proposiÇÃo de parÂmetros para o controle de … 1.pdf · a garantia dos direitos fundamentais é...

28
93 Eliane Pires Araújo* PROPOSIÇÃO DE PARÂMETROS PARA O CONTROLE DE POLÍTICAS PÚBLICAS EM MATÉRIA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS PROPOSING PARAMETERS FOR THE CONTROL OF PUBLIC POLICES ON FUNDAMENTAL SOCIAL RIGHTS PROPONER PARÂMETROS PARA EL CONTROL DE LAS POLÍTICAS PÚBLICAS EN MATERIA DE DERECHOS SOCIALES FUNDAMENTALES Resumo: O Poder Judiciário, por força do princípio da inafastabilidade da juris- dição, é legitimado para efetuar o controle de políticas públicas em matéria de direitos fundamentais sociais, quando ausente ou ineficaz a atuação legislativa e/ou executiva. As decisões judiciais nessa seara devem afastar-se do voluntarismo e buscar a racionalidade, sendo imprescindível para tanto a construção de parâmetros objetivos para fundamentar o controle jurídico da matéria. Abstract: The judiciary, under the principle of inafastabilidade the jurisdiction, is legitimated to effect control of public policies on fundamental social rights, when absent or ineffective legislative and / or executive action. Judicial decisions that harvest should depart from the voluntarism and seek rationality is indispensable for both the construction of objective parameters to support the legal control of matter. Resumen: El poder judicial, bajo el principio de la inafastabilidade de la jurisdic- ción, és el legitimado para efectuar el control de las políticas públicas en materia de derechos sociales fundamentales, cuando la acción le- gislativa y / o ejecutivo ausente o ineficaz. Las decisiones judiciales que cosechan deben apartarse del voluntarismo y buscar la raciona- * Pós-graduanda em Direito Público pela Faculdade de Direito Damásio de Jesus. Graduada em Direito pela UFG. Assistente Administrativo do MP-GO.

Upload: others

Post on 22-Jul-2020

2 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: PROPOSIÇÃO DE PARÂMETROS PARA O CONTROLE DE … 1.pdf · A garantia dos direitos fundamentais é condição indispen - sável para a concretização do Estado Democrático de Direito,

93

Eliane Pires Araújo*

PROPOSIÇÃO DE PARÂMETROS PARA O CONTROLE DE POLÍTICAS PÚBLICAS EM MATÉRIA DE

DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS

PROPOSING PARAMETERS FOR THE CONTROL OF PUBLIC POLICES ON FUNDAMENTAL SOCIAL RIGHTS

PROPONER PARÂMETROS PARA EL CONTROL DE LAS POLÍTICAS PÚBLICAS EN MATERIA DE DERECHOS SOCIALES FUNDAMENTALES

Resumo:

O Poder Judiciário, por força do princípio da inafastabilidade da juris-

dição, é legitimado para efetuar o controle de políticas públicas em

matéria de direitos fundamentais sociais, quando ausente ou ineficaz

a atuação legislativa e/ou executiva. As decisões judiciais nessa seara

devem afastar-se do voluntarismo e buscar a racionalidade, sendo

imprescindível para tanto a construção de parâmetros objetivos para

fundamentar o controle jurídico da matéria.

Abstract:

The judiciary, under the principle of inafastabilidade the jurisdiction, is

legitimated to effect control of public policies on fundamental social

rights, when absent or ineffective legislative and / or executive action.

Judicial decisions that harvest should depart from the voluntarism and

seek rationality is indispensable for both the construction of objective

parameters to support the legal control of matter.

Resumen:

El poder judicial, bajo el principio de la inafastabilidade de la jurisdic-

ción, és el legitimado para efectuar el control de las políticas públicas

en materia de derechos sociales fundamentales, cuando la acción le-

gislativa y / o ejecutivo ausente o ineficaz. Las decisiones judiciales

que cosechan deben apartarse del voluntarismo y buscar la raciona-

* Pós-graduanda em Direito Público pela Faculdade de Direito Damásio de Jesus.Graduada em Direito pela UFG. Assistente Administrativo do MP-GO.

Page 2: PROPOSIÇÃO DE PARÂMETROS PARA O CONTROLE DE … 1.pdf · A garantia dos direitos fundamentais é condição indispen - sável para a concretização do Estado Democrático de Direito,

lidad que es indispensable tanto para la construcción de parámetros

objetivos como para apoyar el control legal de la materia.

Palavras-chave:

Legitimidade; racionalidade; decisões judiciais.

Keywords:

Legitimacy; rationality; judicial decisions.

Palabras clave:

Legitimidad; racionalidad; decisiones judiciales.

INTRODUÇÃO

A garantia dos direitos fundamentais é condição indispen-sável para a concretização do Estado Democrático de Direito, fun-dado pela Constituição Federal de 1988. Entretanto, é certo que osdireitos fundamentais sociais dependem da elaboração e da imple-mentação de políticas estatais para se realizarem. As políticas públicas são incumbência constitucional dosPoderes Legislativo e Executivo. Todavia, em caso de inércia ou ine-ficiência desses, o Poder Judiciário pode assegurar a fruição dos di-reitos fundamentais sociais positivados, face ao caráter vinculantedo texto constitucional. Ao atribuir-se ao princípio da separação dos poderes e à teo-ria da reserva do possível nova interpretação e superadas eventuaiscríticas democráticas e institucionais, é pacífica na doutrina e na juris-prudência a legitimidade do Poder Judiciário para o controle de políti-cas públicas em matéria de direitos fundamentais sociais. Contudo,consideradas as peculiaridades inerentes às políticas públicas, as de-cisões sobre a matéria exigem uma motivação qualificada. É notória a grande extensão da matéria. Assim, o estudoaqui proposto limitar-se-á à análise dos parâmetros propostos peladoutrina a fim de atribuir maior racionalidade às decisões judiciais,afastando-as do voluntarismo e tornando prático o discurso de su-perioridade e normatividade da Constituição e da prevalência dos di-reitos fundamentais.

94

Page 3: PROPOSIÇÃO DE PARÂMETROS PARA O CONTROLE DE … 1.pdf · A garantia dos direitos fundamentais é condição indispen - sável para a concretização do Estado Democrático de Direito,

DAS POLÍTICAS PÚBLICAS ENQUANTO INSTRUMENTO DEREALIZAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS

Os direitos sociais, genericamente enunciados no artigo6º da nossa Constituição de 1988, exigem, para a sua implemen-tação, uma necessária intervenção do Estado. Nesse sentido,Dirley da Cunha Júnior1 assevera que:

[...] os direitos sociais, para serem usufruídos, reclamam, em face desuas peculiaridades, a disponibilidade das prestações materiais queconstituem seu objeto, já que tutelam interesses e bens voltados àrealização da justiça social. Daí dizer-se corretamente que os direitossociais não são direitos contra o Estado, mas sim direitos através doEstado, porquanto exigem dos órgãos do poder público certas pres-tações materiais. . (Grifos do original).

Uma vez que esses direitos demandam medidas desti-nadas à redução das desigualdades, para que se possa concre-tizá-los, exigem-se do Estado prestações positivas, impõem-seobrigações de fazer.

Diante do reconhecimento dessas necessidades, as po-líticas públicas surgem como principal instrumento de efetivaçãodesses direitos de cunho prestacional. Noutras palavras, as polí-ticas públicas têm como objetivo primordial concretizar os direitossociais.

Ana Paula de Barcellos2, com fulcro no texto constitucio-nal, apresenta o seguinte conceito para a expressão “políticaspúblicas”:

[...] compete à Administração Pública efetivar os comandos geraiscontidos na ordem jurídica e, para isso, cabe-lhe implementar açõese programas dos mais diferentes tipos, garantir a prestação de de-terminados serviços, etc. Esse conjunto de atividades pode ser iden-tificado como ‘políticas públicas’. É fácil perceber que apenas pormeio das políticas públicas o Estado poderá, de forma sistemática e

95

1 CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de direito constitucional. 3. ed. Salvador: EditoraJusPODIVM, 2009. p. 716-717. 2 BARCELLOS, Ana Paula de. Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais e con-trole das políticas públicas. Cadernos da Escola de Direito e Relações Internacionaisda Unibrasil. Curitiba, v. 5, n. 5, jan./dez., 2005. p. 133.

Page 4: PROPOSIÇÃO DE PARÂMETROS PARA O CONTROLE DE … 1.pdf · A garantia dos direitos fundamentais é condição indispen - sável para a concretização do Estado Democrático de Direito,

abrangente, realizar os fins previstos na Constituição (e muitas vezesdetalhados pelo legislador), sobretudo no que diz respeito aos direitosfundamentais que dependam de ações para sua promoção.

Muito embora não se olvide do fato de não haver na doutrinae na jurisprudência pátrias uniformidade quanto à definição da ex-pressão “políticas públicas”, esta pode ser conceituada como instru-mento de que se vale o Estado para efetivar os direitos fundamentais.

BREVES CONSIDERAÇÕES ACERCA DA LEGITIMIDADEDO PODER JUDICIÁRIO PARA EFETUAR O CONTROLE DEPOLÍTICAS PÚBLICAS

A delimitação constitucional de competências reservouaos Poderes Legislativo e Executivo a responsabilidade para aformulação e implementação de políticas públicas sobre direitosfundamentais sociais. Entretanto, tais poderes descumprem ha-bitualmente esse dever.

A ineficiência da Administração na concretização de taisdireitos é acentuada pela coexistência da precariedade de servi-ços públicos indispensáveis e da ausência de direitos básicoscom altas rubricas gastas com publicidade governamental.

A Constituição Federal de 1988 consagrou no Direito bra-sileiro três premissas básicas do neoconstitucionalismo, a saber,a normatividade, a superioridade e a centralidade da Constituiçãono ordenamento jurídico. Estabelecido o seu caráter de norma ju-rídica, o texto constitucional tornou-se imperativo e vinculante, im-pondo sua observância aos poderes públicos e aos particulares.

Na medida em que a Constituição tutela uma série de di-reitos fundamentais, e que, por força do princípio da inafastabili-dade da jurisdição, previsto em seu artigo 5º, inciso XXXV, aoJudiciário é vedado escusar-se de decidir lide posta em juízo,houve um aumento expressivo, pós-88, das demandas judiciaisque versam sobre o controle de políticas públicas.

Em verdade, o objetivo maior da judicialização de questõessociais é a concretização dos direitos fundamentais sociais constitu-cionalmente consagrados e que, por ineficiência ou inércia dos Po-deres Legislativo e Executivo, não são usufruídos por seus titulares.

96

Page 5: PROPOSIÇÃO DE PARÂMETROS PARA O CONTROLE DE … 1.pdf · A garantia dos direitos fundamentais é condição indispen - sável para a concretização do Estado Democrático de Direito,

Uma vez que os direitos sociais exigem do Estado pres-tações positivas e impõem obrigações de fazer, as políticas públi-cas surgem como principal instrumento para a sua efetivação e,em que pese a atribuição prima facie dos Poderes Legislativo eExecutivo para a sua formulação e implementação, o caráter cons-titucional e vinculante de que se revestem os direitos sociais impõeque a sua concretização seja levada a cabo pelo Poder Judiciário.

Nessa senda, o Poder Judiciário só é provocado a atuarquando há uma “disfunção política”, isto é, “um desvio do naturalcurso do interesse público, uma fuga do dever-poder que está nabase do plexo de competências atribuído a cada um dos órgãosestatais como (re)presentantes do povo brasileiro e do projetoconstitucional de sociedade”3.

Salienta-se que as decisões judiciais nesse campo nãosubstituem a vontade do administrador ou do legislador. O Judi-ciário, ao resolver as questões em litígio, realiza o cumprimentoda Constituição.

Acrescenta-se que as três funções devem atuar de formaa realizar os mandamentos da Lei Fundamental. A margem dediscricionariedade porventura atribuída ao administrador para aaplicação da lei reside nos meios para a realização dos fins pro-postos pela norma, e não na possibilidade de concretizá-los ounão. Estabelecido o dever de realizar prestações, como no casodo direito à educação e à saúde, e havendo omissão na sua con-secução, a atuação judicial é necessária para fazer valer o dis-posto na Constituição ou na lei.

Nesse diapasão, o Supremo Tribunal Federal já se posi-cionou no sentido de que, embora a atribuição de implementar po-líticas públicas não se inclua dentre as funções institucionaisoriginárias do Poder Judiciário, tal incumbência lhe poderá, excep-cionalmente, ser imputada, quando o Poder Público descumpre en-cargos político-jurídicos que sobre ele incidem em caráterimpositivo e cuja omissão compromete a eficácia e a integridadede direitos individuais e/ou coletivos impregnados de estatura

97

3 ZANETI JR., Hermes. A Teoria da Separação de Poderes e o Estado DemocráticoConstitucional: Funções de Governo e Funções de Garantia. In: GRINOVER, Ada Pel-legrini; WATANABE, Kazuo (Org.). O controle jurisdicional de políticas públicas. Rio deJaneiro: Forense, 2011. p. 47.

Page 6: PROPOSIÇÃO DE PARÂMETROS PARA O CONTROLE DE … 1.pdf · A garantia dos direitos fundamentais é condição indispen - sável para a concretização do Estado Democrático de Direito,

constitucional. Calha transcrever trecho da ementa do julgado, derelatoria do Ministro Celso de Mello4:

E M E N T A: CRIANÇA DE ATÉ CINCO ANOS DE IDADE - ATENDI-MENTO EM CRECHE E EM PRÉ-ESCOLA – [...] COMPREENSÃOGLOBAL DO DIREITO CONSTITUCIONAL À EDUCAÇÃO - DEVERJURÍDICO CUJA EXECUÇÃO SE IMPÕE AO PODER PÚBLICO, NO-TADAMENTE AO MUNICÍPIO (CF, ART. 211, § 2º) - LEGITIMIDADECONSTITUCIONAL DA INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIOEM CASO DE OMISSÃO ESTATAL NA IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍ-TICAS PÚBLICAS PREVISTAS NA CONSTITUIÇÃO - INOCORRÊN-CIA DE TRANSGRESSÃO AO POSTULADO DA SEPARAÇÃO DEPODERES - PROTEÇÃO JUDICIAL DE DIREITOS SOCIAIS, ES-CASSEZ DE RECURSOS E A QUESTÃO DAS “ESCOLHAS TRÁGI-CAS” - RESERVA DO POSSÍVEL, MÍNIMO EXISTENCIAL,DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E VEDAÇÃO DO RETRO-CESSO SOCIAL - PRETENDIDA EXONERAÇÃO DO ENCARGOCONSTITUCIONAL POR EFEITO DE SUPERVENIÊNCIA DE NOVAREALIDADE FÁTICA - QUESTÃO QUE SEQUER FOI SUSCITADANAS RAZÕES DE RECURSO EXTRAORDINÁRIO -PRINCÍPIO“JURA NOVIT CURIA” - INVOCAÇÃO EM SEDE DE APELO EX-TREMO - IMPOSSIBILIDADE - RECURSO DE AGRAVO IMPRO-VIDO. POLÍTICAS PÚBLICAS, OMISSÃO ESTATALINJUSTIFICÁVEL E INTERVENÇÃO CONCRETIZADORA DOPODER JUDICIÁRIO EM TEMA DE EDUCAÇÃO INFANTIL: POSSI-BILIDADE CONSTITUCIONAL. [...] Embora inquestionável que re-sida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, aprerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-sepossível, no entanto, ao Poder Judiciário, ainda que em bases ex-cepcionais, determinar, especialmente nas hipóteses de políticaspúblicas definidas pela própria Constituição, sejam estas imple-mentadas, sempre que os órgãos estatais competentes, por des-cumprirem os encargos político- -jurídicos que sobre elesincidem em caráter impositivo, vierem a comprometer, com a suaomissão, a eficácia e a integridade de direitos sociais e culturaisimpregnados de estatura constitucional. DESCUMPRIMENTO DEPOLÍTICAS PÚBLICAS DEFINIDAS EM SEDE CONSTITUCIONAL:HIPÓTESE LEGITIMADORA DE INTERVENÇÃO JURISDICIONAL.- O Poder Público - quando se abstém de cumprir, total ou parcialmente,o dever de implementar políticas públicas definidas no próprio textoconstitucional - transgride, com esse comportamento negativo, a própriaintegridade da Lei Fundamental, estimulando, no âmbito do Estado, o

98

3 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental n. 639337. Relator: MinistroCelso de Mello. 01/09/2011. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia.html>. Acesso em: 28 ago. 2015.

Page 7: PROPOSIÇÃO DE PARÂMETROS PARA O CONTROLE DE … 1.pdf · A garantia dos direitos fundamentais é condição indispen - sável para a concretização do Estado Democrático de Direito,

preocupante fenômeno da erosão da consciência constitucional. Pre-cedentes: ADI 1.484/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.. - A inérciaestatal em adimplir as imposições constitucionais traduz inaceitávelgesto de desprezo pela autoridade da Constituição e configura, porisso mesmo, comportamento que deve ser evitado. É que nada se re-vela mais nocivo, perigoso e ilegítimo do que elaborar uma Cons-tituição, sem a vontade de fazê-la cumprir integralmente, ou,então, de apenas executá-la com o propósito subalterno de torná-la aplicável somente nos pontos que se mostrarem ajustados àconveniência e aos desígnios dos governantes, em detrimentodos interesses maiores dos cidadãos. - A intervenção do PoderJudiciário, em tema de implementação de políticas governamen-tais previstas e determinadas no texto constitucional, notada-mente na área da educação infantil (RTJ 199/1219-1220), objetivaneutralizar os efeitos lesivos e perversos, que, provocados pelaomissão estatal, nada mais traduzem senão inaceitável insulto adireitos básicos que a própria Constituição da República asseguraà generalidade das pessoas. Precedentes [...]. (Grifo nosso).

Ademais, é necessária a releitura do princípio da sepa-ração de Poderes, que não encontra fim em si mesmo e que so-mente se justifica após sua integração ao sistema de proteçãoconstitucional dos direitos fundamentais.

Nesse sentido é a advertência de Felipe de Melo Fonte5:

[...] Dentro da concepção jurídica em vigor, em que se assumiu a cen-tralidade do texto constitucional, que por sua vez está impregnado devalores, o princípio da separação de poderes nada mais é que uminstrumento em defesa dos próprios direitos fundamentais. Quandoo princípio é invocado para impedir a concretização de tais direitos,sua utilização é contrária a sua finalidade intrínseca.

Equivalente apontamento é observado na jurisprudênciado Superior Tribunal de Justiça6:

ADMINISTRATIVO. CONTROLE JUDICIAL DE POLÍTICAS PÚBLI-CAS. POSSIBILIDADE EM CASOS EXCEPCIONAIS - DIREITO À

99

5 FONTE, Felipe de Melo. A legitimidade do poder judiciário para o controle de políticaspúblicas. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico (REDAE). Salvador,Instituto Brasileiro de Direito Público, n. 18, mai./jun./jul., 2009. Disponível em:<http://www.direitodoestado.com/revista/REDAE-18-maio-2009-FELIPE-MELO.pdf>.Acesso em: 21 ago. 2015. p. 15.6 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1488639/SE. Relator: Ministro

Page 8: PROPOSIÇÃO DE PARÂMETROS PARA O CONTROLE DE … 1.pdf · A garantia dos direitos fundamentais é condição indispen - sável para a concretização do Estado Democrático de Direito,

SAÚDE. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS. MANIFESTA NE-CESSIDADE. OBRIGAÇÃO SOLIDÁRIA DE TODOS OS ENTES DOPODER PÚBLICO. NÃO OPONIBILIDADE DA RESERVA DO POS-SÍVEL AO MÍNIMO EXISTENCIAL. POSSIBILIDADE. [...] Não podemos direitos sociais ficar condicionados à boa vontade do Admi-nistrador, sendo de suma importância que o Judiciário atue comoórgão controlador da atividade administrativa. Seria distorçãopensar que o princípio da separação dos poderes, originalmenteconcebido com o escopo de garantia dos direitos fundamentais,pudesse ser utilizado justamente como óbice à realização dos di-reitos sociais, igualmente relevantes. 3. Tratando-se de direito es-sencial, incluso no conceito de mínimo existencial, inexistirá empecilhojurídico para que o Judiciário estabeleça a inclusão de determinadapolítica pública nos planos orçamentários do ente político, mormentequando não houver comprovação objetiva da incapacidade econô-mico-financeira da pessoa estatal. [...]. (Grifo nosso).

Cumpre salientar que a atuação do Poder Judiciário nocontrole das políticas públicas tem por escopo a preservação dasupremacia da Constituição e a tutela dos direitos fundamentaisnela consagrados, não merecendo prosperar críticas a este con-trole fundadas apenas na separação estanque de Poderes.

Demais disso, ressalta-se que o Poder Judiciário, em-bora careça de legitimidade democrática - entendida comoaquela derivada das urnas -, possui legitimidade constitucionalque se funda na proteção dos direitos fundamentais e no própriocaráter democrático da Constituição.

Em decisão monocrática proferida na Ação de Descum-primento de Preceito Fundamental n. 45/2004, o Ministro Celsode Mello ressaltou que as omissões estatais que desrespeitamos direitos fundamentais vão de encontro aos preceitos constitu-cionais, razão pela qual se acentua a dimensão política do Su-premo Tribunal Federal para julgar causa relacionada ao controlede políticas públicas. Cumpre transcrever trecho da decisão7:

[...] Essa eminente atribuição conferida ao Supremo Tribunal Federal

100

Herman Benjamin. 20/11/2014. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurispruden-cia.html>. Acesso em: 28 ago.2015. 7 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fun-damental n. 45. Relator: Ministro Celso de Mello. 29/04/2004. Disponível em:http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia.html>. Acesso em: 28 ago. 2015.

Page 9: PROPOSIÇÃO DE PARÂMETROS PARA O CONTROLE DE … 1.pdf · A garantia dos direitos fundamentais é condição indispen - sável para a concretização do Estado Democrático de Direito,

põe em evidência, de modo particularmente expressivo, a dimensãopolítica da jurisdição constitucional conferida a esta Corte, que nãopode demitir-se do gravíssimo encargo de tornar efetivos os direitoseconômicos, sociais e culturais – que se identificam, enquanto direitosde segunda geração, com as liberdades positivas, reais ou concretas[...] sob pena de o Poder Público, por violação positiva ou negativa daConstituição, comprometer, de modo inaceitável, a integridade da pró-pria ordem constitucional. [...] Se o Estado deixar de adotar as medi-das necessárias à realização concreta dos preceitos da Constituição,em ordem a torná-los efetivos, operantes e exeqüíveis, abstendo-se,em conseqüência, de cumprir o dever de prestação que a Constituiçãolhe impôs, incidirá em violação negativa do texto constitucional. [...] Aomissão do Estado - que deixa de cumprir, em maior ou em menorextensão, a imposição ditada pelo texto constitucional - qualifica-secomo comportamento revestido da maior gravidade político-jurídica,eis que, mediante inércia, o Poder Público também desrespeita aConstituição, também ofende direitos que nela se fundam e tambémimpede, por ausência de medidas concretizadoras, a própria aplica-bilidade dos postulados e princípios da Lei Fundamental [...].

Ademais, o Judiciário exerce função contramajoritária,tutelando, inclusive, o interesse das minorias, que muitas vezessão prejudicadas pela ditadura da maioria. O controle judicialconfigura, destarte, fator importante na proteção da democracia,uma vez que não há processo democrático em que os titularesdo direito a voto se encontram despidos de direitos materiais mí-nimos para a instrumentalização das liberdades públicas.

É o que sublinha Marco Antônio da Costa Sabino8:

[...] Demais disso, o processo judicial é um meio de levar ao debatepúblico direitos de minorias que, pelos processos políticos conven-cionais, talvez jamais seriam discutidos.Nesse ponto, é de se destacar uma importante corrente do pensa-mento econômico do Direito que demonstra o quão importante é oprocesso judicial como lócus de decisões judiciais, justamente paracorrigir as falhas recorrentemente ocorrentes nos processos políticostriviais, oriundas de interesses pessoais dos políticos (mais poder,mais votos, perpetuação no mandato) e de grupos de pressão, que,usando dos interesses em jogo, fazem aprovar leis e regulamentos

101

8 SABINO, Marco Antonio da Costa. Quando o Judiciário ultrapassa seus limites cons-titucionais e institucionais. O caso da saúde. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; WATA-NABE, Kazuo (Org.). O controle jurisdicional de políticas públicas. Rio de Janeiro:Forense, 2011. p. 365.

Page 10: PROPOSIÇÃO DE PARÂMETROS PARA O CONTROLE DE … 1.pdf · A garantia dos direitos fundamentais é condição indispen - sável para a concretização do Estado Democrático de Direito,

em seu prol, desvirtuando o desejo da verdadeira maioria. O processopolítico funcionaria como o Mercado, com a tomada de decisões em-basadas na equação de ganhos e perdas e custo e benefício.

De fato, não merece prosperar a objeção democrática aocontrole judicial de políticas públicas em matéria de direitos fun-damentais sociais. Em primeiro lugar, em virtude da falta de con-fiança depositada pela população nas instituições democrático-representativas. Em segundo lugar, porque a garantia dos direi-tos sociais é pressuposto para o exercício da cidadania, razãopela qual o controle judicial de políticas públicas ao invés de“risco” constitui importante fator de proteção da democracia. Emterceiro lugar, a aplicação do ordenamento jurídico decorrente danormatividade da Constituição não é incompatível com a demo-cracia, já que típica a função do Judiciário de aplicar o direito aocaso concreto9.

Além disso, o Poder Judiciário enfrenta o argumento deque não seria capaz de resolver questões de natureza macroes-trurural, como é o caso das políticas públicas. Entretanto, o própriosistema jurídico brasileiro já incorporou soluções para essa objeçãonos textos legais, especialmente nas ações e processos coletivos.

A título de ilustração, a Lei n. 7.347/85 prevê no âmbitodas ações civis públicas a possibilidade de realização de inqué-rito civil e a requisição de informações exames ou perícias dequalquer organismo público ou particular. Ainda, a Lei n.9.868/99, que disciplina regras para o controle abstrato de cons-titucionalidade prevê a figura do amicus curiae (intervenção deentidades da sociedade civil nas ações em trâmite perante o Su-premo Tribunal Federal) e a possibilidade de o relator designarperitos e realizar audiências públicas.

Como se nota, o objetivo dessas leis é permitir a partici-pação popular nos processos em que seus interesses estejamem jogo, o que, portanto, legitima a atuação judicial e afasta oargumento de que esta carece de capacidade técnica para ana-lisar a questão das políticas públicas, uma vez que novos atores

102

9 SARMENTO, Daniel. A Proteção Judicial dos Direitos Sociais: Alguns Parâmetros Ético-Jurídicos. In: SOUZA NETO, Claudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. (Coord.). DireitosSociais. Fundamentos, Judicialização e Direitos Sociais em Espécie. Rio de Janeiro:Editora Lumen Juris, 2010. p. 560-561.

Page 11: PROPOSIÇÃO DE PARÂMETROS PARA O CONTROLE DE … 1.pdf · A garantia dos direitos fundamentais é condição indispen - sável para a concretização do Estado Democrático de Direito,

são chamados para suprir as insuficiências do magistrado.Importa anotar, ainda, que todos os direitos, inclusive os

sociais, demandam o dispêndio de recursos públicos para a suarealização, embora os custos destes sejam de visualização maisevidente.

Nessa medida, uma vez que as necessidades são inú-meras e os recursos escassos, a implementação dos direitospassa a ser condicionada ao “financeiramente possível”.

Em sua concepção original, a teoria da reserva do pos-sível se traduziria no que o indivíduo poderia razoavelmente exi-gir do Estado, ou, em outras palavras, “significa entender que osdireitos subjetivos a prestações dependem de um exame de ra-zoabilidade da pretensão individual”10.

No panorama brasileiro, entretanto, a reserva do possívelgeneralizou-se e transformou-se em argumento simplista e re-tórico a favor da discricionariedade administrativa e contra a efe-tividade dos direitos fundamentais.

Frisa-se que, atualmente, tem-se interpretado a reservado possível sob dois aspectos: o jurídico - impossibilidade de al-teração do orçamento público por via judicial -, e o fático - insufi-ciência de recursos.

Do ponto de vista fático, apenas poderá ser alegada areserva do possível quando for comprovada a efetiva ausênciade recursos públicos pela Administração, não bastando mero ar-gumento de falta de dinheiro, consoante jurisprudência do Su-premo Tribunal Federal a seguir exemplificada11:

Ementa: AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁ-RIO. POLÍTICAS PÚBLICAS. SEGURANÇA PÚBLICA. DETERMI-NAÇÃO PELO PODER JUDICIÁRIO. LIMITES ORÇAMENTÁRIOS.VIOLAÇÃO À SEPARAÇÃO DOS PODERES. INOCORRÊNCIA.

103

10 MÂNICA, Fernando Borges. Teoria da Reserva do Possível: Direitos Fundamentais aPrestações e a Intervenção do Poder Judiciário na Implementação de Políticas Públicas.Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado (RERE), Salvador, Instituto Brasileiro deDireito Público, n. 21, mar./abr./mai., 2010. Disponível em: <http://www.direitodoestado.com/revista/RERE-21-MARCO-2010-FERNANDO-MANICA.pdf>. Acesso em: 10 ago. 2015. p. 27.11 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental n. 768825. Relator: MinistroRicardo Lewandowski. 12/08/2014. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurispru-dencia.html>. Acesso em: 28 ago. 2015.

Page 12: PROPOSIÇÃO DE PARÂMETROS PARA O CONTROLE DE … 1.pdf · A garantia dos direitos fundamentais é condição indispen - sável para a concretização do Estado Democrático de Direito,

104

AGRAVO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. I -A jurisprudência destaCorte entende ser possível ao Poder Judiciário determinar ao Estadoa implementação, em situações excepcionais, de políticas públicasprevistas na Constituição sem que isso acarrete contrariedade ao prin-cípio da separação dos poderes. II - Quanto aos limites orçamentá-rios aos quais está vinculado o recorrente, o Poder Público,ressalvada a ocorrência de motivo objetivamente mensurável,não pode se furtar à observância de seus encargos constitucio-nais. III - Agravo regimental a que se nega provimento. (Grifo nosso).

No mesmo sentido é a jurisprudência do Superior Tribu-nal de Justiça12:

ADMINISTRATIVO. DIREITO À SAÚDE. DIREITO SUBJETIVO.PRIORIDADE. CONTROLE JUDICIAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS.ESCASSEZ DE RECURSOS. DECISÃO POLÍTICA. RESERVA DOPOSSÍVEL. MÍNIMO EXISTENCIAL. [...] A reserva do possível nãoconfigura carta de alforria para o administrador incompetente, relapsoou insensível à degradação da dignidade da pessoa humana, já queé impensável que possa legitimar ou justificar a omissão estatalcapaz de matar o cidadão de fome ou por negação de apoio médico-hospitalar. A escusa da "limitação de recursos orçamentários" fre-quentemente não passa de biombo para esconder a opção doadministrador pelas suas prioridades particulares em vez daquelasestatuídas na Constituição e nas leis, sobrepondo o interesse pessoalàs necessidades mais urgentes da coletividade. O absurdo e a aber-ração orçamentários, por ultrapassarem e vilipendiarem os limites dorazoável, as fronteiras do bom-senso e até políticas públicas legisla-das, são plenamente sindicáveis pelo Judiciário, não compondo, emabsoluto, a esfera da discricionariedade do Administrador, nem indi-cando rompimento do princípio da separação dos Poderes. 6. "A rea-lização dos Direitos Fundamentais não é opção do governante, nãoé resultado de um juízo discricionário nem pode ser encarada comotema que depende unicamente da vontade política. Aqueles direitosque estão intimamente ligados à dignidade humana não podem serlimitados em razão da escassez quando esta é fruto das escolhas doadministrador" (REsp. 1.185.474/SC, Rel. Ministro Humberto Martins,Segunda Turma, DJe 29.4.2010). 7. Recurso Especial provido.

Do ponto de vista jurídico, o problema da falta de previsãoorçamentária pode ser solucionado pelo magistrado ao fazer incluir

12 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1068731/RS. Relator: Mi-nistro Herman Benjamin. 17/02/2011. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/juris-prudencia.html>. Acesso em: 28 ago. 2015.

Page 13: PROPOSIÇÃO DE PARÂMETROS PARA O CONTROLE DE … 1.pdf · A garantia dos direitos fundamentais é condição indispen - sável para a concretização do Estado Democrático de Direito,

no orçamento seguinte a despesa gerada pela implementaçãoda política pública no caso concreto.

Além disso, como nada em direito é absoluto, deverãoser sopesados os princípios orçamentários aplicáveis e os direi-tos que se pretendem concretizar pela via judicial.

Com efeito, o magistrado deve levar em conta os diver-sos fatores envolvidos no caso concreto e ponderá-los de ma-neira a obter a justiça na providência judicial tutelada no controlede políticas públicas em matéria de direitos fundamentais sociais.

No magistério de Ada Pellegrini Grinover13, o magistradoapreciará o pedido sob dois aspectos: “pelo lado do autor, a ra-zoabilidade da pretensão individual/social deduzida em face doPoder Público. E, por parte do Poder Público, a escolha doagente público deve ter sido desarrazoada”.

Em verdade, é a racionalidade das decisões que justificaa incursão judicial na seara das políticas públicas, cujos parâme-tros serão enfrentados a seguir.

DA PROPOSIÇÃO DE PARÂMETROS PARA O CONTROLEDE POLÍTICAS PÚBLICAS EM MATÉRIA DE DIREITOS FUN-DAMENTAIS SOCIAIS

O Estado Democrático de Direito estabelece diretrizespara os Poderes públicos escolherem as prioridades a serematendidas com os seus recursos financeiros. Nos termos de He-lena Beatriz Cesarino Mendes Coelho14, neste Estado, “as esco-lhas que serão feitas quanto à alocação dos recursos públicosestão sujeitas às prioridades estabelecidas constitucionalmente.Não se trata, pois, de escolhas guiadas por critérios meramentepolíticos”. Existe, portanto, uma necessária vinculação da atua-ção pública com os princípios e regras enunciados na Constitui-ção, dada a sua superioridade no ordenamento jurídico.

105

13 GRINOVER, Ada Pellegrini. O Controle Jurisdicional de Políticas Públicas. In: GRI-NOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo (Org.). O controle jurisdicional de políticaspúblicas. Rio de Janeiro: Forense, 2011. p. 137.14 COELHO, Helena Beatriz Cesarino Mendes. Políticas públicas e controle de juridicidade:vinculação às normas constitucionais. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Ed., 2010. p. 105.

Page 14: PROPOSIÇÃO DE PARÂMETROS PARA O CONTROLE DE … 1.pdf · A garantia dos direitos fundamentais é condição indispen - sável para a concretização do Estado Democrático de Direito,

Não subsiste a insindicabilidade dos direitos sociais portratar-se a escolha sobre os meios para a sua concretização dedecisão administrativa discricionária. Isso porque, diante dastransformações do Direito Administrativo no último século e noinício deste, a Administração Pública deixou de estar vinculadaapenas à lei, vinculando-se ao direito. É possível efetuar o con-trole de juridicidade das políticas públicas, visto a evolução danoção de vinculação à estrita legalidade para a de vinculação àjuridicidade das decisões. No sentir da mesma autora15:

[...] admitindo-se o caráter dirigente da Constituição, resta claro queas atividades estatais, de quaisquer dos Poderes de Estado, estãovinculadas aos princípios constitucionais, às normas constitucionaisque determinam tarefas e fins a serem cumpridos, de maneira quenão há espaço para o exercício de atividade livre que não se enqua-dre dentro da moldura constitucional. Por isso mesmo dizemos quea discricionariedade dos Poderes Públicos está limitada ao textoconstitucional.

A estreita relação entre Constituição, direitos fundamen-tais, políticas públicas e recursos públicos também é exposta porAna Paula de Barcellos16:

[...] (i) a Constituição estabelece como um de seus fins essenciais apromoção dos direitos fundamentais; (ii) as políticas públicas consti-tuem o meio pelo qual os fins constitucionais podem ser realizadosde forma sistemática e abrangente; (iii) as políticas públicas envolvemgasto de dinheiro público; (iv) os recursos públicos são limitados e épreciso fazer escolhas; logo (v) a Constituição vincula as escolhasem matéria de políticas públicas e dispêndio de recursos públicos.

A autora explica que a atividade de definição das políti-cas públicas não é isenta ao controle jurídico justamente porquea Constituição, que é dotada de superioridade e centralidade nosistema jurídico, já estabeleceu fins públicos prioritários. Paraela, “não se trata da absorção do político pelo jurídico, mas ape-nas da limitação do primeiro pelo segundo”17.

106

15 COELHO, 2010, p. 135.16 BARCELLOS, 2005, p. 134.17 BARCELLOS, 2005, p. 135.

Page 15: PROPOSIÇÃO DE PARÂMETROS PARA O CONTROLE DE … 1.pdf · A garantia dos direitos fundamentais é condição indispen - sável para a concretização do Estado Democrático de Direito,

No mesmo sentido, o Superior Tribunal de Justiça, oqual, decidindo matéria relacionada ao direito de menores dezero a seis anos de obter vaga em creche pública, já pacificou oentendimento de que não há discricionariedade do administradorface a direitos constitucionalmente tutelados, sendo sua atividadevinculada, especialmente porque num “país cujo preâmbuloconstitucional promete a disseminação das desigualdades e aproteção à dignidade humana, alçadas no mesmo patamar dadefesa da Federação e da República” não se pode preterir a con-cretização desses direitos sob argumento de que a escolha dosfins públicos é competência discricionária da Administração18.

Vez que o caráter dirigente da Constituição reduz os es-paços de discricionariedade atribuídos ao administrador e ao le-gislador, razão pela qual é possível controlar as políticas públicaspor eles formuladas e executadas (ou não), importa propor parâ-metros para referido controle.

Ana Paula de Barcellos19 pondera que a construção deuma dogmática jurídica que autorize o controle jurídico das polí-ticas públicas no Brasil depende do desenvolvimento teórico deao menos três temas: (i) a identificação dos parâmetros de con-trole; (ii) a garantia de acesso à informação; e (iii) a elaboraçãodos instrumentos de controle.

A autora adverte que os parâmetros fundamentadoresdo controle apenas se justificam caso as suas razões puderemser extraídas do texto constitucional, já que toda ação estatal estáa ele vinculada. Na medida em que os fins constitucionais de rea-lização da dignidade humana e de proteção dos direitos funda-mentais são excessivamente genéricos, há que se estabelecer oque efetivamente está o Poder Público obrigado a realizar. Paratanto, são propostos três diferentes parâmetros autorizadores docontrole judicial das políticas públicas.

O primeiro parâmetro é de fácil aplicação, pois se tratada análise puramente objetiva da quantidade de recursos aplicadanas políticas públicas destinadas a realizar os fins constitucionais.

107

18 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 736524/SP. Relator: MinistroLuiz Fux. 21/03/2006. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia.html>. Acesso em: 28 ago. 2015.19 BARCELLOS, 2005, p. 136.

Page 16: PROPOSIÇÃO DE PARÂMETROS PARA O CONTROLE DE … 1.pdf · A garantia dos direitos fundamentais é condição indispen - sável para a concretização do Estado Democrático de Direito,

O controle consiste na verificação entre essa determinação e oque efetivamente foi investido nas políticas públicas aptas a con-cretizar o comando constitucional, nos casos em que a Consti-tuição determina percentuais específicos de recursos para seremaplicados em dada matéria. Algumas dessas hipóteses estãoplasmadas no texto constitucional, como é o caso da determina-ção contida nos artigos 212, 198 §§ 2º e 3º, a saber:

Art. 212. A União aplicará, anualmente, nunca menos de dezoito, e osEstados, o Distrito Federal e os Municípios vinte e cinco por cento, nomínimo, da receita resultante de impostos, compreendida a provenientede transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino. [...]§ 2º - Para efeito do cumprimento do disposto no "caput" deste artigo,serão considerados os sistemas de ensino federal, estadual e muni-cipal e os recursos aplicados na forma do art. 213.§ 3º A distribuição dos recursos públicos assegurará prioridade aoatendimento das necessidades do ensino obrigatório, no que se re-fere a universalização, garantia de padrão de qualidade e equidade,nos termos do plano nacional de educação.

Esclarece a autora que, embora de fácil emprego, o pa-râmetro objetivo proposto encontra dificuldades para a sua efetivaaplicação em virtude de não haver, ainda, acesso pleno a infor-mações do quantum arrecadado com a tributação estatal e a suareal destinação. Ademais, no caso de descumprimento do deverimposto são indefinidas as consequências jurídicas atribuídas aesse fato.

O segundo parâmetro consiste na identificação dos efei-tos específicos dispostos nas normas constitucionais e da verifi-cação se o resultado esperado foi alcançado pela ação estatal.Em exemplo, a autora traz o artigo 208, I, da Carta, que obriga oEstado brasileiro a, prioritariamente, oferecer educação funda-mental a toda a população, sem qualquer custo para o estudante.Nessa medida, enquanto não alcançada essa meta proposta, ou-tras políticas públicas não prioritárias (como a progressiva uni-versalização do ensino médio imposta pelo artigo 208, II) nãopoderão ser implementadas. No tocante ao parâmetro exposto,elucida Ana Paula de Barcellos que20:

108

20 BARCELLOS, 2005, p. 140.

Page 17: PROPOSIÇÃO DE PARÂMETROS PARA O CONTROLE DE … 1.pdf · A garantia dos direitos fundamentais é condição indispen - sável para a concretização do Estado Democrático de Direito,

Uma vez definidas essas metas concretas, que devem ser priorita-riamente perseguidas pelo Poder Público, a aplicação do parâmetrodo controle também não envolve, sem si mesmo, maiores dificulda-des lógicas. Trata-se de verificar se o resultado final da atividade doEstado em cada uma das áreas está efetivamente se produzindo. Sea resposta a essa indagação for negativa, os recursos disponíveisdeverão ser obrigatoriamente aplicados em políticas públicas vincu-ladas a essa finalidade constitucional, de modo que outros gastos,não prioritários, devem esperar.

O terceiro parâmetro para validar o controle judicial depolíticas públicas envolve a escolha dos meios através dos quaisos fins constitucionais consubstanciados nas políticas públicaspodem se realizar do ponto de vista técnico-jurídico. Em outraspalavras, diz respeito ao controle da própria definição das políti-cas públicas a serem implementadas pelo Poder Público.

Inicialmente, adverte a autora que a escolha propria-mente dita das políticas a serem implementadas já foi efetuadapela Constituição, por tratar-se de atividade tipicamente reser-vada à definição político-majoritária. Entretanto, é perfeitamenteaceitável que as formas pelas quais as políticas são concretiza-das pelo Poder Público passem pelo crivo judicial, já que asmetas constitucionais devem necessariamente ser alcançadaspor meios comprovadamente eficientes. Esclarece Ana Paula deBarcellos que21:

[...] a vinculação jurídica dos fins constitucionais não se reduz a ummero pretexto retórico. Ou seja: a capacidade da autoridade públicade associar suas políticas públicas aos fins constitucionais por meiode argumentação retórica não satisfaz a imposição constitucional. Aspolíticas públicas têm de contribuir com uma eficiência mínima paraa realização das metas estabelecidas na Constituição; caso contrário,não apenas se estará fraudando as disposições constitucionais, comotambém desperdiçando recursos públicos que, como já se sublinhou,são sempre escassos em face das necessidades existentes.

Informa a autora que a análise da eficiência alcançada pelaação estatal não pode ficar a cargo apenas do intérprete jurídico,devendo o Direito se comunicar com outros ramos do conhecimento,

109

21 BARCELLOS, 2005, p. 141.

Page 18: PROPOSIÇÃO DE PARÂMETROS PARA O CONTROLE DE … 1.pdf · A garantia dos direitos fundamentais é condição indispen - sável para a concretização do Estado Democrático de Direito,

de forma que, “se houver consenso técnico-científico de que o meioescolhido pelo Poder Público é ineficiente, ele será também juridi-camente inválido, pois não se poderá considerá-lo um meio legiti-mamente destinado a realizar o fim constitucional”22.

Afirmados os três parâmetros acima, o controle das po-líticas públicas em matéria de direitos fundamentais necessita,ainda, para a sua validação dogmática, de outros dois sustentá-culos já citados: a garantia de acesso à informação e a elabora-ção de instrumentos de controle.

A viabilidade do controle jurídico pressupõe o acesso ainformações sobre a quantidade de recursos públicos disponí-veis, a previsão orçamentária e a execução orçamentária. Nou-tros termos, sem que se saiba o quanto foi arrecadado peloEstado, o que foi previsto no orçamento para realização da des-pesa e o quanto efetivamente foi gasto na execução deste orça-mento não se poderá avaliar o que foi gasto com outras despesasnão prioritárias e nem avaliar se o meio escolhido para consecu-ção da política pública foi eficiente.

Ana Paula de Barcellos23 sublinha que um dos motivospara a falta de informação se deve ao fato de que “diversos or-çamentos, de diferentes níveis federativos aprovam apenas umaverba geral para despesas, sem especificação; outros veiculamuma listagem genérica de temas, sem que seja possível identifi-car minimamente quais as políticas públicas que se deseja im-plementar”. Ademais, os relatórios de execução orçamentária,quando existem, são pouco informativos, restringindo-se a iden-tificar rubricas amplas, sem que se possa saber ao certo o quantofoi gasto com cada atividade estatal.

Salienta a autora que os óbices decorrentes da falta deacesso à informação dificultam não só o controle jurídico da atua-ção do Estado, mas também, e principalmente, o seu controlepolítico (popular), na medida em que o povo tem o direito desaber o quanto foi arrecadado e o quanto efetivamente foi gastopara o atendimento do interesse público.

Anota-se que a Administração Pública tem como princípio apublicidade de seus atos. E mais, atualmente, exige-se a transparência

110

22 BARCELLOS, 2005, p.142.23 BARCELLOS, 2005, p. 142.

Page 19: PROPOSIÇÃO DE PARÂMETROS PARA O CONTROLE DE … 1.pdf · A garantia dos direitos fundamentais é condição indispen - sável para a concretização do Estado Democrático de Direito,

da atuação estatal, mormente em virtude da previsão constitucio-nal do dever de prestar contas (cf. art. 70) e do direito subjetivodo cidadão, que financia a arrecadação estatal através do paga-mento de tributos, de dispor de informações sobre as receitas edespesas públicas.

Superada a problemática dos parâmetros e acesso asinformações orçamentárias, o controle jurídico-constitucional daspolíticas públicas também depende da construção de consequên-cias jurídicas no caso da não observância das regras constitu-cionais. Em relação aos possíveis instrumentos de controle, AnaPaula de Barcellos elucida que24:

Se os parâmetros em questão são, na realidade, regras construídasa partir do texto constitucional, isto é, regras jurídicas dotadas de su-perioridade hierárquica e centralidade no sistema jurídico, sua viola-ção deverá acarretar consequências jurídicas, seja para punir oinfrator, para impedir que o ato praticado em descumprimento daregra produza efeitos, ou ainda para impor a observância da regra.Ou seja: em primeiro lugar, é possível imaginar algum tipo de pena-lidade aplicável ao responsável uma vez que se verifique o não ofe-recimento, e.g., de educação fundamental ou de atendimento médicobásico a toda a população. Na segunda linha, é possível conceberque o Estado seja proibido de gastar com, e.g., publicidade governa-mental, até que as metas prioritárias estabelecidas pela Constituiçãosejam alcançadas. Em terceiro lugar, pode-se cogitar de o próprio Ju-diciário ser autorizado a impor aos demais Poderes Públicos o inves-

timento nas metas constitucionais.

As consequências possíveis acima elucidadas variamentre a punição, a ineficácia do ato descumpridor de determina-ção constitucional e a produção coativa do que foi previsto pelaConstituição. Embora se observe maior efetividade na aplicaçãoda última, as duas primeiras preservam o espaço político própriodas políticas públicas, razão pela qual se deve optar primeiro pelaaplicação destas.

Como se nota, os parâmetros propostos por Ana Paulade Barcellos situam-se em nível mais dogmático e do ponto devista da reflexão e amadurecimento das ideias de democracia econtrole social.

111

24 BARCELLOS, 2005, p. 144.

Page 20: PROPOSIÇÃO DE PARÂMETROS PARA O CONTROLE DE … 1.pdf · A garantia dos direitos fundamentais é condição indispen - sável para a concretização do Estado Democrático de Direito,

Numa outra visão, cumpre anotar os parâmetros maispragmáticos formulados por Cláudio Pereira de Souza Neto, osquais pretendem atribuir maior racionalização às decisões judi-ciais. O autor os classifica em: i) materiais; e ii) processuais.

Os parâmetros materiais relacionam-se ao mérito dacausa deduzida em juízo, dando ao órgão julgador balizas epis-temológicas para guiar sua decisão. São definidos vários postu-lados de observância cumulativa.

Em primeiro, deve-se delimitar a atuação judicial na con-cretização de direitos sociais. Na medida em que o artigo 5º, §1º, da Constituição Federal de 1988, determina que as normasdefinidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicaçãoimediata, cabe ao magistrado atribuir significado a essa determi-nação. Uma vez que não pode o juiz abarcar na sua decisão todaa extensão dos direitos sociais, entende o autor que a atuaçãojudicial “deve se circunscrever à garantia das ‘condições neces-sárias’ para que cada um possua igual possibilidade de realizarum projeto de vida (autonomia privada) e de participar do pro-cesso de formação da vontade coletiva (autonomia pública)”25.

Um segundo parâmetro consiste na realização peloPoder Judiciário apenas dos direitos sociais que acarretem ele-vado custo ao seu titular. Assim, seriam sindicáveis apenas os di-reitos prestacionais quando seus titulares não puderem arcar comseus próprios recursos o custo de tais direitos, sem que se torneinviável a garantia de outras necessidades igualmente básicas.

O terceiro parâmetro proposto pelo autor refere-se aoprincípio da igualdade, na medida em que “os direitos sociais sósão judicialmente exigíveis quando a prestação requerida for pas-sível de universalização entre os que não podem arcar com osseus custos com recursos próprios sem tornar inviável a garantiade outras necessidades básicas”26. Em outras palavras, defendeo autor que a atuação judicial de concretização dos direitos so-ciais apenas se legitima quando a medida por ela proposta puder

112

25 SOUZA NETO, Claudio Pereira de. A Justiciabilidade dos Direitos Sociais: Críticas eParâmetros. In: SOUZA NETO, Claudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. (Coord.). Di-reitos Sociais. Fundamentos, Judicialização e Direitos Sociais em Espécie. Rio de Ja-neiro: Editora Lumen Juris, 2010. p. 535.26 SOUZA NETO, 2010, p. 541.

Page 21: PROPOSIÇÃO DE PARÂMETROS PARA O CONTROLE DE … 1.pdf · A garantia dos direitos fundamentais é condição indispen - sável para a concretização do Estado Democrático de Direito,

ser universalizada para os demais em igual situação.Outro norte proposto diz respeito à verificação da relação

de unidade intrínseca aos direitos sociais. Em virtude da escas-sez de recursos e da fruição concomitante de todos os direitosmínimos, para o autor, “a concretização judicial de direitos sociaisdeve considerá-los como unidade, de modo a garantir condiçõesdignas de vida para os hipossuficientes, não necessariamente aobservância de cada direito social em espécie”27.

O autor descreve ainda que a solução proposta pela Ad-ministração (e, portanto, pelas vias político-democráticas) temprevalência sobre a solução judicial. Propõe esse parâmetro nosseguintes termos28:

As opções técnicas do administrador e do legislador devem ter priori-dade em relação à proposta pelo demandante. Se o Estado ofereceprocedimento médico para determinada patologia, não há, em regra,como o Judiciário determinar que arque com os custos de outro pro-cedimento desenvolvido para a mesma patologia, por ter sido prescritopelo médico privado. Se o Estado inclui em sua lista medicamentopara o tratamento de determinada doença, o magistrado não pode de-terminar que adquira outro, da preferência do médico do demandante.Isto pode ser objeto de discussão no Judiciário, mas há prioridadeprima facie para a solução técnica apresentada pela AdministraçãoPública. Nada obstante o Judiciário tenha meios para qualificar tecni-camente suas decisões, a Administração dispõe de ‘capacidades ins-titucionais’ mais apropriadas. A solução técnica da Administração deve,contudo, ter sido apresentada previamente ao ajuizamento da ação,na forma de política pública já institucionalizada. A formulação casuís-tica de soluções técnicas pelo Estado lhes reduz a confiabilidade e asvantagens comparativas em relação às propostas pelo demandante.

Outro parâmetro proposto pelo autor e que se compati-biliza com a determinação constitucional de observância do prin-cípio da eficiência pelos órgãos públicos diz respeito à prioridadepara a solução mais econômica. Em termos simples, deve o Ju-diciário optar pela solução que importe em menor gasto de re-cursos públicos. Isso porque, reforçando o argumento anterior, aatuação judicial de concretização dos direitos sociais deve prevera sua universalização.

113

27 SOUZA NETO, 2010, p. 541.28 SOUZA NETO, 2010, p. 541-542.

Page 22: PROPOSIÇÃO DE PARÂMETROS PARA O CONTROLE DE … 1.pdf · A garantia dos direitos fundamentais é condição indispen - sável para a concretização do Estado Democrático de Direito,

O último parâmetro material diz respeito ao grau de in-tensidade do controle jurisdicional. Tendo em vista que os atosadministrativos e legislativos gozam de presunção de legali-dade/constitucionalidade, o Judiciário deve intervir de forma mo-derada quando, de fato, se constata investimentos daAdministração Pública na efetivação de fins constitucionais. Cláu-dio Pereira de Souza Neto formula este parâmetro nos seguintestermos29:

Se a administração investe consistentemente em direitos sociais, exe-cutando efetivamente o orçamento, o Judiciário deve ser menos inci-sivo no controle das políticas no setor. Se a Administração não realizaesses investimentos, o controle jurisdicional deve ser mais intenso.

Tal regra endossa o argumento de que nas decisões ju-diciais haverá sempre um juízo de proporcionalidade das açõeslevadas a cabo pelo Poder Público em face da escassez de re-cursos e das demandas sociais.

Superado o aspecto material, o doutrinador estabeleceparâmetros processuais para guiar o magistrado no controle ju-dicial das políticas públicas relativas aos direitos sociais. Defendeo autor que as demandas por prestações sociais devem ser pro-postas através de ações coletivas, devendo priorizar-se estas àsações individuais. Seis razões justificam a escolha30:

[...] (a) As decisões proferidas no âmbito das ações coletivas garantema universalização da prestação. Não atendidos apenas os envolvidosdiretamente no processo, mas todos aqueles que se encontrem nasmesmas condições. (b) As decisões proferidas em ações coletivas de-sorganizam menos a Administração Pública. É claro que podem alteraros rumos da atuação administrativa, fazendo com que esta deixe derealizar determinada política para executar outras. Mas não haverácentenas de decisões particulares que condicionem, desordenada-mente, a atuação do administrador. (c) Nas ações coletivas, é possíveldiscutir com o cuidado necessário os aspectos técnicos envolvidos.Antes de ajuizar ação civil pública, o Ministério Público pode instaurarinquérito civil, no qual os aspectos técnicos pertinentes podem ser de-vidamente examinados. (d) A priorização das ações coletivas estimulao cidadão que se mobilize para a atuação política conjunta, sobretudo

114

29 SOUZA NETO, 2010, p. 543. 30 SOUZA NETO, 2010, p. 543-544.

Page 23: PROPOSIÇÃO DE PARÂMETROS PARA O CONTROLE DE … 1.pdf · A garantia dos direitos fundamentais é condição indispen - sável para a concretização do Estado Democrático de Direito,

através de associações da sociedade civil. (e) A priorização de açõescoletivas evita que apenas cidadãos que possuam um acesso quali-ficado à justiça sejam efetivamente destinatários de prestações so-ciais. (f) Nas ações coletivas, é possível analisar, de modo maispreciso, o impacto da política no orçamento.

Outro parâmetro processual diz respeito às ações indivi-duais. Defende o autor que essas apenas se legitimarão em duashipóteses: i) no caso de dano irreversível, caso não haja a en-trega da prestação material pretendida; e ii) no caso de haverprevisão legal ou em programas próprios da Administração paraentrega da prestação devida.

O autor propõe também a inversão do ônus da provapara o demandante. Tal argumento relaciona-se com a obrigaçãode que a Administração tem de provar a insuficiência real de re-cursos disponíveis para prover o direito demandado.

Por fim, propõe que “as decisões que determinam a en-trega de prestações públicas devem ser constituídas a partir deum diálogo que envolva não apenas as partes formalmente incluí-das no processo, mas também a ampla gama de profissionais eusuários que se inserem no contexto em que a decisão incidirá”31.Mais uma vez, o parâmetro proposto relaciona-se com a necessi-dade de ampliação das discussões permanentes entre magistra-dos e sociedade civil e compatibiliza-se com a legitimaçãoinstitucional e democrática do controle judicial, uma vez que, comojá visto, cada vez mais as decisões judiciais abandonam o volun-tarismo dos juízes e procuram atribuir a elas maior racionalidade.

À guisa de conclusão, a construção fundamentada deparâmetros para o controle judicial de políticas públicas em ma-téria de direitos fundamentais é essencial para que o discurso dasuperioridade da Constituição e da prevalência dos direitos fun-damentais deixe de ser meramente teórico e se torne prático, via-bilizando transformações reais na sociedade, malgrado seuestágio de aperfeiçoamento.

Importa registrar que a defesa aqui exposta da legitimi-dade do Poder Judiciário para o controle de políticas públicasnão tem o condão de afastar a discussão de temas importantes

115

31 SOUZA NETO, 2010, p. 546.

Page 24: PROPOSIÇÃO DE PARÂMETROS PARA O CONTROLE DE … 1.pdf · A garantia dos direitos fundamentais é condição indispen - sável para a concretização do Estado Democrático de Direito,

como a efetividade dos direitos fundamentais, a eficiência dasações levadas a cabo pelo Poder Público, a quantidade de re-cursos disponíveis e a destinação própria (ou imprópria) dosmesmos, etc., do seu espaço próprio, que é o espaço público.Entretanto, face ao seu lento desenvolvimento e das inúmerasfalhas existentes na nossa democracia, as questões sociais nãopodem esperar o amadurecimento da cidadania e dos instrumen-tos de controle popular, daí porque ser necessária a legitimaçãodo Judiciário para o controle de políticas públicas, a fim de quenão se coloque em segundo plano um fundamento da RepúblicaFederativa, qual seja, a dignidade da pessoa humana.

Como já afirmou Ana Paula de Barcellos, o controle jurí-dico não substitui o controle social. Não obstante a crise da de-mocracia e dos instrumentos de controle social, decorrentes,sobretudo, da falta de informação sobre a atuação dos entes pú-blicos e da falta de interesse dos cidadãos em participar de pro-cessos de tomada de decisão, observa-se que o controle jurídiconão alivia as causas desses problemas. Sublinha a autora que32:

O controle jurídico opera (ou deve operar) para coibir o desvio, impe-dir a ilicitude e o abuso injurídico. Tais situações não se confundem,necessariamente, com a idéia de coerência ou incoerência entre avontade e o interesse dos governados e dos governantes. O Estadopode tomar decisões e implementar políticas que serão lícitas em simesmas, embora talvez não correspondam aos interesses da maiorparte da população nem atendam a seus interesses. E isso porque,embora a fronteira entre o direito e a política possa parecer nebulosaem vários pontos, ela, por certo, existe: os controles social e jurídicoocupam áreas distintas, ainda que haja regiões de superposição.

Tendo-se em vista a própria limitação do controle jurídicosobre as políticas públicas, uma vez que suas soluções frequen-temente são pontuais e não universais, deve haver um esforçopara o fortalecimento do controle social e, por reflexo, da demo-cracia, já que o titular dos direitos tutelados, seja pela via judicialou pela via social, é o povo, cabendo a ele, por meio dos instru-mentos colocados à sua disposição, exercer o seu legítimo papelde controlador da atuação estatal.

116

32 BARCELLOS, 2005, p.11.

Page 25: PROPOSIÇÃO DE PARÂMETROS PARA O CONTROLE DE … 1.pdf · A garantia dos direitos fundamentais é condição indispen - sável para a concretização do Estado Democrático de Direito,

CONCLUSÃO

O presente trabalho discorreu sobre alguns aspectos es-senciais da legitimidade do Poder Judiciário para o controle das po-líticas públicas em matéria de direitos fundamentais sociais e, emespecial, dos parâmetros que devem balizar este controle jurídico.

A abordagem dos temas transcritos foi feita com leituracrítica de alicerçada doutrina e exame da jurisprudência dos tri-bunais, notadamente do Supremo Tribunal Federal e do SuperiorTribunal de Justiça.

Através da ilustração de parâmetros formulados peladoutrina verificou-se ser imprescindível atribuir às decisões judi-ciais maior racionalidade.

Ademais, salientou-se que o controle judicial deve serexercido até que a discussão sobre o tema amadureça, especial-mente porque este merece espaço próprio para debate, que é oespaço público, a fim de que o povo possa efetivamente exercero seu papel de controlador das atividades políticas e sociais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARAÚJO, Eliane Pires. A legitimidade do Poder Judiciário para ocontrole de políticas públicas em matéria de direitos fundamen-tais sociais. 86f. Monografia (Graduação). Universidade Federalde Goiás, Goiânia, 2012.

BARCELLOS, Ana Paula de. Neoconstitucionalismo, direitos fun-damentais e controle das políticas públicas. Cadernos da Escola

de Direito e Relações internacionais da Unibrasil. Curitiba, v. 5,n. 5, jan./dez., 2005.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05de outubro de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em:28 ago. 2015.

117

Page 26: PROPOSIÇÃO DE PARÂMETROS PARA O CONTROLE DE … 1.pdf · A garantia dos direitos fundamentais é condição indispen - sável para a concretização do Estado Democrático de Direito,

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n.1068731/RS. Relator: Ministro Herman Benjamin. 17/02/2011.Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia.html>.Acesso em: 28 ago. 2015.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n.1488639/SE. Relator: Ministro Herman Benjamin. 20/11/2014.Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia.html>.Acesso em: 28 ago. 2015.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n.736524/SP. Relator: Ministro Luiz Fux. 21/03/2006. Disponívelem: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia.html>. Acessoem: 28 ago. 2015.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental n.639337. Relator: Ministro Celso de Mello. 01/09/2011. Disponívelem: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia.html>. Acesso em:28 ago. 2015.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental n.768825. Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. 12/08/2014. Dis-ponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia.html>.Acesso em: 28 ago. 2015.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumpri-mento de Preceito Fundamental n. 45. Relator: Ministro Celso deMello. 29/04/2004. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/ju-risprudencia.html>. Acesso em: 28 ago. 2015.

COELHO, Helena Beatriz Cesarino Mendes. Políticas públicas e

controle de juridicidade: vinculação às normas constitucionais.Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Ed., 2010.

CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de direito constitucional. 3. ed.Salvador: Editora JusPODIVM, 2009.

118

Page 27: PROPOSIÇÃO DE PARÂMETROS PARA O CONTROLE DE … 1.pdf · A garantia dos direitos fundamentais é condição indispen - sável para a concretização do Estado Democrático de Direito,

FONTE, Felipe de Melo. A legitimidade do poder judiciário parao controle de políticas públicas. Revista Eletrônica de Direito Ad-

ministrativo Econômico (REDAE). Salvador, Instituto Brasileirode Direito Público, n. 18, mai./jun./jul., 2009. Disponível em:<http://www.direitodoestado.com/revista/REDAE-18-maio-2009-FELIPE-MELO.pdf>. Acesso em: 21 ago. 2015.

GRINOVER, Ada Pellegrini. O Controle Jurisdicional de PolíticasPúblicas. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo(Org.). O controle jurisdicional de políticas públicas. Rio de Ja-neiro: Forense, 2011.

MÂNICA, Fernando Borges. Teoria da Reserva do Possível: Direi-tos Fundamentais a Prestações e a Intervenção do Poder Judiciá-rio na Implementação de Políticas Públicas. Revista Eletrônica

sobre a Reforma do Estado (RERE), Salvador, Instituto Brasileirode Direito Público, n. 21, mar./abr./mai., 2010. Disponível em:<http://www.direitodoestado.com/revista/RERE-21-MARCO-2010-FERNANDO-MANICA.pdf >. Acesso em: 10 ago. 2015.

SABINO, Marco Antonio da Costa. Quando o Judiciário ultrapassaseus limites constitucionais e institucionais. O caso da saúde. In:GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo (Org.). O controle

jurisdicional de políticas públicas. Rio de Janeiro: Forense, 2011.

SARMENTO, Daniel. A Proteção Judicial dos Direitos Sociais: Al-guns Parâmetros Ético-Jurídicos. In: SOUZA NETO, Claudio Pe-reira de; SARMENTO, Daniel. (Coord.). Direitos Sociais.Fundamentos, Judicialização e Direitos Sociais em Espécie. Riode Janeiro: Editora Lumen Juris, 2010.

SOUZA NETO, Claudio Pereira de. A Justiciabilidade dos DireitosSociais: Críticas e Parâmetros. In: SOUZA NETO, Claudio Pe-reira de; SARMENTO, Daniel. (Coord.). Direitos Sociais. Funda-mentos, Judicialização e Direitos Sociais em Espécie. Rio deJaneiro: Editora Lumen Juris, 2010.

119

Page 28: PROPOSIÇÃO DE PARÂMETROS PARA O CONTROLE DE … 1.pdf · A garantia dos direitos fundamentais é condição indispen - sável para a concretização do Estado Democrático de Direito,

ZANETI JR., Hermes. A Teoria da Separação de Poderes e o Es-tado Democrático Constitucional: Funções de Governo e Funçõesde Garantia. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo(Org.). O controle jurisdicional de políticas públicas. Rio de Janeiro:Forense, 2011.

120