próximas semanas serão cruciais para salvar país de seca ... · referem que se trata de um valor...

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Próximas semanas serão cruciais para salvar o país de seca severa Especialistas alertam que o clima de Portugal está a ficar cada vez mais parecido com o de Marrocos, Argélia e Tunísia. Em Janeiro, houve 179 operações de abastecimento de água às populações Destaque, 2/6

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Page 1: Próximas semanas serão cruciais para salvar país de seca ... · referem que se trata de um valor que representa um aumento de 49% por comparação com o mês de Dezem-bro de 2018,

Próximas semanas serão cruciaispara salvar o país de seca severaEspecialistas alertam que o clima de Portugal está a ficar cada vez mais parecido com o de Marrocos,Argélia e Tunísia. Em Janeiro, houve 179 operações de abastecimento de água às populações Destaque, 2/6

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SECA

No Inverno houve179 operações deabastecimento de

água aos cidadãosO país irá enfrentar no próximo Verão um novo ciclo deescassez de água se não chover nos próximos dois meses, masas perspectivas de forte precipitação não são animadorasCarlos Dias

Em

Janeiro, as corporações debombeiros de vários conce-lhos realizaram 179 operaçõesde abastecimento de água às

populações, com maior inci-dência em Miranda do Douro

(41), Mértola (35), Barcelos (15),Mirandela (12) e Miranda do Corvo(11). Os distritos de Bragança (68abastecimentos), Beja (49) e Braga(17) foram os que registaram o maiornúmero de intervenções que prosse-guiram ao longo do mês deFevereiro.

Dados do Relatório de Monitoriza-

ção Agrometeorológica e Hidrológi-ca (RMAH), publicado em Janeiro,referem que se trata de um valor querepresenta um aumento de 49% porcomparação com o mês de Dezem-bro de 2018, ano em que cerca de80% do território nacional chegou aestar em seca severa ou extrema.

A situação poderá agravar-se e se

"não chover com alguma abundân-cia nos meses de Abril e Maio, esta-mos mal", admite Filipe Duarte San-

tos, especialista na área das altera-

ções climáticas e presidente doConselho Nacional de Ambiente e

Desenvolvimento Sustentável(CNADS), acrescentando que osmeses de Janeiro e Fevereiro foram"muito secos".

Na análise que faz, Filipe DuarteSantos salienta que, a curto prazo,"não há grandes perspectivas de for-te precipitação" dando conta de umarealidade que se julgava associada

apenas aos meses de Verão: "Hápovoações em Portugal que em Janei-ro e Fevereiro foram abastecidas porcamiões cisterna." E daqui partepara uma apreciação crítica: "Nãosei como será o futuro mas não serámuito promissor, se as pessoas con-tinuarem centradas nas suas neces-sidades a curto prazo."

"As alterações climáticas são mui-to claras", analisa o presidente doCNADS exemplificando com odecréscimo de precipitação atmos-férica entre 1960 e 2010. 0 país assis-

tiu a uma redução média entre 30 e40 milímetros de precipitação anualem cada década "uma tendência dedescida que parece uma escada". Éum valor significativo, ou seja, 200milímetros de chuva em meio século,

que tem um peso significativo, sobre-

tudo, no interior do Alentejo onde a

precipitação média anual era, antesdesta redução, de 500 milímetros."E não há indicação que esta tendên-cia venha a alterar-se, se não cumpri-mos o acordo de Paris", constataçãoque deve obrigar-nos a encontrar"novos conceitos de prosperidade",

observa Filipe Duarte Santos.

Poupar e reutilizarA ciência e a tecnologia são para este

investigador "cruciais" para mudarde paradigma no uso que se está afazer dos recursos hídricos, advogan-do a necessidade de poupar água,defendendo até a utilização da águaurbana (efluentes domésticos)depois de tratada. A este propósitosocorre-se do caminho seguido emIsrael onde se utilizam, para rega,cerca de 86% das águas urbanas tra-tadas. Em Portugal as informaçõesque recolheu indicam-lhe que estevalor será de apenas 1% ou 2% "quan-do já o deveríamos estar a fazer de

uma maneira sistemática" frisando

que Portugal é um dos países daregião mediterrânica mais vulnerá-veis à seca, "onde os impactos sãomais gravosos".

Estas apreensões são partilhadaspor Mário de Carvalho, professor e

investigador na Universidade de Évo-

ra (UE). "Temos de incluir as altera-

ções climáticas na gestão do nossoterritório" cujos efeitos não se com-batem "gastando verbas avultadas na

construção de barragens" que esta-rão sempre longe de suprir as neces-sidades agrícolas.

"Quando se fala de alterações cli-máticas em Portugal a solução passa

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Especialistaalerta quePortugal estáa ficar com umclimasemelhante aodo Norte deÁfrica

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por construir barragens" critica odocente da UE, lembrando que a

capacidade hidrológica no Norte do

país "apenas sustenta 20% da suaárea agrícola com base no regadio.No Alentejo, fica pelos 10%".

Para evitar a chamada seca hidro-lógica as barragens "só enchem"

depois de o solo estar encharcado a

ponto de provocar escorrências paraas linhas de águas que sustentam ocaudal que aflui às albufeiras, escla-

rece Mário de Carvalho. Defensordos sistemas agro-silvo-pastoris queconsidera fundamentais para garan-tir a ocupação e gestão do território,adverte para a "variabilidade do nos-so clima" pelas dificuldades queimpõe à "sustentabilidade dos siste-

mas agrícolas, que serão agravadaspelas alterações climáticas" que já se

revelam incontornáveis, tanto o Sulda Europa como o Norte de África.

"O clima está a mudar mais no Suldo país onde temos menos precipi-tação" analisa Filipe Duarte Santos,dando conta que as ondas de calor,secas e eventos de precipitaçãointensa em intervalos de tempo cur-tos "estão a tornar-se mais intensose frequentes".

PreocupaçãoNuma recente deslocação a Beja,

onde se deslocou para presidir à reu-nião do Conselho para o Acompa-nhamento do Regadio de Alqueva(CAR Alqueva), o ministro da Agri-cultura, Florestas e Desenvolvimen-to Rural, Capoulas Santos, comparoua situação actual da seca com a queocorreu há um ano e concluiu que a

realidade "é substancialmentemelhor". O governante manifestoua sua preocupação por aquilo quedefiniu como o "espectro da seca"

que continua a pairar sobretudo nosul do país. É um dado adquirido queo nível de precipitação atmosférica

que atingiu 77% do que é normalpara a época, coloca interrogaçõesquanto à capacidade de algumasalbufeiras poderem vir a suprir as

necessidades de água para rega.Mesmo assim Capoulas Santos

acredita que, na Primavera que se

aproxima, a chuva virá com a abun-dância necessária, como aconteceuem Abril de 2018.

Segundo o Instituto Português doMar e da Atmosfera (IPMA), mais demetade do território do continenteestá em seca moderada (38% em secafraca e 5% em seca severa). O mês de

Janeiro foi um dos mais secos dosúltimos 19 anos. "Estamos a ficarcom o clima próximo de Marrocos,

da Argélia ou da Tunísia e o Algarveestá na linha da frente" sintetiza o

presidente do CNADS, reafirmandoa sua convicção de que o clima emPortugal "está em mudança".

Não sei como serãofuturo mas não serãmulto promissor, seas pessoascontinuaremcentradas nas suasnecessidades acurto prazo

Filipe Duarte SantosEspecialista na área das

alterações climáticas epresidente do Conselho Nacionalde Ambiente e DesenvolvimentoSustentável

Seca, "rotina" que é encaradacom medidas rotineiras

Carlos Dias

Aseca tornou-se um temarecorrente em ciclos de tem-

pos cada vez mais curtosentre si à qual o Governo

reage com medidas tomadas

sempre com base nas mes-mas formas de apoio, considerando

que a seca é uma situação de excep-ção quando os ciclos em que ocorresão cada vez mais curtos entre si. Estaé a leitura comum que o PÚBLICOrecolheu nos vários depoimentos queobteve no Centro e Sul do país.

O Governo aplica medidas "rotinei-ras em relação a um fenómeno que jáse tornou rotina" comenta João Diniz,

dirigente da Confederação Nacionalde Agricultura (CNA), explicando as

razões em que baseia a sua interpre-tação. Como aconteceu na últimareunião da Comissão Permanente de

Prevenção e Monitorização e Acom-

panhamento dos Efeitos da Seca, omesmo tipo de decisões já foi tomado"ao longo da última década, pelomenos, por seis vezes", referiu o diri-

gente da CNA. As medidas passamsistematicamente pela "antecipaçãono pagamento das ajudas da PAC e

pela atribuição de linhas de créditobonificado e pouco mais", constataJoão Diniz. Foi assim em 2017 e estive-

Almeida Henriques,

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ram "muito aquém das necessidades,embora nós saibamos que o grau decarência e de dificuldades por quepassam, sobretudo os pequenos agri-cultores, dá por bem-vinda qualquertipo de ajuda".

Almeida Henriques, presidente daCâmara de Viseu, diz que ainda hojeo seu concelho "está a sofrer os efei-tos" das medidas que o Governotomou em 2017 para suprir a falta de

água no seu concelho. "Só recebemos175 mil euros dos 600 mil que foram

gastos para suprir as necessidades de

água" da população. Foi um momen-to "terrível", assinala o autarca.Naquele ano, o município de Viseunecessitou de transportar cerca de3300 metros cúbicos de água potável,diariamente. A operação obrigou a

recorrer à utilização de 27 camiões-cisterna que movimentaram 112 car-

gas de água por dia. Em simultâneo,"o Governo optou pelo 'show ojf coma trasfega da água não potável trazidade pontos de água localizados fora do

concelho, para a Barragem de Fagil-de, que abastece a capital do distrito",critica o autarca, quando a soluçãoestá na construção de outra barragemcom maior capacidade de armazena-mento, mas que custa 17 milhões de

euros.A sul, a presidente da Associação

de Agricultores do Distrito de Porta-

legre (AADP), Fermelinda Carvalho,encara as decisões tomadas na últimareunião da Comissão Permanente de

Prevenção e Monitorização e Acom-

panhamento dos Efeitos da Secacomo um exercício do género:

"Vamos lá discutir para resolver pro-blemas pontuais quando já devería-mos ter devidamente consolidadas

soluções estruturais em função de umproblema que veio para ficar." E

recorda o que se passou em 2017. Os

agricultores apresentaram projectospara abrir furos e adquirir cisternas,mas a aprovação "aconteceu seis

meses mais tarde, quando já tinhachovido". A presidente da AADP diz

que "o Governo veio criticar os agri-cultores por não concretizarem pro-jectos aprovados".

Referindo-se aos empréstimos ba*cários com base nas linhas de créditoconcedidas pelo Governo para a aqui-sição de equipamentos ou aberturade furos, constatou "que não houve

aprovação de um único na região de

Portalegre". Fermelinda Carvalholamenta que o Alto Alentejo aguarde"há mais de 40 anos pela construçãoda barragem do Pisão", realçando a

"enorme escassez" de reservas de

água comparativamente com a regiãobaixo-alentejana.

Também Francisco Ferreira, diri-

gente da organização ambientalistaZero, considera que o Governo conti-

nua a recorrer a medidas paliativaspara enfrentar os mais frequentesciclos de seca. "Ou tomamos medidasestruturantes ou ficamos pela identi-

ficação dos problemas e a recorrer a

situações de emergência ou de excep-ção", adverte. Em relação a 2017, Fran-cisco Ferreira admite que há "umaúnica diferença" . O Governo "está umpouco mais atento ao uso eficiente da

água". Naquele ano, a Zero exigia aoGoverno que avaliasse as captaçõesatravés dos furos artesianos nos solos

para saber que água é retirada", reco-nhecendo que a administração "nãotem capacidade para controlar a quan-tidade de água que era extraída dosolo". Francisco Ferreira admite queo problema subsiste em 2019.

O ano hidrológico 2016/2017 foiigualmente nefasto no centro de

Espanha e nas regiões que fazemfronteira com Portugal. A organiza-ção ambientalista SEO/BirdLife,reportando-se à enorme quantidadede albufeiras que ficaram apenascom o seu caudal morto (reserva de

água mínima), diz que a seca vemmostrar a "escassez crónica e a

superexploração sistemática da

água em Espanha". Lá, como cá, "o

dogma de que as secas são algoexcepcional" persiste. A organiza-ção espanhola salientava que a secase limitava apenas a lembrar que o

planeamento hidrológico espanhol"ainda não se tinha adaptado à rea-lidade climática, e que as decisõestomadas para enfrentar as situaçõescríticas associadas à falta de água"são baseadas em informações par-ciais e abordagens erróneas".

A SEO/BirdLife acusa o Governoespanhol de aceitar que a procura de

água continue a exceder as disponi-bilidades existentes. E deixam umsério aviso: "Não há água para tantoconsumo. Não há água para tantasexpectativas."