Tem profundas raízes a crença na incapacidade das crianças que mais se afastam, em termos físicos e psicológicos, da criança ideal, limpa, bem vestida, de posse do material escolar, atenciosa, obediente, assídua, proveniente de famílias legalmente constituídas, cujas mães comparecem à escola sempre que convocadas, presença esta tomada como único indicador de seu interesse pelos filhos. Frases como “estas crianças não tem vivência nenhuma”, “o problema geral de todas as escolas são as crianças que atrapalham, pois não têm rendimento”, “a maior dificuldade em sala de aula são os alunos que estacionam e os alunos cujos pais não se interessam”, [....] nos dão a medida dos preconceitos que permeiam as relações pedagógicas e humanas em sala de aula. Com o passar do tempo, o professor adquire uma espécie de “olho mágico” que lhe permite “detectar” (na verdade, determinar), cada vez mais precocemente no período letivo, quem vai e quem não vai conseguir aprovação. Algumas professoras chegam a afirmar que sabem, na primeira semana de aula, quem serão os malsucedidos.

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Conforme propõe Moysés (1985, p. 11), é preciso situar no processo da aqui-sição da leitura e da escrita as diferentes realidades sociais, pois as condições de domínio e as formas de linguagem são constituídas pelos sujeitos situados nessas diferentes realidades. A autora alerta para a necessidade de uma tomada de posição consciente:

Quem realmente parte da vida das crianças das camadas populares, de sua percepção das coisas, dos objetos, dos fatos, permite que essa percepção sentida, vivida venha para a sala de aula e assuma os riscos de conviver com o que não é aceito, não é legítimo. Situa-se no espaço do confronto, ensina pela linguagem das vivências e chega à leitura dessas linguagens. Não constrói outras teorias sobre uma prática que, por si, já pressupõe uma posição teórica, não formula exercícios sobre uma realidade de vida, mas simplesmente chega ao próprio papel de mediação da linguagem.

Todas essas questões remetem à problemática do acesso ao saber. O proces-so de exclusão e de discriminação social penetra no seio da escola a partir da fragmentação e da descaracterização do saber e da ênfase na técnica. Conteú-dos e práticas escolares apresentam-se desarticulados com a vida concreta dos homens e, consequentemente, o ensino sofre um processo de deterioração, de desumanização.

Vejamos um exemplo disso que estamos falando, um caso bastante recor-rente: o professor olha para a escrita da criança e vê que ela escreve “u meninu”, “vossê”, “muinto” etc. O mais comum é uma reação agressiva do professor: “você não sabe escrever”, “você é burro”, “você não presta atenção em nada”, “você não tem jeito, mesmo”. Diante de frases desse tipo, a criança tende a estabelecer uma relação com a leitura e a escrita que é de “rejeição”. Quando os colegas ao lado estão fazendo alguma atividade escrita na sala de aula, esse aluno tenta fazer qualquer outra coisa, menos escrever. Por que escrever, afinal de contas, se ele “é burro mesmo”, se ele “não tem jeito”, se ele “não consegue”? Todos os dias ele ouve isso: do professor, dos pais, do psicólogo, do médico etc. Como ele tenta direcionar sua atenção para outras coisas, menos para a leitura e a escrita, passa a ser classificado como “hiperativo”. Seu destino é sabido por todos de antemão: ele é um fracasso.

Infelizmente, o que contribui para a conclusão de que essa criança é um fra-casso é o despreparo e a falta de informação da maior parte dos professores e de outros profissionais responsáveis por “avaliar” a criança. Quando a criança escreve “u meninu”, “vossê”, “muinto”, ela está visivelmente se apoiando na fala para escre-ver. É assim que se fala. Mas, de forma incompreensível para a criança, não é assim que se escreve. As regras para a escrita não são as mesmas que para a fala. É normal, portanto, que a criança cometa esse tipo de “erro”, que na verdade, não represen-ta um “erro”, mas uma etapa normal do processo de aquisição da escrita.

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Linguagem e fracasso escolar

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No entanto, convencida por todos ao seu redor de que “não tem jeito”, de que “é burra, mesmo”, essa que é uma etapa normal do processo de aquisição da escrita passa a ser uma etapa decisiva no seu processo de rejeição à escrita. Ao invés de ser conduzida a “descobrir a escrita”, ela é conduzida a “manter-se cada vez mais distante dela” e, com isso, do próprio sistema de ensino que tem nela a sua base. A criança, dessa forma, fica convencida, pela própria escola, de que o que está em jogo não é sua “relação com a escrita”, mas sim sua “relação com o fracasso”.

De que forma podemos atuar para que todos tenham acesso e domínio das linguagens oral e escrita?

Como esclarecem Kramer e Souza (1996, p. 13):

[...] entre os graves problemas historicamente enfrentados pela escola brasileira coloca-se o do fracasso na alfabetização e no acesso à leitura e à escrita. Apesar dos esforços, seja através de pesquisas, seja através da intervenção educacional, é fato inegável que nossa população não tem garantia de acesso à leitura e à escrita.

De acordo com essa colocação propomos, primeiramente, uma inversão da lógica que estabelece os problemas de linguagem como a causa do fracasso es-colar. Entendemos que o não acesso às linguagens oral e escrita é uma das suas evidências e uma das formas pela qual ele se manifesta. De qualquer modo, tal inversão não é suficiente para a superação das implicações e dos problemas so-ciais que estão atrelados à falta de domínio da oralidade e da escrita por uma parcela significativa da população brasileira.

Se o saber escolarizado é pautado pela linguagem escrita, se é por meio da linguagem escrita que se dá a emancipação do homem para o mundo do saber, da ciência, e pela qual se travarão as suas relações, não podemos ignorar o fato de que a aprendizagem da leitura e da escrita tem sido, por sua vez, fortemente marcada pelo fracasso. O que se caracteriza como porta de entrada ao mundo do saber vem sendo fator de exclusão deste.

Para a superação desse quadro é fundamental, também, uma mudança de perspectiva na análise do problema, bem como uma ação conjunta de diferen-tes profissionais inseridos nas áreas da educação e saúde. Não podemos perder de vista o fato de que a educação, entendida como prática social, é fruto de uma

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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão

ação que envolve não só professores, diretores e supervisores, mas também di-ferentes profissionais que atuam, direta ou indiretamente, com os processos de aquisição das linguagens oral e escrita e com problemas que podem ocorrer ao longo desse processo. Tal ação deve objetivar, para além da identificação e clas-sificação dos chamados distúrbios de fala, de leitura e da escrita, a promoção de tais modalidades de linguagem. Para tanto, conforme colocam Kramer e Souza (1996, p. 18), é necessário

[...] agir na escola com linguagem e na linguagem, rompendo com uma concepção de linguagem como “meio de”, como instrumento vazio, passando a entendê-la e exercê-la como expressão viva de experiências vivas, do presente e do passado... Ora, a linguagem é produção humana acontecida na história; produção que – construída nas interações sociais, nos diálogos vivos – permite pensar as demais ações e a si própria, constituindo a consciência. E mais, se o homem se faz fazendo o mundo e se faz como homem se fazendo na linguagem, esse processo só é possível graças a nós, ao auditório social fora e dentro de cada um. Para tanto nada mais urgente do que uma política cultural e uma política de língua.

Vejamos o que colocam essas autoras em relação aos princípios e posições que devem nortear ações que, direta ou indiretamente, estejam ligadas à pro-moção da linguagem no âmbito escolar e, por extensão, em outros contextos:

Modelos teóricos e propostas educacionais e clínicas que concebam a lin- �guagem enquanto uma prática social, historicamente constituída.

Modelos teóricos e propostas educacionais e clínicas que concebam a lin- �guagem como constitutiva dos sujeitos, da humanidade e, portanto, das formas de organização de cada sociedade.

A consciência da necessidade de uma reflexão em torno das experiências �individuais com a linguagem, não no sentido de situá-las na história pas-sada, mas de entendê-las como parte da história do grupo social a que cada um pertence.

A consciência da necessidade de uma ação ampla que envolva as políticas �de cultura e educação, para tornar o acesso às linguagens oral e escrita uma realidade.

Acrescentamos, ainda, a necessidade de que sejam invertidas outras lógicas, desconstruídas algumas verdades e formuladas outras. Não podemos mais con-siderar que manifestações de oralidade e de escrita que não correspondam à norma sejam identificadas como sinais de distúrbios, pois, se isso ocorrer, nossa ação em direção a um grupo significativo de crianças em processo de aquisição terá um único destino: a exclusão escolar e social.

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Referente a esse aspecto, enfatizamos que estudos recentes sobre a aquisi-ção da oralidade e da escrita têm proclamado o “erro” como uma das molas pro-pulsoras de tal processo. Tais estudos evidenciam que, quando se pensa nas con-dições concretas de produção da linguagem, o erro, a falta e a falha não podem ser considerados defeitos a serem corrigidos ou eliminados. Considerar sua pre-sença no processo de produção da linguagem implica princípios metodológicos que enfatizam a relevância da singularidade da relação sujeito-linguagem. Im-plica reconhecer a existência de um sujeito ativo em relação ao conhecimento/linguagem, que se coloca ante os problemas de produção da linguagem e tenta resolvê-los. Trata-se, portanto, de um sujeito que tenta imprimir um determina-do sentido a suas palavras, sob o efeito da história que vivenciou no processo de constituição da linguagem, confrontando suas hipóteses sobre o manuseio da língua com seus interlocutores.

É fundamental ter consciência que o aprendiz tem uma “metodologia”, ad-mitindo que esta se diferencia dos métodos de ensino. Isso significa dizer que o aluno tenta “estabelecer caminhos” para si mesmo nesse processo. Desconhecer essa “metodologia” do aprendiz pode levar a bloquear, em vez de favorecer, o processo de constituição da linguagem.

Os métodos de ensino, os procedimentos clínicos e educacionais direciona-dos para o ensino/aprendizagem da escrita são formulações feitas por adultos para atender as suas necessidades, ou seja, para servir como referência e guia de suas ações.

Não podemos confundir ou adotar tais construções como se estivéssemos diante da própria criança e de seu modo de aprender. Sem dúvida, o ideal seria que fossem mínimas as distâncias entre a forma como entendemos a aquisição da linguagem, os procedimentos formulados com base nesse entendimento e o processo próprio de aquisição que efetivamente se opera na criança. Contu-do, não é isso que acontece. Muitas vezes, podemos acompanhar profissionais que defendem certas ideias, mas agem de maneira antagônica aos modos pelos quais as crianças aprendem a falar, a ler e a escrever. Nesse caso, temos profissio-nais que veiculam a ideia de que

para aprender é preciso ficar em silêncio; �

não se aprende falando; �

aprender é coisa séria e falar é bagunça. �

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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão

Apesar de essas “máximas” ainda estarem em circulação, sabemos que as crianças não desenvolvem a sua oralidade com base na ideia de que falar atra-palha o aprendizado, que bom aluno é aquele que fica quietinho, que a hora de falar é o recreio ou o momento da “bagunça”. Muito pelo contrário. Como resul-tado dessa “conduta”, podemos encontrar jovens e adultos com dificuldades em colocar seus conhecimentos e posições em público, que apresentam dificulda-des em organizar seu discurso oral e em se sentirem seguros para realizá-lo.

Crianças, quando não cerceadas, falam para aprender, falam enquanto estão buscando soluções para seus problemas, falam para entender o mundo à sua volta, falam para organizar seu pensamento e suas ações, falam para poder aprender com o outro. Afinal de contas, é assim que o processo de aquisição das linguagens oral e escrita se efetiva. De qualquer modo, prevalecem, ainda, práticas educacionais e clínicas em que a linguagem oral não se constitui como elemento da constituição do sujeito, ou seja, práticas que estabelecem a seguin-te oposição: “fala” diferente de “aprendizado”.

Caminhando em direção oposta ao processo de aquisição da fala e da escri-ta, temos, também, profissionais que solicitam às crianças que repitam palavras oralmente e por escrito. Várias vezes, as mesmas palavras. Crianças não apren-dem a partir da repetição nem da memorização. Crianças não aprendem a partir de situações enfadonhas e desestimulantes. Crianças não aprendem a partir de exercícios mecânicos. De qualquer modo, está aí uma série de atividades escola-res e clínicas que apostam no treino para atingir o aprendizado.

Nossa proposta é que direcionemos nossos olhares para a forma como as crianças aprendem. Também é importante compreender como nos situamos nesse aprendizado. O desafio do educador é descobrir-se como parte da vida das crianças, de buscar nessa vida o que lhes foi negado. É autorizar-se a cons-truir novos sentidos para essa vida. É não perder de vista que os modos como os sujeitos se relacionam com as linguagens oral e escrita são determinantes das formas como se colocam enquanto cidadãos.

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Preconceito linguístico: o que é, como se faz (BAGNO, 1999, p. 105-113)

A desconstrução do preconceito linguísticoReconhecimento da crise

De que modo poderemos romper o círculo vicioso do preconceito lin-guístico? Como conseguiremos escapar do igapó estagnado e mergulhar nas águas dinâmicas e vivificantes do grande rio da língua?

Uma coisa não podemos deixar de reconhecer: existe atualmente uma crise no ensino da língua portuguesa. Muitos professores, alertados em deba-tes e conferências ou pela leitura de bons textos científicos, já não recorrem tão exclusivamente à gramática normativa como única fonte de explicação para os fenômenos linguísticos. Por outro lado, sentem falta de outros ins-trumentos didáticos que possam, senão substituir, ao menos complementar criticamente os compêndios gramaticais tradicionais. Ninguém tem dúvidas de que é a norma culta que deve constituir o objeto de ensino/aprendizado em sala de aula. Mas o que é e onde está essa norma culta?

Não é difícil perceber que a norma culta – por diversas razões de ordem política, econômica, social, cultural – é um bem reservado a poucas pessoas no Brasil. [...]. É o mesmo que acontece com a alimentação, a saúde, a educa-ção, a habitação, o transporte, o acesso às novas tecnologias etc. Uns poucos privilegiados se locomovem em carros importados, enquanto a grande maioria usa um transporte público deficiente, precário e, se não bastasse, caro demais – conheço muitas pessoas humildes que vão a pé para o traba-lho, despertando no meio da madrugada e caminhando durante horas da periferia até os bairros centrais, porque seu salário não lhes permite tomar ônibus, trem nem metrô.

Podemos identificar três problemas básicos a esse respeito.

Primeiro, e mais óbvio, a quantidade injustificável de analfabetos que existe neste país. Estatísticas oficiais, do IBGE, falam de 18 a 20 milhões de

Texto complementar

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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão

analfabetos com mais de 15 anos de idade – duas vezes a população de Portugal. Some-se a isso os milhões de crianças em idade escolar que não frequentam nenhuma escola. Temos também um alto índice de analfabetos funcionais, isto é, pessoas que frequentaram a escola por um período insu-ficiente para desenvolver plenamente as habilidades de leitura e redação. A média nacional de educação da força de trabalho é de 3,9 anos de escola: seriam, no total, 45 milhões de analfabetos funcionais ou semianalfabetos. Analfabetos plenos e analfabetos funcionais seriam, ao todo, mais de 60 mi-lhões de brasileiros: duas vezes a população da Argentina.

Numa lista de 175 países elaborada pela ONU, o Brasil ocupa o 93º lugar em índice de escolarização, ficando atrás até mesmo de países como a Etió-pia e a Índia, exemplos clássicos de subdesenvolvimento crônico. Só que o Brasil é uma das dez maiores economias do planeta. Ocupamos também o 80° lugar em investimentos na educação. E ninguém pode alegar que isso se deve ao tamanho do país ou da população: a China, bem maior que o Brasil e com uma população de 1,2 bilhão de habitantes, tem 6% de analfabetos, enquanto o Brasil tem 18,4%, segundo o Banco Mundial. E na China esses analfabetos vivem em áreas muito remotas, nas montanhas ou nos desertos, enquanto os nossos estão na periferia das grandes cidades e até mesmo tra-balhando dentro de nossas casas. Tudo isso num país cuja Constituição diz que a educação é “dever do Estado”.

A norma culta, como vimos, está tradicionalmente muito vinculada à norma literária, à língua escrita. Com tantos analfabetos, lamentar a “decadência” ou a “corrupção” da norma culta no Brasil é, no mínimo, uma atitude cínica.

Segundo, por razões históricas e culturais, a maioria das pessoas plena-mente alfabetizadas não cultivam nem desenvolvem suas habilidades lin-guísticas no nível da norma culta. Ler e, sobretudo, escrever não fazem parte da cultura das nossas classes sociais alfabetizadas. Isso se prende aos velhos preconceitos de que “brasileiro não sabe português” e de que “português é difícil”, veiculados pelas práticas tradicionais de ensino. Esse ensino tradicio-nal, como eu já disse, em vez de incentivar o uso das habilidades linguísticas do indivíduo, deixando-o expressar-se livremente para somente depois cor-rigir sua fala ou sua escrita, age exatamente ao contrário: interrompe o fluxo natural da expressão e da comunicação com a atitude corretiva (e muitas vezes punitiva), cuja consequência inevitável é a criação de um sentimento de incapacidade, de incompetência.

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Em minha experiência de tradutor profissional, já me deparei algumas vezes com situações que poderíamos classificar de surrealistas. Pessoas que fizeram doutorado no exterior me procuram para que eu traduza para o por-tuguês teses escritas originalmente em inglês ou francês. Quando pergunto à pessoa por que ela mesma não faz a tradução, a resposta que eu recebo é chocante: “É porque eu não sei português”. Como é possível? Uma pessoa que escreveu uma tese de 500 ou 600 páginas num idioma estrangeiro, e que obteve assim o seu grau de doutor, de Ph.D., em sua especialidade cien-tífica, tem receios de escrever em sua própria língua materna? Existe algum problema aí, e eu não posso aceitar a explicação dada por tantos professores de que os alunos é que são preguiçosos e não conseguem aprender, ou, pior ainda, que “português é muito difícil”. O problema certamente está no modo como se ensina português e naquilo que é ensinado sob o rótulo de língua portuguesa.

Quanto à questão da leitura, sabemos que esse não é um hábito típico do brasileiro alfabetizado. As razões (históricas) disso são complexas, e há muitos especialistas que vêm empreendendo pesquisas a respeito e propon-do novos métodos de incentivo à leitura na escola. O certo é que as tecnolo-gias mais relacionadas ao som e à imagem – sobretudo a televisão e o rádio, mas também a informática, para os que têm acesso a ela – desempenham no Brasil o papel de fonte de formação e informação que em outras sociedades é desempenhado pela cultura do livro e da palavra escrita em geral. Entra-mos na era do som, da imagem e do “virtual” sem termos passado pela era da cultura livresca. Isso é problemático porque a formação/informação pro-porcionada pelos meios tecnológicos audiovisuais é inevitavelmente mais elementar, mais superficial e, sobretudo, menos crítica do que a que se pode obter na leitura, que é um processo que exige maior concentração e que re-sulta, por isso, numa maior fixação das informações apreendidas.

Terceiro dilema relativo à norma culta se prende ao fato de que esse termo é usado pela tradição gramatical conservadora para designar uma modalidade de língua que, como já vimos na primeira parte deste livro, não corresponde à língua efetivamente usada pelas pessoa cultas do Brasil nos dias de hoje, mas sim a um ideal linguístico inspirado no português de Portugal, nas opções estilísticas dos grandes escritores do passado, nas regras sintáticas que mais se aproximem dos modelos da gramática latina, ou simplesmente no gosto pessoal do gramático – para Napoleão Mendes de Almeida, por exemplo, o “certo” é dizer eu odio e não EU ODEIO...

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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão

[...]

A distância entre norma culta real e norma culta ideal pode ser medida em afirmações como esta, de Rocha Lima, em sua Gramática Normativa da Língua Portuguesa (p. 15):

Em extensas faixas do Brasil, e especialmente no Rio de Janeiro, a consoante /l/, quando em final de sílaba, apresenta uma pronúncia “relaxada”, que a aproxima da semivogal /w/. Este fato faz que desapareçam oposições como as de mal e mau, alto e auto, servil e serviu – oposições que a língua culta procura cuidadosamente observar (grifo meu).

Basta ouvir os locutores de rádio, os apresentadores de telejornal e os professores universitários – três profissões que exigem educação de nível superior e, portanto, domínio da norma culta – para verificar que a afirmação de Rocha Lima não se baseia na realidade empiricamente analisável.

[...]

Essa mesma idealização da norma culta como um padrão linguístico 100% “puro” – como uma pedra preciosa sem nenhuma jaça, como uma pepita de ouro livre de toda ganga – se verifica, por exemplo, num texto publicado por Pasquale Cipro Neto em sua página na revista Cult (n. 11, p. 44, jun. 1998). Para ele, os usos não normativos de onde constituem uma “praga”. E o uso feito por Chico Buarque, numa canção, de onde no lugar de quando indica que o poeta-compositor ”caiu na esparrela”.

Lemos no texto de Cipro que “a diferença entre onde e aonde também deixa muita gente de cabelo em pé”. Depois de explicar o uso “correto” de cada uma das duas formas, ele diz que “mesmo em escritores renomados se vê o emprego de onde e aonde sem critério”, e cita o exemplo do poema “A onda” de Manuel Bandeira, que escreveu:

“Aonde anda a onda”. E chama a atenção para o fato de que “em termos de língua culta, para cada 99 ocorrências corretas de onde, há uma de aonde”. Diante dessa estatística (que ele cita sem indicar a fonte de seus dados nem a metodologia empregada para coletá-los), a lógica nos leva a concluir que o problema então não está na falta de “critério” dos falantes da norma culta, mas sim na concepção que o autor do texto tem de “língua culta”. [...] Como reconhece o próprio Ministério da Educação, [...]

não se pode mais insistir na ideia de que o modelo de correção estabelecido pela gramática tradicional seja o nível padrão de língua ou que corresponda à variedade linguística de prestígio (p. 31).

[...]

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Linguagem e fracasso escolar

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Dica de estudoFilme � Fama, de Alan Parker.

Filme trata da inserção e da trajetória de jovens de diferentes origens – e com diferentes dificuldades – no mundo das artes. Explora o lado difícil na relação com as artes: incapacidade para ler, para atuar, para representar, para compartilhar etc.

Atividades1. Descreva princípios e posições que devem nortear ações que, direta ou indi-

retamente, estejam ligadas à promoção da linguagem no âmbito escolar.

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2. Por que manifestações de oralidade e de escrita que não têm correspondên-cia, em geral, não devem ser avaliadas e/ou identificadas como sinais de dis-túrbios?

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De que forma a linguagem age na promoção tanto da inclusão quanto da exclusão social?

Até que ponto a escola age no processo de inclusão e de exclusão social? Qual é o seu papel? E qual é o papel “esperado” dela nesse processo? De que forma a “linguagem” pode promover a inclusão ou a exclusão social?

Para respondermos a essas perguntas, convém entendermos, antes de mais nada, como a linguagem escrita passou a ser utilizada como a “lin-guagem do conhecimento”. Ela só passou a ter esse papel na Idade Média. A importância que ela tem para nós, hoje, deriva da importância que ela passou a ter naquele período. Antes disso:

A leitura também era trabalhosa: havia pouca ou nenhuma divisão entre as palavras e, quando os escribas deixavam espaços, não o faziam necessariamente depois de cada palavra, mas onde quer que lhes fosse cômodo, quer isso fosse ou não conveniente para o leitor. Não havia divisões obrigatórias entre as frases ou parágrafos, nem tampouco grande coisa à guisa de pontuação, se é que existia alguma.

Escrever não era nada mais do que a palavra posta numa página, e, sendo assim, não surpreende que os letrados da Antiguidade e dos primeiros séculos da Idade Média fizessem quase toda a sua escrita e leitura em voz alta [...].

Havia, é claro, um pouco de leitura silenciosa – Júlio César era capaz de praticar esse truque ao ler cartas de amor, e Santo Agostinho, ao ler as Epístolas de São Paulo –, mas, na maioria das vezes, os redatores murmuravam e os leitores declamavam, e os scriptoria [escritórios] e bibliotecas eram agitados e até barulhentos [...].

No início do século XIV, eles [os calígrafos] haviam concebido escritas novas e cursivas, providas da separação entre as palavras e pontuação, que permitiam que os escribas redigissem mais depressa e que os leitores lessem com mais rapidez. (CROSBY, 1999, p. 133-135)

Não havia, portanto, divisão entre a oralidade e a escrita. E isso era tão evidente para todos que Santo Agostinho sentiu-se obrigado a justificar por que seu mentor, Santo Ambrósio, lia sem mexer os lábios, em silêncio:

“Fosse qual fosse a razão de estranho comportamento de Ambró-sio, Agostinho tinha ‘certeza de que era boa’” (CROSBY, 1999, p. 134).

A linguagem e o ensino no processo de inclusão e de exclusão social

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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão

Ou seja, a escrita, antes desse período, não era uma “modalidade de lingua-gem”, pensada separadamente da fala. A divisão entre as palavras e a pontuação, embora permitisse a escrita e a leitura com maior velocidade, nem por isso fez com que a escrita fosse tratada como uma “modalidade de linguagem” distinta e específica. A mudança mais profunda foi àquela em relação à “forma de orga-nização da escrita”. Os padres da Idade Média, preocupados com o rigor e com a expressão formal, estabeleceram “formas de divisão do texto”: Alexandre de Hales, mestre franciscano, dividiu o “todo” em “partes”, depois em “membros” e “artigos”; São Tomás de Aquino dividiu o “todo” em “partes”, estas em “questões”, e estas, por sua vez, em “artigos”:

Naturalmente, tudo isso não significa que os escolásticos pensassem de forma mais metódica ou lógica que Platão ou Aristóteles, mas sim, que se sentiam obrigados, ao contrário de Platão e Aristóteles, a destacar o ordenamento e a lógica de seu pensamento e a demonstrar que o princípio da manifestatio [manifestação], que assegurava o sentido e o enquadramento de seu pensamento, também determinava sua forma de exposição e essa forma se subordinava, por assim dizer, ao postulado da clareza em nome da clareza. (PANOFSKY, 2001, p. 24)

Com isso, os padres da Idade Média inventaram aquela que talvez seja a mais im-portante característica do Ocidente, a “forma racional de exposição do pensamento”. Engana-se quem acha que a mais importante característica é o “pensamento ra-cional”. Ele já existia bem antes disso. Mas não essa “forma racional de exposição do pensamento”. Isso representou uma mudança de rumos sem precedentes na nossa história.

A primeira e mais importante mudança é a suposição de que só há “pensa-mento racional” quando ele vier acompanhado de uma “forma de exposição ra-cional”. Ou seja: todos aqueles que não dominam essas “formas de exposição” são entendidos como “desprovidos de razão”, “incapazes”.

A segunda mudança, tão importante quanto a primeira, é que a “forma racio-nal de exposição do pensamento” foi associada, por excelência, à escrita, ou seja, ela deve ser organizada ou estruturada da mesma maneira como os escolásticos acreditavam que devesse ser um “pensamento racional”. Essa mudança implicou uma forte “divisão social”: de um lado, aqueles que dominavam a “escrita” e, por isso, eram “sábios”, e, de outro, os “idiotas”. A palavra “idiota” só passou a ter o significado que tem hoje, daquele que é incapaz de pensar ou compreender o “pensamento racional”, nesse período. Antes disso, a palavra tinha um uso bem restrito: “idiota” era todo aquele que não compreendia o latim.

A terceira mudança, não menos importante que as duas anteriores, é que o pres-tígio e a importância sociais das pessoas passaram a ser associados a quanto elas dominam ou não as diversas “formas racionais de manifestação do pensamento”, o

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A linguagem e o ensino no processo de inclusão e de exclusão social

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que hoje recebe o nome de “linguagens específicas”. É artista aquele que domina a “linguagem artística”, é cientista aquele que domina a “linguagem científica”, é escritor aquele que domina a “linguagem literária”, é político aquele que domina a “linguagem política”, e assim por diante. E, com isso, o mundo contemporâneo se torna cada vez mais especializado em criar “linguagens especializadas”: a “lin-guagem matemática”, a “linguagem computacional”, a “linguagem fotográfica”, a “linguagem pictórica”, a “linguagem radiofônica”, a “linguagem televisiva”, dentre outras. E, é claro, não podemos nos esquecer, a “linguagem escrita”.

Forma e linguagem no contexto escolarApós os escolásticos, não podemos mais separar “forma” – de linguagem, de

exposição – e “conteúdo” – de conhecimento. Mas quais as implicações disso para o sistema de ensino?

Quando crianças, vamos para a escola pensando que ela nos transmitirá “co-nhecimento”. O professor que entra em sala de aula para ensinar o aluno tem também a mesma ideia: de que ele, professor, é um “veículo de conhecimen-to”. Tudo gira, portanto, em torno do “conteúdo” transmitido. Quando se fala em “forma de transmissão desse conteúdo”, a expressão tem, geralmente, um signi-ficado bastante específico: diz respeito aos “métodos pedagógicos” utilizados no ensino. Alguns desses métodos se revelam muito eficazes em certos contextos, mas totalmente ineficazes em outros. Problema de método? Não, acontece que existe algo aí que não está sendo considerado e que as pesquisas na área de so-ciologia da educação vêm apontando, já há algum tempo, e ela diz respeito exa-tamente à relação entre “forma” e “conteúdo”, mas não dos métodos de ensino. De acordo com Bourdieu (1974, p. 306-307),

[...] a apropriação da cultura proposta (e em consequência, o êxito do empreendimento de aprendizagem sancionado por títulos escolares) depende da posse prévia dos instrumentos de apropriação apenas na medida em que fornece explícita e expressamente, na própria comunicação pedagógica, os instrumentos indispensáveis ao êxito da comunicação, os quais, em uma sociedade dividida em classes, são distribuídos de forma bastante desigual entre as crianças de diferentes classes sociais. [...] Eximindo-se de oferecer a todos explicitamente o que exige de todos implicitamente, quer exigir de todos que tenham o que não lhes foi dado, a saber, sobretudo a competência linguística e cultural e a relação de intimidade com a cultura e com a linguagem, instrumentos que somente a educação familiar pode produzir quando transmite a cultura dominante.

Vamos tentar entender isso um pouco melhor. Primeiro, o que Bourdieu está chamando de “cultura dominante”? É toda forma de conhecimento considera-da “consagrada”. O “saber científico”, por exemplo, é “dominante” perante outras formas de saberes. A “arte consagrada”, como a pintura e a literatura clássicas,

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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão

também é “dominante” sobre outras formas de expressão. Há, portanto, várias formas de dominação e, com isso, várias formas de “desigualdade social”.

A escola transmite todas essas “formas de conhecimento consagradas”. Essas “formas de conhecimento”, no entanto, estão ligadas aos próprios grupos sociais que as geraram e às relações que esses mesmos grupos estabeleceram com o mundo e com a sociedade. Estão ligadas, portanto, às “linguagens” específicas que marcam a relação desses grupos entre si e com o mundo. Não nos esqueça-mos que, após os escolásticos, o conhecimento passou a ser expresso por meio de “formas” e “linguagens” próprias. Dominar um certo conteúdo de conheci-mento, com isso, é dominar a sua forma de exposição, a sua linguagem.

Vejamos um exemplo: as ciências exatas se marcam muito menos por um conhecimento “objetivo” do mundo – essa “objetividade” tem sido questionada desde o século XVIII pelo Iluminismo – e mais por uma “linguagem lógica”. Na verdade, é essa “linguagem lógica” que cria a ilusão de “objetividade”. Sem isso que Bourdieu está chamando de “familiaridade” com a comunicação, ou seja, sem a “familiaridade” com essa “linguagem lógica”, não é possível a compreensão do “conteúdo” que ela transmite. Essa “familiaridade”, no entanto, não tem a ver com o sistema de ensino, e sim com a “origem social” das pessoas.

A mesma coisa pode ser dita da “arte”. Sem o domínio dos “códigos neces-sários”, ou seja, da “linguagem”, para a apreciação de uma obra de arte, ela não poderá, evidentemente, ser apreciada. Uma tela de Caravaggio não “significa” nada para quem não domina seus “códigos de apreciação”, ou seja, a “lingua-gem” que permite à pessoa “ler” um quadro. A “informação” de que Caravaggio foi um pintor importante não é suficiente para o “deciframento”, para a “leitura”, de sua pintura.

E, é claro, tudo isso vale para a “linguagem escrita”. Certas “formas de escrita” estão tão intimamente ligadas a certos “estilos de linguagem” que elas são in-dissociáveis. Quem domina esses “estilos” domina, portanto, a “linguagem escrita”. O que se observa é que a “linguagem escrita” está tão distante de certas “formas de linguagem oral” que aprender a escrever, para muitas pessoas pode representar, na prática, a aquisição de uma “nova língua”. No entanto, o ensino da “escrita” nunca é conduzido como se fosse o “ensino de uma segunda língua”.

Segundo Bagno (1999, p. 64):

O que aconteceu, ao longo do tempo, foi uma inversão da realidade histórica. As gramáticas foram escritas precisamente para descrever e fixar como “regras” e “padrões” as manifestações linguísticas usadas espontaneamente pelos escritores considerados dignos de admiração,

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A linguagem e o ensino no processo de inclusão e de exclusão social

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modelos a ser imitados. Ou seja, a gramática normativa é decorrência da língua, é subordinada a ela, dependente dela. Como a gramática, porém, passou a ser um instrumento de poder e de controle, surgiu essa concepção de que os falantes e escritores da língua é que precisam da gramática, como se ela fosse uma espécie de fonte mística invisível da qual emana a língua “bonita”, “correta” e “pura”. A língua passou a ser subordinada e dependente da gramática. O que não está na gramática normativa “não é português”. E os compêndios gramaticais se transformaram em livros sagrados, cujos dogmas e cânones têm de ser obedecidos à risca para não se cometer nenhuma “heresia”.

A questão central, portanto, não diz respeito aos “conteúdos” transmitidos pela escola, mas sim às “linguagens” que expressam e transmitem esses conteúdos. É a isso que Bourdieu se refere quando diz que a escola se exime de “oferecer a todos explicitamente o que exige de todos implicitamente”, ou seja, não oferece a todos o “domínio dessas linguagens”, necessário para a compreensão dos conte-údos transmitidos, embora seja exatamente isso que ela cobra das crianças.

Quando uma criança não é capaz de dominar certo conteúdo, a conclusão a que os professores chegam, geralmente, é de que aquela criança não tem “ca-pacidade” para aprender, para dominar o conteúdo. Na verdade, e é isso que escapa à maior parte dos professores, a criança não tem a “competência neces-sária”, ou seja, “não domina a linguagem” capaz de fazer com que ela “aprenda aquele conteúdo”. De acordo com Bourdieu (1974, p. 304), o êxito da transmissão dos conteúdos, no ensino, depende “do grau de proximidade do código familiar junto à cultura erudita que a escola transmite e dos modelos linguísticos e cultu-rais segundo os quais se efetua a transmissão”.

Isso significa que, em primeiro lugar, as linguagens são, por excelência, sociais, ou seja, por meio delas são expressas as formas de pensamento e de relação entre as pessoas. Quando falamos, transmitimos ideias, pensamentos etc. Mas a lingua-gem não é apenas “comunicação”, portanto, ela faz algo mais que só “transmitir ideias e pensamentos”. Essas ideias e esses pensamentos ganham, na linguagem, uma “forma específica”. Essa “forma”, que é a própria linguagem, “traduz” as rela-ções que estabelecemos com o mundo e com as demais pessoas.

Segundo, como as linguagens são “sociais”, elas estão, necessariamente, atreladas aos contextos de vida das pessoas. Vamos dar um exemplo: é muito comum supor que os filhos podem “herdar” o talento dos pais. Consideramos “natural” quando o filho de um músico se torna, a exemplo de seu pai ou sua mãe, músico. Achamos “natural” quando o filho de um político segue também a carreira política. E a mesma coisa para o filho de um cientista.

Na verdade, não há nada de “natural” nisso, e sim de “social”. As crianças apren-dem, com os pais, certas “formas” de pensar e de se colocar no mundo. Essas “formas” de pensar e de se colocar no mundo representam a própria “linguagem”

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que elas utilizam para se comunicar com as demais pessoas. Formadas no interior dessas “linguagens”, é muito difícil, mas não impossível, compreender e dominar outras. Vamos supor o caso de uma criança filha de pais ligados a uma profissão técnica, como a engenharia, por exemplo. Essa criança aprende, desde cedo, a “pensar” o mundo, e com isso a se expressar de maneira “racional-instrumental”. Para ela, tudo aquilo que se afastar desse “pensamento” e dessa “linguagem” racional-instrumental pode soar estranho e “sem sentido”. Exatamente por isso pode ser muito difícil compreender outras formas de “pensamento” e de “lingua-gem”, porque elas parecem “sem sentido”.

Quanto mais próximas estão as crianças da “linguagem escolar”, mais aquilo que é transmitido tem “sentido”. Quanto mais distantes elas estão – em função do contexto social de origem dessas crianças – , mais “sem sentido” representa aquilo que é transmitido pela escola, por meio da “linguagem escolar”. É por isso que Bourdieu conclui que a “transmissão” dos conteúdos – e o sucesso dessa transmissão – depende do grau de proximidade entre, de um lado, a “linguagem escolar” e, de outro, a “linguagem do contexto social de origem e de pertenci-mento dos alunos”.

A suposição, portanto, de que o que se transmite na escola seja tão somente “conteúdo” faz com se perca de vista o quanto ela age no sentido de “regular”, por meio da linguagem, as formas de inserção e de exclusão social.

Desta maneira, as disposições negativas no tocante à escola que levam a maioria das crianças das classes e frações de classes mais desfavorecidas culturalmente à autoeliminação, como por exemplo a depreciação de si mesmo, a desvalorização da escola e de suas sanções ou a resignação ao fracasso e à exclusão, devem ser compreendidas em termos de uma antecipação fundada na estimativa inconsciente das probabilidades objetivas de êxito viáveis para o conjunto da categoria social, sanções que a escola reserva objetivamente às classes ou frações de classe desprovidas de capital cultural. (BOURDIEU, 1974, p. 310)

Ou seja, a escola pode promover, ao longo do tempo, a “autoeliminação” das crianças. Nesse caso, essa “autoeliminação” ocorre já nos estágios iniciais do ensino, em função da distância entre as “formas de linguagem dos alunos” e as “formas de linguagem da escola”. A distância entre as formas de linguagem aliada à ideia de que a escola transmite “conteúdos” faz com que elas se convençam , assim como seus professores, do “fracasso”. A “autoeliminação” é a tradução, em termos sociais, da “resignação” frente a distância existente entre as pessoas e o sistema de ensino, frente a distância entre as condições de vida dessas pessoas e as possibilidades de inserção social que elas têm diante de si. Para estas, a escola não representa uma possibilidade de “inserção social”, mas sim uma “prova” de que essa inserção não é possível.

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A linguagem e o ensino no processo de inclusão e de exclusão social

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Permanecem, na escola, aqueles cuja distância entre as “formas de linguagem de origem” e as “formas de linguagem da escola” é menor. No entanto, como não há apenas uma forma de desigualdade social, mas várias, a escola promo-ve, para esses que permanecem, um novo processo de inclusão e de exclusão social. Os alunos “autodirecionam” suas escolhas em função da “familiaridade” que eles têm com as formas de linguagem reproduzidas pela escola. Com isso, eles definem suas escolhas em função daquilo que acreditam serem as suas “vo-cações”: para a área de exatas, para a área de humanas, para a área de saúde, e assim por diante. A “vocação”, nesse caso, nada mais é que a “familiaridade” desses alunos com essas “linguagens específicas”. Inconscientemente, os alunos traduzem essa “familiaridade” como sendo as suas “chances de sucesso ou de insucesso” profissionais.

Se tomarmos o sistema de ensino ao longo do tempo, o que se observa, por-tanto, é que ele, por meio da “linguagem”, pode promover a gradativa “autoeli-minação” de todos aqueles a quem a “mensagem pedagógica” não se destina.

Ou seja, a “mensagem pedagógica” não se destina a todos, apenas àqueles que dominam a “linguagem específica” capaz de fazer com que essa “mensagem” tenha êxito naquilo que ela pretende ter: a transmissão de conteúdos.

É diante dessa conclusão que se debruçam as atuais pesquisas na área. E prin-cipalmente, diante das questões que ela suscita:

A escola e o professor são “agentes de promoção e de mudança social” ou �“instrumentos de regulação e de manutenção da desigualdade social”?

Como é possível a defesa de um “saber e de um ensino universais (para �todos)” diante da cobrança social de que “os saberes e os ensinos particu-larizados (por etnia, classe, cultura etc., ou seja, que respeitem e, principal-mente, enfatizem as diferenças sociais)” é que devem ser priorizados?

Como promover a “inclusão social” se o principal instrumento utilizado �para tanto, a “linguagem escolar”, é também o seu mais eficaz “instrumen-to de exclusão social”, capaz de fazer com que os alunos excluam a si mes-mos – a “autoeliminação” – antes de serem excluídos?

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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão

Texto complementar

Preconceito linguístico: o que é, como se faz(BAGNO, 1999, p. 120-124)

[...]

O que é erro?Outro modo interessante de romper com o círculo vicioso do preconcei-

to linguístico é reavaliar a noção de erro. A noção tradicional (eu diria até folclórica) de erro é que permite que pessoas como Sacconi escrevam livros absurdos como Não erre mais! e vendam milhares de exemplares deles.

O que comumente chamamos de erro é, na verdade, uma tentativa de acerto. A pessoa que escreveu chícara em vez de xícara não fez isso porque quis errar, mas sim porque quis acertar. Parece óbvio, não é? Nessa sua ten-tativa de acerto ela se serviu de um instrumento mental poderoso chama-do analogia. Se existe CHINELO, CHICOTE, CHIQUEIRO, CHICLETE etc., talvez possa existir também chícara. A analogia é um processo muito eficiente de deduzir regras a partir da comparação dos dados conhecidos. Ninguém vai tentar escrever xícara usando um J, um G, ou S no lugar do X, porque faltam dados para uma comparação razoável.

É por analogia que a criança vai assimilando as regras da gramática de sua língua materna. É por analogia que ela vai dizer eu sabo, em vez de eu sei, já que a forma regular dos verbos na língua é essa: EU FALO, EU VENDO, EU COMO, EU QUERO, EU ANDO... As formas regulares é que nos permitem a dedução das regras: afinal o substantivo regra vem do latim régula, de onde também vem o adjetivo regular. Estudando as fases antigas da língua por-tuguesa, percebemos o quanto de regularização aconteceu em sua história, fruto da analogia: muita coisa que era irregular em latim acabou por se regu-larizar em português. É preciso ter sempre em mente que tudo aquilo que é considerado erro ou desvio pela gramática tradicional tem uma explicação lógica, científica, perfeitamente demonstrável. Só por isso é que os agentes dos comandos paragramaticais podem falar de “erros comuns”. Os gramáticos conservadores não se dão conta de que o próprio adjetivo “comum” usado

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A linguagem e o ensino no processo de inclusão e de exclusão social

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por eles mostra que se trata de um fenômeno amplo de variação, de uma transformação que está se processando nos mecanismos de funcionamento geral da língua. Em sua cegueira óptica, eles falam de “vício comum”, “ erro vulgar”, “praga”, “corrupção muito difundida”, sem perceber que estão, na verdade, reconhecendo que aquilo que eles consideram “certo” é que deve apresentar algum problema, alguma disfunção, alguma impossibilidade de uso que impede que a maioria das pessoas obedeça àquela regra. A única explicação inaceitável (embora seja a preferida dos conservadores) é a de que essas pessoas são “asnos”, “ignorantes” ou “idiotas”.

Em sua nova postura teórica e prática, o bom professor de português é aquele que vai procurar conhecer as causas que estão levando os falantes da língua a usar X onde se esperaria Y, identificar essas causas, descrevê-las, pesquisar explicações científicas para elas, e, se possível, apresentá-las a seus alunos. Foi o que tentei fazer em meu livro A Língua de Eulália, e foi também o que fiz neste livro ao contestar a explicação paleozoica de Dad Squarisi para a alta frequência de Vende-se casas em lugar de Vendem-se casas.

O bom professor age como o filósofo Spinoza, que escreveu:

Tenho-me esforçado por não rir das ações humanas, por não deplo-rá-las nem odiá-las, mas por entendê-las.

O entendimento, o conhecimento das causas leva à eliminação dos pre-conceitos. Pessoas como Napoleão Mendes de Almeida, Luiz Antonio Sacco-ni e Dad Squarisi agem exatamente ao contrário de Spinoza. Sacconi chega mesmo a escrever, preto no branco: “Eu, porém, odeio gente que só diz as-neiras...” (p. 43). De um verdadeiro professor devemos sempre esperar com-paixão, solidariedade, empatia, nunca o ódio.

Então vale tudo?Algumas pessoas me dizem que a eliminação da noção de erro dará a en-

tender que, em termos de língua, vale tudo. Não é bem assim. Na verdade, em termos de língua, tudo vale alguma coisa, mas esse valor vai depender de uma série de fatores. Falar gíria, vale? Claro que vale: no lugar certo, no con-texto adequado, com as pesssoas certas. E usar palavrão? A mesma coisa.

Uma das principais tarefas do professor de língua é conscientizar seu aluno de que a língua é como um grande guarda-roupa, onde é possível

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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão

encontrar todo tipo de vestimenta. Ninguém vai só de maiô fazer compras num shopping-center, nem vai entrar na praia, num dia de sol quente, usando terno de lã, chapéu de feltro e luvas...

Usar a língua, tanto na modalidade oral como na escrita, é encontrar o ponto de equilíbrio entre dois eixos: o da adequabilidade e o da aceitabilidade.

Quando falamos (ou escrevemos), tendemos a nos adequar à situação de uso da língua em que nos encontramos: se é uma situação formal, tentare-mos usar uma linguagem formal; se é uma situação descontraída, uma lin-guagem descontraída, e assim por diante. Essa nossa tentativa de adequação se baseia naquilo que consideramos ser o grau de aceitabilidade do que es-tamos dizendo por parte de nosso interlocutor ou interlocutores. Podemos representar tudo isso graficamente.

É totalmente inadequado, por exemplo, fazer uma palestra num congres-so científico usando gíria, expressões marcadamente regionais, palavrões etc. A plateia dificilmente aceitará isso. É claro que se o objetivo do pales-trante for precisamente chocar seus ouvintes, aquela linguagem será muito adequada... Não é adequado que um agrônomo se dirija a um lavrador anal-fabeto usando uma terminologia altamente técnica e especializada, a menos que queira não se fazer entender. Como sempre, tudo vai depender de quem diz o quê, a quem, como, quando, onde, por quê e visando que efeito...

A paranoia ortográfica A atitude tradicional do professor de português, ao receber um texto pro-

duzido por um aluno, é procurar imediatamente os “erros”, direcionar toda a sua atenção para a localização e erradicação do que está “incorreto”. É uma preocupação quase exclusiva com a forma, pouco importando o que haja ali de conteúdo. É sobretudo aquilo que chamo de paranoia ortográfica: uma obsessão neurótica para que todas as palavras tragam o acento gráfico, que todos os Ç tenham sua cedilha, que todos os J e G estejam nos lugares certos... e assim por diante. Aliás, uma porcentagem enorme do que todo mundo chama de “erro de português” diz respeito a meras incorreções ortográficas.

Ora, saber ortografia não tem nada a ver com saber a língua. São dois tipos diferentes de conhecimento. A ortografia não faz parte da gramática da

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A linguagem e o ensino no processo de inclusão e de exclusão social

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língua, isto é, das regras de funcionamento da língua. Como vimos no Mito nº 6, muitas pessoas nascem, crescem, vivem e morrem sem jamais aprender a ler e a escrever, sendo, no entanto, conhecedores perfeitos da gramática de sua língua.

A ortografia oficial é fruto de um decreto, de um ato institucional por parte do governo, e fica muitas vezes sujeita aos gostos pessoais ou às inter-pretações dos fenômenos linguísticos por parte dos filólogos que ajudam a estabelecê-la. Por isso, na virada do século XIX para o XX se escrevia ELLE; na primeira metade do século XX se escreveu ÊLE e agora, no limiar do século XXI, se escreve ELE.

Por isso, a lei nos manda escrever HUMO OU HÚMUS, mas ÚMIDO e UMI-DADE, embora sejam todas palavras da mesma família (em Portugal todas essas palavras têm H).

Por isso também temos de escrever ESTRANHO e ESTRANGEIRO, com s, embora sejam palavras formadas com base no prefixo presente em EXTRA-ORDINÁRIO, EXTRAVAGANTE E EXTRAPOLAR, etc. (em espanhol se escreve EXTRÁNEO e EXTRANJERO).

Por isso o adjetivo EXTENSO e o substantivo EXTENSÃO apresentam um x, mas o verbo ESTENDER (vá lá saber por quê!) se escreve com um S. E o adjeti-vo MACIÇO se escreve com C embora seja derivado de MASSA, com SS.

Se os legisladores da língua podem ser tão incoerentes no momento de definir a ortografia oficial, não há por que estranhar (ou extranhar) que as pessoas em geral também se confundam. Mas não é o que pensam Pasquale Cipro Neto e Ulisses Infante, que na p. 33 de sua Gramática, escrevem:

Não é admissível que com um alfabeto tão restrito [...] se cometam tantos erros ortográficos pelo Brasil afora. Estude com cuidado este capítulo para integrar o grupo de cidadãos que sabem grafar corretamente as palavras da língua portuguesa.

1. Hard em inglês significa “duro, rígido” enquanto soft significa “macio, maleável”. Qual dessas duas opções de ensino você acha que nossos alunos escolheriam se tivessem chance?

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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão

Dica de estudoFilme � Pai Patrão, dos irmãos Taviani.

Numa Itália de tradições feudais, rapaz tenta se libertar da servidão ao pai e à terra. Quando apresenta-se para o serviço militar, ele descobre sua úni-ca maneira de lutar: estudar e instruir-se. Adaptação do relato autobiográ-fico do linguista Gavino Ledda. O filme trata do conflito promovido pela imposição de um ensino e de uma língua padrão. Mas, mais do que isso, discute criticamente o que ambos representam no processo de “mudança (promoção) social”.

Atividades1. Como Bourdieu define a cultura dominante, e a que essa forma de conheci-

mento está articulada?

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A linguagem e o ensino no processo de inclusão e de exclusão social

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2. Por que a “transmissão” dos conteúdos – e o sucesso dessa transmissão – de-pende do grau de proximidade entre, de um lado, a “linguagem escolar” e, de outro, a “linguagem do contexto social de origem e de pertencimento dos alunos”?

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Concepções de linguagem1. Porque existem diferentes formas de se conceber a linguagem e, por-

tanto, dependendo da posição teórica assumida adotaremos proce-dimentos diferentes para intermediar os processos de apropriação e aprendizagem de tais modalidades de linguagem vivenciados pelas crianças.

2. A linguagem pode ser concebida como representação, comunicação e prática social.

3. Entender a linguagem como comunicação significa estar de acordo com o pressuposto de que ela existe para que as pessoas possam transmitir ao(s) outro(s) sentimentos, pensamentos e conhecimen-tos. Com base nessa perspectiva instrumental, a linguagem é tratada como um sistema de código.

Entender a linguagem como representação significa considerar que ela tem a função de dar forma a conceitos e significados. Significa acreditar que a partir da linguagem, os indivíduos representam ideias ou significados supostamente presentes no seu entendimento.

Entender a linguagem como prática social significa concebê-la como uma atividade constitutiva dos sujeitos, das relações sociais e das for-mas de organização da sociedade.

Teorias de aquisição da linguagem1. As principais teorias são: inatismo, sociointeracionismo, construtivis-

mo e comportamentalismo. Os seus principais representantes são res-pectivamente Chomsky; Vygostky, Piaget e Skinner.

2. O que muda é como as teorias concebem a relação das pessoas com o ambiente ou meio e como elas concebem a linguagem.

3. B, A, D, C

Gabarito

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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão

Linguagem, cultura e poder1. Com base em tal pressuposto entende-se que tudo aquilo que escrevemos ou

dizemos carrega sentidos a partir de sua inscrição histórico-social, e é na trama do seu contexto de produção que a significação se constrói e ganha forma. Os sentidos que a fala e a escrita carregam não são configurados apenas pelas suas formas linguísticas, mas pelos contextos em que são realizados.

2. As variedades linguísticas caracterizam toda e qualquer língua. Cada varie-dade é resultado das peculiaridades das experiências históricas e sociocultu-rais do grupo que a usa: como ele se constitui, como é sua posição na estru-tura socioeconômica, como ele se organiza socialmente, quais seus valores e visão de mundo, quais suas possibilidades de acesso à escola, aos meios de informação etc.

3. Todos os cidadãos deveriam ter acesso a variedade linguística padrão, pois tal fato é condição para:

acesso às diferentes publicações; �

acesso a um universo cultural socialmente privilegiado; �

acesso ao conhecimento acadêmico; �

maior possibilidade de sucesso escolar; �

maior possibilidade de sucesso em concursos e em entrevistas, ou seja, �em processos de avaliação;

possibilidade de participação ativa nas diferentes esferas sociais; �

acesso a diferentes textos orais e escritos. �

Aquisição da linguagem oral1. É necessário que o adulto atribua significado às manifestações da criança

desde seu nascimento, uma vez que as considerada como potencialmente comunicativas e significativas, qualquer que seja seu conteúdo expressivo (choro, gesto, vocalização, balbucio, palavra). Deve assumir o papel de intér-prete e de estruturador do discurso da criança, inserindo-a num jogo dialó-gico e simbólico.

2. Os três processos são: especularidade, complementaridade e reciprocidade.

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Gabarito

Problemas relativos à aquisição da linguagem oral1. Retardo de aquisição da linguagem caracteriza-se a partir da utilização de

gestos, de um vocabulário reduzido e de estruturas sintáticas primárias. Crianças com idades acima de seis anos que permanecem utilizando ges-tos e formas de manifestação oral próprias de crianças menores fazem parte desse quadro.

2. Distúrbio fonológico consiste na dificuldade e/ou impossibilidade de articu-lação de sons da fala. Tais ocorrências manifestam-se durante a produção da fala a partir de omissões, substituições e distorções de sons.

3. O termo “gagueira” significa interrupção na fluência da produção verbal que se constitui a partir de repetições ou prolongamentos involuntários, audíveis ou silenciosos, na emissão de fragmentos da fala, como de sons, sílabas e palavras. Estas interrupções são recorrentes ou têm caráter marcante e não são prontamente controladas.

Aquisição da linguagem escrita: autoria e reescrita1.

Ser autor é ser capaz de, para além do domínio de regras e normas, produ- �zir efeitos de sentido pretendidos numa dada situação.

Ser autor é constituir-se como um leitor de textos que pode apreender �sentidos formulados por quem escreve e ir mais longe, elaborando seus próprios sentidos e interpretações a partir daquilo que lê.

As tensões e os movimentos próprios da condição de autoria de um texto �escrito são parcialmente apagados do seu produto final, resultando em uma certa unidade que produz a ilusão de linearidade da escrita.

2.

Chamar atenção e interpretar aspectos de forma ou de significação lin- �guísticas que, de alguma maneira, tenham adquirido saliência particular para a criança, provocando inquietações, para as quais ela, com a partici-pação do educador, vai buscar soluções.

Assumir o lugar de interlocutor/intérprete de seus textos, formulando ques- �tões que pudessem tornar visíveis à criança os efeitos de suas produções.

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Aquisição da linguagem escrita: as relações entre a oralidade e a escrita1.

A escrita não é uma representação da fala. �

A oralidade e a escrita devem ser tratadas como linguagens interativas e �complementares no contexto das práticas sociais e culturais.

A fala e a escrita se constituem como processos discursivos e de significa- �ção que empregam o mesmo sistema linguístico.

As produções orais e escritas implicam estruturas textuais, ortográficas e �segmentais próprias, pois são fruto de contextos interacionais distintos.

2.

Uma mesma letra pode ser articulada a partir de sons distintos. �

Um mesmo som pode ser grafado por diferentes letras. �

Letras presentes na escrita de palavras que não são articuladas na fala. �

Muitas palavras são pronunciadas de diferentes formas em razão das va- �riedades linguísticas regionais, interacionais, estilísticas.

O fato de no português as letras apresentarem ou não um uso alfabético, �assumindo, em alguns casos, um valor silábico.

Utilização de duas letras para representar um som. �

Problemas relativos à aquisição da linguagem escrita: aspectos formais1.

Uma mesma letra ser articulada a partir de diferentes sons. �

O mesmo som ser escrito a partir de diferentes letras. �

Letras presentes na escrita de palavras que não são articuladas na fala. �

Letras que assumem um valor silábico. �

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Gabarito

2. Pares mínimos são sons articulados praticamente da mesma forma, só ha-vendo uma distinção em relação ao traço de sonoridade. Tais sons corres-pondem, dentre outras, as seguintes letras: p e b, t e d, f e v.

Problemas relativos à aquisição da linguagem escrita: aspectos semânticos e estruturais 1.

o fato de a leitura e a escrita não fazerem parte de suas vidas de forma �significativa e prazerosa;

o fato de, a exemplo de adultos que as acompanham, sentirem-se incom- �petentes e inseguras para o domínio da leitura e escrita. Em outras pala-vras, terem introjetada a noção de incompetência linguística.

2. Dentre os fatores relacionados às dificuldades de elaboração de um texto es-crito com um conteúdo organizado, que produz um efeito de coerência sobre o outro a quem se destina a produção, destacamos o fato de as crianças

não conseguirem compreender as distinções existentes entre os textos �orais e escritos, realizando, em muitos casos, uma transposição da organi-zação do discurso oral para a produção escrita;

não conseguirem se colocar no lugar de leitor de seus textos e, portanto, �não preverem a necessidade de reestruturações que garantam a sua coe-rência e coesão.

O normal e o patológico na linguagem1.

sustenta a ideia de que o normal e o patológico não são fatos objetivos, �nem mensuráveis.

ao definir o patológico ou o anormal pelo viés do excesso ou da falta, conside- �ra que o estado dito normal é normativo, ou seja, é atribuído a ele um valor.

tomar o estado normal como medida do patológico, implica anular as �possibilidades de existência do patológico e a busca constante de sua aproximação com o normal.

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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão

2.

nem sempre as causas dos problemas podem ser conhecidas ou isoladas �num único aspecto;

nem sempre essas causas poderão ser associadas a sintomas que estabe- �lecem regularidades;

nem sempre a definição de um quadro patológico, com base em causas e �sintomas instáveis, diferencia-se objetivamente de outros quadros.

Linguagem e fracasso escolar1.

Modelos teóricos e propostas que concebam a linguagem enquanto uma �prática social, historicamente constituída.

Modelos teóricos e propostas que concebam a linguagem como constitu- �tiva dos sujeitos, da humanidade e, portanto, das formas de organização de cada sociedade.

A consciência da necessidade de uma reflexão em torno das experiências �individuais com a linguagem, não no sentido de situá-las na história pas-sada, mas de entendê-las como parte da história do grupo social a que cada um pertence.

A consciência da necessidade de uma ação ampla que envolva as políticas �de cultura e educação, para tornar o acesso às linguagens oral e escrita uma realidade.

2. Porque ao classificarmos a produção da variedade padrão como sinal de normalidade e a sua não produção como de anormalidade nossa ação em direção a um grupo significativo de crianças em processo de aquisição re-sulta na exclusão escolar e social. Isso por que implica na desqualificação de manifestações orais e escritas possíveis e significativas.

A linguagem e o ensino no processo de inclusão e de exclusão social1. Cultura dominante é toda forma de conhecimento considerada “consagra-

da”. O “saber científico”, por exemplo, é “dominante” perante outras formas

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Gabarito

de saberes. A “arte consagrada”, como a pintura e a literatura clássicas, tam-bém é “dominante” sobre outras formas de expressão. Essas “formas de co-nhecimento” estão ligadas aos próprios grupos sociais que as geraram e às relações que esses mesmos grupos estabeleceram com o mundo e com a sociedade. Estão ligadas, portanto, às “linguagens” específicas que marcam a relação desses grupos entre si e com o mundo.

2. Quanto mais próximas estão as crianças da “linguagem escolar”, mais aquilo que é transmitido tem “sentido”. Quanto mais distantes elas estão – em fun-ção do contexto social de origem dessas crianças – , mais “sem sentido” repre-senta aquilo que é transmitido pela escola, por meio da “linguagem escolar”.

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Anotações

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