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DUASCOLUNAS NOTÍCIAS DO TEATRO NACIONAL SÃO JOÃO Nº 7 · OUTUBRO 2003 DISTRIBUIÇÃO GRATUITA 8 /9 10 11 / 15 João Tuna FRIEL, BOGOSIAN E CO-LAB NA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL GRETCHEN TRESLEITURAS DE FAUSTO (A)TENTADOS EM VERSÃO REVISTA E COMEMORATIVA «DESTRUAM O SENTIDO! DESTRUAM O DESEJO! DESTRUAM AS IDEIAS! PANCOMÉDIA... PANCOMÉDIA!» O Bobo e a sua Mulher esta Noite na Pancomédia, de Botho Strauss, em estreia nacional no palco do Teatro Nacional São João, numa encenação de João Lourenço. A muito esperada e adiada primeira co- -produção entre o TNSJ e o Teatro Aberto. Vera San Payo de Lemos, João Lourenço, João Mendes Ribeiro e Né Barros revelam-nos, numa conversa informal, parte do processo criativo que conduziu ao espectá- culo. Falámos ainda com João Reis, Canto e Castro, Ana Brandão e Ana Paula Almeida. Rostos visíveis de um elenco de vinte e quatro actores que colocam em marcha esta desenfreada Pancomédia. 4 / 7

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DUAS COLUNASNOTÍCIAS DO TEATRONACIONAL SÃO JOÃONº 7 · OUTUBRO 2003DISTRIBUIÇÃO GRATUITA

8 /9 10 11 / 15

João Tuna

FRIEL, BOGOSIAN E CO-LABNA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL

GRETCHENTRESLEITURAS DE FAUSTO

(A)TENTADOS EM VERSÃOREVISTA E COMEMORATIVA

«DESTRUAM O SENTIDO! DESTRUAM O DESEJO! DESTRUAM AS IDEIAS! PANCOMÉDIA... PANCOMÉDIA!»

O Bobo e a sua Mulher esta Noite na Pancomédia, de Botho Strauss, em estreia nacional no palco do Teatro Nacional São João, numa encenação de João Lourenço. A muito esperada e adiada primeira co--produção entre o TNSJ e o Teatro Aberto. Vera San Payo de Lemos, João Lourenço, João Mendes Ribeiro e Né Barros revelam-nos, numa conversa informal, parte do processo criativo que conduziu ao espectá-culo. Falámos ainda com João Reis, Canto e Castro, Ana Brandão e Ana Paula Almeida. Rostos visíveis de um elenco de vinte e quatro actores que colocam em marcha esta desenfreada Pancomédia. 4 / 7

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2 DUAS COLUNASOUTUBRO 2003 3DUAS COLUNAS

OUTUBRO 2003

Sumário

[B.I.] Duas Colunas Nº 7 Outubro 2003 director José Luís Ferreira ([email protected]) editor João Luís Pereira ([email protected])

design gráfico João Faria ([email protected]) editor fotográfico João Tuna redacção João Luís Pereira, José Luís Ferreira,

Cristina Carvalho ([email protected]), Paula Braga ([email protected]), Pedro Sobrado ([email protected]), Susana Morais ([email protected])

produção Francisca Pestana, Rita Nunes Pinto secretariado Joana Guimarães ([email protected])

colaboraram neste número Ana Luísa Amaral, Daniel Jonas, Eugénia Vasques, Filipe Guerra, Hugo Calçada, Humberto Almendra,

Mónica Guerreiro, Paulo Eduardo Carvalho, Rui Neves edição Centro de Edições do TNSJ

impressão LiderGraf – Artes Gráficas, S.A. tiragem 10.000 exemplares

O TeCA abriu por alturas do último número e estreou há dias o seu décimo primeiro espectáculo. O São João ser-ve há semanas de oficina para a construção da nova cria-ção de João Lourenço, a aguardada primeira co-produção entre o Teatro Aberto e o TNSJ, que estreia neste dia 16 de Outubro e inicia, nesta sala, uma sequência de mais de qua-renta récitas até ao final do ano, divididas entre O Bobo… e a Castro, que regressa no início de Dezembro. Em Lisboa, no Maria Matos, as duas peças de Friel que Nuno Carinhas encenou para a co-produção entre o TNSJ e a Escola de Mulheres cumprem no próximo dia 26 um mês de repre-sentações. Ainda antes do final do ano, O Bobo… migra igualmente para Lisboa e completa uma temporada de dois meses no Teatro Aberto.

Nos próximos dias 15 e 16 de Novembro tem lugar emBarcelona mais uma Assembleia Geral da União dos Teatrosda Europa, na qual pela primeira vez um Teatro português será admitido nesta rede que reúne – passe ao largo a falsa modéstia – apenas os melhores Teatros de criação de toda a Europa. Do Atlântico aos Urais, eram até agora dezano-ve membros. A adesão do TNSJ completa a segunda deze-na, número considerado óptimo para a prossecução dos fins da UTE: intercâmbios nas áreas técnicas e de formação, criação de projectos artísticos conjuntos entre dois ou mais dos seus membros, difusão do trabalho de cada um e circu-lação efectiva de espectáculos…

Tudo isto existe. Tudo isto é o resultado de um imen-so trabalho e da feliz confluência de inúmeras vontades artísticas. Porém, tudo isto custa. Custa, inevitavelmen-te, dinheiro ao contribuinte. Em tempo de vacas magras, e porque a realidade é assim mesmo, custa pouco. Mas custa muito fazer tanto desse pouco.

E no entanto, abertos e consultados diariamente os jor-nais, escutados os meios de comunicação, dificilmente se apercebe esta realidade. O esforço pessoal e a falta de pre-conceitos de alguns, poucos, jornalistas de cultura não esconde – não pode, não consegue – um desinvestimen-

to progressivo no tratamento sério de matérias artísticas; não esconde a falta de dimensão da imprensa cultural, de massa crítica, que coloca toda a criação num patamar de indiferenciação que lhe é mortal. Como se uma produ-ção, qualquer uma, pudesse ser vista e criticada sem uma referência ao seu contexto de criação, como se a crítica de um gesto artístico não fosse, desde há tanto tempo, a críti-ca radical dos seus modos de produção. O que é sobretudo preocupante nisto é a aparente inconsciência de um dever comum de criar um caldo de cultura que potencie, e não faça recuar, a maturidade de uma estrutura efectiva de cria-ção e difusão artísticas. A falta de reconhecimento – e, ain-da por cima, de discussão – dos modos de partilha efectiva de recursos públicos nesta utopia alcançável que é o cres-cimento em diversidade de um território ainda tão frágil como é o da criação teatral portuguesa.

À pequena escala deste jornal procuramos abrir a discus-são: uma discussão livre, lúdica, séria, académica, prática, lírica, qualquer coisa, mas uma boa discussão. Se mostra-mos os actores, os fazedores de teatro, se invadimos ensaios e traçamos perfis, se rememoramos a história anedótica destes teatros que são os nossos, é na empenhada esperan-ça de acrescentar matéria válida, interessante, legível, que ajude à discussão. Se convidamos pessoas para verem os espectáculos de uma forma pessoal, numa recriação arti-ficial da sua inteligência de espectadores, estamos já a dar lugar à discussão, na empenhada esperança de que a atitu-de crítica se reproduza (e se recrie).

Este jornal não completará, porém, o seu sentido se não se abrir vertiginosamente mais, sobretudo aos nossos espectadores: dos mais empenhados aos mais empenhada-mente descomprometidos. É este o desafio que deixamos a abrir mais este número do Duas Colunas: é imperioso alar-gar a discussão. Discutam connosco, proponham colabo-rações, sugiram novas estratégias. Os endereços electróni-cos estão todos aqui em baixo, na ficha técnica. Por favor, disponham. 1 José Luís Ferreira

Informações úteis

TNSJ TEATRO NACIONAL SÃO JOÃOPraça da Batalha · 4000-102 Porto

GeralT 22 340 19 00 F 22 208 83 [email protected]ções PúblicasT 22 340 19 56 F 22 208 83 03

Gabinete de ImprensaT 22 339 30 34 F 22 339 30 39Edifício Alexandre HerculanoRua Alexandre Herculano, 352 – 6ºSalas 61 a 66 · 4000-053 Porto

Bilheteira T 22 340 19 10 F 22 208 83 03 [email protected]

TeCA TEATRO CARLOS ALBERTORua das Oliveiras, 43 · 4050-449 Porto

GeralT 22 339 50 50 F 22 339 50 60

Bilheteira T 22 340 19 10

www.tnsj.pt

Atendimento e Bilheteira• De terça-feira a domingo,das 13h00 às 19h00(ou até às 22h00, nos dias em quehá espectáculos em exibição). • Os bilhetes reservados deverão ser obrigatoriamente levantados numperíodo máximo de cinco dias,após o qual serão automaticamentecancelados.• Quaisquer reservas deverão serefectuadas e levantadas até dois diasantes da data do espectáculo.• Os bilhetes comprados pelo telefone,pagos através de cheque, podemser levantados até à hora do espectáculono posto de atendimento, ou enviadospara o domicílio (acrescidos do valordos portes de correio) até uma semanaantes da data do espectáculo.

Preço dos bilhetes

TNSJ TEATRO NACIONAL S. JOÃOPlateia e Tribuna € 15,001º Balcão e Frisas* € 12,002º Balcão e Camarotes 1ª Ordem* € 10,003º Balcão e Camarotes 2ª Ordem* € 7,00

* Frisas e Camarotes só são vendidosa grupos de duas pessoas

TeCA TEATRO CARLOS ALBERTOPlateia € 15,00Balcão € 10,00

Condições EspeciaisGrupos (+20 pessoas) € 10,00Escolas e Grupos de Teatro Amador € 5,00Cartão Jovem e Estudante desconto 50%Mais de 65 anos desconto 50%Quinta-feira desconto 50%Profissionais de Teatro desconto 50%Preço Família (para agregados familiares compostos por três ou mais pessoas)desconto 50%

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OUTUBRO 2003Correio Azul

Castro está de volta. No próximo mês de Dezem-bro, o TNSJ regressa aos amores de Pedro e Inês, desta vez com Micaela Cardoso no papel titular, dando vida a uma das heroínas maiores do nos-so imaginário histórico e literário. Também o papel da Ama e do Mensageiro têm agora novos intérpretes – Luísa Cruz e Pedro Almendra jun-tam-se ao elenco desta “tragédia mui sentida e elegante”. Nesta introdução de três novos acto-res no elenco, o público que assistiu à peça no início deste ano pode encontrar uma motivação para rever este espectáculo, pressentindo e in-tuindo novas sensibilidades e novas leituras que cada interpretação transporta necessariamente em si. Para quem não chegou a ver – relembre-se que durante a primeira apresentação, o TNSJ viu consecutivamente esgotados os seus espectácu-los diários – esta é a oportunidade para assistir a um dos textos maiores do reportório clássico nacional. Na Sala Branca, e ainda durante o mês de Outubro, decorrem sessões de leitura. Oficial-mente, os ensaios com os actores terão início no dia 3 de Novembro. 1 Cristina Carvalho

TEATRO NACIONAL SÃO JOÃODEZEMBRO – JANEIRO 2004

CASTROdeANTÓNIO FERREIRA encenaçãoRICARDO PAIS

cenografia e figurinosANTÓNIO LAGARTOmúsicaVÍTOR RUAvídeoFABIO IAQUONEcoreografiasNÉ BARROSdesenho de luzNUNO MEIRAdesenho de somFRANCISCO LEALapoio dramatúrgicoFREDERICO LOURENÇOCARLOS MENDES DE SOUSAvozJOÃO HENRIQUES

elencoMICAELA CARDOSOLUÍSA CRUZJOÃO PEDRO VAZEMÍLIA SILVESTRENICOLAU PAISANTÓNIO DURÃESJOÃO CARDOSOIVO ALEXANDREPEDRO ALMENDRAJOÃO REIS (voz off)

produção TNSJ

terça-feira a sábado 21h30domingo 16h00

UMA CASTRO A MAIS

Tenho 29 anos, sou do Porto. Aliás, nasci aqui mesmo ao lado, na Ordem do Terço. Posso pois dizer que a minha ligação ao Teatro São João já vem de longe. Quando frequentava a escola pri-mária, as récitas de Natal aconteciam neste es-paço, na altura bem diferente e com um cheiro muito particular de que me recordo perfeita-mente. Depois segui para a Escola Soares dos Reis e as minhas inclinações iam para artes plás-ticas, ainda não me passava pela cabeça o teatro. Acontece que, por uma certa inquietude que me caracteriza, e também porque as artes plásticas não eram uma vocação definida, fui mesmo pa-rar ao teatro. Um dia deparei com um anúncio da abertura da Academia Contemporânea do Espectáculo, fiz as provas e fui admitida. Mas não terminei. Entretanto, fiz um casting para uma série televisiva, A Viúva do Enforcado, e de-pois já não retomei o curso. Decidi ir para Lis-boa. Isto foi em 1993. Foi aliás nessa altura que fiz outro casting, desta vez para um filme reali-zado por Pál Erdoss, uma co-produção húngaro-polaca-hispano-portuguesa. Chamava-se Laçosde Sangue e fui protagonista.

Foi em Lisboa que tive o meu primeiro con-tacto com o teatro profissional. Participei na produção de O Bando, Trilhos, e a seguir liguei-me ao Pogo Teatro onde, entre 1995 e 1996, fiz: Lips on Lab, Road Movie, Handicap e Balada a Mr. Brandy.

Em 1996 estou no Porto. Estou emocional-mente abatida, diria que me zangara com o te-atro e procurava outro rumo para a minha vida. Resolvi tirar o curso de Educação Social. Não es-tive lá nem um ano. Também porque, entretan-to, recebi um convite para participar em O Pa-raíso, de Alberto Moravia, numa encenação de Rogério de Carvalho. E é então que entro, ou re-entro (depois dos meus autos de Natal) no TNSJ, a convite do Ricardo Pais. Entre 1996 e 1998 tra-balhei regularmente aqui: Dom Duardos, O Gran-de Teatro do Mundo, A Salvação de Veneza, Os Gi-gantes da Montanha, As Lições e Noite de Reis. Pelo meio, um mês na Lituânia, para rodar o filme Namai/A Casa, do realizador Sharunas Bartas.

Em 1999 estou de volta a Lisboa. Participo em Mainstream, do Pogo Teatro, em Categoria 3.1 – morire de classe, na Comuna, em Amor, Verda-de e Mentira, do Teatro dos Aloés, entro na tele-novela A Senhora das Águas, participo no filme O Rapaz do Trapézio Voador – que apesar de não ter tido um grande reconhecimento, me valeu o prémio de Melhor Actriz do Festival de Cine-ma Luso-Brasileiro de Santa Maria da Feira – e, finalmente, em O Caminho Solitário, de Arthur Schnitzler, encenação de Rogério de Carvalho, apresentado no TNDMII (Lisboa) e no TAGV (Coimbra).

Relativamente a este meu vaivém Porto-Lis-boa, eu definir-me-ia como uma espécie de pas-sarito, que precisa voar… Tem a ver com emo-ções, eu sofro e sou muito pouco tolerante com o tédio, e só isso pode explicar este saltitar no

espaço e nos próprios projectos em que vou in-vestindo. Por exemplo, neste momento, penso ir para a Faculdade de Letras. Existem contu-do algumas certezas, e uma delas é que, mes-mo no meu período de “zanga”, o gosto pelo te-atro sempre se manteve, ainda que aliado tanto à alegria quanto ao sofrimento. Por mais que eu me desdobre, por mais que eu saiba distinguir quem sou eu e quem é a personagem que estou a representar, lida-se com sentimentos muito íntimos que criam fragilidades. Por vezes é as-sustador e perturbante, e pode até tornar-se pe-rigoso. Acontece-me muitas vezes querer de-sistir. E não tem a ver com a complexidade ou quantidade de texto que tenho de decorar, isso é o menos importante. O que está em causa é a maior ou menor violência da personagem (e a mim calham-me muitas vezes personagens lou-cas ou a caminho da loucura), a ingerência com os nossos próprios sentimentos, a dificuldade de demarcar limites de forma a garantir uma protecção.

Este último regresso ao Porto foi um chama-mento das raízes, também porque tinha nova-mente entrado num estado de absoluto tédio na capital. O convite para a reposição de Castro foi uma surpresa total e agora é um desafio. Em re-lação ao meu percurso no TNSJ, o que eu posso adiantar é que mudei. A organização desta ins-tituição é um mimo para os actores, e eu penso que todos os que realmente amam o teatro de-viam ter oportunidade de passar por um sítio destes. O que não invalida que eu considere que o tempo que passei fora do São João tenha sido muito proveitoso. Vivi a experiência do que é não ter meios: carreguei com projectores, aju-dei a pintar cenários, lavava os meus próprios figurinos e, apesar de um sentimento de fragi-lidade, foi uma experiência enriquecedora. Mas este regresso fez-me sentir muito bem, basta di-zer que quando entrei demorei vinte minutos a chegar à Sala Branca. Eram os seguranças, as se-nhoras da limpeza, todos à minha volta, o que me torna muito feliz, porque as pessoas ainda se lembram de mim. E depois, também é fantás-tico retomar o meu papel de actriz, sem ter de carregar com projectores nem pintar cenários. Acho que é talvez nessa perspectiva de me aper-feiçoar que o Curso de Letras se enquadra, não só por me apetecer realmente ir estudar, mas também porque às vezes sinto que não possuo bases suficientes a nível dramatúrgico.

Por agora estou no Porto, no TNSJ. Teatro sempre. Televisão de acordo com as necessida-des. Não me sinto motivada para fazer telenove-las, mas não tenho preconceitos a nível de tra-balho. As minhas opções passam em primeiro lugar por aquilo que amo mas, por questões fa-miliares, também por aquilo de que preciso. 1

* a partir de uma conversa realizada no dia 29 de Setembro na Sala Branca do TNSJ, editada por Cristina Carvalho

MICAELA CARDOSO

photomaton

Auto-retrato de uma actriz no intervalo dos ensaios de Castro*

João Tuna

«O teatro nunca vai falar do mundo que eu vi.» Brasil, Abril de 1945. Clausewitz, actor pola-co que foge dos horrores da guerra; Segismun-do, um funcionário dos serviços de imigração, ex-torturador da polícia política do ditador Ge-túlio Vargas. Vítima e carrasco? Felizmente, es-tamos a milhas de maniqueísmos lorpas. Em Novas Directrizes em Tempos de Paz, duas perso-nagens traumatizadas enfrentam-se num im-placável duelo retórico. E perguntam-se: para que serve (ainda) o teatro? E redescobrem a materialidade estranha da língua: «Para mim o Português era um latim falado por bebês, ve-lhinhos... pessoas que não tivessem dentes! Se essa gente tivesse dentes, como poderiam ter perdido tantas consoantes?». E o pesade-lo desvanece-se com a invocação do monólo-go de Segismundo em A Vida é Sonho, de Cal-derón de la Barca. Território de metáforas e reflexões metateatrais, portanto. Palavras as-sinadas por Bosco Brasil, um dramaturgo que tem vindo a ser revelado com espanto. Um pal-co despido preenchido por dois actores – Tony Ramos e Dan Stulbach – que conhecemos de outras paisagens mais coloridas. Desliguem os televisores. 1 João Luís Pereira

TeCA3–7 DEZEMBRO 2003

NOVAS DIRECTRIZES EM TEMPOS DE PAZdeBOSCO BRASILencenaçãoARIELA GOLDMANNdesenho de luzGIANNE RATTOsomALINE MEYERelencoTONY RAMOSDAN STULBACH

espectáculo co-apresentado peloTNSJ e PLANO 6

de quarta-feira a domingo 21h30

DO BRASIL, COM HORROR

Ioran Finguerman

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OUTUBRO 2003

MovimentosDepois de um ensaio, a pouco mais de três semanas da estreia de O Bobo e a sua Mulher esta Noite na Pancomédia, de Botho Strauss, promove-mos uma conversa informal com alguns criativos do espectáculo. O mote? Movimento, velocidade, mobilidade, mutabilidade – conceitos estruturantes de um texto no momento da sua transfiguração cénica. Compareceram à chamada Vera San Payo de Lemos (tradutora e dra-maturgista), João Lourenço (encenador), João Mendes Ribeiro (cenógrafo) e Né Barros (coreógrafa). Aqui fica o registo. João Luís Pereira

Em cena

«Esse tapete rolante rola uma vez à volta da terra, e passa mesmo no centro do nosso palco. É por isso que no nosso teatro desfilam pessoas de todos os países e mais alguns. Criaturas perfeitamente espantosas!» [Vittorio]

João Luís Pereira Parafraseando Zacarias Werner, um dos protagonistas da peça, eu co-meçaria por assumir o papel do «anotador das primeiras impressões» que resultaram das lei-turas iniciais do texto de Botho Strauss.

Vera San Payo de Lemos Eu comecei por ver primeiro a peça. Vi a encenação de estreia do Mathias Hartmann no Schauspielhaus Bo-chum, em 2001, com a montagem integral do texto, e gostei logo imenso. Pelo movimento, uma espécie de carrossel, de entradas e saídas ininterruptas, pela multiplicidade de figuras, e pelo facto de se tratar de um autor contemporâ-neo que avança para expor o mundo numa tota-lidade, o que é uma questão muito interessan-te. Hoje em dia, o mundo é-nos apresentado de uma forma fragmentária, coisas pequenas que não se conseguem agarrar e, nesta peça, Botho Strauss tenta criar um todo composto por essa multiplicidade de fragmentos, de estilhaços de vida. Foi um dos aspectos que mais me interes-sou, quer ao nível da realização cénica a que as-sisti, quer depois ao nível da escrita. Também gostei da ideia de tudo se passar num hotel: ele mantém uma unidade de tempo e uma unida-de de lugar. Todas aquelas personagens entram e saem num espaço de convívio descomprome-tido, um espaço público. Ninguém está em casa. Estão todos em trânsito.

João Lourenço É um autor que eu já tinha trabalhado e, curiosamente, numa peça que tem alguns pontos de contacto com O Bobo. Es-tou a referir-me a O Tempo e o Quarto que, não sendo uma “pancomédia”, talvez esteja muito perto desta. O que me interessa sempre é o car-rossel de vida que está presente em muitas das suas peças, que são lugares privilegiados de ob-servação de pequenos psicodramas, como se o autor estivesse sentado numa mesa de um café a observar atentamente a realidade circundante. Isso passa-se um bocado comigo. Por vezes dou por mim a observar as pessoas, a perguntar-me o que fazem, a imaginar coisas que nem sequer correspondem à realidade. Penso que vai ser um bocado a experiência daqueles que irão ver este espectáculo: vão assistir a fragmentos de vivên-cias que não têm passado e das quais não sabe-mos o futuro, vão assistir a momentos. Ao agar-rar esses momentos, ele consegue diagnosticar a sociedade contemporânea e, ao colocá-la ci-nicamente num hotel, espaço de entradas e sa-ídas, está a transformar esse lugar numa espé-cie de purgatório: as pessoas estão ali à espera de ir para um lado ou para o outro. É um espaço onde as pessoas não se conhecem bem umas às outras, há uma pressa constante, e pelo meio há morte, alegria, desespero. Isto tudo através de uma lente deformada e de um inesgotável sen-tido de humor. Assim, as primeiras impressões foram de reconhecimento de muitas coisas re-correntes no teatro de Botho Strauss, coisas que eu obviamente aprecio. Também apreciei o fac-to de se tratar de uma obra de grande actualida-de e universalidade, já que o que aqui está em causa é a sociedade em geral. As suas últimas obras estavam demasiado centradas na Alema-nha, em questões suscitadas, por exemplo, pela queda do Muro de Berlim.

João Mendes Ribeiro Algumas ideias que aqui foram expressas revelaram-se determinan-tes na concepção do espaço cénico. Pelo facto de

se tratar de um hotel, um espaço de não perma-nência, onde as pessoas não se fixam, o cenário transporta uma ideia de mobilidade, de carros-sel, de círculo que se fecha sempre na recepção do hotel. Também me parece que o cenário não tem um tempo, é intemporal. Embora possa ser entendido como um hotel de hoje, o cenário é deliberadamente apresentado sem linguagem e como se não houvesse tempo. Assenta num sentido abstracto e minimal. Essa abstracção in-teressa-me de uma forma muito particular por-que permite, com pequenas transformações e à custa das mutações do cenário operadas pe-los actores, caracterizar o espaço de uma for-ma muito diferenciada. É precisamente a partir das mutações em cena que se vai reconhecendo o seu uso e a sua escala. Isto é, estamos a falar de objectos em que, à partida, não se reconhe-ce a sua escala – tanto pode ser um móvel am-pliado, uma parede que gira ou um biombo de grandes dimensões. O que é verdadeiramente interessante é partir de uma abstracção para de-pois então localizar as acções em lugares mui-to específicos. Partir de um tempo e de um ter-ritório que não são referenciados, mudos, para depois se perceber, com o desenrolar do espec-táculo, toda a sua dimensão em função do seu uso.

Né Barros O texto é muito sugestivo do pon-to de vista de uma dinâmica, de uma transfor-mação constante, reforçada pela ideia de que o lugar que o autor escolhe para fazer emer-gir pequenas histórias, histórias fantásticas, é ele próprio um espaço de transição simultane-amente anónimo e vazio. O hotel, tendo uma função específica – de abrigo, de esconderijo de pequenos mundos das personagens –, é tam-bém um lugar de indiferenciação. Visto à dis-tância, é um espaço de fluxos. O convívio entre esta forma dinâmica e este lugar de indiferen-ciação, quando se transforma em qualquer coi-sa de concreto, funciona como um zoom sobre uma história, sobre um gesto. E é precisamen-te neste tempo de definição/indefinição que a própria cenografia realiza que eu a considero muito coreográfica, porque reflecte esse mo-mento do gesto que ainda não tem uma inten-ção, mas que pode transformar a qualquer mo-mento, pelos seus usos, uma abstracção em algo de muito concreto. A multiplicidade de perso-nagens, como a Vera referiu, o desfile de per-sonagens terrivelmente mundanas ou fan-tásticas que o texto nos oferece permite-nos, ainda, antever o jogo de movimento e compor-tamento, neutro e intencional. Tudo isto cons-titui matéria muito rica e apetecível em termos coreográficos.

JLP A multiplicidade de corpos em trânsito no espaço, que não se fixam... A dada altura há uma personagem que diz «Corpo a mais e nenhum sítio onde o deixar»...

VSPL É a Sílvia Kessel que diz isso à Fada dos Livros. É um tema muito caro a Botho Strauss. Ele vê o ser humano como alguém que não está em casa, no mundo, que está em viagem. Talvez seja na peça Grande e Pequeno que essa ideia está exposta de uma forma mais clara. Ele descre-ve uma viagem de uma mulher através da Ale-manha, uma espécie de peregrinação, tudo isso centrado nessa figura que bate a todas as portas, mas como ninguém lhas abre, ela permanece sempre do lado de fora, há sempre esse desajus-te. Ele transporta essa ideia para esta peça...

JL Sim, aqui ele transporta essa ideia mas, pela primeira vez, o par amoroso da peça – Sílvia Kessel e Zacarias Werner – desenvolve algo em que não costuma tocar muito: o mercado. Ela

apaixona-se por ele, ele apaixona-se pela obra dela, ou melhor, pela publicação da obra dela, e o que está a ser desenvolvido ali é o mercado, o que é uma coisa nova na obra de Botho Strauss. É um par amoroso desenvolvido à base do mer-cado. Aliás, esta é uma peça constituída por pa-res, é algo que está muito focalizado. Porque re-almente nós somos pares, tentamos ser pares, descendemos de um par, quando o par se dissol-ve procuramos desde logo formar outro. E esses pares, aqui, são rodeados de coisas com sentido, sem sentido, de coisas aparentemente banais mas que são profundas. Como no caso dos fi-lósofos Alfredo e Vittorio, figuras na linhagem do Estragon e Vladimir de À Espera de Godot. Se Beckett tivesse escrito essas personagens hoje, elas já seriam abastardadas e é precisamen-te o que acontece com o Alfredo e o Vittorio – são uma espécie de filósofos da televisão, mas que ainda dizem coisas com sentido aparente-mente sem sentido. Estão um bocado ao lado da peça, e isso é interessante: fazendo parte, es-tão ao lado. Botho Strauss mistura tudo lá den-tro, mistura tudo neste caldeirão da Pancomédia. Nós, homens e mulheres, os “bobos”, esta noite no grande teatro do mundo.

«Não é verdade? Claro que é. Exteriormente a vida passa cada vez mais depressa.» [Chefe de Vendas]

JLP Parece-me existir um movimento ao logo da peça que vai da aceleração à desaceleração, de uma certa euforia à quase resignação...

VSPL Eu considero que a peça mantém essa ace-leração até ao fim, embora seja entrecortada por outras dinâmicas. Em certas cenas temos uma espécie de suspensão desse movimento através, por exemplo, da intromissão de seres fantásti-cos: anjos, a Fada dos Livros, seres que vêm de um outro mundo. Isso instala outras dinâmi-cas, outros ritmos. Mas a dinâmica principal é precisamente a aceleração e isso mantém-se até ao fim. No final temos aquele grande grupo de pessoas que está a falar ao telemóvel, o gru-po que está a sair em viagem, a leitura, como no princípio, do livro da Sílvia Kessel, o Zacarias Werner que continua a inventar expedientes para arranjar dinheiro. O carrossel continua...

JLP E o círculo fecha-se...

JMR Isso sente-se muito no projecto cenográfi-co, essa ideia de círculo, de fecho, o que nos con-duz a uma ideia inicial do projecto – o palco gi-ratório. Dado que não foi possível concretizá-la, optámos por construir objectos móveis, pare-des de grande escala que de alguma maneira nos transmitissem essa ideia.

JLP Foi uma solução que foi abandonada por ser inviável tecnicamente?

JL O palco giratório foi apenas uma hipótese inicial de trabalho, para acompanhar o ritmo que eu queria imprimir à encenação. Felizmen-te essa opção foi abandonada, já que teria que funcionar em dois palcos diferentes, aqui e em Lisboa, e haveria sempre dificuldades de adap-tação. Felizmente ainda porque deu origem a esta ideia dos módulos cenográficos, paredes gi-gantescas, de onde saem, como observou a Né Barros, coisas que estão escondidas, são como que gavetas que se abrem, gavetas do passado e do presente.

JLP A cenografia de um espectáculo costuma nascer de uma espécie de “diálogo conflituoso” que tenta conciliar e integrar as “visualizações” geradas pelo encenador e pelo cenógrafo a par-

tir da leitura dramatúrgica de um determinado texto. No vosso caso, como é que funcionou?

JMR Acho que não foi nada conflituoso, antes pelo contrário. As primeiras conversas foram muito importantes e, a partir daí, o processo de trabalho foi muito sereno, muito tranquilo.

JL Geralmente, ou trabalho com cenógrafos muito bons, o que é o caso, ou então desenho eu o cenário. Já há muito tempo que queria traba-lhar com o João Mendes Ribeiro, e tem sido uma experiência fantástica. Ele cuida não só do espa-ço cénico, mas de todos os pormenores: do ce-nário aos adereços, das peças de mobiliário ao copo. Tudo tem a sua medida, tudo converge para uma coerência final, e isso é determinante.

JMR Desenvolvemos o trabalho tendo como ponto de partida um volume fechado que se desdobra em dois, com duas cores, dentro e fora, como um livro, que tem uma capa e páginas in-teriores. Essa ideia foi materializada numa es-trutura modular – com 5,5m de altura por 4,5m de largura e 70cm de espessura – que nos per-mite fazer o maior número possível de rotações, como se se tratasse de um livro que é constante-mente folheado. Incluímos nesta estrutura al-guns programas, no sentido de a rentabilizar, tirando partido de todas as suas possibilidades, não só horizontais (aberturas, portas, um bal-cão que sai, etc.), como verticais, já que aqui a noção de grande escala é decisiva, estamos a fa-lar de um hotel, o que nos permitiu explorar a possibilidade de ter um praticável superior.

Há uma ideia que é muito importante: a pro-cura insistente de uma regra essencial, e depois tudo é determinado em função dela. A regra é de-finida a partir de uma estrutura que determina a escala; a flexibilidade é determinada pelas dife-rentes implantações do cenário no palco e na di-versidade dos cheios e vazios, planos que abrem e fecham. Tudo isto foi pensado de acordo com as ideias da encenação do João Lourenço: era preciso uma porta de elevador, era preciso um balcão que tivesse uma determinada dimensão, que pudesse mudar de posição, já que era impor-tante ter vários pontos de vista, e por aí fora. Foi sempre um trabalho de acerto: de um lado está a cozinha, do outro o balcão, de um lado estão as mesas e os bancos rebatíveis, do outro a porta do elevador e a escada forrada de livros…

JL Quisemos evitar coisas esquemáticas, coisas aliás que esta peça não pede. Durante o espectá-culo, o balcão da recepção do hotel vai variando de posição, dependendo do nosso ponto de vis-ta. Esta estrutura modulável permitiu-me a va-riabilidade de pontos de vista.

JMR Para mim houve um aspecto novo neste trabalho, que foi fazer uma maqueta do cená-rio à escala real.

JL Nós trabalhamos sempre assim: antes do ce-nário estar implantado ensaiamos com uma maqueta à escala real. Chamamos-lhe o “mons-tro”, o “cangalho”. É uma estrutura precária, provisória, construída em pano ou em madei-ra. Eu seria incapaz de começar uma encenação sem ter previamente uma noção daquilo que vai ser o espaço cénico.

JMR Foi muito importante para se perceber a escala e para testar todas as mutações. Partindo dessa maqueta gigante conseguimos elaborar todo o esquema de mutações.

JLP Num espectáculo com estas características, em que o gesto de encenação está tão dependen-te da permanente mutação dos módulos ceno-

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OUTUBRO 2003Em cena

TEATRO NACIONAL SÃO JOÃO16 OUTUBRO–9 NOVEMBRO 2003

O BOBO E A SUA MULHER ESTA NOITE NA PANCOMÉDIAdeBOTHO STRAUSS encenaçãoJOÃO LOURENÇO versãoJOÃO LOURENÇOVERA SAN PAYO DE LEMOSdramaturgiaVERA SAN PAYO DE LEMOScenografiaJOÃO MENDES RIBEIROmúsicaEURICO CARRAPATOSOfigurinosBERNARDO MONTEIROdesenho de luzJOÃO LOURENÇOJOSÉ ÁLVARO CORREIA coreografiaNÉ BARROS

elencoANA BRANDÃOANA MIRANDAANA PAULA ALMEIDAANDRÉ NUNESANTÓNIO CORDEIROCANTO E CASTROCARLA CHAMBELCARLOS PISCOCÉLIA ALTURASFREDERICO SANTOSJOANA FARTARIAJOÃO REISKJERSTI KAASALUÍS ALBERTOMIGUEL DAMIÃOMIGUEL ROMEIRAMIGUEL SÁ MONTEIRONÁDIA SANTOSPATRÍCIA BULLSARA CIPRIANOSÍLVIA BALANCHOSOFIA BORGESTIAGO BARBOSAVICTOR D’ANDRADE

co-produçãoTEATRO ABERTO e TNSJ

terça-feira a sábado 21h30domingo 16h00

gráficos, o entendimento entre o encenador e o cenógrafo tem que ser mais aprofundado do que é habitual?

JMR No fundo trata-se de explicar a regra de funcionamento do cenário, as várias possibi-lidades de mutação, mas depois é o encenador que tem que perceber os objectos e as suas pos-sibilidades de transformação. Trata-se de um processo criativo em que a encenação e a ceno-grafia são elementos inseparáveis, em que a re-presentação dos actores decorre intimamente associada às formas, dimensões e funcionalida-des do próprio espaço físico.

JL Esta estrutura modulável também permi-tiu a participação mais activa dos actores: são eles que movimentam o cenário, o que impri-me um outro ritmo ao espectáculo. Eles desdo-bram-se e como que vão folheando as páginas deste livro gigantesco. A movimentação con-certada dos módulos cenográficos, em que os actores surgem quase todos como empregados do Hotel Confidence, contribuiu para a unida-de do grupo. Por outro lado, a peça dá-lhes a pos-sibilidade de serem “únicos” e “especiais”. Cada um deles desempenha em média quatro papéis diferentes, o que constitui um desafio muito in-teressante para os actores. Essa diversidade é so-bretudo visível nos mais de cem figurinos que o Bernardo Monteiro imaginou para o espectácu-lo. A criatividade, a grande invenção, o humor com que ele concebeu esta profusão de figuri-nos, são fundamentais para a caracterização desta diversidade de personagens e para a tea-tralidade e actualidade desta Pancomédia.

«Uma quantidade de figuras exageradas. Fanfarrões, gabarolas, fala-baratos e salsichas. Não seremos nós prisioneiros de um interminável drama satírico, interminavelmente estúpido? Já ninguém consegue sair da comédia. É proibido sair! Ninguém abandona a cena! A pessoa tem que exagerar para onde quer que vá, onde quer que esteja.» [Tio Bernd]

JLP Chegou então o momento em que foi neces-sário inscrever o corpo dos actores no espaço...

NB Antes de mais, houve um período prévio de observação do trabalho que o João Lourenço es-tava a fazer. Ele enunciou uma série de pré-defi-nições e a partir daí começámos a trabalhar em conjunto. Em termos coreográficos, gostaria de salientar alguns aspectos. Há, por um lado, uma relação muito directa dos corpos com os objec-tos, uma vez que os actores funcionam como motores dos objectos, o que em termos de per-cepção é muito interessante, dado que expe-rienciamos o espaço a partir desse movimento; por outro lado, há uma gestualidade que decor-re dos próprios corpos, seja a partir de uma lei-tura mais física ou mais psicológica, digamos, das personagens. Em ambos os casos, o dese-nho do movimento e do gesto teve que ser coin-cidente com a visão dramatúrgica da Vera e do João Lourenço.

Há aqui uma diferença de base entre um ce-nógrafo e um encenador que, apesar de tudo, conseguem concretizar ideias a partir de maté-rias diferentes. No caso do coreógrafo e do en-cenador, trabalham os dois a partir da mesma matéria, o que à partida torna os limites mais complexos de estabelecer. Uma marcação pode ser entendida por um coreógrafo como um ges-to coreográfico, assim como o que é entendi-do por um coreógrafo como um gesto abstrac-to, pode ser entendido pelo encenador como pretensioso. E toda esta discussão, que é legíti-ma, tem que ver com o facto de ambos lidarmos

com a mesma matéria, não são competências facilmente separáveis, e as marcações do ence-nador são sempre estruturantes. Desse ponto de vista, o mais importante tem sido encontrar uma solução coerente com a visão das pessoas que concebem e dirigem o espectáculo.

JLP Uma das ideias-base passava pela desnatu-ralização dos gestos, do movimento?

JL Desnaturalizado, sim, excessivo, porque tudo é visto como se fosse através de uma len-te deformada. A lógica da peça pede isso. A lin-guagem do Botho Strauss é especial. Há aqui uma preocupação para os actores dizerem o tex-to exactamente como ele está escrito, aliás, essa preocupação é muito recorrente no meu traba-lho. É um texto difícil de decorar, a sua constru-ção é muito singular.

VSPL Botho Strauss capta muitas cenas do quo-tidiano, aquilo de que falava o João Lourenço, a observação do comportamento das pessoas nos espaços públicos, mas depois essa observação do quotidiano é deformada e estilizada de ma-neira a captar o gesto que é típico, que caracte-riza aquela personagem num determinado mo-mento. Isso reflecte-se também na linguagem: ele apanha muitas maneiras quotidianas de fa-lar, mas quando as escreve deforma-as muito li-geiramente. A própria sintaxe contraria uma fluidez, ele utiliza, por exemplo, os “dois pon-tos” para entrecortar a frase, fazendo com que tudo não seja dito de uma forma corrida, para marcar muito bem cada palavra, cada cesura. Ele omite muito as conjunções, repete muitas palavras, utiliza expressões correntes de uma forma inusitada, descontextualizada, derivan-do daí alguma estranheza – tudo isto contra-ria uma certa fluidez e uma certa naturalidade na forma como as personagens se exprimem. A própria articulação das palavras é muito estili-zada. Mas apesar dessa estilização reconhece-mos sempre o quotidiano As peças dele partem sempre de uma base realista, apesar da constan-te intromissão de um mundo fantástico.

JL É complicado colocar em cena um texto des-tes porque alguns actores, como fazem mui-ta televisão, estão habituados a debitar textos maus, péssimos. Quando têm que trabalhar tex-tos mais complexos sentem alguma dificulda-de, porque estão familiarizados com constru-ções frásicas mais simples e esquemáticas. É uma tendência que tem de ser muito contraria-da na direcção de actores.

VSPL É uma linha muito típica do teatro ale-mão, desde o princípio do séc. XX. Houve todo este afastamento em relação ao naturalismo. Os jogos de linguagem foram sempre privile-giados, o teatro não é encarado para retratar a realidade, como faz a televisão. A linguagem tem mais pontos de contacto com a poesia, e é entendida enquanto material que se pode des-construir, não tem que soar tal e qual como na vida quotidiana. Os autores e os espectadores retiram um certo prazer estético ao trabalhar a linguagem dentro desse ponto de vista, no inte-rior dessa estranheza. Não temos tanto essa tra-dição no nosso teatro. Aceitamos essa conven-ção para a poesia, já que ela não tem que seguir as regras sintácticas estabelecidas.

«Você põe cada palavra na balança e pesa-a tanto tempo até ela ficar ambígua.» [Zacarias Werner]

JL Quando comecei a pensar seriamente em montar a peça, houve um compositor que me surgiu várias vezes – Nino Rota.

JLP Uma sugestão “felliniana”?

JL Sim, talvez houvesse essa sugestão. Pensei que iria utilizar algumas composições dele, mas depois cheguei à conclusão de que o me-lhor seria encomendar uma composição origi-nal, e então lembrei-me do Eurico Carrapatoso. Transmiti-lhe essa minha primeira intenção, dizendo-lhe que gostaria de ter na música algo de Nino Rota – porque há nela um movimento contínuo que se adequava à minha ideia de en-cenação para esta peça. Quis que o compositor viesse da música erudita, e isso nota-se mais nas canções que são utilizadas na peça. Eu e a Vera criámos um ciclo de canções que restringimos a três personagens: os dois clowns e Sílvia Kes-sel. Isto porque eles são, no fundo, os “artistas” da peça. As canções têm um lado retro que liga muito bem com a obra literária dela, que é uma tentativa de conjugar imaginários temporais distintos, o antigo e o moderno.

VSPL As canções não estão inscritas no texto de Botho Strauss. Elas foram feitas a partir do ma-terial textual existente. Utilizámos pedaços de prosa que foram transformados em canções, ex-plorando uma forma de linguagem que pudes-se ser cantada, privilegiando repetições, alite-rações, para dar um certo ritmo. E o facto de as canções serem cantadas pela Sílvia (e a voz mara-vilhosa da Ana Brandão foi sem dúvida também um motivo de “inspiração”) tem que ver com o facto de ela não ser bem uma personagem dos nossos tempos. Ela não entra totalmente neste carrossel, ao contrário do Zacarias Werner que está perfeitamente integrado. Ela tem aquele sentimento trágico da vida, e na sua escrita ten-ta fazer literatura à maneira de Flaubert e Bal-zac, autores que constituem o seu paradigma literário.

JL O Zacarias também é muito interessante, quando diz que hoje já não há personagens, no sentido clássico do termo. As personagens hoje são uma multiplicidade de coisas e, neste passo, Botho Strauss está a falar através da boca dele.

JLP Há aqui uma coincidência curiosa, já que logo a seguir à estreia deste espectáculo aqui no TNSJ, o TeCA vai apresentar a remontagem de uma peça de Martin Crimp, (A)tentados, centra-da precisamente na ausência da personagem.

VSPL Botho Strauss também explora muito essa categoria da personagem: uma vez que o indivíduo está em desintegração, logo a perso-nagem também está em desintegração.

JLP E aqui voltamos ao início da conversa, à ve-locidade que conduz à desintegração do corpo, da personagem...

VSPL Durante toda a peça, Sílvia Kessel tenta “agarrar” Zacarias Werner, e não o consegue fa-zer porque ele está sempre a escapar-lhe, a todos os níveis. Está sempre a fugir, está sempre em trânsito. Ela procura uma linha, procura coisas mais estáveis, mais redondas, mais permanen-tes, coisas que talvez não se obtenham nos tem-pos de hoje, mas a procura dela vai nesse sen-tido e as canções também têm um pouco que ver com essa dinâmica. É uma personagem que tem um sentimento trágico da vida, que carre-ga o peso da existência, e as canções sublinham essa dimensão. Há uma canção, quando ela está muito apaixonada, em que entra dentro da di-nâmica dos clowns, mas nas outras transmite momentos de desânimo. 1

Né BarrosJoão Mendes RibeiroVera San Payo de Lemos João Lourenço Fotografias Hugo Calçada

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OUTUBRO 2003

Instantâneos da Pancomédia

Teatro, música, televisão, cinema: pode dizer-se de Ana Brandão, 32 anos, actriz discreta mas marcante, que já fez quase o pleno das artes do espectáculo. Fiel ao colectivo O Bando, de que fez parte durante cinco anos e com quem con-tinua a colaborar – recentemente em Merlim ou Os Anjos –, Ana Brandão assina ainda pontu-al presença em peças de A Barraca ou do Útero, ou no mais recente Proof, no Teatro da Trinda-de. Confessa com indisfarçável alegria que tem tido a sorte de conseguir viver do seu trabalho, articulando a representação com o canto – tem um dueto com o contrabaixista Carlos Bica com o qual atravessa amiúde a Europa, interpretou filmes de relevo como Rasganço (de Raquel Frei-re) ou Vai e Vem (de João César Monteiro). Re-gressará ao TNSJ no ano que vem, com O Bando de João Brites, às voltas com Ensaio Sobre a Ce-gueira, de José Saramago. Para já, Botho Strauss: «Por muito que nós queiramos acreditar numa vida melhor, e que o sol nasce todos os dias, vem o Botho Strauss e puxa para baixo. Nes-ta peça, que é quase toda feita de casais, só há um único casal que nos diz que é feliz: o cunha-do Osvaldo e Emília, que vivem num mundo completamente à parte [ele tem uma relação absolutamente contemplativa em relação à es-posa]. Botho Strauss transmite tudo isso, que é duro e cru, de uma maneira burlesca e satíri-ca. Não consigo imaginar como é que o público vai reagir; nem sei como é que nós vamos reagir se de repente sai uma gargalhada geral. Porque as pessoas podem rir da estranheza destas situ-ações, tão caricatas. Esta peça pode tornar-se pe-sadíssima, porque tem cenas para isso, ou tor-nar-se ligeira, como os momentos do Alfredo e do Vittorio: são dois palhaços mas não te estão a fazer rir, estão a fazer-te pensar».

Em O Bobo e a sua Mulher esta Noite na Panco-média, Ana também canta, e dá vida a Sílvia Kes-sel, uma escritora a braços com a difícil prova-ção do “segundo livro”, que se apaixona por um editor de intenções claras mas nem sem-pre transparentes. E aqui começa a dificulda-de… «O lado emocional é que traz esta mulher

para o lado humano da vida: ela podia ser uma pessoa completamente absorvida pela escri-ta, mas apaixona-se e esquece o resto. As pala-vras deixam de fazer sentido, tudo o que inte-ressa é a paixão por aquele homem, que não é correspondida. O meu trabalho aqui foi princi-palmente deixar-me levar por estes sentimen-tos, por este texto: é impossível fugir às pala-vras que ela diz.»

Palavras de uma lucidez desarmante, por ve-zes; noutras, de contornos oníricos (e canções «melancólicas») que a transportam para um universo de expectativas e ilusões… «Há uma constante dependência dela em relação ao sen-tir-se amada: para estar bem tem de ter alguém. Há momentos em que tem um discurso muito racional e incisivo, porque pensa que encon-trou alguém, que tem os seus livros... Apare-ceu uma pessoa que a estimulou», com quem a partir de então protagoniza uma série de desen-contros que terminam num final indefinido, de grande ambiguidade. «Infelizmente, acho que esta mulher tem um futuro muito negro (risos). Ela é sombria e o Zacarias marcou-a muito, não consegue desligar-se daquele homem. Anda ali num turbilhão, sempre à volta da mesma coisa, tanto que acaba por esquecer o êxito e a escrita por causa dele. E isso enerva-me (risos)! Mas eu não me posso chatear com as personagens…» 1

Em cena

Ana Paula AlmeidaConstantino /Terceira Candidata /Leitora

Canto e CastroAlfredo

«Se nunca fiz outra coisa!» É nestes termos que se diz, com um misto de orgulho e nostalgia, que Canto e Castro relata os seus 57 anos de tea-tro profissional. Estreou-se em 1946 nos Come-diantes de Lisboa, com quem esteve uns anos depois no TNSJ, que considera «o teatro mais bonito do país». Aqui voltou com a outra gran-de companhia em que trabalhou, o TNDMII,aquando da direcção de Amélia Rey Colaço («a mulher de teatro mais importante do século XX»): «Posso dizer que estive nas duas compa-nhias mais importantes do país, do ponto de vista do teatro de declamação». Daqui em dian-te, Canto e Castro dispensa apresentações. Ulti-mamente, tem trabalhado mais assiduamente em televisão. Mas até a cumplicidade com o Te-atro Aberto vem já de trás: estava no elenco de O Tempo e o Quarto, de Botho Strauss, apresentado em Lisboa e no TNSJ, em 1993/1994 (que lhe va-leu um dos vários prémios da crítica que rece-beu). Agora, interpretar um dos «velhos artistas de variedades» na peça que se prepara para es-trear é como reatar antigas amizades: com o te-atro, com a cidade do Porto, com a companhia, com a direcção de João Lourenço, até com Bo-tho Strauss.

E experiências marcantes desses 57 anos? «Houve certamente peças que me impressiona-ram mais: ou porque os textos eram mais ricos, ou porque tive uma maior luta interior para fa-zer os papéis. Lembro-me de quando fiz À Espe-ra de Godot com o Ribeirinho (ele fazia muitíssi-mo bem, é uma peça muito difícil); quando ele me disse que ia fazer o Vladimir, eu respondi-lhe que não, que não sabia fazer aquilo (risos). Depois lá fiz e foi um papel pelo qual me apai-xonei. Como era um texto difícil, complicado, com muitas variantes, eu ia todos os dias duas horas antes para o Teatro, porque relia sempre o papel mais do que uma vez e parecia que todos os dias encontrava coisas novas, coisas que me tinham escapado. Era uma descoberta perma-nente, uma coisa fascinante.» A estreia da mais emblemática das peças de Beckett em Portugal deu-se precisamente nessa encenação de Fran-

cisco Ribeiro, em 1959, com o actor Fernando Gusmão em Vladimir – sendo mais tarde repos-ta com Canto e Castro nesse papel. Mal saberia ele que, várias décadas depois, essa experiên-cia e essas memórias lhe viriam a ser úteis para uma nova personagem.

«Esta parelha Alfredo/Vittorio parece-me ser uma espécie de homenagem a Beckett, porque são personagens muito semelhantes ao Vladi-mir e ao Estragon de À Espera de Godot. Aqui in-vertem-se um bocadinho, porque o meu papel, o Alfredo, é mais parecido com o Estragon do que com o Vladimir, que é mais Vittorio [inter-pretado por António Cordeiro]. Esta relação é muito clara: continuamos a ter uma mistura de tragédia e comédia, tal como no Godot, porque aquilo que se diz é por vezes trágico mas diz-se de uma maneira clownesca. São dois clowns que dizem coisas muito sérias. É preciso perce-ber o que está por detrás daqueles complicados jogos de palavras, mas com grande interesse fi-losófico, digamos assim. São personagens fasci-nantes. O texto é mais difícil que o do Godot: é difícil trabalhá-lo, memorizá-lo, apesar de de-pois parecer muito simples de perceber – o que também não é verdade. Botho Strauss é um au-tor muito difícil, mas de uma grande força: nes-te texto não há nada de gratuito». O paralelismo desvenda-se até no desenrolar da história, que se caracteriza por uma não evolução nos per-cursos das personagens: Didi e Gogo continu-am à espera, Alfredo e Vittorio nunca chegam ao lugar que esconde o sentido das coisas. 1

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OUTUBRO 2003

Quando, corridas algumas semanas de ensaios, chegaram os módulos cénicos concebidos por João Mendes Ribeiro, Ana Paula viu-se, de certa maneira, já algo à vontade. Afinal, o seu último trabalho (assistência de encenação e de palco da peça Demónios Menores/Teatro Aberto) envol-via precisamente a manipulação dos painéis que faziam as mutações de cena. Depois des-ta colaboração com João Lourenço, o caminho para a audição foi um instante, e para o elen-co desta peça ainda mais rápido: «Mesmo sem fazer ideia do que se tratava, soube logo que ia ter de cortar o cabelo. Depois percebi que ia fa-zer de rapazinho». Antes do Teatro Aberto, Ana Paula Almeida, 26 anos, esteve em telenovelas e num musical no Teatro da Trindade. Ainda an-tes, licenciou-se em Psicologia, trabalhou com crianças e adolescentes (aos quais regressou para se inspirar para esta interpretação), e cum-priu o desejo de sair de Coimbra rumo a Lis-boa, onde tem feito cursos e workshops para se-guir o seu objectivo de sempre: tornar-se actriz. Nesta peça de Botho Strauss, cabem-lhe três pa-péis (há quem tenha mais): o rapaz Constanti-no, que lhe exigiu uma adaptação muito espe-cial de registo de voz e postura corporal, e duas personagens femininas.

«O Constantino é um miúdo de 13 anos que se tornou adulto muito cedo porque os pais o deixavam frequentemente sozinho: iam de fé-rias ou em viagens a congressos e deixavam-no dois ou três dias no quarto do hotel. É um mi-údo que teve de crescer muito por si próprio, teve de arranjar os seus próprios estímulos para se distrair: deve ter visto muita televisão, deve ter ouvido muitas conversas de adultos. Aliás, ele aparece numa cena com a dupla de clowns, que é uma parelha muito divertida, mas sem-pre com uma postura muito séria: acha algu-ma piada àqueles palhacitos, mas mesmo as-sim quando resolve interagir com eles é para lhes perguntar se há por lá mulheres nuas. O Constantino é o típico miúdo que cresceu an-tes da idade.» O contraste com a experiência de vida dos velhos artistas de variedades (e o seu

universo de magia e encantamento) é, por isso, um dos momentos sombrios da peça, que joga com essa disforia de comportamentos que é sin-toma da nossa contemporaneidade. O Bobo e a sua Mulher esta Noite na Pancomédia faz-se tam-bém destes desencontros radicais com a realida-de que conseguem, atravessando íngremes ata-lhos, reconciliar-se com ela de uma forma que não fica longe do tratamento que os surrealis-tas faziam na sua leitura da sociedade e do mun-do. Constantino tem com os pais uma relação também “típica”: o pai compra a sua afabilida-de, a mãe tenta o desagravo com jogos de chan-tagem emocional.

A actriz interpreta ainda duas aparições fu-gazes: uma das candidatas a manequim avalia-da por Zacarias Werner (no seu emprego parale-lo), e uma das senhoras que, no lounge do hotel, aguarda distraidamente pela chamada do auto-carro para Baden-Baden. Passagens (e inerentes mudanças de figurino e caracterização) que im-plicam alguma angústia: «Naqueles curtos mi-nutos é preciso dar tudo, porque não é uma per-sonagem que se possa ir acompanhando num crescendo ao longo da peça: tem aquele momen-to e não volta a aparecer. São apontamentos es-pecíficos, cuja densidade somos nós que temos de imaginar; é o espectador que tem de cons-truir as suas histórias». 1

Em cena

Relações mais ou menos conflituosas com as respectivas personagens. Uma unanimidade suspeita em relação à excelência de um texto difícil, longo, tudo menos literal, impregnado de múltiplos sentidos. Actores que se desdobram, actores que homenageiam personagens perdidas na história da dramaturgia universal, actores que se inspiram na vida real para recriar vivências que exigem tudo menos uma abordagem naturalista. Actores, enfim, que se vêem confrontados com uma peça que não diz nada sobre o mundo (porque fala por alegorias e metáforas obscuras) mas é o mundo (porque se assume como pancomédia). Quatro actores, entre 24 possíveis, em estado de desarranjo, porque envolvidos até aos ossos na peça de Botho Strauss que o Teatro Aberto estreia este mês no TNSJ: O Bobo e a sua Mulher esta Noite na Pancomédia. Mónica Guerreiro

Ana BrandãoSílvia Kessel

João ReisZacarias Werner

João Tuna

João Reis não hesita em afirmar que foi aqui, no TNSJ, que interpretou alguns dos papéis da sua vida. Este regresso (fechou a temporada an-terior protagonizando um Hamlet a mais) soa, por isso, a conforto e familiaridade: «Foi aqui que cresci imenso como actor, sinto-me já par-te da prata da casa». A história – que percorre Dom Duardos, O Grande Teatro do Mundo, Noite de Reis, As Lições ou Hamlet, para citar alguns es-pectáculos – é conhecida; aponte-se ainda o fac-to de, mesmo aqui, o actor encontrar uma com-panhia com quem também já trabalhou (esteve em Até Mais Ver e em A Visita, ainda nas anti-gas instalações do Teatro Aberto). Repisado ca-minho, avancemos para discutir Zacarias Wer-ner, a personagem que exigiu a João Reis abrir mão de psicologismos e encarar o “brechtianis-mo” inerente à recusa de naturalismo expres-sa na peça de Botho Strauss. É ele mesmo que o diz, quando refere momentos de interpelação directa da plateia, quando parece sentir-se uma cesura na ilusão dramática que nos transporta para o território da denúncia desse mesmo ar-tifício teatral.

«Move-se como uma flecha à espera de atin-gir o seu alvo, que neste caso é Sílvia Kessel, ou melhor, aquilo que ela escreve, o seu livro.» Po-demos resumir assim a presença, incontornável embora difusa, da personagem Zacarias no de-correr do enredo, que propicia o seu cruzamen-to com uma miríade de experiências e encon-tros que o levam a assumir diferentes posturas e comportamentos. Numa das suas falas, Zaca-rias pensa-se a si próprio: «Será que hoje ainda se pode conceber uma imagem homogénea de uma personagem? Será que ela ainda existe, a personagem? Acho que não. Um dia sou um cí-nico, no outro dia um lírico. Hoje um misógino e amanhã um sedutor». Para João Reis, o editor «é movido pela paixão pelos livros, mas como tem uma editora independente, uma espécie de Black Son Editores (que é do Fernando Guerrei-ro, de quem por acaso sou amigo), usa e serve-se dos mais diversos recursos para conseguir edi-tar os seus livros. Mas não posso querer carre-

gar psicologicamente a personagem, porque isso não serve nem o papel nem a peça. Aqui te-mos um estilo de representação completamen-te diferente e difícil de agarrar, pelo ritmo que imprime, e que implica evitar carregar a per-sonagem de atributos psicológicos ou mesmo de uma moralidade. Aqui, não serve a persona-gem. E não me serve a mim como actor. Nesta peça é preciso fugir à tendência normal do ac-tor, que é ser naturalista na representação. O texto exige mesmo que os gestos sejam um bo-cado histriónicos – não no sentido depreciativo do termo, mas no sentido justo. Mesmo quando desempenho personagens de carácter mais ou menos duvidoso, não tenho por hábito julgá-las. Este Zacarias é um mentiroso compulsivo mas é uma pessoa fantástica, porque consegue atingir os seus objectivos – enganando meio mundo, enfim, e fazendo coisas que são obvia-mente censuráveis à luz de uma certa morali-dade, mas neste caso isso é completamente se-cundário. O Zacarias deve ser visto como uma pessoa apaixonada pelos livros, pelo cheiro do papel, pelas capas... Nem sequer se pode compa-rar a um político, porque estas são boas qualida-des. Claro que eu preferia – embora não tenha de fazer este julgamento – que ele não tivesse de enganar a Sílvia Kessel, nem de se vender aoBrigg [o gigante editorial que acaba por engolir a sua pequena estrutura], mas ele fá-lo por uma questão de sobrevivência, como quase todas as pessoas. Só espelha aquilo que é a realidade dura e crua da sociedade contemporânea, como aliás grande parte daquilo que é dito ao longo da peça. Há coisas que se dizem que são fantás-ticas: por exemplo, “a inteligência não protege ninguém da estupidez”, é uma coisa absoluta-mente divinal. São coisas maravilhosas de se di-zer, com o peso que as palavras têm, mas sem ter de se estar a fazer psicologia a partir daí». 1

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OUTUBRO 2003

“A PARTIR DE”Nuno M Cardoso Do estudo que fiz do Faus-to, interessou-me muito mais o Urfaust, uma pri-meira versão que Goethe escreveu com 24 anos e na qual abordava sobretudo a tragédia de Mar-garida. Interessou-me a relação entre o amor e a morte na tragédia desta mulher, e não tanto a personagem do Fausto, o homem com todas as suas problemáticas e demandas. As questões do Urfaust são mais de microcosmos, enquanto no Fausto são mais universais. Por outro lado, o Ur-faust é um texto muito mais passível de ser tea-tralizado, o Fausto é um colosso, que necessita de meios tremendos para ser posto em cena. Há ainda o carácter fragmentário deste primeiro esboço, que me interessou pelas hipóteses que me dá de jogar com várias linguagens. Portan-to, esta versão cénica é uma montagem a partir do Urfaust, com escolhas a nível dramatúrgico que tendem a centrar o espectáculo na perso-nagem de Margarida. Nesse sentido houve cor-tes estratégicos. O espectáculo chamar-se Gre-tchen é um sinal dessa formatação do texto de Goethe.

TRABALHO DE MESARita Loureiro A primeira dificuldade foi muito prática: lidar com um texto em verso. Ti-vemos que nos apropriar dele e, para isso, fize-mos uma abordagem quase técnica para que-brar essa cadência que o tornaria inaudível em teatro. Cátia Pinheiro Para além dessas questões, o desafio também teve que ver com o facto de o Nuno nos ter apresentado um texto cheio de cortes, muito fragmentado e em que muita coi-sa não está lá.NMC O meu primeiro e grande objectivo é ten-tar expor isto como um poema, cortando a ca-dência rítmica, métrica e de verso, mas com-pondo-o como poesia, como um espectáculo de contemplação e não tanto de acção.Tónan Quito No início fizemos um trabalho, como a Rita disse, muito técnico, para perceber o sentido do texto na sua essência. Como se di-zem as frases, onde se dividem as ideias. Acon-teceu estarmos a dizer palavra a palavra, ideia a ideia, quase como quem aprende a ler. Mas em relação às dificuldades é preciso dizer que o Nuno não nos conta metade do que tem na cabeça e do que quer do espectáculo. Vem con-tando. Nuno Cardoso Eu na mesa sou muito chato, como acho que eles podem testemunhar. Acho que é um trabalho importantíssimo e é aquilo que nos defende para o futuro. A partir daí cons-trói-se no meio de um grupo de pessoas, acredi-tando que se está a fazer uma coisa que mere-ce ser apresentada. É um fenómeno estranho e acho que esse pacto, para usar a terminologia da peça, se faz na mesa.

AS FILMAGENSTQ Fizemo-las sem ter muita noção do que es-távamos a fazer.RL Ainda não tínhamos personagens. (risos)TQ Elas tinham, mas eu e o Nuno ainda não sa-bíamos quais eram os desdobramentos que ía-mos fazer. Sabíamos que íamos ser Mefisto e Fausto, mas não quem é que fazia o quê em que cenas.NC Não houve propriamente um guião, como estamos habituados quando filmamos, e foi um processo em que realizador e equipa de filma-gens procuraram com os actores, no “fazer”, um sentido e uma ligação – estética, dramatúrgica – com a ideia base. Nesse sentido, foi cansativo.RL O mundo da imagem que o Vítor criou tem uma inteligência que eu considero muito inte-ressante, mas é muito dele. Parece-me que não houve de todo a necessidade de colar lingua-gens, pelo contrário, quanto mais diversifica-das fossem mais interessante seria. E nós, como

actores, só tivemos que nos mostrar totalmen-te disponíveis. NMC Mas há aqui uma ponte que se pode es-tabelecer. Frequentemente, eu vejo e sinto que muito do trabalho das filmagens foi absorvido.TQ É verdade. Na altura não tinha muito bem a noção do que estava a fazer mas depois, pen-sando um pouco, percebi que há coisas que esta-vam certas e podem ser aproveitadas. Agora ao ensaiar, às vezes lembro-me de cenas que filmei e que me dão um bom suporte.NC Durante os ensaios, aparecem coisas das filmagens. Apareceu, por exemplo, numa cena em que a maneira como se sustenta o texto tem muito que ver com a ambiência que foi criada durante aquele tempo que passámos no túnel da Ribeira a filmar. Agora, a pesqui-sa de actor em teatro é completamente dife-rente daquilo que é filmar. Eu acho que é um equívoco pensar que fazer teatro e fazer cine-ma vêm da mesma raiz, quando vêm de duas árvores diferentes. Fazer teatro não é fazer um filme ao vivo e fazer cinema não é fazer teatro gravado. RL O que é engraçado, e que tem que ver com essa questão de o Nuno ter qualquer coisa na ca-beça que não revela, é que apesar da sensação de que estás a responder a qualquer coisa que não te é dada na totalidade, sabes que essa tua res-posta é importantíssima. Há uma manipula-ção aberta...TQ ...e consentida...RL ...e de troca total.

AS PERSONAGENS. QUEM É QUEM?TQ Fala tu, que tens uma quantidade delas.CP Para mim é complicado. Eu tenho quatro...NMC Desculpem, mas vou abrir aqui uma ex-cepção – como hoje não há ensaio pode-se fu-mar. (risos)(Dois minutos e seis cigarros acesos depois)RL O desdobramento neste espectáculo não acontece só quando se faz mais do que uma per-sonagem. Eu, por exemplo, só tenho uma perso-nagem mas, noutro sentido, também me desdo-bro. Tem que ver com a natureza fragmentária do próprio texto, há coisas que não acontecem em palco e que são importantíssimas para o percurso da personagem. Daí a dimensão mis-teriosa e poética destas personagens. Ler poesia não é a mesma coisa que ler um texto narrativo, em que tudo é explicado. Há buracos que temos que ser nós a preencher.TQ Depois há a forma como fomos encarando o desdobramento. No início, o trabalho passou por ser mais intuitivo e não tão cerebral. À me-dida que fomos estabelecendo que parte do tex-to cabia a quem, surgiu a vontade de querermos deixar de ser nómadas e definir um percurso, preocupando-nos mais com a coerência da per-sonagem. A forma como se organiza isso na ca-beça leva tempo e ainda estamos em processo de trabalho. Estou a fazer o Wagner e a seguir vem uma cena que tem outro tipo de energia, com o Mefisto, a seguir faço o Fausto. Ontem, por exemplo, chegámos à conclusão que era muito importante observarmo-nos uns aos ou-tros, ver o que o outro está a fazer com a perso-nagem em que a seguir nós vamos pegar, para podermos perceber onde é que fica e o que te-mos que acrescentar.NMC Mas o meu objectivo não é, de todo, essa continuidade da personagem quando se troca de actor.TQ Daí a dificuldade ser maior.NMC Há uma espécie de takes, no sentido mais cinematográfico, em que num dado momen-to se tem que estar num estado e no fragmen-to seguinte se tem que estar noutro. Daí eu não querer uma linearidade. Apesar de haver uma história que é contada, para mim o mais im-portante não é o que se entende da história, mas como tudo isto é sentido.

De Urfaust a Gretchen

CP Que se transmitam estados de alma?NMC Que o próprio espectador crie um ou vá-rios estados de alma.

PONTO DE SITUAÇÃOCP É curioso nós, como actores, só termos um rasguinho de percepção do que será o espectá-culo final. Há mais pessoas a trabalhar noutras coisas que vão fazer parte do espectáculo, aqui só está um pedacinho.NMC A minha proposta até há bem pouco tempo era levantar questões a pensar na subjec-tividade de cada um. Uma característica do pro-cesso em que apostámos inicialmente foi pôr sempre um ponto de interrogação naquilo que é feito. E eu não dou respostas, daí muitas vezes eles sentirem-se perdidos. Nesta fase, é necessá-rio concorrer para alguma objectividade e resol-ver questões pragmáticas. TQ Levantámos imensas coisas, mas há cerca de uma semana que estamos a fazer um traba-lho de objectivação e de limpeza. Isto de inven-tar jogos chega a um ponto de esgotamento. NMC Estamos a começar a responder às ques-tões.TQ E estamos realmente a direccionar muito mais as coisas. É engraçado perceber que o tra-balho pequenino de limpeza que se vai fazen-do, se vê nas coisas que já aparecem muito bem colocadas ao nível da solução de questões. Pare-ce que andámos uma quantidade de tempo só a fazer jogos e depois, muito subtilmente, as coi-sas começam a fazer sentido. Não sabemos mui-to bem como é que isso acontece, mas tem sido engraçado. NC Por natureza, um actor repete. Por isso é que os franceses chamam aos ensaios répétition. O Tónan estava a falar dos jogos e, se calhar, a única coisa que retiramos de todos eles é a gi-nástica. Desse naipe de opções, há sempre um dia em que entra o fato certo para o corpo certo, e só se sabe como um tempo depois. 1

TeCA21–29 NOVEMBRO 2003

GRETCHENa partir de Urfaust, de GOETHE

traduçãoJOÃO BARRENTOencenação e dramaturgiaNUNO M CARDOSOcenografia /concepção plásticaPAULO CAPELO CARDOSO figurinosCARLOTA LAGIDOdesenho de luzNUNO MEIRAsom/músicaNERV/TATSUMAKI(VORTEXSOUNDTECH)imagem/realizaçãoVÍTOR COSTAdirecção de fotografia VIRGINIE SURDEJassistente de realizaçãoJAKUB ANDREZ SMOLARSKI

interpretaçãoCÁTIA PINHEIROLEONOR KEILNUNO CARDOSOPEDRO LACERDARITA LOUREIROTÓNAN QUITO

co-produçãoO CÃO DANADO E COMPANHIATNSJ

terça-feira a sábado 21h30domingo 16h00

Antevisão

Sala Branca, 5 da tarde. O local e a hora são geralmente os do ensaio de Gretchen, encenação de Nuno M Cardoso a partir de Urfaust, de Goethe. Mas desta feita, encenador e actores (os quatro que estarão fisicamente em palco, diga-se, porque o crédito da interpretação é mais extenso e inclui quem integra o espectáculo pela via exclusiva das imagens) estavam convocados para falar sobre o projecto em que embarcaram há cerca de dois meses. Do trabalho de mesa ao peculiar processo de filmagens, das dificuldades aos desafios, das muitas perguntas que foram lançando às respostas que começam a ganhar contornos definidos. Destes e de outros tópicos se fez a conversa em que, para além da rotina do ensaio, outras regras de funcionamento interno foram quebradas. Susana Morais

Paulo Capelo Cardoso

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OUTUBRO 2003

Em que pontos concretos é que o vosso traba-lho começou por cruzar-se? Vítor Costa Apesar de cada um ter tido res-ponsabilidades diferentes, a escolha do méto-do de trabalho e do que queríamos do espec-táculo foi feita antes entre mim e o Paulo. Por outro lado, os dois trabalhos têm que estar ar-ticulados porque a imagem tem que fazer par-te da cenografia e não ser uma coisa deslocada da arquitectura do espaço. Há a preocupação de que isso aconteça, por exemplo, em relação aos ecrãs onde as imagens vão ser projectadas, e es-tamos a trabalhar juntos nisso.

E qual foi o método de trabalho que estabe-leceram? Paulo Capelo Cardoso O ponto de parti-da em termos de metodologia foi a preocupação de que o processo de trabalho fosse uma coisa aberta, livre, sem uma partitura definida a prio-ri que condicionasse o processo. Um processo, no fundo, à semelhança do Fausto: fragmentá-rio, errante. Vimos de áreas diferentes, temos sensibilidades diferentes. Há um jogo de pro-por, de errar, de experimentar e é o resultado desse processo aberto e livre que é depois objec-to de uma espécie de colagem.VC As opções que tomámos têm que ver com uma necessidade de fazer com que o espectácu-lo não exista só no momento em que o especta-dor está a assistir, com uma desmistificação do chamado momento teatral. Trata-se de criar uma memória que se prolongue quando as pes-soas vão para casa.

É para alcançar esse propósito que a imagem pode contribuir decisivamente? VC Claro.

Sendo que, neste espectáculo, para além do vídeo é também, ou sobretudo, de cinema que falamos. VC Nós estamos a tentar ter projecção de película porque em termos plásticos é muito mais forte do que a projecção em vídeo. O cinema e o teatro têm essa possibilidade de abrir um espaço de memória no espectador mas, juntando os dois, nós temos a esperança, e estamos a trabalhar para isso, que se crie uma coisa diferente. Além disso, é importan-te – e esse foi o desafio do Nuno M Cardoso – que os actores de teatro sejam confrontados com uma câmara, com a sua imagem e com as suas improvi-sações. O método de trabalho que usámos foi o de dar ao actor todas as possibilidades para construir a sua personagem e, a partir daí, ele optar. Foi ne-cessário procurar depressa e com muita intensi-dade quais os caminhos a percorrer.PCC Eu acho que não há grande sentido em es-tar a pensar se é vídeo, se é cinema. O importan-te é a ideia de conjugação entre várias lingua-gens e pensar que a imagem permite outro nível de presença, de percepção, de memória. São dois níveis diferentes que, articulados, trazem uma outra riqueza ao trabalho. Desde o fim do século XIX que se experimentam essas contaminações e, neste momento, aproximamo-nos muito do conceito wagneriano de “obra total”.VC Sempre que trabalhei com o Nuno M Cardo-so houve a tentativa de conjugar o cinema com o teatro. É uma pesquisa que não é de agora, já tem alguns anos e procura que as coisas não sejam es-tanques – que o teatro seja teatro, que o cinema seja cinema –, mas criar algo mais amplo. Deci-di ir para a Polónia estudar porque precisava de formação em realização, mas isso não impede a pesquisa de formas de plasticidade interactiva com o teatro, a performance ou a instalação.

E foi da Polónia que trouxe dois dos elemen-tos que integram os criativos envolvidos nes-te projecto, e especificamente a sua equipa.VC Há já três anos que trabalho na Polónia com a Virginie Surdej como directora de fotografia. É uma pessoa que fez a escola de cinema na Bél-gica e esteve dois anos na escola de cinema da Polónia. Juntamente com ela trouxe o Jakub Andrez Smolarski, que também trabalha comi-go há dois anos, faz assistência de realização no sentido de trabalhar com os actores antes e du-rante as filmagens.

As imagens serão mais um contraponto ou um complemento relativamente ao que acontece em palco?VC As duas coisas: ruptura e contradição ou complementaridade. Existem momentos em que a imagem funciona como memória ou es-pelho e outros em que proporciona uma outra visão sobre a mesma coisa, que complementa o que está a acontecer em cena. Complementa e acrescenta.

Nos casos em que há duas perspectivas dis-tintas, uma em palco, outra nas imagens, elas correspondem, respectivamente, à visão do Nuno M Cardoso e à visão do Vítor Costa?VC De forma nenhuma. São possibilidades que o texto deixa e que nós explorámos. As imagens são mais um elemento dramatúrgico e não fo-ram pensadas como sendo a visão exterior de um criador.

E de que possibilidades de leitura oferecidas pelo texto partiu o trabalho de cenografia?PCC Como o espectáculo se centra na procu-ra das personagens por um caminho, há uma

série de movimentos interiores e acções exte-riores. A minha preocupação foi tentar fazer co-existir no cenário essas duas dimensões. O cenário é composto por paletes que, como ele-mentos modulares que são, permitem uma in-finidade de construções, tal como os legos. Com elas, as personagens vão construindo peque-nos habitáculos: os seus abrigos, caminhos, ilhas, territórios. Sendo o cenário mutável, a cena torna-se um lugar de perpétuo movimen-to. O grosso da cenografia é mesmo a imagem nua e crua das paletes, aquela paisagem que acaba por ser relativamente neutra: é tudo a mesma matéria, não tem cores, não tem outras formas.

Mas a neutralidade desaparece quando as personagens intervêm e alteram a disposi-ção dos módulos. PCC Sim, é neutra como paisagem, depois há esse jogo e o cenário é modificado pela acção das personagens. As paletes possibilitam uma série de metáforas. Numa situação de empilha-mento dão uma ideia de ordem, de imponência; pela altura, de prisão, de refúgio. Por outro lado, numa situação de isolamento dão-nos uma imagem de caos, ruína e fragilidade.

Para terminar, em que ponto está o trabalho de cada um de vocês neste momento?VC O processo de filmagem com os actores está terminado. O que está a começar agora é o pro-cesso de montagem, quer de vídeo, quer de pe-lícula.PCC Ao nível da cenografia o trabalho está es-tabilizado. O que falta agora é aquele processo de que falei, de colagem do trabalho de toda a gente, montar e terminar o puzzle. 1

Para além da normal e necessária articulação entre todos os criativos que estão envolvidos na construção de um espectáculo, há áreas cujos pontos de intersecção exigem uma conjugação de esforços particular. É o que acontece com as componentes de imagem/realização e concepção plástica/cenografia de Gretchen, créditos entregues respectivamente a Vítor Costa e Paulo Capelo Cardoso. Foi por isso mes-mo que primeiro optámos deliberadamente pelo separatismo e os subtraímos à conversa colectiva que se pode ler na página ao lado, e depois os juntámos numa entrevista com resposta a duas vozes. SM

Palavras cruzadas

Antevisão

Vítor Costa

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OUTUBRO 2003Antevisão

A vontade de voltar a apresentar o espectácu-lo não é de agora. Contas feitas – e somadas as apresentações no Rivoli, CCB e Teatro Sá de Mi-randa, em Viana do Castelo –, foram oito as ve-zes que (A)tentados se mostrou ao público. Sou-be a pouco. Os cinco anos da ASSéDIO foram o pretexto certo na hora certa: para além de uma estreia, pensou-se que a comemoração deveria incluir também a remontagem de um espec-táculo do currículo da companhia. No Campo cumpre o primeiro requisito – e leva-o mais lon-ge, porque esta é a primeira vez que o texto de Martin Crimp é encenado em território nacio-nal – e (A)tentados assumiu-se como uma boa hi-pótese para completar o cartaz da festa. Na ca-beça de João Pedro Vaz foi, de imediato, a opção de refazer em detrimento de duplicar que come-çou a ganhar forma. «Não me apeteceu nada re-petir o espectáculo porque seria sempre um exercício algo arqueológico. Depois, porque senti que se lhe pegasse outra vez havia coisas que faria de maneira diferente.»

E fez, animado sobretudo por uma outra lei-tura do texto que, diga-se, não precisou de for-çar porque o tempo encarrega-se de proporcio-nar perspectivas diferentes. «Regressei ao texto e comecei a pensá-lo de outra forma. Mas foi na-tural, não fiz esse exercício excessivamente. De facto, hoje vejo-o de maneira diferente.» Vê-o mais áspero, com mais arestas e, por isso, este é um espectáculo com mais contrastes que o an-terior. «Esta versão passa por amplificar uma coisa que na outra não era muito nítida: a ideia de construção. Por isso, este é um espectáculo com muito mais remendos à vista.» Por remen-dos podem entender-se as ligações entre os 17 argumentos para teatro que compõem a peça. Como em 2000, continuam a corresponder a ce-nas autónomas, mas a fluidez da primeira ver-são dá agora lugar a uma marcada separação en-tre elas – a começar, desde logo, pelo blackout

que se intromete entre cada uma, e que cum-pre o objectivo de João Pedro Vaz de que haja «um constante on/off narrativo». O resultado? «Um zapping, se quisermos usar uma metáfo-ra mais directa, está-se sempre a saltar de cená-rio em cenário.»

A pensar nos objectivos de acentuar os con-trastes e reduzir a fluidez, este é um espectácu-lo, segundo João Pedro Vaz, «com menos ma-nobras de diversão em cena». O mesmo é dizer que a componente coreográfica foi diminuí-da, muito à custa da redução das cenas colecti-vas em que os actores iam circulando pelo es-paço cénico. Uma nova distribuição do texto, portanto, tirando partido das inúmeras pos-sibilidades deixadas por uma peça em que os travessões se sucedem sem atribuição de falas. «É um texto que é preciso insuflar de persona-lidades. Não há atribuições de personagens, mas não são vozes no sentido despersonali-zado do termo. As pessoas que estão em cena não são personagens na medida em que não têm percurso psicológico, mas têm uma per-sonalidade que é coerente com o discurso que transportam.»

Um discurso que mistura ironia, humor e crueza, e que é o canal privilegiado por Martin Crimp para fazer passar a violência que atraves-sa o texto. «Contrariamente a outras propostas contemporâneas em que a violência é sempre acção, no Crimp ela aparece no discurso. É mais cerebral, mais clínica. Nele, a violência nunca é consequência de comportamentos desviantes, é do mais normal que existe.»

Sinal inequívoco do desaparecimento da di-mensão poética e «mais colorida» da primei-ra encenação são os cortes na banda sonora. «Saiu tudo o que era mais pop, o trá-lá-lá-lá-lá britânico e as músicas em que se batia o pe-zinho desapareceram.» Ou seja, não há músi-cas dos Divine Comedy para ninguém. Mas há

muitos ambientes sonoros que sobreviveram e que se juntam a tudo aquilo que a remonta-gem admite no capítulo “O que é reconhecível dos (A)tentados de 2000”. Aos ecos da primeira encenação, juntam-se ainda alguns mais im-prováveis, vindos de outras peças que fazem a biografia da ASSéDIO. Aproveitando o contex-to de efeméride, João Pedro Vaz decidiu recu-perar os figurinos de Uma Noite em Novembro, Distante ou Peça com Repetições e utilizá-los nes-ta encenação. «Achei que podia ter piada jogar com a memória de quem assistiu aos espectá-culos, de quem os fez e da própria companhia.» A reapropriação parece ser, aliás, ponto de hon-ra deste espectáculo que, em 2000, reconfigu-rou a cenografia de Peça com Repetições, e ago-ra repete a dose ocupando o espaço cénico de No Campo.

Já a gestão dos reaproveitamentos da primei-ra encenação foi um verdadeiro jogo de cintura. «Não me impus nenhum princípio proibitivo, nem o contrário. Em relação a algumas cenas tive ideias diferentes, noutras não. Foi aconte-cendo, não houve nenhuma regra. Ao mesmo tempo que não quis recuperar o outro espectá-culo, também não o quis rejeitar porque gos-to muito dele.» Vale a pena, contudo, advertir que quando se fala em elementos reconhecí-veis está implícita a ideia de reciclagem. Mes-mo quando algumas cenas remetem para o es-pectáculo de 2000, há sempre qualquer coisa que muda, uma nuance que altera a ambiência da cena e faz sentir que este é outro espectáculo. «É mais desiludido e, como é mais exagerado, é menos tranquilo.» Como o próprio encenador. Ao contrário do que acontecia na primeira ver-são, João Pedro Vaz não acumula a função com a de actor, e isso também faz a diferença: «Eu não gosto muito de ficar sentado a ver o espectácu-lo. Da outra vez, senti-me aliviado no dia da es-treia. Agora vou ficar mais nervoso.» 1

TeCA21–31 OUTUBRO 2003

(A)TENTADOS17 argumentos para teatro

deMARTIN CRIMPtraduçãoPAULO EDUARDO CARVALHOencenaçãoJOÃO PEDRO VAZcenografiaSISSA AFONSOfigurinosBERNARDO MONTEIROdesenho de luzNUNO MEIRAsomFRANCISCO LEALvídeoAPIARTE

elencoIVO ALEXANDREJOÃO CARDOSOLÍGIA ROQUENICOLAU PAISPAULO FREIXINHOROSA QUIROGARUTE PIMENTAproduçãoASSéDIO

terça-feira a sábado 21h30domingo 16h00

Re-(A)tentadosNão são apenas três anos o que separa o espectáculo encenado por João Pedro Vaz em 2000 e aquele que agora está prestes a ser apresen-tado. A encenação de (A)tentados que sobe ao palco do Teatro Carlos Alberto rejeitou a possibilidade de “reposição” e optou pela via da “remontagem”. O mote para a conversa com o encenador estava dado e, inevitavelmente, foi guiada pelo exercício comparativo “antes e depois”. Afinal, o que se mantém reconhecível e o que se alterou substancialmente? As respostas vêm já de seguida e, com elas, um retrato destes outros (A)tentados. Susana Morais

Fotografia de ensaio Hugo Calçada

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OUTUBRO 2003Inteligência Artificial

Ana Luísa Amaral

«My life closed twice before its closeIt yet remains to seeIf Immortality unveilA third event to me

So huge, so hopeless to conceiveAs these that twice befell.Parting is all we know of heaven,And all we need of hell» Emily Dickinson

Numa revista que se dedica à divulgação e crí-tica de teatro, não sei bem que dizer, eu, que só divulgo as peças a que assisto e de que gosto, en-quanto espectadora, e que, no que respeita à crí-tica, só transmito aos meus alunos formas de ler (e, com eles, aprender) alguma da dramaturgia shakespeariana. Por isso, não sei muito bem por onde começar a escrever sobre um espectácu-lo que foi para mim dos mais belos a que assisti nos últimos anos. Esse espectáculo compósito, encenado magnificamente por Nuno Carinhas e interpretado, também com rara sensibilidade, por Sandra Faleiro e João Lagarto, pôs em cena, no Teatro Nacional São João, Uma Peça Mais Tar-de e O Jogo de Ialta, de Brian Friel.

Sobre a obra de Brian Friel tenho vindo a sa-ber cada vez mais através da divulgação amiga (e essa, sim, verdadeiramente divulgação, no sentido em que é feita a partir de um olhar espe-cializado e atento) da mesma pessoa que tradu-ziu estas duas peças – Paulo Eduardo Carvalho. Com ele aprendi (e senti) outras peças de Friel, que não é oportuno trazer para este pequeno de-poimento; refiro só Traduções, no que essa peça me pode servir como ponto de partida para o que vou dizer.

Mais para o fim, retomarei a epígrafe inicial, mas, para já, retenho Traduções, um texto que se debate com o problema da comunicação huma-na, com a transposição (ou intransposição) da informação – e também com trocas e heranças (linguísticas, históricas, culturais). E era então por aqui que eu gostava de começar: pela con-fissão de que, tendo embora lido Três Irmãs, de Tchekov, não li o seu Tio Vânia, e não conheço, portanto, Sónia, a personagem que, juntamen-te com Andrei, o irmão de Três Irmãs, ajuda a es-truturar Uma Peça Mais Tarde. Quando fui as-sistir à representação desta peça de Friel, tinha pois, somente metade de uma vida com que li-dar e me confrontar (tinha, se calhar, uma “in-verdade”). Mas, mais “grave” ainda, não li de todo o conto de Tchekov A Senhora do Cãozinho, que serve de inspiração a Friel para escrever O Jogo de Ialta. Pareço ter perdido, portanto, re-des intertextuais, percepções sobre o rasgar de um tecido original sobre o qual Friel empreen-deu depois, com a imaginação e com esse ins-trumento, simultaneamente frágil e podero-so, que é a palavra, todo o labor da (re)criação. E todavia, ao contrário do que foi escrito algu-res, numa notícia sobre o espectáculo, não senti falta nenhuma de não ter lido esses textos. Pen-so num poema-chave para o modernismo an-glo-americano, The Waste Land, de T.S. Eliot, te-cido também, parcialmente, a partir de versos alheios («fragmentos», como lhes chama, a cer-ta altura, uma das vozes que fala o poema), e na-quilo que é para mim uma convicção forte, tan-tas vezes transmitida aos meus alunos – que não é necessário ter lido, por exemplo, The Golden Bough, nem Tristão e Isolda, nem Laforgue, ou Buda, para que o poema faça aquilo que os poe-mas devem fazer: causar uma sensação de bele-za e de estranhamento. Vou mais longe: ter lido Tchekov ter-me-ia, muito provavelmente, pri-vado da absoluta devastação interior com que me marcaram as palavras e a mensagem frielia-nas e a própria delicadeza e força cénicas do es-pectáculo e das interpretações. Não tendo tido a

transposição, tive a informação; não tendo tido a herança, tive o património afectivo e estético que o espectáculo mesmo me forneceu.

Gostaria de evitar repetir aqui essa que con-sidero uma das grandes frases que marca am-bas as peças, embora a encontremos somente em Uma Peça Mais Tarde. Mas vou fazê-lo: refiro-me à «infinita tundra de isolamento e solidão», posta na boca de Sónia, frase para mim só com-parável a essa definição de vida por Shakespea-re, em Macbeth: «uma história (...) feita de som e de fúria, significando nada». Mas, no origi-nal, como se sabe, a palavra usada por Shakes-peare é não exactamente “história”, mas “tale” – que quer dizer “conto”, mas também “fábula”, e que pode igualmente, no sentido mais moder-no e próximo de nós, ser adaptado para “ficção”. As fábulas, ou ficções (ou pequenas “inverda-des”) sobre as quais se constroem as histórias de vida de Sónia Serebriakova e Andrei Prózo-rov, as duas únicas personagens de Uma Peça Mais Tarde, estão cheias dessa matéria sonora, e todavia ausente de significados estáveis e re-confortantes. O mesmo pode dizer-se das histó-rias de vida de Dmítri Gúrov e Anna Serguéev-na, as duas, também, únicas personagens de O Jogo de Ialta.

Em Uma Peça Mais Tarde, essa «imensa tun-dra de isolamento e solidão» é partilhada por Andrei e Sónia. Se Andrei não toca na Ópera, mas na rua, se não existe nenhuma Mimi res-plandecente na sua vida, nem a razão pela qual ele vai todos os meses a Moscovo tem a ver com música (a sórdida verdade é que o seu filho está preso, a sórdida verdade são os subornos de que ele se serve para entrar na prisão a fim de visitar o filho), Sónia está desesperadamente apaixo-nada pelo mesmo homem, Ivan, há vinte e três anos, sendo tocada, de vez em quando, por ele, e assim sentindo-se (com)sagrada. Esses brevís-simos instantes (sobretudo a recordação desses instantes) não são, como ela própria reconhece, «uma grande maneira de se viver uma vida»; e todavia, é deles que ela vive, mesmo através da necessidade obsessiva de deles falar e, assim, os tornar ficções – paradoxalmente reais.

A primeira peça termina com a suspensão de um reencontro entre Andrei e Sónia, que cabe a nós, espectadores, imaginar – e tornar real (ou não). Termina ainda com a ideia, proposta por Sónia, de que, quando lhe for possível convo-car «firmeza de ânimo», essa virtude cardeal a que chamamos «fortaleza», então, a sua vida co-meçará novamente a ganhar alguma coerência. Isso acontecerá quando a «tundra de isolamen-to e solidão» não representar já qualquer ter-ror. A grande questão é intuirmos que esse de-sejo em Sónia não passa de uma efabulação: um amor desesperado de vinte e três anos não pode nunca ser substituído, sob pena de uma imensa redução e asfixiamento das emoções, pela paz trazida por aquilo que não passa de virtude car-deal. É que o terror faz parte do sublime, e é na linha do sublime (terror + êxtase) que se move Sónia nos momentos em que se encontra com Ivan. E nas memórias desses momentos.

Usei, no parágrafo acima, o símbolo “+” pro-positadamente: a designação pela qual era anunciado o espectáculo usava-o também: Uma Peça Mais Tarde + O Jogo de Ialta. É que se, na pri-meira peça, o terror se sobrepõe ao êxtase, em-bora ambos se complementem, parece-me que o oposto se passa na segunda peça, em que o êx-tase se sobrepõe ao terror, complementando-o igualmente, todavia. Em O Jogo de Ialta (peça que preencheu a segunda parte do espectáculo e que foi aquela que mais me marcou e profun-damente comoveu) encontramos a subversão da própria ideia de jogo, com um homem casa-do, Dmítri Gúrov, habituado a atrair mulheres, a servir-se de «jogos subtis, ardilosos», e acaban-do por cair na sua própria armadilha, ao apaixo-nar-se, também perdidamente, e pela primeira vez na sua vida, por uma mulher casada, Anna,

Terror + êxtase, ou do sublime:A propósito de Uma Peça MaisTarde + O Jogo de Ialta

que ele pretendia somente seduzir. A acção inicia-se em Ialta, uma estância de

veraneio, onde somos convidados e conduzi-dos (tanto como o é Anna), por Gúrov, a espe-cular sobre as vidas dos turistas que imagina-riamente se vão passeando. Ao mesmo tempo que espreitamos essas vidas (sobre as quais as duas personagens ficcionam e efabulam), es-preitamos também as vidas de Anna e Gúrov. E é como se assistíssemos a um jogo de espe-lhos, em que perigosas ligações e complica-dos reflexos se vão tecendo: as vidas de Anna e Gúrov são as vidas próprias que cada um deles leva, mas são também as vidas (duplas) que am-bos exploram, a partir do momento em que se apaixonam e do encontro amoroso nessa espé-cie de espaço utópico que é Ialta. Aí, a despedida é, como não podia deixar de ser, inevitável, com todos os ingredientes adequados a despedidas trágicas – um comboio que silva, a mão que ace-na, as confissões de amor, dramáticas e (aparen-temente) finais. Mas os pedidos «não me beijes, por favor», carregados de desejo, ou declarações como «vou amar-te para sempre», ou ainda o re-petido «não vou ver-te nunca mais», são frus-trados por aquilo que é oferecido ao espectador e que ele não sabe se é ficção, se é fábula, ou se aconteceu de facto: é assim que assistimos à des-crição de repetidos reencontros em Moscovo; a Anna, em casa, declarando que, mesmo saben-do que «nunca mais (...) voltar[á] a ver» Gúrov, ele estará «sempre com el[a], sempre»; a Gúrov, aprisionado numa ficção mais verdadeira que a vida quotidiana, em que o imaginado, o recor-dado, se torna «o real, a única realidade».

É aqui, penso, que a ordem dos elementos da fórmula que usei acima para falar do subli-me em Uma Peça Mais Tarde (terror + êxtase) pode ser invertida: o sublime está também em O Jogo de Ialta, mas aí é o êxtase que predomina, embora sempre aliado ao terror – da perda, da impossibilidade de gerir afectos, da incontro-

lável e avassaladora invasão do amor. O terror de pensar e sentir a «vida autêntica» como uma vida de enganos e o terror de sentir e pensar a vida enganadora como verdadeira vida, com «as suas próprias autenticidades» acaba, apesar de tudo, por ser dominado pelo êxtase de uma possibilidade, que é já em si um desfecho e uma despedida. E contudo, se as últimas palavras fa-lam de um inevitável fim que se aproxima, a úl-tima fala (e, neste momento, não interessa rigo-rosamente quem a profere) é um «Beija-me (...). Por favor». Aos espectadores fica a frustração novamente de uma história/fábula/ficção cheia de som e de fúria, com significados profunda-mente instáveis e perturbantes. E, ao mesmo tempo, muito belos.

Retorno, agora, ao poema de Emily Dickin-son, de que me servi como epígrafe para abrir este curto depoimento. Esse poema prende-se com o que me parece ser uma constante nas duas peças: a presença de dois lados + um, ou duas formas + uma de ver e sentir o mundo. De como a certa altura, percebemos que tudo o que se passa nas duas peças pode ser «uma fábula», ou «uma ficção», ou «uma minúscula inverda-de». As vidas que, no poema de Dickinson, se fe-cham duas vezes, antes mesmo da possibilida-de de se fecharem, deixam antever uma terceira vida, como se o nada e o tudo, a suprema feli-cidade e o enorme terror, o Paraíso e o Inferno, não passassem de categorias permutáveis – mas também como se houvesse ainda um entre-espaço viável, em que o nada e o tudo se confun-dissem, sem precisarem de ser resolvidos. Essas vidas são as vidas das quatro personagens de Uma Peça Mais Tarde + O Jogo de Ialta. Enfrentan-do o que é, aparentemente, um paradoxo: que a (suspensa) partida, ou despedida (afinal, tal como o “tale”, de Shakespeare, também o “par-ting”, de Dickinson, permite sentidos diversos) é tudo o que precisamos do Inferno – mas é tam-bém o tudo que podemos saber do Paraíso. 1

João Tuna

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Eugénia Vasques

Dedico este texto à Teresa Porto, cuja imagem de marca, feminina, esbelta e de elegância sua-ve, coincide com a Sónia de Sandra Faleiro na primeira imagem da primeira cena, a cena de abertura do espectáculo.

«Uma mesa e duas cadeiras! O ideal! [...] A mesa fornece um ponto de apoio sólido e permite be-los e vivos gestos; a mesa é como um traço-de-união entre as personagens que falam, ela dá co-erência ao diálogo, ela separa e une; é como um dueto na ópera.» (Strindberg, cit. em Aslan,* p. 652; tradução minha)

1º Volante: A Mentira e a Desmontagem das “Pequenas Fábulas”, das “Pequenas Inverdades”; sob o signo da ópera estrangeira (La Bohème, de Puccini).

A história genética do mais recente espectácu-lo apresentado pela Escola de Mulheres em co-produção com o Teatro Nacional São João do Porto, descrita, em texto de Fernanda Lapa, no belo programa lilás distribuído aos espectado-res de Uma Peça Mais Tarde + O Jogo de Ialta, im-pede-nos, à tangente, de nos lançarmos no abis-mo da especulação interpretativa.

Afinal, a relevantíssima dramaturgia deste espectáculo assinada pelo traço de Nuno Ca-rinhas, um dos criadores a quem, desde que – muitos anos passados sobre as nossas experi-ências em comum nos cursos de Águeda Sena e da bailarina alemã Eva Winkler – me pus a ob-servar as suas encenações, associo a ideia de edi-ficação de territórios teatrais, afinal a arqui-tectura dramatúrgica, dizia eu, é da autoria do próprio Brian Friel!

As razões para a articulação destas duas pe-ças num espectáculo podem ser de fundo prá-tico, económico ou outro. Mas a verdade é que, à leitura, a associação de Afterplay (2002) com The Yalta Game (2001) tem toda a razão de ser como estrutura. E em traços muito, muito ge-rais, como funciona a dramaturgia decorrente desta ligação de peças? Atentemos.

As duas peças que compõem o espectáculo em presença são constituídas, na economia, vi-sível, da poética da cena, por elementos dramá-ticos centrais aparentemente paralelos – uma mulher + um homem + um espaço fechado (nocturno), etc. (Uma Peça Mais Tarde)/um ho-mem + uma mulher + um espaço aberto (diur-no), etc. (O Jogo de Ialta). Na primeira peça, Friel procede a uma operação de escrita que consis-te em “transplantar”, para uma época semi de-finida («no início da segunda década do sécu-

lo XX»), duas personagens de peças maiores de Tchekov, respectivamente, Sónia, a sobrinha de O Tio Vânia (remodelação, de 1897, de uma peça anterior, O Duende da Floresta) e André Prózorov de Três Irmãs (1901).

Eu já vi várias “transplantações” de peças de Tchekov funcionarem muito bem. Um caso, e dos que considero mais entusiasmantes, é o fil-me Vanya on 42nd Street, uma espécie de ensaio de leitura da peça num edifício urbano em ru-ínas, com os actores vestidos nas suas roupas “civis”!

Bom, esta operação de transplante (de Tchekov para Friel) não funcionou. Nem a tra-dução – e Paulo Eduardo Carvalho é um tradu-tor titular de Brian Friel –, nem a encenação – ainda que Nuno Carinhas tenha inteligente-mente colocado esta particular “revisitação” num plano explícito de metateatro, com recur-so à técnica de “uma mesa e duas cadeiras”, e à metáfora da cortina de teatro (e à da gaiola que “prende” a luz!) –, nem a interpretação da dupla de actores tão especiais como João Lagarto e San-dra Faleiro conseguiram tornar, para mim, orgâ-nica, convincente, esta parte do espectáculo, em todos os aspectos tão cuidada como a segunda.

E porque não poderia funcionar, teatralmen-te falando (pois à leitura o caso não é exacta-mente o mesmo), este particular exercício de escrita de Friel? Para fazer de um largo conto uma história curta – o que, aliás, é uma boa ati-tude para pensar Tchekov, o introdutor do géne-ro breve na literatura russa –, resumiria assim a minha intuição interpretativa: Brian Friel esqueceu-se, digamos assim, que as persona-gens das grandes peças de Tchekov são, em primeira instância, as suas circunstâncias! Isto será um anacronismo, pois o pensamento é existencialista. Porém, o que faz a grandeza e perenidade do grande autor russo não é só o seu “impressionismo” técnico, o seu “naturalismo” científico, a sua atitude objectiva destituída de “ponto de vista” único. É que as suas persona-gens são arquétipos de um tempo, de uma socie-dade em mudança, de uma angústia não identi-ficada mas intuída, actores sociais de situações à beira da catástrofe.**

Daí o ser, teoricamente, aceite que as gran-des peças de Tchekov possam ser interpreta-das ora como tragédias (se quisermos, como a crítica russa e depois a soviética fizeram du-rante muitas décadas, colocar o dramaturgo no paradigma dos autores niilistas, decaden-tes, socialmente “indiferentes”) ora como co-médias (o que a crítica, sobretudo anglo-sa-xónica, se deliciou a fazer a partir dos anos 60, arrastando, com isso, o autor para o estreito território da sátira e da paródia de onde parti-

ra nos seus alimentares e laboratoriais contos “humorísticos” de juventude, humoresques, em inglês, “anedotas” talvez seja o equivalente em português).

E ao “arrancar-se” as personagens das suas “raízes” situacionais, ambientais, enfim, exis-tenciais, as personagens “morrem” por secu-ra. A Sónia e a André falta o seu contexto pró-prio, o seu solo, a contracena com as demais personagens do seu habitat próprio, ainda que reconheçamos palavras que os identificaram lá longe, algumas peças atrás... É claro que isto só é possível compreender “depois” do experi-mento de Friel que, francamente, por momen-tos parece um daqueles malfadados exercícios que os professores de interpretação portugue-ses (que querem fingir que sabem lidar tecnica-mente com os avatares do Naturalismo no tea-tro) obrigam os estudantes a fazer: «Façam uma ficha de identidade das personagens! Imaginem o seu passado! E o seu futuro! Como será Sónia/André no início dos anos 20?».

O exercício em si não está errado. Mas os pressupostos podem, como no caso, gerar uma monstruosidade. É certo que Friel lida, subtil e até ironicamente, com os anos 20 soviéticos (ainda que tentando “demonstrar” – para tal-vez não se comprometer excessivamente, mas que é uma das “falhas” do dramaturgo – que não é ele que ignora os quase dez anos de Revo-lução Bolchevique: são as personagens). A acção até tem data certa, se procurarmos bem os indí-cios semeados pelo dramaturgo irlandês. Na mi-nha leitura, a acção decorrerá, talvez, no ano da morte de Lenine (Janeiro de 1924), num tempo político assaz estável da Revolução de Outubro em que não havia fartura, é certo, mas em que a Ópera podia ainda apresentar o burguês Puc-cini (sim, sim, Sónia, ele nasceu em 1858 e esta-ria quase a morrer em Bruxelas, ou já morrera, enquanto você perdia o seu tempo com o pobre André), uma época em que a pequena proprie-dade, como a de Sónia, se substituía por uma política de florestação – para alegria dos ecolo-gistas como o Astrov (Tchekov?) –, em que Ale-xandra Kolontaï era despachada para a Noruega (como embaixatriz) e em que Estaline ainda não começara a decapitar os artistas de vanguarda! Ou em Dezembro de 1923, para que a morte re-cordada do Tio Vânia tenha “coincidido” com a morte do seu autor, em 1904...

2º Volante: Confusão Produtiva entre “Verdade” e “Ficção”; sob o signo da Valsa Nacional (Shostakovich).

A segunda peça constitutiva do espectáculo é, pelo contrário, um total sucesso de escrita que

permite, agora, ao encenador, aos cenógrafos (Ana Vaz, Nuno Carinhas), ao sonoplasta (Fran-cisco Leal) – belíssimo o trabalho do texto mu-sical e dos sons como elemento dramático acti-vo –, ao iluminador (José Carlos Coelho), a João Lagarto e Sandra Faleiro, o “seu” jogo de Ialta, de invenção de ficções que, à excepção das solu-ções à la Bob Wilson antigo, nos mergulha num universo que é de Friel, pela linguagem dramá-tica de chegada, que é de Tchekov, pelos pretex-tos de partida, que são de Nuno Carinhas, pela evidenciação dos seus traços distintivos – a flui-dez, o movimento (semi) coreografado dos ac-tores na sua relação com o espaço e os objectos, evoluindo, rápidos, neste programa de “trans-formação”; as cadeiras como elemento nuclear desse movimento, ou até por aquele gentil “gol-pe de teatro” na cena em que Anna se despede do amante Gúrov, no comboio, recuando para trás da cortina que sobe e, com esse tão velho truque, convoca toda a artificialidade da con-venção teatral – o esconder (que o “evidenciar” é outra história) –, a lembrar-me, aliás, gestos de outros territórios como a coreografia Casta Diva (de Olga Roriz/Nuno Carinhas) de 1993.

O que terá “libertado”, assim, Brian Friel nes-te exercício de escrita com pretexto? Talvez o facto de não se estar perante o lirismo do “gran-de” Tchekov das personagens-situação, mas sim perante o terreno aberto, épico, de observação objectiva, clínica (se bem que também sobre experiência própria, veja-se esta “Ialta”), que Tchekov tanto treinou, sobretudo antes mas também durante o tempo em que esboçava al-gumas das suas grandes peças.

A verdade é que agora o teatro flui. Brian Friel mergulha francamente no seu experien-te modo de confrontar e de driblar os limites en-tre a realidade e a ficção, de misturar, de mudar abruptamente de espaços e de tempos, escre-vendo, sem preocupações de qualquer “fidelida-de”, uma peça comovente, amarga e falsamen-te “esvoaçante” a partir dum bem mais realista universo (onde o cão “existe” e é da raça spitz, alemã como a origem do marido de Anna) como é o do conto de Tchekov, “A Senhora do Cãozinho” (1899).

O que o dramaturgo estuda, e se acrescenta-rá à sua poética teatral, e o espectáculo valoriza, é quanto o monólogo (a narração) isola as per-sonagens – em “gaiolas” solitárias – e quanto o (não, o amor, não tanto, e nisto Friel é tão “ho-mem” quanto Tchekov, se bem que mais “de-mocrático”, pelos padrões contemporâneos) di-álogo – será que posso dizer a proibida palavra “contracena”? – é ainda a melhor “fuga”, a salva-ção (ainda que com concessões para com a reali-dade alheia) possível ao nosso alcance, que nos sustenta na indecisão, nos acalenta na incom-preensão e nos protege da loucura. Mas, claro, tudo por meio do “jogo de Ialta”!

Com este segundo volante do espectáculo, ve-ementemente emocional – entre os acordes for-tes de uma marcha e o rodopio trágico de uma valsa ensurdecedora –, o espectador sai exalta-do do espectáculo. Exaltado e sem possibilida-de de chorar.

E o que é mais curioso é que é esta exactamen-te a minha intuição face à evolução da lingua-gem de encenação de Nuno Carinhas. Movido por uma necessidade permanente de excluir o supérfluo, instala-nos, quase sempre, sem arte-sanalidade óbvia ou exibida, num plano de frui-dores de uma estética clean. Mas essa é a superfí-cie. Os espectáculos de Nuno Carinhas, como os seus olhos, escondem um mal-estar ontológico que não consigo identificar. O que, aliás, sem-pre senti quando o frio da estilização, da depu-ração, da nitidez do traço me escondem o ester-co, quente, dos bastidores. 1

* Odette Aslan, L’art du théâtre, Paris, Seghers, 1963.** Cf. a este propósito o capítulo V, “As Peças em Um

Acto: Circunstância e Constrangimento”, do meu livro Jorge de Sena: Uma Ideia de Teatro (1938-71), Lisboa, Cosmos, 1998, pp. 151 a 180, matéria que retomo no capítulo “Subsídios para o Estudo de uma Questão Dramatúrgica Relevante: a Insistência no «Formato Reduzido», a Peça em Um Acto” do meu estudo Mulheres que Escreveram Teatro no Século XX em Portugal, Lisboa, Colibri, 2001, pp.47-58.

Semi-Frio ou Os Profissionaisdo “Regresso a Moscovo”

João Tuna

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Filipe Guerra*

Se há um “jogo de espelhos” entre Brian Friel e Anton Tchékhov é de espelhos sem reflexo. Nes-tas duas peças de Friel “a partir” de Tchékhov o autor limita-se a apropriar-se (o termo é de Nuno Carinhas, o encenador, que parece ter assimilado a quase ausência de Tchékhov nes-te Friel) de duas personagens (Anna e Gúrov) do conto “A Senhora do Cãozinho” (em O Jogo de Ialta), e de uma personagem de cada uma destas peças de Tchékhov: O Tio Vânia (Sónia) e Três Irmãs (Andrei) em Uma Peça Mais Tarde. A partir destas personagens revistas e diminu-ídas se ergueu este teatro de Friel – um teatro muito subtil, depois de aprofundado (tal como o de Tchékhov, aliás), de grande personalidade e muito impositivo, que vale por si. Tanto para o espectador exigente como para o espectador comum (às vezes não menos exigente), este es-pectáculo de Friel foi por certo estimulante: as traduções que dele fizeram Paulo Eduardo Car-valho (texto) e Nuno Carinhas (ambiente, “espí-rito”) contribuíram certamente para isso, assim como o jogo dos actores. Creio que o especta-dor das duas peças nem precisa de conhecer os textos de Tchékhov para apreciar este Friel “a partir” de Tchékhov, o que não impede que fa-çamos a destrinça entre dois autores tão dife-rentes no espaço, no tempo e no espírito como são Friel e Tchékhov, até porque o autor russo foi chamado a participar no evento. Se há al-gum ponto de contacto, alguma fidelidade de Friel ao espírito de Tchékhov é tão-só na renún-cia ao “grande acontecimento”, à tragédia decla-rada, ao desespero gritante (mas, quanto ao de-sespero que está sempre presente em Tchékhov – no teatro e nos contos – de uma maneira sub-terrânea, como que insinuando-se nos lugares comuns, no não-dizer das personagens que “vi-vem no passado” e não têm futuro, em Friel este desespero perde-se no jogo estético da memó-ria). Friel é outro teatro, nem melhor nem pior do que o de Tchékhov, mas, nestas falsas evoca-ções do espírito de Tchékhov, Friel trai o que há de mais característico no autor russo: Tchékhov assume um realismo intransigente (mesmo que depois o leiamos envolto na sua poesia muito própria, dada por um “impressionismo” com base na realidade); é profundamente social, em-bora não declarativo, isto é, põe sempre por trás do enredo das suas peças um fundo social mui-to concreto, sem invenções, sem utopias, embo-ra não leve ao palco ideologias, críticas sociais declaradas, receitas...; e é meticulosamente his-tórico, desprezando acima de tudo a futurolo-gia (que, no entanto, é o embrião de Uma Peça Mais Tarde de Friel). Quando lemos Tchékhov e assistimos ao seu esforço, não de catalogar as personagens, mas de as «ver em toda a sua com-plexidade enigmática e incompreensível» (Vit-torio Strada), logo algumas ideias instintivas se nos formam sobre o autor russo: que “nunca mente”, nem por boa fé estética; que não procu-ra o efeito exterior; que não transige com nada que seja alheio ao lugar, ao tempo e à situação social das personagens; que é lacónico, que lhe bastam as “banalidades” para dizer (ou antes, sugerir) tudo (sobretudo no teatro), que é um autor simples, simples, simples e, no entanto, consegue transmitir o «drama escondido» (ex-pressão de Vladímir Nemiróvitch-Dántchenko que, juntamente com Stanislávski, montou al-gumas peças de Tchékhov). Pois bem, pare-ce que o autor irlandês não quis dar-nos este Tchékhov (quis apenas o pretexto de Tchékhov para fazer o seu teatro) e, quando lemos Friel (confesso que o li apressadamente, à procura de Tchékhov, sem lhe ter apreendido de ime-diato a profundidade própria), sentimos que, ao contrário das penosas viagens de Tchékhov pela Rússia, Friel visitou Tchékhov numa via-gem turística e comprou lá quatro personagens como um qualquer ocidental compra uma gar-rafa de vodca, uma matriochka, uma balalaica... Falo de uma reacção instintiva, é claro. Tentarei pois, numa excursão à toa, dizer o que penso e sinto do universo de Tchékhov e defender que estes textos de Friel “a partir” de Tchékhov não são uma adaptação do autor russo (neste pon-to parece que toda a gente está de acordo), não são uma evocação do mundo e do espírito de

Friel / Tchékhov: fidelidades,desvios e traições

Tchékhov e, principalmente, não são uma ho-menagem à arte do russo. Considero, porém, que há uma grande diferença entre O Jogo de Ial-ta e Uma Peça Mais Tarde.

“A Senhora do Cãozinho”, um dos contos mais perfeitos de Tchékhov. Friel fez dele um jogo, ou seja, uma paródia, e é assim, como pa-ródia ou pequena “comédia”, que conviria con-siderá-lo. Não é por falta de respeito a Tchékhov que devemos criticar Friel. O respeito, qualquer respeito, é o esteio do poder, de qualquer poder instalado, também na arte, também no teatro. O artista, para criar, deve primeiro desrespei-tar, coisa que Tchékhov teve de fazer para der-rubar o teatro velho e criar um novo, e para le-var quase à perfeição o chamado “conto russo”. (Segundo Tvardóvski, «género puramente rus-so, que obteve o reconhecimento internacional, do conto ou pequena novela de composição li-vre e de conteúdo denso que evita os contor-nos rigorosos ditados pelo argumento e, na maioria dos casos, não tem um final “fechado” [...]. Nos seus finais, estes textos como que se li-gam com a realidade, donde saíram, dissolven-do-se nela e deixando ao leitor um espaço am-plo para “imaginar a continuação”. Esta forma do conto russo, na sua forma mais plena, está li-gada ao nome de Tchékhov.») É pois de louvar a falta de respeito de Friel ao imaginar este pas-tiche modernista em que fez um casamento fe-liz entre dois géneros – narrativo e dramático –, pondo os dois actores, alternadamente, a narrar num off muito íntimo (aqui sim, tchekhovia-no) e a dialogar. Utilizou mais alguns métodos de Tchékhov (como é de lei na paródia), entre eles a frase banal, a “coloquialidade” (Nuno Ca-rinhas viu bem que era uma «falsa coloquiali-dade»). Mas há aqui um grande desvio de Friel

relativamente a Tchékhov: o discurso da bana-lidade, em Tchékhov, contrapondo-se ou so-brepondo-se a outro discurso menos explícito, sugerido, “escondido”, centrado sobretudo na sugestão de um passado falsamente glorioso, mais um sonho do que uma memória, basta-se a si próprio e é mesmo o motor da acção (ou da falta de acção) e da história (ou da falta de histó-ria); a esta arte do não-dizer para dizer já foi cha-mada «impressionismo exímio de Tchékhov», «arte da não definição para definir», etc. (citan-do de memória tchekhovianos russos). Porme-nor: em O Ginjal, Gáev fala com o armário e de-clama-lhe um discurso “teatral”; esse discurso de modo nenhum expressa os ideais da perso-nagem Gáev (quando muito, o que a persona-gem gostaria de ser, o que perdeu); nem sequer é um discurso de exposição de uma ideia: e no en-tanto diz mais sobre a chateza da sua vida, sobre a sua desilusão desesperada do que vinte pági-nas explicativas (Tchékhov é lacónico). Ora, em Friel, o banal necessita de uma explicação mais adiante, e por vezes de uma explicação quase escolar (mais visível em Uma Peça Mais Tarde). Quanto a “A Senhora do Cãozinho”, foi bem pa-rodiada em O Jogo de Ialta, mas sem fidelidade ao espírito de Tchékhov (aliás, o conto é sobre a infidelidade e sobre a sem-saída do adultério num meio social que não o assimila, coisa que Friel não mostrou – “mostrar” na acepção de Tchékhov, sem explicar, sem sobrepor o amor ao dever, o ideal ao real e vice-versa).

Muito do que foi dito de “A Senhora do Cãozi-nho” e do seu aproveitamento em O Jogo de Ial-ta aplica-se a Uma Peça Mais Tarde. Mas, aqui, já o jogo sério de Friel nos merece menos crédito, até porque Friel tem a pretensão da fidelidade, como diz na “Nota do Autor”: «Sou menos do

que um pai [de Sónia e Andrei]. Talvez mais pró-ximo de um padrinho [...] Por isso, quando pen-so na vida complexa que Tchékhov insuflou em Sónia e Andrei há cem anos atrás, acredito que essa vida pode ser continuada até esta existên-cia alargada, desde que permaneçam fiéis ao lugar e às condições de onde ambos provêm. Isso signifi-ca que o padrinho tem que estar sempre alerta à intenção daquele que primeiro lhes deu vida». O sublinhado é meu. Pois bem, os afilhados do padrinho irlandês não permaneceram fiéis ao lugar e às condições de onde provieram, padri-nho que também não esteve atento à intenção do pai biológico. Se Tchékhov tivesse agarra-do as suas personagens vinte anos mais tarde, amante do rigor histórico e do correcto enqua-dramento social como ele era, poria, em plena época soviética, mesmo da NEP, uma proprie-tária de 300 hectares em negociações com um banco, com títulos, saques a descoberto, hipo-tecas? Os explicativos Sónia e Andrei alguma vez poderiam ser filhos do pai Tchékhov? Algu-ma vez o pai Tchékhov faria assim uma análise escolar das personagens (só há personagens no teatro de Tchékhov, não há heróis)? E, por que raio haveria o minucioso Tchékhov de carac-terizar um homem forte dizendo que ele tinha «aquela esplêndida constituição física do Uzbe-quistão (!!)»? Onde paira neste Friel o espírito de Tchékhov? 1

* Tradutor. Juntamente com Nina Guerra, tem vindo a traduzir directamente do russo obras de autores como Tchekov, Doistoievski e Gogol. Por respeito à transliteração de nomes russos por eles adoptada, abandonamos o nosso habitual “Tchekov” pelo presente “Tchékhov”.

João Tuna

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Daniel Jonas Eric Bogosian é um cómico stand-up putativo. Se rejeita a essência stand-up dos seus espectá-culos é porque a etiqueta lhe trunca o trabalho de representação dramática, a actuação muscu-losa de actor. E nesse sentido tem razão. Stand-up é literalmente estar em pé diante de uma au-diência que espera ser entretida com uma data de histórias e observações que lhe despertem o riso. Eric Bogosian, inversamente, reforça o tra-balho eufórico e físico de actor e, por isso, colo-ca-se pretensamente no plano da representa-ção dramática. Mas isso também não esclarece verdadeiramente aquilo que faz. Bogosian não é apenas – pelo menos no registo com que en-cerrou o Faladura - Festival Internacional de Palavras Ditas – um comediante que privilegia monólogos dramáticos em detrimento do en-tertainment, indiferente a respostas contra es-tímulos cómicos. Consideremo-lo, assim, um comediante compósito que tem tanto de dra-mático como de stand-up. E para facilitar reuna-mos as suas pretensões numa espécie de géne-ro “comediante performer”, já que ele próprio também se esquiva biograficamente à classifi-cação de “art performer”, termo mais distante da verdade.

Este problema de classificação faz sentido neste caso porque Bogosian propõe-nos vários quadros de alguma forma reminiscentes das molduras tipológicas vicentinas, ao convocar vários “tipos” sociais e idiolectais para o palco, já de início transformado na sua própria barca de viagem espiritual. Barca cenicamente estéril, onde apenas cabem uma cadeira e um microfo-ne com tripé (características do palco stand-up). De facto, e mal chega, promete-nos uma viagem de cura interior, como um qualquer mentor de meditação transcendental, apoiado numa ver-borreia psico-falaciosa cheia de chavões gor-dos. Por acaso convence-nos, porque Bogosian já entra em trabalho: confiante, de braços aber-tos, sorriso extenuado e agradecendo a um pú-blico que o aplaudisse já no fim com múltiplos e emocionados «Thank you Portugal». E con-

seguiu com isso o melhor da noite e o melhor da noite conseguiu de imediato boa parte do público.

Interessantemente, o discurso panfletário re-pleto de alegorias banais, apelando-nos à pro-cura do eu pré-lapsariano e puro, ao boloren-to reencontro com a criança em cada um de nós, concedeu-lhe a graça tolerante da assis-tência, pelo menos o benefício da dúvida. Ali-ás, a sua entrada é tão forte que tanto essa ladai-nha moralizante como o marketing emocional próprio de guru versado em valorização pesso-al lhe são imediatamente ressalvados porque o espectador confia nele e no seu gosto. É como se o espectador pensasse: «Pois, este argumento é cheio de banalidades, mas ele já me convenceu, que posso eu fazer?».

O espectáculo convoca várias personagens enxertadas sem pré-aviso e sem considerável diferenciação entre si, à parte o motoqueiro-junkealer (junky+dealer), possivelmente a per-sonagem com mais investimento caricatural. De resto, Bogosian é Bogosian, guru, o médico do discurso optimista ante um doente termi-nal, a espectadora da censura edificante (um Diácono Remédios feminino), e o actor que so-nha subir os sempre polidos degraus da fama em Hollywood, baseado no texto “The Ladder” originalmente em Wake up and Smell the Co-ffee. Mas a região intermédia do seu espectro de opostos fica realmente por explorar, quedan-do-se basicamente por uns quantos traços so-ciais e muitas oposições: harmónico/alienado, pacífico/irado, angélico/infernal, familiares do discurso que associamos ao americano médio empenhado em resolver a sua anger. Essa qua-se permanente bipolaridade complicava o exer-cício nem sempre bem conseguido de colagem de cenas, que por vezes resultava em manta de retalhos mal unidos. As partidas e chegadas das personagens com escala no próprio Bogosian eram por vezes toscas, devido possivelmente à infecção do seu discurso particular idiossincrá-tico. Bogosian deve ter aproveitado para fazer terapia, anedoticamente confundida na cons-tante catarse do próprio actor, o que torce o lu-

gar clássico do teatro enquanto estimulador de catarses democraticamente permitidas. «A ca-tarse hoje é minha, Aristóteles», parecerá ter pensado Bogosian, ao desfiar uma espécie de malina de frustrações, ralhando com o mundo, entusiasmado com a chusma de psicanalistas à sua frente, gritando uma série de impropérios ao acaso, injuriando os elementos, invectivan-do o pequeno e o grande, num vitupério fre-nético de corpo e verbo como se de um ende-moninhado se tratasse, repartindo aleivosias a George W. que – como Tom Cruise – is so butch e a Deus, pai deficiente.

Este estado serviu a subsequente escatolo-gia que o acompanhou até ao fim, culminan-do num sadomasoquismo de pendor zoófilo, onde até um porco previamente untado servi-ria de femme e uma Meryl Streep vestida de cat-woman e munida com um dildo gigantesco de super-butch. Nessa pulsão agressora/agredida reside o contraponto da procura do equilíbrio original, atingível aqui pela libertação dos ex-tremos e onde cada um dos pólos força precisa-mente o empate técnico. Daí que as faces de Eric se reduzam grosso modo às de Jano, o das duas fa-ces, exigindo às personagens esse dualismo sia-mês primário. No limite, esse dualismo acaba por ser disponibilizado no discurso simplista do outro guru «Paulo Coelho se fosse indiano», dividindo essencialmente as duas castas da hu-manidade: aqueles que têm dinheiro (harmóni-cos) e aqueles que o não têm (alienados). O dis-curso é simplista mas a redução não é. Bem, só talvez para os líricos...

O guru sai, pois, gorado e não espanta que as ânsias, quer das mulheres de meia-idade de clas-se média, quer dos gestores médios confiantes naqueloutro guru, se mantenham exactamen-te no limbo material e médio donde já provi-nham, somente mais sabedores do mesmo. A viagem espiritual revela-se uma fraude. Não foi viagem, já que não chegámos verdadeira-mente a partir dramaticamente, nem tampou-co espiritual, pois não trocámos a matéria cons-purcada por pastos verdejantes ou pelo óleo nas barbas de Arão.

Na verdade, determinar a viagem dramáti-ca – uma determinação talvez só ao alcance da intuição – poderá bem servir como modelo de aferição de forma a separar precisamente o que é representação de teatro e o que é performan-ce recreativa ou cómica. Para obviar a maçada a Bogosian, chamar-lhe comediante no seu sen-tido ambivalente – de cómico e de actor que re-presenta em comédia – é minimamente segu-ro, e assim limitamos a dúvida residente na sua promiscuidade discursiva. Comecei por tentar referir isto mesmo inicialmente ao chamar-lhe compósito, embora genologicamente seja bem mais próximo do stand-up clássico do que o ban-do pátrio de piadistas brejeiros, emerso de ane-dotas sebentas em mesas de café. Curiosamen-te, as duas ou três excepções que em Portugal servem a intenção de stand-up, digamos de qua-lidade, são invariavelmente subservientes aos primeiros na inclusão no género. Mas isto é um movimento correctivo de que não nos interes-sa ocupar aqui. Bogosian não tem de me servir de terapia.

Bogosian pretende, no final, atingir um outro nível, “another plateau”, o lado harmónico da vida que é precisamente oposto ao do “aliena-do”, amiúde chamado à realidade com um seco «wake up and smell the coffee». O outro nível de existência é então um outro palco, e a via-gem espiritual rumo à felicidade é no programa da estrela-a-ser chegar a Reno, à apoteose do es-trelato, melancolia profundamente americana, já que o seu sonho deve ser proporcional à gran-deza do país e onde, em certo sentido, a grande-za de um homem se mede pela grandeza do seu sonho. E se todos sonham em grande o vence-dor só pode ser the real one e como grande ven-cedor ser tratado. Digamos que não basta conse-guir um papel em As Faces de Harry ou escrever o argumento de Talk Radio para ser instanta-neamente catapultado como figura pública para magazines sociais, «that is not America». O que é América é que um arménio-america-no possa partir em igualdade de circunstân-cias com os demais. E esse é já um mundo mais harmonioso. 1

FALADURA / ERIC BOGOSIAN

As faces de Eric

Humberto Almendra

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OUTUBRO 2003Inteligência Artificial

CO-LAB

Co-Lab, um exemplo

Rui Neves

A tipologia Música Experimental/Improvisada consubstanciada no Festival Co-Lab tem regis-tado internacionalmente neste limiar do séc. XXI uma proliferação de praticantes. Em sin-tonia, os eventos especializados que os têm de-vidamente enquadrados, quer na Europa, quer nos EUA, procuram captar um público despido do formalismo de várias escolas clássicas bem como da genealogia jazzística desta nova for-ma de música de Arte surgida nos fins dos anos 1960 com o free jazz.

É assim dada a primazia à singularidade de músicos que sentem a necessidade de trans-cender os cânones que regem a maior parte da produção musical mundial. Vivemos hoje uma época dialéctica de pós-modernidade, situação que se ajusta particularmente aos adeptos de novas tecnologias aplicadas à Música, incitados pelas possibilidades do novo mundo digital e com o condão de maravilhar os ouvintes que se predisponham a ouvir os seus discursos.

Será lícito falar de uma nova estirpe minori-tária de pensadores, solistas e adeptos de uma musicologia espontânea que coloca em cam-po, com saber e discernimento, algo que escapa ao julgamento e sensibilidade comuns, fazendo corpo com o mundo que a imagina e o mundo dos que a imaginam, alardeando intuição e li-berdade sem limites.

Em Portugal, o gosto pela Música Experimen-tal/Improvisada conheceu o seu primeiro im-pulso em 1986 na iniciativa de Madalena Per-digão quando dirigia o Serviço Acarte da Fundação Calouste Gulbenkian, instituição de credibilidade inatacável que assim avalizou e dignificou o movimento musical. Os Ciclos Nova Música Improvisada, como assim se de-signavam, constituíram três edições cuja con-tinuidade não se assegurou, enquanto que pos-teriores realizações no mesmo âmbito viriam a conhecer uma existência igualmente pre-cária, caso do Ciclo Fonoteca Files em 1999 e 2001, promovidos pela Fonoteca Municipal de Lisboa.

Na última década, o espírito de auto-organi-zação dos praticantes tem povoado espaços al-ternativos como a Galeria ZDB e a Associação Abril Em Maio, em Lisboa, com iniciativas avul-sas ou integradas, enquanto que uma idêntica e dispersa actividade se vai descentralizando, constituindo faróis na Guarda com o ciclo Ó Da Guarda, em Serralves em iniciativas pontuais e com o Co-Lab, Festival Internacional de Música Experimental/Improvisada, que conheceu em 2003 a sua 5ª edição no renovado Teatro Car-los Alberto. Afinal, a prova de que o movimento continua vivo e resistente, embora nem sempre os agentes culturais do poder político adoptem posições claras na atribuição de suportes finan-ceiros, tal como acontece em relação à Ópera, ao Jazz ou à Música Clássica. Reconhece-se, por-tanto, o mesmo tipo de paridade porque se trata de Músicas de Arte, nas quais a relação investi-mento e retorno não poderá ser encarada como uma mera operação comercial.

O músico improvisador e experimental Al-berto Lopes é o mentor do Co-Lab, tendo criado um dispositivo no terreno que revela um pro-fundo sentido de optimização de meios, logo de grande oportunidade: seleccionando um grupo de músicos internacionais e mantendo-os em residência, eles poderão não só apresentar-se in-dividualmente como também gerando fórmu-las entre si e, ao mesmo tempo, desenvolvendo workshops, as Oficinas Co-Lab, cujo resultado é apresentado na programação que não se esgo-ta neste corpo, oferecendo perspectivas já con-sagradas da cena actual portuguesa de músicos improvisadores e experimentais.

Testemunhando apenas o último dia do Co-Lab 2003, com três concertos sucessivos para um público aderente que lotou confortavel-mente a sala do Teatro Carlos Alberto, foi pos-sível verificar a eficácia do trabalho do cantor Phil Minton e do guitarrista Eugene Chadbour-ne com os seus alunos temporários em curtas aparições, que seriam culminadas em concer-to final com a reunião dos distintos convida-dos internacionais residentes, Minton, Chad-bourne e Chris Cutler, Jon Rose, uma reunião

fortuita de risco assumido pelos intervenien-tes, dando provas da sua extraordinária perso-nalidade musical.

Sinais de perenidade vão sendo dados pela actual geração de músicos improvisadores e experimentais portugueses, representados no Co-Lab 2003 e que, desde a sua 1ª edição, têm constituído um claro objectivo de programa-ção: as duas tendências em palco, a electróni-ca com Paulo Raposo, juntando parceiros inter-nacionais, Jeremy Bernstein, Marc Behrens, e a acústica com o violinista Ernesto Rodrigues, o percussionista José Oliveira, integrando-se na nova geração (Manuel Mota, Guilherme Rodri-gues, Margarida Garcia), exibem perseverança e uma consequente evolução, no seu caso ten-do já ultrapassado fronteiras. Mais uma ten-

dência compôs a oferta do Co-Lab 2003, ain-da sob o signo de processamento electrónico: o francês Pierre Redon (bandolim) e a japone-sa Etsuko Chida (no tradicional instrumento koto).

O Co-Lab encontra-se hoje colocado por direi-to próprio no mapa internacional de festivais similares de dimensões variáveis, unidos em torno de uma música nitidamente minoritária que lentamente tem fidelizado audiências, ca-sos dos festivais de Taktlos em Zurique, Wels na Áustria, LMC em Londres, Anvers na Bélgica, ci-tando apenas alguns, enquanto que, também por direito próprio, a Música Experimental/Improvisada tem conquistado nichos nas pro-gramações complementares de festivais de jazz contemporâneo como Mulhouse em França,

Saalfelden, na Áustria, Willisau na Suíça, Jazz em Agosto em Lisboa, o que talvez seja um si-nal da pertinência desta expressão musical, dos seus possíveis e melhorados enquadramentos de melhor desafogo financeiro, podendo assim alargar as suas audiências.

Não menos excitantes e muito produtivos, os actuais sistemas de comunicação global têm permitido o crescimento do mercado da Músi-ca Experimental/Improvisada, facilitando a cir-culação dos músicos, a criação de editoras dis-cográficas e a relação mediática, gerando um sentido profissional no seu seio cujas compen-sações, embora ainda não cabalmente satisfató-rias, justificam opções de mais difícil relevância no mundo musical fragmentado deste princí-pio do séc. XXI. 1

Hugo Calçada

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OUTUBRO 2003Dos nossos Agentes em Havana

Chego dos céus, eu e uma chuvada das antigas que, infortúnio, parece inaugurar o Outono de Budapeste. Gabor Zsambéki, o meu anfitrião, é o director do Katona Jozséf Szinház (em portu-guês chão, diríamos Teatro Jozséf Katona) e é o presidente da União de Teatros da Europa. Visi-tou o São João em Abril passado e, desde então, ficou combinada esta visita, ocasião de excelên-cia para conhecer o trabalho de uma das compa-nhias mais reputadas da Europa.

Gabor Zsambéki fala com um entusiasmo re-servado e íntimo que suponho ser marca dos húngaros. Fala do ensaio que acabou de aca-bar, fala do seu trabalho e pergunta, pergunta muito. Este homem afável que à minha frente come calmamente enquanto eu ataco sôfrego o primeiro goulash da minha vida é o símbolo de uma geração de encenadores húngaros cujo percurso provocou o estilhaçamento do teatro “oficial”. Formado (na mesma escola em que agora ensina, a Academia de Arte Dramática de Budapeste) num sistema que gerava uma eli-te de actores, verdadeiras vedetas de um teatro com uma afluência popular notável mas anqui-losado na sua falta de ambição artística, Zsám-beki procurou desde sempre um teatro livre, não de ideias e de uma vontade explícita do seu exercício, mas de conceitos prévios que limitas-sem a concretude de um labor artístico…

Cumprindo o destino de um jovem desali-nhado na Hungria de finais dos anos 60, foi enviado para Kaposvar, para o Csiky Gergely Szinház, uma espécie de exílio interno que aca-baria num curioso efeito de ricochete. Em 1974, quando após seis anos de tirocínio assume a di-recção do Teatro, o Csiky Gergely conhece já uma reputação incontornável. Um pequeno Te-atro de província, habitado por Zsambéki, mas também por outros jovens encenadores como László Babarczy, István Szöke e Tamás Ascher, afirmava-se num território até aí dominado pe-los grandes teatros da capital. Não por uma abs-tracta “qualidade”, mas pela diferença efectiva das suas práticas e dos resultados que delas nas-ciam: espectáculos belos e densos – dessa épo-ca, destacam-se um Café, de Goldoni, e um As You Like It, de Shakespeare –, espectáculos onde se desenhava um conceito singular, espectácu-los de encenador, caracterizados por um rea-lismo psicológico profundamente vivido, mas também por um lirismo evidente; pelo recor-te da emoção, mas também por um forte sen-tido cómico.

Pouco mais ou menos o contrário do que acontecia, por exemplo, no Teatro Nacional de Budapeste, onde os tais actores-vedeta exerciam uma tendência irreprimível para constranger as peças que representavam à sua necessidade exibicionista. Vítima dos seus próprios proces-sos, o regime não teve outro remédio senão con-vidar Zsambéki, a par com outro encenador da mesma geração, Gábor Székely, para dirigirem o Teatro Nacional. Porém, a inércia da enorme máquina estatal era muita e a experiência du-rou apenas três temporadas.

Nasce, então, em 1992, uma nova companhia, residente no Katona Jozséf Szinház. Não sem um pequeno terramoto: o nascimento da com-panhia envolve uma ruptura com o Teatro Na-cional e a saída de alguns dos seus actores, a que

se juntam quase uma trintena de outros. De novo, outros encenadores acompanham Zsam-béki neste empreendimento. Árpád Schilling, o nome mais sonante da nova geração de encena-dores húngaros, foi, recentemente, o último a ser convidado para integrar a equipa residente do Teatro. Preferiu, no entanto, manter a inde-pendência da sua companhia.

Situado mesmo no centro da cidade, mas com frente para uma rua estreita onde desemboca um túnel rodoviário – uma imagem aparen-te de subúrbio –, encastrado numa galeria co-mercial que, à boa maneira de Budapeste, serve de alicerce a um conjunto residencial, o Katona consiste numa simples caixa negra, com pouco mais de cinco metros de altura, composição va-riável, uma estrutura técnica que permite mon-tar equipamento em qualquer ponto da sala mas que foi visivelmente crescendo artesanal-mente, à medida das necessidades. Há alguns anos, o Katona abriu uma nova sala, o Kamra, ainda mais pequena, onde concentra as produ-ções de estúdio.

São Jorge e o Dragão, de Sandór Weöres, o maior poeta húngaro vivo, foi a primeira das peças que me trouxe a este Teatro: a primeira de três em três noites consecutivas, no mesmo pal-co, marca conclusiva de uma prática de reper-tório. Quase inexistente entre nós, nos tempos contemporâneos, uma programação de reper-tório caracteriza-se pela permanência em cena de um número elevado de produções que vão alternando a sua apresentação. Deste modo, sendo que a companhia estreia três a quatro es-pectáculos novos em cada ano, o público tem acesso a dezena e meia de produções ao longo da temporada. Que, em 2003/2004, emanam de autores como Goethe, Dostoievski, Molière ou Kleist, mas também de Jon Fosse, David Har-rower ou Werner Schwab, numa sábia com-posição de clássicos e contemporâneos que alimenta um público numerosíssimo, trans-ge-racional, realmente presente.

O aplauso genérico, por desfastio, é coisa que não existe por estes lados. O público sabe na perfeição o que aplaude – este actor, aquele de-talhe de representação (sim, embora não mui-to comuns, há momentos em que o público aplaude a meio do espectáculo) – e tem modos próprios que atrapalham um pobre incauto: as palmas começam sempre lentas, sincopadas, e vão crescendo em intensidade e cadência até se transformarem em ovação; depois, quase pa-ram para logo recomeçar, desta vez para aplau-dir um outro actor, ou mais uma vinda de todo o elenco ao palco…

Voltemos, porém, a São Jorge e ao seu Dra-gão. Farsa trágica, metáfora de um país onde a corrupção moral no poder se alimenta da en-trega sacrificial de sangue virgem a um mons-tro protector, este texto cruza uma constru-ção formal irrepreensível com uma poética do discurso incomum no teatro contemporâneo. Pena minha que não entendo uma palavra de húngaro! No mesmo tecido em que faz confluir forma dramática com fulgor poético, Weöres entretece uma visão política agudamente crí-tica com emoções reais, a conferir vida espes-sa a cada uma das muitas personagens que co-loca em cena.

Vinte e quatro actores dão (o seu) corpo a esse cortejo de personagens. Vinte e quatro excelen-tes actores, embora alguns mais excelentes do que outros, como seria de esperar. Curiosamen-te, neste espectáculo, destacam-se com toda a naturalidade um jovem, Ernö Fekete, e uma ve-teraníssima do teatro húngaro, Mari Töröcsik, uma verdadeira estrela cuja figura minúscula e ágil enche a cena de um desejo de teatro que co-move. Mas destaca-se sobretudo a encenação, de Gábor Zsambéki, feita de pequenos gestos, de um rigor compositivo impressionante, de uma espessura de sensibilidade que se recorta por sobre a estética pobre.

A rotina de repertório, exigentíssima de um ponto de vista técnico, nasce necessariamente no trabalho constante com uma mesma com-panhia de actores e propicia com toda a clari-dade a maturação de uma linguagem. Cada um dos actores do Katona detém, visivelmente, um método; cada um deles entende notoriamente o conceito em torno do qual se desenvolve o es-pectáculo, o seu lugar na economia de um tra-balho.

Eis o que lhes permite, em menos de vinte e quatro horas, desmontado este espectáculo e montado um outro, mudada a disposição da sala (de um palco com duas frentes, passamos a uma solução mais convencional, à italiana), reentrar em cena, agora transportando as pa-lavras de Zoltán Egressy, o autor de Portugal, a peça contemporânea húngara de maior sucesso nas últimas temporadas.

Portugal é, nesta peça, um sítio longínquo, dir-se-ia intangível, onde um povo de român-ticos niilistas olha incessantemente o mar, o nada, o fado… A personagem central desta tra-ma é então um jovem escritor de Budapeste que resolve partir a pé, à boleia, até atingir o lugar mítico do seu desejo. O problema é que a inde-cisão propiciada pelo seu pouco carácter, a par com outros motivos mais ou menos fúteis, re-têm-no numa pequena aldeia onde todos deixa-ram há muito de ter horizonte, e a distância que os separa do mundo parece cada vez maior. A peça é relativamente frágil, passeia-se pelo ane-dótico sem vergonha aparente, mas consegue ainda assim instalar uma amaríssima ausên-cia de sentido. A lembrar Harrower e os seus es-tranhos mundos banais, onde a angústia emer-ge sobretudo do que não se diz. A encenação de Andor Lukáts é um fenómeno de comunica-ção. O público vibra, reconhece-se, emociona-se… O cenário, minimalista, poderia encerrar uma taberna portuguesa desterrada num da-queles sítios onde já nem emigrantes passam a salto, mas este humor não é de cá, é um hu-mor negro, feito de auto-irrisão. Os actores, des-ta vez num registo de composição, são irrepre-ensíveis. Quase irritantemente irrepreensíveis, a levarem-nos ao desespero com a verdade que emerge das suas personagens dementes.

Terceiro dia, terceiro espectáculo: o Tartu-fo, de Molière. Personagem em trânsito entre a farsa medieval e a grande comédia de intriga clássica, o impostor é um falso moralista que de-senha e executa um plano aparentemente in-falível para tomar conta do património e dos afectos de uma família burguesa algo perdi-da na sua identidade. A abordagem de Zsam-

béki intemporaliza a trama; torna-a anacróni-ca pela coexistência de personagens de época – ainda assim tornadas contemporâneas na for-ma como procuram, para cá dos dogmas, de-terminar as suas condições existenciais – com outras que parecem vir de um universo pós-mo-derno, blasé, onde a enunciação retórica é con-dição suficiente para a materialização do dese-jo; aposta numa versatilidade cenográfica a que não é alheio um certo simbolismo (o espaço é quase realista, mas a acentuação de alguns dos seus detalhes, a grande porta, a escadaria, con-ferem-lhe uma outra modulação). É nesse ana-cronismo que consiste o interesse essencial des-ta produção: se em S. Jorge e o Dragão se aborda o espaço público e os rituais mágicos do poder, num tom trágico, sacrificial, que nos remete para algo maior do que nós, neste Tartufo o di-lema domestica-se, joga-se no espaço privado. Poderíamos dizer, se tivessemos a coragem de incorrer nessa liberdade interpretativa, que a personagem nos surge aqui singularizada pela consciência interna do seu carácter eminente-mente performativo e, quase, mediático. O su-cesso de Tartufo dá-se na medida em que o seu populismo encontra uma audiência e em que os mecanismos de comunicação que adopta propiciam a evidenciação de uma realidade fic-cional que, ainda assim, encontra receptores ca-pazes de a transformar em princípio de vida. Ernö Fekete, quarenta e oito horas depois do ex-celente Giorgio da peça de Weöres, constrói um Tartufo ainda mais impressionante: uma per-sonagem seduzida consigo própria, uma con-fluência de perfídia e ingenuidade, ganância e desejo. Que a resolução da trama se faça pela in-tervenção do príncipe, deus ex machina que tudo vê e tudo decide, só sublinha a metáfora do po-pulismo mediático contemporâneo, no qual o Produtor tem direito de vida e morte sobre os destinos de cada um.

Deixo Budapeste, cidade de destino erran-te, setenta e duas horas e algumas certezas de-pois: um Teatro cuja dinâmica e empenho ar-tístico criam um espaço singular no contexto europeu, uma vontade mutuamente afirmada de trabalho em conjunto, a certeza de coopera-ção multilateral no âmbito da União de Teatros da Europa.

Aprendi também, ao longo das curtas surti-das turísticas guiadas pela incansável e inultra-passavelmente simpática Tamara Török, uma das dramaturgistas da companhia, que a ori-gem remota de Budapeste se pode encontrar na ocupação da bacia do Danúbio por um impres-sionante meio milhão de pessoas partidas orga-nizadamente das orelhas do Volga, a “primitiva pátria húngara”, no século IX. Que foi trono de reis heróis (Árpád, o fundador), santos (István, seu trineto, que converte a Hungria ao cristia-nismo) e fabulosos (Matias tinha por costume disfarçar-se e misturar-se anonimamente com o povo, o que fez dele herói de boa parte da narra-tiva popular húngara). Mas também que foi de-masiadas vezes campo de batalhas dinásticas, ocupações estrangeiras, revisões territoriais, longas ditaduras… Daí talvez uma introspec-ção filosofante, um ar de nostalgia que quase faz cheirar a brisa do Atlântico, aqui tão longe de qualquer mar. 1

JOSÉ LUÍS FERREIRA

POR SÃO JORGE, PORTUGALE O IMPOSTOR

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OUTUBRO 2003Dos nossos Agentes em Havana

Dublin não é Edimburgo nem Avignon. Ou me-lhor, o seu Festival de Teatro não tem a reputa-ção internacional dos de Edimburgo ou Avig-non. Não deixa, contudo, de ser simbólico que na sua primeira edição, em 1957 (dez anos após a criação daqueles dois famosos festivais), o Fes-tival de Teatro de Dublin (FTD) tenha progra-mado a apresentação de dois espectáculos en-cenados por Jean Vilar, deste modo anunciando uma das suas primeiras motivações: a exposi-ção do, então, fortemente insular público ir-landês a experiências internacionais. A sua ou-tra, e talvez mais singular, função tem sido a de se oferecer como um espaço privilegiado para a apresentação de antigos e novos textos dramá-ticos irlandeses. Animado por esta dupla ambi-ção – trazer o teatro mundial até à cidade de Du-blin e garantir uma montra privilegiada para o trabalho dos dramaturgos irlandeses –, o FTD continua a ser o grande acontecimento do ano na agenda teatral irlandesa. Como convém à história de um qualquer festival de teatro mo-derno, também o de Dublin se pode orgulhar de alguns episódios controversos, como a po-lémica que, logo em 1958, surgiu com a oposi-ção da ainda toda poderosa hierarquia católica irlandesa à estreia de The Drums of Father Ned, do exilado Sean O’Casey, situação que acabaria por levar ao cancelamento do Festival e à sim-bólica proibição, por parte de outro exilado, Sa-muel Beckett, da representação das suas obras na Irlanda.

Serve tudo isto para justificar este breve apontamento sobre uma rápida passagem pela edição deste ano do FTD, como sempre, entre fi-nais de Setembro e inícios de Outubro. A brevi-dade da visita e os interesses do visitante privi-legiaram o chamado “teatro de texto” nativo, em detrimento de propostas mais espectacula-res e/ou internacionais, como poderiam ter sido The Far Side of the Moon, de Robert Lepage (que veio ao nosso último PoNTI), Mythos, uma ex-ploração da Oresteia, adaptada e encenada por Rina Yerushalmi, de Telavive, uma irreveren-te Giselle, dirigida por Michael Keegan Dolan, a adaptação operática de A Mulher que ia Con-tra as Portas, de Roddy Doyle, por uma compa-nhia holandesa, e, sobretudo, o Hamlet encena-do por Calixto Bieito. Restará acrescentar que, como vai sendo hábito, paralelamente ao Festi-val, decorria o Dublin Fringe Festival 2003, com um programa mais vasto, mais pulverizado e, desejavelmente, mais alternativo.

Este regresso a Dublin por alturas do seu Fes-tival de Teatro trouxe consigo a memória da pri-meira visita, em 1992, quando tive a grata opor-tunidade de assistir à última das representações de Danças a um Deus Pagão, de Brian Friel, uma produção estreada em Abril de 1990, cujo su-cesso a transportara entretanto até Londres e a Nova Iorque, onde, em 1991, conquistara diver-sos prémios Tony. Estava então longe de imagi-nar que, menos de quatro anos volvidos, me en-contraria a traduzir aquele mesmo texto para a Escola de Mulheres, apresentado no Teatro Ma-ria Matos, em Lisboa. (O mesmo teatro onde, até ao final deste mês de Outubro, se pode ain-da ver Uma Peça Mais Tarde + O Jogo de Ialta, na encenação inspirada de Nuno Carinhas.) Con-firmando o seu recente afastamento das preo-

cupações identitárias e dos grandes textos que marcaram a sua carreira (recordem-se Tradu-ções, Molly Sweeney e O Fantástico Francis Hardy, Curandeiro), o dramaturgo voltou este ano a ser a atracção da programação irlandesa do Festi-val, com uma ousada experiência dramatúrgica de cruzamento entre palavras e música. Com a característica amplitude metafórica do drama-turgo, desta vez, o título é Performances. O espec-táculo teve a sua estreia a 30 de Setembro, para uma plateia na qual marcaram presença, entre outros notáveis, vários dramaturgos irlandeses, como Thomas Kilroy, Bernard Farrel, Sebastian Barry e Conor McPherson.

Performances recupera um episódio marcante dos últimos anos da vida do compositor checo Leoš Janácek: a sua história de amor e, sobretu-do, as cartas escritas pelo compositor a Kamila Stösslová, casada e trinta e seis anos mais nova. Se tal enredo é abordado por Friel com grande sensibilidade e característica liberdade compo-sitiva (Janácek atravessa toda a acção da peça, em diálogo com as outras personagens, na qua-lidade de morto!), aqui a surpresa resulta não tanto do regresso à figura do artista (lembram-se do Curandeiro?), mas antes do cruzamento dos diálogos com a execução ao vivo, e em gran-de parte integrada no tecido da peça, de passos do quarteto de cordas intitulado Cartas Íntimas. É Friel, aos 74 anos (a mesma idade de Janácek na peça), a trilhar, mais uma vez, os caminhos do amor (e do seu papel na criação artística) e a reflectir, naquela híbrida forma dramática sem-pre atravessada por um anseio ensaístico, so-bre as possibilidades e limites das linguagens verbal e musical: «Janácek: Graças a Deus que a minha primeira linguagem foi a música. Ali-ás, uma linguagem muito mais exigente. (...) As pessoas que regateiam com palavras limitam-se a relatar o sentimento. Nós falamos sentimen-to». Com encenação do experimentado Patrick Mason, interpretação do enérgico actor romeno Ion Caramitru, numa opção um pouco bizarra por algum exotismo, e a colaboração do Alba Quartet, o espectáculo resultava adequado, em-bora talvez demasiado “preso” pela sólida ceno-grafia arquitectural de Joe Vanek.

Muito mais comprometido do ponto de vis-ta cénico, e cenográfico, resultava The Shape of Metal, uma das mais legítimas expectativas des-te festival: tratava-se da estreia da última peça de Thomas Kilroy (n. 1934), um autor dividi-do, ao longo da sua carreira, entre o teatro, o ro-mance e a crítica literária, responsável por notá-veis exercícios de um singular rigor conceptual combinado com a inovação dramatúrgica. Tal como Performances, The Shape of Metal tem no seu centro a figura de um artista, uma esculto-ra, e, entre as suas preocupações, também a re-lação entre a produção artística e a vida pesso-al. Extremamente sedutora do ponto de vista da sua construção – com desafiadoras oscilações temporais e intervenções de personagens com diversos estatutos ficcionais –, esta história so-bre uma mãe e duas filhas resultava, na encena-ção de Lynne Parker, e sobretudo, no profuso ce-nário de John Comiskey e Alan Farquharson, numa experiência teatral pouco envolvente. Faltará (re)ler o texto.

De John B. Keane (1928-2002), um dramatur-

go da mesma geração de Friel e Kilroy, apresen-tava-se ainda Sharon’s Grave. Esta produção da Druid Theatre Company (a mais reconheci-da companhia de teatro irlandesa, criada em 1975, em Galway) encerra uma trilogia iniciada há dois anos com Big Maggie e Sive, apostada na revisitação de textos do autor, escritos nas déca-das de 50 e 60, e que ocupam um lugar ainda ins-tável no cânone dramático irlandês. Sharon’s Grave, de 1960, leva-nos de volta à matéria da Ir-landa, neste caso, a uma visão altamente críti-ca do modo como a ética católica se impôs sem levar em conta uma vida de profundo paganis-mo. Garry Hynes, a mais prestigiada encenado-ra irlandesa contemporânea, revelou-se capaz de uma poderosa (embora, por vezes, hesitante) leitura expressionista de uma história que con-voca as lendas locais (“o túmulo de Sharon”) e a deformidade física (com Frankie McCafferty numa composição inesquecível) para retratar almas torturadas e frustrações sexuais.

Os exemplos da mais recente produção dra-mática irlandesa couberam a Martin McDonagh (um irlandês só por adopção e porque vem escre-vendo peças estereotipadamente “irlandesas”), e a Stella Feehily, ambos produzidos por com-panhias inglesas, respectivamente pela Royal Shakespeare Company e a Out of Joint. The Lieu-tenant of Inishmore, estreado já em 2001, oferece-se como o segundo momento de uma trilogia localizada nas ilhas Aran (o primeiro fora jus-tamente The Cripple of Inishmann, de 1996, que a Visões Úteis nos mostrou, em 1997, numa ver-são com o título O Aleijadinho do Corvo). Na altu-ra do esmagador sucesso da sua anterior trilogia de Connemara, alguém descreveu McDonagh como uma espécie de encontro entre Synge e Ta-rantino, sublinhando assim não só a combina-ção de muitos dos motivos que caracterizam o teatro do primeiro com a violência e a eficácia dos diálogos dos filmes do segundo, mas tam-bém a ambição mais cinematográfica de um projecto que se cumpre em cena. O problema é que falta acrescentar a esta equação a receita da sitcom televisiva, origem dos ingredientes mais determinantes para explicar a inegável eficácia cómica destas ficções melodramáticas, mas tam-bém a sua frustrante superficialidade, que nem uma qualquer alegada estratégia pós-modernis-ta parece capaz de redimir. Tudo isto se aplica a esta história de um terrorista dissidente do IRA, amante de gatos e capaz das piores atrocidades, explicitamente reproduzidas em cena, num ges-to gore que acaba por se revelar a dimensão mais curiosa de uma produção decepcionante, tanto a nível cenográfico como a nível das interpreta-ções, de um confrangedor mecanicismo.

Max Stafford-Clark, na sua incansável apos-ta na revelação de novos autores, veio a Dublin mostrar Duck, uma primeira peça de uma ac-triz irlandesa, Stella Feehily. A produção, com-petente e interpretada com competência, sofria dos mesmos problemas de Some Explicit Polaroi-ds, de Mark Ravenhill, que vimos no Porto, em 1999, parcialmente determinados pela sua vo-cação itinerante, mas também por um discutí-vel entendimento do que pode ser isto, em ter-mos de verdadeira criação teatral, de divulgar a obra de novos autores. Duck revela-se um texto algo decepcionante, uma espécie de convencio-

nalizado herdeiro de A Rua, de Jim Cartwright (revelado pelo Teatro Aberto, em 1988). Ao con-trário da visão singular e da dimensão retórica que atravessa, por exemplo, os textos de Mark O’Rowe (recorde-se Agá o Piolho, encenado por António Simão, em 2000), este Duck não pare-ce ser mais do que a aplicação de uma receita, por demais britânica, ao universo suburbano de Dublin, na perspectiva de uma qualquer ju-ventude que o habita.

Assistir a estes cinco espectáculos permi-tiu ainda uma espécie de viagem pela memó-ria do teatro irlandês, através da própria arqui-tectura teatral dublinense. Sharon’s Grave e The Lieutenant of Inishmore eram apresentados em dois representativos exemplares vitorianos, o Gaiety Theatre e o Olympia Theatre, construí-dos, respectivamente, em 1871 e 1879. The Sha-pe of Metal e Duck foram vistos no Abbey Thea-tre e no Peacock Theatre, a sala grande e a sala estúdio do Teatro Nacional Irlandês, integra-dos no edifício modernista inaugurado em 1966 para substituir, no mesmo local, o histó-rico Abbey Theatre, ardido em 1951, e cujo cen-tenário se cumprirá a 27 de Dezembro do pró-ximo ano. Não será exagero afirmar que este é um dos mais famosos teatros do mundo. Diri-gido pelo poeta e dramaturgo W. B. Yeats, J. M. Synge e Lady Gregory (o triunvirato que presi-diu ao lançamento de um teatro reconhecivel-mente “irlandês”), foi aqui que se estrearam, acompanhados por distúrbios e outras polé-micas, peças como The Playboy of the Western World, de Synge, em 1907 (O Valentão do Mundo Ocidental, estreado no Porto, em 1957, pela mão do TEP de António Pedro), ou The Plough and the Stars (1926), de Sean O’Casey, completando um arco de quase trinta anos, decisivos para a cria-ção de um património dramatúrgico nacional. Dois anos após aquela peça de O’Casey, abria, em 1928, o espaço neoclássico do Gate Thea-tre – palco de Performances –, o segundo mais importante teatro da cidade, dirigido por Hil-ton Edwards e Micheál MacLiammóir (o intér-prete de Iago na famosa versão cinematográfi-ca de Othello, de Orson Welles), um casal então responsável, na Irlanda, por uma radical reno-vação das linguagens cénicas e pela revelação dos novos repertórios europeu e norte-america-no, contrariando a dieta cada vez mais insular e nacionalista do Abbey.

Do que se viu, qual poderá ser o balanço? A confirmação da vitalidade de uma dramatur-gia nacional, em ano talvez menos estimulan-te, servida pelos mecanismos adequados para a promover, e a fragilidade de uma prática te-atral, condenada à limitação das quatro sema-nas de ensaios, que subordina excessivamen-te a dimensão expressiva das suas linguagens à missão de “divulgar” os textos que põe em cena. Matéria de reflexão para todos, sejamos nós mais ou menos hibernófilos. 1

PAULO EDUARDO CARVALHO

UM FESTIVAL, CINCO TEXTOS E ALGUM TEATRO

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OUTUBRO 2003Almanaque

TEATRO COM TÊ E AGÁ

Paula Braga

Se a questão colocada fosse qual a peça que em toda a história da literatura dramática portu-guesa mais edições teve, a resposta seria, ine-vitavelmente, o drama de Júlio Dantas (1876-1962) A Ceia dos Cardeais: 54 edições existentes em 1993. E falamos somente de edições portu-guesas, porque a peça foi alvo de traduções na Alemanha, Áustria, Itália, França, Espanha, Su-écia, Dinamarca ou Suíça. À laia de introdução, atentemos neste artigo de jornal.

Teatro de S. João

[...] “A Ceia dos Cardeaes” encantadora bleute-te de Julio Dantas, em verso, de que se tem dito tanto bem, e o merece. Sob os artezãos dourados do Vaticano, sob as vistas de santos emudecidos em pinturas muraes, tres purpurados da egreja, servidos de joelhos em baixellas preciosas, re-cordam que foram moços e amaram.

O hespanhol (Brazão) mais lido em Cervan-tes do que em canones, ardeu em amores que fa-cilmente se evolavam em rajadas de cavallarias. O francez (Augusto Rosa) que a Quevedo prefe-re o seu Molière, fez do amor um jogo de espiri-to que, nascido ao harpejo d’um minuete, expi-ra n’um beijo. O portuguez (João Rosa) amou á portugueza, a poesia enlaçada no sentimento, e esse amor que canta quando está triste e cho-ra se palpita d’alegria, esse amor acompanha-o n’uma saudade infinita até á beira da sepultura. Este sim foi o que amou!

Os alexandrinos d’ouro e a dicção tinindo a ouro. Será preciso dizel-o nossos tres grandes artistas? A impressão d’agrado foi immensa e traduziu-se em vibrantes e reiteradas salvas de palmas. O scenario e a mise-en scene, um verda-deiro explendor.

O Primeiro de Janeiro. Ano 34, nº94(22 Abr. 1902).

Apesar deste texto ter dado origem a uma das peças mais representadas e queridas no nosso país, e provavelmente também por isso, foi víti-ma de várias paródias, mais ou menos hilarian-tes. Mas a que, neste caso, vem mais a propósito é A Ceia dos Pardais, de Pedro Bandeira (1871-1945). Sobre esta peça encontramos uma crítica delineada por Júlio Moutinho (1860-1921), ele próprio parodiante da peça em questão com O Chá das Amarais.

A Ceia dos PardaesParodia de Pedro Bandeira á Ceia dos Cardeaes.

Na caixinha do correio encontramos ha dias, como que ahi encafuada por mão cheia de mo-destia, que quizera furtar-se ao apêrto do nosso agradecimento, e dos nossos parabens, a come-dia em 1 acto, em verso, A Ceia dos Pardaes, que Pedro Bandeira escreveu para ser representada no theatro Carlos Alberto.

O novo trabalho do nosso amigo é, sem duvi-da, feliz e a miudo apimentado com pensamen-tos d’um comico irresistivel. E bom foi que esta obra se fizesse para comprovar o que aqui mes-mo nós dissemos das aptidões d’este rapaz, apti-dões por elle proprio tratadas á la diable na sua comedia em 3 actos o Sacrificio d’Abrahão.

E, como somos teimosos, vamos ainda marra-lhar n’este ponto, até que consigamos que a nos-sa agua molle (e temos tanta agua!) fure de vez e esbarrando aquella pedra dura que forma um defeito, de facilimo remedio, e que pena é que prejudique os meritos seja de quem fôr e, em es-pecial, d’um optimo rapaz.

Pedro Bandeira é precipitado. E denota-o sem-pre: quando diz e quando escreve. Se o não fôra, lucraria extremamente pois que, tendo disposi-ção e graça, só a precipitação lhe empana o exi-to dos seus trabalhos. A Ceia dos Pardaes, por exemplo, é prejudicada com o facto de se at-tender em agradar apenas á galeria do theatro para que a comedia foi escripta, sem se lembrar o auctor – na sua precipitação – de que esse the-atro tem plateia e camarotes, por vezes frequen-tados por um publico bem differente, e isto es-pecialmente quando no cartaz figuram nomes sympathicos e estimados como o da pessoa a que me venho referindo.

O Pedro Bandeira diz com graça, mas com uma rapidez que não deixa, por vezes, brilhar, tanto quanto deve, a graça que possue. O Pedro Bandeira póde ser um escriptor theatral de va-lor, mas para isso, necessita de moderar-se e de approveitar bem as suas aptidões, escrevendo com cautella e á altura de si mesmo. Creia elle na sinceridade das palavras que deixo escriptas e que estão longe de ser as phrases banaes que só lhe póde dirigir quem não lhe ligue o devido aprêço. Julio Moutinho

O theatro portuguez-Vida moderna:semanario illustrado. Ano 2, nº22(8 Jun. 1902).

Cardeais, cardeais, pardais ao ninho

Estabelecemos aqui uma relação entre o Teatro São João e o Teatro Carlos Alberto nos idos de 1902. A ponte é Júlio Dantas, Pim! Representa-do nos dois teatros em simultâneo, num na sua versão original e faustosa, no outro em regime paródico. Mas comparemos os dois textos, len-do o início de ambos.

A Ceia dos Cardeaes

Figuras: Cardeal Gonzaga de Castro, bispo de Albano, e camerlengo (João Rosa), Cardeal Rufo, arcebispo de Ostia e deão do Sacro-Collégio (Eduardo Brazão) e Cardeal de Montmorency, bispo de Palestrina (Augusto Rosa)

Em Roma – Vaticano. Durante o pontificado de Benedetto XIV. Século XVIII. Uma grande sala no Vaticano. Paredes cobertas de pannos de Arrás. Amplos tectos de caixão, com apainelamentos de talha dourada. Um retrato de cardeal, vermelho, sobre o fogão. Á D. baixa, o cravo, o violoncello e o violino d’um tercetto classico. Estantes altas, fradescas. Luzes. Ao fundo, largo tamborete onde repousam as capas, os chapéus, os bastões. Á E. baixa, grande armario pesado de baixellas d’ouro e prata batida. Quasi a meio, bufete, onde ceiam os tres cardeaes: toalha de hollandilha picada de rendas, serviço de Sèvres, em branco e ouro, cristaes. Luzes.

Cardeal Gonzaga, Cardeal Rufo, Cardeal de Montmorency (sentados ao bufete, ceando, os famulos, todos de verde e prata, servem-n’os, de joelhos)

Cardeal Rufo (visivelmente agastado) Será já ámanhã!Cardeal Gonzaga, ao Cardeal Rufo (apontando uma travessa de Sèvres) Eminencia, o faizão...Cardeal Rufo Como arcebispo d’Ostia e cardeal deão,/ Cumpre-me receber o embaixador de França!/ Dir-lhe-hei...Cardeal de Montmorency (interrompendo) Eminencia, a humanidade avança!/ Não é justo cerrar-se ao pensamento humano,/ Como uma porta d’ouro, o velho Vaticano!/ Dir-lhe-ha?... Que poderá dizer

Vossa Eminencia?Cardeal Rufo (vehemente) França é a Encyclopedia!Cardeal de Montmorency E Roma a intransigencia!Cardeal Gonzaga (intervindo, conciliador) Eminencias, então!...Cardeal de Montmorency (a um famulo, que curva o joelho, servindo os vinhos) Velho-Rheno.Cardeal Rufo (a outro famulo) Xerez (continuando, a De Montmorency) Roma! Roma que viu pela primeia vez,/ Benedeto XIV, um Papa, a receber/ Conselhos de Inglaterra e cartas de Voltaire!Cardeal de Montmorency (grandiosamente) As cartas de Voltaire, honram!Cardeal Rufo (n’um sorriso desdenhoso) É natural./ Fala como francez.Cardeal de Montmorency (com dignidade) Falo como cardeal!Cardeal Gonzaga (intervindo, de novo) Mas, perdão... Não será politica de mais/ Para uma ceia tão alegre? Emfim, tres cardeaes/ Não salvam Roma...Cardeal Rufo (n’uma grande attitude) Pois em minha consciencia,/ Bastava um só para a salvar!Cardeal de Montmorency (com ironia) Vossa Eminencia?Cardeal Gonzaga (conciliando, docemente) Deixemos isso a Deus. E na divina mão/ Roma repousará.Cardeal de Montmorency (n’um sorriso) Vamos nós ao faizão? [...]

A Ceia dos Pardaes

Figuras: Francisco Pardal (69 annos), Rufino Pardal (40 annos) e José Pardal (53 annos)

Em S. Cosme. Casa de José Pardal. Paredes cheias de teias d’aranha. Ao fundo a lareira, em frente uma cadeira de pau onde seccam umas ceroulas. Á D. B. um barril de vinho. Sobre a lareira uma palhoça e um chapéo. Em cima da pipa um harmonio e sobre as cadeiras violas. Arcas de pau ao fundo. Sobre as arcas e mezas candeias de barro ordinario e de folha. Quasi a meio uma meza de pinho com uma toalha

“Uma cena da «Ceia dos Cardeaes», de Julio Dantas», O Primeiro de Janeiro, 22 Abr. 1902

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NomeDomingos Joaquim Ferreira da CostaIdade37 anosFunçãoCoordenador dos Serviços Administrativose ContabilísticosInício da actividade no TNSJNovembro de 1993

Falar do trabalho de Domingos Costa é, inevita-velmente, percorrer o historial de transforma-ções da instituição TNSJ. Porque já lá vão dez anos desde que aqui começou a trabalhar, por-que há nove que é o responsável pelos Serviços Administrativos e Contabilísticos (SAC), mas sobretudo porque todas as mudanças ao nível do regime de gestão do Teatro têm implicações directas – numa relação que não anda longe de um esquema estímulo-resposta – nas funções que desempenha.

Começou por trabalhar no TNSJ quando a gestão era assegurada por uma empresa priva-da. As mudanças não tardaram em chegar por-que um ano depois, em 1994, a função passou a caber ao Instituto das Artes Cénicas (IAC) que, por essa altura, ficou encarregue de gerir os dois teatros nacionais. Assina o contrato de traba-lho que vem substituir os recibos verdes, passa a responsável pelo departamento que assegura as contas do Teatro, e experimenta o primeiro desafio: «Até aí estava a fazer contabilidade de uma empresa privada e tivemos que passar por um período de adaptação à contabilidade públi-ca, que é totalmente diferente. Esse período de transição foi bastante complicado».

À comparação (ingénua, por sinal) entre a di-mensão da equipa que começou por integrar e aquela que hoje coordena, reage com um sorri-so que denuncia a necessidade de um exercício “descubra-as-diferenças”. Eram três as pesso-as que na altura trabalhavam no NAF – fórmu-la económica de Núcleo Administrativo e Fi-nanceiro, entretanto rebaptizado –, são oito as que hoje formam os SAC. «O departamento foi acompanhando o crescimento do próprio Tea-tro e deu um salto significativo com a chegada de Ricardo Pais.» Por outras palavras, o número de pessoas cresceu à razão do aumento da acti-vidade do TNSJ. «Nessa altura estaríamos a falar de 30 funcionários e hoje são cerca de 95, mas no início fazia-se uma peça de quatro em qua-tro meses, nada que se compare com o ritmo de produção de agora.»

Dizer que tudo o que tenha que ver com custos

e gastos do TNSJ passa pelos SAC não é exagero, é verdade. Sabendo que tudo é muita coisa, não é difícil adivinhar a quantidade de informações, facturas, recibos, contratos e afins que por ali circulam. «Tem que se ser organizado, mas a or-ganização não é só estar tudo muito direitinho, é sobretudo não deitar nada fora.» Arquivar, por-tanto, na certeza de que o que hoje vai para o lixo pode ser necessário amanhã, e sabendo que há designações enganadoras. «Aquilo a que vulgar-mente chamamos “arquivo morto” é útil muitas vezes. Quando arrumo a minha secretária e dei-to algum papel fora, já sei que passado um mês alguém vai fazer alguma pergunta para cuja res-posta aquele papel era importante.»

Nas responsabilidades dos SAC estão ainda incluídas a manutenção da base de dados em que consta o inventário do TNSJ, a gestão de te-souraria, bem como a parte de Recursos Huma-nos que inclui o arquivo de cada um dos fun-cionários e processamento de salários. Mas é a Contabilidade pura e dura que Domingos Cos-ta confessa preferir. Nada de surpreendente, vindo de quem sempre se deu bem com a mal-amada Matemática. «O melhor disto tudo é uma pessoa gostar de números e eu sempre gos-tei.» Aproveite-se a deixa para conhecer o rever-so da medalha. E o pior? «No trabalho adminis-trativo, a parte menos agradável são as notícias do Ministério das Finanças: cortes orçamentais. Quando estabelecemos um orçamento para um determinado valor e depois há um corte, é uma dor de cabeça. É o pior cenário porque é preci-so reformular tudo para conseguir que todas as despesas fiquem dentro do orçamento.»

Ossos de um ofício que acabou por escolher convictamente, depois de desfeita uma ou ou-tra dúvida que surgiu pelo caminho. Quando terminou o primeiro ano do curso de Adminis-tração e Gestão de Empresas, voltou a concorrer a um lugar no ensino superior atrás de um fas-cínio antigo: Física. Acontece que há discipli-nas que andam aos pares e a apetência pela Físi-ca revelou-se proporcional à incompatibilidade com a Química. Regressou ao curso de Gestão, que acabou por concluir à noite porque, entre-tanto, respondeu ao anúncio de jornal que o le-varia a conseguir o emprego no Teatro. Missão dos dez anos de trabalho que contabiliza: garan-tir a agilidade da máquina-TNSJ, ou não fosse a área administrativa um potencial ponto de par-tida para choques em cadeia. «Todas as áreas do Teatro são importantes, mas se as coisas falham aqui é complicado, começa tudo a encravar e não desenvolve.» 1 sm

João Tuna

PRATA DA CASA

suja, remendada e rôta. Nas paredes alhos pôrros. Do tecto, ao centro, pende um grande mólho de espigas de milho vermelho. Junto ao barril á D. uma escada d’abrir, na corda da escada roupa a seccar. Junto ao barril um varapau.

Scena Unica(Francisco, Rufino e José sentados á meza a cear. Um creado serve-os em mangas de camiza)Rufino Amanhã lh’o direi!José (ao creado) Chega-m’o bacalhau!Rufino Pois quer-me a mim par’cer que não é nada mau,/ Propôr-me eu a mim mesmo, aqui, a deputado!/ Pois verão...Francisco Nada... nada! Não acho acertado!/ Você lá rico é. Vencia a eleição./ Mas para se lh’arrancar, do bolso, um só tostão,/ É arrancar-lh’um dente! Oh! alma do diabo!Rufino Um circulo de truz!Francisco Um circulo de... nabo!José Meus amigos, então!...Francisco (ao creado) Chega-m’o vinho verde!(creado serve) Rufino Pois se me dá na bolha, o tal fidalgo perde!/ Carneiro, vinho verde, um pouco de talento.../ E eu – alli á preta! – erguido ao parlamento.Francisco Umas cartas d’empenho...José Não é nada mau!...Francisco E se algum refilar, uma carga de pau,/ Que os reduzo a pó! Que lhes não deixo um osso!Rufino Você fez-me lembrar o Oliveira Grosso!José Mas perdão! Não será politica de mais,/ N’esta alegria toda? Não são trez pardaes/ Que vão salvar S. Cosme!Rufino Sim?! Isso é mais fino!/ Um só o salvará!Francisco Talvez o sô Rufino?José Mudemos de palestra!Francisco Não é nada mau!José Tu tambem achas, Chico?Rufino Venha o bacalhau!/ Se permitem eu sirvo! [...]

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