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1 Propriedades Emergentes, Aprendizagem Iterativa e Refinamento de Design. Um Estudo de Caso na Indústria Espacial. Autoria: Milton de Freitas Chagas Junior, Milton de Abreu Campanário, Marcello Muniz da Silva O objetivo principal deste artigo é avaliar as implicações da aprendizagem pelo uso às organizações que estabelecem e lideram redes modulares de inovação visando à criação e operação de sistemas complexos, as integradoras de sistemas. A literatura sobre sistemas complexos enfatiza a fase do ciclo de vida destes projetos, incluindo a definição da arquitetura, o desenvolvimento dos designs de engenharia de subsistemas e suas respectivas construções até a integração e testes finais. Este artigo enfoca a análise de fenômenos dinâmicos que ocorrem quando o sistema está em seu ambiente de operação, desempenhando suas funcionalidades por meio da interação de seus subsistemas. Estas interações geram incertezas sistêmicas que reduzem a capacidade preditiva dos produtos que estão sendo criados. Argumenta-se que a aprendizagem pelo uso constitui uma classe epistemológica distinta – voltada à prática –, na medida em que requer a integração de conhecimentos não só conceituais, mas, sobretudo, operacionais. Na ausência de dominant design – como é característica dos sistemas complexos – as trajetórias tecnológicas são definidas a partir de arquiteturas de sistemas e os novos conhecimentos gerados por esta aprendizagem pelo uso apresentam forte caráter idiossincrático. O estoque de conhecimentos científicos e tecnológicos pode não oferecer condições para que se definam adequadamente as regras dos designs de engenharia de subsistemas – design rules –, principalmente nos casos de arquiteturas inovadoras. Nestes casos, o refinamento do design de engenharia de subsistemas não pode ser entendido deterministicamente, como um conjunto de resolução de problemas que irá naturalmente ocorrer. Ao contrário, estes fenômenos dinâmicos podem gerar uma situação de ambiguidade causal, decorrente do acoplamento de funcionalidades: as propriedades emergentes. O entendimento destas propriedades pode requerer esforços específicos de pesquisa. Utilizando o programa de cooperação tecnológica entre a China e o Brasil para a criação e operação de satélites de sensoriamento remoto como estudo de caso, o artigo analisa o fenômeno de propriedades emergentes, sua relação com a aprendizagem pelo uso e a evolução de sistemas complexos, por meio do refinamento de designs de engenharia de subsistemas. Tendo como referencial teórico a visão baseada em recursos, o artigo discute como se dá a criação de capacitações em integração de sistemas, sugerindo, por meio da proposição de um modelo – que considera os domínios do conhecimento, da organização e do produto –, que o entendimento de fenômenos dinâmicos passa pela integração de rotinas organizacionais de diferentes especializações.

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Propriedades Emergentes, Aprendizagem Iterativa e Refinamento de Design. Um

Estudo de Caso na Indústria Espacial.

Autoria: Milton de Freitas Chagas Junior, Milton de Abreu Campanário, Marcello Muniz da Silva

O objetivo principal deste artigo é avaliar as implicações da aprendizagem pelo uso às organizações que estabelecem e lideram redes modulares de inovação visando à criação e operação de sistemas complexos, as integradoras de sistemas. A literatura sobre sistemas complexos enfatiza a fase do ciclo de vida destes projetos, incluindo a definição da arquitetura, o desenvolvimento dos designs de engenharia de subsistemas e suas respectivas construções até a integração e testes finais. Este artigo enfoca a análise de fenômenos dinâmicos que ocorrem quando o sistema está em seu ambiente de operação, desempenhando suas funcionalidades por meio da interação de seus subsistemas. Estas interações geram incertezas sistêmicas que reduzem a capacidade preditiva dos produtos que estão sendo criados. Argumenta-se que a aprendizagem pelo uso constitui uma classe epistemológica distinta – voltada à prática –, na medida em que requer a integração de conhecimentos não só conceituais, mas, sobretudo, operacionais. Na ausência de dominant design – como é característica dos sistemas complexos – as trajetórias tecnológicas são definidas a partir de arquiteturas de sistemas e os novos conhecimentos gerados por esta aprendizagem pelo uso apresentam forte caráter idiossincrático. O estoque de conhecimentos científicos e tecnológicos pode não oferecer condições para que se definam adequadamente as regras dos designs de engenharia de subsistemas – design rules –, principalmente nos casos de arquiteturas inovadoras. Nestes casos, o refinamento do design de engenharia de subsistemas não pode ser entendido deterministicamente, como um conjunto de resolução de problemas que irá naturalmente ocorrer. Ao contrário, estes fenômenos dinâmicos podem gerar uma situação de ambiguidade causal, decorrente do acoplamento de funcionalidades: as propriedades emergentes. O entendimento destas propriedades pode requerer esforços específicos de pesquisa. Utilizando o programa de cooperação tecnológica entre a China e o Brasil para a criação e operação de satélites de sensoriamento remoto como estudo de caso, o artigo analisa o fenômeno de propriedades emergentes, sua relação com a aprendizagem pelo uso e a evolução de sistemas complexos, por meio do refinamento de designs de engenharia de subsistemas. Tendo como referencial teórico a visão baseada em recursos, o artigo discute como se dá a criação de capacitações em integração de sistemas, sugerindo, por meio da proposição de um modelo – que considera os domínios do conhecimento, da organização e do produto –, que o entendimento de fenômenos dinâmicos passa pela integração de rotinas organizacionais de diferentes especializações.

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1. Introdução

Abordagens sistêmicas são amplamente utilizadas em processos de inovação de sistemas complexos. Estas abordagens enfocam o sistema como um todo, considerando todos os seus componentes e subsistemas, definindo e tentando considerar suas interdependências (Eisner, 2005).

Estas interdependências tornam o sistema maior que a soma de suas partes, e determinam suas propriedades. Isto é, a utilidade – ou propriedades – de um sistema não depende de componentes ou susbsistemas considerados de forma individualizada, mas emerge a partir da forma como as interações entre suas partes são definidas. Portanto, as propriedades emergentes são centrais ao conceito de sistema, uma vez que sua existência pode ser percebida somente neste nível: o do sistema considerado (Sillitto, 2005). Zandi (2007) argumenta que os sistemas são completamente decomponíveis do ponto de vista estrutural, mas não do ponto de vista funcional, ressaltando a dificuldade de se prever, ex-ante, o comportamento do sistema antes de sua entrada em operação.

A partir da década de 1950, diferentes abordagens têm sido desenvolvidas para lidar com a complexidade crescente de sistemas. Johnson (1997, 2003) fez importante contribuição para o entendimento da origem e desenvolvimento destas abordagens. Ele argumenta que a criação bem sucedida de sistemas complexos é fundamentada na utilização de três abordagens: pesquisa operacional, engenharia de sistemas e gestão de projetos. Em comum, as abordagens se especializaram na criação e aplicação nas organizações de conhecimento processual. Estas organizações devem lidar com diversas e diferentes especializações e estas abordagens permitem a integração destes conhecimentos organizacionais dispersos em vários departamentos.

A combinação dos processos organizacionais definidos pela engenharia de sistemas e pela gestão de projetos permite a criação de capacitações em integração de sistemas (Prencipe et. al, 2003). Estas capacitações, que mesclam características da integração vertical e dos sistemas de preços, servem como mecanismos de coordenação nas indústrias de sistemas complexos (Hobday 1998). Este autor chama a atenção para as características específicas da dinâmica de inovação de bens de capital intensivos em tecnologia, em relação àquelas dos bens de consumo. Da comparação entre estas duas dinâmicas, surgem dois modelos ideais de inovação: as indústrias de sistemas complexos e as indústrias de produção em massa. A inovação em sistemas complexos exige esforços cooperativos, entre diversas organizações, incluindo fornecedores, órgãos reguladores e usuários, que definem os requisitos que o sistema deverá atender. Estas definições permitem a coordenação dos diversos agentes econômicos que formam a cadeia de valor destas indústrias. Estes esforços cooperativos, que ocorrem por meio de alianças temporárias entre organizações, têm como unidade básica de agregação o projeto.

Em termos de característica do produto, os sistemas complexos são caracterizados pelo crescente número de funcionalidades e de interfaces, pela hierarquização do produto e pela importância, também crescente, das propriedades emergentes. As propriedades emergentes podem ser desejáveis e previstas, e o esforço do projeto foi realizado tendo como objetivo a criação do sistema, resultando em sua utilidade. No entanto, estas propriedades podem ser indesejáveis, por não terem sido previstas adequadamente, podendo gerar efeitos colaterais indesejados. Ao contrário de grande parte da literatura que trata da criação de sistemas complexos, que enfatiza a iteração entre os processos de aprendizagem organizacional que ocorrem ao longo do ciclo de vida dos projetos (Shenhar e Dvir, 2010; Forsberg et. al, 2005; Kossiakoff e Sweet, 2003; Eisner, 2002; Palmer, 1999; Sage e Lynch, 1998), este artigo indica a necessidade de se estabelecer iterações entre os processos de aprendizagem pelo uso e aqueles do

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ciclo de vida tradicional dos projetos. Argumenta-se que estes processos condicionam a formação das trajetórias tecnológicas nas indústrias de sistemas complexos, e se estabelecem por meio da integração de rotinas organizacionais.

Baseado no estudo de caso do programa sino-brasileiro de sensoriamento remoto (CBERS) o objetivo desta pesquisa é expandir a compreensão sobre a criação de capacitações em integração de sistemas em produtos caracterizados por sua interdependência sistêmica. Em particular, é analisado como estas interdependências podem geram propriedades emergentes - não previstas e indesejadas - em sistemas. E como a criação de capacitação em integração de sistemas requer a iteração entre os conhecimentos conceituais e conhecimentos operacionais.

O trabalho está organizado da forma seguinte. A seção 2 apresenta o referencial teórico do artigo, identificando as organizações como integradoras de conhecimentos, ressaltando as particularidades da dinâmica de inovação em sistemas complexos. A seção 3 apresenta o método da pesquisa. A seção 4 apresenta o estudo de caso por meio de um breve histórico da constituição do programa CBERS. Apresenta também a organização projetizada responsável pelo desenvolvimento dos satélites da plataforma CBERS e a lógica dos projetos sendo definida pela engenharia de sistemas, salientando o fenômeno da propriedade emergente. A seção 5 analisa as condições organizacionais necessárias para que o processo de aprendizagem pelo uso ocorra, indicando os desafios enfrentados pelas organizações integradoras de sistemas. Argumenta-se que nas organizações integradoras de sistemas a divisão do trabalho para a criação do produto segue uma lógica distinta da divisão do conhecimento tecnológico. A seção 6 apresenta as conclusões do trabalho.

2. Referencial Teórico

O referencial teórico mais adequado para o tratamento de questões de integração de

conhecimentos é a visão baseada em recursos. Demsetz, em seu artigo The Theory of the Firm Revisited, de 1988, sustenta que as firmas representam uma resposta à assimetria fundamental na economia do conhecimento: a aquisição de conhecimento requer maior especialização que sua utilização. Portanto, as organizações existem como instituições produtoras de bens e serviços, porque criam as condições para que diversos indivíduos possam integrar seus conhecimentos especializados.

No caso específico das organizações envolvidas com processos de inovação em indústrias de sistemas complexos a questão da assimetria fundamental do conhecimento torna-se crítica, em função da amplitude de suas bases tecnológicas. Isto é, do grande número de disciplinas tecnológicas que devem ser dominadas para a realização, bem sucedida, de processos de inovação tecnológica. Além disto, estas disciplinas tecnológicas avançam segundo taxas de mudanças próprias – decorrentes de esforços de P&D específicos – o que torna ainda mais crítico o domínio destas bases tecnológicas. Rosenberg (1976) chama atenção para a questão do desequilíbrio técnico - technical imbalance - decorrente de disciplinas tecnológicas que avançam a taxas muito elevadas. Davies e Hobday (2005) mostram que os processos de inovação e a organização destas indústrias ocorrem através de redes interorganizacionais, com base em projetos. Estas redes permitem o compartilhamento dos crescentes custos e riscos de inovação e ainda propicia a redução do tempo de desenvolvimento (Rothwell, 1994).

Henderson e Clark (1990) aprofundam o entendimento sobre inovação introduzindo os conceitos de inovação modular e arquitetônica. No caso das indústrias de sistemas complexos, a inovação arquitetônica assume importância destacada, na medida em que não se encontra a presença de dominant design (Hobday, 1998). Na ausência de um dominant design, os processos

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de aprendizagem tecnológica tornam-se ainda mais específicos das organizações – isto é, com caráter idiossincrático mais facilmente identificável - e ocorrem com base em arquitetura de sistemas (Chagas Junior, 2009).

A crescente modularidade dos produtos, criados por meio de redes interorganizacionais, levaram Brusoni et. al (2001) a definirem como integradoras de sistemas as firmas que estabelecem e lideram redes dos pontos de vista tecnológico e organizacional.

Analisando os processos de aprendizagem que definem a dinâmica de inovação de produtos modulares, Chesbrough (2003) analisa que a modularidade do produto – realizada por meio redes organizacionais de fornecedores especializados – não implica a modularidade do conhecimento tecnológico. Principalmente, nos casos em que a integração de sistemas é um item relevante.

“In particular, the issue of systems integration [regarding the growing modularity of products] figures prominently, and how integration occurs within the firm differs substantially from how it emerges through the market”. (Chesbrough, 2003, pag 175)

Isto é, a vantagem tecnológica dos produtos produzidos por meio de redes modulares é,

em grande parte, definida pela presença das firmas integradoras de sistemas. Em linha com esta ideia, Sage e Lynch, salientam a necessidade da presença do integrador de sistemas na definição da arquitetura de sistemas.

“Without very careful effort at developing an appropriate architecture for a system, there will be little hope of integration” (Sage e Lynch, 1998, p. 176)

Resgatando Rosenberg (2006), este artigo ressalta um processo de aprendizagem que tem

início após a entrada em operação do sistema. Estes processos de aprendizagem pelo uso iteragem com os processos relativos às fases do ciclo de vida do projeto, estabelecendo novas formas de aprendizagem que contribuem para o aumento do estoque de conhecimentos da organização.

Vale ressaltar que quando são considerandos aspectos técnicos e econômicos de um sistema - como é o caso dos estudos de inovação tecnológica - o ciclo de vida completo deste sistema deve ser considerado. Muito embora, grande parte de literatura tanto de engenharia de sistemas como de gestão de projetos tenda a enfatizar a importância das fases do ciclo de vida do projeto.

A razão de ser desta ênfase decorre do fato de a aprendizagem pelo uso constituir uma classe epistemológica voltada à prática, como descrito por Dewey (1960) por meio do conceito knowing.

Seguindo Dewey, Cook e Brown (1999) argumentam que este tipo de conhecimento não pode ser classificado como tácito ou explícito. A aprendizagem pelo uso requer a presença de conhecimentos conceituais e operacionais. Ao contrário do que sustenta a gestão do conhecimento tradicional, os novos conhecimentos, gerados a partir da aprendizagem pelo uso, podem ser tanto tácitos como explícitos.

Grant (1996) indica que as capacitações são rotinas integradas de determinadas formas. Rechtin (2000) ressalta a centralidade de arquiteturas de sistemas estabelecidas nos processos organizacionais de aprendizagem. A arquitetura do sistema condiciona fortemente a forma de integração das rotinas organizacionais, e por conseqüência, a forma de aprendizagem organizacional. Alterando-se a arquitetura do sistema, que definem as regras de design de

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subsistemas, uma nova forma de integração entre as rotinas será estabelecida e, por consequência, novas formas de aprendizagem serão estabelecidas.

3. Método da pesquisa A pesquisa tem caráter exploratório uma vez que visa à expansão do entendimento de um

problema geral, enquadrando-se especificamente na categoria de teorização apreciativa (Nelson e Winter, 2005).

O método usado neste trabalho é o estudo de caso, adequado para a análise de situações específicas que podem ser representativas de diversas outras situações, e válido quando a expansão do entendimento sobre o tema é necessária. Desta forma, o constructo da pesquisa é definido por elementos teóricos e elementos empíricos derivados do levantamento de campo. A pesquisa teórica é constituída pelo estabelecimento da filiação teórica e pela escolha de abordagens apropriadas ao objeto e objetivo da pesquisa.

A filiação teórica refere-se à evolução da teoria da firma, com base na microeconomia da inovação. As abordagens apropriadas referem-se a um conjunto de 3 disciplinas necessárias ao entendimento do estudo de caso. A primeira abordagem refere-se ao entendimento teórico das organizações: visão baseada em recursos. A segunda é a visão sistêmica aplicada à gestão de projetos e engenharia de sistemas. A terceira abordagem refere-se à filosofia da ciência. O uso da filosofia pragmática de Dewey mostrou-se adequado a analise de capacitações de organizações envolvidas com a produção de sistemas complexos. O fenômeno de propriedades emergentes requer o uso de uma classe epistemológica voltada para prática, que une os conhecimentos conceituais e operacionais. Os conceitos de Kuhn (1995), relativos à filosofia da ciência e os correspondentes de Dosi (1988) aplicados à tecnologia foram necessários para a análise dos resultados e para o entendimento da inovação em sistemas complexos com base na arquitetura de sistemas.

A pesquisa de campo foi feita por meio de entrevistas com funcionários do INPE diretamente envolvidos com o programa CBERS e com a análise de documentação técnica e gerencial referentes a este programa.

Fontes primárias de dados incluem entrevistas com representantes envolvidos diretamente com os projetos objeto da pesquisa. Estes representantes incluem os arquitetos responsáveis pela arquitetura de sistemas do programa, representantes do departamento de contratos e compras de componentes críticos, representantes dos usuários finais, e responsáveis pela execução da montagem, integração e teste finais dos produtos destes projetos. No nível de definição de políticas publicas, foi entrevistado um embaixador envolvido com a questão de acordos internacionais de cooperação tecnológica. Um fornecedor de primeiro nível foi, também, entrevistado. Um total de 44 entrevistas foram feitas. Três entrevitados-chave foram usados para validar o constructo (Yin, 2003): o arquiteto chefe do programa, um gerente de contratos e um representante da montagem, integração e testes finais. Eles leram e comentaram o esboço do estudo de caso.

Fontes secundárias de dados incluem revistas especializadas, relatórios e planejamentos estratégicos organizacionais, relatórios e planejamentos dos projetos objeto de análise e designs dos produtos.

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4. Estudo de caso

4.1 Breve histórico da constituição do programa Em 1988, foi assinado, o “Protocolo sobre aprovação de Pesquisa e Produção de satélite

de recursos da terra, entre o Governo da República Federativa do Brasil e o Governo da República Popular da China” onde designam o INPE e a CAST como agências responsáveis pela execução do projeto de pesquisa e produção dos satélites sino-brasileiros de recursos da terra. Logo em seguida, foi assinado o "Acordo de Cooperação sobre o Satélite Sino-Brasileiro de Recursos Terrestres entre a Academia Chinesa de Tecnologia Espacial (CAST) da China e o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) do Brasil”.

O custo total da produção de dois satélites foi estimado em US$ 150 milhões, incluindo dois lançamentos por foguetes Longa Marcha a partir da base de Taiyuan. Os custos foram divididos da seguinte forma: 70% China e 30% Brasil.

O domínio da tecnologia espacial, além dos benefícios próprios gerados sobre um sistema econômico, é considerado estratégico em função de sua capacidade de arraste sobre outros setores industriais. De maneira particular, os segmentos de defesa e aeronáutica apresentam ampla comunalidade com aplicações tecnológicas do segmento espacial e os spin-offs se dão rapidamente, razão pela qual existe grande restrição à transferência de tecnologia pelos países que as dominam.

Sob esta ótica, o CBERS se constitui em um programa de cooperação inovador entre dois países emergentes, que decidiram unir recursos financeiros e tecnológicos para o desenvolvimento de tecnologia de sensoriamento remoto. Um grande desafio enfrentado pelo programa era a diferença, em termos de cultura tecnológica e de experiência prática acumulada, entre as equipes brasileiras e chinesas. Estas diferenças foram detectadas desde o início dos entendimentos que culminaram no acordo. Para superar esta dificuldade, o acordo de cooperação impôs procedimentos de alto nível baseados em padrões internacionais.

4.2 Organização do programa

Para conduzir o desenvolvimento do programa foi estabelecida uma organização que abrigasse representantes, técnicos e gerenciais do INPE e da CAST que representassem as partes brasileira e chinesa, respectivamente. Esta organização denominada Joint Project Organization (JPO) é a responsável pela definição da arquitetura, desenvolvimento, integração e operação dos satélites.

A figura 1 abaixo mostra a constituição da JPO. Dentro da JPO, o JPC é o responsável final pelo sucesso do programa. É também responsável pela definição de suas políticas de caráter geral, pela aprovação de seu plano de gerenciamento e pela tradução das necessidades dos usuários em especificações de alto nível dos sistemas, sendo composto por representantes brasileiros e chineses.

Existe um GPM brasileiro e um chinês. Estes gerentes são os responsáveis gerais pela execução do programa. Da mesma forma, o ETG e o EMG são constituídos pelos corpos técnicos brasileiros e chineses. O ETG é o responsável técnico pelas atividades no nível de sistema incluindo a definição da missão, a definição das arquiteturas mecânica e elétrica e pelas atividades de montagem, integração e teste – assembling, integration and tests – (AIT). Neste grupo, a engenharia de sistemas é claramente a disciplina dominante. O EMG é responsável pelas atividades de gerenciamento no nível de sistema, incluindo os controles de cronograma, custos,

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contratos de desenvolvimento de subsistemas com fornecedores e garantia do produto. Neste grupo, a gestão de projetos é claramente a disciplina dominante.

Reuniões técnicas das duas equipes são programadas regular e alternadamente no Brasil e na China para estabelecer especificações do sistema, requisitos de subsistemas, configurações de interfaces e elaborar planos de gerenciamento do programa e outros documentos.

JPC – Joint Project Committee, GPM – General Projects Managers,ETG – Engineering

Technical Group,EMG – Engineering Management Group

Figura 1: Constituição da Joint Project Organization – JPO Fonte: Chagas Junior, 2009

Os técnicos do ETG definem a arquitetura do satélite e suas especificações. São responsáveis também pelas especificações abaixo do nível de sistema, que definem os desempenhos, interfaces e outros requisitos técnicos com grau suficiente de detalhe para permitir que se faça o projeto preliminar, detalhado e em seguida a produção de subsistemas e equipamentos para os modelos dos satélites.

O INPE efetua contratação das atividades de design e produção relativas aos equipamentos e subsistemas dos quais é autoridade – design authority. Estas contratações se dão por meio de licitações. Nos editais das licitações constam as declarações detalhadas de trabalho (DDT), ou statement of work (SOW), elaboradas, a partir das especificações, pelos engenheiros que se responsabilizarão pelo acompanhamento técnico das fases dos contratos.

Estas fases são estabelecidas por meio de marcos contratuais que permitem ao corpo técnico do INPE acompanhar a progressiva materialização das entregas. As transições de fases apresentam os seguintes marcos: system design review (SDR); preliminary design review (PDR)

GPM

GPM GPM

Brasil China

INPE CAST JPO

JPC

GPM

ETG EMG

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e critical design review (CDR). Juntamente com a CDR ocorre a entrega dos modelos de engenharia dos subsistemas. As próximas fases marcam as entregas dos modelos de qualificação e modelos de vôo. Estas entregas são feitas formalmente aos técnicos que pertencem à JPO, que são os responsáveis pela aceitação destas entregas. Caso as entregas não sejam aceitas, são gerados os itens de ação, que são anotações de correções de diversas naturezas que a empresa contratada precisa atender antes do evento contratual ser considerado aceito.

Vale ressaltar que no modelo de cooperação estabelecido entre o Brasil e a China foram envolvidas capacitações técnicas e gerenciais complementares, sem o compromisso formal de transferência de tecnologia entre as partes. Em muitos casos, no entanto, a interação entre as equipes se encarrega de promover a troca de conhecimentos entre as equipes.

4.3. Criação de capacitações em integração de sistemas

4.3.1 CBERS 1&2 Quando o Brasil estabeleceu o acordo de cooperação, a China já havia iniciado um projeto

para a produção de um satélite de sensoriamento remoto, que estava na transição entre as fases conceitual e de desenvolvimento. Apesar disso, não houve impedimentos para que diversas modificações fossem introduzidas por influencia da equipe do INPE durante a fase de definição preliminar do projeto, estabelecida depois da entrada do Brasil no programa. Estas modificações ocorreram em diversos níveis: desde aquelas com impacto sobre todo o programa, como a implantação do método sistêmico de gerenciamento e de garantia da qualidade do produto, até aquelas de natureza mais específica, como a introdução do subsistema de imageamento de amplo campo de visada – Wide Field Imager (WFI).

Alguns aspectos, de relevância para a criação de capacitações em integração de sistemas, foram objetos de preocupação pelo lado brasileiro na fase de preparação do acordo. Entre estes aspectos, destacam-se as atividades de montagem, integração e testes (AIT) de um modelo de vôo no Brasil e a operação dos satélites feitas pelo lado brasileiro.

Em nível de subsistemas, a divisão de trabalho ocorreu da forma apresentada na tabela 1 abaixo.

Módulo Subsistema Autoridade de Design Estrutura Brasil Controle Térmico China Controle de Órbita e Atitude China Cablagem China Suprimento de Energia Brasil Supervisão de Bordo China

Módulo de Serviço

Telecomunicações de Serviço Brasil/China Câmera CCD China Câmera IRMSS China Câmera WFI Brasil Transmissor de Dados Imagem China Sistema de Coleta de Dados Brasil

Módulo de Carga Útil

Monitor de Ambiente Espacial China Tabela 1: Divisão de trabalho entre subsistemas, CBERS 1&2 Fonte: INPE

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Em termos de capacitação, o Brasil encontra-se hoje em condições de desenvolvimento autônomo de todos os subsistemas mencionados na tabela 1, com exceção do subsistema de controle de órbita e atitude. Neste subsistema, existe grande preocupação quanto ao controle de informações, pois esta tecnologia é considerada sensível devido às possibilidades de uso militar. Como consequência, este é o subsistema onde as capacitações tecnológicas brasileiras continuam relativamente baixas, existindo grande dependência de fontes externas para o seu desenvolvimento, embora se consiga fazer as especificações em nível de sistema. Com relação aos projetos visando ao fechamento deste gap tecnológico, vale citar o projeto de Sistemas Inerciais de Aplicação Aeroespacial (SIA). Este projeto, liderado pelo CTA e o INPE, com participação de 60 % e 40 % respectivamente, visa ao desenvolvimento de tecnologia de navegação inercial no país e é financiado pela FINEP/MCT, por meio das Ações Transversais dos Fundos Setoriais.

O CBERS 1 foi integrado na China, conforme previsto no acordo original. Quanto ao CBERS 2, em 1993 foi assinado um termo complementar, que atendeu dois aspectos dos anseios brasileiros. Um destes aspectos foi a realização da montagem, integração e testes (Assembly, Integration and Testing - AIT) - do modelo de vôo 2 (Flight Model 2 - FM2) nas instalações do INPE. O outro aspecto foi a operação do satélite feita pela equipe brasileira.

O laboratório de integrações e testes (LIT), concebido em 1978, efetuou diversas melhorias para que se pudessem realizar as atividades de integração e testes em um satélite do porte e complexidade do CBERS.

O CBERS 1 foi colocado em órbita em 1999 pelo foguete chinês Longa Marcha 4b a partir do centro de lançamento de Taiyuan. O lançamento do CBERS-2 foi em 2003.

A vida útil dos CBERS 1 & 2 era prevista para dois anos, com 60% de confiabilidade. Ambos os satélites operaram por um período próximo ao dobro do tempo inicialmente previsto.

4.3.2 Propriedades Emergentes Quando em um sistema existe necessidade de integração de diferentes tecnologias, que

desempenham diversas funções que não podem ser completamente desacopladas, este sistema fica sujeito ao que se convenciona chamar de incerteza sistêmica (Rosenberg, 2006).

Em operação, isoladamente, estes equipamentos e subsistemas não apresentam nenhuma disfunção, mas quando integrados, a interdependência de um equipamento ou subsistema sobre o restante do sistema, ou o acoplamento subsistemas gera propriedades emergentes imprevistas e indesejadas. Existem técnicas de partição, ou decomposição da arquitetura do sistema que procuram evitar o acoplamento entre as suas funções. Na realidade, as capacitações em integração de sistemas têm suas origens na especialização de organizações em conceber a arquitetura de um sistema, decompô-la em subsistemas, os quais serão atribuídos a fornecedores ou parceiros que irão desenvolvê-los e produzi-los, e então integrá-los a jusante do processo. (Sapolsky, 2003).

Em sistemas complexos, como é o caso do CBERS, a quantidade de funções executadas após sua integração é muito grande e diversificada e os fenômenos de acoplamento são inevitáveis. Por mais elaboradas que sejam as técnicas de decomposição das arquiteturas, algumas propriedades emergentes somente são identificadas com o uso. Uma vez identificadas são efetuadas as análises de causa-efeito possíveis. Ressalta-se que este processo de análise se dá por tentativa e erro, pois as causalidades não são diretas. Ao contrário, em função da interdependência entre as partes, existe forte cumulatividade de efeitos, gerando ambigüidade causal.

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O caso de acoplamento que será apresentado a seguir pode ser enquadrado nesta categoria. Em função da experiência adquirida com a operação do CBERS-1, foram detectados acoplamentos entre subsistemas. Será feito uma descrição sucinta desta propriedade emergente.

A câmera IRMSS – imageador por varredura de média resolução - opera com um espelho que fica oscilando de forma a fazer a varredura da imagem sobre os diversos sensores ópticos, por isso fala-se em scanner da câmera. O movimento desse espelho provocou certas vibrações e, através de acoplamentos mecânicos entre os subsistemas, fez com que o espelho da câmera CCD – em negrito na tabela 1– entrasse em ressonância culminando na perda de nitidez da câmera. Para o CBERS 2, foram realizados outros testes e a análise conjunta de técnicos que trabalham com as imagens e técnicos de AIT permitiu que as causas acoplamento fossem identificadas e removidas. Vale ressaltar que este é um fenômeno não linear, o que torna a identificação de relações de causa e efeito ainda mais sutil.

4.3.3 CBERS 3&4

A segunda geração de satélites CBERS ocorre com a participação brasileira passando de

30% para 50%, e obedecerá à subdivisão de subsistemas apresentada na tabela 2 abaixo.

Módulo Subsistema Autoridade de Design Estrutura Brasil Controle Térmico China Controle de Órbita e Atitude China Suprimento de Energia Brasil Cablagem China Supervisão de Bordo China Gravador Digital de Dados Brasil

Módulo de Serviço

Telecomunicações de Serviço Brasil Câmera PAN China Câmera MUX Brasil Câmera IRS China Câmera WFI Brasil Transmissor de Dados da PAN e da IRS China Transmissor de Dados da MUX e da WFI Brasil Sistema de Coleta de Dados Brasil

Módulo de Carga Útil

Monitor de Ambiente Espacial China Tabela 2: Divisão de trabalho entre subsistemas, CBERS 3&4 Fonte: INPE Para os satélites CBERS 3&4, a participação de fornecedores brasileiros da indústria

espacial, por meio da contratação de serviços para os subsistemas que ficaram a cargo do Brasil, corresponderá a 52 % do total de recursos empregados pelo país. Importante lembrar que este aumento percentual de participação da indústria espacial brasileira se refere aos 50% do Brasil, enquanto que os 29% dos CBERS 1&2 se referem à participação de 30% do total. Para esta geração de satélites, o conhecimento gerado pela aprendizagem pelo uso foram incorporados ao design de engenharia deste subsistema. No CBERS 3&4, a câmera MUX – em negrito na tabela 2 – assumiu as funções desempenhadas pela câmera CCD dos CBERS 1&2.

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5. Análise O conceito de trajetória tecnológica é baseado no conceito kuhninano de pesquisa normal

(Dosi, 1988). Isto é, uma trajetória tecnológica é definida pelos resultados cumulativos de esforços de pesquisa visando à resolução de problemas, tendo como pano de fundo um paradigma tecnológico. A metáfora da pesquisa científica normal como “resolução de quebra-cabeças” também pode ser aplicada à trajetória tecnológica. Desta maneira, uma trajetória tecnológica é moldada por um conjunto de compromissos – “conceituais, teóricos, metodológicos e instrumentais” (Kuhn, 1995) – dos pesquisadores de determinada especialidade, que definem as regras que permitirão o progresso técnico. Em ambos os casos, a evolução ocorre por meio da resolução de problemas. É o paradigma tecnológico que define as regras metodológicas ou prescrições sobre as direções de mudança técnica que devem ser investigadas e direções que devem ser evitadas. Estas trajetórias tecnológicas são definidas por sequências de inovações incrementais, que caracterizam o progresso técnico.

Esta seção analisa a resolução de problemas, decorrentes de propriedades emergentes, em sistemas complexos, associando-as aos desafios da pesquisa normal para determinação de fato significativo.

Como relatado acima, o estabelecimento de um paradigma – científico ou tecnológico – define um período em que os pesquisadores estão comprometidos com a resolução de quebra-cabeças. A resolução de quebra-cabeças requer a definição de regras – ou “concepção prévia”. No caso de sistemas complexos, as regras são definidas pela arquitetura do sistema, e seu refinamento progressivo, realizado por meio de designs de engenharia de seus subsistemas, define a direção e a taxa de mudança técnica de determinada trajetória tecnológica. As regras limitam o conjunto de soluções aceitáveis, e quais elementos devem ser relacionados para atingi-las. São regras estáveis que permitem ao pesquisador utilizar os conhecimentos existentes para solucionar “problemas esotéricos”.

As propriedades emergentes, aqui analisadas, referem-se à divergência entre o comportamento esperado do sistema e o comportamento real, quando o sistema em operação interage com seu ambiente físico-social. Isto é, quando todos os subsistemas que o compõem, bem como outros sistemas integrados a este e seus operadores interagem para gerar o resultado da missão.

O conhecimento conceitual, por meio da avaliação do conjunto de requisitos de alto nível do sistema, possibilitou a definição de uma arquitetura de sistema capaz de atender a este conjunto de requisitos, permitiu que fosse estabelecida determinada expectativa com relação ao desempenho do futuro sistema. A progressiva elaboração do projeto refinou estas expectativas, através de sucessivas verificações e validações, feitas por uma ampla quantidade de testes desde o nível de componentes até o nível ambiental, que simulam as condições em que o sistema irá operar. No entanto, a observação do sistema em seu ambiente operacional constatou que existia divergência entre o desempenho esperado e aquele que, de fato, ocorria.

No caso considerado, existia uma divergência entre a qualidade esperada da imagem e aquela gerada pelo principal imageador do satélite, a câmera CCD, quando em operação. A qualidade da imagem conseguida, quando os dados gerados pela câmera eram recebidos pelo sistema de rastreio e controle e convertidos em imagem por meio de aplicativos, apresentava atributos inferiores aos previstos nos requisitos funcionais do subsistema. No início da investigação sobre as possíveis causas da divergência, pensava-se em limitação de desempenho do próprio subsistema, a câmera CCD. Duas das disciplinas tecnológicas – óptica e microeletrônica – se acusavam mutuamente quanto às possíveis causas do limitado desempenho

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do imageador. Esta é uma típica de situação de ambiguidade causal: não se sabe qual a causa da divergência, e também se o desempenho previsto poderá ser alcançado.

Muitas vezes, não se consegue estabelecer as relações de causalidade entre eventos. As condições de implementação do sistema aliada à repetida observação dos fatos, que foram analisados por uma equipe multidisciplinar, comprometida com a resolução do problema, criou as condições para o desenvolvimento de um conhecimento operacional, que com base no conhecimento conceitual, indica algumas possíveis causas para o problema.

Deve ser ressaltado que a origem dos fatos analisados dependia das equipes que conceberam, desenvolveram, integraram, lançaram e estavam operando os satélites. A figura 2 abaixo representa os domínios do conhecimento – entendimento do comportamento do sistema em seu ambiente de operação -, da organização – rotinas organizacionais do INPE e CAST das equipes de lançamento, engenharia espacial, controle de atitude e órbita e observação da terra – e do produto – ciclo de vida do sistema, composto pelo ciclo de vida do projeto mais as operações, também indicando atividades do INPE e da CAST e atividades conjuntas: definição da arquitetura e integração. A engenharia espacial inicia o ciclo de vida do projeto (fluxo 1). Para definir a arquitetura do sistema ela deve estar em contato com os segmentos de lançamento, de controle - de atitude e órbita - e observação da terra. A operação ocorria por meio das equipes que controlavam sua orbita e atitude e daquelas equipes que convertiam seus dados em imagens, a observação da terra (fluxo 2). A divergência entre a qualidade de imagem gerada e aquela prevista pelo projeto é mostrada no fluxo 3.

A interação entre estas equipes, mostradas na figura 3 abaixo, que utilizavam em sua investigação os conhecimentos operacionais e conceituais disponíveis, cria as condições para a descoberta da causa da divergência entre o comportamento previsto e aquele que, de fato, era constatado (fluxo 1). Esta interação, dinâmica, concreta e relacional – entendimento integrado, representado no domínio do conhecimento –, permite o fechamento de um ciclo de aprendizagem, que ao mesmo tempo é baseado em conhecimentos conceituais e operacionais e gera outros conhecimentos conceituais e operacionais (fluxo 2). Desta maneira, a aprendizagem pelo uso, requerida para o refinamento do design, e que depende da integração de fluxos de informações e conhecimentos, de diversas fontes, apresentam forte caráter idiossincrático.

Enquanto a gestão de conhecimento tradicional enfoca um tipo de conhecimento que as pessoas possuem – epistemologia da posse –, a aprendizagem pelo uso deve ser entendida como epistemologia voltada à prática. E requer a integração de conhecimentos conceituais e operacionais para ocorrer.

O caráter idiossincrático deste conhecimento fica claramente identificado por meio da iteração entre os processos de aprendizagem pelo uso e os processos que definiram as fases do ciclo de vida do projeto, gerando novos conhecimentos organizacionais. Estes novos conhecimentos gerados têm como fundamento o estoque de conhecimento previamente existente na organização. O conhecimento gerado se estrutura a partir do previamente existente, a partir de regras, ou arquiteturas de sistemas previamente definidas (Chagas Junior, 2009).

No caso analisado, a autoridade sobre o design de engenharia dos subsistemas envolvidos diretamente com o fenômeno da propriedade emergente era da CAST. No entanto, a capacidade de absorção (Cohen e Levinthal, 1989) das equipes do INPE, permitiu uma ativa atuação no esforço de pesquisa para diagnosticar e sanar o problema.

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Figura 2: Domínios do Produto, da Organização e do Conhecimento– CBERS 1 Entendimento do comportamento do sistema em seu ambiente de operação. Fonte: Chagas Junior, 2009

Figura 3: Fechamento do ciclo de aprendizagem pelo uso: a partir da integração entre rotinas organizacionais, evitou-se o acoplamento mecânico entre subsistemas no domínio do produto, CBERS 2. Fonte: Chagas Junior, 2009

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No lançamento do CBERS 2, figura 3 acima, o elemento que entrava em ressonância por apresentar a frequência similar ao do scanner da câmera IRMSS foi retirado, embora o design de engenharia do subsistema não tenha sido alterado. Isto aconteceu porque o subsistema já havia sido produzido. Na realidade, quando o problema foi detectado, o projeto do CBERS 2 estava em sua fase final de integração e testes (fluxo 3). Este conhecimento foi incorporado ao design de engenharia da câmera MUX do CBERS 3&4. Neste projeto, a autoridade de design de engenharia da câmera equivalente à CCD – chamada agora de câmera MUX – passou para o lado brasileiro, como consta da tabela 2, por meio de uma empresa contratada pelo INPE: a OPTO. O fluxo 3, neste caso, deveria ser direcionado ao desenvolvimento, com a incorporação de conhecimento no design de engenharia do subsistema.

A incorporação deste novo conhecimento ao design de engenharia do subsistema também representa uma característica da cumulatividade do conhecimento tecnológico. Os esforços de pesquisa que permitem o estabelecimento dos ciclos de aprendizagem se acumulam ao longo de determinada trajetória, seguindo as regras determinadas pela arquitetura do sistema. As possibilidades incrementais de melhorias do sistema são fortemente condicionadas a formas de percepção, compartilhadas pelas equipes de projetos – rotinas organizacionais –, que são integradas conforme a arquitetura do sistema.

Propriedades emergentes de sistemas complexos diminuem a capacidade preditiva de desempenho dos sistemas em seu ambiente de operação (Hobday, 1998; Sage a Lynch 1998). Isto ocorre porque o número de interações entre componentes do sistema aumenta exponencialmente com o número de componentes, possibilitando muitos novos e sutis tipos de comportamentos emergentes. Interações que não tenham sido completamente consideradas podem levar à falha do sistema. Interações concorrentes são potencialmente geradoras de fenômenos de propriedades emergentes.

“…systems approach… tries to focus on the whole of a system, attempting to take into account interrelationships between parts of the system, whether inadvertent or intentional. These are sometimes called interactions and interfaces, and empirical data support the notion that rather than devil being in the details, it´s in interaction and interfaces. Interactions that we have not fully accounted for can cause complex system to fail, at times catastrophically.”(Eisner, 2005 p. 152)

No caso analisado, observou-se o acoplamento mecânico entre as câmeras IRMSS e a

CCD. Este acoplamento era devido a frequência de vibração do scanner ser aproximadamente igual a frequência de ressonância da mola de sustentação do espelho da CCD.

Em termos de criação de valor econômico, estas inovações incrementais, decorrentes da resolução de problemas, são extremamente significativas. À medida que a economicidade da tecnologia, traduzida por oportunidades crescentes de usos produtivos se estabelece, o financiamento do esforço inovador torna-se mais facilmente justificável. Organizações de reconhecida importância na realidade brasileira, como Petrobrás, Embrapa e Incra, não só fazem intenso uso das imagens geradas pelos satélites da plataforma CBERS, como estabeleceram requisitos para estes satélites.

O tempo de maturação requerido para que as organizações dominem tecnologias complexas é contado em décadas. É necessário investimento, de forma continuada, por meio de políticas industriais com vistas à formação de cadeias de valor de alta tecnologia, que consigam introduzir a mudança tecnológica no sistema econômico, aumentando sua produtividade.

O programa CBERS mostra-se como um caso de sucesso em indústria de alta tecnologia e a terceira geração de satélites da plataforma, CBERS 5&6, tende a fortificar a indústria espacial

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no Brasil, consolidando um padrão tecnológico de sensoriamento remoto, com ganhos tecnológicos e econômicos para as partes envolvidas.

6. Conclusões A criação e exercício de capacitações em integração de sistemas veem permitindo que o

INPE busque um posicionamento progressivamente favorável na cadeia de valor da indústria espacial, principalmente por meio do programa CBERS. Estas capacitações surgem da integração de conhecimentos de diversas e diferentes especializações e se dão por meio da integração das rotinas organizacionais. O progressivo refinamento do design, com base na arquitetura da plataforma CBERS, vem permitindo que novos e diferentes usos sejam feitos a partir das imagens geradas pelos satélites de sensoriamento remoto. Estes novos usos aumentam a criação de valor por meio da introdução da mudança técnica no sistema econômico, traduzido em termos de aumento de produtividade dos diversos setores que fazem uso destas imagens.

A pesquisa lança luz sobre o nível adequado de integração em projetos de sistemas complexos, uma vez que os diferentes ritmos de mudança técnica e as propriedades emergentes impõem desafios de comunicação entre organizações, para que se consiga a convergência entre os requisitos planejados e os que, de fato, são resultados do projeto. Em função destes desafios, não se deve imaginar que a modularidade de produtos implica a modularidade de organizações com progressivas especializações em pesquisa e desenvolvimento. Organizações com capacitações em integração de sistemas são requeridas para lidar com propriedades emergentes e com diferentes ritmos de mudança técnica das disciplinas que fundamentam estes produtos. A iteração entre os processos de aprendizagem pelo uso e os processos definidos no ciclo de vida do projeto tendem a ter relevância crescente no refinamento do design, especialmente, em face da incerteza sistêmica.

“The notion that thought, apart from action, can warrant complete certitude as to the status of supreme good, makes no contribution to the central problem of development of intelligent methods of regulation.” (Dewey, 1960, Pag 36.)

Além disso, capacitações em integração de sistemas constituem uma efetiva estratégia para o

fechamento de gaps tecnológicos. De maneira geral, à medida que as organizações competem em um mundo crescentemente

interconectado, as capacitações em integração de sistemas se tornam mais importantes para que os processos de inovação tecnológica sejam bem sucedidos. Isto inclui o efetivo gerenciamento de relações com diferentes culturas organizacionais. De maneira especifica, em sistemas complexos, com crescente especialização de diferentes disciplinas científicas e tecnológicas, que fundamentam estes produtos, as capacitações em integração de sistemas são estratégicas, considerando que é por meio delas que se torna possível um posicionamento na cadeia de valor de uma indústria, com vistas à criação e captura de valor econômico.

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