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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS FACULDADE DE DIREITO DO RECIFE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO LARA DE COUTINHO PINTO PROSELITISMO RELIGIOSO E DISCURSO DE ÓDIO: reflexões sobre os limites da liberdade de expressão religiosa Recife 2019

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS

FACULDADE DE DIREITO DO RECIFE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO

LARA DE COUTINHO PINTO

PROSELITISMO RELIGIOSO E DISCURSO DE ÓDIO:

reflexões sobre os limites da liberdade de expressão religiosa

Recife

2019

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LARA DE COUTINHO PINTO

PROSELITISMO RELIGIOSO E DISCURSO DE ÓDIO:

reflexões sobre os limites da liberdade de expressão religiosa

Dissertação apresentada ao

Programa de Pós-Graduação em

Direito do Centro de Ciências

Jurídicas, Faculdade de Direito do

Recife da Universidade Federal de

Pernambuco como parte dos

requisitos parciais para obtenção do

título de Mestre em Direito.

Orientador: Profº Dr. Artur Stamford da Silva

Recife

2019

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Catalogação na fonte

Bibliotecária Ana Cristina Vieira, CRB-4/1736

P659p Pinto, Lara de Coutinho.

Proselitismo religioso e discurso de ódio: reflexões sobre os limites da

liberdade de expressão religiosa / Lara de Coutinho Pinto. – Recife, 2019. 106 f.

Orientador: Artur Stamford da Silva.

Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Pernambuco. Centro de

Ciências Jurídicas. Programa de Pós-Graduação em Direito, 2019.

Inclui referências.

1. Direito Constitucional - Brasil. 2. Direito Fundamental. 3. Liberdade de

religião. 4. Liberdade de expressão. I. Silva, Artur Stamford da Silva

(Orientador). II. Título.

342.81 CDD (22. ed.) UFPE (BSCCJ 2020-02)

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LARA DE COUTINHO PINTO

PROSELITISMO RELIGIOSO E DISCURSO DE ÓDIO:

reflexões sobre os limites da liberdade de expressão religiosa

Dissertação apresentada ao

Programa de Pós-Graduação em

Direito do Centro de Ciências

Jurídicas, Faculdade de Direito do

Recife da Universidade Federal de

Pernambuco como parte dos

requisitos parciais para obtenção do

título de Mestre em Direito.

Aprovada em: 27/02/2019

BANCA EXAMINADORA

_______________________________________________________________

Profº Dr. Artur Stamford da Silva (Orientador)

Universidade Federal de Pernambuco

_______________________________________________________________

Profº Dr. Alexandre Ronaldo da Maia Farias (Examinador interno)

Universidade Federal de Pernambuco

_______________________________________________________________

Profº Dr. Jayme Benvenuto Lima Junior (Examinador Interno)

Universidade Federal da Integração Latino-Americana

_______________________________________________________________

Profª Dra. Karla Regina Macena Pereira Patriota (Examinadora Externa)

Universidade Federal de Pernambuco

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a todas as forças espirituais que me auxiliaram a superar as dificuldades na

realização desse trabalho e me ajudaram a aprender e contribuir um pouco mais com a

luta por igualdade, tolerância e respeito aos direitos humanos.

Agradeço à minha família, meus pais Mônica Menezes Coutinho e Ciro Carvalho Pinto,

meu irmão Ciro Coutinho Pinto, pelo amor, compreensão e incentivo.

Aos queridos professores da já saudosa Faculdade de Direito da Universidade Federal

de Pernambuco, especialmente ao meu orientador, Artur Stamford da Silva, a quem

agradeço pelo carinho e a atenção com os quais me auxiliou, esclareceu e incentivou.

Aos meus amigos e todos aqueles que me inspiraram, incentivaram e animaram a fazer

este trabalho, meus sinceros agradecimentos.

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RESUMO

O discurso proselitista religioso consiste na modalidade de expressão legítima tutelada

constitucionalmente pelas liberdades de expressão e de crença. O direito de expor ideias

teológicas funda-se diretamente na garantia fundamental à liberdade religiosa, e, assim

como todo direito e garantia fundamental, não possui caráter absoluto. Destarte, a partir

do momento que este discurso tem como objetivo demonizar a crença alheia, expondo

um conteúdo incitador de ódio, intolerância, preconceito e discriminação de outras

religiões professada na sociedade, o Estado tem o dever de atuar com o escopo de

assegurar uma convivência interconfessional pacífica e condescendente, garantindo a

abertura e difusão plural de ideias, pautando-se sempre na igualdade de consideração,

dignidade e respeito a todos os cidadãos, livres e iguais. O presente trabalho tem por

objetivo estabelecer critérios legítimos de restrição a essa liberdade de expressão,

refletindo se o discurso demonizador dos dogmas, deuses e símbolos de outras religiões,

mesmo que pautados em uma crença espiritual, por afetarem diretamente direitos de

terceiros, podem ser limitados pelo Estado. Adota-se a doutrina brasileira mais

abalizada sobre o tema, partindo-se do pressuposto de que eventuais restrições devem

ser pautadas em critérios normalmente aceitos no direito internacional de proteção aos

direitos humanos e em julgamentos paradigmáticos de Cortes democráticas, de forma a

construir interpretação coerente e íntegra do direito fundamental à liberdade de

expressão religiosa. Considerando o problema social do conflito entre neopentecostais e

religiões de matriz africana no país, para testar a hipótese de que os discursos

proselitistas religiosos difundidos pela Igreja Universal do Reino de Deus podem

configurar discurso de ódio que atinge diretamente os sentimentos religiosos dos

seguidores das religiões afro-brasileiras, foi feita a análise do conteúdo do livro Orixás,

caboclos & Guias: deuses ou demônios? de autoria do bispo Edir Macedo, principal

líder dos novos evangélicos. Com base nas práticas jurídicas brasileiras, legislativas e

jurisprudenciais, no ordenamento jurídico pátrio e na análise de ações civis públicas e

criminais sobre os assuntos, busca-se preservar o direito fundamental das confissões

religiosas afro-brasileiras à liberdade religiosa pautando-se na igualdade e dignidade

humana.

Palavras-chave: Proselitismo. Liberdade religiosa. Liberdade de expressão. Dignidade

humana. Igualdade. Discurso de ódio religioso. Intolerância religiosa.

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ABSTRACT

The religious proselytizing discourse consists of the modality of legitimate expression

protected constitutionally by the freedoms of expression and of belief. The right to

expose theological ideas is based directly on the fundamental guarantee of religious

freedom, and, like all fundamental rights and guarantees, is not absolute. Thus, from the

moment that this discourse aims to demonize the belief of others, exposing an inciting

content of hate, intolerance, prejudice and discrimination of other religions professed in

society, the State has the duty to act with the scope of ensuring a coexistence pacific and

condescending interconfessional, guaranteeing the plural opening and diffusion of ideas,

always based on equality of consideration, dignity and respect for all citizens, free and

equal. The present work aims at establishing legitimate criteria for restricting this

freedom of expression, reflecting whether the demonizing discourse of dogmas, gods

and symbols of other religions, even if based on a spiritual belief, because they directly

affect the rights of others, may be limited by the State. The most authoritative Brazilian

doctrine is adopted, based on the assumption that eventual restrictions should be based

on criteria commonly accepted in international law for the protection of human rights

and on paradigmatic judgments of democratic courts in order to construct a coherent

interpretation and fundamental right to freedom of religious expression. Considering the

social problem of the conflict between neo-Pentecostals and African-born religions in

the country, to test the hypothesis that the religious proselytizing discourses spread by

the Universal Church of the Kingdom of God can configure hate speech that directly

affects the religious feelings of Afro- -Brazilians, the analysis of the contents of the

book Orixás, Caboclos & Guias: Gods or Demons? was written by Bishop Edir

Macedo, leader of the new evangelicals. Based on Brazilian legal, legislative and

jurisprudential practices, in the legal order of the country and in the analysis of public

and criminal civil actions on the subject, the aim is to preserve the fundamental right of

Afro-Brazilian religious confessions to religious freedom, based on equality and human

dignity.

Keywords: Proselytism. Religious freedom. Freedom of expression. Human dignity.

Equality. Discourse of religious hatred. Religious intolerance.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO................................................................................................... 9

2 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA COMO FUNDAMENTO DAS

LIBERDADES DE CREDO E DE EXPRESSÃO............................................

16

2.1 A dignidade humana como legitimadora da ordem constitucional................ 16

2.1.1 Natureza jurídica da dignidade da pessoa humana................................................ 17

2.1.2 A dignidade da pessoa humana como um princípio jurídico................................ 19

2.2 A dignidade da pessoa humana como justificadora das liberdades

constitucionais......................................................................................................

21

2.2.1 A liberdade religiosa e dignidade.......................................................................... 23

2.2.1.1 Proteção de minorias religiosas históricas: liberdade religiosa e igualdade...... 25

2.2.1.2 A atuação estatal e o dever de proteção............................................................... 28

3 PROSELITISMO RELIGIOSO: INSTRUMENTO DA LIBERDADE DE

EXPRESSÃO E POSSÍVEL MEIO DE DISSEMINAÇÃO DO

DISCURSO DE ÓDIO........................................................................................

35

3.1 Conflitos entre liberdade de expressão e liberdade religiosa.......................... 35

3.2 Proselitismo religioso e discurso de ódio........................................................... 43

3.3 Critérios internacionais que legitimam restrições legais ao proselitismo

religioso com foco no sistema legal brasileiro...................................................

51

3.4 A diferenciação do discurso proselitista religioso legítimo do ilegítimo em

proteção as confissões religiosas minoritárias..................................................

56

4 O TRATAMENTO JURISPRUDENCIAL DO DISCURSO DE ÓDIO NO

BRASIL................................................................................................................

62

4.1 O discurso de ódio na jurisprudência do STF: o caso Ellwanger – HC

82.424/RS..............................................................................................................

64

5 CONFLITOS ENTRE O NEOPENTECOSTALISMO E AS RELIGIÕES

AFRO-BRASILEIRAS: UMA VISÃO SOCIOLÓGICA E JURÍDICA

SOBRE O TEMA................................................................................................

72

5.1 O movimento neopentecostalista brasileiro e a Igreja Universal do Reino

de Deus (IURD)....................................................................................................

72

5.2 Teologia neopentecostal da guerra espiritual................................................... 75

5.3 Entre o amém e o axé: expectativa de uma resolução de conflito................... 79

6 A CONTROVÉRSIA JUDICIAL E SEU DESENVOLVIMENTO NOS

TRIBUNAIS..................................................................................................

84

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................. 98

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REFERÊNCIAS.................................................................................................. 103

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1 INTRODUÇÃO

Uma das questões constitucionais que se apresenta ao redor do problema social

da intolerância religiosa envolve o chamado discurso proselitista religioso. A

contrariedade cerne está no fato de que muitas vezes, sob o manto da proteção da

liberdade de expressão religiosa, tal discurso, dissimulado pela legitimidade jurídica a

ele designada, poder atingir o sentimento religioso de cidadãos que creem e praticam

outras religiões professadas na sociedade.

O proselitismo ou catequese está protegido por nossa legislação pelas liberdades

religiosa e de expressão, ele é definido como uma ação verbal ou escrita que tem o

empenho de tentar converter uma ou várias pessoas em prol de determinada causa

doutrinária.

O propósito do proselitismo é criar prosélitos (do grego prosélytos), ou seja,

pessoas que foram convertidas para uma nova religião, doutrina, ideologia, filosofia ou

causa. Embora não seja a totalidade dos crentes, muitas das pessoas que praticam o

proselitismo são conhecidas por habitualmente se utilizarem de técnicas de persuasão

antiéticas e muitas vezes agressivas, e, no íntimo de determinadas religiões, essa

catequese também costuma ser realizada em desrespeito aos deuses, símbolos e práticas

sagradas de outras religiões professadas na sociedade civil.

Dentro desse contexto problematiza-se se a liberdade de expressão religiosa,

quando manifestamente qualificada como discurso de ódio pode sofrer restrições com

suporte na legislação e precedentes jurisprudenciais nacionais, isto é, quando um

discurso, gesto ou conduta, escrita ou representada, possa incitar violência ou ação

discriminatória contra um grupo de pessoas ou porque ela ofende ou porque ela intimida

um grupo de cidadãos.

Tal estudo foca nos fundamentos jurídico-constitucionais legitimadores de

possíveis intervenções estatais na liberdade religiosa considerando a laicidade do Estado

brasileiro e seu dever de garantir a convivência pacífica e respeitosa entre os diferentes

segmentos religiosos existentes na sociedade.

O recorte central do presente estudo foca no embate social travado entre os

neopentecostais e as religiões de matriz africana ilustrado pelos constantes episódios de

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violência física e verbal que se tornaram recorrentes por todo o país, e como pode ser

percebido das notícias e estudos quantitativos e qualitativos sobre o tema.

Nas favelas da zona norte do Rio de Janeiro, por exemplo, pais e mães de santo

estão sendo expulsos por traficantes evangélicos. É possível encontrar registros na

Associação de Proteção dos Amigos e Adeptos do Culto Afro Brasileiro e Espírita de

pelo menos 40 Sacerdotes de cultos de matriz africana que foram afugentados de suas

casas.

Em alguns locais, como no Lins e na Serrinha, em Madureira, além do

fechamento dos terreiros também foi determinada a proibição do uso de colares afro e

roupas brancas. Os seguidores das religiões afro-brasileiras denunciam que a

intolerância religiosa não é exclusiva de uma única facção criminosa. No morro do

Dendê, por exemplo, o chefe do tráfico ostenta no antebraço direito a tatuagem com o

nome de Jesus Cristo. Pela casa, Bíblias por todos os lados, porém, em seus domínios,

reina o preconceito: enquanto os muros da favela foram preenchidos por dizeres

bíblicos, os dez terreiros que funcionavam no local deixaram de existir. Os pais e mães

de santo que ainda vivem na favela não praticam mais a religião, tendo que fingir ser o

que não são.1

Também no Rio de Janeiro, Kayllane Campos, de apenas onze anos, que havia

se iniciado no candomblé há apenas quatro meses, foi apedrejada na cabeça por

evangélicos, enquanto seguia com parentes e irmãos de santo para um centro

espiritualista na Vila da Penha. Simultaneamente ao episódio de violência física, foram

desferidas expressões como: “Sai satanás”, “Queima!” e “Vocês vão para o inferno”.

Após o ocorrido, a menina declarou que continua na religião, pois é sua fé e jamais irá

abandoná-la, mas que nunca mais sairá de branco por temer a morte.2

Na Bahia, um dos terreiros de candomblé mais renomados de Salvador, o Ilê

Axé Iyá Nassó Obá, popularmente conhecido como Casa Branca, denunciou às

autoridades a invasão de evangélicos que teriam atirado sal grosso e enxofre nos

1SOARES, Rafael. Crime e preconceito: mães e filhos de santo são expulsos de favelas por traficantes

evangélicos. O Globo, Rio de Janeiro, 25 fev. 2015. Acesso em: 4 nov. 2018.

2ARAÚJO, Flávio. Menina iniciada no candomblé é apedrejada na cabeça por evangélicos.

Pragmatismopolítico, Rio de Janeiro, 16 jun. 2015. Acesso em: 4 nov. 2018.

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candomblecistas.3 Em Camaçari, outra cidade baiana, a mãe Dede de Iansã, do Terreiro

de Oyá, a ialorixá mais idosa do município, faleceu aos 90 anos de idade. A ialorixá foi

mais uma vítima da crescente intolerância religiosa que contamina o país, após fanáticos

evangélicos em transe promoverem o que chamam de vigília de “libertação”, iniciando

rituais de hostilização à casa religiosa e também a mãe Dede, proferindo frases como:

“Queima esse satanás”, “Liberta senhor” e “Destrói a feitiçaria”. Em consequência

dessa violência, após passar a noite em claro, com muito medo e nervosa devido à

gravidade dos impropérios, a Sacerdotisa sofreu infarto do miocárdio e faleceu durante

as agressões psicológicas.4

Os expoentes casos de discriminação religiosa entre seguidores de religiões

neopentecostais contra membros de religiões afro-brasileiras atestam a gravidade do

conflito. Os casos de intolerância religiosa são preponderantemente feitos aos deuses,

símbolos e cultos sagrados das religiões de matriz africana. Isso porque os

neopentecostais propagam uma “doutrina demonizadora”, efetuando rituais de

exorcismo contra os deuses e entidades dessas religiões, recorrendo, inclusive, a

agressões verbais e físicas a candomblecistas, umbandistas e quimbandeiros.

Os discursos intolerantes são reiteradamente proferidos contra as religiões de

matriz africana não só dentro dos seus espaços sagrados, como os terreiros e roças, mas

também nos espaços públicos físicos, como: escolas, hospitais, ruas e praças, meios de

transporte, e em espaços virtuais, emissoras de rádio, televisão, sites e redes sociais.

Como se verá, as reações afro-brasileiras intensificaram-se na última década. É

como demonstram as ações cíveis e criminais ajuizadas, os inquéritos policiais

instaurados, os sítios eletrônicos denunciadores da intolerância religiosa, as caminhadas

por liberdade religiosa, as notícias de jornal e as campanhas e cartilhas governamentais

incentivando a tolerância e o respeito entre as religiões.

A luta dos povos de terreiro é a mesma em todos os estados do Brasil, porém

estudos apontam que os casos de intolerância continuam sem punição. Mais de 40 casos

de intolerância religiosa foram acompanhados por pesquisadores do Instituto de Estudos

3Intolerância Religiosa – Ameaça à Paz. Direção: Jonga Oliveira, Karla Ladeia, Serge Péchiné. Produção:

Barbara Borga. Toca da Gia Filmes. Casa Branca (Ilê Axé Iyá Nassó Obá). Salvador. 2004. (30m01s).

Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=AabbtL3Wl00. Acesso em 29 de jun. 2018.

4FERRÃO, Marcelo. A Intolerância Religiosa que mata na Bahia: “queima satanás, liberta senhor, destrói

a feitiçaria”, Geledés, Instituto da Mulher Negra, 22 jun. 2015. Acesso 7 jun. 2017.

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Comparados em Administração Institucional de Conflitos (Ineac), da Universidade

Federal Fluminense. A conclusão é frustrante para os religiosos, pois, por ora, nem a

polícia nem o Judiciário “enxergam” os atos de intolerância como um crime que atinge

a identidade das religiões afro-brasileiras.5

Ademais, não são apenas os cidadãos comuns que agridem candomblecistas e

umbandistas, há aqueles que, no exercício de funções públicas, abusam do direito à

liberdade religiosa, como no caso dos policiais militares que agrediram e torturaram a

mãe-de-santo Bernadete de Souza. Os policiais invadiram a festa do terreiro de

candomblé Ylê Axé Odé Omí Uá, localizado no assentamento rural Dom Hélder

Câmara, em Ilhéus, Bahia, sem autorização judicial. Indagados pela mãe-de-santo

acerca do “mandato judicial”, os policiais militares deram-lhe voz de prisão por

desacato à autoridade, momento em que a ialorixá incorporou o orixá Oxóssi.

Imediatamente, os policiais arrastaram-na para um formigueiro próximo, alegando que

as formigas serviriam para afastar Satanás. Terminada a sessão de exorcismo,

arrastaram-na novamente pelos cabelos até a viatura policial. Na delegacia, colocaram-

na numa cela com homens. Nenhum dos sete policiais acusados de tortura, no caso, foi

indiciado no inquérito aberto para investigar o crime.6

Outro caso recente que vem causando espanto é a administração pública do

Prefeito Marcelo Crivella na cidade do Rio de Janeiro, bispo licenciado da Igreja

Universal do Reino de Deus, que assumiu o mandato em Janeiro de 2017. O Prefeito é

acusado pelo Ministério Público de estar desrespeitando continuamente a laicidade

estatal por atuar exclusivamente em favor do segmento religioso do qual faz parte: o

evangélico. Dentre os casos listados pelo Ministério Público, chama atenção o corte no

apoio aos eventos religiosos de matrizes africanas e o decreto que submetia ao Prefeito a

possibilidade de restringir encontros religiosos. A controvérsia da ação de improbidade,

por óbvio, não circunda a religião professada pelo Prefeito, mas sim na utilização da

máquina pública em benefício de determinado segmento religioso e em eventual

5MONTEAGUDO, Clarissa. Religiosos pedem a criação de delegacia para crimes com motivação

religiosa. Extra, Rio de Janeiro, 21 jun. 2011. Acesso 7 jun. 2017.

6GAUTHIER, Jorge. Ilhéus: tortura à ialorixá é condenada. Correio da Bahia, Salvador, 7 nov. 2010.

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discriminação contra outros, o que não pode ser admitido no âmbito de um estado

democrático de direito laico7.

De janeiro a julho de 2014, os adeptos de religiões de matriz africana foram

vítimas em 22 das 53 denúncias de intolerância religiosa recebidas pelo Disque 100, da

Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, segundo levantamento

feito a pedido do Jornal GLOBO.8 Em 2013, foram 21 registros feitos por adeptos de

religiões afro-brasileiras, em um total de 114. Mas o segmento também foi o que somou

mais agredidos nesse ano.

O estudo “Presença do axé - Mapeando terreiros no Rio de Janeiro”9, de

pesquisadores da PUCRio, também contabilizou as agressões aos frequentadores de

culto afro-brasileiros. Das 840 casas listadas, 430 foram alvo de discriminação. Mais da

metade (57%) em locais públicos. Entre esses casos, a maior parte ocorreu nas ruas

(67%).

A designação ‘evangélico’ representa 32% dos casos — primeiro lugar entre os

protagonistas dos atos de agressão e/ou discriminação. Em segundo, estão os ‘vizinhos’

(27%). Em terceiro, ‘vizinhos evangélicos’ (7%). Somando-se as três categorias —

evangélico, vizinho e vizinho evangélico — obtém-se a grande maioria (66%) de todos

os casos de agressão e discriminação. A combinação reforça a percepção da existência

de um agressor típico que teria, a princípio, não somente uma adesão religiosa

específica, mas e/ou também estaria situado espacialmente bastante próximo da casa

religiosa ou terreiro.

É certo que a maior parte das notícias de jornal não permite identificar com

clareza as igrejas evangélicas a que pertencem os agressores, mas em todas as

reportagens é possível observar a mobilização do discurso demonizador que orienta e

justifica as agressões e violências, físicas e simbólicas, aos olhos de seus agentes.

Considerando análises sociológicas e antropológicas sobre o

neopentecostalismo, que ressaltam a exacerbada relevância que os neopentecostais

7A ação de improbidade administrativa ajuizada pelo Ministério Público do Estado de Rio de Janeiro

contra o atual Prefeito da cidade, Bispo Marcelo Crivella, é identificada sob o número: 0042658-

10.2018.819.0000 e corre em apenso à ação popular de nº 0162110-11.2018.8.19.0001, na 7ª Vara da

Fazenda Pública do Rio de Janeiro.

8TINOCO, Dandara. Levantamentos mostram perseguição contra religiões de matriz africana no Brasil. O

Globo, Rio de Janeiro, 10 ago. 2014. 9FONSECA, Denise Pini Rosalem da; GIACOMINI, Sonia Maria. Presença do axé - Mapeando terreiros

no Rio de Janeiro. São Paulo. Editora Pallas, 2013.

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atribuem ao combate das religiões que consideram demoníacas, é plausível sustentar a

hipótese de que os supostos agressores evangélicos possuem crenças provenientes dessa

matriz religiosa. O líder fundador da Igreja Universal do Reino de Deus, Edir Macedo,

em sua obra best-seller Orixás, Caboclos & Guias: deuses ou demônios?10, argumenta

que sua igreja foi fundada para o trabalho especial de libertação das pessoas

endemoninhadas, tendo nascido para vencer essa “guerra espiritual”.

Aliás, são muitos os casos de intolerância religiosa registrados e a publicação e

venda do livro supracitado contabiliza a grande lista de queixas que geram grande

indignação e revolta em seguidores de diversas religiões, especialmente os das religiões

de matriz africana. Denúncias de que o livro escrito pelo bispo propulsor da Igreja

Universal revelava alto grau de preconceito e discriminação às religiões afro-brasileiras

e busca incitar seus leitores a uma postura preconceituosa e discriminatória levaram o

Ministério Público do Estado da Bahia, no ano de 2005, a ajuizar ação civil pública11 na

Justiça Federal, tendo como réus Edir Macedo, a Igreja Universal do Reino de Deus e a

Gráfica Universal Ltda., responsáveis pela publicação, vendagem e distribuição gratuita

da obra.

Liminarmente, foi pedida a imediata retirada de circulação, suspensão de

tiragem, venda, revenda e entrega gratuita da obra em questão. Como pedido principal,

requereu-se a condenação dos réus à suspensão definitiva da obra. Porém o processo

ainda tramita sem decisão com trânsito em julgado. O fato é que os casos de intolerância

religiosa levados ao poder judiciário nacional sempre geraram grande polêmica.

Em várias áreas do conhecimento, especialmente nas ciências sociais e humanas,

proliferam os estudos sobre o embate do neopentecostalismo contra as religiões afro-

brasileiras, sob as mais diversas perspectivas e interpretações, demonstrando maior

preocupação e conscientização da gravidade das dimensões sociais do conflito por parte

dos interlocutores de espaços públicos de discussão.12

10 MACEDO, Edir. Orixás, Caboclos & Guias: deuses ou demônios? São Paulo. Editora Universal, 2001.

11JUSTIÇA FEDERAL. Seção Judiciária do Estado da Bahia. 4ª Vara Federal de Salvador. Ação Civil

Pública. Processo nº 0022878-69.2005.4.01.3300. Autor: Ministério Público Federal. Réus: Edir

Macedo Bezerra; Igreja Universal do Reino de Deus e Editora Gráfica Universal Ltda.

12 Como demonstram os estudos de Francisco Rivas Neto, sacerdote e fundador da Faculdade de Teologia

com Ênfase em Religiões Afro-Brasileiras (FTU), autor do artigo “Religiões Afro-Brasileiras, religiões

de transe: dirimindo questões sociais"; Denise Pini Fonseca, historiadora, ex-professora da PUC-Rio e

coautora do estudo “Presença do axé: mapeando terreiros no Rio de Janeiro” que visitou os mais de

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Delineadas as características desse problema social, ou seja, o preconceito, a

hostilidade e a discriminação que está sendo incentivada pelo proselitismo religioso

neopentecostal em desrespeito aos adeptos de religiões afro-brasileiras, pretende-se

analisar se a catequese religiosa, especialmente a demonizadora dos deuses, símbolos e

práticas sagradas das outras religiões professadas na sociedade civil, pode sofrer

restrições legais e jurisprudenciais, e quais seriam os fundamentos jurídico-

constitucionais legitimadores de possíveis intervenções estatais considerando a

laicidade do Estado brasileiro e seu dever de garantir a convivência pacífica e respeitosa

entre os diferentes segmentos religiosos existentes na sociedade.

Assim, analisar-se-á o âmbito da proteção constitucional do direito ao

proselitismo religioso segundo os critérios geralmente aceitos nas práticas jurídicas

brasileiras e seu ordenamento jurídico. Por esse ângulo, entende-se que o Estado

democrático brasileiro se afigura multicultural e com frequência é necessário buscar o

equilíbrio entre a liberdade de expressão e a liberdade de pensamento e religião, o que,

por vezes, pode significar limitações legitimamente impostas a essas liberdades.

A temática do proselitismo constitui em exercício polêmico e conflituoso da

liberdade religiosa e da liberdade de expressão que, além de raramente ser aprofundado

na doutrina constitucional dos direitos fundamentais, também apresenta inúmeros

desafios às democracias constitucionais contemporâneas, justamente por configurar esse

choque de princípios que aqui será ilustrado pela análise de uma ação civil pública, na

qual se expressa a irresignação dos candomblecistas e umbandistas diante deste

polêmico proselitismo das igrejas neopentecostais.

800 terreiros fluminenses; João Luiz Carneiro, doutor em ciências da religião pela PUC-SP, especialista

em teologia afro-brasileira pela FTU e autor do livro “Religiões Afro-brasileiras: Uma construção

teológica”, publicado pela Editora Vozes.

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2 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA COMO FUNDAMENTO DAS

LIBERDADES DE CREDO E DE EXPRESSÃO

Os direitos à liberdade e igualdade são, em sua essência, diretamente ligados a

natureza humana, e, por substância, caracterizam-se como elementos indispensáveis ao

desenvolvimento da dignidade humana, por conseguinte são direitos que fundamentam

o Estado Democrático.

A liberdade, em especial, tem sua amplitude axiológica positivada na

Constituição Federal de 1988. Por ser tão abrangente, vêm especificada na forma de

diversas possibilidades, porque as liberdades, em sua essência, se caracterizam de

diversas maneiras, podem ser individuais, a exemplo da livre locomoção, circulação,

opinião, religião, informação, artística, comunicação, conhecimento, livre escolha e de

exercício do trabalho, ofício e profissão, ou coletivas, como a reunião, associação, a de

conteúdo econômico social.

Existe entre o Estado Democrático e o direito às liberdades uma relação de

dependência mútua, no sentido em que aquele viabiliza a existência desse e vice-versa.

E dentro deste contexto é a dignidade da pessoa humana que fundamenta a razão de ser

dessas liberdades.

2.1 A dignidade humana como legitimadora da ordem constitucional

De forma clara e inequívoca, o constituinte deixou transparecer a sua intenção de

outorgar aos princípios fundamentais a qualidade de normas embasadoras e

informativas de toda a ordem constitucional, especialmente das normas definidoras de

direitos e garantias fundamentais, que igualmente integram, junto com os princípios

fundamentais, o núcleo essencial da Constituição formal e material.

Ademais disso, o direito constitucional positivou a dignidade da pessoa humana

como fundamento do Estado democrático de direito (artigo 1º, inciso III, da

Constituição de 1988), assim o constituinte deixa bem claro a finalidade e a justificação

do poder estatal e do próprio Estado, reconhecendo que é o Estado que vive em razão da

pessoa humana e não o contrário, já que o ser humano constitui a finalidade precípua, e

não meio da atividade estatal.

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A dignidade da pessoa humana é o valor fonte que anima e justifica a própria

existência do ordenamento jurídico e todos os direitos e garantias fundamentais

positivados na ordem constitucional de 1988 que encontram seu fundamento direto,

imediato e igual na dignidade da pessoa humana do qual seriam concretizações. Como

leciona Jorge Miranda13, o princípio da dignidade da pessoa humana constitui

fundamento de todo sistema dos direitos fundamentais, no sentido que estes constituem

exigências, concretizações e desdobramentos da dignidade da pessoa e que com base

neste os direitos fundamentais devem ser interpretados.

Nesse sentido, o princípio da dignidade humana radica na base de todos os

direitos fundamentais constitucionalmente consagrados, admitindo diferentes graus de

vinculação dos diversos direitos àquele princípio. A dignidade da pessoa humana pode

ser entendida como o pilar, o ponto de inspiração para o surgimento de novos princípios

fundamentais.

As liberdades fundamentais estão intimamente ligadas à dignidade humana, o

entendimento de que todos os cidadãos são livres e iguais para se expressarem

publicamente e terem suas próprias convicções éticas e morais decorrem diretamente

desse princípio.

Notadamente, com relação à análise que prende fazer este trabalho,

especialmente no que tange ao direito à liberdade de expressão e à liberdade religiosa, é

que o exame da dignidade da pessoa humana e sua utilização para resolução de casos

difíceis se fazem especialmente importantes.

2.1.1 Natureza jurídica da dignidade da pessoa humana

A noção de dignidade humana varia no tempo e no espaço, sofrendo influências

históricas e culturais de cada povo, bem como de circunstâncias políticas e ideológicas.

A dignidade deve ser pensada como um conceito aberto, plástico, plural. Seu conceito é

mutável e ambíguo, por essa razão é que muitos autores sustentam a inutilidade desse

conceito. Contudo, é evidente que essa é uma noção valiosíssima, necessária e

indispensável à argumentação jurídica de qualquer democracia constitucional.

A dificuldade de conceituação reside no fato da dignidade da pessoa ser direito

jusfundamental diferente dos demais, afinal não cuida de aspectos mais ou menos

13MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional: Direitos Fundamentais. Coimbra:

Editora Coimbra, 2012, p. 181. t. 4.

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específicos da existência humana - integridade física, intimidade, propriedade e vida,

por exemplo – mas sim de uma qualidade tida como inerente a todo e qualquer ser

humano, por essa razão importa avaliar seu status jurídico-normativo no âmbito do

ordenamento constitucional brasileiro14.

Primeiramente, a dignidade da pessoa humana surgiu no campo da ética como

um valor daquilo que é bom, justo, virtuoso. Um conceito ético, axiológico, que

embasou a justificação moral dos direitos humanos e dos direitos fundamentais, era um

valor pré e extrajurídico, mas já desempenhava um papel relevante visto que era capaz

de influenciar o processo interpretativo de aplicação das normas.

Primordialmente a dignidade humana ganhou notável valor à luz da doutrina de

matriz kantiana, centrando-se na autonomia e no direito de autodeterminação de cada

pessoa. Para Kant, a dignidade, na condição de valor intrínseco do ser humano, gera

para o indivíduo o direito de decidir de forma autônoma sobre seus projetos existências

e felicidade e, mesmo onde essa autonomia lhe faltar ou não puder ser atualizada, ainda

assim ser considerado e respeitado pela sua condição humana.15 O pensamento kantiano

até hoje dita os entendimentos da doutrina constitucional majoritária e influencia no

conceito de elemento nuclear da dignidade da pessoa humana.

Após a Segunda Guerra Mundial, a dignidade da pessoa humana se tornou um

dos grandes consensos éticos mundiais e progressivamente passou a integrar

documentos constitucionais e internacionais, notadamente após ter sido consagrada pela

Declaração Universal da ONU de 1948, vindo a ser considerada um dos principais

fundamentos dos Estados democráticos. A partir daí a dignidade da pessoa humana

deixa de ter apenas um sentido axiológico, moral e/ou político, para tornar-se um

conceito jurídico, deontológico, um dever-ser normativo, foi o processo de

judicialização da dignidade.

Com a progressiva adoção do seu conceito pela ciência jurídica entre a moral e o

direito é que a dignidade da pessoa humana ganhou status de princípio jurídico. Foi a

aproximação do direito com a ética que tornou o sistema jurídico permeável aos valores

morais.

14SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na

Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2008, p. 29.

15A ética kantiana encontra-se desenvolvida, sobretudo, em sua obra Fundamentação da metafísica dos

costumes, publicada em 1785.

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Como ensina Luís Roberto Barroso, ao longo do tempo, consolidou-se a

convicção de que nos casos difíceis, para os quais não há resposta pré-pronta no direito

posto, a construção da solução constitucionalmente adequada precisa recorrer a

elementos extrajurídicos, como a filosofia moral e a filosofia política. E entre eles

avulta a importância da dignidade da pessoa humana.16

A dignidade humana, então, é um valor fundamental que se viu convertido

em princípio jurídico de estatura constitucional, seja por sua positivação em

norma expressa seja por sua aceitação como um mandamento jurídico

extraído do sistema (BARROSO, 2010, p. 11).

A dignidade da pessoa deve ser compreendida como qualidade integrante e

irrenunciável da própria condição humana, pode (e deve) ser reconhecida, respeitada,

promovida e protegida, não podendo, contudo ser criada, concedida ou retirada, embora

possa ser violada, já que existe em cada ser humano como algo que lhe é inerente. O

Direito exerce função crucial na sua proteção e promoção.17

O ordenamento jurídico brasileiro consagra a dignidade da pessoa humana ao

reconhecer sua plena eficácia na ordem constitucional destacando sua condição e valor

de princípio fundamental do Estado democrático de direito e ao designar sua eficácia à

toda ordem jurídica como valor fundamental geral.18

2.1.2 A dignidade da pessoa humana como um princípio jurídico

A identificação da dignidade humana como um princípio jurídico produz

consequências relevantes no que diz respeito à determinação de seu conteúdo e estrutura

normativa, seu modo de aplicação e seu papel no sistema constitucional.

Princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida

possível dentro das possibilidades jurídicas fáticas existentes, eles são mandados de

otimização, as medidas de sua satisfação dependem do caso concreto.19 São normas

jurídicas com certa carga axiológica que consagram valores ou indicam fins a serem

16BARROSO, Luís Roberto. A Dignidade da Pessoa Humana no Direito Constitucional

Contemporâneo: Natureza Jurídica, Conteúdos Mínimos e Critérios de Aplicação.

dez. 2010, p. 11. Mimeografado.

17SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição

Federal de 1988. Porto Alegre: Editora Livraria do advogado, 2008, p. 44.

18Id., 2008, p. 75.

19ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. São Paulo. Malheiros editores, 2008, p. 90.

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realizados, sem explicitar comportamentos específicos. Sua aplicação poderá se dar por

subsunção, mediante extração de uma regra concreta de seu enunciado abstrato, mas

também mediante ponderação, em caso de colisão com outras normas de igual

hierarquia. Além disso, seu papel no sistema jurídico difere do das regras, na medida em

que eles se irradiam por outras normas, condicionando seu sentido e alcance.20

Ao analisar a dignidade humana na condição de princípio, precede de

importância salientar três características deste instituto. A primeira é que ela é parte do

conteúdo dos direitos materialmente fundamentais, é o núcleo desses direitos, a

justificação moral dos mesmos, mas não se confunde com eles. A dignidade humana

serve como parâmetro da ponderação em caso de concorrência entre direitos

fundamentais.

A segunda, embora seja qualificada como um valor ou princípio fundamental,

assim como todos os outros direitos fundamentais, a dignidade da pessoa humana não

tem caráter absoluto, isso quer dizer que, apesar de ter proeminência na maioria dos

casos, a dignidade humana em certos contextos pode vir a ser restringida, sacrificada em

prol de outros valores individuais ou sociais, como na pena de prisão, na extradição de

estrangeiro ou na proibição de determinadas formas de expressão.21

Por fim, a dignidade da pessoa humana, como ocorre com qualquer outro

princípio, tem eficácia vertical e horizontal, ou seja, aplica-se tanto nas relações entre

indivíduo e Estado quanto nas relações privadas.

À luz do que leciona Luís Roberto Barroso, os princípios em geral e a dignidade

da pessoa humana têm seu âmbito de eficácia dividido em três grandes categorias:

direta22, interpretativa e negativa23.

No que tange à resolução de solução de casos difíceis entre princípios e a

dignidade humana, a eficácia interpretativa tem grande importância como condutora de

resolução de divergências:

20BARROSO, Luís Roberto. A Dignidade da Pessoa Humana no Direito Constitucional Contemporâneo:

Natureza Jurídica, Conteúdos Mínimos e Critérios de Aplicação. Versão provisória para debate público.

Mimeografado, dezembro de 2010, p. 12.

21ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros editores, 2008, p. 276.

22BARROSO, Luís Roberto, A Dignidade da Pessoa Humana no Direito Constitucional Contemporâneo:

Natureza Jurídica, Conteúdos Mínimos e Critérios de Aplicação. Versão provisória para debate público.

Mimeografado, dezembro de 2010, p. 12: “Pela eficácia direta, um princípio incide sobre a realidade

à semelhança de uma regra. Embora tenha por traço característico a vagueza, todo princípio terá um

núcleo, do qual se poderá extrair um comando concreto.”

23Id., 2010, p.14: “A eficácia negativa, por fim, implica na paralisação da aplicação de qualquer norma

ou ato jurídico que seja incompatível com o princípio constitucional em questão.”

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A eficácia interpretativa dos princípios constitucionais significa que os

valores e fins neles abrigados condicionam o sentido e o alcance das normas

jurídicas em geral. A dignidade, assim, será critério para valoração de

situações e atribuição de pesos em casos que envolvam ponderação

(BARROSO, 2010, p.12).

Cada vez mais, encontram-se decisões dos nossos Tribunais se valendo da

dignidade da pessoa como critério hermenêutico, isto é, como fundamento para solução

das controvérsias. A dignidade da pessoa humana já serviu como fundamento para

mudanças jurisprudenciais no STF até mesmo limitando condutas privadas consideradas

violadoras do princípio e consequentemente ilícitas, como em uma rara ocasião que o

Supremo se dispôs a limitar a liberdade de expressão considerando ilegítima a

manifestação de ódio racial e religioso.24

Pelo mundo afora, cortes constitucionais internacionais têm apreciado casos de

grande complexidade moral envolvendo o sentido e o alcance da dignidade da pessoa

humana. Porém, raramente a dignidade é o fundamento central do argumento, isto é,

mal tem seu conteúdo explorado ou explicitado, apesar de ser o efetivo fio condutor da

decisão quando se está diante os casos verdadeiramente difíceis.

2.2 A dignidade da pessoa humana como justificadora das liberdades

constitucionais

A concepção do direito fundamental à dignidade humana, como princípio

estruturante do Estado democrático de direito, é bem difundida entre os

constitucionalistas brasileiros que interpretam a Constituição Federal como uma ordem

concreta de valores, no ápice dos quais se encontra a dignidade da pessoa humana.

Para ilustrar referida concepção, transcrevemos a definição do princípio da

dignidade da pessoa humana oferecida por Ingo Wolfgang Sarlet, que afirma que a

dignidade humana pode ser definida como:

a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz

merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da

comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres

fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de

24Trata-se do Caso Ellwanger, em que o STF decidiu que a liberdade de expressão não protege a incitação

de racismo antissemita. DJ 19 mar. 2003, HC 82.424/RS, Rel. p/ o acórdão Min. Maurício Corrêa.

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cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições

existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover

sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e

da vida em comunhão com os demais seres humanos.25

A dignidade humana constitui fundamento primordial da democracia na maior

parte dos regimes jurídicos contemporâneos, uma vez que o princípio da dignidade

humana implica a consagração de amplo complexo de direitos, garantias e liberdades

fundamentais, os quais objetivam assegurar aos cidadãos as condições existenciais

mínimas ao livre desenvolvimento de suas personalidades, que, identificadas como

igualmente merecedoras de respeito e consideração, devem se tornar aptas a contribuir

para as decisões fundamentais da comunidade política.

A dignidade da pessoa humana, na condição de valor e princípio normativo

fundamental que conduz diretamente todos os direitos fundamentais a serem

interpretados a luz daquele princípio, exige e pressupõe o reconhecimento e proteção

dos direitos fundamentais de todas as gerações. Sem que se reconheça à pessoa humana

os direitos fundamentais que lhe são inerentes, em verdade estar-se-á lhe negando a

própria dignidade.

Se a noção de dignidade repousa na lógica kantiana de autonomia pessoal, isto é,

na liberdade que o ser humano possui de formatar sua própria existência de ser,

portanto, sujeito de direitos, já não se questiona que a liberdade e os direitos

fundamentais inerentes à sua proteção constituem simultaneamente pressuposto e

concretização direta da dignidade da pessoa humana.26 Sem liberdade, negativa27

(direito de defesa) ou positiva28 (direito à prestações fáticas e jurídicas), não haverá

dignidade, ou esta não estará sendo reconhecida ou assegurada.29

A liberdade humana abarca, primeiramente, “o domínio interior da consciência,

exigindo liberdade de consciência no sentido mais abrangente, liberdade de

25SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição

Federal de 1988. Porto Alegre: Editora Livraria do advogado, 2008, p. 59-60.

26Id., 2008, p. 89.

27ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Malheiros editores, 2008, p.222: “Se o objeto da

liberdade é uma alternativa de ação, falar-se-á em uma “liberdade negativa”. Uma pessoa é livre em

sentido negativo na medida em que a ela não são vedadas alternativas de ação. O conceito negativo de

liberdade nada diz acerca daquilo que uma pessoa que é livre em sentido negativo deve fazer ou, sob

certas condições irá fazer; ele diz apenas algo sobre suas possibilidades de fazer algo”.

28Id., 2008, p. 222 “A distinção entre liberdade positiva e negativa reside somente no fato de que no caso

da primeira o objeto da liberdade é uma única ação, enquanto no caso da segunda ele consiste em uma

alternativa de ação”.

29Ibid., 2008, p. 374.

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pensamento e sentimento em todos os assuntos, práticos ou especulativos, científicos,

morais ou teológicos”30

Existe uma ligação íntima entre liberdade e dignidade, sem liberdade não há

dignidade. A liberdade só poder ser exercida, segundo esta visão, se o for com fincas na

dignidade humana.

Em sua concepção extraída do que entende o Tribunal Constitucional Alemão,

Robert Alexy define que a dignidade humana está “baseada na compreensão do ser

humano como um ser intelectual e moral, capaz de se determinar e de se desenvolver

em liberdade”31. O autor ainda pontua a importância da ideia de liberdade garantida por

um aparato externo de cunho estatal e, nesse sentido, “sem a liberdade jurídica negativa

não há dignidade humana em um sentido juridicamente relevante” (idem).

Alexy conclui seu raciocínio inserindo uma concepção comunitária da liberdade

afirmando que “a constituição alemã não concebe essa liberdade como uma liberdade

de um indivíduo isolado e autocrático, mas como um indivíduo relacionado a uma

comunidade e a ela vinculado”.32

Nesse sentido é que se enxerga a dignidade humana como possibilitadora das

liberdades e também como medida desta, uma vez que o indivíduo deve se conformar

com as restrições à sua liberdade de ação, impostas pelo Estado (em suas manifestações

através dos poderes executivo, legislativo e judiciário) com o objetivo de manter e

fomentar a convivência social, dentro dos limites daquilo que é razoável, exigível diante

das circunstâncias e desde que a independência da pessoa seja preservada.

2.2.1 A liberdade religiosa e dignidade

O direito fundamental à liberdade relaciona-se profundamente com o princípio

da dignidade da pessoa humana. Ronald Dworkin33, com base no liberalismo político,

entende que o princípio da dignidade humana deve ser compreendido como expressão

da autonomia moral dos indivíduos livres e iguais. Nas democracias liberais, exigem-se

que todos os cidadãos sejam tratados como igualmente merecedores de respeito e

30Sobre a liberdade. In: MORRIS, Clarence (Org.). Os grandes filósofos do Direito: leituras escolhidas. São

Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 385.

31ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Editora Malheiros editores, 2008, p. 356.

32Id., 2008, p.356.

33DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Editora Wmf Martins Fontes, 2011.

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consideração. A concretização de um tratamento igualitário e de respeito à autonomia

individual exige que o Estado e os demais cidadãos abstenham-se de impor convicções

moralmente parciais sobre as decisões fundamentais da existência humana.

Um Estado liberal admite a responsabilidade individual de cada um em escolher

entre as diferentes concepções de bem e de orientar a vida consoante aos valores

adotados. A concepção da dignidade humana deriva da ideia de que se deve reconhecer

a competência racional e moral dos cidadãos, para livremente construir sua identidade e

projeto de sua existência. O direito fundamental à liberdade religiosa apoia-se na

liberdade de consciência que também se fundamenta no livre arbítrio da

autodeterminação existencial e ética dos indivíduos.

É lógica a associação existente entre dignidade da pessoa humana e liberdade

religiosa, como bem coloca Manoel Jorge e Silva Neto34, a dignidade é “o valor-fonte

de todos os valores”, na definição de Miguel Reale, inspira o sistema do direito positivo

de uma maneira geral, de modo a adotarem-se soluções que protejam o direito à vida, à

incolumidade física, à intimidade, à imagem, à vida privada e à liberdade, esta em

sentido lato, que inclui evidentemente a liberdade religiosa.

É o reconhecimento de que todos os cidadãos são legítimos agentes morais que

implica que o Estado não coaja os indivíduos a seguir determinada doutrina, mas sim

conceder-lhes a responsabilidade de decidir quais valores fundamentais guiarão o

projeto de sua existência.

Ainda segundo Silva Neto, “a opção religiosa está tão incorporada ao substrato

de ser humano - até para não se optar por religião nenhuma - que o seu desrespeito

provoca idêntico desacato à dignidade da pessoa”.35A liberdade de crença, conjugada à

de consciência, permite considerar que o indivíduo poderá crer no que quiser.

De fato, como leciona o próprio autor, o indivíduo é livre para expressar, ainda

que publicamente, a sua crença; ademais não se lhe pode interditar a liberdade de não

crer em absolutamente nada e a liberdade de divulgar expressamente o seu

agnosticismo.

Em uma comunidade política formada por membros igualmente dignos de

consideração e respeito, cuja autonomia moral decorre da dignidade humana e se

concretiza no exercício da liberdade religiosa, na concepção de Ronald Dworkin, não

34SILVA NETO, Manoel Jorge e. Proteção constitucional à liberdade religiosa. São Paulo: Saraiva, 2013.

35Id., 2013, p. 116.

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pode pretender impor uma determinada concepção do que é sagrado para os cidadãos.

Em verdade, deve assegurar a todos o direito de decidir, por si mesmos, o que a

sacralidade da vida humana significa e exige.36

Em uma democracia constitucional, o Estado e seus cidadãos precisam ser

racionais e razoáveis, aceitando o fato de que existe um pluralismo de concepção do que

é bem/mal, no plano individual de cada um, reconhecendo no outro um ser livre e igual.

Deixar as decisões fundamentais de existência dos indivíduos à disposição das

concepções e preferências valorativas das maiorias não pode ser admitido numa

democracia constitucional que reconhece o princípio da dignidade humana.

O Estado de Direito sobrepõe-se aos diferentes poderes de fato e os princípios

constitucionais são a base da sua razão pública, substituindo-se a irracionalidade das

afirmações de preferências brutas por um sistema justo de cooperação entre cidadãos e

grupos sociais. As confissões religiosas são construídas com base em seus próprios

princípios fundacionais de natureza religiosa e moral, e a sua razão interna tem natureza

teológica.

A comunidade constitucional deve ser inclusiva, garantindo direitos subjetivos

de igual liberdade a todos os cidadãos e respeitando o princípio da separação das

confissões religiosas do Estado, suprimindo o discurso exclusivista teológico-

confessional e substituindo-o pelo discurso jurídico-constitucional, por ser inclusivo e

apoiado na dignidade da pessoa humana.37

2.2.1.1 Proteção de minorias religiosas históricas: liberdade religiosa e igualdade

A proteção que a Constituição dá ao direito à liberdade religiosa exige

prestações positivas por parte do Estado. O mesmo deve agir na intenção de garantir um

ambiente social equilibrado e harmônico, com a finalidade de se evitar a discriminação

e atender ao reconhecimento das diferenças entre as confissões religiosas minoritárias e

majoritárias, bem como assegurar um espaço público plural e aberto, pautado na

tolerância, respeito e na convivência pacífica entre as denominações religiosas.

Com a finalidade de assegurar o tratamento igualitário e digno devido a cada

cidadão, o Estado democrático de direito não deve abraçar nenhuma doutrina valorativa,

36DWORKIN, Ronald. O direito da liberdade: a leitura moral da Constituição norte-americana. São

Paulo: Martins Fontes. 2006.

37PORT, Marli Eulália. Liberdade Religiosa numa Comunidade Constitucional Inclusiva: dos direitos da

verdade aos direitos dos cidadãos. Coimbra:Editora Limitada,1996, p. 36-37.

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em verdade, deve ser capaz de garantir que as diversas confissões religiosas professadas

na sociedade sejam politicamente tratadas como livres e iguais, não concedendo a

nenhuma delas privilégios.

O Estado liberal é laico, porém, não é porque é oficialmente imparcial em

relação às questões religiosas que deve sustentar cegamente uma igualdade de

tratamento entre indivíduos, sem observar as implicações das identidades culturais

coletivas na sociedade.

O direito geral de igualdade (princípio isonômico) encontra-se diretamente

ancorado na dignidade da pessoa humana, não sendo por outro motivo que a Declaração

Universal da ONU consagrou que todos os seres humanos são iguais em dignidade e

direitos, assim, constitui pressuposto essencial para o respeito da dignidade da pessoa

humana a garantia de isonomia de todos os seres humanos, que, portanto, não podem ser

submetidos a tratamento discriminatório arbitrário. Razão pela qual não podem ser

tolerada escravidão, discriminação racial, perseguições por motivos de religião, gênero,

toda e qualquer ofensa ao princípio isonômico na sua dupla dimensão formal e material.

A liberdade religiosa pressupõe tratamento igualitário amplo que deve ser

protegido no âmbito das duas dimensões do princípio da isonomia. Acerca do princípio

da igualdade leciona Dirley Da Cunha Júnior:

O direito à igualdade é o direito que todos têm de ser tratados igualmente na

medida em que se igualem e desigualmente na medida em que se desigualem,

quer perante a ordem jurídica (igualdade formal), quer perante a

oportunidade de acesso aos bens da vida (igualdade material), pois todas as

pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. 38

A igualdade formal define que todos os indivíduos são iguais perante a lei no

âmbito de sua criação e aplicação. É uma igualdade abstrata e genérica, o que afasta o

tratamento privilegiado de uma confissão religiosa ou a identificação estadual com um

conceito material de ortodoxia religiosa. É o que preceitua a atual Constituição Federal

brasileira de 1988 em seu art. 5º, inciso VI: “é inviolável a liberdade de consciência e

de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na

forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”.

38 CUNHA JÚNIOR, Dirley da Curso de Direito Constitucional. Salvador: Editora Jus Podivm, 2008, p.

636.

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Essa é a igualdade formal sem distinção de credo religioso. Vivemos em um

Estado laico, não hostil às religiões e, por isso, nada mais isonômico do que aprovar

todas as formas de manifestar qualquer crença nos limites da lei.

Como a igualdade formal, em decorrência da vulnerabilidade socioeconômica de

determinados segmentos sociais, não se afigura suficiente para garantir, de fato, a

igualdade real entre os indivíduos, o Estado possui o dever de empreender políticas

públicas para assegurar a igualdade material dos seus cidadãos. Nesse sentido, o Estado

constitucional, democrático, liberal e laico deve promover o reconhecimento das

identidades próprias dos grupos minoritários. O direito à diferença se incorpora,

portanto, no direito à igualdade.

Assim sendo, a igualdade material corresponde ao ideal de justiça social e

distributiva, buscando uma igualdade orientada pelo critério socioeconômico e também

corresponde ao ideal de justiça enquanto reconhecimento de identidades, essa é a

igualdade orientada nos critérios de gênero, orientação sexual, idade, raça, etnia etc.

Por essa razão é que o princípio da igualdade tem relação íntima com a liberdade

de credo, numa concepção formal todos são livres para se autodeterminarem e

praticarem suas religiões e no plano material se reconhece as diferenças reais entre os

indivíduos e de suas associações a confissões religiosas distintas.

Nesse sentido é que a dimensão da igualdade (isonomia material) deve ser

compreendida como o reconhecimento da diferença. Entende-se que o princípio da

igualdade não se presta à realização de um projeto de uniformização coercitiva dos

cidadãos, nem pode permanecer indiferente às desigualdades das circunstâncias

concretas nas quais os sujeitos desenvolvem a sua personalidade. Em realidade, a

igualdade pretende defender e proteger, na maior medida possível, a diversidade

presente na sociedade, reconhecendo, simultaneamente, todos como igualmente livres e

dignos de respeito e consideração.39

Trazendo a discussão ao campo social brasileiro, temos que o Brasil é uma

nação extremamente diversificada. É um país que encerra tantos outros dentro de si, há

inúmeros e diferentes Brasis, traduzidos em grupos humanos distintos por aspectos

como idade (nascituro, crianças, adultos e idosos), sexo (homem, mulher, não binários),

origem (nacionais, naturalizados e imigrantes), raça (branco, negro, indígena), condição

econômica (miseráveis, pobres, classe média, ricos), saúde (pessoas com deficiência

39SANTOS, Milene Cristina. Intolerância religiosa: do proselitismo ao discurso de ódio. São Paulo:

D’placido, 2017, p. 44.

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física ou mental, pessoas vivendo com HIV), escolaridade, cultura, credo religioso,

convicção filosófica e tantos outros.

A dimensão do princípio da igualdade consistente no reconhecimento das

diferenças, e sua análise no íntimo dos conflitos existentes no campo religioso brasileiro

se faz extremamente relevante. O reconhecimento e o respeito a esse pluralismo passam

por um inexorável vínculo com a ideia dignidade da pessoa humana, o que reclama e

exige especiais posturas estatais de proteção daqueles que são diferentes em razão de

quaisquer fatores.

2.2.1.2 A atuação estatal e o dever de proteção

A atuação estatal deve mirar sempre o dever de respeito e proteção à dignidade

da pessoa humana que se exprime tanto na obrigação por parte do Estado de se abster de

ingerências na esfera individual que sejam contrárias à dignidade da pessoa, quanto no

dever de proteger a dignidade de todos os indivíduos contra agressões de terceiros.

Ao tratar sobre as políticas de ação afirmativa para inserção de negros nas

universidades americanas, Dworkin40 reflete sobre o direito fundamental à igualdade

defendendo uma discriminação compensatória de tratamento entre os indivíduos, já que,

na sua visão, os programas mais eficazes de ação estatal são aqueles que dão uma

vantagem competitiva aos grupos minoritários, promovendo a igualdade material.

No que tange ao direito de ser tratado com igualdade (equal treatment) dentro da

comunidade, Dworkin o classifica como “direito a igual distribuição de alguma

oportunidade, recurso ou encargo”41, seria esta a igualdade formal, segundo a qual

nenhum estado negará a qualquer pessoa a igual proteção perante a lei. Ao passo disso,

o autor justifica a discriminação do tratamento como questão política que beneficia a

comunidade e ultrapassa a perda global da desvantagem de tratamento, esse seria o

direito de ser tratado como igual (treatment as equal), “que é o direito, não receber a

mesma distribuição de algum encargo ou benefício, mas de ser tratado com o mesmo

respeito e consideração que qualquer outra pessoa”.42

40DWORKIN, Ronald. A discriminação compensatória. In: DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a

sério. São Paulo: Editora wmf Martins Fontes. 2011.

41Id., 2011, p. 349.

42DWORKIN, Ronald. A discriminação compensatória. In. Levando os direitos a sério. São Paulo.

Editora wmf Martins Fonte, 2011, p. 350.

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O sentido que o autor dá às políticas sociais que visam a tornar a sociedade mais

igualitária em termos gerais, violando, para tanto, o direito individual à igualdade em

razão de uma igualdade geral, é importantíssima para a colocação equânime dos

indivíduos em sociedade.

Por exemplo, no que se refere aos dias de guarda, o reconhecimento do direito

dos judeus e adventistas do sétimo dia a um tratamento como igual impede que as leis

estabeleçam igual tratamento a todos os estudantes, no tocante à escolha dos dias de

prova de concursos públicos, uma vez que o indiferentismo público sobre a relevância

religiosa dos dias de guarda não reconhece os integrantes dessas confissões religiosas

minoritárias como igualmente merecedores de respeito e consideração.

No que tange ao serviço militar obrigatório, o reconhecimento das testemunhas

de Jeová como iguais impede que o Estado brasileiro obrigue que todos os homens

seguidores desta religião se alistem nas forças armadas, diferentemente do que ocorre

com os demais. A posição ética dos seguidores da religião abomina que os mesmos

toquem em armas de fogo, uma vez que tal ato é considerando pecado, nesse sentido a

consciência de crença e autodeterminação do indivíduo deve ser entendida por parte do

Estado que deve reconhecer e proteger a confissão religiosa minoritária.

Em assim sendo, “direito ao tratamento como igual” precede e fundamenta o

“direito ao igual tratamento”. Nem sempre, portanto, o reconhecimento do “direito a um

tratamento como igual” conduzirá a um “direito de igual tratamento”.

Nesse sentido, para Dworkin uma política que coloca muitos indivíduos em

situação de desvantagem pode, mesmo assim, ser justificada, porque dá melhores

condições à comunidade como um todo. É o sentido utilitarista da ação discriminatória

que se justifica porque o nível médio ou coletivo do bem-estar comunitário aumentou

apesar do bem-estar de alguns indivíduos ter diminuído.

Robert Alexy, numa visão ligada a uma aplicação contemporânea dos princípios

da liberdade e igualdade, defende que as ações e políticas inclusivas trabalham

fundamentalmente com a ideia de restrição de liberdade de uma maioria frente ao

direito de inclusão (igualdade) de uma minoria face àquela maioria.

Alexy enxerga a igualdade numa perspectiva material relacionando-a com uma

desigualdade valorativa com relação a casos fáticos e determinados tratamentos, pauta-

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se na máxima: “se houver uma razão suficiente para o dever de um tratamento desigual,

então, o tratamento desigual é obrigatório.”43

O Estado deve pautar sua atuação com base na observância na igualdade de

tratamento dos indivíduos, na medida de suas desigualdades, sempre pugnando pelo

respeito e observância da dignidade da pessoa humana.

Como leciona Ingo Sarlet:

O princípio da dignidade da pessoa impõe limites à atuação estatal,

objetivando impedir que o poder público venha a violar a dignidade pessoal,

mas também implica (numa perspectiva que se poderia designar de

programática ou impositiva, mas nem por isso destituída de plena eficácia)

que o Estado deverá ter como meta permanente, proteção, promoção e

realização concreta de uma vida com dignidade para todos.44

Dessa dupla função estatal de proteção e defesa da dignidade humana implica o

dever de implementar medidas de precaução procedimentais e organizacionais, no

sentido de evitar lesão da dignidade e dos direitos fundamentais ou com o intuito de

reconhecer e fazer cessar, bem como minimizar os efeitos das violações e assegurar a

reparação do dano. Esse dever de proteção e respeito também se estende às relações

entre particulares, visto que é um dever geral de respeito.

2.2.1.3 O Estado laico e suas implicações na atuação estatal

Chama-se laico o Estado que não é confessional, ou seja, que não adotou uma

religião como religião oficial e, sim, o regime de separação entre Estado e instituições

religiosas, permitindo a seu povo qualquer religiosidade como também a irreligiosidade.

Outra característica do estado laico é legitimar materialmente as instituições

democráticas na vontade soberana do povo.

O princípio do Estado laico pode ser diretamente relacionado a dois direitos

fundamentais que gozam de máxima importância na escala dos valores constitucionais:

liberdade de religião e igualdade.

43ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros editores, 2008, p. 410.

44SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição

Federal de 1988. Porto Alegre: Editora Livraria do advogado, 2008, p. 114.

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O Brasil é um Estado não confessional, mas tampouco é ateu, como se deduz do

Preâmbulo da Constituição45, que invoca a proteção de Deus. De outro lado, não deixa

de ser formalmente e materialmente46 laico, uma vez que não impõe uma religião oficial

aos seus governados e tampouco a vida democrática necessita de forte apoio político das

religiões majoritárias, ou seja, não deve existir fundamento religioso embasando as

políticas públicas.

Contudo, o princípio constitucional da laicidade do Estado não lhe impõe uma

neutralidade absoluta em relação às confissões religiosas da sociedade civil, como

coloca Gilmar Mendes:

A inteligência do STF, a propósito das obrigações positivas que recaem sobre

o Estado por força dessa liberdade básica, tem como ponto de partida a exata

noção de que “o dever de neutralidade do Estado não se confunde com a ideia

de indiferença estatal”. Por isso mesmo, deve “o Estado, em alguns casos,

adotar comportamentos positivos, com a finalidade de afastar barreiras e

sobrecargas que possam impedir ou dificultar determinadas opções em

matéria de fé47

Ao contrário do que parece à primeira vista, o Estado laico não se opõe à

religião, não é sinônimo de Estado ateu, mas, ao contrário, possibilita a coexistência de

várias crenças ou comunidades religiosas em seu território. Por essa razão é que a

tomada de decisões políticas imparciais, consonante com as melhores interpretações dos

princípios fundamentais da comunidade política democrática se faz essencial, dentro do

contexto de um Estado laico que tem o dever de preservar a tolerância religiosa nos

espaços públicos e entre os cidadãos da comunidade política.

Admitindo-se, por exemplo, que os logradouros públicos não são, por natureza,

locais de culto, mas a manifestação religiosa pode ocorrer ali, protegida pelo direito de

reunião com as limitações respectivas, já que todos são igualmente livres e dignos de

consideração e respeito, a observância do princípio da igualdade de tratamento a todas

45A Constituição brasileira, em seu preâmbulo, assegura a pluralidade da sociedade nacional: “Nós,

representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um

Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a

segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça, como valores supremos de uma

sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na

ordem interna e internacional, com a solução pacífica da controvérsias, promulgamos, sob proteção de

Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil” (grifos nossos).

46A separação formal do Estado brasileiro da Igreja decorre da inteligência do art. 5º da Constituição

Federal de 1988, a separação material decorre do art. 1º, parágrafo único da carta magna.

47MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São

Paulo: Editora Saraiva, 2014, p. 292.

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as confissões religiosas, por sua vez, exige que o Estado assegure a participação de

todas as religiões no espaço público sem distinção.

Permitir a presença privilegiada de certos símbolos religiosos, ou de suas

autoridades eclesiásticas, em espaços, instituições ou eventos públicos, transmite a

mensagem de que nem todos os cidadãos são considerados membros de pleno direito da

comunidade política.

Evidentemente o Estado brasileiro não se configura como totalmente laico, a

própria Constituição Federal admite o ensino religioso em escolas públicas de ensino

fundamental48, admite igualmente que o casamento religioso produza efeitos civis, na

forma do dispositivo em lei49, admite feriados religiosos etc., o que não pode ser

admitido é o tratamento privilegiado de certas crenças religiosas por parte do Estado,

como é o caso polêmico dos crucifixos nos espaços institucionais dos tribunais

brasileiros50. Isso demonstra o quanto precisamos avançar no princípio da separação

entre as igrejas e o Estado a fim de edificar um Estado democrático de direito

verdadeiramente laico.

Ainda em relação ao caso dos crucifixos, dos ensinamentos de Daniel

Sarmento51, infere-se que a promiscuidade entre os poderes públicos e qualquer credo

religioso, ao sinalizar o endosso estatal de doutrinas de fé, pode representar uma

coerção, ainda que de caráter psicológico, sobre os que não professam aquela religião.

Ademais, para os jurisdicionados e para a sociedade em geral, esta associação

(crucifixo e Poder Judiciário) pode comprometer a percepção sobre a imparcialidade do

Judiciário, sobretudo quando estiverem em jogo questões em que a religião favorecida

tenha posição firme, como tem ocorrido invariavelmente no Brasil nos casos

envolvendo os direitos sexuais e reprodutivos.

O Estado democrático de direito deve assegurar uma esfera pública aberta e

plural, na qual todas as crenças religiosas e convicções morais sejam politicamente

tratadas como igualmente merecedoras de consideração e respeito.

48BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado

Federal: Centro Gráfico, 1988, art. 210, parágrafo 1º

49Id., art. 226, parágrafos 1º e 2º.

50Evidencia-se o tratamento privilegiado as crenças e instituições católicas em detrimento dos demais,

perpetuando o lugar excepcional do qual sempre desfrutou a Igreja Católica perante o Estado brasileiro

contrariando os princípios da dignidade humana e igualdade.

51SARMENTO, Daniel. O crucifixo nos tribunais e estado laico. Revista Eletrônica PRPE. maio 2007.

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O caso de exibição de crucifixos nos tribunais configura discriminação às

demais religiões adotadas na sociedade civil, atitude esta que as democracias

constitucionais não devem perpetuar. Compactuar com tradições históricas de

desigualdade e discriminação religiosas não é papel das democracias constitucionais

laicas, mas sim o dever constitucional de substituir as mensagens estatais

discriminatórias de exclusão por mensagens de inclusão e de respeito a todas as

confissões religiosas, especialmente às minoritárias.

De outro lado, a liberdade religiosa consiste na liberdade de professar a sua fé e

a presença das confissões religiosas nos espaços públicos, bem como a utilização de

símbolos religiosos pelo cidadão em tais espaços, decorre dos princípios da dignidade

humana e da igualdade de consideração e respeito dentro da pluralidade de concepções

religiosas.

Ensina Gilmar Mendes que:

O reconhecimento da liberdade religiosa decerto que contribui para prevenir

tensões sociais, na medida em que, por ela, o pluralismo se instala e se

neutralizam rancores e desavenças decorrentes do veto oficial a crenças

quaisquer.52

A pluralidade de crenças acarreta, naturalmente, conflitos entre os cidadãos e

compete ao Estado democrático de direito assegurar a tolerância entre essas confissões

religiosas, buscando a harmonização da convivência e do debate entre as religiões.

A tolerância e o respeito permitem que os cidadãos com visões diferentes e

pretensões políticas e morais incompatíveis se reconheçam como livres e iguais. No

campo religioso democrático, a discordância e o conflito são esperados, mas deve-se

encontrar na tolerância e no respeito a harmonização dos diferentes pensamentos.

Obviamente não se espera que cidadãos aceitem integralmente aquilo que de

acordo com sua consciência individual é considerado uma prática errônea, mas não é

por essa razão que o mesmo teria direito de influenciar e intervir nas práticas de outrem

que toma aquilo como correto. Isso só será compreendido quando os cidadãos

enxergarem o outro como livre e igual para professar e praticar o que acredita, assim

como ele.

52MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São

Paulo: Editora Saraiva, 2014, p. 293.

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Nesse sentido é que o Estado laico precisa promover a tolerância e o respeito

dentro do espaço público onde todos são considerados dignos e iguais para livremente

praticar o que acreditam de acordo com sua formação moral religiosa e seu projeto de

vida existencial, e ao mesmo tempo não pode permitir aos intolerantes a prática de

condutas persecutórias, discriminatórias ou mesmo violentas aos demais cidadãos, sob

pena de se comprometer a estabilidade do regime democrático.

A pessoa que tolera faz um juízo negativo da coisa tolerada: considera que é

uma ideia falsa ou uma ação incorreta, ou então que é algo de mau gosto ou

perigoso, etc. Mas não tira consequências práticas desse juízo negativo: não

age contra a coisa tolerada, não a reprime, não tenta impedir a sua expressão

pública, se é uma ideia, nem impedir a sua realização, se é uma ação. A

pessoa que tolera não tenta limitar a liberdade dos outros falarem e agirem

como querem e procura coexistir pacificamente com eles, apesar de achar que

não estão certos.53

A tolerância é, portanto, diferente de aprovação, não é o mesmo que concordar,

mas deve suportar a sua existência, já que reconhece o outro como livre e igual. Por

exemplo: um seguidor da religião A considera que a religião B é falsa, mas não tenta

impedir ninguém de professar essa religião; um ateu considera que todas as religiões são

falsas, mas não tenta impedir ninguém de ser religioso. Ao revés, a intolerância reside

na tentativa de impedir que as opiniões condenadas possam ser defendidas, ou que as

opiniões predominantes possam ser questionadas, em síntese, consiste no ilegítimo

impedimento da livre refutação das ideias.

Dentro de um Estado laico democrático de direito o poder público tem o papel

de fazer com que o cidadão, seja ele religioso ou não, respeite e tolere o outro em suas

diferenças às práticas religiosas estendendo ao seu semelhante a mesma consideração e

respeito que espera receber, promovendo a harmonização das relações em sociedade.

Nesse sentido é que se pretende trabalhar no próximo capítulo com uma

justificação imparcial das restrições aos direitos e garantias fundamentais, discutindo se

o discurso de ódio proselitista (isto é, de convencimento e conversão religiosa)

consistente em manifestações de intolerância e preconceito com as religiões minoritárias

constituem entrave ao Estado democrático de direito, discutindo se tais manifestações

estariam protegidas pela liberdade de expressão ou necessitam sofrer restrições legais,

por lesionar os direitos fundamentais dos demais cidadãos à igualdade e à dignidade.

53PIRES, Carlos. O que é tolerância? in: Dúvida metódica. abr. 2013 Disponível em: http://duvida-

metodica.blogspot.com.br/2013/04/o-que-e-tolerancia.html

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3 PROSELITISMO RELIGIOSO: INSTRUMENTO DA LIBERDADE DE

EXPRESSÃO E POSSÍVEL MEIO DE DISSEMINAÇÃO DO DISCURSO

DE ÓDIO

O problema dos limites à liberdade de expressão, nas suas diversas dimensões,

não perde relevância e atualidade. Ele se verifica quando os debates que envolvem o

tema acabam ensejando ou medidas oficiais de constitucionalidade altamente

questionável ou manifestações ostensivamente hostis e de caráter ameaçador e

silenciador da livre expressão do pensamento, da arte e mesmo da liberdade de crença.

Limitações abusivas da liberdade de expressão implicam não apenas uma grave

ameaça para os direitos fundamentais do ponto de vista individual e subjetivo, mas

também para a ordem democrática e o pluralismo.

Em geral não se nega que uma ampla liberdade de expressão é tanto pressuposto

quanto garantia da democracia e dos direitos fundamentais, bem como da própria

dignidade da pessoa humana. O problema em concreto é, portanto, identificar quais são

as situações em que o manejo da liberdade de expressão por alguns pode configurar

ameaça ou mesmo violação direta da liberdade de expressão de outros.

3.1 Conflitos entre liberdade de expressão e liberdade religiosa

O exercício das liberdades civis protegidas pelo Estado democrático de direito

não pode significar o direito de viver inteiramente de acordo com os próprios impulsos

e desejos, violando sistematicamente a segurança e as liberdades de outrem. Razão pela

qual se deve pensar na possibilidade de estabelecer limites aos direitos fundamentais,

tomando como premissa o fato de que não existe direito que seja absoluto, no sentido de

total imunidade a qualquer espécie de restrição.54

Focando no estudo do direito à liberdade de expressão, nota-se que o mesmo

sempre esteve acompanhado de limites censitários das mais variadas espécies e

intensidades. Historicamente, no Brasil, essa liberdade já sofreu restrições irrazoáveis e

desproporcionais, como na época da ditadura militar, quando o governo impunha limites

54SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na constituição

federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 29-60.

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às expressões críticas, de natureza política ou artística dos cidadãos.55 Atualmente,

mesmo fora do contexto totalitário e dentro de um cenário democrático, essa liberdade

também sofre algumas limitações consideradas necessárias à boa convivência em

sociedade, como ocorre, por exemplo, nos crimes de calúnia, injúria e difamação, que

tem como bem jurídico tutelado a honra.56

Durante a história da humanidade, a liberdade de expressão suportou restrições

impostas por religiões majoritárias e/ou oficiais que pressionavam os poderes públicos a

criminalizar e processar o que consideravam ser heresias57 e blasfêmias58, como no caso

de Estados modernos europeus que adotavam como credo oficial o protestantismo e

cristianismo.59 A tipificação desses crimes foi arduamente contestada com o advento

dos Estados de Direito.

Com relação a restrições legitimamente impostas a liberdade de expressão como

forma de garantir uma convivência pacífica entre os cidadãos em sociedade, é que o

Código Penal brasileiro destina um capítulo de suas disposições ao que denomina “Dos

crimes contra o sentimento religioso” e define como conduta típica em seu art. 208:

“Escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa;

impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente

ato ou objeto de culto religioso”, querendo, assim, incluir no âmbito de proteção do

sistema criminal os sentimentos religiosos dos fiéis.

Caso emblemático que tocou muitos brasileiros, mais conhecido como “chute da

santa”, foi o que ocorreu em 1995, no dia da Padroeira do Brasil, quando o evangélico

Sérgio Von Helde, então bispo da Igreja Universal do Reino de Deus, chutou a imagem

de Nossa Senhora Aparecida ao vivo, no programa televisivo “Despertar da Fé” exibido

55O regime militar usou de critérios políticos para censurar o jornalismo, ao passo que, na censura das

artes e espetáculos, serviu-se principalmente de critérios morais para fazê-lo. São exemplos históricos o

Ato institucional nº 5 (AI-5) e as Leis da censura prévia.

56 Os crimes de calúnia, difamação e injúria estão positivados, respectivamente, nos artigos 138, 139 e

140 do Código Penal brasileiro.

57Heresia: quando alguém tem um pensamento diferente de um sistema ou de uma religião, sendo assim

quem pratica heresia, é considerado um herege.

58Blasfêmia: uma ofensa a uma divindade. É um insulto a uma religião ou a tudo que é considerado

sagrado. É a difamação do nome de um Deus.

59A Reforma Protestante que se insurgiu contra a Igreja Católica na Alemanha em 1529, por exemplo,

teve os ensinamentos de Martin Lutero taxados como heréticos e estes foram decisivamente

condenados.

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pela rede Record de televisão, desencadeando verdadeira comoção nacional,

principalmente por ser o Brasil um país majoritariamente católico.60

O fato é que o “chute da santa” acarretou a persecução criminal contra o bispo

neopentecostal com fundamento no crime tipificado no art. 208 do Código Penal e ainda

com base no art. 2061 da Lei nº 7.716 de 1989, que identifica o discurso de ódio

religioso contra crimes resultantes de preconceito.62

Alguns juristas afirmam que tal tipo penal criminaliza, em verdade, a blasfêmia

religiosa. Contrariando esse pensamento, imperioso se faz analisar o referido tipo penal

em consonância com o princípio constitucional de liberdade religiosa, que está

intimamente ligado com os princípios democráticos da dignidade da pessoa humana e

do pluralismo político.

Como ensina Vitor Gonçalves63, o artigo 208 preceitua três ilícitos penais

distintos em um único dispositivo, quais sejam: (i) o ultraje público por motivo

religioso, (ii) o impedimento ou perturbação de cerimônia ou culto e, por último, (iii) o

vilipêndio público de ato ou objeto de culto religioso, fato típico ao qual se enquadrou o

bispo no caso do “chute da santa”.

Vilipendiar é desrespeitar, menosprezar, podendo o ato ser praticado por

palavras, como críticas ofensivas a certos procedimentos religiosos, por escrito ou por

gestos (destruição de imagens de orixás do candomblé ou de santos católicos, chutar a

imagem de um santo, cuspir em uma cruz com a imagem de cristo, impedir que

indivíduo adentre espaço público trajado e portando seus adereços religiosos, etc.),

sendo imprescindível, para a configuração do crime, que a conduta ocorra em público e

recaia sobre ato religioso ou objeto de culto.

60O chute da santa. Edição do dia 12.10.1995. Jornal Nacional. Rede Globo. Disponível em:

https://www.youtube.com/watch?v=VpPwWEsk0OY Acesso em: 4 nov. 2018.

61 Lei 7.716/89:

Art. 1º Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito

de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97).

Art. 20º Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou

procedência nacional. (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97) Pena: reclusão de um a três anos e

multa.

62Sérgio Von Helde Luiz foi condenado em 1997 pelo juiz da 12ª Vara Criminal da comarca de São Paulo

a dois anos e dois meses de prisão por crime de discriminação religiosa e vilipêndio a imagem. O

ineditismo da condenação e a consequente ausência de jurisprudência marcou o caso. O processo pode

ser consultado no site do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo sob o nº.: 0082928-

34.1995.8.26.0050.

63GONÇALVES, Vitor Eduardo Rios. Direito Penal Esquematizado. Parte Especial. São Paulo: Editora

Saraiva, 2011, p. 501-503.

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38

O sujeito ativo do crime pode ser qualquer pessoa, inclusive um eclesiástico de

outra religião, desde que o tenha feito com o propósito de ofender. O sujeito passivo,

por sua vez, é composto pela coletividade religiosa atingida.

Como dispõe Mirabete64, a finalidade do tipo penal:

Protege-se [...] o sentimento religioso, interesse ético-social em si mesmo,

bem como a liberdade de culto. Embora sejam admissíveis os debates,

críticas ou polêmicas a respeito das religiões em seus aspectos teológicos,

científicos, jurídicos, sociais ou filosóficos, não se permitem os extremos de

zombarias, ultrajes ou vilipêndios aos crentes ou coisas religiosas (2005, p.

404).

Nesse sentido, em face do que dispõe a Constituição Federal de 1988, não se

pode dizer que o art. 208 do Código Penal faz uma imposição autoritária de valores

morais impostos por religiões majoritárias como nos casos dos Estados modernos que

adotavam religiões oficiais. Em realidade, a finalidade do tipo penal é tutelar o

mandamento constitucional que dispõe ser “inviolável a liberdade de consciência e de

crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da

lei, a proteção aos locais de culto e as suas liturgias”.65

Em um Estado democrático de direito, laico e protetor da dignidade humana e do

pluralismo, como é o caso brasileiro, o único bem jurídico que pode ser objeto da

proteção penal constitui o direito fundamental à liberdade religiosa e de culto. A

criminalização de ofensas contra religiões e seus símbolos sagrados, com base na

blasfêmia e na heresia, são resquícios ilegítimos de um tempo histórico em que o Estado

privilegiava a “verdade” de religiões majoritárias em detrimento do direito à livre

determinação dos indivíduos, posicionamento incompatível com a conjuntura política

atual.66

Levando a discussão ao plano internacional, fato recente foi o massacre do jornal

satírico francês, Charlie Hebdo, o qual em 07 de janeiro de 2015 foi invadido por dois

64

MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de Direito Penal. v. 3, 23 ed. São Paulo: Editora Atlas, 2005, p.

404.

65BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado

Federal: Centro Gráfico, 1988. art. 5º, inciso VI. 66

Consulte-se, a propósito, Edilsom Pereira de Faria. Colisão de Direitos: a Honra, a Intimidade, a Vida

Privada e a Imagem versus a Liberdade de Expressão e Informação. 2a ed., Porto Alegre: Sergio

Antônio Fabris Editor, 2000; Jayme Weingarter Neto. Honra, Privacidade e Liberdade de Imprensa.

Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002; e Luís Roberto Barroso. “Liberdade de Expressão versus

Direitos da Personalidade: Colisão de Direitos Fundamentais e Critérios de Ponderação”. In: Temas de

Direito Constitucional. Tomo III. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 79-130.

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irmãos islâmicos que, revoltados com uma charge que trazia a imagem do profeta

Maomé com os seguintes dizeres: "100 chicotadas se você não morrer de rir", mataram

12 pessoas, incluindo parte da equipe do jornal, deixando mais 11 feridas.67

Tal sátira fora recebida como um insulto pelos mulçumanos, que se sentiram

diretamente atacados quanto aos seus sentimentos religiosos. Centenas de pessoas e

personalidades manifestaram seu repúdio aos ataques orquestrados contra o jornal,

fazendo com que e a frase "Je suis Charlie" (francês para “Eu sou Charlie") se

transformasse em um sinal comum, em todo o mundo, solidarizando-se contra os

ataques terroristas e a favor da liberdade de expressão.

Esse não foi um acontecimento isolado. Inúmeros são os casos dos quais

acarretaram ondas de protestos e atentados terroristas na Europa e no mundo islâmico,

de muçulmanos que se sentiram profundamente ofendidos em seus sentimentos

religiosos, bem como, não menos veementes, manifestações e protestos de jornalistas

por seu direito constitucional à liberdade de expressão e de imprensa.

No caso Charlie Hebdo, a maior parte dos cidadãos europeus defendeu

energicamente a liberdade de expressão em matéria religiosa, completamente alheios a

qualquer direito de proteção a sentimentos religiosos, enquanto o atentado foi saudado

nos estados islâmicos.68

Na religião muçulmana, há um princípio que diz que o Profeta Maomé não pode

ser retratado de forma alguma. Esse é um preceito central da crença Islâmica e

desrespeitar isso é o mesmo que desrespeitar todos os muçulmanos. Fazendo um

paralelo, para eles, isso seria tão grave quanto é para os católicos o fato de um pastor

evangélico chutar a imagem de Nossa Senhora Aparecida em rede nacional.

Como bem apontado pelo teólogo Leonardo Boff69, outro problema, ainda mais

grave é a maneira como os meios de comunicação franceses sempre retratam de forma

ofensiva os muçulmanos. Os adeptos do Islã constantemente estão caracterizados por

suas roupas típicas, portando armas ou fazendo alusões à violência, acompanhados por

trocadilhos infames como “matar” e “explodir”.

67Je suis Charlie. Direção: Daniel Leconte e Emmanuel Leconte. Produtor: Daniel Leconte. Paris. Film Em

Stock. 2016. Netflix. (1h30m).

68DEDA, Rhodrigo. O Charlie Hebdo e a liberdade de expressão nos tempos de redes sociais. Gazeta do

Povo, Curitiba, 19 set. 2015.

69Os comentários do professor Leonardo Boff sobre o incidente ocorrido no jornal Charlie Hebdo em

janeiro de 2015 podem ser encontrados em seu sítio eletrônico:

https://leonardoboff.wordpress.com/2015/01/10/eu-nao-sou-charlie-je-ne-suis-pas-charlie/. Acesso em jul.

de 2018.

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Nesse episódio em específico, alguns argumentaram que o alvo das críticas do

jornal francês foi somente “os indivíduos radicais”, mas a partir do momento que

apenas esses sujeitos são mostrados acaba-se por criar uma generalização. Nem sempre

existe um signo claro que indique que aquele muçulmano é um desviante, já que, na

maioria dos casos, é só o desviante que aparece. É como se fizéssemos no Brasil uma

charge de um negro assaltante e disséssemos que ela não critica/estereotipa os negros,

somente aqueles negros que assaltam.70

Atualmente na França vivem milhões de muçulmanos, em sua maioria

imigrantes de ex-colônias francesas, grande parte desses não está inserida igualmente na

sociedade, é pobre, ligada a cidadãos de “segunda classe”, vítima de preconceito e

exclusões. Um tipo de crítica, ainda que satírica, como a que foi feita pelo jornal Charlie

Hebdo, dentro de uma sociedade de muçulmanos já marginalizados, ajuda a transmitir e

alimentar o preconceito, no caso, a Islamofobia, que se agrava em um país como a

França, historicamente caracterizado como xenófobo.

A história recente comprova que a resposta do estado islâmico no caso Charlie

Hebdo não fora proporcional ao agravo sofrido, notadamente com relação à brutalidade

do ataque, característico de um fundamentalismo cego. Contudo, mostra-se uma postura

diferente quando as religiões majoritariamente professadas na Europa, o catolicismo ou

o protestantismo, são ofendidas da mesma forma que fora a islâmica no caso do jornal

francês, nestes casos os tribunais europeus costumam restringir a liberdade de expressão

dos agressores demonstrando uma seletividade na proteção da liberdade religiosa dos

cidadãos, discriminando e privilegiando os sentimentos religiosos das crenças

perfilhadas pelas maiorias, como houve com a proibição de veiculação de diversos

filmes, livros e matérias jornalísticas.71

À época o próprio Charlie Hebdo foi processado sob a acusação de “promover o

ódio contra muçulmanos”, mas a justiça francesa entendeu que não foi esse o objetivo

da charge, absolvendo o jornal e reconhecendo o direito à liberdade de expressão.

70 Id.

71São exemplos os casos: Otto Preminger Institute vs. Áustria (1995); Wingrove vs. United Kingdom

(1997), I.A. vs. Turkey (2005); todos julgados pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH). Da

decisão tomada nesses casos depreende-se o TEDH ofereceu proteção penal seletiva da liberdade

religiosa dos cidadãos, discriminando e privilegiando os sentimentos religiosos das crenças perfilhadas

pelas maiorias (católicos na Áustria, cristãos no Reino Unido e muçulmanos na Turquia).

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É contínua a discussão, no âmbito dos direitos fundamentais, que reflete se a

mera crítica não é o mesmo que intolerância72.

O Estado democrático brasileiro pluralista e multicultural preza pela

disseminação de discursos não universalizantes73. Nesse sentido, o direito à crítica é

assegurado e isso pode se dar também quando o assunto é religião e dogmas de uma

religião, desde que seja feita sem desrespeito ou ódio, será sempre protegida pelas

liberdades de opinião e expressão.

De outro lado, é difícil distinguir claramente críticas ilegítimas que atingem

diferentes crenças religiosas e que por isso seriam passíveis de incriminação, das

críticas legítimas e “naturalmente” esperadas dentro de uma sociedade democrática,

aberta e pluralista. Qual seria a distinção entre discursos veementemente satíricos,

corrosivos e caricaturais dos discursos extremos e gratuitos de insultos religiosos?

Como dispõe Sarmento:

A ligação entre a tolerância e a liberdade de expressão é evidente, já que dita

liberdade impõe à sociedade o respeito ao direito de cada um de pensar e de

expor opiniões que muitas vezes desagradam profundamente a maioria das

pessoas. Portanto, a discussão sobre o hate speech é, em boa parte, um debate

sobre os limites da tolerância (2006, p. 39).

A liberdade de expressão protege discursos chocantes, ofensivos e provocativos,

afinal, numa sociedade democrática, onde se fomenta uma esfera pública aberta e

pluralista, a liberdade deve ser a regra e a restrição, a exceção, mas como nenhum

direito ou garantia constitucional é absoluto, as restrições a essa liberdade se justificam

na salvaguarda e proteção de outros interesses constitucionalmente protegidos.

É como complementa Sarmento:

Sem embargo, a liberdade de expressão não foi concebida na ordem

constitucional de 1988 como um direito absoluto. O próprio texto

constitucional consagrou direitos fundamentais que lhe impõem restrições e

limites, como a indenização por dano moral ou à imagem (art. 5º, inciso V) e

a inviolabilidade da intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas

(art. 5º, X). E há, ademais, outros bens e valores constitucionais com que a

liberdade de expressão pode colidir em casos concretos, como o devido

processo legal, a proteção à saúde e a própria igualdade. Nada no sistema

72 Questão que vêm se ampliando quando se discute, por exemplo, o discurso de ódio proferido nas redes

sociais ou discursos proferidos em performativos de linguagem dita humorística. Caracterizado por

Adilson José Moreira como racismo recreativo no contexto brasileiro.

73É o que se depreende do artigo 5º da Carta Constitucional.

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constitucional brasileiro autoriza a conclusão de que a liberdade de expressão

deva sempre prevalecer nestes conflitos (2006, p. 46).

O Código Penal brasileiro, em seu art. 140, caput e §3º, criminaliza as injúrias

discriminatórias, incluindo aquela praticada por discriminação religiosa. Como ensina

Rogério Greco, de todas as infrações penais tipificadas no Código Penal que visam

proteger a honra, a injúria, na sua modalidade fundamental, é a considerada menos

grave. Entretanto, por mais paradoxal que possa parecer, a injúria se transforma na mais

grave infração penal contra a honra quando consiste na utilização de elementos

referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou com

deficiência, sendo denominada de injúria preconceituosa. 74

Como ensina Aníbal Bruno, ao contrário da calúnia e da difamação, ao tipificar

o crime de injúria o legislador objetivou proteger a chamada honra subjetiva do

indivíduo, ou seja, o conceito amplo que o ser humano tem de si mesmo. O ato injurioso

fere o sentimento de dignidade da vítima, o sentimento que ele tem do seu próprio valor

social e moral (que integram sua personalidade), bem como a sua respeitabilidade,

qualidades de ordem física e social que conduzem o indivíduo à estima de si mesmo e o

impõe ao respeito dos que com ele convivem.75

A injúria limita a liberdade de expressão, com base nas dimensões espirituais,

morais e físicas da dignidade da pessoa humana, base dos direitos da personalidade de

terceiros. Como ensina Manoel Jorge Silva Neto, a Constituição Federal trata todos os

cidadãos como livres e iguais, dignos da mesma consideração e respeito, e isso se

irradia ao âmbito da opção religiosa.76

A violação da honra das confissões religiosas, dos seus deuses, crenças e

símbolos sagrados atinge diretamente as pessoas que professam àquela religião, ferindo

o titular do direito fundamental à liberdade religiosa e sua dignidade em sua dimensão

de estima, honrabilidade e valores próprios. A injúria constitui infração criminal

concernente à lesão da dignidade humana. Para Manoel Jorge Silva Neto, a opção

religiosa está tão incorporada ao substrato de ser humano - até para não se optar por

74GRECO, Rogério. Código Penal Comentado. Niterói: Editora Ímpetos, 2009. p. 305.

75Rogério. Crimes Contra a Pessoa. Niterói: Editora Ímpetos, 2009, p. 300.

76SILVA NETO, Manoel Jorge e. Proteção constitucional à liberdade religiosa. São Paulo: Editora

Saraiva, 2013, p. 109-115.

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religião nenhuma - que o seu desrespeito provoca idêntico desacato à dignidade da

pessoa.77

Em se tratando de conflito entre as liberdades de expressão e de crença, núcleo

deste trabalho, tendo a dignidade e outros direitos como limite à restrição dos direitos

fundamentais, é importante sinalizar que nenhuma restrição de direito fundamental

poderá ser desproporcional e/ou afetar o núcleo essencial do direito objeto da

restrição.78

Pelo fato de serem os direitos fundamentais, ao menos em regra, exigências e

concretizações em maior ou menor grau da dignidade da pessoa humana, a ofensa a

determinado direito fundamental simultaneamente poderá constituir ofensa ao seu

conteúdo em dignidade. A dignidade humana assume simultaneamente a função de

elemento e medida dos direitos fundamentais, de tal sorte que, em regra, uma violação

de um direito fundamental estará vinculada com uma ofensa à dignidade da pessoa.79

3.2 Proselitismo religioso e discurso de ódio

A livre manifestação de pensamento e de crença encontra-se protegida pela

liberdade de expressão, porém a exteriorização de alguns ideais pode se revestir em

discurso de ódio (hate speech), suscitando grandes controvérsias quanto à sua

constitucionalidade dentro do contexto de uma sociedade democrática.

Cada religião tem suas singularidades e é direito e dever de todos usufruírem da

sua liberdade religiosa respeitando à liberdade de culto e crença alheia. Entretanto, o

livre exercício da crença não pode, de maneira alguma, desrespeitar a liberdade de culto

de terceiro, de modo que não se permite que a liberdade de expressão tenha o condão de

admitir discursos e expressões carregados de ódio que, quando manifestados, podem

incitar a violência, a discriminação, o preconceito e o racismo.

Esse tipo de manifestação de pensamento, não apenas assevera uma ideia, como

também uma intolerância que pode se elevar a um repúdio do próprio ser, em razão da

posição na qual se fixa sua crença.

77Ibid., 2013, p. 116.

78A análise do conflito entre liberdade de expressão e liberdade religiosa será feita no âmbito do caso

concreto a que se pretende analisar posteriormente.

79SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na constituição

federal de 1988. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2008, p. 107.

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Como ensina João Cavalcante Filho:

O discurso do ódio (hate speech) pode ser definido, de forma ampla, como a

expressão cujo conteúdo ofende a honra ou a imagem de grupos sociais,

especialmente minorias, ou prega a discriminação contra os integrantes

desses grupos. (2017, p. 36)

O elemento central do discurso de ódio é a expressão do pensamento que

desqualifica, humilha e inferioriza indivíduos e grupos sociais caracterizados e

estigmatizados com objetivo de propagar a discriminação desrespeitosa para com todo

aquele que possa ser considerado "diferente", seja em razão de sua etnia, religião,

orientação sexual, condição econômica, gênero, cor, deficiência mental ou física, sendo

tal discurso direcionado, em regra, a grupos socialmente minoritários, historicamente

estigmatizados e marginalizados.

Samantha Meyer-Pflug80 entendeu, nesse sentido, que o discurso de ódio

consiste na manifestação de ideias que incitam à discriminação racial, social ou

religiosa em relação a determinados grupos, na maioria das vezes, as minorias,

desqualificando esses grupos como detentor de direitos.

Destarte, o discurso de ódio configura-se como manifestação, por todo e

qualquer meio de comunicação, seja verbal ou não, considerada como preconceituosa e

agressiva que quando exteriorizado pode provocar ações violentas ou expor símbolos de

ódio, como a suástica dos nazistas ou as cruzes pegando fogo do Ku Klux Klan,

passando, assim, uma mensagem intolerante.

Os direitos à livre manifestação da liberdade religiosa e à livre mudança de

religião ou crença afiguram-se centrais na análise do proselitismo religioso, uma vez

que, enquanto o direito à livre manifestação da liberdade religiosa abrange o direito de

divulgar as crenças religiosas com finalidades proselitistas, o direito à livre mudança de

religião ou crença, por sua vez, pressupõe que para o seu efetivo exercício a formação

de um mercado livre e aberto de ideias religiosas, cuja edificação se torna mais fácil e

eficaz com o livre exercício do proselitismo religioso.

A confluência de pensamentos religiosos é matéria viva na formação da

consciência da sociedade brasileira devendo tal liberdade de expressão ser assegurada

80MEYER-PFLUG. Samantha Ribeiro. Liberdade de expressão e discurso de ódio. São Paulo: Editora

Revista dos Tribunais, 2009, p. 97.

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pelo Estado, sem que se permita, entretanto, que o seu exercício atinja a liberdade e

manifestação de crença de terceiro.

Riva Freitas e Mateus Castro81 afirmam que, dentro de uma sociedade livre e

plural, as múltiplas ideias e comportamentos devem conviver, não sendo permitida ao

Estado qualquer interferência na propagação, disseminação ou formação de um

pensamento uniforme. A autonomia privada, seja para a formação de uma ideia ou para

a formação da consciência do indivíduo, deve ser intocável pelo Estado direta ou

indiretamente, isso proporciona a formação de indivíduos responsáveis e certos de si,

contribuindo para o amadurecimento intelectual da sociedade, possibilitando avanços

democráticos na convivência em comunidade.

De forma genérica, as diferentes religiões professadas na sociedade tendem a

acreditar que seus preceitos e crenças são verdades absolutas e que todos aqueles que

não concordam com seus mandamentos estão errados, mas não é aí que reside o

problema, haja vista todos serem livres e iguais para crer no que quiserem.

O conflito começa a despontar a partir do momento em que esse convencimento

religioso se torna cego a ponto de não reconhecer o outro como igualmente livre e

detentor de sua própria verdade. A crença em uma verdade absoluta e a convicção

expansionista de sua fé é que levam membros de determinada religião a tentar

convencer membros de outra ou de nenhuma religião a se converter à sua crença,

testando a segurança do ser humano em sua própria fé ou na ausência dela. Isso é o que

denominamos de proselitismo religioso, que não se caracteriza somente em tentar

converter o próximo, mas também na crença de que a sua religião é boa, eficaz e o

caminho correto rumo ao criador independentemente do que pode professar as demais

religiões.

Como alerta Ricardo Mariano82, o proselitismo é, assim, forma de ratificar a

própria religião, crença e culto ofertado ao fiel, é o modo encontrado pelas religiões

para atrair novos fiéis à sua crença, utilizando, para tanto, de uma gama de estratégias e

formas de apresentação dessa crença que funcionam como uma propaganda, com o

intuito de convencer o indivíduo de que sua religião não é adequada e que se sentirá

81FREITAS, Riva Sobrado de; CASTRO, Matheus Felipe de. Liberdade de Expressão e Discurso do

Ódio: um exame sobre as possíveis limitações à liberdade de expressão. Revista Sequência.

Florianópolis, UFSC, v. 34, n. 66, 2013.

82MARIANO, Ricardo. Religião e política: a instrumentalização recíproca. Revista Online Instituto

Humanas Unisinos. jun. 2016. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/159-

noticias/entrevistas/515175-religiao-e-politica-a-instrumentalizacao-reciproca-entrevista-especial-com-

ricardo-mariano. Acesso em: 4 ago. 2018.

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muito melhor física, moral, psicológica e espiritualmente se migrar e adotar a nova

palavra.

Esse sempre foi um recurso catalisador dos ideários das diferentes seitas

professadas na sociedade, constituindo exercício simultâneo da liberdade religiosa e da

liberdade de expressão.

Assim sendo, são exemplos de manifestações que comumente estão abarcadas

por essa liberdade religiosa: a realização de orações; a escrita de trabalhos religiosos; a

leitura de livros sagrados; o uso de vestimentas religiosas; o ensino religioso dado aos

filhos; a realização de rituais religiosos.

Evidentemente que a questão controvertida sobre essas demonstrações de fé se

encontra na maneira como essa liberdade de expressão religiosa vem sendo utilizada no

convencimento dos fiéis, tendo em vista que algumas religiões vêm-se utilizando de

atrativos que não estão protegidos pela liberdade de expressão, empregando, por muitas

vezes, na busca por novos adeptos, palavras que tendem a insultar, intimidar ou assediar

demais religiões professadas na sociedade.83

Perante tal fato, muitos grupos religiosos sentem-se seriamente feridos em seus

sentimentos de fé diante de atividades proselitistas, considerando-as extremamente

ofensivas às suas crenças sagradas, o que vem a acentuar os conflitos inter-religiosos.

Trata-se, assim, de uma guerra teológica, uma vez que comunidades religiosas rivais se

empenham em demonizar e difamar as demais religiões, afirmando-se em paradigmas

cada vez mais dogmáticos e fundamentalistas.84

O proselitismo religioso é fruto da premissa de que a religião que se professa

carrega verdade absoluta, única, exclusiva e considera aquele que não segue os seus

ditames como “transgressor” por isso entende que tem o dever de ajudá-lo

apresentando-o o caminho da “luz”, do seu saber absoluto, de sua verdade, o que só se

faz possível trazendo o sujeito à sua circunscrição de fé.

De acordo com Sara Guerreiro:

O proselitismo abrange um vasto leque de ações, decorrentes do direito mais

vasto de manifestar as suas convicções religiosas, tentando convencer os

outros da verdade e benefícios das respectivas convicções (GUERREIRO,

2005, p.3).

83 MARIANO, op. cit. p. 13.

84MARIANO, Ricardo. Expansão pentecostal no Brasil: o caso da Igreja Universal. São Paulo: Estudos

Avançados, 2004, p. 124-125.

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Contudo, essa prática que se apresenta de diferentes maneiras, por meio da

oralidade, de forma escrita, postada na internet etc., está presente na maioria das

religiões e apresenta dimensões de relevância diferenciada em cada uma delas. Algumas

religiões incentivam o proselitismo como cumprimento de um dever religioso que deve

ser verdadeiramente executado, outras, que não tem essa ação como característica,

condenam essa atitude taxando-a de inadequada e desrespeitadora da liberdade religiosa

dos demais indivíduos.

Dentro desse contexto, polêmica maior não poderia ter gerado os denominados

“Gladiadores do altar”. Um grupo de jovens de evangelização, seguidores da Igreja

Universal do Reino de Deus (IURD), que marcham fardados com vestimenta alusiva ao

militarismo, batem continência para seu líder espiritual, gritam palavras de ordem e se

dizem prontos para a batalha.

Após o Ministério Público Federal ter recebido uma representação de religiosos

do Candomblé e da Umbanda, com um pedido de investigação sobre a formação do

grupo85, a IURD negou estar formando um exército fundamentalista, apesar do gestual

feito pelos jovens em vídeos divulgados na internet, que lembram saudações nazistas, a

direção da igreja também desmentiu qualquer alusão a práticas armadas e extremistas,

afirmando que o grupo tem somente a intenção de atrair novos pastores à igreja.

A criação dos “Gladiadores do altar” chama atenção para a disputa acirrada no

“mercado” das religiões por busca de fiéis, forma de seduzir indivíduos para a igreja. A

própria Universal afirmou que a criação desse grupo visa formar jovens disciplinados e

altamente preparados para enfrentar os desafios diários de ganhar almas e fazer

discípulos.

Porém, existe o temor fundamentado, principalmente das religiões afro-

brasileiras, de que a criação desse grupo possa resultar em um aumento de casos de

intolerância religiosa, principalmente por conta da aparência de milícia paramilitar que

o vídeo difundido na internet transmite e do histórico contexto de perseguição de

religiões minoritárias no país.86

85A matéria pode ser consultada no canal do youtube do Jornal Folha de São Paulo, disponível em:

https://www.youtube.com/watch?v=rQsbACaIkQo. Acesso em: 4 nov. 2018.

86A chamada “consagração” dos gladiadores do altar realizada no interior do Templo de Salomão, sede

mundial da igreja IURD, está disponível para consulta em:

https://www.youtube.com/watch?v=aX7Uv8JB0ew. Acesso em: 4 nov. 2018.

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A utilização de vestimentas e práticas que desrespeitam às forças armadas

somada a crença pentecostal de que existe uma guerra invisível na qual cabe a igreja

salvar as pessoas que consideram um mal, contribui para reforçar a ideia de um

proselitismo religioso manifestamente percussor de intolerância e discriminação.

Manifestadamente, a ideologia cristã no Brasil não compactua com algumas

liberdades individuais, com a diversidade sexual e com algumas manifestações culturais

laicas. Dentro do contexto internacional, em que se convive com conflitos religiosos

protagonizados pelo Estado Islâmico e pelo Boko Haram87, imperiosa a investigação do

Estado brasileiro sobre essa livre expressão religiosa, justamente por conter

características, ao menos visuais, de militarismo, a fim de impedir a criação de uma

possível milícia.

O proselitismo é utilizado como uma propaganda em larga escala para convencer

as pessoas de sua fé, porém quando o exercício da liberdade de expressão torna-se

conflituoso, desafiando a convivência pacífica entre as religiões, vira um desafio para as

democracias constitucionais.

Admite-se, aqui, a legitimidade do direito de expor as próprias crenças

religiosas, porém os discursos religiosos não podem impactar negativamente na

dignidade e igualdade dos indivíduos reprovados moralmente em seus ensinamentos, de

modo a silenciar suas vozes no espaço público e dificultar sua inclusão nas sociedades

democráticas, é como leciona Ana Garrida Domínguez88.

No atual contexto social, o proselitismo, que costumava ser exercido na

circunferência dos templos de fé, ganhou novas armas e atingiu outro patamar com o

advento da internet e com a popularização dos meios de comunicação, incluindo aí os

programas de rádio e TV, os jornais especializados e todos os demais meios de

comunicação em massa que ostentam como objetivo único disseminar a doutrina e

conquistar novas pessoas à crença religiosa. Ademais disso, temos de incluir as

87O Boko Haram é um grupo terrorista que surgiu na Nigéria em 2002, que, muitas vezes, é denominado

como “grupo radical islâmico”, pois as suas ações correspondem ao fundamentalismo religioso de

combate à influência ocidental e de implantação radical da lei islâmica, a sharia. O nome Boko

Haram significa “a educação não islâmica é pecado” ou “a educação ocidental é pecado” na língua

Hausa, um idioma bastante falado no norte do território nigeriano. Vale lembrar que apesar dos dogmas

do grupo terrorista, a Nigéria é um Estado laico.

88DOMÍNGUEZ, Ana Garrida. El conflicto entre la liberdad de expresión y los sentimentos religiosos en

las sociedades multiculturales. Vigo: AFD, 2014, p. 97-115.

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manifestações públicas de fé, as viagens apostólicas e a forma como as igrejas se

utilizam de seus mártires como forma de captação da fé alheia.89

Sobre esse assunto importa trazer dados de uma série especial de artigos do

INTERVOZES, o Coletivo Brasil de Comunicação Social, em parceria com o Le

Monde Diplomatique Brasil, chamada “Proprietários da Mídia no Brasil”, que discute

dados de pesquisa que apurou a participação religiosa na mídia brasileira, atestando que

desde os anos 80 é crescente o controle religioso da mídia com influentes afiliações

políticas e guiada por interesses econômicos de grandes grupos. As matérias trazem

dados da Ancine – Agência Nacional de Cinema, apurados em 2016, que mostra que a

programação religiosa é o principal gênero transmitido pelas redes de TV aberta do país,

ocupando 21% do total de programação. A campeã é a Rede TV!, que teve 43,41% do

seu tempo destinado a programas religiosos naquele ano. Em seguida, vieram a

RecordTV, com 21,75%, a Band, com 16,4%, a TV Brasil, com 1,66%, e a Globo, com

0,58%.90

Dentre as práticas proselitistas estão incluídas manifestações de fraternidade,

igualdade, tolerância, respeito e amor aos demais povos, nações e religiões, contudo,

reiteradamente essa disseminação da ideologia da fé está se transformando em sinônimo

de incitação à violência e intolerância contra grupos que discordam dos seus preceitos

como: homossexuais; outras religiões; mulheres feministas; emissoras de televisão; etc.,

que são tidos como inimigos que devem ser exterminados.

O que se presencia é a profetização de um proselitismo “negativo”, isto é, a

atração do fiel ao passo da ofensa a reputação de religião alheia, sem lisura, como se

houvesse uma competição em que uma religião fosse melhor do que a outra, quando, na

verdade, esse jamais deveria ser o objetivo fulcral de uma atividade religiosa.

Como explicita Meyer-Pflug, o discurso do ódio decorre da liberdade de

expressão e em seu interior carrega um aspecto preconceituoso, às vezes, até

discriminatório, formado com base nas convicções pessoais do indivíduo. Inegável que

os professadores de proselitismo, através de uma série de mecanismos de propaganda

maciça, têm o poder persuasivo de manipulação da fé e do fanatismo religioso,

inserindo, com discernimento ou não, as ideologias da religião na consciência moral dos

89É como se constata facilmente dos meios de comunicação e das numerosas caminhadas de fé ostentada

por diversas religiões, sobretudo as maioritárias.

90INTERVOZES:https://brazil.mom-rsf.org/br/destaques/participacao-religiosa-na-midia/ e LE MONDE

DIPLOMATIQUE BRASIL https://diplomatique.org.br/especial/proprietarios-da-midia-no-brasil/

Acessados em: 1 fev. 2019.

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indivíduos seguidores daquela fé que levarão tais elementos de autodeterminação do ser

às suas relações em sociedade.91

Quando usado para fins negativos, o proselitismo apresenta uma série de

consequências danosas. A questão polêmica em torno da atividade catequizadora não é

o seu objetivo persuasivo, mas a forma como vem sendo manifestado e o conteúdo que

está sendo profetizado, que em muitos casos revela-se como verdadeira prática de

intolerância religiosa.92

Quem é alvo do discurso proselitista incitador de ódio reflete a despeito do seu

teor, ou, sente-se ofendido, tem sua honra maculada. Nesse caso, não há liberdade de

expressão religiosa que pondere sobre a dignidade da pessoa humana e a igualdade.

Além disso, aquele proselitismo que é realizado com pressão física ou vexame

moral ou psicológico, que leva a privar o indivíduo da sua capacidade de julgamento

pessoal; com oferta de vantagem moral ou material; com exploração da necessidade,

com a incapacidade ou falta de instrução dos destinatários; com meios estranhos à

própria fé, como invocação de motivações políticas; com insinuações cruéis contra as

convicções dos outros, não merece a proteção da liberdade de expressão.93

Dos dizeres de Rodrigo Francisco de Paula:

É nesse sentido que assume relevo a análise do discurso de ódio, que, como

visto, traduz-se na incitação e no induzimento à discriminação ou ao

preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, à base de

uma ação violenta. Ora, a imprescindibilidade da liberdade de expressão, na

perspectiva do uso público da razão, é manifesta. Mas, no momento em que

seu conteúdo traz o discurso de ódio, introduz-se na esfera pública a

violência, radicada na disseminação do ódio contra as minorias (raciais,

étnicas, religiosas etc.) e do medo infligido a quem é vítima de tal

manifestação do pensamento de sofrer uma agressão gratuita, corrompendo-

se o aspecto comunicativo do poder. Não se deve confundir, por evidente, o

discurso de ódio com o discurso de crítica. Odiar, no discurso, significa

coagir mediante o emprego da violência radicada na disseminação do ódio e

do medo da agressão gratuita, ao passo que discordar exprime a pretensão de

se fazer valer o próprio argumento no debate público, o que é inerente à

própria teoria do discurso (DE PAULA, 2009, p. 12).

91MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Liberdade de expressão e discurso do ódio. São Paulo: Editora

Revista dos Tribunais, 2009, p. 99.

92SILVA, Vagner Gonçalves da. Prefácio ou Notícias de uma guerra nada particular: os ataques

neopentecostais às religiões afro-brasileiras e aos símbolos da herança africana no Brasil. In:.

Intolerância religiosa. Impactos do neopentecostalismo no campo religioso afro-brasileiro. São Paulo:

EDUSP, 2007, p. 9-24.

93SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na constituição

federal de 1988. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2008, p. 107.

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Nesse contexto, numa sociedade democrática, como o Estado deve atuar para

equilibrar o direito de uma comunidade exercer e expandir sua fé com o direito de

outras comunidades de gozar pacificamente de suas crenças e tradições? Evidentemente

que os direitos dos cidadãos emissores do discurso proselitista (possuidores do direito

fundamental à liberdade de expressão religiosa) se diferenciam dos receptores desse

discurso (atingidos em sua dignidade). O grande desafio que se apresenta para o Estado

e para a própria sociedade é permitir a liberdade de expressão sem que isso possa gerar

um estado de intolerância, ou acarrete prejuízos irreparáveis para a dignidade da pessoa

humana e também para a igualdade94.

3.3 Critérios internacionais que legitimam restrições legais ao proselitismo

religioso com foco no sistema legal brasileiro

Como visto, as possíveis restrições impostas ao exercício do proselitismo

religioso devem ser tomadas com atenção a não negligenciar a neutralidade

promovendo uma discriminação com tratamento jurídico desigual injustificado. As

limitações ao exercício dessa liberdade podem ser impostas desde que fundamentadas

em critérios objetivos e razoáveis, visando propósitos legítimos, em outros termos,

embasados em razões públicas.

Observe-se que limitações somente podem ser impostas a expressões religiosas

exteriorizadas. A dita dimensão religiosa interna, pertencente à consciência e

autodeterminação individual, é liberdade que deve ser intocada. Visto que, caso o livre

pensamento do indivíduo fosse restringido pelo Estado estaria cometendo violação

gravíssima aos direitos fundamentais dos cidadãos.

Em assim sendo, somente a dimensão externa da liberdade religiosa dos

indivíduos é que pode estar sujeita a restrições. Como bem ensina Milene Santos95, com

base em instrumentos internacionais de proteção aos direitos humanos, existem critérios

legítimos para justificar eventuais restrições à liberdade de manifestações religiosas ou

de crenças, tais como a proteção: (i) da ordem e da segurança pública; (ii) da moral

pública; (iii) da saúde pública; e (iv) dos direitos e liberdades de outrem.

94MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Liberdade de expressão e discurso do ódio. São Paulo: Editora

Revista dos Tribunais. 2009, p. 99. 95SANTOS, Milene Cristina. Intolerância religiosa: do proselitismo ao discurso de ódio. São Paulo:

D’placido, 2017, p. 111.

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Vejamos tais justificativas com base em instrumentos internacionais aplicados

no Brasil.

De início, sob uma perspectiva de análise de proteção da ordem e da segurança

pública, verifica-se que em se tratando de um contexto político no qual a separação

entre a Igreja e o Estado afigura-se incompleta ou inexistente, não se pode reputar como

legítima a suposta defesa da ordem pública para justificar restrições ao proselitismo

religioso. No âmbito de um Estado clerical, onde a religião majoritária influencia o

sistema jurídico, maior é a probabilidade de que exercícios legítimos do direito

fundamental à liberdade religiosa sejam reputados abusivos.

Contudo, essa não é a realidade do Brasil. Vivemos em um Estado laico no qual,

ao menos em tese, inexiste significativa aliança entre a religião majoritária e os órgãos

estatais. O sistema jurídico brasileiro não compactua com a visão de que o simples

exercício de práticas proselitistas pode ser considerado perturbação indevida da ordem

pública, já que inserido em uma sociedade livre, plural, igualitária e laica.

Porém, o Brasil, assim como muitos países democráticos, convive com outro

tipo de restrição à liberdade de manifestação religiosa com justificativa na proteção da

ordem e da segurança pública. É o caso do uso de vestimentas religiosas em espaços

públicos ou estabelecimentos de internação coletiva, sobretudo os presídios.

No plano internacional, possui notoriedade mundial a polêmica em torno do uso

do véu islâmico na França, mas neste trabalho iremos nos ater à análise do espaço social

brasileiro.96

Grande polêmica acomete às restrições à liberdade religiosa nos

estabelecimentos prisionais do Brasil, a maioria injustificadas e atingindo

principalmente os seguidores das confissões religiosas minoritárias.

Em 2011, a Comissão de Direito e Liberdade Religiosa da OAB-SP, foi

demandada por um membro da comunidade muçulmana, com o relato de que seis presas

marroquinas que cumprem pena na Penitenciária Feminina de São Paulo estariam sendo

impedidas de fazer as suas orações cobertas conforme manda a sua tradição religiosa,

através do uso do véu.

A Comissão, então, através de advogada das mulheres encarceradas, Dra.

Luciana Cury, obteve autorização junto ao Consulado do Marrocos para que a sua

96Desde de 2010 a França proíbe o uso do véu islâmico integral (burca ou niqab) em espaços públicos

justificando na necessidade das autoridades terem que identificar os indivíduos e prevenir atentados

contra a segurança das pessoas e dos bens e lutar contra a fraude de identidade.

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Presidente, Dra. Damaris Dias Moura Kuo, pudesse fazer uma visita preliminar ao

presídio para conhecer o caso “in loco”.

Fora promovida uma reunião com a presença de todas as presas muçulmanas,

oportunidade em que elas, através de tradução, puderam manifestar a sua necessidade de

ordem religiosa, já que para elas, sem o uso do véu, Deus não ouviria suas preces. Ao

passo disso, a Diretora Geral de Segurança do presídio explicou as razões de segurança

pelas quais as mesmas não poderiam ficar permanentemente cobertas pelo véu apesar do

ideal religioso muçulmano.

A presidente da Comissão de Direito e Liberdade Religiosa da OAB à época,

conjuntamente com a advogada das muçulmanas, conseguiu equacionar o respeito às

regras de segurança prisional com o direito à manifestação religiosa das mulheres

encarceradas da seguinte forma: as detentas não usariam véu o tempo inteiro, mas

cobririam seus cabelos e corpos com lençóis brancos em todos os momentos de orações.

A mediação da Comissão para a solução do impasse foi considerada

absolutamente satisfatória pelas muçulmanas presas. A Presidente da Comissão de

Direito e Liberdade Religiosa, Dra. Damaris Dias Moura Kuo, em entrevista à OAB

sobre o caso afirmou que:

[...] essa foi mais uma vitória desta casa de cidadania, a OAB/SP, que sempre

alerta, promoveu a garantia de um direito fundamental à livre expressão de fé

e liberdade religiosa, mesmo em local de internação coletiva, assegurando

mais uma vez a Democracia neste País (2011, p.1).

Apesar do desfecho equilibrado do caso, é de se observar que esse evento ilustra

as “exigências de segurança” desiguais dos estabelecimentos prisionais ao exercício de

liberdade religiosa das confissões religiosas minoritárias dificultando a sua prática.

Saliente-se que fora necessária a atuação da Comissão de Direito à Liberdade Religiosa

da OAB-SP e da advogada das mulheres encarceradas para que as muçulmanas tivessem

a sua liberdade assegurada pelo Estado de São Paulo.97

Quando analisado se a convicção religiosa dos cidadãos pode sofrer restrições

sob o manto da proteção à saúde pública, note que algumas práticas e atos religiosos

podem ameaçar a saúde física ou mental dos seus adeptos. Recorde-se, por exemplo, a

97Processo administrativo n. 3919/2010 da Comissão de Direito e Liberdade Religiosa da OAB-SP. Na

mídia, o caso foi noticiado por vários sítios da internet, entre os quais destacamos o domínio da OAB-

SP: http://www.oabsp.org.br/comissoes2010/liberdade-religiosa/noticias/comissao-de-direito-e-

liberdade-religiosa-atua-em-caso-de-muculmanas-presas-no-brasil; Acesso em jun. de 2015.

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controvérsia em torno da recusa das testemunhas de Jeová em aceitar transfusões de

sangue com base em argumentos religiosos. Dentro desse contexto, Sara Guerreiro98

adverte que o Estado não deve interferir na vida de sujeitos adultos e capazes que

livremente decidam por observar seus preceitos religiosos, independentemente dos

riscos à saúde que lhes possam advir; entretanto, as mesmas regras não se aplicam às

crianças, as quais merecem por parte do Estado uma maior proteção.

A controvérsia paira no tocante ao risco de vida do indivíduo religioso: o Estado

deve protegê-lo, mesmo sabendo que este optou livremente por seguir preceitos

religiosos que ditam suas relações sociais e que para ele tem um valor mais alto que sua

própria vida?

Segundo Luis Roberto Barroso99, com base na dignidade humana do paciente

que não figura como mero objeto da prática médica, as Testemunhas de Jeová devem ter

o direito de realizar autonomamente suas escolhas existenciais. Como consequência

natural, cabe ao paciente anuir ou não com determinado exame ou tratamento. O médico

não pode substituir-se a ele para tomar essa decisão ou impor qualquer espécie de

procedimento, ainda que fundado em critérios técnicos.

A autonomia do paciente toma lugar ao paternalismo médico no âmbito das

diretrizes internacionais da Ética médica. Barroso contrapõe-se às pretensões

paternalistas estatais de impedir as Testemunhas de Jeová de exercerem plenamente seu

direito à liberdade religiosa.

Em que pese o entendimento do exímio Ministro, a questão relativa à recusa por

motivos religiosos, a tratamento médico que envolva transfusão de sangue, recebe no

Brasil, uma abordagem bastante simples: na maioria dos casos em que há risco de vida

do paciente, entende-se que a objeção de consciência não se impõe, pouco importa que

tenha sido levantada por motivos religiosos, e que quem levante a objeção seja o próprio

paciente, ainda que adulto, capaz e em pleno gozo de suas faculdades mentais.

Ademais, quando analisada possíveis restrições com subterfúgio da proteção da

moral pública, entende-se que um Estado democrático de direito, por suas

características, compromissado politicamente em zelar pela tolerância e pelo pluralismo

religioso, não pode se utilizar de critérios ilegítimos de limitação à liberdade de

98GUERREIRO, Sara. As Fronteiras da Tolerância - Liberdade Religiosa e Proselitismo na Convenção

Europeia dos Direitos do Homem. São Paulo: Almedina, 2005, p. 215.

99BARROSO, Luís Roberto. Legitimidade da recusa de transfusão de sangue por testemunhas de jeová.

Dignidade humana, liberdade religiosa e escolhas existenciais. Disponível em:

http://www.conjur.com.br/dl/testemunhas-jeova-sangue.pdf. Acessado em: 4 jul. 2018.

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expressão religiosa e de crença, pautando-se, por exemplo, em confissões religiosas

majoritárias.

É que, em uma sociedade democrática aberta e plural, a moral pública só pode

legitimamente se referir à interpretação sempre aberta da moralidade política da

comunidade de princípios, expressos ou implícitos nas Constituições, dentre os quais se

destaca o princípio da dignidade humana, exigindo o tratamento político de todos os

cidadãos como igualmente merecedores de consideração e respeito.100

Constituindo-se inegavelmente como laico, axiomático que o Estado brasileiro

jamais poderá se pautar na proteção da moral pública como forma de justificar algum

tipo de restrição à liberdade religiosa.101

Por fim, os direitos e liberdades dos indivíduos receptores ou alvos da

mensagem religiosa são largamente mencionados como critérios legítimos para limitar o

exercício do direito ao proselitismo dos indivíduos emissores ou fontes do discurso,

assim sendo, põe-se a controvérsia acerca dos critérios que permitem identificar as

críticas religiosas legítimas das ilegítimas.

A explosão de críticas de uma religião contra outras, normalmente, parte da

premissa de se achar mais correta que as demais. Contudo, deve-se observar e proteger

sempre os sentimentos religiosos dos cidadãos para que a prática proselitista goze

livremente do direito à liberdade de expressão.

Nesse sentido, é que os discursos proselitistas ofensivos devem ser restringidos

de forma cuidadosa para evitar que se esteja proibindo como um todo a prática dessa

liberdade religiosa. Deve-se refletir sobre o embate de direitos entre os cidadãos-fonte e

os cidadãos-alvo dessa exposição de ideias religiosas.

Como alerta Ana Garrida Domínguez:

Es decir, el primer problema que habremos de solventar es el de identificar o

determinar aquello que puede resultar ofensivo a las convicciones íntimas

relativas a las creencias religiosas de un colectivo de personas. En segundo

lugar, habrá que sopesar la entidad o gravedad de la ofensa, que deberá ser lo

suficientemente importante como para justificar la restricción de la libertad

de expresión. Y, finalmente, tendremos que comprobar si se adoptaron, por

quien ejercita la libertad de expresión, las medidas necesarias para evitar los

aspectos gratuitos o innecesariamente ofensivos para esos sentimientos y

convicciones y que nada aportan al debate público (DOMÍNGUEZ, 2014, p.

12).

100SARMENTO, Daniel. Livres e Iguais. Estudos de direito constitucional. São Paulo: Editora Lumem Juris,

2006, p, 251.

101Foi como visto dos princípios constitucionais que fundamentam a república democrática brasileira.

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Vivemos em uma sociedade pluralista, em que há a convivência pacífica e

respeitosa entre pensamentos diferentes, isto é, existe um mercado livre, aberto e plural

de ideias religiosas e decorre da própria liberdade de expressão o direito de procurar e

de receber informações e ideias de toda sorte.

Em assim sendo, os cidadãos-alvo de proselitismo religioso são livres para se

convencer e mudar de religião ou crença sempre que assim bem entenderem. Nesse

sentido, limitar a liberdade de expressão religiosa seria também limitar a liberdade do

sujeito-alvo de ter acesso aquele proselitismo por vontade própria e livremente optar ou

não por aquela religião.102

Quer dizer, não se pode limitar o acesso do cidadão à informação religiosa, a

busca espontânea desses sujeitos-alvo deve ser sempre permitida pelo Estado. Partindo

dessa premissa, os cidadãos-fonte de proselitismo religioso teriam o direito de expor

inteiramente sua ideologia, afinal, os cidadãos-alvo desse discurso teriam o direito de

receber toda e qualquer ideia e informação decorrente do direito a liberdade de

expressão.

Dentro desse contexto, o Estado, ao invés de banir ou controlar seitas religiosas

tem de exercer o dever de prover informações, objetivas e neutras, necessárias para que

os cidadãos façam as melhores escolhas religiosas desenvolvendo uma capacidade de

análise crítica e racional.

Entretanto, em se tratando da prática de proselitismo no interior de instalações

públicas, tais como: escolas, hospitais, instituições militares e presídios. Configurar-se-

ia a transmissão do discurso religioso por coerção ilegítima, já que se deve ter em mente

o direito daquele cidadão-alvo de não querer ouvir pregações religiosas indesejadas,

gerando a obrigação Estadual de banir tal prática o que se justifica no contexto de uma

democracia constitucional laica.103

3.4 A diferenciação do discurso proselitista religioso legítimo do ilegítimo em

proteção as confissões religiosas minoritárias

102SANTOS, Milene Cristina. Intolerância religiosa: do proselitismo ao discurso de ódio. São Paulo:

D’placido, 2017, p. 111.

103 Ibid., 2017, p. 120.

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Quando se fala em minorias religiosas, a referência não se direciona apenas a

religiões menores, com tradições locais, mas também, a todas as outras religiões que

existem em um determinado espaço territorial e que estão em menor número ante a

religião predominante no país.

São exemplos: os mulçumanos na França, país onde tem predominância cristã;

os católicos nos Estados Unidos, país predominantemente de batistas; os católicos na

Índia, país predominantemente hindu; os adeptos das religiões descendentes dos países

africanos como: umbanda e candomblé no Brasil, país predominantemente católico, etc.

É preciso levar em conta que a complexidade etnográfica do Brasil influencia

em muito os seus códigos sociais. O multiculturalismo à brasileira é um tema inevitável

à compreensão do corpo social e ao estudo da identidade do Brasil como nação, pois

foram aqui incorporados e manifestados costumes, práticas e conceitos oriundos de

diferentes fontes.

O mais recente senso do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),

sobre religião, constatou que o Brasil ainda é a maior nação católica do mundo, mas, na

última década, houve a redução dos católicos e a expansão das correntes evangélicas,

apontando que mantida essa tendência, em no máximo trinta anos, os católicos e

evangélicos estarão empatados em tamanho na população.104

A intolerância religiosa sempre foi um amálgama do país, uma nação que tem

uma grave tradição de conflitos religiosos e de episódios de incomplacência. Se

decidirmos apontar casos históricos de intolerância, à brasileira, teremos que nos

reportar desde a colonização portuguesa com a catequese católica sobre os índios; pelas

legiões de negros escravizados que eram proibidos de professar suas religiões em

público; pela Guerra de Canudos, que fora marcada pela intolerância religiosa do Estado

e de uma religião contra o líder espiritual Antônio Conselheiro; até às mais modernas

formas de desrespeito e violação dos direitos de liberdade religiosa.

A verdade é que a intolerância é muito presente na realidade do ser humano, e

mesmo muito tempo antes de se pensar em proteção aos direitos humanos, o indivíduo

já sofria com perseguições religiosas e várias tentativas de se suplantar o direito alheio a

exercer a própria crença.

104Censo demográfico, Rio de Janeiro, 2010:

https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/94/cd_2010_religiao_deficiencia.pdf. Acesso em: 5

jul. 2018.

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As minorias religiosas gozam de especial proteção dentro das democracias

constitucionais, sendo-lhes assegurado o direito ao livre desenvolvimento de suas

identidades religiosas, bem como o direito a vivenciar as práticas culturais e religiosas

professadas, individual e coletivamente, em público e em privado.105

Como já analisado, o sistema constitucional brasileiro atual não protege a

liberdade de expressão que professa a intolerância religiosa, principalmente aquela

incitadora do racismo, do preconceito e da discriminação.106 Embora confira proteção a

expressões ofensivas e chocantes, o ordenamento jurídico pátrio considera abusivo o

uso do aludido direito à incitação ao ódio, à hostilidade, à intolerância e à violência, já

que os discursos de ódio violam igualmente os direitos e liberdades dos indivíduos e

grupos atingidos.

Como visto alhures, o próprio Código Penal pátrio tutela os sentimentos

religiosos dos cidadãos com vistas a proteger, não só a pluralidade de ideias e

perspectivas que devem florescer no mercado democrático de crenças religiosas, como

também o respeito e a tolerância às diferentes confissões professadas na sociedade.

As duras e sistemáticas perseguições religiosas sofridas por grupos minoritários,

no Brasil, justificam o posicionamento de seu sistema jurídico que conduz ao

reconhecimento de um direito fundamental ao gozo pacífico da liberdade religiosa.

Dentro desse contexto, como diferenciar o discurso proselitista religioso

legítimo do ilegítimo, balanceando o direito à liberdade de expressão religiosa com a

proteção do sentimento religioso de terceiros sem corromper a laicidade estatal?

Pensando em como equacionar esses direitos, Milene Santos107 diferencia os

discursos proselitistas próprios ou legítimos dos impróprios ou ilegítimos, nas

sociedades democráticas, com base em quatro critérios básicos de análise, (i) as

características da fonte; (ii) as características do alvo; (iii) os espaços onde ocorrem os

proselitismos; e (iv) a natureza da ação e/ou da mensagem proselitista.

Sustentando a análise desses critérios, o que se pretende identificar é se há base

para restrição do proselitismo religioso que justifique a atuação Estatal.

Com relação ao primeiro critério, fontes coercitivas, havemos de ter em mente

que o oferecimento de vantagens em troca da conversão religiosa do indivíduo é

105Artigo 5º da Constituição Federal.

106Artigo 20º da Lei 7.716/89. Define os crimes resultantes de raça ou cor.

107SANTOS, Milene Cristina. Intolerância religiosa: do proselitismo ao discurso de ódio. São Paulo:

D’placido., 2017, p. 135.

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conduta reprovável e possivelmente lesionadora da liberdade de consciência religiosa do

sujeito. Esse tipo de proselitismo é apontado como coercitivo e, portanto, impróprio,

principalmente se destinado às parcelas da população que se encontram marginalizadas.

É muito comum vermos religiões que ajudam comunidades carentes oferecendo

vantagens materiais em troca da audiência da pregação religiosa. Nesses casos, o Estado

deveria permitir a prática proselitista, a fim de não intensificar ainda mais a pobreza e a

marginalização dos seus ouvintes, ou deveria intervir ao pretexto de proteger a liberdade

religiosa dos indivíduos?

Como adverte Milene Santos108, oferecer vantagens materiais em troca da

audiência da pregação não é equivalente ao oferecimento de benefícios em troca da

conversão religiosa, são condutas com graus de reprovabilidade distintos. Mesmo que se

repute inegável o impacto da segunda conduta na liberdade de consciência dos ouvintes.

O mesmo não pode ser afirmado em relação à primeira, uma vez que o sujeito pode

escutar a mensagem religiosa, receber seus alimentos e agasalhos, e não alterar em nada

as convicções religiosas adotadas em seu íntimo.

A autora exemplifica que seriam fontes potencialmente coercitivas, quando

interlocutores do discurso proselitista, os agentes estatais no exercício de funções

públicas para com os cidadãos comuns; os empregadores ou chefes e seus respectivos

empregados ou subordinados; os professores e seus alunos; as autoridades encarregadas

da disciplina de indivíduos sujeitos a instituições nas quais há privação total ou parcial

de liberdade, como os estabelecimentos prisionais e militares. Nesses casos, a influência

coercitiva se justificaria por força da característica de poder existente nesses

relacionamentos entre os emissores e os alvos do discurso religioso.

Dentro desse critério, figura-se como é especialmente grave o proselitismo dos

agentes estatais no exercício de suas funções públicas, o que comprometeria a

democracia pluralista e laica que segue o princípio da igual dignidade das crenças

religiosas dos cidadãos em face do Estado.

No que tange ao segundo critério, alvos especialmente vulneráveis, quanto maior

a vulnerabilidade dos ouvintes da mensagem proselitista, maior a legitimidade das

intervenções estatais regulamentadoras.

A autora menciona como são especialmente vulneráveis às mensagens

catequizadoras as crianças, as pessoas com deficiência mental, os pobres, os de baixa

108Ibid., 2017, p. 137.

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escolaridade, fracos, ingênuos ou inseguros de si mesmo. Concorda-se com Milene

Santos, quando esta sustenta a relação problemática de associação entre pobreza e

ausência de educação com fraqueza e ingenuidade. Não se pode ignorar que condições

desfavoráveis tendem a compelir o indivíduo a aceitar auxílios materiais em troca da

conversão religiosa, contudo, isso não quer dizer que o fato de serem de baixa renda

e/ou com baixa instrução educacional, seja ingênuo para perceber um proselitismo

religioso enganoso109.

Em razão disso é que não se justifica a intervenção Estatal restritiva do

proselitismo nesses alvos considerados especialmente vulneráveis, já que não se pode

comprovar a potencialidade coercitiva do discurso sobre esses indivíduos.

A aplicação de restrições ao proselitismo com base no critério de

vulnerabilidade, com relação a adultos capazes pautada em alusões vagas e não

fundamentadas a tentativas de manipulações de consciência, é inadequada e, portanto,

inconstitucional. Dentro de uma comunidade democrática, pluralista e laica, não se pode

presumir o caráter “manipulador” ou “fraudulento” de certas mensagens religiosas.

Em análise ao terceiro critério, os espaços do proselitismo, notamos que

antigamente os emissores do discurso religioso o faziam no interior dos seus templos e

locais de adoração ou por escrito. Também era muito comum o fazerem em ruas e

praças públicas, atualmente essas práticas não só continuam como também evoluíram

para alcançar um maior número de fiéis. Se antes esse espaço de adoração era restrito,

com a mídia impressa e tecnologia já não há mais barreiras, são panfletos, revistas,

livros religiosos, programas de rádio e televisão, canais de vídeos on-line, e-mails, sítios

na internet, redes sociais. Meios de comunicação em massa é o que não faltam para

expandir o discurso religioso.

Se o proselitismo está sendo realizado em espaço público aberto, em que os

indivíduos podem circular livremente, não há porque caracterizá-lo como coercitivo,

porém se é realizado em um espaço público fechado, como o ônibus coletivo,

configurar-se-ia a transmissão do discurso religioso por coerção ilegítima já que se deve

ter em mente o direito daquele cidadão-alvo de não ouvir pregações religiosas

indesejadas, podendo ser limitado pelo Estado.

As novas mídias de difusão de informações, como o rádio, a televisão e,

notadamente, a internet, por sua facilidade de acesso instantâneo, afiguram-se

109Ibid., 2017, p. 139.

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particularmente problemáticos se os discursos religiosos transmitidos forem

considerados ofensivos aos sentimentos religiosos dos seus alvos, potencializando a

lesão dos direitos fundamentais desses indivíduos.

Nesse contexto, é que recentemente a rede Record, uma das maiores redes de

televisão do país, por ter transmitido programa de televisão de conteúdo ofensivo às

religiões de matriz africana, foi condenada a exibir programas de conteúdo positivo e

afirmativo sobre a cultura das religiões afro-brasileiras, direito de resposta concedido

em retaliação à violação à liberdade de crença cometida pela emissora.110

Também considerado abusivo a manifestação de proselitismo religioso em meio

ao culto dos alvos daquele discurso, como por exemplo, a distribuição de panfletos

demonizadores do catolicismo numa procissão católica, ou a pregação da demonização

dos cultos afro-brasileiros nas festas de Iemanjá.

Por fim, em análise a último critério diferenciador dos discursos proselitistas

legítimos dos ilegítimos, a natureza da ação e/ou mensagem proselitista, verifica-se que

o dizer catequizador de algumas religiões é potencialmente ofensivo a deuses, símbolos,

doutrinas e sentimentos religiosos dos seus alvos.

Dentro do contexto social brasileiro não se pode ignorar a possível conversão do

discurso proselitista religioso em explícito discurso de ódio, hostilidade, intolerância,

discriminação, racismo ou até mesmo incitador da violência contra seus condenados

morais. Dentro desse contexto, faz-se necessário conectar e analisar o sistema

constitucional brasileiro com relação ao proselitismo religioso e o discurso de ódio, a

fim de entender o que de fato é tutelado pela liberdade de expressão religiosa e os

limites que lhe podem ser razoáveis e legitimamente impostos numa sociedade

democrática, por força dos princípios da dignidade humana e da igualdade de suas

vítimas, sem que viole os princípios da laicidade e da neutralidade de conteúdo em

matérias religiosas.

110Decisão publicada em 11 de abril de 2018 pela 6ª Turma do Tribunal Regional Federal de São Paulo. O

inteiro teor do acórdão ser consultado no site do tribunal sob o nº 0034549-11.2004.4.03.6100/SP.

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4 O TRATAMENTO JURISPRUDENCIAL DO DISCURSO DE ÓDIO NO

BRASIL

O sistema constitucional brasileiro protege a liberdade de expressão dando-a

lugar de destaque com vistas a assegurar a solidez de uma sociedade mais livre e

democrática. Apesar disso, a liberdade de expressão não se afigura como um direito

absoluto, afinal o próprio texto constitucional consagra diversos outros direitos

fundamentais que lhe impõe restrições e limites com base na dignidade da pessoa

humana.

Como bem leciona Daniel Sarmento, a Constituição de 88 tem um firme e

profundo compromisso com a construção da igualdade e com a luta contra o

preconceito. É como se evidencia da leitura dos objetivos fundamentais da república,

constantes no art. 3º do texto magno, “construir uma sociedade livre, justa e solidária”

(inciso I); “garantir o desenvolvimento nacional” (inciso II); “erradicar a pobreza e a

marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” (inciso III); “promover o

bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras

formas de discriminação” (inciso IV).111

Do texto dos objetivos fundamentais, depreende-se que o legislador não quis

atribuir ao Estado brasileiro um papel de espectador neutro e imparcial dos conflitos

travados na sociedade. Ainda dos ensinamentos de Sarmento:

[...] partindo da premissa empírica de que a sociedade brasileira é injusta e

desigual, e de que nela vicejam a intolerância e o preconceito, ele impôs aos

três poderes do Estado tarefas ativas, ligadas à inclusão social e à

transformação de práticas opressivas voltadas contra grupos estigmatizados

(2006, p. 252).

Ademais disso, o compromisso com a luta por igualdade se explicita também no

caput do art. 5º e em seu inciso I estabelecendo que todos são iguais, sejam brasileiros

ou estrangeiros e sem distinção por circunstância de gênero. No combate contra

qualquer tipo de preconceito, temos que a lei punirá qualquer tipo de discriminação

atentatória aos direitos e liberdades fundamentais (inciso XLI) e criminaliza a prática do

racismo como crime inafiançável (inciso XLII).

111SARMENTO, Daniel. Livres e Iguais. Estudos de direito constitucional. São Paulo: Editora Lumem

Juris, 2006, p. 251.

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Importante salientar que o constituinte reconheceu a gravidade da prática do

racismo na sociedade brasileira e isso justifica a imprescritibilidade do crime, negando o

mito da democracia racial que de fato inexiste e reconhecendo que o racismo é

institucional e estruturante em nossa sociedade, historicamente marcada pelo

escravagismo negro com implicações que se refletem até a conjuntura atual em ataques

racistas fazendo com que negros e negras sofram há gerações.112

Importante salientar que o ordenamento brasileiro adotou o princípio da eficácia

horizontal e vertical dos direitos fundamentais, segundo o qual estes direitos vinculam e

obrigam aos particulares e o Estado a não praticarem atos de discriminação, preconceito

e intolerância.113

Ademais disso, dentro de uma sociedade desigual e opressiva, o Estado figura

como garantidor da fruição da liberdade pelos indivíduos o que pressupõe o

enfrentamento de obstáculos sociais que travam o exercício destes. Assim como a

igualdade, defende Sarmento114, que a liberdade tem uma faceta formal e material e que,

de acordo com a carta magna, a liberdade formal é plenamente assegurada aos sujeitos.

Contudo, essa não é uma liberdade absoluta, por essa razão é que o Estado, pautando-se

na liberdade material dos indivíduos, no âmbito da esfera privada, deve coibir discursos

que silenciem as vozes de suas vítimas, como os do discurso de ódio.

Nesse sentido, a liberdade de expressão deve ser exercida com fulcro na

igualdade e na dignidade da pessoa humana. Esta última acolhida no art. 1º, III da carta

magna de 88 que funciona como regra, princípio e fundamento que norteia o domínio

das relações privadas limitando os direitos e garantias fundamentais dos indivíduos em

face dos seus pares e a atuação estatal impondo-lhe limites e deveres positivos,

compelindo-o a agir a fim e assegurar, promover e proteger a dignidade dos sujeitos que

estão sendo ameaçados em seus direitos.

Ademais disso, vale ressaltar que o Brasil é signatário de diversos tratados

internacionais sobre direitos humanos, editados após a 2ª Guerra Mundial, que obrigam

os Estados signatários a proibirem e coibirem o discurso de ódio. Embora o exercício da

liberdade de expressão seja altamente valorizada no âmbito do Direito Internacional dos

112Nesse sentido nega “o mito da democracia racial” disseminado pelo sociólogo Gilberto Freyre em sua

obra intitulada “Casa Grande e Senzala”.

113MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São

Paulo: Editora Saraiva. 2014, p. 167-169

114SARMENTO, Daniel. A liberdade de expressão e o problema do “hate speech”. In: Leituras

complementares de direito civil. São Paulo: Jus Podivm, 2009, p. 83.

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Direitos Humanos115 as organizações internacionais reconhecem que o exercício

abusivo dessa liberdade, principalmente o voltado para atingir minorias estigmatizadas,

não deve ser protegido e consagram a obrigação do combate ao racismo, preconceito e

intolerância, não havendo dúvida que esses tratados influenciam na interpretação do

sistema interno de proteção a direitos e garantias fundamentais.

Evidentemente que quando tratamos do discurso de ódio dentro da conjuntura do

judiciário brasileiro temos que ter em mente a estrutura do sistema de proteção

constitucional, a posição do país no plano internacional e seu histórico social. Desse

misto, depreende-se que a tutela à não discriminação de qualquer forma e por qualquer

meio é fortemente protegida.

4.1 O discurso de ódio na jurisprudência do STF: o caso Ellwanger – HC

82.424/RS

A suprema corte constitucional brasileira não julgou muitos casos em que tratou

do tema discurso de ódio, porém o julgado mais emblemático conferido à matéria pela

jurisprudência constitucional pátria ajudou a compreender e traçar limitações ao tratar

sobre o assunto.

Com efeito, em várias oportunidades, a Corte se pronunciou sobre o tema dos

limites à liberdade de expressão, em sentido amplo, contudo, pode-se afirmar que, dentre

os casos julgados pelo STF, apenas no caso Ellwanger se analisou especificamente a

questão do discurso de ódio, decisão esta que ficou conhecida pela polêmica que dividiu

a doutrina e a opinião pública sobre o assunto.116

115Foi garantida na Declaração Universal dos Direitos Humanos (art. 19), no Pacto dos Direitos Civis e

Políticos (art. 19), na Convenção Europeia de Direitos Humanos (art. 10), na Convenção Interamericana

de Direitos Humanos (art. 13) e na Carta Africana de Direitos Humanos (art. 9º), dentre outros

documentos internacionais.

116Em defesa da decisão: 1) BRANCO, Paulo Gustavo Gonet et al. Curso de Direito Constitucional. São

Paulo: Saraiva, 2007, p. 351; 2) POTIGUAR, Alex Lobato. Liberdade de Expressão e Discurso do Ódio.

A luta pelo reconhecimento da igualdade como direito à diferença. Brasília: Consulex, 2012; 3)

HONÓRIO, Cláudia; KROL, Heloísa. Jurisdição constitucional, democracia e liberdade de expressão:

análise do caso Ellwanger. A&C Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte,

ano 8, n. 32, p. 77-92, abr./jun. 2008. Contra: 1) MARTINS, Leonardo. Sigfried Ellwanger: liberdade de

expressão e crime de racismo: parecer sobre o caso decidido pelo STF no HC 82.424/RS. Revista

Brasileira de Estudos Constitucionais RBEC, Belo Horizonte, ano 1, n. 4, p. 179-209, out./dez. 2007; 2)

MEYER-PFLUG, Samatha Ribeiro. Liberdade de expressão e discurso do ódio. São Paulo: RT, 2009, pp.

218 e ss; 3) CARVALHO, Lucas Borges de. Justiça e liberdade de expressão: uma releitura do caso

Ellwanger. Revista Brasileira de Estudos Constitucionais –RBEC, Belo Horizonte, ano 3, n. 10, abr./jun.

2009.

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O caso histórico julgado pelo STF envolveu o conceito de raça e o conflito entre

a liberdade de expressão, a dignidade do povo judeu e a proibição à prática do crime de

racismo.

Tratava-se de ação penal por crime de discriminação racial proposta contra

Siegfried Ellwanger, que escrevera, editara e publicara diversos livros com conteúdo

antissemita, que negavam a ocorrência do Holocausto e atribuíam características

negativas ao caráter dos judeus. O tipo penal em questão era o do art. 20 da Lei

7.716/89, com a redação dada pela Lei 8.081/90, segundo o qual é crime sujeito à pena

de reclusão de 2 a 5 anos e multa, “praticar, induzir ou incitar, pelos meios de

comunicação social ou por publicação de qualquer natureza, a discriminação de raça,

cor, etnia, religião ou procedência nacional”.

Ele foi absolvido em primeira instância e condenado em segunda instância, pelo

Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, a dois anos de reclusão por apologia a ideias

preconceituosas e discriminatórias contra os judeus. Siegfried Ellwanger, além de ser

sócio de uma editora – Revisão Editora Ltda –, também era autor de diversas obras

literárias de conteúdo antissemita, tal como Holocausto, judeu ou alemão? – Nos

bastidores da mentira do século.

Foi impetrado Habeas corpus no STJ em face da condenação constante no

acórdão do TJ-RS. O HC foi indeferido e a questão chegou ao STF. A corte suprema,

por sua vez, denegou o writ, decidindo:

10. A edição de obras escritas veiculando ideias anti-semitas, que buscam

resgatar e dar credibilidade à concepção racial definida pelo regime nazista,

negadoras e subversoras de fatos históricos incontroversos como o

holocausto, consubstanciadas na pretensa inferioridade e desqualificação do

povo judeu, equivalem à incitação ao discrímen com acentuado conteúdo

racista, reforçadas pelas consequências históricas dos atos que se baseiam

(STF, 2003, p. 2).

A referida decisão do STF foi tomada por maioria dos votos, restando vencidos

os Ministros Moreira Alves (relator do processo), Carlos Ayres Britto e Marco Aurélio.

Dentro do contexto normativo e axiológico aqui anteriormente exposto, não foi

difícil para o Supremo Tribunal Federal decidir, no caso Ellwanger, no sentido da

constitucionalidade da punição de manifestações de antissemitismo. A questão central

do HC 82.424/RS residia no fato de saber se o crime de racismo era extensível ao povo

judeu. É dizer, judeu é raça ou religião? Dentro do contexto brasileiro, seria possível a

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punição pelo cometimento do crime de racismo contra os judeus levando em conta que

eles nunca sofreram nenhuma perseguição histórica no país?

Da análise do caso, Daniel Sarmento117 ensina que, inicialmente, a Corte teve

que examinar se o conteúdo de racismo contido na Constituição abrangia ou não as

ofensas perpetradas contra o povo judeu, já que da impetração do habeas corpus se

defendia que raça humana, a partir de um conceito biológico/antropológico, eram

apenas as caucasiana, a negroide e a amarela. Na decisão, o STF afirmou que o conceito

de raça deve ser cultural até porque numa perspectiva biológica seria impossível se

distinguir raças humanas uma vez que geneticamente inexiste indivíduos integrantes de

diversos grupos étnicos. Os Ministros que atribuíram um conceito amplo, sociocultural

e antropológico ao termo ‘racismo’ entenderam, de maneira geral, tratar-se de crime

contra grupos humanos118 com características culturais próprias.

3. Raça humana. Subdivisão. Inexistência. Com a definição e mapeamento do

genoma humano, cientificamente não existem distinções entre os homens,

seja pela segmentação da pele, formato dos olhos, altura, pelos ou por

qualquer outras características físicas, visto que todos se qualificam como

espécie humana. Não há diferença biológica entre os seres humanos. Na

essência são todos iguais.

4. Raça e racismo. A divisão dos seres humanos em raças resulta de um

processo de conteúdo meramente político-social. Desse pressuposto origina-

se o racismo que, por sua vez, gera discriminação e o preconceito

segregacionista (Idem).

Uma vez fixado o conceito de crime de racismo, restava saber se a publicação de

obras de conteúdo antissemita (discurso de ódio), que fazem apologia ao nazismo, é

considerada prática de racismo119. Assim, os Ministros passaram a discutir a

possibilidade de incidência do crime de racismo sobre atos como o de escrever e editar

livros, tendo em vista a garantia da liberdade de expressão e entenderam que deveria

prevalecer a igualdade racial e a dignidade humana das vítimas da manifestação

racista120.

117SARMENTO, Daniel. A liberdade de expressão e o problema do “hate speech”. In: Leituras

Complementares de Direito Civil. Salvador: Editora Jus Podivm. 2009, p. 83. 118Após essa decisão e a recente descoberta do genoma humano, o sistema jurídico brasileiro entende que

a prática do crime de racismo envolve a perseguição de qualquer grupo étnico, religioso, cultural,

social ou de gênero. A prática do racismo ganhou, portanto, um novo conteúdo.

119A Constituição de 1988 em seu art. 5º, XLII, estabelece ser a “pratica do racismo” crime inafiançável e

imprescritível, sujeito a pena de reclusão.

120Neste ponto, vencidos os Ministros Marco Aurélio e Carlos Ayres de Britto.

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A superioridade dos Ministros considerou que o discurso de intolerância pode se

valer das mais variadas formas, entre elas a impressa, no caso dos livros. Defendem que

o problema não reside na edição do livro, mas sim na sua divulgação que visa atingir

um determinado grupo ou raça.

11. Explícita conduta do agente responsável pelo agravo revelador de

manifesto dolo, baseado na equivocada premissa de que os judeus não só são

uma raça, mas, mais do que isso, um segmento racial atávica e geneticamente

menor e pernicioso.

12. Discriminação que no caso se evidencia como deliberada e dirigida

especificamente aos judeus, que configura ato ilícito de prática de racismo,

com as consequências gravosas que o acompanham.

13. Liberdade de expressão. Garantia constitucional que não se tem como

absoluta. Limites morais e jurídicos. O direito à livre expressão não pode

abrigar em sua abrangência, manifestações de conteúdo imoral que implicam

ilicitude penal.

14. As liberdades públicas não são incondicionais, por isso devem ser

exercidas de maneira harmônica, observados os limites definidos na própria

Constituição Federal (CF, artigo 5o , parágrafo 2o , primeira parte). O

preceito fundamental de liberdade de expressão não consagra o ‘direito à

incitação ao racismo’, dado que um direito individual não pode constituir-se

em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os crimes contra a

honra. Prevalência dos princípios da dignidade da pessoa humana e da

igualdade jurídica (Ibidem, p. 2-3).

A maioria dos votos dos ministros reconheceu que o cerne da questão tratava do

conflito entre a liberdade de expressão do paciente e o direito à igualdade e à dignidade

do povo judeu e adotaram a prática alemã de ponderação dos princípios.

A questão foi analisada com muita clareza pelo voto do Min. Gilmar Mendes,

que denegou a ordem e fez amplo estudo de direito comparado aplicando o princípio da

proporcionalidade para equacionar as tensões e solucionar o conflito entre os direitos

fundamentais, hierarquizando os princípios e considerando a violação da dignidade

humana pela liberdade de expressão, no caso, proporcionalmente injustificável121.

Sem embargo, o Min. Marco Aurélio, também ao aplicar o princípio da

proporcionalidade, chegou ao resultado oposto entendendo que o ato do paciente ao

publicar livros de caráter antissemita estava protegido pela liberdade de expressão, já

que dentro de uma democracia também se garante a exteriorização de ideias

impopulares e minoritárias e como tal não configurava a prática de racismo. Ao passo

disso, ele reconhece que o sistema constitucional brasileiro não agasalha o abuso da

121Voto do Min. Gilmar Mendes in HC 82.424/RS.

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liberdade de expressão definindo essa afronta ao uso de meios violentos e arbitrários

para a divulgação do pensamento, porém defende que não existiria na sociedade

brasileira um ambiente sócio cultural receptível ao antissemitismo, já que na história

bibliográfica do país inexistem elementos sociais e culturais ou indícios dessa forma de

discriminação, por essa razão é que pautado na inexistência de ameaça grave o

suficiente a ponto de limitar a liberdade de expressão, decide deferir o habeas corpus.122

Evidentemente que a posição do Min. Marco Aurélio, dentro de uma sociedade

aberta, plural e democrática, faz-se importantíssima para proteger ideias e opiniões

impopulares. Ademais, ele esclarece a importância do direito à liberdade de expressão

notadamente com relação ao seu caráter instrumental, uma vez que ela funciona como

uma proteção da autodeterminação democrática da comunidade política e da proteção

da soberania popular.

Apesar disso, não concordamos com as suas conclusões. Ao revés do que

defende o exímio Ministro, pensamos que independentemente dos efeitos que a opinião

antissemita possa obter na esfera pública social brasileira a sua simples expressão

pública já viola o direito fundamental de suas vítimas.

Resta inegável, com base na denegação do habeas corpus e na fundamentação

da maioria dos votos dos Ministros julgadores, que para a superioridade da Corte

Constitucional a liberdade de expressão não abrange a intolerância racial e o estímulo à

violência, pois, se assim tutelasse, inúmeros outros bens jurídicos de base constitucional

estariam sacrificados na hipótese de se dar uma amplitude absoluta, inatingível à

liberdade de expressão na espécie. Nesse caso, o ônus imposto à liberdade de expressão

justificou-se na salvaguarda de uma sociedade pluralista que defende a tolerância.

Em assim sendo, parafraseamos Daniel Sarmento123, ao concordarmos que a

orientação do STF contrária à proteção constitucional do hate speech, que, aliás, vem

sendo seguida e aprofundada por outros tribunais inferiores, parece-nos correta e

louvável. Não obstante, deve haver um cuidado especial para que não se asfixie além da

conta a liberdade de expressão ainda que por propósitos elevados.

122Voto do Min. Marco Aurélio in HC 82.424/RS.

123SARMENTO, Daniel. Livres e Iguais. Estudos de direito constitucional. São Paulo: Editora Lumem Juris,

2010, p. 52.

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A posição vencida124 nesse julgamento considera que a liberdade de expressão

representa um dos pilares do Estado democrático de direito, exercendo um papel de

extrema relevância, consistindo, portanto, no direito de discurso, de opinião, de

imprensa, direito à informação e a proibição da censura.

Entende, a corrente derrotada na Corte Suprema, que a única limitação quanto ao

exercício da liberdade de expressão deve dar-se quanto à forma de expressão, ou seja, a

maneira como esse pensamento é difundido. A restrição só seria permitida nas situações

em que o cidadão utiliza meios violentos e arbitrários para divulgação do pensamento. É

legítima a restrição nos casos em que o indivíduo manifesta sua opinião de forma

exacerbada, agressiva e fisicamente contundente ou que exponha pessoas a situações de

risco iminente de ação concreta ilegal.

Evidente que os Ministros vencidos defendem a coexistência de diferentes

opiniões e ideias, mas não defendem, em nenhum momento, o caráter absoluto do

direito à liberdade de expressão, posto que não existe no sistema constitucional pátrio

direitos ou garantias fundamentais absolutas.

A maioria dos Ministros que denegou a ordem ao habeas corpus reconheceu

enorme relevância à liberdade de expressão nas sociedades democráticas, recordando as

justificativas filosóficas da sua proteção constitucional. Contudo, diferenciaram o

direito à liberdade de expressão do seu exercício abusivo, o qual restaria configurado

com a lesão à dignidade humana e à igualdade das vítimas do discurso violento,

discriminatório ou persecutório, ou seja, o entendimento majoritário do Supremo

Tribunal Federal, no julgamento do caso Ellwanger, orientou-se no sentido da

constitucionalidade da criminalização do discurso de ódio.

Não se trata de negar à liberdade de expressão toda a relevância que possui nas

sociedades democráticas, mas de admitir que o seu exercício legítimo exige o

estabelecimento de limites, no sentido de preservar a igualdade de consideração e de

respeito entre cidadãos que devem se reconhecer mutuamente como livres e iguais.

Como bem explica Milene Santos:

O princípio da laicidade estatal pressupõe o histórico e filosófico

compromisso dos Estados de Direito com a preservação da tolerância

religiosa e da convivência pacífica entre todos os cidadãos,

independentemente das crenças professadas. Nas democracias

124Os Ministros Marco Aurélio Mello e Carlos Ayres Brito discordaram da posição da maioria dos Ministros

do STF e tiveram seu posicionamento sobre o caso vencido na Corte.

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constitucionais, os discursos religiosos, como todos os discursos, encontram-

se sujeitos a limitações legais e legítimas, desde que embasadas na proteção

dos direitos fundamentais dos demais cidadãos, não podendo o Estado

ignorar o potencial lesivo de discursos hostis, intolerantes e discriminatórios,

não importando o “subsistema social” em que se manifestem. Como

decorrência dos compromissos constitucionais de manutenção da tolerância e

do pluralismo religioso, o Estado não pode se afirmar neutro em relação às

mensagens religiosas comunicadas pelos cidadãos, mas deve se colocar numa

posição de imparcialidade, sem endossar politicamente quaisquer crenças

religiosas, mas sem igualmente negligenciar o potencial impacto de seus

discursos nos direitos fundamentais dos demais cidadãos (SANTOS, 2017, p.

144, grifos nossos).

As limitações à liberdade de expressão são admitidas, mas devem ser feitas com

muita cautela para não recair em uma censura e findar por comprometer o regime

democrático limando a diversidade de opiniões e ideias. Os cidadãos têm o direito de

expressarem livremente as suas ideias de acordo com as suas convicções, sem impor um

determinado pensamento ou ideologia que se entenda o mais acertado para aquele

determinado momento.

Dentro do contexto social brasileiro e do seu sistema constitucional é que se

defende que os diversos discursos proselitistas merecem o reconhecimento estatal como

legítima manifestação da liberdade de expressão religiosa, contudo, se configurarem

discurso de ódio religioso, o Estado tem legitimidade de restringi-lo, a fim de preservar

os direitos fundamentais dos demais cidadãos e reafirmar seu compromisso com a

promoção da tolerância religiosa e convivência pacífica entre os cidadãos, assegurando

a ordem e segurança pública.

No histórico julgamento do Caso Ellwanger, o Supremo Tribunal Federal

estabeleceu precedente sobre a inconstitucionalidade do discurso de ódio racial,

considerando-o não abrangido pela proteção constitucional do direito fundamental à

liberdade de expressão, por força da lesão aos direitos à igualdade e à dignidade de suas

vítimas.

Nesses espeques, espera-se que a Corte faça o mesmo quando julgar casos de

proselitismos concretos garantindo a liberdade de expressão religiosa, sem olvidar que

essa liberdade pode mascarar discursos de ódio religiosos os quais são vedados pelo

sistema jurídico normativo, bem como pela jurisprudência.

Assim, no próximo capítulo deste trabalho será discutido, sob a ótica do

contexto histórico e cultural brasileiro, como a intolerância religiosa direcionada às

religiões de matriz africana são herança do nosso passado colonial que vem se

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perpetuando até os dias atuais e de que modo esse tratamento deve influenciar na

resolução dos conflitos que envolvem essa matéria.

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5 CONFLITOS ENTRE O NEOPENTECOSTALISMO E AS RELIGIÕES

AFRO-BRASILEIRAS: UMA VISÃO SOCIOLÓGICA E JURÍDICA

SOBRE O TEMA

O objeto central dessa pesquisa é a análise do discurso proselitista

neopentecostal com relação às religiões de matriz-africana, notadamente, no que tange

aos limites que podem legitimamente ser impostos à liberdade de expressão religiosa,

quando configurada como discurso de ódio religioso.

Nota-se que, no Brasil, a intolerância religiosa ocorre com todas as crenças

professadas na sociedade, porém, os casos de incomplacência vêm aumentando

consideravelmente e notadamente com relação àquelas religiões de matriz-africana,

como a umbanda e o candomblé. Os evangélicos estão em primeiro lugar entre os

protagonistas dos atos de agressão e/ou discriminação e isso justamente é o que vem

chamando atenção: a existência de um agressor típico que teria uma adesão religiosa

específica.

Pretende-se analisar o conteúdo da mensagem religiosa repassada aos fiéis da

Igreja Universal do Reino de Deus, especificamente a direcionada aos adeptos das

religiões de matrizes africanas, buscando constatar possíveis manifestações de

intolerância, discriminação, hostilidade, ódio ou violência. É claro que essa análise será

complexa, afinal, o conteúdo da mensagem religiosa é notadamente simbólico e repleto

de significados que nem sempre estão explícitos, para isso precisamos entender o objeto

central da crença neopentecostal e como isso atinge diretamente às religiões de matriz

africana.

5.1 O movimento neopentecostalista brasileiro e a Igreja Universal do Reino de

Deus (IURD)

O neopentecostalismo surgiu no início do século XX, nos Estados Unidos, e até

hoje vem crescendo em vários países, sobretudo na América Latina, onde se destaca o

Brasil que já abriga milhões de evangélicos, sendo o segundo maior grupo religioso do

país, perdendo apenas para os católicos.

As primeiras igrejas neopentecostais se instalaram no Brasil no século passado,

tendo logrado um avanço expressivo não apenas nos planos religioso e demográfico,

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como também nos campos midiático, político partidário, assistencial, editorial e de

produtos religiosos. Seus adeptos incluem todos os segmentos sociais incluindo pobres,

classes média, empresários, profissionais liberais, atletas, artistas e muitos outros. A

religião vem conquistando crescente visibilidade pública, legitimidade e

reconhecimento social.

A mais nova corrente do pentecostalismo no Brasil é o neopentecostalismo, que

teve início na segunda metade dos anos de 1970, ganhando mais força e visibilidade nas

décadas seguintes. A Igreja Universal do Reino de Deus, que foi criada no Rio de

Janeiro, em 1977, bem como a Internacional da Graça de Deus, fundada também no Rio

em 1980, a Comunidade Evangélica Sara Nossa Terra, em Goiás em 1976, e a Renascer

em Cristo, em São Paulo em 1986, constituem as principais igrejas neopentecostais do

país.

No plano teleológico, os ditos novos cristãos caracterizam-se por enfatizar a

guerra espiritual contra o Diabo e seus representantes na terra, por pregar a Teologia da

Prosperidade, difusora da crença de que o cristão deve ser próspero, saudável, feliz e

vitorioso em seus empreendimentos terrenos, e por rejeitar usos e costumes de santidade

pentecostais, tradicionais símbolos de conversão e pertencimento ao pentecostalismo.125

Das três vertentes pentecostais existentes126, o neopentecostalismo compõe a

“terceira onda” do pentecostalismo brasileiro e é a vertente pentecostal que mais cresce

atualmente, sendo encabeçada pela Igreja Universal do Reino de Deus.

A Igreja Universal ocupa grande espaço na televisão brasileira, seja como

proprietária de emissoras de TV, seja como produtora e difusora de programas de

televangelismo. Como coloca Mariano127, a Universal faz parte de uma linha mais

liberal da corrente pentecostalista que rompeu com suas características ascetas

tradicionais permitindo aos fiéis, por exemplo, vestir roupas da moda, usar cosméticos,

frequentar praias, piscinas, cinemas, teatros, torcer por times de futebol, praticar

esportes variados, assistir à televisão e vídeos, tocar e ouvir diferentes ritmos musicais,

acomodando-se à sociedade atual, seus valores, interesses e práticas. Porém, a

125MARIANO, Ricardo. Expansão pentecostal no Brasil: o caso da Igreja Universal. São Paulo: Estudos

Avançados, 2004, p. 124.

126Os pesquisadores dividem o movimento pentecostalismo brasileiro em três, classificados com base em

critérios históricos de implantação de igrejas, em distinção teleológicas e comportamentais, são: o

pentecostalismo clássico, o deuteropentecostalismo e o neopentecostalismo.

127MARIANO, op. cit., p. 124-125.

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interdição ao consumo de álcool, tabaco e drogas e ao sexo extraconjugal e

homossexual ainda restam vedados.

Os neopentecostais valorizam a prosperidade financeira, a saúde, a inserção e o

reconhecimento social, o êxito e o prazer nos relacionamentos amorosos, o poder

político e a respeitabilidade confessional de seus adeptos e pastores. Fazem pregações a

multidões, nas quais valorizam a cura, dão importância a força sobrenatural dos

espíritos e realizam sessões de exorcismo. Seus líderes se mostram sempre fortes e

carismáticos e pregam o anticatolicismo, o antiecumenismo e combatem

primordialmente os demônios que são supostamente cultuados nas religiões espíritas e

afro-brasileiras.

O proselitismo neopentecostal oferta o sucesso àquele que recorrer às forças

sobrenaturais. Seus cultos basearem-se na oferta especializada de serviços mágico-

religiosos, de cunho terapêutico e taumatúrgico, centrados em promessas de concessão

divina de prosperidade material, cura física e emocional e de resolução de problemas

familiares, afetivos, amorosos e de sociabilidade. Acabam por atrair e converter

majoritariamente indivíduos dos estratos mais pobres da população, geralmente carentes

e vulneráveis a esse tipo de prática.

Dentro do que é pregado pela IURD (Igreja Universal do Reino de Deus), as

religiões “concorrentes” são apontadas frequentemente como ineficientes, demoníacas e

responsáveis pelos infortúnios vivenciados pelos seres humanos. Diferentemente de

outras igrejas, cuja evangelização enfatiza a difusão do ensino doutrinário ou

transmitem sermões ou preleções teológicas, a Universal destaca o poder transformador

de Deus dando ênfase na oferta e difusão de serviços e crenças mágico-religiosas que se

parecem em muito com as práticas das religiões afro-brasileira.

Dentre todas as características da crença neopentecostal, ela possui três aspectos

fundamentais, que se inter-relacionam e se complementam. Acreditam na existência de

uma guerra espiritual entre os seguidores de Cristo e os adoradores do Diabo128 e

reconhecem que os seguidores do evangelho, considerados filhos de Deus, apenas

podem gozar, ainda na vida terrena, de todos os benefícios e bênçãos oferecidos por sua

divindade se realizarem o correto pagamento dos dízimos e ofertas exigidas pela

128A crença neopentecostal preceitua que os seguidores de cristo, os anjos e os evangélicos, devem

combater os adoradores do diabo que na visão deles são os orixás e entidades das religiões afro-

brasileiras, bem como aos candomblecistas e umbandistas.

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igreja129. Ademais, a IURD se caracteriza por ser uma igreja mais flexível e não

sustentar os ultrapassados e estereotipados usos e costumes de santidade.

Dentre todas essas características enfocaremos, primordialmente, na relevância

para os evangélicos, de uma guerra espiritual entre cristo e o diabo e seus anjos

decaídos, uma vez que este é o conteúdo de proselitismo que constitui o cerne do

confronto entre o neopentecostalismo e as religiões afro-brasileiras.

5.2 Teologia neopentecostal da guerra espiritual

Na história do Brasil, a demonização dos deuses africanos não constitui uma

novidade. Uma vez que os cristãos católicos e protestantes que carregam a herança da

colonização portuguesa no Brasil e dos projetos evangelizadores da Igreja Católica, há

séculos, demonizam os deuses, símbolos e rituais sagrados das religiões afro-brasileiras.

Contudo, tal rejeição, fruto de um embate cultural e religioso, modificou-se

completamente, com a conversão sincrética dos deuses africanos com os santos

católicos, de modo que, apesar de permanecerem muitos estigmas acerca das religiões

de matriz africana, estas não vinham sofrendo ataques diretos à sua liberdade de crença

até a ascensão das igrejas neopentecostais no país.

Como ensina o sociólogo Ricardo Mariano130, os evangélicos identificam as

entidades da Umbanda, os deuses do Candomblé e os espíritos do Kardecismo como

demônios, mas os neopentecostais vão mais além, os colocam como os responsáveis

pelos infortúnios e sofrimentos do mundo, justificando, assim, o combate à macumba,

aos exus, guias e orixás.

A Igreja Universal do Reino de Deus enfatiza uma rivalidade por meio de uma

doutrina de antagonismo hierárquico entre Deus (bem) e o Diabo (mal), propondo, para

tanto, um papel ético para a religião - o da guerra contra a representação dos demônios

materializada nos deuses adorados pelas religiões afro-brasileiras. Assim, objetivam

disseminar os ensinamentos bíblicos sobre as ações maléficas desses “demônios”;

129A Teologia da Prosperidade prega que por meio do correto relacionamento com o Criador, o filho de

Deus pode usufruir todas as suas bênçãos inestimáveis e abundantes: cura emocional e física,

prosperidade financeira e realização profissional, harmonia nos relacionamentos familiares, êxito nos

relacionamentos amorosos e interpessoais. O cristão está destinado a ser próspero, feliz e saudável na

vida terrena. Para tanto, deve frequentar uma igreja evangélica, ser fiel no pagamento dos dízimos e

generoso nas ofertas, pois só assim poderá exigir de Deus o cumprimento das suas promessas.

130MARIANO, Ricardo. Expansão pentecostal no Brasil: o caso da Igreja Universal. São Paulo: Estudos

Avançados, 2004, p. 115.

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libertar aqueles fiéis “possuídos” através dos rituais de exorcismo e salvar a alma das

pessoas das forças demoníacas da humanidade por meio da evangelização e conversão

religiosa.

A IURD prega que a principal missão de sua igreja é a libertação da humanidade

dos males dos demônios, pois seriam eles os responsáveis pelo sofrimento humano.

Para isso, utiliza-se de práticas mágico-religiosas, propondo-se a solucionar problemas

físicos, emocionais, financeiros e espirituais dos fiéis mediante seus serviços religiosos,

dentre os quais, destacam-se os rituais de “descarrego” e “libertação” que parecem em

muito com as práticas das religiões afro.

Em razão de tais práticas, Ricardo Mariano131 entende que a Universal é uma

igreja que “rearticula sincreticamente no seu próprio interior crenças e práticas rituais

dos seus adversários”, do mesmo modo que, para Ronaldo de Almeida, a IURD se

constitui como uma igreja que se situa “a um meio caminho entre os evangélicos e as

religiões afro-brasileiras”132. Entendimento este que se complementa a lição de Ari

Pedro Oro133, segundo o qual, a Universal “é uma igreja que construiu seu repertório

simbólico, suas crenças e ritualísticas incorporando e ressemantizando pedaços de

crenças de outras religiões, mesmo de seus adversários”.

Ainda no esteio de Ari Pedro Oro134, compreende-se que a Igreja Universal tem

três características primordiais; a) a religiofagia, ou seja, apropriar-se de elementos

simbólicos de outras religiões e os ressignificar consoantes às crenças e valores cristãos;

b) a exacerbação, isto é, conferir primordial relevância à guerra espiritual contra os

demônios cultuados em outras crenças, em especial nas espíritas e; c) a prática da

macumba, valendo-se de rituais e práticas mágicas características das religiões afro-

brasileiras.

A Universal sincretiza crenças, ritos e práticas das religiões concorrentes, de

modo que do catolicismo incorporou as noções de milagre, inferno, pecado, demônio, e

sua forma de atuação episcopal. Entretanto, como se sabe, a IURD é uma igreja na qual

131MARIANO, Ricardo. Expansão pentecostal no Brasil: o caso da Igreja Universal. São Paulo: Estudos

Avançados, 2004, p. 127.

132ALMEIDA, Ronaldo de. A Igreja Universal e seus demônios: um estudo etnográfico. São Paulo:

Editora Terceiro Nome, 2003, p. 340.

133ORO, Ari Pedro. Intolerância religiosa iurdiana e reações afro no Rio Grande do Sul. In: Intolerância

religiosa. Impactos do neopentecostalismo no campo afro religioso brasileiro. São Paulo: EdUSP,

2007, p. 33.

134Ibid., 2007, p. 29-30.

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o exorcismo e a demonização das entidades afro-brasileiras ocupa um lugar central no

seu discurso e em sua ritualística cotidiana.

Com ensina Mariano135, a igreja realiza “sessão espiritual de descarrego”,

“fechamento de corpo”, “corrente da mesa branca”, retira “encostos”, desfaz “mau-

olhado”, asperge os fiéis com galhos de arruda molhados em bacias com água benta e

sal grosso, substitui fitas do Senhor do Bonfim por fitas com dizeres bíblicos,

evangeliza em cemitérios durante o Dia de Finados, oferece balas e doces “ungidos” aos

adeptos no dia de Cosme e Damião, lembrando as práticas religiosas das religiões afro.

Nas sessões “descarrego” e “libertação”, os ditos demônios são convidados a se

manifestarem no corpo dos fiéis possuídos, e como pode ser visto no interior dos

templos da IURD e nos canais de televangelização, os crentes em transe normalmente

identificam-se como deuses (orixás) ou entidades (especialmente Exus e Pombagiras)

cultuados nas religiões afro-brasileiras. Assim, os cultos de libertação são dedicados a

combater os demônios que habitam os terreiros dessas religiões, que após confessarem

seus pecados são exorcizados e humilhados pelos pastores.

No momento do culto, o pastor convida os fiéis a refletirem sobre seus

problemas e a orar fervorosamente, suplicando a expulsão dos demônios que estariam

causando tamanho sofrimento. Ronaldo de Almeida descreve que durante as sessões de

descarrego:

As entidades, por sua vez, não demoram a responder. Do meio do público,

ecoam gritos agudos indicando que alguns foram possuídos. O momento é de

profunda tensão, pois, conforme a oração vai se realizando, diversos

demônios vão se manifestando em meio àquela multidão. Algumas pessoas

chegam a bater os pés no chão – pés que foram “ungidos com óleo” na

entrada do templo e devem, segundo as palavras do pastor, naquele instante

pisar a cabeça do diabo – e, de forma tensa, repetem várias vezes em voz alta:

‘Sai de mim, demônio!’ (2003, p. 84).

Enquanto o fiel permanece em um estado de semiconsciência, quem conversa

com os pastores são espíritos malignos. O bispo interroga o demônio que normalmente

se identifica como uma entidade cultuada pelas religiões afro. Ao serem possuídos, os

fiéis emitem gritos agudos, giram seus corpos, cruzam os braços em suas costas, giram

as mãos e os dedos, e os pastores impõem suas mãos sobre os possessos na tentativa de

exorcizá-los e expulsar o mal que aquele demônio está causando na vida do fiel.

135MARIANO, Ricardo. Expansão pentecostal no Brasil: o caso da Igreja Universal. São Paulo: Estudos

Avançados, 2004, p. 133.

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Quando explica como esses “demônios” se apoderam das pessoas, Edir

Macedo136 deixa claro que isso ocorre por meio do contato com as religiões afro-

brasileiras - por parte do fiel ou de seus familiares -, ou mediante a realização de um

feitiço por um inimigo.

Os demônios que causam o sofrimento são as mesmas entidades que habitam os

terreiros de Umbanda e Candomblé, o que reflete, não somente a ‘manifestação’ do

diabo, mas, acima de tudo, a associação deste com as divindades que são cultuadas por

parcela significativa da população brasileira.137

Na realidade, orixás, caboclos e guias, sejam lá quem forem, tenham lá o

nome mais bonito, não são deuses. Os exus, os pretos-velhos, os espíritos de

crianças, os caboclos ou os "santos" são espíritos malignos sem corpo,

ansiando por achar um meio para se expressarem neste mundo, não podendo

fazê-lo antes de possuírem um corpo. Por isso, procuram o corpo humano,

dada a perfeição de funcionamento dos seus sentidos. (MACEDO, 1990, p.

14).

É comum que, durante a entrevista com o pastor, as entidades das religiões afro-

brasileiras, aqui tratadas como espíritos demoníacos, sejam vítimas de humilhação,

escárnio e deboche, com o objetivo de demonstrar que o Deus cultuado pela Igreja

Universal é superior às divindades afro-brasileiras, bem como que os pastores, por

serem abençoados pelo Espírito Santo, têm o poder de atuar sobre os espíritos malignos

que ao serem exorcizados “em nome de Jesus” queimarão no fogo do inferno operando

a libertação.

O discurso demonizador é cercado de expressões beligerantes como “guerra”,

“poder”, “vitória”, “marchar”, “combate”, “Jesus é nosso general”. Ricardo

Mariano138, ao analisar os escritos do bispo Edir Macedo, confere especial relevância

aos discursos agressivos dos neopentecostais.

Evidente que a demonização neopentecostal reconhece a existência dos deuses

afro-brasileiros, contudo, submete-os ao maniqueísmo valorativo cristão,

desconsiderando suas nuances e especificidades simbólicas. Ademais, reforça

136MACEDO, Edir. Orixás, Caboclos e Guias: deuses ou demônios?. Rio de Janeiro: Unipro. 1990, p. 14.

137Ibid., 1990, p. 89.

138MARIANO, Ricardo. Expansão pentecostal no Brasil: o caso da Igreja Universal. São Paulo: Estudos

Avançados, 2004, p. 125.

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preconceitos e estereótipos historicamente associados às religiões afro-brasileiras

devido à herança satanizadora e persecutória do catolicismo.

A adoção de ritos e práticas fundados na teologia de uma guerra espiritual,

constitui estratégia proselitista que tem sido mantida, intensificada e até diversificada

em razão de sua eficácia.

A marcha proselitista da IURD, fundada na teologia de existência de uma guerra

espiritual, tem objetivos expansionistas e alvos institucionais manifestos, o

apoderamento do maior número de fiéis, no Brasil e no exterior; e a imposição de seu

poder religioso sobre as demais denominações religiosas concorrentes, mediante a

conquista de postos governamentais, legislativos, judiciais, educacionais e midiáticos.139

Apesar do sincretismo das práticas da Universal com outras religiões,

notadamente às de matriz-africana, isso não levou a suprimir do proselitismo da IURD a

intolerância nem sua notória hostilidade aos cultos afro-brasileiros. Daí uma das

principais razões de seu envolvimento em diversos incidentes e conflitos religiosos ao

longo dos anos.

5.3 Entre o amém e o axé: expectativa de uma resolução de conflitos

A Igreja Universal do Reino de Deus e seus dirigentes sempre estiveram no

centro de intensas controvérsias envolvendo práticas no campo religioso, empresarial,

midiático, policial, judicial e político. São os métodos de arrecadação do dízimo, a

prática de vilipêndio a cultos religiosos, a agressão física contra adeptos de religiões

afro-brasileiras, os seus investimentos empresariais milionários, a compra de emissoras

de rádio e de TV para a prática de televangelismo e radioevangelismo, a criação de

gravadoras e editoras, os inquéritos policiais e processos contra a igreja e seus líderes e

muitas outras polêmicas.

Em meio a todas essas polêmicas, a que concentra o nosso estudo é a prática

proselitista que estimula a intolerância religiosa contra os cultos afro-brasileiros, que

através do discurso de ódio incitam a violência física e psicológica de seus adeptos.

139MARIANO, Ricardo. Pentecostais em ação: demonização dos cultos afro-brasileiros. In: Intolerância

religiosa. Impactos do neopentecostalismo no campo religioso afro-brasileiro.

São Paulo: EDUSP, 2007, p. 137-138.

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Os neopentecostais intolerantes abraçam a crença da necessidade de um

confronto entre os Orixás das entidades afro-brasileiras com o Espírito Santo, nos rituais

de descarrego e libertação. Ao passo disso, torna-se crescente o número de denúncias de

candomblecistas e umbandistas contra agressões físicas e simbólicas consideradas

extremamente graves e ofensivas às suas crenças, rituais e sentimentos religiosos.

Os membros das religiões afro se sentem relativamente impotentes diante da

agressividade iurdiana, não somente no campo religioso, mas também no campo

político, em razão da fraca representatividade e poucos defensores nessa área, e no

campo jurídico, em razão da liberdade de expressão religiosa sempre invocada pela

Universal quando acusada de disseminar intolerância religiosa, mantendo-se o Estado

neutro em relação ao campo religioso.140

Como pondera Vagner da Silva141, os casos concretos de intolerância religiosa

dos neopentecostais contra os umbandistas e candomblecistas deixaram de ser

episódicos e tornaram-se volumosos, acarretando reações mais contundentes do povo-

de-santo. Não é incomum tomarmos conhecimento de manifestações de repúdio por

parte de membros da Umbanda e do Candomblé contra os atos de hostilidade e

vilipêndio praticados pelos crentes evangélicos contra suas religiões e seus adeptos.

Os ataques dos neopentecostais contra as religiões afro-brasileiras se

materializam em ofensas proferidas nos cultos religiosos dos novos evangélicos e em

seus meios de divulgação e proselitismo; ataques realizados em sessões religiosas de

seitas afro-brasileiras realizadas em locais públicos; agressões contra terreiros e seus

membros; ataque aos símbolos e deuses das religiões afro; dentre outros.

As religiões de matriz africana, como instrumento de defesa, recorrem

corriqueiramente a várias instâncias da sociedade, à mídia, denunciando ações de

intolerância religiosa a jornais televisivos, revistas, rádio, internet; ao poder executivo,

que por meio das ouvidorias da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial

(SPPIR) e da Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH) recebem denúncias de

intolerância religiosa contra as religiões de matrizes africanas e cobram providências

dos órgãos e instituições competentes, de acordo com o caso concreto; e ao poder

140ORO, Ari Pedro. Intolerância religiosa iurdiana e reações afro no Rio Grande do Sul. In: Intolerância

religiosa. Impactos do neopentecostalismo no campo religioso afro-brasileiro

São Paulo: EDUSP, 2007, p. 52.

141SILVA, Vagner Gonçalves da. Prefácio ou Notícias de uma guerra nada particular: os ataques

neopentecostais às religiões afro-brasileiras e aos símbolos da herança africana no Brasil. In:

Intolerância religiosa. Impactos do neopentecostalismo no campo religioso afro-brasileiro

São Paulo: EDUSP, 2007, p. 9-24.

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judiciário, considerado um dos meios mais eficazes na luta contra a intolerância

religiosa, ajuizando ações civis e penais contra o discurso de demonização

neopentecostal. Porém, nem sempre essas instâncias de proteção contra o discurso de

ódio neopentecostal são eficientes.

Um das mais recentes polêmicas em torno do tema foi um caso de intolerância

religiosa que adveio do próprio poder judiciário, que se desvencilhou completamente da

neutralidade Estatal para aplicar sentença de cunho preconceituoso. Foi o caso do Juiz

titular da 17ª Vara Federal do Rio de Janeiro, Eugênio Rosa de Araújo, que negou

pedido de retirada de vídeos do YouTube gravados durante cultos evangélicos, com

mensagens de intolerância contra religiões afro-brasileiras. O magistrado dizia na

sentença que Candomblé e Umbanda não são religiões afirmando que:

No caso, ambas manifestações de religiosidade não contêm os traços

necessários de uma religião a saber, um texto base (corão, bíblia etc.)

ausência de estrutura hierárquica e ausência de um Deus a ser venerado(...)As

manifestações religiosas afro-brasileiras não se constituem em religiões,

muito menos os vídeos contidos no Google refletem um sistema de crença –

são de mau gosto, mas são manifestações de livre expressão de opinião.142

Ele acabou voltando atrás, mas não conseguiu apaziguar os ânimos. Dias depois,

representantes das religiões de matriz africana de diferentes estados viajaram a Brasília

para cobrar de autoridades o respeito aos direitos de crença.143

Contudo, nem todos os casos de intolerância religiosa denunciados ao judiciário

brasileiro pelas religiões afro são marcados pela derrota. Vem da Bahia a ação judicial

contra a IURD que teve a maior repercussão.

O juiz da 17ª Vara cível de Salvador assinou sentença que obrigava a Universal

a indenizar os familiares de Mãe Gilda, do Terreiro Ilê Axé Abassá de Ogum, em um

milhão e 372 mil reais, por danos morais, em razão da publicação da foto da

mencionada mãe de santo ter sido veiculada indevidamente no jornal Folha Universal.

142JUSTIÇA FEDERAL. Seção Judiciária do Estado do Rio de Janeiro. 17ª Vara Federal do Rio de

Janeiro. Ação Civil Pública. Processo nº 0004747-33.2014.4.02.5101. Autor: Ministério Público

Federal. Réu: Google Brasil Internet Ltda. Decisão. 24/04/2004. Fls. 153/155.

143Decisão do juiz titular da 17ª Vara Cível da comarca do Rio de Janeiro que negou pedido de

antecipação de tutela feito pelo MPF-RJ solicitando a retirada de vídeos de conteúdo preconceituoso,

intolerante e incitador de ódio gravados nos interiores da Igreja Universal do Reino de Deus e que

atacam diretamente as religiões de matriz-africana nos autos da Ação Civil Pública nº 0004747-

33.2014.4.02.5101.

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O Jornal teve uma tiragem exata de um milhão e 372 mil jornais (mesmo

montante que a decisão judicial estabeleceu a título de indenização) e veiculou a foto da

mãe de santo com uma tarja preta no rosto em matéria que levava o titulo de

“Macumbeiros e Charlatões lesam o bolso e a vida dos clientes”. A foto ainda foi

reproduzida pelo jornal em uma matéria da Revista Veja, de grande circulação no país,

em que Mãe Gilda aparece com suas roupas de sacerdotisa numa manifestação pelo

impeachment do então presidente Fernando Collor.

Três meses após a difusão da matéria da Folha Universal, Mãe Gilda faleceu de

profunda tristeza. Atualmente, o dia 21 de janeiro, dia de seu falecimento, tornou-se

“Dia de Combate a Intolerância Religiosa”144 no município de Salvador.

Em segunda instância, a vitória do povo de santo se concretizou tendo o

Tribunal do Estado da Bahia confirmado a sentença de primeiro grau em acórdão que

apenas diminuiu o montante do valor da condenação, sentenciando a Igreja Universal e

a Editora Gráfica Universal a pagar R$ 960 mil reais a herdeira da mãe de santo.

Essa decisão fora emblemática, pois foi considerada uma grande conquista na

luta das religiões africanas contra a intolerância religiosa que vem perseguindo o

Candomblé e a Umbanda nos últimos anos, inclusive na Bahia, considerada o berço da

cultura negra no Brasil.

Outro caso recente de violência institucional absurda que vem acometendo as

religiões da diáspora advém da maneira como está se dando a governança de Marcelo

Bezerra Crivella no município do Rio de Janeiro, que segue operando em total

desrespeito à liberdade religiosa e à laicidade do Estado. Investigações que estão sendo

apuradas e processadas pelo Ministério Público do Estado revelam que o atual

administrador municipal tende a privilegiar seu segmento religioso145, bem como de

forma sutil, perscrutar informações a respeito da religião professada pela população e pelo

funcionalismo público.

Uns dentre os inúmeros atos do Prefeito que causam espanto à imparcialidade da

Administração são o corte de patrocínio destinados à eventos religiosos146 e controle de

144Mãe Gilda faleceu em 21 de Janeiro de 2000. O Projeto de autoria da então vereadora Olívia Santana do

PCdoB culminou na criação da lei municipal nº 6.464/04 que instituiu 21 de janeiro, no município de

Salvador, como Dia Oficial do Combate a Intolerância Religiosa.

145Prefeito Marcelo Crivella é bispo licenciado da Igreja Universal do Reino do Deus.

146Inquéritos civis do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro nº 2017.01281777 e 2017.01265298.

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eventos com poder de veto diretamente pelo gabinete do Prefeito147, práticas

discriminatórias que têm atingido exclusivamente as religiões de matriz afro.

São inúmeros os acontecimentos públicos que atestam a gravidade do conflito

entre os seguidores das religiões de matriz africana e os neopentecostais. Os casos

concretos de intolerância religiosa denunciados vão de insultos à violência física,

passando por invasões de terreiros e até recusa de fazer negócios, e demonstram total

repúdio aos símbolos e objetos sagrados de culto afro-brasileiro, que são demonizados

e, por vezes, destruídos por evangélicos.

Para mais, discursos extremamente ofensivos são reiteradamente proferidos

contra os deuses e entidades cultuados nas religiões afro-brasileiras, não somente nos

espaços sagrados das religiões de matrizes africanas (os terreiros, roças e centros de

umbanda), mas principalmente nos espaços públicos civis, sejam eles físicos (escolas,

ruas, praças, meios de transporte coletivo, etc.), ou virtuais (emissoras de rádio e

televisão, sítios eletrônicos).

Adiante, pretende-se analisar caso concreto em trâmite no judiciário brasileiro e

refletir sobre as possíveis limitações ao discurso de ódio proselitista expressado pela

Igreja Universal do Reino de Deus, na medida em que atinge os seguidores e a crença

das religiões afro-brasileiras.

147O Inquérito civil do Ministério Público do MPRJ nº 2017.00809960 investiga o Decreto 43.219/2017

baixado pelo prefeito.

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6 A CONTROVÉRSIA JUDICIAL E SEU DESENVOLVIMENTO NOS

TRIBUNAIS.

Em 2005, o Ministério Público Federal do Estado da Bahia propôs Ação Civil

Pública contra os réus Edir Macedo, Editora Gráfica Universal Ltda e Igreja Universal

do Reino de Deus, com vistas a retirar de circulação, em todo território nacional, o livro

Orixás, Caboclos e Guias: deuses ou demônios?, de autoria do bispo Edir Macedo,

fundamentalmente sob a acusação de que seu conteúdo constitui instrumento de

intolerância religiosa às religiões afro-brasileiras.

O parquet, em sua peça inicial, destaca a inconstitucionalidade da obra

neopentecostal selecionando trechos que evidenciam a violação ao direito à liberdade

religiosa de candomblecistas, quimbandistas e umbandistas. É como destaca:

Da leitura acurada de referida obra percebe-se, de plano, o quão se encontra

impregnada de afirmativas preconceituosas e discriminatórias desferidas

contra outras formas de manifestações religiosas e credos, em especial aos

cultos afro-brasileiros, tão disseminados em nosso país – alcançando,

também diretamente, os seus seguidores.148

O parquet salientou que o autor da obra se dedica a “promover ofensas às

religiões afro-brasileiras, sempre a elas se referindo com menosprezo, discriminação e

preconceito”149, apresentando-as como “seitas demoníacas”, “modo pelo qual o

demônio age na face da Terra”, “canais de atuação dos demônios”, dentre outras

expressões que objetivam retratá-las como uma facção do mal, associando-as sempre ao

diabo.150

O Ministério Público denuncia a demonização das doutrinas, deuses e símbolos

sagrados das religiões afro brasileiras:

Chega-se ao ponto de se responsabilizar a Umbanda, o Candomblé e a

Quimbanda pela destruição do ser humano, ad litteris: […]

Os orixás, caboclos e guias na realidade nunca fazem bem em favor de seu

‘cavalo’. Exigem obediência irrestrita e ameaçam de punição aquele que não

estiver ‘andando na linha’. Vivem sempre castigando seus seguidores e não

148JUSTIÇA FEDERAL. Seção Judiciária do Estado da Bahia. 4ª Vara Federal de Salvador. Ação Civil

Pública. Processo nº 0022878-69.2005.4.01.3300. Autor: Ministério Público Federal. Réus: Edir Macedo

Bezerra; Igreja Universal do Reino de Deus e Editora Gráfica Universal Ltda. Inicial. Fls. 04.

149Ibid., Fls. 04.

150Ibid., Fls. 05.

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têm benção alguma para dar. A alma da mãe de santo, por exemplo, é vendida

ao orixá. Há a chantagem diabólica nesse meio que obriga a pessoa que ‘faz o

santo’ a renunciar, enquanto vive, a todas as coisas, inclusive a própria

salvação

[…]

É aí que entra a Umbanda, a Quimbanda, Candomblé e as religiões e práticas

espíritas de um modo geral, que são os principais canais de atuação dos

demônios, principalmente em nossa pátria.

[...]

No Brasil, em seitas como o Vodu, Macumba, Quimbanda, Candomblé e

Umbanda, os demônios são adorados, agradados e servidos como verdadeiros

deuses 151

Também evidencia as ofensas desferidas às práticas religiosas de matriz afro das

quais o autor, Edir Macedo, associa a prática de atos ilícitos e imoralidade, além de

ofensa contra a religião espírita, que o bispo associa a doenças físicas e mentais e ao uso

de entorpecentes:152

Dando continuidade a manifestações de cunho preconceituoso,

discriminatório e pejorativo, presentes em praticamente toda a obra, o réu

Edir Macedo acrescenta que os adeptos das religiões afro-brasileiras, ao

cultuar os seus deuses, o fazem com o objetivo de buscar algo ilícito ou

imoral: Na Quimbanda, os deuses são os exus, os quais são adorados e servidos no

intuito de se alcançar alguma vantagem sobre um inimigo ou alguma coisa

imoral, como conquistar a mulher ou o marido de alguém, obter favores por

meios ilícitos, etc. A pomba-gira causa em muitas mulheres o câncer de útero, ovário, frigidez

sexual e outras doenças. À sua atuação atribui-se comportamentos ligados às

práticas sexuais ilícitas e outras situações ligadas à sensualidade pecaminosa. Muitas pessoas que têm chegado doentes às nossas reuniões saem curadas

após terem expulsado de suas vidas os exus, caboclos, orixás e todo tipo de

demônios que habitavam nelas. (...) Os demônios só não levam todos os seus

seguidores à loucura porque não haveria quem espalhasse as suas doutrinas

infernais. Caso não houvesse essa necessidade, todos os que praticam o

espiritismo seriam irremediavelmente débeis mentais. 153

Além disso, destaca as incitações diretas ou indiretas ao candomblé,

promovendo a intolerância e a discriminação contra todas as formas de espiritismo:

151Ibid., Fls. 05 e 06.

152“Derradeiramente, de forma despropositada, compara os rituais das religiões afro-brasileiras com a

iniciação no uso de entorpecentes: No espiritismo, de modo geral, é assim. A pessoa vai descendo

sempre. A tendência é se atolar mais e mais no lamaçal do diabo; tudo sorrateiramente. Começa-se no

alto, faz-se limpeza, caridade, vai-se aprofundando. Depois diz-se que a pessoa já está bastante

“evoluída” e pode prestar caridade aos espíritos atrasados e aí, sem que perceba, muitas vezes

pensando estar fazendo algo bom, começa o envolvimento direto ou indireto com as piores classes de

demônios. É semelhante à iniciação no mundo das drogas: experimentação, uso e tráfico. (fl. 85).

(grifos nossos).” (Fls. 11).

153Ibid., Fls. 07 e 08.

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(...) Não se contentando com as afirmações proferidas em desrespeito aos

cultos africanos, o primeiro réu estimula os leitores a combater (!) certas

formas de manifestações religiosas – fazendo referência, desta feita, também

ao espiritismo e às religiões orientais – a fim de expulsar “os exus e cia.

Ilimitada” da vida das pessoas, confira-se: Você entenderá então porque combatemos o espiritismo e suas ramificações

com todas as nossas forças. Essa religião tão popular no Brasil é uma fábrica

de loucos e uma agência onde se tira o passaporte para a morte e uma viagem

para o inferno”. Amigo leitor, comece hoje mesmo a exercer a autoridade que Jesus lhe

confere. Não abra mão dos seus direitos; não deixe de lado o que o Senhor

lhe concedeu; agarre-se com unhas e dentes às bênçãos de Jesus e pise na

cabeça dos exus e Cia ilimitada. (...) Tendo esta certeza e convicção, pode partir para cima dos exus, caboclos

e expulsá-los das vidas das pessoas. 154

O Ministério Público Federal não enxergou como legítima às críticas realizadas

pelo bispo Edir Macedo, com base em sua teologia aduzindo que:

(...) da leitura atenta dos inúmeros fragmentos transcritos percebe-se

claramente que o primeiro réu, de forma direta e incisiva, busca induzir e

incitar, por meio de publicação literária, patrocinada pelos segundo e

terceiros réus, a discriminação e o preconceito em desfavor do Candomblé,

da Quimbanda, e da Umbanda, além de outras formas de manifestações

religiosas, em flagrante violação ao princípio da liberdade religiosa,

consagrado pela Constituição Federal.155

Em seus fundamentos, o parquet entende que apesar do livro Orixás, Caboclos e

Guias: deuses ou demônios?, consistir em livre manifestação de pensamento religioso,

ou seja, em proselitismo religioso, nada impede que sua livre circulação seja restringida

com justificativas em seu conteúdo manifestamente preconceituoso e incitador de ódio.

Dentro do gênero liberdades religiosas, convêm destacar ainda o que a

doutrina denomina de liberdade de comunicação das ideias religiosas.

Corolário do dispositivo no artigo 5º da Constituição Federal pode ser

definida como a transmissão de catequeses a terceiros, geralmente com

propósito de convertê-los a religião daquele que faz a pregação. Trata-se,

pois, do proselitismo religioso. Enfim, a liberdade de crença não é absoluta, pois não abarca, obviamente, a

liberdade de embaraçar o exercício de qualquer religião.156

Destaca ainda que a liberdade de religião, como forma de manifestação de

pensamento, não pode servir de instrumento para encobrir condutas ilegais. O

154Ibid., Fls. 09.

155Ibid., Fls. 11.

156Ibid., Fls. 16.

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proselitismo religioso encontra limites na proteção dos bens jurídicos dos demais

cidadãos, ainda mais, quando o que está em jogo são direitos humanos fundamentais:

Também não é plena a liberdade de comunicação das ideias religiosas. Com

efeito, o artigo 208 do Código Penal sanciona aquele que ‘escarnecer de

alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa’ ou

‘vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso’. Por sua vez, o

artigo 20 da Lei 7.716/89, que define os crimes resultantes de preconceito de

raça ou de cor, pune a conduta de ‘praticar, induzir ou incitar a discriminação

ou preconceito de religião’. (...) A liberdade de religião, como forma de

manifestação do pensamento – princípio em que devem se apoiar os réus para

justificar as suas condutas desmedidas e ofensivas –, deve ser interpretada em

seu exato sentido, não podendo servir de instrumento para ‘acobertar’

condutas ilegais.157

Ademais, o parquet, ao destacar a importância e contribuição das religiões afro-

brasileira ao desenvolvimento da cultura nacional, esclarece que qualquer manobra

tendente a discriminar essas religiões, além da ofensa à liberdade de escolha da crença,

implica manifesta afronta à cidadania, à memória cultural e ao patrimônio histórico do

país, justificando a atuação institucional do Ministério Público com vistas a preservação

da cultura africana e da história do povo brasileiro.158

O resultado da miscigenação de raças, credos e culturas, responsável por

conferir identidade ao povo brasileiro, ocorreu, em grande parte, por força da

contribuição prestada pelos negros africanos trazidos para o Brasil durante o

período escravagista. No contexto do Brasil escravocrata, a religião foi uma

das formas encontradas pelos negros para conservar a suas identidades e

costumes (...) Revela-se, pois, que a nacionalidade brasileira é fruto de uma

miscigenação de raças, línguas e também religiões. Tal diversidade, por

conseguinte, deve ser por todos respeitada, o que não se observa diante do

conjunto de pregações discriminatórias, preconceituosas e injuriosas contidas

no livro em referência, as quais são desferidas contra o legítimo direito à

liberdade de religião e, também, não se duvide, em desfavor do patrimônio

histórico brasileiro.159

Após reiterar que a prática, o induzimento ou a incitação à discriminação ou

preconceito de religião caracteriza-se como ilícito penal nos termos do art. 20 da lei

7.716/89 e deixar claro que os direitos e garantias fundamentais não são absolutos, uma

vez que encontram seus limites nos demais direitos igualmente consagrados pela Carta

Constitucional. Invoca o histórico julgamento do Caso Ellwanguer (HC 82.424-2), no

157Ibid., Fls. 16-17.

158Ibid., Fls. 12 e ss.

159Ibid., Fls. 13-14.

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Supremo Tribunal Federal, que afirmou que a liberdade de expressão não abarca a

incitação ao preconceito, à discriminação e à intolerância religiosa.160

Obviamente que o direito à liberdade de expressão não pode albergar

posturas preconceituosas e discriminatórias, sobretudo quando caracterizadas

como infração penal. O Estado e a sociedade devem orientar-se por uma

convivência harmoniosa entre as religiões, evitando o fomento da

discriminação e do preconceito. É, portanto, dever do Estado garantir o

direito à liberdade de crenças, inclusive – se necessário for, como ora

demonstrado –, mediante a retirada de circulação de obras literárias ofensivas

a este direito fundamental. Ao veicular, em sua obra, atos atentatórios à cidadania, à dignidade da pessoa

humana, bem como à liberdade de crença religiosa, o primeiro demandado –

com a aquiescência deliberada dos segundo e terceiros réus – utiliza de uma

maneira manifestamente deturpada uma prerrogativa constitucional pois sob

a égide da consagrada “liberdade de expressão” incita todos os seus leitores a

assumirem uma postura preconceituosa e discriminatória em relação à

religião afro-brasileira.161

Por fim, passa a destacar a crescente onda de ataques da Igreja Universal e seus

crentes contra os símbolos, deuses, objetos sagrados, lugares de cultos e fiéis seguidores

de religiões de matriz africana no Brasil, esclarecendo o problema da intolerância

religiosa e como uma obra literária que demoniza os cultos de religiões afro-brasileiras

e incita o preconceito favorece a discriminação e segregação daqueles que cultuam a

religião atacada, ferindo, inclusive, o princípio da dignidade da pessoa humana.162

Em aditamento à inicial, o Ministério Público destaca que as manifestações

ofensivas, preconceituosas e discriminatórias perpetradas pelos réus geram sério

prejuízo de ordem moral aos seguidores das religiões afro-brasileiras, além de atingir

difusamente toda a nação, já que maculado bem integrante do seu patrimônio cultural, o

que legitimaria reparação por danos morais coletivos.163

Em pedido liminar, o parquet requereu a imediata retirada de circulação,

suspensão de tiragem, da venda, da revenda e da entrega gratuita da obra proselitista,

bem como o recolhimento de todos os exemplares existentes em estoque, o que fora

deferido pelo juízo federal de 1º grau, que entendeu que a obra Orixás, Caboclos e

Guias: deuses ou demônios? é marcada por disseminar ideias segregacionistas. Salienta

que a obra é mero instrumento de incitação à intolerância religiosa, ao preconceito e à

160Ibid., Fls. 21.

161Ibid., Fls. 22.

162Ibid., Fls. 24 e ss.

163Id., Aditamento à inicial. Fls. 51/57.

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discriminação, o que lesiona diretamente a dignidade humana dos adeptos das religiões

de matriz africana.

O texto aqui hostilizado extrapola os lindes da liberdade religiosa, conferida

ao seu autor, como aos seguidores de sua congregação, na medida em que

não se restringe à explanação e divulgação de ideias próprias à religião que é

adotada por quem o escreveu, mas sim se predispõe a tratar pejorativamente

outra religião e seus adeptos, incitando à discriminação através da

disseminação de conceitos negativos pré-concebidos quanto ao credo

professado, quanto aos costumes e ritos adotados e, destaque-se, quanto às

motivações que levariam os adeptos das religiões afro-brasileiras a optar por

aquela crença, lançando juízo de valor quanto às mesmas ao assentar que a

via religiosa eleita seria voltada à consecução de objetivos escusos, imorais

ou ilícitos.164

Em decisão liminar, o juiz ressaltou que as palavras escritas por Edir Macedo

voltam-se não para a fé que professa, para a religião que adota, mas sim para o exterior,

para as demais religiões, em particular às afro-brasileiras, atacando-as de modo

depreciativo, jocoso e discriminatório e estimulando perigosamente a segregação por

motivo de crença e a intolerância religiosa.

Salienta o magistrado, que a liberdade religiosa, como derivação da liberdade de

consciência, encontra seus limites em si mesmos, na mesma prerrogativa que tem outro

cidadão dotado do mesmo acervo de direitos, em igualdades e condições e que a partir

do momento em que certa orientação religiosa ultrapassa essa fronteira e passa a

invadir, de modo negativo e depreciativo, o espaço reservado aos que se dedicam a

outra forma de culto, com o escopo destrutivo da outra religião, não há mais que se falar

em exercício livre da crença, mas sim em abusividade que não se compadece com o

ordenamento jurídico pátrio.

Vale registrar que a orientação lá contida em nada acresce o conteúdo

religioso da própria ‘fé-evangélica’ – salvo o estampado fim de ‘angariar

almas’ através da dissidência e de preservar, pelo temor, aqueles já

conquistados –, nada diz quanto ao fim, de fato, evangelizador e nada tem de

manifestação que lhe seja particular (própria à religião – ressalvada a

descrença quanto às entidades do credo originário da África); é dizer que as

passagens escritas pelo primeiro réu voltam-se não para a fé que professa,

para a religião que adota, mas sim para o exterior, para as demais religiões,

em particular, para aquelas atualmente conhecidas como afro-brasileiras (o

candomblé, a umbanda e a quimbanda), atacando-as de modo depreciativo,

jocoso e discriminatório e estimulando, perigosamente, a segregação por

motivo de crença e a intolerância religiosa, fonte inesgotável de conflitos,

inclusive, internacionais.165

164Id., Decisão liminar fls. 42.

165Ibid., Fls. 43.

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Inconformada, insurge-se contra o deferimento da liminar, a Igreja Universal do

Reino de Deus que interpôs agravo de instrumento. A segunda réu arguiu,

preliminarmente, a inexistência de uma das condições da ação: a legitimidade ativa do

Ministério Público Federal para a propositura da ACP. Segundo a IURD, o parquet tem

a missão institucional e democrática de defender direitos coletivos, difusos e individuais

homogêneos, expressa na Lei Complementar n. 75 de 1993, porém esta ação teria

apenas objetivo de defender interesses privados personalíssimos de minorias religiosas,

o que desvirtuaria a sua atuação e o princípio da laicidade estatal.

A agravante ainda destaca-se reiterada argumentação no sentido de que as

minorias religiosas não merecem a proteção do Ministério Público Federal, por força da

laicização do Estado166 e em razão do restrito número de adeptos dos cultos africanos.167

Para a IURD, as doutrinas religiosas e os conflitos teológicos interconfessionais

estariam à margem de atuação e valoração estatal, sob pena de violação, ainda, do

princípio da liberdade de consciência e crença religiosa. Além disso, a tutela das

minorias religiosas não constituiria missão institucional do Ministério Público.

Contudo, no caso sob judice, resta muito claro que o Ministério Público

Federal extrapolou os limites estabelecidos na Constituição Federal, na Lei

orgânica do Ministério Público, não preenchendo as condições mínimas de

legitimação para a propositura da demanda, pois o aparente interesse

“coletivo religioso” (sic), que toma contornos de cultural, está longe de

englobara a imensa maioria das demais religiões, ou de toda uma coletividade

que se sinta violada, a qual o Ministério Público tem o dever de defender.

Todavia, no caso em tela, o i. representante do Parquet está agindo fora dos

ditames legais que lhe foram conferidos, defendendo direito individual puro,

de uma minoria, e jamais direitos coletivos ou difusos, autorizadores da

intervenção ministerial, não obstante estar intervindo em matéria vedada

expressamente na Magna Carta.168

166“Não pode o Ministério Público tomar parte de considerações sobre o mérito do ato litúrgico desta ou

daquela instituição religiosa, vedar o pensamento de um autor, em sua obra intelectual, muito menos

desta feita ser o representante dos interesses de um grupo determinado, o qual é uma minoria, de

forma que jamais o Ministério Público Federal está defendendo o interesse da coletividade, restando,

portanto, inequívoca a ausência do liame ideológico institucional, o qual é condição sine qua non para

a intervenção ministerial” (Agravo de Instrumento da Igreja Universal do Reino de Deus, fl. 99).

167“Repita-se, portanto, que a presente ação nada mais é do que ação gizada no pálio do discurso cultural

(fenômeno sociológico de vasta abrangência conceitual), para através dela se tutelar interesse privado,

de contornos tipicamente religiosos, onde grupo determinado – frise-se uma minoria – julga-se

‘ofendido’, ou toda a sociedade supostamente por ele ofendida, como pretende fazer crer o Ministério

Público, que agindo desta forma, aí sim, viola direito fundamental esculpido na Magna Carta, em seu

artigo 5º, IX, bem como no artigo 220, que consagram a livre manifestação de pensamento e a

liberdade de expressão, as quais os réus se veem tolhidos, diante desta nefasta ação, em prol de uma

minoria, donde retira o direito da coletividade à ampla informação e ao conhecimento” (Id., fl. 96).

168Id. Agravo de Instrumento. Fls. 93.

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A Igreja Universal ainda sustenta sua própria ilegitimidade passiva para figurar

no polo passivo da ação, imputando somente aos Réus Edir Macedo, autor da obra

literária, e à Editora Gráfica Universal Ltda, responsável pela edição, publicação e

distribuição do livro, as acusações feitas pelo parquet. Afirma que se utiliza do livro

somente como meio para difundir entre seus fiéis a doutrina do bispo, não podendo ser

responsabilizada por isso.169

A IURD nega veementemente qualquer caráter preconceituoso ou

discriminatório à obra do Bispo Edir Macedo, considerando que o livro foi vocacionado

ao exercício do proselitismo religioso e consequente divulgação da fé do escritor, com

respaldo nas liberdades de consciência e crença, configurando legítima manifestação

dos direitos constitucionais à liberdade religiosa e à liberdade de expressão do autor e de

seus leitores. Segundo a Igreja, seu conteúdo somente se refere à interpretação das

entidades espirituais africanas com base unicamente na Bíblia Sagrada. Assim, contesta

a afirmação da juíza federal de piso, no que se refere ao argumento de que o livro foi

escrito com o único propósito de retratar pejorativamente as demais religiões, carecendo

de fundamento teológico e de objetivo evangelizador.170

O fundamento da concessão da medida liminar por suposta ilegalidade no

ingresso na órbita das religiões de origem africana, não difere

substancialmente do fundamento elastecido na instância a quo para também

alcançar suposto menoscabo da cultura africana. Em ambos, a decisão

agravada ilegitimamente desvincula-se do cunho exclusivamente religioso da

questão sub judice e da obra em exame, cujo conteúdo refere-se à

interpretação das entidades espirituais africanas com base unicamente na

Bíblia Sagrada.171

169Id.. Agravo de Instrumento Fls. 103-107.

170“Nesse passo, identificam-se escritor e leitor pelo uso das mesmas garantias fundamentais: ao leitor, o

direito ao próprio julgamento no exercício da liberdade de consciência e de crença ou abstenção desta. Ao

escritor, por sua vez, o exercício da liberdade de expressão de sua crença na Palavra de Deus, enquanto

arcabouço teórico do conjunto de princípios, preceitos e interpretações acerca das hostes espirituais,

‘Orixás, Caboclos e Guias’, e seu significado nos lugares celestiais, ‘deuses ou demônios?’. O amálgama

das liberdades de expressão, consciência e crença, sugeridos desde a indagação que representa o título da

obra ‘deuses ou demônios?’ consagram a manifesta vocação do livro, qual seja, o proselitismo religioso e

consequente divulgação da fé do escritor, literalmente expressa na Bíblia Sagrada para a pregação do

evangelho, ‘a razão da esperança que há em vós’, e para o atendimento do chamado ‘Portanto ide

por todo o mundo e pregai o evangelho a toda criatura’ (Id., fl. 109).

171Id., Fls. 111.

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A Igreja sustenta, ainda, a inexistência dos requisitos dos fomus boni iuris e do

periculum in mora, condições necessárias ao deferimento do pedido formulado pelo

Ministério Público em antecipação de tutela.

Ademais, ao tratar da ausência do fumus boni iuris, afirma que as religiões afro-

brasileiras não se inserem na categoria de patrimônio histórico cultural, segundo a atual

Constituição Federal. Por essa razão não haveria salvaguarda para elas no cenário

religioso nacional. Além disso, concebe a liberdade religiosa e o direito ao proselitismo

em patamares constitucionais longínquos, afirma indiretamente a normalidade dos

conflitos acarretados pela diversidade de credos religiosos.

Na sequência, ressalta o desconhecimento do juízo a quo acerca da formação

histórica das religiões de matrizes africanas, afirmando que o fenômeno da demonização

dos deuses, cultuados nessas religiões, data de séculos passados. Quando da

aproximação dos povos africanos dos europeus e da interpretação destes com relação às

entidades cultuadas na África.

Baseada no sociólogo Reginaldo Prandi, pondera que no Brasil, o histórico

processo de demonização das religiões afro-brasileiras, especialmente do orixá Exu,

identificado há séculos com o Diabo cristão, ocorreu por ocasião do tráfico de escravos

africanos e da convivência forçada entre estes e os colonizadores portugueses,

especialmente do convívio com a umbanda e quimbanda.

Em assim sendo, propugnou pela ausência de mensagens potencialmente

indutoras de preconceitos ou discriminações nos ensinamentos demonizadores, uma vez

que a ocorrência do fenômeno da demonização dos orixás não se trata de ensinamento

religioso restrito ao neopentecostalismo, o qual se fundamenta, ainda, em passagens

bíblicas que vedam expressamente as práticas de magia, feitiçaria, adivinhação e

comunicação com os mortos.

Sustenta, ainda, que a própria demonização do orixá Exu seria compartilhada

pelos próprios adeptos dos cultos afro-brasileiros, especialmente da Umbanda e da

Quimbanda, praticantes, ainda, de rituais semelhantes de exorcismo ou de libertação dos

encostos, assim como a IURD.

Não resta dúvida de que, no pertinente ao aspecto fático a questão nodal a ser

analisada situa-se no plano histórico das religiões africanas em absoluta coerência

com o sincretismo religioso que marcou seu surgimento e desenvolvimento no

Brasil. O sincretismo religioso e os malefícios dele decorrentes aos rituais africanos, a

consequente demonização de uma de suas cultuadas entidades, o surgimento da

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quimbanda e suas práticas voltadas à entidade demonizada, são fatos vinculados aos

séculos de história das religiões de matrizes africanas, totalmente divorciados do

ministério religioso que dá suporte á idealização do livro, com base em

ensinamentos bíblicos abraçados pelos adeptos da fé cristã. Com efeito, a demonização das religiões africanas ou afro-brasileiras é fato histórico

e não jurídico, que não traz, em si, as consequências jurídicas da discriminação e

ofensa que configuram a distorção dos fatos a custa de interpretação esforçada da

Constituição Federal, ilegitimamente invocada para o mal disfarçado intento do

órgão ministerial de alterar e discutir liberdades de expressão, culto, crença – frise-

se o que lhes foi vedado pela Constituição Federal, bom como pela própria Lei

Orgânica do Ministério Público – e consciência dos possíveis interessados na leitura

da obra que se pretende ver proscrita, com o beneplácito do Poder Judiciário.172

Ao ressaltar que as religiões afro-brasileiras e a evangélica têm semelhanças em

certos rituais e crenças especialmente em relação a expulsão de espíritos malignos de

seus fiéis, afirma que a interferência do Estado na interpretação religiosa das crenças

perpetradas na sociedade seria descabida e inconstitucional, por violar os princípios

fundamentais da laicidade do Estado, da liberdade religiosa e da liberdade de

expressão.173

Por fim, ressalta a inexistência do periculum in mora para a concessão da

medida liminar por ausência de urgência e perigo de consolidação irremediável de

danos, já que a obra está em circulação há mais de duas décadas, o que

descaracterizaria, por completo, o perigo da demora. Ademais, refere-se à absolvição do

Sr. Edir Macedo Bezerra, concedida pela 2ª Vara Criminal de São Paulo (Processo n.

306/92), pela divulgação das ideias religiosas transmitidas na obra literária ora em

análise.

O pedido liminar da ré Agravante, que solicitava a concessão do efeito

suspensivo à decisão do juízo de piso, foi indeferido pelo Tribunal Regional Federal da

1ª região.174 O relator, Desembargador Federal Souza Prudente, ao julgar o mérito do

172Id., Agravo de Instrumento. Fls. 115.

173“Assim é que a decisão a quo inflama-se de inconstitucionalidade ao perturbar a laicidade do Estado,

desafiando, a um só tempo, as doutrinas religiosas cristãs e afro-brasileiras que se identificam pela

mesma concepção negativa de ‘espíritos malignos’, qualificados por ações malfazejas, antissociais e

indesejáveis. Profissões de fé que se identificam, cada uma a seu critério, pelo desenvolvimento de

rituais destinados ao expurgo do mal que causam. A propósito, se a prática de afugentar ‘encostos’ ou

espíritos maléficos configura ataque às religiões de matrizes africanas, considere-se que as vertentes

umbandistas e do candomblé, nos termos da conhecida expressão popular, ‘atiram contra o próprio

pé’, ao praticarem semelhantes rituais com a mesma finalidade”. (fl. 116-117).

174“Ora, na espécie dos autos, em que pese toda a argumentação deduzida pela agravante, no sentido de

que a obra literária em referência não violaria a liberdade de consciência, de crença e cultos religiosos,

garantida em nossa Constituição Federal, restaram demonstrados, no teor da decisão agravada, os

excessos da obra impugnada, com manifesto risco de danos à garantida liberdade de

consciência, crença e de cultos religiosos, integrantes de nosso patrimônio histórico cultural, a

não suportar quaisquer manifestações discriminatórias e ofensivas da prevalência dos direitos

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agravo de instrumento, negou provimento ao agravo, mantendo em todos os seus termos

a decisão agravada.

Ora, na espécie dos autos, em que pese toda argumentação deduzida pela

Agravante, no sentido de que a obra literária de referência não violaria a

liberdade de consciência e de crença de cultos religiosos, garantida em nossa

constituição federal, restaram demonstrados, no teor da decisão agravada, os

excessos da obra impugnada, com manifesto risco de danos à garantia da

liberdade de consciência, de crença e de cultos religiosos, integrantes do

nosso patrimônio histórico cultural, a não suportar quaisquer manifestações

discriminatórias e ofensivas da prevalência dos direitos humanos

fundamentais (CF, artigos 3º, IV, e 4º, II), posto que as liberdades públicas

não são incondicionais e a liberdade de expressão, especificamente, não se

revela em termos absolutos, como garantia constitucional, mas deve ser

exercida nos limites do princípio da proporcionalidade, afigura-se legítima a

proibição dessa obra literária, como forma de contenção de tais excessos

nocivos à salvaguarda do núcleo essencial de outros direitos fundamentais,

como no caso em exame.175

Porém, o Desembargador Federal Leão Aparecido Alves proferiu o voto que

guiou o entendimento dos demais juízes da 6ª turma do TRF que, por maioria de votos,

decidiu pela continuidade de circulação da obra.176

Em sede de contestação à peça inicial do parquet, a Editora Gráfica Universal

Ltda sustentou preliminar de ausência de legitimidade ativa do Ministério Público para

a propositura da ação aduzindo que o autor não teria competência para defender às

causas das minorias religiosas afro-brasileiras, uma vez que a lide não versava sobre

interesses difusos. Ressaltou, ainda, que as pessoas que não professam o credo religioso

ali defendido pelo Ministério Público, também têm direitos a serem respeitados e

protegidos e que, por essa razão, a preservação do direito da ré em ter liberdade de

publicação também deveria ser salvaguardada pela instituição, enumerando, inclusive,

obras religiosas de renomado padre católico que poderiam, igualmente, na perspectiva

do Ministério Público Federal, ofender a liberdade religiosa de outros credos.177

Ainda preliminarmente sustenta a sua ilegitimidade passiva pautada nas

garantias legais e constitucionais de livre manifestação de credo e de pensamento,

humanos (CF, artigos 3º, IV, e 4º, II), posto que as liberdades públicas não são incondicionais e a

liberdade de expressão, especificamente, não se revela em termos absolutos, como garantia

constitucional, mas deve ser exercida nos limites do princípio da proporcionalidade, proibindo-se os

excessos nocivos à salvaguarda do núcleo essencial de outros direitos fundamentais, como no caso em

exame”. (fl. 149-150).

175Id., Fls. 137-150.

176Decisão constante nos autos do agravo de instrumento nº 2005.01.00.069605-8/BA.

177Foram citadas as obras “Em que cremos”; “Combate Espiritual”; “Orações de Cura e Libertação” e

“Acenda a Luz”, todas de autoria do Padre católico Alberto Luiz Gambarini.

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afirmando que a editora publicou livro de caráter informativo, assim como todos os

outros que publica, em que seus escritos analisam temas sociais, morais, familiares,

éticos, etc., dentro daquilo que a Bíblia Sagrada ensina. Salienta que, apesar do

conteúdo da obra discordar do pensamento de terceiros, dentro de um Estado

democrático de direito, o autor atuou dentro dos limites de sua liberdade de expressão.

No mérito, afirma que o Ministério Público Federal induziu o Poder Judiciário a

erro material, ao ocultar a existência de outras ações com as mesmas partes e que

versam sobre a mesma acusação com relação ao conteúdo da obra literária e erro à lei,

visto que a competência para julgar a controvérsia seria da justiça estadual.178

Ademais, afirma que os danos sofridos pelas religiões afro-brasileiras com a

edição do livro aduzidas pelo parquet não foram provados. E, por fim, além de negar a

prática de intolerância nas escritas neopentecostais, salienta que felizmente vivemos em

um país tolerante179 e que o MPF, com o auxílio do Poder Judiciário, é que estaria a

promover a intolerância religiosa.

O réu Edir Macedo, por sua vez, contestou a ação sustentando, veementemente,

que a possibilidade de censura à liberdade de expressão religiosa consubstanciada, na

proibição da venda do seu livro Orixás, Caboclos e Guias: Deuses ou Demônios?,

consistiria em exercício nada diverso do que historicamente fora praticado com o Index,

a lista de livros proibidos pela Santa Inquisição Católica, ou o que ocorria durante a

ditadura militar brasileira, formas de atuação que não estariam compatíveis com as

liberdades e garantias consagradas pela atual Constituição.

O Autor da obra sustenta a necessidade de uma neutralidade estatal absoluta,

salientando que este não deve demonstrar simpatia nem desapreço por qualquer

confissão religiosa. Bem como alega que, dentro de uma sociedade democrática que tem

por escopo o pluralismo e a tolerância religiosa, as divergências doutrinárias entre as

confissões religiosas professadas na sociedade são comuns, bem como os atritos

insurgentes dessas tensões.

É da essência do pluralismo religioso o esforço incansável de cada entidade

religiosa promover, através de seus líderes, a interpretação da Bíblia enquanto

‘a palavra de deus revelada aos homens’ (...), estando nela estabelecidos os

deveres da humanidade para com deus, bem como as proibições de

comportamento prescritas pela divindade. A divergência doutrinária constitui

178Id., Contestação. Editora Gráfica Ltda. Fls. 176.

179“Esse é nosso querido país, cada um expressa seus conceitos, ideais, expressam sua fé, mas no final

todos convivem pacifica e harmoniosamente muito bem”. Fls. 192.

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elemento ínsito do discurso religioso. O que não implica em exclusão ou

intolerância religiosa. Enquanto os debates calorosos de prevalência de uma

corrente religiosa permanecer no plano das ideias, assegurada sua liberdade

plena de manifestação pacífica, não há que se falar em intolerância religiosa

ou manifestação preconceituosa. A história da humanidade (...) demonstra

que proselitismo religioso, que se exerce por meio da comunicação religiosa,

atua na sociedade como uma rede caoticamente organizada de correntes de

pensamentos que se chocam criando um campo de tensão ideal em torno

essencialmente da interpretação dos Livros Sagrados, especialmente no

ocidente, da Bíblia Sagrada. Assim, ser intolerante não implica em renunciar às próprias convicções, não

implica em abandonar suas verdades religiosas, não implica em ter todas as

correntes religiosas a mesma verdade aplicada, mas sim em considerar todos

os que pensam diferentemente errados e insurgir-se direta e arbitrariamente

contra os que divergem. 180

Esclareceu que a tolerância religiosa não implicaria renúncia às próprias

convicções, à crença nas verdades teológicas professadas, nem em ter todas as correntes

religiosas a mesma verdade aplicada, pois a intolerância apenas se configuraria na

insurgência direta e arbitrária contra os divergentes.181

Assim, como todos os outros réus, faz questão de ressaltar que a referida obra

literária não tem conteúdo intolerante, discriminatório ou preconceituoso, sendo apenas

uma interpretação da Bíblia Sagrada e que o Estado não deveria julgar seu teor como

bom ou ruim por violação aos princípios da laicidade e neutralidade estatal, corolários

da democracia.

Ao final, também em sede de contestação, a Igreja Universal do Reino de Deus

reiterou inúmeros argumentos aventados no agravo de instrumento anteriormente

interposto e reafirmou o entendimento de que, em seu livro, o bispo Edir Macedo

apenas expressou sua crença com base em ensinamentos bíblicos, conforme seu direito

à liberdade de expressão religiosa, sem cunho discriminatório, preconceituoso ou

intolerante contra as religiões afro-brasileiras.182

Após o Ministério Público, em sede de réplica, reiterar os argumentos expostos

na exordial183, concordaram as partes com o julgamento antecipado da lide. O juiz

federal Leonardo Tochetto Pauperio, em sua decisão, elencou todos os argumentos

trazidos pelas partes, mas não analisou o mérito da controvérsia, uma vez que

reconheceu a incompetência absoluta do juízo federal para julgar a causa, convertendo o

180Id., Contestação. Edir Macedo. Fls. 523 e 525.

181Id., Fls. 525.

182Id., Contestação. Igreja Universal do Reino de Deus. Fls. 530/566.

183Id., Réplica. Ministério Público Federal. Fls. 569/580.

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julgamento em diligência para remeter os autos a uma das varas da justiça estadual

baiana.184

Inconformado, o Ministério Público Federal opôs agravo de instrumento contra a

decisão declinatória de competência, tendo os autos sido remetidos à Justiça Estadual.185

186

Após lapso temporal de 4 (quatro) anos, os Desembargadores Federais deram

provimento ao agravo do Parquet, determinando o retorno dos autos à Justiça Federal

para prosseguimento do feito e, considerando o grande lapso temporal decorrido desde a

remessa dos autos à Justiça Estadual, fora determinada a intimação das partes para que

em 10 (dez) dias formulassem os requerimentos que entendessem devidos. Após isso, os

autos restarão conclusos ao juízo.187 188 189

O mesmo desfecho insatisfatório, que está tendo a presente ação, já acometeu

outras ações civis públicas propostas pelo Ministério Público, contendo as mesmas

denúncias em desfavor dos neopentecostais, a demonização, humilhação, incitação à

intolerância, a discriminação e ao preconceito contra as religiões afro-brasileiras.

184“Falece de competência à Justiça Federal para o processo e julgamento da presente demanda. Isso

porque a competência firmada constitucionalmente para os juízes federais não abarca, em qualquer

das hipóteses elencadas no artigo 109 da Carta de 1988, a apreciação de causas que versem sobre a

liberdade de culto e seus desdobramentos” (Decisão declinatória de competência. Fls. 596/609).

185Id., Agravo de Instrumento. Ministério Público Federal. Fls. 609/616V.

186Os autos foram renumerados sob o nº 0004170-51.2010.8.05.0001 e distribuídos à 23ª Vara Cível da

comarca de Salvador, Bahia.

187Decisão publicada no Diário Oficial em 01/06/2017.

188Com a remessa dos autos à Justiça Federal os autos ganharam um novo número.: 0022878-

69.2005.4.01.3300.

189Conforme consulta processual realizada em 01/08/2017 no sítio eletrônico do Tribunal Regional

Federal da 1ª Região (TRF-1), o prazo para apresentação de alegações finais, aberto para ambas as

partes, ainda não se esvaiu. Até o momento não há juntada de manifestações nos autos.

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7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após apresentar o problemático conflito entre os neopentecostais e as religiões

afro-brasileiras, delimitou-se a análise à possibilidade do proselitismo religioso da

Igreja Universal do Reino de Deus se configurar como discurso de ódio religioso. Todo

o trabalho foi guiado pelas concepções da doutrina brasileira mais abalizada sobre o

assunto.

Para introduzir o assunto e subsidiar as reflexões posteriores acerca do que se

pretendia discutir, as limitações à liberdade de expressão religiosa proselitista,

inicialmente foram expostas ideias e conceitos relacionados à dignidade da pessoa

humana e as liberdade de credo e de expressão e garantias fundamentais como a

igualdade, além de laicidade do estado; sua separação das confissões religiosas; o

pluralismo do mercado de ideias religiosas; o espaço público de discussão de

argumentos religiosos; e, por fim, tolerância religiosa interconfessional.

Também foram apresentados casos concretos e moralmente controversos

relacionados aos princípios da liberdade religiosa como os dias de guarda, o caso da

transfusão de sangue, desrespeito a imagens sagradas de outras religiões, manutenção de

crucifixos em espaços públicos, uso de suásticas em manifestações públicas, etc.

Esclarecemos o compromisso constitucional das democracias em reconhecer os

cidadãos como igualmente merecedores de consideração e respeito, acentuando os

princípios da laicidade e liberdade religiosa, garantidores da imparcialidade Estatal que

não privilegia confissões religiosas majoritárias. Acentua-se o reconhecimento dos

Estados democráticos de todos os cidadãos são membros de pleno direito da

comunidade política, livres e iguais, dignos de consideração e respeito, cuja autonomia

moral-prática não pode ser deliberadamente olvidada.

Ressaltou-se que as restrições ao direito fundamental à liberdade religiosa, para

serem constitucionalmente legítima, devem se pautar em razões públicas notadamente

justificáveis e não em razões morais e de concepções de bem ou mal.

Também compete ao Estado garantir que as diferentes confissões religiosas

professadas na sociedade tenham espaço ao debate, impedir que as religiões majoritárias

monopolizem os fóruns públicos de discussão, assegurando a abertura e a difusão plural

de ideias religiosas e fomentando a tolerância. O Estado age em razão da assimetria de

condições entre as religiões buscando assegurar igualdade material entre os desiguais.

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Ademais o Estado pode, legitimamente, limitar as liberdades dos cidadãos, com

a finalidade de manter uma convivência sadia dentro da sociedade, quando essa

liberdade estiver gerando consequências danosas para terceiro.

Tratando sobre liberdade de expressão religiosa, abriu-se a discussão sobre como

as religiões majoritárias impunham sua teologia e poder político sobre os indivíduos,

chegando-se a criminalizar, por séculos, a blasfêmia e a heresia contra os deuses,

doutrinas e símbolos sagrados daquelas religiões. Com a separação definitiva dos

Estados das confissões religiosas, surgiram outras figuras típicas para criminalizar

ofensas às crenças religiosas como as injúrias e difamações, que dentro de um Estado

democrático de direito protegem o bem jurídico: sentimentos religiosos dos crentes, sem

priorizar qualquer teologia preconizada.

Para compreender melhor as implicações jurídicas de se reconhecer os

sentimentos religiosos dos cidadãos no âmbito da proteção constitucional da liberdade

de expressão, apresentou-se debates doutrinários e jurisprudenciais atinentes a casos

paradigmáticos.

Passou-se a dissertar sobre a legitimidade dos discursos de ódio proselitista. Foi

esclarecido, em primeiro lugar, que o proselitismo consiste em manifestação simultânea

dos direitos fundamentais à liberdade religiosa e à liberdade de expressão, ou seja,

constitui exercício do direito fundamental à liberdade de expressão religiosa. Pontuamos

que o livre exercício do direito ao proselitismo possibilita a formação de um mercado

aberto e plural de ideias religiosas, o que facilita, ainda, o exercício do direito à

mudança de religião.

Dissertou-se sobre o direito dos emissores ou fontes desses discursos

proselitistas, teceram-se considerações críticas sobre os critérios internacionais

oferecidos para a legítima restrição da liberdade de manifestação das crenças religiosas,

a saber, a proteção: (i) da ordem e da segurança pública; (ii) da saúde pública; (iii) da

moral pública; (iv) dos direitos e liberdades de outrem.

Questionou-se a possibilidade de restrição à liberdade de expressão dos

emissores de proselitismo, exercício de liberdade que em certa medida pode atingir o

direito dos sujeitos alvos desse discurso. Salientando que o proselitismo realizado

mediante coação física, moral ou psicológica, bem como com oferecimento de

vantagens materiais, ameaças, são ilegítimas e abusivas. Também se efetuou distinção

entre os discursos proselitistas legítimos ou próprios e os ilegítimos ou impróprios.

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Destacou-se que o Estado tem legitimidade para analisar constitucionalmente

discursos religiosos proselitistas, mas não para fazer um julgamento sobre a veracidade

da teologia professada e sim para coibir eventuais lesões causadas pelo discurso a

direitos fundamentais de terceiros como a igualdade, a dignidade humana e a própria

liberdade religiosa. Em assim sendo, analisando o compromisso que o Estado tem com

o pluralismo, a tolerância religiosa e o tratamento igualitário para com todos os

cidadãos, o princípio da laicidade exige que se adote uma postura neutra sobre o

conteúdo da matéria de fé professada e que não se abstenha de intervir nas controvérsias

doutrinárias interconfessionais visando a proteção de direitos fundamentais dos alvos de

proselitismo.

Fez-se uma análise da jurisprudência brasileira sobre um dos casos mais

emblemáticos relativo a discurso de ódio já julgado no país, o leading case que

acarretou na condenação do escritor e editor antissemita Siegfried Ellwanger. O

julgamento do paradigmático HC 82.424-2 na Corte Constitucional Suprema confirmou

o compromisso da República brasileira com a dignidade humana, condenando o réu pela

prática de racismo.

Posteriormente iniciou-se a análise sociológica do embate entre as religiões

neopentecostais e as de matriz africana. Explanando os dogmas e doutrinas cristãos

seguidos pelos novos evangélicos, focando em suas características expansionistas seu

proselitismo demonizador e em sua teologia beligerante que acredita em uma guerra

espiritual, que tem por objetivo extirpar os deuses e símbolos perpetrados pelas religiões

afro-brasileiras, na visão deles, tidos como demônios responsáveis por todos os males

causados no mundo. Também foi explanado o contexto histórico-social brasileiro de

demonização, perseguição, discriminação e estigmatização das religiões afro-brasileiras

que conferem contornos particularmente gravosos ao “conflito interconfessional” entre

neopentecostalismo e religiões afro-brasileiras.

Seguidamente se propôs a analisar caso emblemático que versa sobre a

possibilidade de se impor limites a liberdade de expressão religiosa proselitista. A obra

Orixás, Caboclos e Guias: deuses ou demônios, do Bispo neopentecostal Edir Macedo,

dirigente da Igreja Universal do Reino de Deus, foi dissecada e destacou-se todos os

termos, expressões, ensinamentos e orientações religiosos mais contundes e ofensivos

às crenças, doutrinas, símbolos e práticas sagradas do “espiritismo” e, principalmente,

das religiões de matrizes africanas.

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Da análise do livro constatou-se o intenso caráter proselitista da obra

neopentecostal, bem como a exteriorização de ensinamentos religiosos condizentes com

a teologia da guerra espiritual. Ademais, no discurso demonizador, não identificamos

palavras de ordem, claramente incitadoras de violência, discriminação ou perseguição

aos espíritas e afro-brasileiros, mas foram selecionados inúmeros trechos polêmicos da

obra neopentecostal, especialmente os que relacionam as práticas espíritas e afro-

brasileiras ao crime, à loucura, às “perversões sexuais”, que se consideram

suficientemente agressivos para incitar evangélicos intolerantes ao cometimento de

violências e discriminações contra adeptos do espiritismo e das religiões afro-

brasileiras.

Nesse contexto, questionou-se que a concepção jurisprudencial do direito à

liberdade de expressão religiosa que mais se encaixa com as práticas jurídicas

brasileiras é a que admite o proselitismo como direito decorrente da liberdade de

expressão religiosa, mas reconhece a necessidade e a legitimidade de eventuais

restrições ao seu exercício, a fim de salvaguardar os direitos fundamentais à igualdade,

à dignidade e à liberdade religiosa dos demais cidadãos.

Ao analisar os dispositivos constitucionais consagradores dos direitos e garantias

fundamentais dos cidadãos, bem como os objetivos da República Federativa do Brasil,

verificou-se a imensa importância dada ao princípio da igualdade e dignidade humanas

e ao combate a qualquer tipo de discriminação.

Diante dos argumentos trazidos neste trabalho, conclui-se que os tribunais

assumam o compromisso de construir uma interpretação coerente e íntegra dos direitos

fundamentais à liberdade de expressão religiosa, a igualdade, a dignidade da pessoa

humana, oferecendo justificativas neutras para legitimar possíveis restrições ou proteção

a esses direitos.

Espera-se que os julgadores desse país atuem refletindo sobre como as

manifestações religiosas proselitistas agressivas e potencialmente incitadoras de ódio,

da violência, da discriminação, do preconceito contra religiões minoritárias e

historicamente estigmatizadas na sociedade brasileira, afetam os direitos e liberdades

dos seguidores dessas religiões.

De todo o exposto, conclui e se deseja que os tribunais brasileiros estabeleçam

critérios íntegros e legítimos de limitação à liberdade de expressão religiosa proselitista,

quando ela se configure como odiosa. Espera-se que o poder judiciário dê tanta

importância a salvaguarda dos direitos a igualdade de consideração e respeito entre os

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cidadãos, quanto dá à liberdade de expressão, consagrando a dignidade humana através

da promoção da tolerância religiosa interconfessional.

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