psicanalise e ciencia o encontro dos discursos

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779 Psicanálise e Ciência: o encontro dos discursos Sonia Alberti Professora Adjunta do Instituto de Psicologia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Membro do Colegiado do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise da UERJ. Pesquisadora do CNPq. Psicanalista Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano. End.: R. João Afonso, 60 casa 22. Rio de Janeiro, RJ. CEP: 22261-040. E-mail: [email protected] Luciano Elia Professor Titular do Instituto de Psicologia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Membro do Colegiado do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise da UERJ. Psicanalista Membro da Laço Analítico Escola de Psicanálise. End.: Praia do Flamengo, 180/302. Rio de Janeiro, RJ. CEP: 22210-030. E-mail: [email protected] Resumo A rejeição à psicanálise por parte de inúmeros autores que se pretendem defensores do discurso científico, pela via que não deixa de ter seu lastro no positivismo, exige do psicanalista uma verificação dos paradigmas que articulam Psicanálise e Ciência. A particularidade da proposta desse texto é o fato de que parte de uma análise histórica em associação com a posição de Freud para então REVISTA MAL-ESTAR E SUBJETIVIDADE – FORTALEZA – VOL. VIII – Nº 3 – P . 779-802 – SET/2008

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Psicanalise e Ciencia o Encontro Dos Discursos

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    Psicanlise e Cincia: o encontro dos discursos

    Sonia Alberti

    Professora Adjunta do Instituto de Psicologia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Membro do Colegiado do Programa de Ps-Graduao em Psicanlise da UERJ. Pesquisadora do CNPq. Psicanalista Membro da Escola de Psicanlise dos Fruns do Campo Lacaniano.

    End.: R. Joo Afonso, 60 casa 22. Rio de Janeiro, RJ. CEP: 22261-040.

    E-mail: [email protected]

    Luciano Elia

    Professor Titular do Instituto de Psicologia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Membro do Colegiado do Programa de Ps-Graduao em Psicanlise da UERJ. Psicanalista Membro da Lao Analtico Escola de Psicanlise.

    End.: Praia do Flamengo, 180/302. Rio de Janeiro, RJ. CEP: 22210-030.

    E-mail: [email protected]

    ResumoA rejeio psicanlise por parte de inmeros autores que se pretendem defensores do discurso cientfico, pela via que no deixa de ter seu lastro no positivismo, exige do psicanalista uma verificao dos paradigmas que articulam Psicanlise e Cincia. A particularidade da proposta desse texto o fato de que parte de uma anlise histrica em associao com a posio de Freud para ento

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    identificar trs momentos no ensino de Lacan em que este interroga as relaes da Psicanlise com a Cincia. Inicialmente, responde pergunta se a psicanlise pode ser uma cincia com a associao da psicanlise s cincias conjecturais, na contraposio das cincias experimentais. J nesse momento distinguia claramente a psicanlise das cincias ditas humanas. No entanto, essa no deixa de ser uma proposta que, com Popper, corre o risco de enfatizar mais ainda a viso positivista da epistemologia. A grande virada ser dada no momento em que Lacan situa o sujeito no centro dessa questo, ao observar que o sujeito est em uma relao com o objeto no campo mesmo em que se constitui como sujeito. Tal observao s toma consistncia com a inveno do objeto a. Com essa nova formulao da questo, Lacan pode avanar e perguntar se a cincia comporta a experincia psicanaltica, abrindo finalmente novas vias de interrogaes que apresentaremos identificando algumas maneiras de abordar o tema.

    Palavras-chave: psicanlise, cincia, discurso, saber, real.

    AbstractThe fact that psychoanalysis is being rejected by a quite significant amount of authors who supposedly stand for the scientific discourse, a quite positivistic point of view, forces the psychoanalyst into a verification of the paradigms which articulate Psychoanalysis and Science. The specificity of this article is due to it`s departure on an historical analysis discussed in association to Freud`s ideas about the place of psychoanalysis in sciences, followed by an identification of three moments in Lacan`s discussion on the subject. Initially, the discussion about the possibility of Psychoanalysis being a Science is answered by Lacan through an association of Psychoanalysis with conjectural sciences, opposed to experimental sciences. At this moment the author distinguished clearly between psychoanalysis and the so called human sciences. Nevertheless, this is still a proposition which can be told as still emphasizing more a positivistic version of epistemology with Popper. The big turning point will be given by Lacan at the moment in which he situates the subject in the centre of this question, observing that the subject is in relation with the object in the very field in which it is constituted. This observation only attains consistency with the invention of the object a. At this moment Lacan can step forwards and ask if science may sustain the

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    psychoanalytic experience, and new paths are opened for further discussions that we present by identifying some possibilities to address the topic.

    Keywords: psychoanalysis, science, discourse, knowledge, real.

    A Questo Partimos da questo ainda e eterna de Canguilhem: O

    que Psicologia? e que retomamos, parafraseando-o:

    , pois, muito vulgarmente, que a filosofia coloca para a psicologia a questo: dizei-me em que direo tendes, para que eu saiba o que sois. Mas o filsofo pode tam-bm se dirigir ao psiclogo sob a forma uma vez que no costume de um conselho de orientao, e dizer: quando se sai da Sorbonne pela rue Saint-Jacques, pode-se subir ou descer; se se sobe, aproxima-se do Panteo, que o Conservatrio de alguns grandes homens, mas se se desce dirige-se certamente para a delegacia de Polcia (Canguilhem, 1958/1972).

    Ao identificar no texto de Canguilhem um humor swiftiano, Lacan relana sua pergunta quanto a um possvel encontro da psi-cologia com seu fracasso. No h cincia do homem, observa ele, em mais uma de suas frases que parecem escandalosas se suas razes no so lidas: no h cincia do homem porque o homem da cincia no existe, mas apenas seu sujeito (Lacan, 1966/1998a, p. 873), com exceo da psicologia, continua, porque a psicolo-gia descobriu meios de se perpetuar nos prstimos que oferece tecnocracia, e at, como concluiu, com humor realmente swiftiano, um artigo sensacional de Canguilhem, numa deslizada de tobog do Panteo delegacia de Polcia (ibid:873-4).

    Quando oferece seus prstimos tecnocracia, a psicologia , por excelncia, a cincia do homem no real sentido da expres-so, pois a nica que desconsidera o fato de que o homem da cincia no existe, a nica a desconhecer que, para fazer cincia, h que se ser sujeito. De resto, lemos no Seminrio 17 de Lacan que o discurso da cincia no deixa nenhum lugar para o homem (Lacan, 1992/1996, p.171).

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    Explicamos: a Psicologia um saber absolutamente novo no final do sculo XIX sculo que foi o palco das grandes ba-talhas que a criaram (cf., a esse respeito, Alberti, 2003). Por um lado identificado com aquele que Canguilhem associa subida da rue Saint-Jacques em Paris , a Psicologia pode colocar gran-des questes, imagem dos grandes homens imortalizados no Panteo, por outro, porm, a Psicologia j se mostrava, em 1958 data da publicao do texto de Canguilhem , gravemente asso-ciada ao discurso capitalista que introduzia parmetros no afazer cientfico, que desde ento s se cronificaram e que a perpetua-ram nos prstimos que oferece tecnocracia, como diz Lacan, fazendo dela (a Psicologia) um instrumento de Polcia.

    Com efeito, aquele palco das grandes batalhas que criaram a Psicologia, ou seja, o sculo XIX, preparou o terreno para aquilo que associamos articulao que Thomas Khun (1962/1979) faz da cincia com a ideologia: houve uma profunda diviso quanto considerao do que cincia em funo da interseo que a cin-cia passou a ter com as ideologias e, sem dvida, com a economia. As questes que isso introduz so tantas, que evidentemente no poderemos tratar delas aqui de forma exaustiva. Mas isso no impede que as delineemos, um pouco pelo menos. Adiantamos, no entanto, que tais questes no deixam de ser enormemente produtivas: nunca se escreveu tanto em nome da cincia, nunca se trabalhou tanto na articulao com a cincia, alm do fato de que a postura diante do saber na interlocuo com o que Lacan, no Seminrio 17, de 1969-70 (1992/1996), chamaria de discurso universitrio, introduziu parmetros que so hoje seguidos inde-pendente da ideologia a que nos afiliamos, na medida em que todos estamos submetidos ordem da produo: de orientao, de artigos, de conferncias, de teses, independente de sua qua-lidade... o que importa que a produo contada em nmeros, ela contabilizada, demonstrando que, independente da ideolo-gia a que nos afiliamos, estamos todos muito bem submetidos aos desgnios do discurso do capitalista, querendo ou no!

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    O discurso da cincia, com Freud e Lacan muito freqente toparmos hoje com textos que consideram

    a Psicanlise uma folk psychology alheia a qualquer preocupao cientfica. Tal considerao emana de textos que militam (termo que utilizamos aqui por identificar estes textos com uma ideologia, justamente porque seus autores consideram que eles sim, fazem cincia, e no os psicanalistas) por uma Psicologia anatomo-fisio-lgica. Na realidade, com Foucault (1963/1980) que podemos identificar a anatomia como parmetro fundamental na ruptura com uma forma de fazer cincia no sculo XIX, enquanto ser Lacan (1966/1998a) quem acrescentar a este parmetro de Foucault, a importncia da fisiologia para a corrida pelo cientificismo da clnica. Os que militam identificando a psicanlise a uma folk psychology, so contrrios a qualquer orientao que identifica a Psicologia com o estudo do sujeito, articulado linguagem, e que se apresen-ta hic et nunc na transferncia atravs da fala, lugar em que este sujeito um significante que o representa para outro significante, deixando sempre um resto impossvel de dizer. Historicamente, portanto, nunca terminaremos por retomar esse tema como alis outros autores j o observaram (cf., Kahl, 2002) pois a cada vez que se coloca uma questo dessa ordem psicanlise, melhor ela deve responder. No h dvida de que sua articulao com a lin-guagem lhe d o suporte para formalizar sua resposta (Beividas, 2000). Traamos com isto uma definio muito genrica do sujeito na contramo da Psicologia antomo-fisiolgica, definio laca-niana que, no entanto, passvel de ser aplicada, de uma forma geral, a todas as correntes psicolgicas que aqueles poderiam as-sociar com uma psicologia popular, por no se sustentarem nas premissas por eles cultivadas da antomo-fisiologia. Ou seja, no s a Psicanlise, mas todas as correntes psicolgicas que viriam se contrapor, no incio do sculo XX, a uma ideologia cientista ba-seada no boom cifrador das taxionomias do comportamento e da contabilizao de seus parmetros, tanto via testes psicolgicos que hoje so cada vez de maior ponta, com a contribuio da Psicologia cognitivo-comportamental , quanto via graus de com-prometimento desadaptado. A estes militantes preciso perguntar de que maneira concebem e identificam a cincia.

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    preciso estabelecer, com clareza, o que o termo Cincia, como categoria epistemolgica, designa. Em uma perspectiva rigorosa, entende-se por Cincia o modo de produo de conheci-mento que, seguindo os parmetros metodolgicos estabelecidos por Galileu e interpretados pela arquitetura discursiva de Descartes, se caracteriza por: a) despojamento das qualidades sensveis ou anmicas do objeto que se trata de conhecer; b) uso da linguagem despojada de significaes compreensveis e compartilhadas pelo saber comum na formulao do discurso terico; c) obedincia estrita ao princpio da contingncia e da universalidade, segun-do o qual todo e qualquer elemento a ser estudado poderia ser infinitamente diverso do que , nada o obrigando, previamente, a ser como , e cabendo justamente cincia esclarecer os modos pelos quais ele chegou a ser como . Ora, esses elementos ca-racterizam o mtodo hipottico-dedutivo criado por Galileu, do qual a verificao a ltima etapa, e a esta linhagem que Freud se filia, diretamente, sem ambigidades e sem outras mediaes discursivas. A Psicanlise, neste sentido, estritamente derivada do mtodo inaugural da cincia moderna, e se no permanece no campo da cincia, por operar neste mtodo uma subverso ra-dical, pela qual introduz, na cena (por isso dita Outra cena, a do inconsciente), precisamente, aquilo que o discurso da cincia, por ser a-semntico, universal e contingente, introduziu mas, no mesmo golpe, expeliu de seu campo operacional: o sujeito (e no o homem). A psicanlise opera com o sujeito, o mesmo da cin-cia, que no entanto sobre ele nada opera.

    J em uma outra perspectiva, aquela a que aderem os atu-ais militantes da cincia do comportamento, e que consideram, por isso, a Psicanlise como uma folk psychology, a Cincia seria o procedimento que parte da observao da realidade, recortada em dados da ordem do particular, estabelece correlaes cada vez mais precisas at chegar a estabelecer determinaes causais de carter geral. Tal procedimento caracteriza o que se denominou, na histria epistemolgica, o mtodo emprico-indutivo, muito mais derivado da filosofia empirista inglesa, sobretudo de John Locke, e retomado pelo positivismo com que, com Augusto Comte, as cincias humanas e sociais ingressaram nesse filo, do que derivado das balizas metodolgicas que presidiram o momento

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    inaugural da cincia moderna, com Galileu. No espectro traado por Gaston Bachelard em O Racionalismo aplicado (Bachelard, 1948/1977), essas duas tendncias metodolgicas encontram-se em franca oposio. O mtodo emprico-indutivo no parte de pos-tulados lgicos, e sim de premissas que, por no se desprenderem da realidade que pretende observar tal como ela , acabam por tornar-se ou fenomenolgicos, ou ontolgicos, e no se aspira a formulaes universais, do tipo que Karl Popper (1934/1977) es-tabeleceu como exigveis aplicao da prova de refutabilidade emprica. Tampouco mtodo emprico-indutivo opera segundo o princpio da contingncia: a tese de que os processos subjacen-tes a todo e qualquer quadro psicopatolgico, para darmos um exemplo concreto disso, so de natureza neural, organicamen-te identificveis, no considera a contingncia da incidncia dos efeitos da linguagem, do significante, do elemento material e as-semntico na constituio do sujeito, por exemplo. Recalcando o contingente, ingressa no necessrio da determinao neurolgi-ca: h de haver disfuno em algum neurotransmissor, questo de tempo encontr-la. Isso constitui uma petio de princpio, ex-presso com que Freud, empregando-a em ingls no seu texto (it begs the question) acusa Jung, justamente para demonstrar que sua dmarche no cientfica (Freud, 1914/1975a, p. 47).

    Assim, em toda discusso que se pretenda metodolgi-ca e epistemolgica sria sobre as relaes da Psicanlise e da Psicologia com a Cincia, preciso saber que concepo de ci-ncia norteia os diferentes argumentos.

    Retomemos, assim, a grande preocupao de Freud em se dizer articulado com o discurso da cincia. Com efeito, j na-quela poca, demonstrar que se est inserido em tal discurso era condio sine qua non para buscar um lugar no panteo reto-mamos somente a referncia a Canguilhem dos autores a que se daria algum crdito. Com Freud, a grande preocupao era que se pudesse verificar o vnculo da Psicanlise com a Cincia, e tal preocupao era a verdadeira razo de sua evidente insistncia na importncia da Cincia para a Psicanlise. que, no fundo, Freud acreditava na Cincia como via exclusiva do que podemos associar ao conceito kantiano de Erkenntnis (conhecimento e/ou reconhe-cimento), e essa era, para ele, razo suficiente e completamente

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    mais importante do que qualquer idia que pode se associar a isso depois quanto ao fato de que Freud no veria outra maneira de introduzir um novo saber no campo dos discursos crveis se a veri-ficao por uma cientificidade no se desse! No entanto, para ns, o trabalho cientfico o nico caminho que pode levar ao conhe-cimento [Kenntnis] da realidade exterior a ns (Freud, 1927/1974, p.165-6). Freud tinha total conscincia da falibilidade da percepo, pois sabia perfeitamente que a realidade tem a forma e o contedo que lhe atribumos. Para Freud, toda realidade psquica. Assim, a cincia para ele o nico modo de tratar da realidade psquica esta que, por exemplo, se atualiza, como realidade sexual prpria do inconsciente, na transferncia, sem confundir com ela a opera-o do analista, aquele que opera sobre esta realidade psquica, ou seja: se a realidade sempre psquica, interna-e-extena a um s tempo, a operao analtica, para incidir eficazmente sobre ela, no poder apoiar-se na realidade psquica do operante, isto , o analista, e sim naquilo que, extrado desta realidade, a causa que a sustenta, ex-sistente a ela.

    com Lacan que o alcance da preocupao de Freud sobre a relao da Psicanlise com a Cincia pode ser definitivamente ex-plicitada. Foram fundamentais seus trs registros real, simblico e imaginrio para introduzir os parmetros que dariam condies ao psicanalista e ao terico da psicanlise de se situar no de-bate no qual chamado a responder aos militantes que identificam a psicanlise com uma folk psychology.

    O Simblico e a Res CogitansO sculo XVII conheceu toda uma nova Weltanschauung e

    se deu o incio da investigao cientfica, numa proposta de de-sassociar as influncias teolgica e escolstica da investigao da realidade. O golpe que a Cincia Moderna perpetrava nas certezas compartilhadas pelos homens, seja quanto ao lugar da Terra em relao aos astros e ao cu, seja na destituio do prprio cu, o Cosmos, entendido como o mundo fechado que estava em cima de todos ns, e a criao, em seu lugar, do universo infinito que no tem mais nem em cima nem embaixo, em que todos os as-tros giram, inclusive a Terra, em torno de astros mais importantes embora no povoados de humanos, tudo isso produziu o que pode-

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    ramos, a justo ttulo, nomear, com a Psicanlise, de momento de angstia na Humanidade. Nenhum momento seria mais propcio para o surgimento do sujeito, ainda segundo a mesma Psicanlise. Neste momento to singular e crucial da histria da humanidade, e diante da incerteza quanto realidade do mundo objetivo (da reali-dade exterior a ns, para retomar as palavras de Freud) em funo do corte com o dogmatismo religioso , Descartes, em um gesto que desloca o homem da angstia aguda, afirma a certeza do co-gito Penso, logo sou. O homem, que em um primeiro momento do Cogito ganha o estatuto do ser porque pensa, disso no po-dendo duvidar, como duvidou de todas as demais coisas, ou seja, este homem que acedeu condio ontolgica por uma opera-o do pensamento, que se constitui, no plano subjetivo, como a certeza que sucede a dvida, passa, a partir deste ato, a poder tambm existir, porque passvel de uma inscrio no mundo do simblico. Descartes distinguiu um mundo em que as coisas exis-tem atravs de sua representao conceitual, deixando de fora outro mundo, onde as coisas no so conceituadas. Era, ento, a criao de um novo discurso: o da cincia.

    Com Descartes foi possvel a construo de uma linguagem conceitual dentro da qual os objetos, que at ento no haviam acedido condio de existentes no plano conceitual, na medida em que a Cincia, no tendo ainda feito sua apario discursiva no mundo, no havia portanto constitudo sujeito e objeto como duas categorias conceituais a travarem, entre si, a relao fun-damental de produo do conhecimento, passaram a ocupar um lugar proeminente entre as operaes cientficas. O cogito carte-siano inaugura uma ciso do objeto na cincia e, por conseguinte, no discurso: de um lado, o objeto real por exemplo, a estrela no cu , de outro, o objeto construdo enquanto conceito, ou seja, a simbolizao do objeto, a estrela formulada no papel do astrnomo fazendo-a existir no clculo cientfico, substituindo metaforicamente aquela que continua no cu. O Cogito ergo sum , fundamental-mente, a possibilidade de dar existncia ao objeto do pensamento, distinto da imagem que temos dele e distinto do real.

    Depois de Descartes nascido exatamente duzentos e ses-senta anos antes de Freud o discurso da cincia j propunha, claramente, que o campo da cincia aquele em que s existem o

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    que Freud chamou de Vorstellungen (representaes), ou seja, h um mundo, que o das representaes, com o qual o cientista tra-balha. Tais representaes esto submetidas a leis especficas de cada cincia e no podem ser transpostas para outros campos. Entretanto, no que concerne Psicanlise, a operao no se reduz a uma diferena que a particularizaria como uma cincia entre outras, todas passveis de inscrio em um mesmo registro metodolgico. A Psicanlise no cabe inteiramente no universo da representao.

    Na medida em que o significantizamos, o sujeito reduzido a um trao mnmico, sua representao enquanto trao, marca significante que presentifica o prprio sujeito na fala quando diz: eu. Trata-se ento do eu como inscrio, do eu enquanto fi-gura gramatical que tanto pode ser sujeito, quanto objeto, e que, por isso, no passa de um significante, de um shifter, tal como Jakobson (1957/1971) o definiu por emprstimo a Jespersen, in-dependente de tudo o que possvel imaginar sobre esse mesmo sujeito. O sujeito, contudo, no se reduz ao significante, ao trao com o qual o inscrevemos no plano simblico. Seu ser de sujeito irrecupervel no simblico, o que, longe de reduzir a importncia do trabalho simblico, confere-lhe uma dimenso a mais: a de bor-dejar, contornar o furo real de modo a permitir que o sujeito se situe em relao ao que no pode domesticar pelo saber e pelo dizer.

    Com o cientista ocorre a mesma incidncia do impossvel matriser, a dominar, a prever e controlar. A diferena que o cien-tista encontra esse limite na sua relao com os objetos do mundo que tem a conhecer e dominar, enquanto que para o psicanalista esse limite dado, por assim dizer, internamente: sua prpria condio de objeto que lhe escapa, em sua prpria experincia como sujeito. isso que Lacan quer dizer quando afirma que o sujeito est, se assim podemos dizer, em excluso interna ao seu objeto (Lacan, 1966/1998a, p. 875); disjunto dele, o sujeito no entanto est em uma relao com o objeto que o situa no campo mesmo em que se constitui como sujeito.

    A psicanlise filha da cincia na medida em que se atm s determinaes criadas por Descartes, segundo as quais h um pensvel e um impensvel, um dizvel e um indizvel, um concei-tuvel e um impossvel a conceituar. Freud no poderia ter dado a

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    virada sozinho, claro, houve quem o buscasse na mesma poca, a coisa estava no ar, era um novo Zeitgeist. E sobretudo estava no ar porque o discurso da cincia tambm se fortalecia, em rede, nos diferentes campos.

    Lacan, a partir de sua formao, que incluiu a influncia do Estruturalismo, com apogeu em meados do sculo XX, na Europa, pde articular tal mundo particular o da cincia com o simb-lico. Simblico, real e imaginrio so os trs registros nos quais o ser falante o ser humano transita. Se o discurso da cincia afir-ma um mundo no simblico, e pelo fato de que este simblico estritamente submetido a leis que o particularizam, ento em cada cincia h aquilo que lhe externo. Como dissemos acima, h li-mites e a cincia se define como um saber ciente de seus limites, poderamos dizer, um saber que, em princpio, leva em conta a cas-trao ela no pode tudo. A cincia se restringe, encontra seu limite no fato de que s pode afirmar algo na medida do dito, do que passvel de ser dito. O resto no do campo do simblico e, portanto, inatingvel pela cincia. Esse seu limite. Todo cientista sabe, hoje, que as operaes que executa no se do num para-lelismo biunvoco com o mundo natural, mesmo quando pode, em alguns momentos, estabelecer uma relao entre ambos os cam-pos o conceitual (ou simblico) e o natural. Descartes funda o que Foucault (1966/1992) chamou de episteme da representao, solo discursivo da Cincia Moderna, no qual algumas antinomias se sustentam teoria/realidade, mundo conceitual/mundo real, entre outras, e cujo pice Kant, o filsofo que interpretou filosoficamen-te a Fsica Moderna. Posteriormente, a partir de Hegel, emergiu a episteme da Histria, marcada pelo materialismo dialtico e con-creto, que j rompe, de certo modo, com a representao, por no admitir a dualidade teoria/realidade que a funda, introduzindo, em seu lugar, o movimento discursivo concreto da prxis teorizada. s depois deste ltimo, no sem relao com ele, que emerge a Psicanlise como discurso, o que torna, portanto, impossvel situ-la no plano da episteme da representao. que a psicanlise se dirige ao sujeito, e este no um mero shifter, um elemento da lin-guagem, um trao, nem mesmo um significante, e sua condio mais real a de objeto.

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    interessante articular essa afirmao com a condio do sujeito do significante, e do modo como Lacan escreve a defini-o mesma desse, utilizando, nos termos desta definio, a sua relao com o sujeito: um significante aquilo que representa um sujeito junto a outro significante. Aparentemente, Lacan est plenamente situado no campo da representao. Ocorre, contudo, que exatamente para saturar esse campo que ele define desta forma: se o significante representa, sempre para outro, e s pode representar um sujeito, nada mais fazendo alm disso, e estando claro que um sujeito s poderia ser representado por um signifi-cante, e nunca por qualquer outro elemento. O significante no idntico a si mesmo, e essa no-identidade transmitida ao sujei-to por ele representado: Por exemplo, quando algum diz: Eu me represento..., o eu representado difere do sujeito que fala. Assim, eu diferente de eu, como a pode ser diferente de a na l-gica matemtica, ou um cachimbo pode no ser um cachimbo e de fato no o , como na obra de um Magritte.

    Com efeito, com o estudo da linguagem que a ordem sim-blica pode encontrar toda sua particularidade. Buffon, j no sculo XVIII, definia a cincia como a lngua bem feita, ou seja, como lngua capaz de dar conta do fenmeno, capaz de bem dizer o fe-nmeno. Por outro lado, a psicanlise se distingue da cincia na medida em que no se restringe a estudar o pensvel, o dizvel e o conceituvel, ela tambm se ocupa do impensvel, do indizvel e do impossvel a conceituar. Conforme os trs registros propostos por Lacan para estudar o campo da realidade psquica, se a exis-tncia est do lado do simblico, do que se afirma no simblico, e que reduz as coisas ao significante que as representa para outro significante, ento h, necessariamente, algo que escapa exis-tncia, o que no redutvel a tal representao, que no pode ser representado por um significante para outro significante! Define, em conseqncia, o real como o que est fora do simblico. O sim-blico o que existe, o real ex-siste ao simblico e o imaginrio d a consistncia das Gestalten que formamos. Estas se susten-tam nos significantes, mas, levando em conta a descontinuidade que h entre um significante e outro, o imaginrio a construo que cada um projeta da realidade para velar o abismo do real que, de outra forma, teramos que encarar regularmente quando pas-

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    samos de um significante a outro. Tal imaginarizao sempre traz consigo um ou outro engodo, na medida em que a realidade que gestaltizamos tributria da realidade psquica de cada um, sus-tentada na fantasia conceituada por Freud e Lacan como resposta do sujeito humano ao impossvel de compreender. Imaginamos, ou seja, construmos a nossa realidade porque ainda cremos neces-sitar compreender a articulao das coisas. Eis tambm porque vedado ao psicanalista tentar compreender, como explicita Lacan j no seu terceiro seminrio, pois quem articula o sujeito e este o paciente. O psicanalista, ao contrrio, submetido como est ao discurso da cincia o que, no entanto, no faz dele um cien-tista deve deixar sua ateno flutuante para articular a estrutura da fala do sujeito.

    Se o mundo da cincia o mundo das representaes, no h meta-representaes para a cincia. As representaes que representam as representaes so outras tantas representaes que se estruturam com as primeiras, justamente, em rede. Da a famosa frase de Lacan: no existe a metalinguagem. E da tambm a expresso de Freud, que tantas vezes confundiu os tradutores, atravs da qual se referia inscrio psquica de uma experincia tanto de satisfao quanto de desprazer como Vorstellungsreprsentanz, ou seja, o representante da representa-o. Toda experincia de satisfao, como Freud a conceitua em seu Projeto, memorizada como trao mnmico. Tais represen-tantes freudianos so os significantes da conceituao de Lacan, eles constituem o saber inconsciente. Como sempre, quando voc afirma algo no simblico deixa de fora uma poro de coisas im-possveis de assim afirmar, ao representante da representao corresponde um real o que fica fora do simblico, como con-ceituado. Conclui-se, da, uma poro de coisas, entre elas que o saber (que em psicanlise sempre inconsciente) um subcon-junto deste mesmo inconsciente, onde h bem mais no saber do que saber e que est do lado do sujeito enquanto vazio de signi-ficantes, poderamos dizer, do lado do real do sujeito. o que a cincia exclui de seus clculos: o real do sujeito. Para a cincia, o sujeito somente uma varivel passvel de mensurao quando interfere num experimento cientfico, por exemplo. No esse o sujeito da psicanlise, o sujeito da psicanlise o sujeito da fala,

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    sempre cindido, sempre da paixo (do pathos, ele sofre) e portan-to, distinto tambm de qualquer forma de individualidade emprica (Milner, 1995, p. 33).

    Assim, para referir a psicanlise metodologia cartesiana h que se pens-la como mtodo de investigao o que ela , desde os primrdios, desde os primeiros textos de Freud , mas um m-todo de investigao que se inscreve no discurso da cincia por inserir-se nos mesmos fundamentos de qualquer cincia moderna (Descartes) , com o nico intuito de resgatar aquilo que a cincia propriamente dita excluiu de seu mbito: o sujeito. De forma que podemos dizer que a psicanlise encontrou um lugar na cultura cien-tfica por se ocupar do que a cincia exclui, resgatando um campo de conhecimento e eliminando deste campo a superstio.

    Foi na condio de sujeito que Descartes, instigado pelo de-sejo de separar o verdadeiro do falso, realizou o corte cientfico, e nessa trilha que a psicanlise de Freud, com Lacan, estuda a re-lao entre cincia e verdade. A situao hoje se coloca de nova forma porque inclui o discurso do capitalista... e inmeros traba-lhos a examinam. Se o discurso do psicanalista, ao situar o saber no lugar da verdade, subverte, em um giro discursivo, a posio do sujeito, independentemente de suas crenas, o discurso da ci-ncia, por sua vez, quando submetido aos imperativos do discurso capitalista, nega a existncia do sujeito do inconsciente e, portan-to, da castrao que o constitui.

    A Revoluo DiscursivaA partir de meados do sculo XX, com a crescente influn-

    cia do discurso do capitalista no discurso da cincia influncia que se inaugurou no sculo XIX sem dvida houve um retrocesso quanto descoberta de Freud. Na tentativa de vender os produtos cientificistas, voltou-se a crer que h um mundo da representao para alm dela mesma, chega-se at mesmo a buscar as represen-taes psquicas nas imagens tomogrficas ou nas ressonncias magnticas que servem neurologia. No entanto, trata-se de dois saberes diferentes a neurologia um, a psicanlise outro e cada um tem seu corpo terico-conceitual e seu recorte da rea-lidade, deixando de fora, como dito, uma poro de coisas...

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    fundamental ento termos claro que no h possibilidade de uma relao biunvoca entre ambas, ou seja, que no possvel dizer que o que se pensa tem representao no crebro, nem que as le-ses cerebrais e a antomo-fisiologia tenham qualquer correlato intrnseco com o psiquismo do ser falante (cf. Alberti, 2006)!

    Com o positivismo, as cincias do homem foram colocadas no topo do edifcio das cincias experimentais e se, por um lado, com isso, foram reconhecidas, por outro, em realidade, subordi-nadas. Essa noo provm de uma viso errnea da histria das cincias, baseada no prestgio de um desenvolvimento especiali-zado dos experimentos (Lacan, 1953/1998b, p. 285). As razes que determinam tal engano certamente tm suas origens no prprio substrato ideolgico e mesmo econmico da revoluo burguesa, dos quais surgiram ento dois grandes movimentos:

    Em primeiro lugar, o do cientificismo das disciplinas que, at ento, se ocupavam da alma, com a finalidade de inclu-las no rol das cincias , e a reduo metodolgica de suas prticas, que cada vez mais exilam os discursos a insistirem na subjetividade. Assim, por exemplo, o que se verifica hoje nesse movimento que a prpria psicanlise certamente um saber com consistncia te-rica reduzido a uma folk psychology, no cientfica. Qualquer construo terica que no siga as bases experimentais descar-tada como no cientfica.

    E em segundo lugar, o da insistncia na importncia da sub-jetividade. Com Lacan, esse segundo movimento se verifica nos avanos particulares de algumas disciplinas, no sculo XIX, espe-cialmente: a lingstica, a etnografia estrutural e a teoria geral dos smbolos. Lacan observa que tal movimento se baseia na especi-ficidade da referncia simblica para a pesquisa da subjetividade. Em funo disso, o que associa esse movimento com a cincia no a experimentao, mas as conseqncias dos avanos da matemtica e da histria, ambos determinando uma nova forma de ver o mundo.

    Com efeito, somente a partir do Iluminismo mas sobretudo no sculo XIX , foram encontradas as respostas para inme-ros problemas matemticos at ento impossveis de resolver e que permitiram, para dar somente um pequeno exemplo, estu-

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    dar as relaes entre conjuntos coisa at ento impensvel... Isso implicar as leis da intersubjetividade no campo da lgica e da matemtica modernas. Quanto histria, tambm somente no sculo XIX que o homem pode fazer greve geral! isso no pouca coisa num mundo at ento submetido ordem do Um (s para retornar referncia matemtica).

    Ao mesmo tempo em que os discursos tentavam se inscre-ver a partir de uma relao com a cincia, como visto, impunha-se cada vez mais o organicismo, conforme o primeiro modelo, o do cientificismo das disciplinas. no segundo movimento, ao lado da lingstica, da etnologia, da antropologia, da histria e da lgica-matemtica que a psicanlise se inscreve; dentre as psicologias, no somente a psicanlise, mas sem dvida ela, do modo como queria Freud a acolher em seu campo a psicopatologia. Nela, o homem efeito lgico do entrecruzamento dos campos da lin-guagem e do gozo, e a clnica permite estabelecer este homem como capaz de elaborar, na transferncia, o que desse entrecru-zamento o adoece.

    Mas, por absurdo que isso possa parecer, ao longo do s-culo XX, a prpria psicanlise conheceu destinos que, como temia Freud (1927/1975b, p.343), quiseram esvaziar seu fundamento e a tentativa de inscrev-la no discurso mdico sem dvida foi um dos responsveis. Diante do embarao que a clnica psicanaltica apre-senta no quotidiano de sua prtica, no poucas vezes acaba-se lanando mo de explicaes que j no apostam na capacidade de o prprio sujeito elaborar seu sofrimento. Haja vista a importan-te gama de psicanalistas que hoje buscam as neurocincias para darem conta de fenmenos. Ainda nos encontramos numa gran-de Babel. Acredita-se j se estar no futuro apontado por Freud na frase O futuro poder nos ensinar a influenciar diretamente, com substncias qumicas, as quantidades de energia e suas distribui-es no aparelho psquico (Freud, 1938/1999, pp.108), e se cr que hoje j saibamos exatamente quais as afeces psquicas que efetivamente se beneficiariam das influncias eletroqumicas.

    Tal questo, muito alm de meramente terica , na reali-dade, impactante para cada psicanalista que trabalhe, tanto no consultrio, quanto em algum servio de sade mental no Brasil

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    hoje. No raro, verificamos a dicotomia entre psquico e somtico, e h verdadeiras divises nos prprios servios e encaminhamentos em funo dessa dicotomia. Assim, possvel encontrar setores, nos servios de sade, que trabalham exclusivamente com a idia de que todo fenmeno mental tem origem somtica, e outros que no levam em conta, de forma alguma, a determinao somtica dos processos psquicos. Se com Descartes houve uma diviso entre corpo e pensamento no mbito da teoria, o que se pode en-contrar hoje tal diviso na prtica clnica: ou res cogitans ou res extensa. A posio sustentada pelo discurso psicanaltico dirige-nos para a superao da dicotomia cartesiana, que no deve ser confundida com a mera adjuno interativa do somtico com o psquico, em uma lgica psicossomtica. O que a Psicanlise faz desconsiderar a dicotomia cartesiana entre substncia pen-sante e substncia extensa e rearticular tudo isso a partir de outro referencial: o da linguagem (significante) e o do gozo que dela de-corre, mas a ela no se reduz inteiramente. No seminrio sobre o ato psicanaltico, Lacan afirma:

    Eu penso, diz ele [Descartes], logo eu sou. Ele se rejei-ta invencivelmente no ser desse falso ato que se chama o Cogito. O ato do Cogito o erro sobre o ser, como podemos ver na alienao definitiva do corpo, que dele resulta, que rejeitado na extenso. A rejeio do corpo fora do pensamento a grande Verwerfung de Descartes. Ela assinalada por seu efeito que reaparece no Real, ou seja, no impossvel. impossvel que uma mquina seja corpo. Por isso o saber o prova sempre mais, co-locando-a em peas destacadas (lio de 10 de janeiro de 1968, de O Seminrio, livro 15, O Ato psicanaltico, documento de trabalho).

    O que na verdade a psicanlise prope o resgate do corpo do exlio na extenso, articulando-o, como lugar de gozo, s letras que possam cifr-lo, em uma operao que nada tem a ver com a considerao do orgnico como co-produtor do psquico (cf. Elia, 2004 e Pollo, 2004).

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    Psicanlise: de Cincia Conjectural a Saber sobre o Real do Sujeito

    No Livro II de seu Seminrio, Lacan prope que a Psicanlise inscreva-se como cincia conjectural do sujeito. Estranha propo-sio, primeira vista, quando sabemos que tal taxionomia surge na pena de um epistemlogo que, certamente, fundamenta teori-camente aqueles que renegam a relao com a verdadeira cincia de todos os saberes que no se constroem a partir da relao ne-cessria entre hiptese e teoria, para a composio do axioma e este verificado, do princpio. Com efeito, Karl Popper prope que seriam conjecturais todas as teses que se orientam a partir de uma afirmao presumida como verdadeira ou como genuna, mas cujos fundamentos so geralmente inconclusivos, de modo que no podem ser elevadas categoria de princpio, nem de te-orema. Em matemtica, so conjecturais as teses cuja verdade ainda no foi provada conforme as regras da lgica-matemtica, mas isso no impede que possam vir a s-lo. Enquanto no o so, os matemticos podem usar a conjectura provisoriamente, e todo trabalho que a usa , por sua vez, conjectural tambm.

    s vezes, a conjectura uma hiptese freqentemente e re-petidamente usada na verificao de outros resultados. Cita-se o exemplo da hiptese de Riemann, na teoria dos nmeros, que trata dos nmeros primos, e que, apesar de ainda conjectural, usada para fazer predies sobre a distribuio dos nmeros primos. Antecipando-se ao teorema que poucos matemticos duvidam vir a se constituir a partir dessa hiptese , alguns j se utilizam da hiptese de Riemann para desenvolver outras provas, contingen-tes em relao verdade dessa conjectura.

    Finalmente, nem toda conjectura termina por ser provada verdadeira ou falsa, pois se pode concluir tambm pelo indeci-dvel, o que, nem por isso, razo para considerar tal conjectura como inconsistente.

    Para Lacan ento, aproximar a psicanlise das cincias que admitem a conjectura, como a lgica e a matemtica, entre outras j citadas, tem por conseqncia aprofundar, desde a primeira hora de seu ensino e com o mximo rigor, a discusso a respeito das relaes da Psicanlise com a Cincia, questo de que Lacan

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    sempre se ocupou. Por todas essas razes, j em seu Seminrio 2, Lacan prope que a expresso cincia conjectural substitua a de cincias humanas, a fim de constituir-lhes maior rigor lgico, alm de emancip-las do jugo metodolgico que tradicionalmente essas cincias mantinham em relao s cincias naturais e exa-tas: Cincias conjecturais, eis a, creio, o verdadeiro nome que se deveria dar, de ora em diante, a um certo grupo de cincias que se designa, habitualmente, pelo termo de cincias humanas (Lacan, 1978/1988, pp. 369-70). interessante que Lacan acrescente, logo em seguida, em sua fala: No que este termo seja imprprio, j que, nesta conjuntura, da ao humana que se trata. Mas creio que seja por demais vago, por demais infiltrado e controlado por todos os tipos de ressonncias confusas de cincias pseudo-inici-ticas, que s podem rebaixar-lhe a tenso e o nvel. Ganhar-se-ia com a definio mais rigorosa de cincias da conjectura (idem).

    curioso observar que, neste momento de seu ensino, e em que pese a evidente denegao (no que este termo seja impr-prio), Lacan ainda considerava apropriada a expresso cincias humanas, como se pode ler na frase j que da ao humana que se trata. Dez anos depois, contudo, este mesmo autor dir: No h cincia do homem, porque o homem da cincia no exis-te, mas apenas seu sujeito. conhecida a minha repugnncia de sempre por esta denominao cincias humanas, que me pare-ce ser o apelo mesmo servido (Lacan, 1966/1998a, p. 859). A repugnncia pode ter sido de sempre, mas o modo de dizer de Lacan mudou muito: no primeiro momento aqui considerado, a expresso apropriada, e no momento posterior ela designa algo que no existe e que evoca o apelo mesmo servido. O que se passou neste intervalo de dez anos?

    Na verdade, muita coisa se passou: Lacan criou o que, em seu prprio dizer, foi sua nica inveno: o objeto a 1. Deu ao re-gistro do Real a sua radical irredutibilidade em relao aos demais Imaginrio e Simblico, iniciando o caminho que viria a destituir deste ltimo a primazia que ele, maneira cientfica e cartesia-na, como demonstramos anteriormente neste texto, lhe atribura. Por isso, alis, Lacan sofreu a excomunho maior por parte da International Psychoanalytical Association, e que ele equivaleu sofrida por Spinoza, em sua poca.

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    No mesmo ano em que afirmara que as cincias humanas no existem, e que so o apelo servido, Lacan transformara sua pergunta inicial, que se formularia nesses termos: a Psicanlise uma Cincia?, em uma outra: Qual a cincia que comportaria a Psicanlise? (Lacan, 1965/1973). Com essa transformao, Lacan est agora em outra posio discursiva quanto s relaes entre Psicanlise e Cincia, posio na qual a operao psicanaltica que est em posio de interrogar a Cincia, de cujas coxas saiu, mas foi alm dela, e no o contrrio. Que cincia poderia compor-tar a incluso do real do sujeito? Que cincia poderia suportar a incluso da transferncia no interior do campo discursivo que rege a sua experincia?

    Em 1970, Lacan d uma entrevista a uma radiodifusora belga, que mais tarde se publica sob o ttulo: Radiofonia. um dos textos mais importantes para se pensar a cincia no sculo XX. Chamamos a ateno para os principais pontos desse texto, atravs de duas referncias fundamentais: a) a referncia frase de Galileu: o livro da natureza escrito em matemtica (Lacan, 1970/2001, p.430); b) a referncia revoluo cientfica impetrada por Kepler, e que no deixa de ser devedora dessa observao de Galileu.

    O que Kepler introduz na astronomia? Que as rbitas plane-trias no so esfricas e sim elpticas, o que definitivamente impe que se desimagine qualquer relao possvel do homem com elas! A partir da, a nica maneira de trabalhar com tais rbitas pela via simblica, calculando tais elipses que descentralizam para sem-pre toda e qualquer coisa no espao celeste. Porque fazer elipses partir de dois centros, e tra-las implica introduzir um centro matemtico para alm do sol. Numa articulao rpida, isso se associa frase de Galileu, de que no h natureza para alm da matemtica, mesmo Galileu ainda estudando o cu imagem do que havia de Gestalt no mundo em que vivia, com um nico cen-tro, o sol. O centro esfrico de Galileu no deixa de se associar fantasia de Aristfanes sobre o amor, no Banquete, de Plato, em que esferas se dividiram na origem dos tempos, de forma que at hoje procuramos nossa cara metade para voltar a fazer Um. Bem diferente o amor proposto por Scrates ento, quando jus-tamente responde a Alcibades que, tendo o ouro, no lhe dar o cobre que para este, na projeo do que Alcibades v nele. O

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    amor, no discurso de Scrates, no se sustenta na projeo ima-ginria que um pode fazer para o outro, mas na falta, porque para Scrates se ama aquilo que nos falta, o que para Freud vem a ser o prprio desejo.

    Lacan observa, em Radiofonia, que foram trs as grandes revolues a considerar:

    1. De Coprnico a Kepler: do imaginrio ao simblico;

    2. A revoluo de Marx: em que a mais valia precipita a cons-cincia de classe, apontando o que vai mal no discurso do mestre;

    3. A revoluo discursiva, introduzida por Freud, quando prope o discurso do analista. Este, j no mais o mestre, que j no pergunta ao paciente (na posio de escravo) o que vai mal para se apoderar desse saber, e com ele trabalhar para o mestre posio que surge tambm na medicina quando o mdico, no lugar do mestre, diz ao paciente que ele quem sabe sobre seu sofrimento e pode cur-lo, fazendo de seu paciente o objeto de aplicabilidade de sua cincia , tampouco o analista outro su-jeito que, numa relao intersubjetiva, procura compreender de forma jaspersia, por identificao imaginria, o que se passa com seu paciente, mas o analista , com o novo discurso criado por Freud, o objeto que pode causar o sujeito, seu paciente, a querer saber o que vai mal.

    Para estudar e aprofundar tal noo de objeto, que o analis-ta deve ocupar na transferncia contexto identificado por Freud como o nico possvel para uma anlise a psicanlise e suas es-colas no medem esforos. So esses esforos, realizados desde ento, que tm como visada fundamental por prova o prprio conceito de psicanalista. Efeito de uma formao psicanaltica que implica o reposicionamento diante do saber, o psicanalista, como conceito, redesenha a lgica da relao entre sujeito e ob-jeto, sustentado no ato analtico e no desejo do analista que, na condio de objeto a causar o sujeito em anlise a querer saber, descentra a direo do tratamento e os princpios de seu poder.

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    Notas1. A interpretao que damos disso diverge, num certo sentido,

    de outras, segundo as quais haveria uma irredutibilidade da psicanlise objetivao (cf. p. ex., Calazans, 2006), pois justamente no momento em que Lacan pode se dar conta da equivalncia entre sujeito e objeto (a, no caso), que ele pode preparar o terreno para repensar as relaes entre psicanlise e cincia, abrindo margem para a compatibilidade lgica entre o pensamento psicanaltico e o pensamento cientfico (idem, p.273), mas em novas bases. porque o sujeito redutvel ao objeto a, em particular no final de uma anlise, que h objetivao do sujeito mesmo se tal efeito no corresponde ao conceito positivista da objetivao.

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    Recebido em 9 de agosto de 2007Aceito em 28 de agosto de 2008Revisado em 1 de setembro de 2008