proporcional e o razoável (virgílio afonso da silva)

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Revista dos Tribunais 798 (2002): 23-50. [a paginação original está indicada entre colchetes no texto - se citar o trabalho, pede-se usá-las] O proporcional e o razoável Virgílio Afonso da Silva * Professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo 1. Introdução Nos últimos anos, a regra da proporcionalidade vem despertando cada vez mais o interesse da doutrina brasileira e são inúmeros os trabalhos produzidos sobre o tema. 1 Muitas vezes, no entanto, ela é encarada como mero sinônimo de razoabilidade, seja pela doutrina, seja pela jurisprudência. Partindo não só do pressuposto de que essa identificação é errônea, mas também de que nem sempre a regra da proporcionalidade tem sido tratada de forma clara e precisa, este artigo pretende fornecer um conceito técnico adequado de proporcionalidade no controle judicial da constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais. Para tanto, percorrerei os seguintes passos. No item 2, esclarecerei uma questão terminológica preliminar, ligada à utilização do termo princípio. No 3, pretendo deixar claro que proporcionalidade, em sentido técnico-jurídico, não é sinônimo de razoabilidade, o que implica uma análise crítica da doutrina sobre o assunto. Análise semelhante é [24] desenvolvida no tópico 4, desta vez centrada não na doutrina, mas na jurisprudência do STF. Superadas as imprecisões terminológicas e conceituais, tentarei expor, no item 5, com auxílio de casos práticos, a regra da proporcionalidade e seus elementos, atentando, principalmente, para características que considero vêm sendo negligenciadas nas análises sobre o tema. No 6, por fim, dedicar-me-ei à questão da fundamentação da regra da proporcionalidade no direito positivo brasileiro. Para alcançar os objetivos propostos no parágrafo anterior, faz-se necessária uma análise fundada em um método multidimensional. Em primeiro lugar, pretende-se uma análise detalhada do conceito técnico-jurídico de proporcionalidade, especialmente para diferenciá-lo de conceitos afins (dimensão analítico-conceitual). Não menos importante é a indagação sobre a relação entre a regra da proporcionalidade e o direito positivo brasileiro, para que se possa discutir, por exemplo, a * Gostaria de agradecer ao meu orientador, Prof. Dr. Robert Alexy, e a seu assistente na Universidade de Kiel, Dr. Martin Borowski, a enriquecedora discussão acerca de alguns dos temas aqui tratados. E também aos amigos e leitores sempre críticos, porém incentivadores, Marco Aurélio Sampaio, Jean Paul Rocha, Otavio Yazbek e Luís Renato Vedovato, os valiosos comentários a versões preliminares deste artigo, e a sempre pronta ajuda no conseguimento de material bibliográfico em língua portuguesa, ao qual o acesso, aqui na Alemanha, teria sido muitas vezes impossível. 1 Os precursores da discussão acerca da regra da proporcionalidade em língua portuguesa foram, em Portugal, J.J. Gomes Canotilho e José Carlos Vieira de Andrade e, no Brasil, Willis Santiago Guerra Filho e Paulo Bonavides.

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  • Revista dos Tribunais 798 (2002): 23-50.[a paginao original est indicada entre colchetes no texto - se citar o trabalho, pede-se us-las]

    O proporcional e o razovelVirglio Afonso da Silva*

    Professor da Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo

    1. IntroduoNos ltimos anos, a regra da proporcionalidade vem despertando cada vez mais o interesse da

    doutrina brasileira e so inmeros os trabalhos produzidos sobre o tema.1 Muitas vezes, no entanto,

    ela encarada como mero sinnimo de razoabilidade, seja pela doutrina, seja pela jurisprudncia.

    Partindo no s do pressuposto de que essa identificao errnea, mas tambm de que nem sempre

    a regra da proporcionalidade tem sido tratada de forma clara e precisa, este artigo pretende fornecer

    um conceito tcnico adequado de proporcionalidade no controle judicial da constitucionalidade das

    leis restritivas de direitos fundamentais.

    Para tanto, percorrerei os seguintes passos. No item 2, esclarecerei uma questo terminolgica

    preliminar, ligada utilizao do termo princpio. No 3, pretendo deixar claro que

    proporcionalidade, em sentido tcnico-jurdico, no sinnimo de razoabilidade, o que implica uma

    anlise crtica da doutrina sobre o assunto. Anlise semelhante [24] desenvolvida no tpico 4, desta

    vez centrada no na doutrina, mas na jurisprudncia do STF. Superadas as imprecises

    terminolgicas e conceituais, tentarei expor, no item 5, com auxlio de casos prticos, a regra da

    proporcionalidade e seus elementos, atentando, principalmente, para caractersticas que considero

    vm sendo negligenciadas nas anlises sobre o tema. No 6, por fim, dedicar-me-ei questo da

    fundamentao da regra da proporcionalidade no direito positivo brasileiro.

    Para alcanar os objetivos propostos no pargrafo anterior, faz-se necessria uma anlise

    fundada em um mtodo multidimensional. Em primeiro lugar, pretende-se uma anlise detalhada do

    conceito tcnico-jurdico de proporcionalidade, especialmente para diferenci-lo de conceitos afins

    (dimenso analtico-conceitual). No menos importante a indagao sobre a relao entre a regra

    da proporcionalidade e o direito positivo brasileiro, para que se possa discutir, por exemplo, a * Gostaria de agradecer ao meu orientador, Prof. Dr. Robert Alexy, e a seu assistente na Universidade de Kiel, Dr.

    Martin Borowski, a enriquecedora discusso acerca de alguns dos temas aqui tratados. E tambm aos amigos e leitores sempre crticos, porm incentivadores, Marco Aurlio Sampaio, Jean Paul Rocha, Otavio Yazbek e Lus Renato Vedovato, os valiosos comentrios a verses preliminares deste artigo, e a sempre pronta ajuda no conseguimento de material bibliogrfico em lngua portuguesa, ao qual o acesso, aqui na Alemanha, teria sido muitas vezes impossvel.

    1 Os precursores da discusso acerca da regra da proporcionalidade em lngua portuguesa foram, em Portugal, J.J. Gomes Canotilho e Jos Carlos Vieira de Andrade e, no Brasil, Willis Santiago Guerra Filho e Paulo Bonavides.

  • Revista dos Tribunais 798 (2002): 23-50.

    exigibilidade de sua aplicao (dimenso emprica). Por fim, e com base nos resultados das anlises

    conceitual e emprica, tenciona-se aqui fornecer uma resposta correta para o problema enfrentado

    (dimenso normativa). essa multidimensionalidade que expressa o carter prtico deste trabalho.

    No se cuida aqui de anlise terica que se esgota em si mesma. Pretende-se, pelo contrrio, no s

    contribuir para a discusso sobre direitos fundamentais, mas tambm fornecer subsdios para a

    atividade jurisprudencial, especialmente aquela ocupada com a proteo dos direitos fundamentais

    contra atos estatais que os restrinjam.

    Como remate desta introduo, um conceito preliminar de proporcionalidade, a ser

    enriquecido com a anlise que segue. A regra da proporcionalidade uma regra de interpretao e

    aplicao do direito - no que diz respeito ao objeto do presente estudo, de interpretao e aplicao

    dos direitos fundamentais -, empregada especialmente nos casos em que um ato estatal, destinado a

    promover a realizao de um direito fundamental ou de um interesse coletivo, implica a restrio de

    outro ou outros direitos fundamentais. O objetivo da aplicao da regra da proporcionalidade, como

    o prprio nome indica, fazer com que nenhuma restrio a direitos fundamentais tome dimenses

    desproporcionais. , para usar uma expresso consagrada, uma restrio s restries. Para alcanar

    esse objetivo, o ato estatal deve passar pelos exames da adequao, da necessidade e da

    proporcionalidade em sentido estrito. Esses trs exames so, por isso, considerados como sub-regras

    da regra da proporcionalidade.2

    2. Questes terminolgicas preliminaresNo Brasil, o termo mais difundido para designar o objeto do presente estudo princpio da

    proporcionalidade, aceito sem grandes controvrsias terminolgicas. Em trabalho recente,3 contudo,

    Humberto Bergmann vila demonstra, com razo, que a questo mais controversa do que parece e

    que a utilizao do termo "princpio" pode ser errnea, principalmente quando se adota o conceito

    de princpio jurdico em contraposio ao conceito de regra jurdica, com base na difundida teoria de

    Robert Alexy.4 No h como se aprofundar aqui no tema. Algumas consideraes, no entanto, so

    necessrias.

    [25]

    Alexy divide as normas jurdicas em duas categorias, as regras e os princpios. Essa diviso no

    se baseia em critrios como generalidade e especialidade da norma, mas em sua estrutura e forma de 2 H casos de aplicao da regra da proporcionalidade que no so englobados por esse conceito, como aqueles no

    mbito do direito administrativo. Mas, para os objetivos do presente trabalho e, especialmente, como ponto de partida, ele suficiente.

    3 Cf. Humberto Bergmann vila, "A distino entre princpios e regras e a redefinio do dever de proporcionalidade", RDA 215 (1999), especialmente pp. 154-158 e 168-175.

    4 Cf. Robert Alexy, "Zum Begriff des Rechtsprinzips", passim.

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    aplicao.5 Regras expressam deveres definitivos e so aplicadas por meio de subsuno. Princpios

    expressam deveres prima facie, cujo contedo definitivo somente fixado aps sopesamento com

    princpios colidentes. Princpios so, portanto, "normas que obrigam que algo seja realizado na maior

    medida possvel, de acordo com as possibilidades fticas e jurdicas"; so, por conseguinte,

    mandamentos de otimizao.6 Ainda que esta brevssima explicao no seja esclarecedora o

    suficiente, o que basta para o presente trabalho, e o que possvel desenvolver aqui sem dar

    incio a outro tema. A literatura jurdica em lngua portuguesa j se ocupou freqentemente do

    assunto e h material bastante para aprofundamento.7

    O problema terminolgico evidente. O chamado princpio da proporcionalidade no pode ser

    considerado um princpio, pelo menos no com base na classificao de Alexy, pois no tem como

    produzir efeitos em variadas medidas, j que aplicado de forma constante, sem variaes. Nesse

    sentido, Humberto Bergmann vila afirma que Alexy, "sem o enquadrar noutra categoria, exclui-o

    com razo do mbito dos princpios, j que no entra em conflito com outras normas-princpios, no

    concretizado em vrios graus ou aplicado mediante criao de regras de prevalncia diante do caso

    concreto, e em virtude das quais ganharia, em alguns casos, a prevalncia."8 No de todo correta,

    contudo, a afirmao. correto, como j dito, que o chamado princpio da proporcionalidade no

    um princpio no sentido acima descrito. Mas Alexy enquadra-o, sim, em outra categoria, pois

    classifica-o [26] explicitamente como regra. Aps fazer as ressalvas citadas por Bergmann vila,

    Alexy afirma que os sub-elementos da proporcionalidade "devem ser classificados como regras",9 e

    cita como entendimento semelhante a posio de Haverkate, segundo a qual a forma de aplicao da

    proporcionalidade e de suas sub-regras a subsuno.10 Como j visto acima, segundo a teoria 5 Cf. Robert Alexy, "Zum Begriff des Rechtsprinzips", pp. 184 ss. Bergmann vila, contudo, sustenta que os

    princpios so mais genricos que as regras. Cf. Humberto Bergmann vila, "A distino entre princpios e regras e a redefinio do dever de proporcionalidade", p. 167.

    6 Cf. Robert Alexy, "Zur Struktur der Rechtsprinzipien", p. 32; do mesmo autor, Theorie der Grundrechte, p. 75. Como alternativa ao termo "mandamento de otimizao" pode ser utilizado "dever de otimizao", como faz Humberto Bergmann vila, "A distino entre princpios e regras e a redefinio do dever de proporcionalidade", passim; ou "mandado de otimizao", como usado por Suzana de Toledo Barros, O princpio da proporcionalidade, p. 173, nota 188. No recomendvel que se use, por influncia da traduo espanhola da obra de Robert Alexy, o termo "mandato de otimizao", pois no se trata de um mandato. Cf., todavia, Inocncio Mrtires Coelho, "Constitucionalidade/inconstitucionalidade: uma questo poltica?", RDA 221 (2000), p. 59; do mesmo autor, in: Gilmar Ferreira Mendes / Inocncio Mrtires Coelho / Paulo Gustavo Gonet Branco, Hermenutica constitucional e direitos fundamentais, pp. 50-51; e Wilson Antnio Steinmetz, Coliso de direitos fundamentais e princpio da proporcionalidade, pp. 152-153.

    7 Cf., sobretudo, Eros Roberto Grau, A ordem econmica na Constituio de 1988, pp. 73-120; Paulo Bonavides, Curso de direito constitucional, pp. 248-252; J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional e teoria da constituio, pp. 1033-1049, alm do prprio Bergmann vila, no trabalho acima citado. Em espanhol, cf., por todos, Robert Alexy, Teora de los derechos fundamentales, especialmente pp. 81 a 111 e Martin Borowski, "La restriccin de los derechos fundamentales", REDC 59 (2000), pp. 35 a 39. Para uma anlise crtica sobre a distino entre regras e princpios, incluindo uma anlise sobre a sua difuso no direito brasileiro, cf. Virglio Afonso da Silva, "Princpios e regras: mitos e equvocos acerca de uma distino", a ser publicado em breve.

    8 Cf. Humberto Bergmann vila, "A distino entre princpios e regras e a redefinio do dever de proporcionalidade", p. 169 (grifei).

    9 Cf. Robert Alexy, Theorie der Grundrechte, p. 100, nota de rodap 84 (grifei). No mesmo sentido, Martin Borowski, Grundrechte als Prinzipien, p. 115.

    10 Cf. Grg Haverkate, Rechtsfragen des Leistungsstaats, p. 11, nota 38.

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    defendida por Alexy, somente regras so aplicadas por meio de subsuno.11

    Bergmann vila utiliza o termo dever de proporcionalidade.12 O termo , sem dvida, correto,

    mas limita-se a contornar o problema e no o resolve. Se se fala em dever, fala-se em norma.

    Normas so ou regras, ou princpios. Como j foi visto, no que diz respeito sua estrutura, o dever

    de proporcionalidade no um princpio, mas uma regra. O termo mais apropriado, ento, regra

    da proporcionalidade, razo pela qual se dar preferncia a esse termo no presente trabalho.

    No possvel, todavia, fechar os olhos diante da prtica jurdica brasileira. Quando se fala em

    princpio da proporcionalidade, o termo "princpio" pretende conferir a importncia devida ao

    conceito, isto , exigncia de proporcionalidade.13 Em vista disso, e em vista da prpria

    plurivocidade do termo "princpio", no h como esperar que tal termo seja usado somente como

    contraposto a regra jurdica. No h como querer, por exemplo, que expresses como "princpio da

    anterioridade" ou "princpio da legalidade" sejam abandonadas, pois, quando se trata de palavras de

    forte carga semntica, como o caso do termo "princpio", qualquer tentativa de uniformidade

    terminolgica est fadada ao insucesso.

    Mais importante do que a ingnua ambio de querer uniformizar a utilizao do termo

    "princpio" deixar claro que ele, na expresso "princpio da proporcionalidade", no tem o mesmo

    significado de "princpio" na distino entre regras e princpios, na acepo da teoria de Robert

    Alexy.

    Outra questo terminolgica a ser resolvida refere-se ao uso do conceito de proibio de

    excesso, visto que muitos autores tratam a regra da proporcionalidade como sinnimo de proibio

    de excesso.14 Ainda que, inicialmente, ambos os conceitos estivessem [27] imprescindivelmente

    ligados, principalmente na construo jurisprudencial do Tribunal Constitucional alemo, h razes

    11 Cf., para uma contraposio entre sopesamento e subsuno, Robert Alexy, "Rechtssystem und praktische Vernunft", p. 214; Martin Borowski, "Prinzipien als Grundrechtsnormen", ZR 53 (1998), p. 309; Hege Stck, "Subsumtion und Abwgung", ARSP 84 (1998), especialmente pp. 409 ss.

    12 O termo usado, entre outros, tambm por Rainer Dechsling, Das Verhltnismigkeitsgebot, passim. Klaus Stern, Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland, I, 20 IV 7, p. 861.

    13 Nesse sentido, o termo princpio, na expresso princpio da proporcionalidade, empregado com o significado de "disposio fundamental", e essa a acepo mais corrente do termo "princpio" na linguagem jurdica ptria. Cf. Celso Antnio Bandeira de Mello, Curso de direito administrativo, p. 450; Jos Afonso da Silva, Curso de direito constitucional positivo, p. 95.

    14 Exemplos do uso de ambos os conceitos como sinnimos podem ser encontrados em: J.J. Gomes Canotilho, Direito constitucional e teoria da constituio, p. 259; Willis Santiago Guerra Filho, Teoria processual da constituio, pp. 81-82; Gilmar Ferreira Mendes, "O princpio da proporcionalidade na jurisprudncia do Supremo Tribunal Federal: novas leituras", Bol. IOB 14 (2000), p. 372; Wilson Antnio Steinmetz, Coliso de direitos fundamentais e princpio da proporcionalidade, p. 148. J Paulo Bonavides, Curso de direito constitucional, p. 360, usa o termo proibio de excesso - vedao de arbtrio, nas palavras de Bonavides - como sinnimo de exame da adequao do ato estatal, enquanto Lus Roberto Barroso, "Os princpios da razoabilidade e da proporcionalidade no direito constitucional", RT-CDC 23 (1998), pp. 71-72, usa proibio de excesso como sinnimo de exame da necessidade. Na jurisprudncia do Tribunal Constitucional portugus, o termo proibio de excesso de uso corrente. Cf., para decises recentes, Acrdos 187/01, 382/01 e 400/01. Na literatura alem, cf., por todos, Klaus Stern, Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland, I, 20 IV, 7, p. 861. Para uma posio contrria identificao da proporcionalidade com a proibio de excesso, ainda que no com os argumentos aqui aduzidos, cf. Juarez Freitas, "O intrprete e o poder de dar vida constituio", p. 232.

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    para que essa identificao seja abandonada. Conquanto a regra da proporcionalidade ainda seja

    predominantemente entendida como instrumento de controle contra excesso dos poderes estatais,

    cada vez mais vem ganhando importncia a discusso sobre a sua utilizao para finalidade oposta,

    isto , como instrumento contra a omisso ou contra a ao insuficiente dos poderes estatais. Antes

    se falava apenas em bermaverbot, ou seja, proibio de excesso. J h algum tempo fala-se

    tambm em Untermaverbot, que poderia ser traduzido por proibio de insuficincia.15 O debate

    sobre a aplicabilidade da regra da proporcionalidade tambm para os casos de omisso ou ao

    estatal insuficiente ainda se encontra em fase embrionria, mas a simples possibilidade de aplicao

    da proporcionalidade a casos que no se relacionam com o excesso estatal j razo suficiente para

    abandonar o uso sinnimo de regra da proporcionalidade e proibio de excesso.16

    3. Proporcionalidade e razoabilidadeAquele que se prope analisar conceitos jurdicos tem que ter presente que nem sempre os

    termos utilizados no discurso jurdico guardam a mesma relao que possuem na linguagem laica.

    Assim, se um pai probe a seu filho que jogue futebol durante um ano, apenas [28] porque este,

    acidentalmente, quebrara a vidraa do vizinho com uma bolada, de se esperar que o castigo seja

    classificado pelo filho - ou at mesmo pelo vizinho ou por qualquer outra pessoa - como

    desproporcional. Poder-se- dizer tambm que o pai no foi razovel ao prescrever o castigo. O

    mesmo raciocnio pode tambm valer no mbito jurdico, desde que ambos os termos sejam

    empregados no sentido laico. Mas, quando se fala, em um discurso jurdico, em princpio da

    razoabilidade ou em princpio ou regra da proporcionalidade, evidente que os termos esto

    revestidos de uma conotao tcnico-jurdica e no so mais sinnimos, pois expressam construes

    jurdicas diversas. Pode-se admitir que tenham objetivos semelhantes, mas isso no autoriza o

    tratamento de ambos como sinnimos.17 Ainda que se queira, por intermdio de ambos, controlar as 15 O termo Untermaverbot foi utilizado pela primeira vez, ao que tudo indica, por Claus-Wilhem Canaris,

    "Grundrechte und Privatrecht", AcP 184 (1984), p. 228, e ganhou importncia na jurisprudncia do Tribunal Constitucional alemo a partir da segunda deciso sobre o aborto. Cf. BVerfGE 88, 203 [245].

    16 Sobre a aplicabilidade da regra da proporcionalidade tambm aos casos de medidas insuficientes, cf. a resposta de Robert Alexy aos questionamentos de Christian Calliess, seguidos conferncia do prprio Robert Alexy, "Verfassungsrecht und einfaches Recht - Verfassungsgerichtsbarkeit und Fachgerichtsbarkeit". O texto da conferncia e a transcrio dos debates sero publicados no prximo volume da VVDStRL (uma traduo da conferncia, feita por Lus Afonso Heck, ser publicada, provavelmente ainda em 2002, na Revista dos Tribunais). Cf. tambm Martin Borowski, Grundrechte als Prinzipien, pp. 115-122 e 151 ss. Sobre a discusso acerca do conceito de Untermaverbot, cf. Erhard Denninger, "Vom Elend des Gesetzgebers zwischen bermaverbot und Untermaverbot", pp. 561 ss.; Johannes Dietlein, "Das Untermaverbot: Bestandaufnahme und Entwicklungschancen einer neuen Rechtsfigur", ZG 10 (1995), pp. 134 ss.; Karl-E. Hain, "Der Gesetzgeber in der Klemme zwischen berma- und Untermaverbot", DVBl. (1993), pp. 982 ss.; do mesmo autor, "Das Untermaverbot in der Kontroverse: eine Antwort auf Dietlein", ZG 11 (1996), pp. 80 ss., alm da j citada obra de Canaris. Em lngua portuguesa, cf. J.J. Gomes Canotilho, Direito constitucional e teoria da constituio, p. 265. Canotilho, contudo, prefere o termo "proibio por defeito".

    17 Para posies semelhantes, cf. Humberto Bergmann vila, "A distino entre princpios e regras e a redefinio do dever de proporcionalidade", p. 173; Wilson Antnio Steinmetz, Coliso de direitos fundamentais e princpio da proporcionalidade, pp. 183-192; Raphael Augusto Sofiati de Queiroz, Os princpios da razoabilidade e

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    atividades legislativa ou executiva, limitando-as para que no restrinjam mais do que o necessrio os

    direitos dos cidados, esse controle levado a cabo de forma diversa, caso seja aplicado um ou

    outro critrio.

    A tendncia a confundir proporcionalidade e razoabilidade pode ser notada no s na

    jurisprudncia do STF, como se ver adiante, mas tambm em inmeros trabalhos acadmicos e at

    mesmo em relatrios de comisses do Poder Legislativo.18 Lus Roberto Barroso, por exemplo,

    afirma que " digna de meno a ascendente trajetria do princpio da razoabilidade, que os autores

    sob influncia germnica preferem denominar princpio da proporcionalidade, na jurisprudncia

    constitucional brasileira."19 Estivesse correta a afirmao, a regra da proporcionalidade nada mais

    seria do que o nome dado regra da razoabilidade pelos autores "sob influncia germnica", uma

    simples questo de preferncia terminolgica, de acordo com a filiao acadmica de cada jurista.

    Tambm Suzana de Toledo Barros iguala ambos os conceitos, nos seguintes termos:

    "O princpio da proporcionalidade, [...] como uma construo dogmtica dos alemes, corresponde a nada mais do que o princpio da razoabilidade dos norte-americanos".20

    [29]

    A regra da proporcionalidade, contudo, diferencia-se da razoabilidade no s pela sua origem,

    mas tambm pela sua estrutura. Quanto origem, basta um breve excurso histrico, feito a seguir.

    Sobre a estrutura, as diferenas ficaro claras ao longo do presente trabalho.

    comum, em trabalhos sobre a regra da proporcionalidade, que se identifique sua origem

    remota j na Magna Carta de 1215.21 Este documento seria a fonte primeira do princpio da

    proporcionalidade das normas, p. 30. Bergmann vila refere-se a uma diferenciao feita pelo Tribunal Constitucional alemo entre dever de proporcionalidade e princpio da razoabilidade. Este ltimo seria, segundo ele, o Zumutbarkeitsgrundsatz. O Tribunal alemo, contudo, refere-se quase sempre Zumutbarkeit (razoabilidade, exigibilidade) como um mero sinnimo de proporcionalidade em sentido estrito. Cf., nesse sentido, BVerfGE 95, 173 [183], de 1997, e os precedentes a citados. H esforos doutrinrios no sentido de conferir uma autonomia a essa regra da razoabilidade. Esses esforos, no entanto, no encontram grande ressonncia na jurisprudncia do Tribunal Constitucional. Sobre o tema, cf. tambm Lothar Hirschberg, Der Grundsatz der Verhltnismigkeit, pp. 97 ss. e Laura Clrico, Die Struktur der Verhltnismigkeit, p. 224, que afirma que o Tribunal Constitucional alemo no confere razoabilidade nenhum significado autnomo. Como subsdio tese de Bergmann vila, cf., por todos, Rdiger Konradin Albrecht, Zumutbarkeit als Verfassungsmastab, especialmente pp. 64 ss.

    18 Cf. PEC 264-A/95, cujo relatrio foi redigido pelo Deputado Silas Brasileiro.19 Lus Roberto Barroso, "Dez anos da Constituio de 1988 (foi bom pra voc tambm?)", RDA 214 (1998), p. 18

    (parte do grifo no original); do mesmo autor, "Os princpios da razoabilidade e da proporcionalidade no direito constitucional", p. 69.

    20 Suzana de Toledo Barros, O princpio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais, p. 57 (grifos originais suprimidos, grifos acrescentados). No mesmo sentido, cf. Paulo Arminio Tavares Buechele, O princpio da proporcionalidade e a interpretao da constituio, p. 137: "Nos Estados Unidos, onde denominado Princpio da Razoabilidade, o Princpio da Proporcionalidade foi fruto da grande liberdade de criao do Direito que o sistema federal-republicano norte-americano concede, at hoje, aos seus juzes." No mesmo sentido, cf. Ada Pellegrini Grinover, Liberdades pblicas e processo penal, p. 151.

    21 Cf., por exemplo, Lus Roberto Barroso, "Os princpios da razoabilidade e da proporcionalidade no direito constitucional", p. 65; Pereira de Souza / Pinheiro Sampaio, "O princpio da razoabilidade e o princpio da proporcionalidade", RF 349 (2000), pp. 31 ss. e 36 ss. Esses autores sugerem tambm que a regra da proporcionalidade tem origem com o fim do Estado absolutista ingls.

  • Revista dos Tribunais 798 (2002): 23-50.

    razoabilidade e, portanto, tambm da proporcionalidade. Essa identificao histrica , por diversas

    razes, equivocada. Em primeiro lugar, visto que ambos os conceitos - razoabilidade e

    proporcionalidade - no se confundem, no h que se falar em proporcionalidade na Magna Carta de

    1215. Alm disso, de se questionar at mesmo a afirmao de que a regra da razoabilidade tenha

    origem nesse documento. Como bem salienta Willis Santiago Guerra Filho, na Inglaterra fala-se em

    princpio da irrazoabilidade e no em princpio da razoabilidade.22 E a origem concreta do princpio

    da irrazoabilidade, na forma como aplicada na Inglaterra, no se encontra no longnquo ano de 1215,

    nem em nenhum outro documento legislativo posterior, mas em deciso judicial proferida em 1948.23

    E esse teste da irrazoabilidade, conhecido tambm como teste Wednesbury, implica to somente

    rejeitar atos que sejam excepcionalmente irrazoveis. Na frmula clssica da deciso Wednesbury:

    "se uma deciso [...] de tal forma irrazovel, que nenhuma autoridade razovel a tomaria, ento

    pode a corte intervir".24 Percebe-se, portanto, que o teste sobre a irrazoabilidade muito menos

    intenso do que os testes que a regra da proporcionalidade exige, destinando-se meramente a afastar

    atos absurdamente irrazoveis.

    A no-identidade entre os dois conceitos fica ainda mais clara quando se acompanha o debate

    acerca da adoo do Human Rights Act de 1998 na Inglaterra. Somente a partir da passou a haver

    um real interesse da doutrina jurdica inglesa na aplicao da regra da proporcionalidade, antes

    praticamente desconhecida na Inglaterra. Atualmente, discute-se [30] qual o papel que a regra da

    proporcionalidade dever desempenhar ao lado do princpio da irrazoabilidade ou, at mesmo, se

    aquela dever substituir este. Se ambos fossem sinnimos, essa discusso seria impensvel.25 Por fim,

    no difcil perceber que um ato considerado desproporcional no ser, necessariamente,

    considerado irrazovel, pelo menos no nos termos que a jurisprudncia inglesa fixou na deciso

    Wednesbury, pois, para ser considerado desproporcional, no necessrio que um ato seja

    extremamente irrazovel ou absurdo. H decises na Corte Europia de Direitos Humanos

    expressamente nesse sentido, ou seja, decidindo pela desproporcionalidade de uma medida, mesmo

    22 Cf. Willis Santiago Guerra Filho, "Princpio da proporcionalidade e teoria do direito", p. 283. Guerra Filho sugere que a utilizao do termo razoabilidade, no lugar de irrazoabilidade, fruto da influncia argentina. Nesse sentido, de se recomendar a leitura do trabalho de Laura Clrico, que contm uma minuciosa anlise da regra da proporcionalidade alem e da razoabilidade na jurisprudncia argentina. Cf. Laura Clrico, Die Struktur der Verhltnismigkeit, especialmente pp. 251 ss. Uma traduo para o espanhol est sendo preparada pela autora e ser publicada provavelmente ainda este ano. Para outra recente e minuciosa anlise da regra da proporcionalidade, incluindo uma discusso sobre sua recepo no direito espanhol, cf. Carlos Bernal Pulido, El principio de proporcionalidad y los derechos fundamentales, a ser publicado ainda este ano.

    23 Cf. Associated Provincial Picture Houses Ltd. v. Wednesbury Corporation [1948], 1 KB 223, pp. 228-230. 24 Cf., nesse sentido, alm da deciso no caso Wednesbury acima citada (p. 234), Council of Civil Service Unions v.

    Minister for the Civil Service [1985], AC 374, p. 410.25 Sobre a relao entre proporcionalidade e irrazoabilidade na Inglaterra, cf., por exemplo, Paul Craig,

    "Unreasonableness and Proportionality in UK Law", especialmente pp. 85-87 e 94 ss.; Garreth Wong, "Towards the Nutcracker Principle: Reconsidering the Objections to Proportionality", Public Law (2000), pp. 94-96; David Feldman, "Proportionality and the Human Rights Act 1998", pp. 117 ss.; Nicholas Green, "Proportionality and the Supremacy of Parliament in the UK", pp. 145 ss.

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    admitindo a sua razoabilidade.26

    Mais freqente a associao entre a proporcionalidade e a razoabilidade da jurisprudncia da

    Suprema Corte dos Estados Unidos, baseada no chamado substantive due process.27 Como o STF

    costuma tambm fazer essa associao, voltarei ao tema mais adiante, quando da anlise da

    jurisprudncia do Supremo Tribunal Federal. Em algumas decises recentes, a Suprema Corte dos

    Estados Unidos introduziu, para certos casos, a exigncia de proporcionalidade aproximada.28 Tal

    exigncia no guarda, contudo, qualquer semelhana com a regra da proporcionalidade, na forma

    aqui analisada.

    A regra da proporcionalidade no controle das leis restritivas de direitos fundamentais surgiu

    por desenvolvimento jurisprudencial do Tribunal Constitucional alemo e no uma simples pauta

    que, vagamente, sugere que os atos estatais devem ser razoveis, nem uma simples anlise da relao

    meio-fim. Na forma desenvolvida pela jurisprudncia constitucional alem, tem ela uma estrutura

    racionalmente definida, com sub-elementos independentes - a anlise da adequao, da necessidade

    e da proporcionalidade em sentido estrito - que so aplicados em uma ordem pr-definida, e que

    conferem regra da proporcionalidade a individualidade que a diferencia, claramente, da mera

    exigncia de razoabilidade.29

    [31]

    A regra da proporcionalidade, portanto, no s no tem a mesma origem que o chamado

    princpio da razoabilidade, como freqentemente se afirma, mas tambm deste se diferencia em sua

    estrutura e em sua forma de aplicao, como se esclarecer mais adiante.

    4. A jurisprudncia do STFO recurso regra da proporcionalidade na jurisprudncia do STF pouco ou nada acrescenta

    discusso e apenas solidifica a idia de que o chamado princpio da razoabilidade e a regra da 26 Cf., por exemplo, Smith and Grady v. United Kingdom [1999], 137 ss.27 Cf., por exemplo, Lus Roberto Barroso, "Os princpios da razoabilidade e da proporcionalidade no direito

    constitucional", pp. 65 ss.; Suzana de Toledo Barros, O princpio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais, pp. 60 ss.

    28 A primeira deciso que fez uso dessa exigncia de proporcionalidade foi Dolan v. City of Tigard, 512 U.S. 374 [1994], p. 391. A prpria Suprema Corte, contudo, restringiu o mbito de aplicao desse novo teste de proporcionalidade aproximada a alguns casos relativos a limitaes ao direito de propriedade e planejamento urbano, e desde que no sejam baseadas em decises legislativas, o que limita sobremaneira a sua aplicabilidade prtica. Cf., nesse sentido, City of Monterey v. Del Monte Dunes at Monterey, Ltd., 119 S.Ct. 1624 [1999], pp. 1635 ss. Sobre esse tema, cf. Inna Reznik, "The Distinction Between Legislative and Adjudicative Decisions in Dolan v. City of Tigard", New York University Law Review 74 (2000), especialmente pp. 246 ss., com a literatura e, especialmente, a jurisprudncia a citadas.

    29 Essa distino muito bem analisada por Wilson Antnio Steinmetz, Coliso de direitos fundamentais e princpio da proporcionalidade, pp. 183-192. Steinmetz deixa ntida a diferena estrutural acima citada com a seguinte indagao: "Os princpios parciais da adequao [...], da exigibilidade [...], e proporcionalidade em sentido estrito [...] funcionam como indicadores de 'mensurao', de controle [do princpio da proporcionalidade]. Quais seriam os indicadores de 'mensurao' do princpio da razoabilidade?" (grifei).

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    proporcionalidade seriam sinnimos. A invocao da proporcionalidade , no raramente, um mero

    recurso a um topos, com carter meramente retrico, e no sistemtico.30 Em inmeras decises,

    sempre que se queira afastar alguma conduta considerada abusiva, recorre-se frmula " luz do

    princpio da proporcionalidade ou da razoabilidade, o ato deve ser considerado inconstitucional".31

    Na deciso da liminar do sempre citado HC 76.060-4, por exemplo, o Tribunal faz uso da

    regra da proporcionalidade nos seguintes termos:

    "O que, entretanto, no parece resistir, que mais no seja, ao confronto do princpio da razoabilidade ou da proporcionalidade - de fundamental importncia para o deslinde constitucional da coliso de direitos fundamentais - que se pretenda constranger fisicamente o pai presumido ao fornecimento de uma prova de reforo contra a presuno de que titular."32

    Apesar de salientar a importncia da proporcionalidade "para o deslinde constitucional da

    coliso de direitos fundamentais", o Tribunal no parece disposto a aplic-la de forma estruturada,

    limitando-se a cit-la. Na deciso, a passagem mencionada a nica a fazer referncia regra da

    proporcionalidade. No feita nenhuma referncia a algum processo racional e estruturado de

    controle da proporcionalidade do ato questionado, nem mesmo um real cotejo entre os fins

    almejados e os meios utilizados. O raciocnio aplicado costuma ser muito mais simplista e mecnico.

    Resumidamente:

    . a constituio consagra a regra da proporcionalidade.

    . o ato questionado no respeita essa exigncia.

    .. o ato questionado inconstitucional.

    O silogismo, inatacvel do ponto de vista interno,33 composto de premissas de

    fundamentao duvidosa e , por isso, bastante frgil quando se questiona sua admissibilidade do

    ponto de vista externo.34

    [32]

    Com relao fundamentao da premissa maior, no se pode deixar de questionar se

    realmente a constituio brasileira consagra a regra da proporcionalidade, como se vem repetindo,

    muitas vezes irrefletidamente. Isso ainda ser discutido mais adiante neste artigo e, no momento,

    interessa apenas verificar a fundamentao que o prprio STF fornece. A comeam os problemas,

    30 Cf., sobre o tema, Trcio Sampaio Ferraz Jr., Introduo ao estudo do direito, p. 298.31 Cf., por exemplo, RTJ 167, 92 [94]; RTJ 169, 630 [632]; RTJ 152, 455; Lex STF 237, 304. 32 Lex STF 237, 304 [309].33 Com o intuito de simplificar o silogismo, e como no o objetivo deste trabalho discutir questes relacionadas

    supremacia constitucional e legitimidade do controle de constitucionalidade, pressups-se a premissa de que os atos que violem qualquer princpio constitucional devem ser considerados inconstitucionais.

    34 Sobre a diferena entre justificao interna e externa dos silogismos, cf. Jerzy Wrblewski, "Legal Syllogism and Rationality of Judicial Decision", Rechtstheorie 5 (1974), pp. 33 ss.; Robert Alexy, Theorie der juristischen Argumentation, p. 373 ss. Para uma aplicao dessa diferenciao como forma argumentativa, ainda que de maneira extremamente simplificada, cf. Lus Virglio Afonso da Silva, "Ulisses, as sereias e o poder constituinte derivado", RDA 226 (2001), p. 13.

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    pois nem sempre o recurso regra da proporcionalidade justificado nas decises do Supremo

    Tribunal Federal. Muitas vezes a fundamentao simplesmente pressuposta, como se se tratasse da

    utilizao de um princpio constitucional de larga tradio no direito brasileiro. Quando alguma

    fundamentao fornecida, quase sempre mencionado o art. 5, LIV, e o chamado substantive due

    process of law. A deciso da medida cautelar na ADIn 1407-2 um exemplo de fundamentao

    nesse sentido:

    "O princpio da proporcionalidade - que extrai a sua justificao dogmtica de diversas clusulas constitucionais, notadamente daquela que veicula a garantia do substantive due process of law - acha-se vocacionado a inibir e a neutralizar os abusos do Poder Pblico no exerccio de suas funes, qualificando-se como parmetro de aferio da prpria constitucionalidade material dos atos estatais.

    A norma estatal, que no veicula qualquer contedo de irrazoabilidade, presta obsquio ao postulado da proporcionalidade, ajustando-se clusula que consagra, em sua dimenso material, o princpio do substantive due process of law (CF, art. 5, LIV)".35

    A nica meno ao modo concreto de aplicao da regra da proporcionalidade resume-se a

    uma referncia a duas de suas sub-regras, a adequao e a necessidade, por meio da citao de

    trabalho doutrinrio, de autoria de Gilmar Ferreira Mendes,36 sem nenhuma preocupao em aplic-

    las ao caso concreto. O Tribunal, mais uma vez, limita-se a equiparar proporcionalidade a

    razoabilidade, atendo-se frmula de que proporcional aquilo que no extrapola os limites da

    razoabilidade.

    No tpico anterior j foi discutida a no-identidade entre proporcionalidade e razoabilidade.

    Essa no-identidade fica ainda mais clara quando se analisa a conexo entre o devido processo legal

    substancial e a razoabilidade.37

    A exigncia de razoabilidade, baseada no devido processo legal substancial, traduz-se na

    exigncia de "compatibilidade entre o meio empregado pelo legislador e os fins visados, bem como a

    aferio da legitimidade dos fins".38 Barroso chama a primeira exigncia - [33] compatibilidade entre

    meio e fim - de razoabilidade interna, e a segunda - legitimidade dos fins -, de razoabilidade externa.

    Essa configurao da regra da razoabilidade faz com que fique ntida sua no-identidade com a regra

    35 DJU 15.03.1996.36 Gilmar Ferreira Mendes, "A proporcionalidade na jurisprudncia do Supremo Tribunal Federal", Bol. IOB 23

    (1994), p. 475.37 Sobre a relao entre o substantive due process e o chamado princpio da razoabilidade, cf. a anlise, resumida

    porm esclarecedora, de Lus Roberto Barroso, "Os princpios da razoabilidade e da proporcionalidade no direito constitucional", pp. 65 ss. e a literatura e jurisprudncia, nacionais e estrangeiras, a citadas.

    38 Cf. Lus Roberto Barroso, "Os princpios da razoabilidade e da proporcionalidade no direito constitucional", p. 66. No mesmo sentido, cf. Carlos Roberto de Siqueira Castro, O devido processo legal e a razoabilidade das leis na nova Constituio do Brasil, p. 158. Sobre o mesmo tema, com base na jurisprudncia espanhola, que considera a razoabilidade como simples exame da legitimidade de uma medida, cf. Carlos Bernal Pulido, "Razionalit, proporzionalit e ragionevolezza nel giudizio di costituzionalit delle leggi", a ser publicado em breve.

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    da proporcionalidade. O motivo bastante simples: o conceito de razoabilidade, na forma como

    exposto, corresponde apenas primeira das trs sub-regras da proporcionalidade, isto , apenas

    exigncia de adequao.39 A regra da proporcionalidade , portanto, mais ampla do que a regra da

    razoabilidade, pois no se esgota no exame da compatibilidade entre meios e fins, conforme ficar

    claro mais adiante.40

    Em vista disso, ainda que o STF se refira freqentemente ao princpio da proporcionalidade,

    essa referncia tecnicamente incorreta, e deve ser entendida como referncia anlise da

    razoabilidade. Destarte, pode-se dizer que na jurisprudncia do STF no se encontram maiores

    subsdios para o desenvolvimento da discusso sobre a regra da proporcionalidade no Brasil.

    H autores que defendem posio contrria. Ives Gandra da Silva Martins e Gilmar Ferreira

    Mendes, por exemplo, afirmam que o "princpio da proporcionalidade [...] tem plena aplicao entre

    ns".41 Entendimento semelhante sustentado por Suzana de Toledo Barros, que afirma no serem

    raras as decises, exaradas por diversos rgos jurisdicionais, que poderiam ser "catalogadas como

    manifestaes do reconhecimento do princpio da proporcionalidade."42 Baseados nesse

    entendimento, tanto Gilmar Ferreira Mendes, quanto Suzana de Toledo Barros dedicam-se a analisar

    "o princpio da proporcionalidade na jurisprudncia do Supremo Tribunal Federal".43 Vrios so os

    julgados citados como exemplos de aplicao da regra da proporcionalidade entre ns, dos mais

    recentes at julgados do incio da dcada de 1950. Mesmo que no nos ocupemos com o fato de

    que, na maioria deles, a proporcionalidade nem sequer citada, e concentremos somente naqueles

    em que, pelo menos nominalmente, faz-se referncia a ela, como o caso das duas decises j

    citadas, salta aos olhos um problema de difcil soluo: tanto Gilmar Ferreira Mendes como Suzana

    de Toledo Barros, quando expem teoricamente a regra da proporcionalidade, referem, como no

    poderia deixar de ser, os exames da adequao, da necessidade e da proporcionalidade em sentido

    estrito. Contudo, quando da anlise da suposta aplicao da proporcionalidade pelo STF, esses

    exames simplesmente desaparecem. Sempre citada a deciso liminar do STF que declarou

    inconstitucional a exigncia de pesagem de botijes [34] de gs na presena do consumidor,

    instituda, no Paran, por lei estadual. No h como no se perguntar se os dispositivos considerados

    39 Caso se siga a tese de que a regra da proporcionalidade deve ser dividida em quatro sub-regras, em vez de apenas trs, a anlise da razoabilidade corresponderia s duas primeiras dessas sub-regras. Sobre as diversas teses acerca do nmero de sub-regras, cf. tpico 5 deste artigo.

    40 Em sentido oposto, ou seja, entendendo que a razoabilidade mais ampla do que a proporcionalidade, cf. Raphael Augusto Sofiati de Queiroz, Os princpios da razoabilidade e proporcionalidade das normas, p. 46.

    41 Ives Gandra da Silva Martins / Gilmar Ferreira Mendes, "Sigilo bancrio, direito de autodeterminao sobre informaes e princpio da proporcionalidade", Bol. IOB 24 (1992), p. 438 (grifei). Com "entre ns", querem eles dizer, especialmente, "na jurisprudncia do STF".

    42 Suzana de Toledo Barros, O princpio da proporcionalidade, p. 103.43 Cf. Gilmar Ferreira Mendes, "A proporcionalidade na jurisprudncia do Supremo Tribunal Federal", pp. 475 ss.;

    do mesmo autor, "O princpio da proporcionalidade na jurisprudncia do Supremo Tribunal Federal: novas leituras", especialmente pp. 370 ss.; Suzana de Toledo Barros, O princpio da proporcionalidade, pp. 102-128, em tpico denominado "O princpio da proporcionalidade na jurisprudncia do Supremo Tribunal Federal".

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    inconstitucionais - no s nessa, mas em vrias outras decises em que se recorreu regra da

    proporcionalidade - foram considerados inadequados, desnecessrios ou desproporcionais em

    sentido estrito. No se sabe. E no h como se saber, visto que o STF no procedeu a nenhum

    desses exames de forma concreta e isolada. E se no os realizou, no foi aplicada a regra da

    proporcionalidade. Destarte, fica tambm sem fundamentao a premissa menor do silogismo

    exposto anteriormente.

    5. A regra da proporcionalidade e seus elementosA subdiviso da regra da proporcionalidade em trs sub-regras, adequao, necessidade e

    proporcionalidade em sentido estrito, conquanto praticamente ignorada pelo STF, bem salientada

    pela doutrina ptria. Algumas vezes, contudo, a anlise dessas sub-regras no tem sido feita de

    maneira a torn-las compreensveis e aplicveis na prtica jurisprudencial. Muitas vezes fornecido

    apenas um conceito sinttico de cada uma delas, sem que se analise, no entanto, a relao entre elas,

    nem a forma de aplic-las.44 Com isso, so ignoradas algumas regras importantes da aplicao da

    regra da proporcionalidade, impossibilitando sua correta aplicao pelos tribunais brasileiros. Uma

    dessas regras, trivial primeira vista, mas com importantes conseqncias, a ordem pr-definida

    em que as sub-regras se relacionam.

    Se simplesmente as enumeramos, independente de qualquer ordem, pode-se ter a impresso de

    que tanto faz, por exemplo, se a necessidade do ato estatal , no caso concreto, questionada antes

    ou depois da anlise da adequao ou da proporcionalidade em sentido estrito.45 No o caso. A

    anlise da adequao precede a da necessidade, que, por sua vez, precede a da proporcionalidade

    em sentido estrito.

    A real importncia dessa ordem fica patente quando se tem em mente que a aplicao da regra

    da proporcionalidade nem sempre implica a anlise de todas as suas trs sub-regras. Pode-se dizer

    que tais sub-regras relacionam-se de forma subsidiria entre si. Essa uma importante

    caracterstica, para a qual no se tem dado a devida ateno. A impresso que muitas vezes se

    tem, quando se mencionam as trs sub-regras da proporcionalidade, que o juiz deve sempre

    proceder anlise de todas elas, quando do controle do ato considerado abusivo. No correto,

    contudo, esse pensamento. justamente na relao de subsidiariedade acima mencionada que reside

    44 Como visto acima, a exposio terica costuma no corresponder anlise prtica da aplicao da regra da proporcionalidade.

    45 Willis Santiago Guerra Filho, Processo constitucional e direitos fundamentais, pp. 67 e 68, expe as sub-regras da proporcionalidade na seguinte ordem: proporcionalidade em sentido estrito, adequao e necessidade. Isso poderia dar a entender que a anlise da proporcionalidade em sentido estrito precede as anlises da adequao e da necessidade. Em trabalho mais recente, contudo, a anlise das sub-regras segue o modelo padro. Cf. Willis Santiago Guerra Filho, Teoria processual da constituio, p. 84.

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    a razo de ser da diviso em sub-regras. Em termos claros e concretos, com subsidiariedade quer-se

    dizer que a anlise da necessidade s exigvel se, e somente se, o caso j no tiver sido resolvido

    com a anlise da adequao; e a anlise da proporcionalidade em sentido estrito s imprescindvel,

    se o problema j no tiver sido solucionado com as anlises da adequao e da necessidade. Assim, a

    aplicao da regra da proporcionalidade pode esgotar-se, em alguns casos, com o simples exame da

    adequao do ato estatal para a promoo dos objetivos pretendidos. Em outros casos, pode ser

    indispensvel a anlise acerca de sua necessidade. Por fim, nos [35] casos mais complexos, e

    somente nesses casos, deve-se proceder anlise da proporcionalidade em sentido estrito.

    Antes de iniciar a anlise individual das sub-regras da proporcionalidade, cabe registrar que h

    trs tendncias diversas quanto a seu nmero.

    A primeira delas, amplamente majoritria - e aqui seguida - adota a diviso em trs sub-regras:

    adequao, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.

    A segunda, adotada principalmente pelos crticos do sopesamento como mtodo de aplicao

    do direito, representados principalmente por Bckenfrde e Schlink,46 aceita somente a anlise da

    adequao e da necessidade, excluindo o sopesamento que a anlise da proporcionalidade em sentido

    estrito implica.

    Por fim, a terceira tendncia costuma identificar um elemento adicional, que precede a anlise

    da adequao, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito: a anlise da legitimidade dos fins

    que a medida questionada pretende atingir. Essa tendncia perceptvel principalmente nos autores

    que se ocupam com a aplicao da regra da proporcionalidade perante a Corte Europia de Direitos

    Humanos.47

    Para que o arcabouo terico da regra da proporcionalidade fique claro parece ser

    recomendvel que as sub-regras sejam no s explicadas em separado, mas, o que mais importante,

    que cada uma delas seja analisada com a ajuda de casos concretos. Essa conexo entre a explicao

    terica e a aplicao prtica pode ajudar sobremaneira a compreenso geral do problema. Para tanto,

    utilizar-me-ei de alguns casos j decididos pelo Supremo Tribunal Federal, pois, ainda que as

    decises do Tribunal Constitucional alemo pudessem fornecer inmeros exemplos reais da

    46 Cf. Ernst-Wolfgang Bckenfrde, "Vier Thesen zur Kommunitarismus-Debatte", p. 83; como juiz do Tribunal Constitucional, pde Bckenfrde expressar sua rejeio ao sopesamento entre direitos fundamentais em diversas decises do Tribunal. Cf., por exemplo, BVerfGE 69, 1 [63-65]. Cf. tambm Bernhard Schlink, Abwgung im Verfassungsrecht, pp. 76 ss.; do mesmo autor, "Freiheit durch Eingriffsabwehr", p. 462. No Brasil, Gilmar Ferreira Mendes, sempre influenciado pelas lies de Pieroth e Schlink (cf. Grundrechte - Staatsrecht II, Rn 293, p. 68), menciona algumas vezes apenas os testes da adequao e da necessidade. Cf., por exemplo, "O princpio da proporcionalidade na jurisprudncia do Supremo Tribunal Federal: novas leituras", p. 372; cf., contudo, do mesmo autor, Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade, p. 80, para uma referncia s trs sub-regras, incluindo a proporcionalidade em sentido estrito.

    47 Cf., por exemplo, Jeffrey Jowell, "Beyond the Rule of Law: Towards Constitutional Judicial Review", p. 679. Ainda sobre a regra da proporcionalidade no direito comunitrio europeu, cf. o estudo de Nicholas Emiliou, The Principle of Proportionality in European Law, especialmente pp. 115 ss.; John Josef Cremona, "The Proportionality Principle in the Jurisprudence of the European Court of Human Rights", pp. 323 ss.

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    utilizao da regra da proporcionalidade, parece-me que s se tem a ganhar quando a discusso se

    mantm o mais prximo possvel da realidade forense brasileira.

    A anlise desses casos concretos no pretende fornecer uma resposta nica e supostamente

    correta, j que isso exigiria, principalmente no caso do exame da necessidade das medidas

    questionadas, uma extensiva anlise de medidas alternativas, o que s seria possvel se o artigo fosse

    dedicado exclusivamente aos temas dos exemplos escolhidos. Ela serve mais para demonstrar, de

    forma prtica, como seria uma possvel anlise concreta da proporcionalidade das medidas

    impugnadas, ou seja, como seria uma aplicao da regra da proporcionalidade que no se limitasse a

    ser mais um recurso a um mero topos. Nesse sentido, so esses [36] exemplos meros modelos para

    anlise, no havendo como no abstrair das tecnicidades a eles inerentes, e considerar somente o

    quanto seja necessrio para essa finalidade.48

    Os exemplos prticos escolhidos so:

    Exemplo 1: ADC 9-6, racionamento de energia.

    Exemplo 2: ADIn 855-2, pesagem de botijes de gs.

    5.1. AdequaoNo Brasil, um difundido conceito de adequao sugere que um meio deve ser considerado

    adequado se for "apto para alcanar o resultado pretendido".49 Gilmar Ferreira Mendes, por

    exemplo, cita deciso do Tribunal Constitucional alemo para fornecer o conceito de adequao, nos

    seguintes termos:

    "os meios utilizados pelo legislador devem ser adequados e necessrios consecuo dos fins visados. O meio adequado se, com a sua utilizao, o evento pretendido pode ser alcanado [...]"50

    Esses conceitos de adequao no so, contudo, os mais corretos. A causa do problema est

    na traduo imprecisa da deciso. A sentena em alemo seria melhor compreendida se se traduzisse

    o verbo frdern, usado na deciso, por fomentar, e no por alcanar, como faz Gilmar Ferreira

    Mendes, porque, de fato, o verbo frdern no pode ser traduzido por alcanar. Frdern significa

    fomentar, promover. Adequado, ento, no somente o meio com cuja utilizao um objetivo

    alcanado, mas tambm o meio com cuja utilizao a realizao de um objetivo fomentada,

    48 Por isso, uma possvel discordncia quanto aos resultados dos exames relativos aos casos prticos no os invalida, dado o explcito carter didtico que os reveste e dadas as limitaes tcnicas referidas.

    49 Cf Humberto Bergmann vila, "A distino entre princpios e regras e a redefinio do dever de proporcionalidade", p. 172.

    50 Cf. Gilmar Ferreira Mendes, "O princpio da proporcionalidade na jurisprudncia do Supremo Tribunal Federal: novas leituras", p. 371 (grifei); do mesmo autor, in: Gilmar Ferreira Mendes / Inocncio Mrtires Coelho / Paulo Gustavo Gonet Branco, Hermenutica constitucional e direitos fundamentais, p. 248. A deciso citada encontra-se em BVerfGE 30, 292 [316].

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    promovida, ainda que o objetivo no seja completamente realizado. H uma grande diferena entre

    ambos os conceitos, que fica clara na definio de Martin Borowski, segundo a qual uma medida

    estatal adequada quando o seu emprego faz com que "o objetivo legtimo pretendido seja

    alcanado ou pelo menos fomentado."51 Dessa forma, [37] uma medida somente pode ser

    considerada inadequada se sua utilizao no contribuir em nada para fomentar a realizao do

    objetivo pretendido.52

    Exemplo 1: ADC 9-6, racionamento de energia

    As medidas governamentais mais questionadas judicialmente foram aquelas constantes dos

    arts. 14 a 18 da MP 2152-2, razo pela qual o Presidente da Repblica props ao declaratria de

    constitucionalidade (ADC 9-6) para que esses artigos fossem declarados constitucionais, com efeitos

    vinculantes. O Supremo Tribunal Federal deferiu a medida cautelar na ao declaratria para

    suspender, com eficcia ex tunc, e com efeito vinculante, at final julgamento da ao, "a prolao de

    qualquer deciso que tenha por pressuposto a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade dos

    artigos 14 a 18 da Medida Provisria 2.152-2". O Tribunal entendeu "demonstrada, em face da crise

    de energia eltrica, a proporcionalidade e a razoabilidade das medidas tomadas".53

    Os citados artigos 14 a 18 disciplinam as metas de consumo de energia eltrica e prevem as

    sanes para aqueles que no as cumprirem. A medida que aqui interessa a suspenso do

    fornecimento de energia eltrica.

    O teste da adequao da medida limita-se, como j visto, ao exame de sua aptido para

    fomentar os objetivos visados. O objetivo do plano de racionamento de energia eltrica , como

    prev o prprio art. 1 da MP 2152-2, "compatibilizar a demanda e a oferta de energia eltrica, de

    forma a evitar interrupes intempestivas ou imprevistas do suprimento de energia eltrica".

    51 Cf. Martin Borowski, Grundrechte als Prinzipien, p. 116. A definio de Martin Borowski baseia-se exatamente na mesma deciso citada por Gilmar Ferreira Mendes. Tambm Pieroth e Schlink, em cujas lies Ferreira Mendes se baseia, definem, de forma lapidar: "o meio deve fomentar o objetivo". Cf. Pieroth / Schlink, Grundrechte - Staatsrecht II, Rn. 283, p. 66 (grifei). Cf. tambm Lothar Hirschberg, Der Grundsatz der Verhltnismigkeit, pp. 50 ss e Eberhard Grabitz, "Der Grundsatz der Verhltnismigkeit in der Rechtsprechung des Bundesverfassungsgerichts", AR 98 (1973), p. 572. No sentido aqui proposto, cf. Willis Santiago Guerra Filho, Teoria processual da constituio, pp. 84 e 85, que, ainda que, em certa passagem, refira-se a meio adequado como aquele que atinge o fim almejado, nas demais passagens segue a definio aqui defendida como correta, quando, por exemplo, define adequao como "conformidade com o objetivo", ou ainda quando oferece a sua prpria traduo da deciso mencionada, utilizando o verbo "promover" em vez do verbo "alcanar", usado por Ferreira Mendes. A correta traduo de Guerra Filho tambm citada por Lus Roberto Barroso, "Os princpios da razoabilidade e proporcionalidade no direito constitucional", p. 71. Para mais detalhes sobre as implicaes dessa variao no conceito de adequao, cf. Carlos Bernal Pulido, El principio de proporcionalidad y los derechos fundamentales, no prelo, (captulo VI, II, 1).

    52 Cf., nesse sentido, Suzana de Toledo Barros, O princpio da proporcionalidade, p. 78; Wilson Antnio Steinmetz, Coliso de direitos fundamentais e princpio da proporcionalidade, p. 150; Pereira de Souza / Pinheiro Sampaio, "O princpio da razoabilidade e o princpio da proporcionalidade", p. 38.

    53 DJU 09.08.2001. O mrito do pedido foi julgado em 13.12.2001 e o pleno decidiu, vencidos os ministros Nri da Silveira e Marco Aurlio Mello, manter a deciso cautelar. At a data de envio deste artigo para publicao, a deciso ainda no havia sido publicada.

  • Revista dos Tribunais 798 (2002): 23-50.

    questionvel se a previso de suspenso do fornecimento de energia eltrica, nos moldes previstos

    pela MP 2152-2, medida adequada - ou a mais adequada - para que sejam completamente evitadas

    "interrupes intempestivas ou imprevistas do suprimento de energia eltrica". Mas inegvel que,

    devido ao seu carter coercitivo, a medida pressiona os consumidores a economizar energia eltrica

    e, ainda que, sozinha, no seja necessariamente capaz de evitar as interrupes no fornecimento de

    energia, colabora para que esse objetivo possa ser alcanado. Destarte, pode-se dizer que as medidas

    previstas nos arts. 14 a 18 da MP 2152-2 so adequadas, nos termos exigidos pela regra da

    proporcionalidade.

    Exemplo 2: ADIn 855-2, pesagem de botijes de gs54

    Com o objetivo de proteger o consumidor, uma lei do Estado do Paran (Lei 10.248/93) exigia

    que os botijes de gs fossem pesados na presena do consumidor,55 para que [38] possveis

    variaes no peso do botijo vendido, ou possveis sobras de gs no botijo devolvido, fossem

    devidamente ressarcidas ou abatidas do preo do botijo novo. A autora da ao alegou,

    genericamente, alm de vcios de competncia, violao aos princpios da razoabilidade e da

    proporcionalidade, argumento aceito pelo STF - sem qualquer anlise concreta em separado sobre

    adequao ou necessidade da medida adotada. No exame da adequao deve-se indagar

    simplesmente se a medida empregada promoveria a defesa do consumidor. Com base em parecer do

    Inmetro, afirmou-se que no. Em primeiro lugar, porque o tipo de balana necessria para a pesagem

    seria extremamente sensvel, desgastando-se facilmente, o que poderia acarretar desregulagem. Em

    segundo lugar, porque a pesagem impediria que o consumidor adquirisse o botijo em local distante

    do veculo, como feito freqentemente. Nenhum dos argumentos , contudo, suficiente para

    decretar a inadequao da pesagem para a proteo do consumidor. Se a balana desregula-se

    facilmente, basta que haja controle por parte do poder pblico. E o fato de o consumidor ter que

    andar at o veculo para acompanhar a pesagem pode at ser considerado incmodo, mas no altera

    em nada a efetividade da medida. A medida pode, portanto, ser considerada adequada para

    promover a defesa do consumidor, porque fomenta a realizao dos fins visados.

    5.2. NecessidadeUm ato estatal que limita um direito fundamental somente necessrio caso a realizao do

    54 Esse caso j foi chamado de "nosso leading case em matria de proporcionalidade" (cf. Pereira de Souza / Pinheiro Sampaio, "O princpio da razoabilidade e o princpio da proporcionalidade", p. 38). Parece um exagero classific-lo dessa forma, principalmente quando se tem em mente que a aplicao do princpio da proporcionalidade, por parte do STF, , quando muito, uma aplicao de um controle de razoabilidade, como j foi visto no tpico 4.

    55 A mesma exigncia feita pela Lei 9048/95 (lei ordinria federal).

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    objetivo perseguido no possa ser promovida, com a mesma intensidade, por meio de outro ato que

    limite, em menor medida, o direito fundamental atingido. Suponha-se que, para promover o objetivo

    O, o Estado adote a medida M1, que limita o direito fundamental D. Se houver uma medida M2 que,

    tanto quanto M1, seja adequada para promover com igual eficincia o objetivo O, mas limite o direito

    fundamental D em menor intensidade, ento a medida M1, utilizada pelo Estado, no necessria.56

    A diferena entre o exame da necessidade e o da adequao clara: o exame da necessidade um

    exame imprescindivelmente comparativo, enquanto que o da adequao um exame absoluto.

    Exemplo 1: ADC 9-6, racionamento de energia

    Vimos que as medidas previstas nos arts. 14 a 18 da MP 2152-2 so adequadas, porquanto

    ajudam a promover a economia de energia por parte dos consumidores e, com isso, colaboram para

    que se evitem interrupes intempestivas ou imprevistas do suprimento de energia eltrica. Na

    anlise da necessidade dessas medidas, trata-se de cotej-las com outras medidas que sejam capazes

    de promover o mesmo objetivo com a mesma intensidade, mas que restrinjam menos os direitos dos

    cidados. Para tanto, necessrio primeiramente questionar quais direitos so limitados. A ameaa

    de suspenso do fornecimento de energia eltrica restringe, em primeiro lugar, o amplo acesso a um

    servio pblico de primeira necessidade. E restringe-o de forma extremamente desigual, porquanto a

    fixao de cotas baseadas na mdia de consumo de meses anteriores faz com que justamente aqueles

    que sempre economizaram energia tenham a menor margem de manobra, correndo um risco maior

    [39] de ter seu fornecimento de energia suspenso. Se uma pessoa P1 consumiu, em mdia, nos meses

    de maio, junho e julho de 2000, 125 kWh de energia eltrica, e outra, P2, em moradia idntica,

    consumiu, no mesmo perodo, 250 kWh de energia eltrica, no poder P1 ultrapassar, a partir do

    incio do racionamento de energia, 100 kWh por ms, sob pena de ter seu fornecimento suspenso

    (art. 14, II e 2 e 4 da MP 2152-2), enquanto P2 poder consumir at 200 kWh por ms, sem

    maiores conseqncias. A limitao ao direito de igualdade perante a lei (CF, art. 5, caput e inc. I)

    parece evidente. Mas no s a igualdade limitada pelo plano de racionamento de energia. Tambm

    a livre iniciativa, quando esta depende de fornecimento de energia que supere os limites fixados. O

    direito ao trabalho, pelas mesmas razes. Em ltima anlise, at mesmo o direito a uma vida digna

    limitado.

    Como j explicado, na anlise da necessidade de uma medida, deve-se indagar sobre a

    existncia de medida igualmente eficaz. No caso em anlise, de medida que tambm possa fazer com

    56 Essa frmula corresponde frmula de otimizao proposta por Vilfredo Pareto e , por isso, conhecida como eficincia de Pareto. Cf. Robert Alexy, Theorie der Grundrechte, p. 149, nota 222; do mesmo autor, "Individuelle Rechte und kolletive Gter", p. 259; Bernhard Schlink, Abwgung im Verfassungsrecht, pp. 178-182; Laura Clrico, Die Struktur der Verhltnismigkeit, pp. 112-119. Cf. tambm Rainer Dechsling, Das Verhltnismigkeitsgebot, pp. 51-54. Dechsling sugere tambm a aplicao do critrio de Kaldor-Hicks, com algumas modificaes, para a anlise da necessidade de uma medida (cf. p. 68).

  • Revista dos Tribunais 798 (2002): 23-50.

    que sejam evitadas "interrupes intempestivas ou imprevistas do suprimento de energia eltrica",

    mas que restrinjam em menor escala os direitos dos cidados. Uma aplicao real da sub-regra da

    necessidade, algo no realizado pelo STF, implica analisar medidas alternativas que satisfaam essa

    condio. No o caso de faz-lo neste artigo, que no dedicado ao problema do racionamento.

    Medidas alternativas foram propostas em grande quantidade e bastante divulgadas, no s em

    veculos especializados, mas tambm pela grande imprensa. provvel que uma anlise minuciosa

    dessas alternativas revelasse a existncia de medidas to (ou mais) adequadas do que as adotadas

    pelo Governo Federal, mas que restringissem em menor intensidade os direitos dos cidados. Nesse

    caso, as medidas previstas pelas medidas provisrias do Governo deveriam ser consideradas

    desproporcionais, pois, conquanto fossem elas adequadas para fomentar a realizao do objetivo

    desejado, dificilmente resistiriam a um cotejo com medidas alternativas e seriam classificadas como

    desnecessrias.57 claro que no se pode excluir a possibilidade de que as medidas governamentais

    sejam, de fato, necessrias. Mas a essa concluso s pode chegar quem as compara com medidas

    alternativas. Essa a essncia do exame da necessidade.

    Exemplo 2: ADIn 855-2, pesagem de botijes de gs

    A exigncia de pesagem dos botijes de gs, como foi visto, adequada para a defesa do

    consumidor. Para saber se necessria, o primeiro passo , como visto acima, verificar qual direito

    fundamental est sendo restringido para, num segundo passo, perquirir sobre a existncia de medidas

    alternativas que, da mesma forma, protejam o consumidor, mas restrinjam em menor escala o direito

    em questo.

    A autora da ao alegou apenas uma possvel restrio a um direito fundamental, a restrio

    liberdade de iniciativa, pois a produo de balanas exigiria "investir muitos recursos em tecnologia",

    o que poderia levar "runa econmica das empresas" distribuidoras.58

    Como medida alternativa, sugeriu-se que a proteo ao consumidor fosse feita por meio de

    controle do peso dos botijes por amostragem, realizado pelo Poder Pblico, como [40]

    atualmente feito. Alega-se que os consumidores so protegidos e que as empresas no se locupletam

    com o que resta de gs nos botijes recolhidos, porquanto tais sobras "so levadas em conta na

    fixao dos preos pelo rgo competente, beneficiando, assim, toda a coletividade dos

    consumidores finais".59 Mesmo em um cenrio de preos controlados, o argumento no suficiente 57 Para alguns exemplos de alternativas, cf. o relatrio Colapso Energtico no Brasil e Alternativas Futuras, que o

    resultado de um estudo realizado por comisses permanentes da Cmara dos Deputados (Minas e Energia e Defesa do Consumidor). Sobre a discusso na imprensa, cf., por exemplo, Jos Goldemberg, "H alternativas ao racionamento de energia?", O Estado de So Paulo, 15.05.2001; Rogrio L. Furquim Werneck, "Alternativa ao racionamento", O Estado de So Paulo, 16.03.2001; Bruno Duque Horta Nogueira, "A tarifa extra-fiscal: uma alternativa ao racionamento", Gazeta Mercantil, 19.06.2001.

    58 RTJ 152, 455 [461].59 RTJ 152, 455 [460 e 461].

  • Revista dos Tribunais 798 (2002): 23-50.

    para decidir pela desnecessidade da medida, uma vez que ela no exclui esse controle por

    amostragem, mas a ele se soma. Caso a medida se destinasse apenas a evitar locupletamento

    indevido por parte das empresas, poder-se-ia argumentar que o controle por amostragem seria no

    s menos restritivo livre iniciativa, mas tambm to ou mais eficiente do que a pesagem na frente

    do consumidor. Mas a exigncia de pesagem tem tambm outra finalidade: proteger o consumidor

    individualmente, para que ele no pague pelo que no recebeu. E, para a consecuo dessa

    finalidade, a exigncia de pesagem certamente mais eficiente do que o controle por amostragem.

    Nesse sentido, a exigncia de pesagem na presena do consumidor pode ser considerada como

    necessria, nos termos da regra da proporcionalidade.

    5.3. Proporcionalidade em sentido estritoAinda que uma medida que limite um direito fundamental seja adequada e necessria para

    promover um outro direito fundamental, isso no significa, por si s, que ela deve ser considerada

    como proporcional. Necessrio ainda um terceiro exame, o exame da proporcionalidade em

    sentido estrito, que consiste em um sopesamento entre a intensidade da restrio ao direito

    fundamental atingido e a importncia da realizao do direito fundamental que com ele colide e que

    fundamenta a adoo da medida restritiva.60

    Um exemplo extremo pode demonstrar a importncia dessa terceira sub-regra da

    proporcionalidade. Se, para combater a disseminao da Aids, o Estado decidisse que todos os

    cidados devessem fazer exame para detectar uma possvel infeco pelo HIV e, alm disso,

    prescrevesse que todos os infectados fossem encarcerados, estaramos diante da seguinte situao: a

    medida seria, sem dvida, adequada e necessria - nos termos previstos pela regra da

    proporcionalidade -, j que promove a realizao do fim almejado e, embora seja fcil imaginar

    medidas alternativas que restrinjam menos a liberdade e a dignidade dos cidados, nenhuma dessas

    alternativas teria a mesma eficcia da medida citada. Somente o sopesamento que a

    proporcionalidade em sentido estrito exige capaz de evitar que esse tipo de medidas descabidas

    seja considerado proporcional, visto que, aps ponderao racional, [41] no h como no decidir

    60 Cf., por exemplo, na jurisprudncia do Tribunal Constitucional alemo, BVerfGE 90, 145 [173]. A idia de sopesamento , contudo, extremamente polmica. Como j referido anteriormente, vrios so os autores que a rechaam (vide nota 46). Cf., por exemplo, Jrgen Habermas, Faktizitt und Geltung, pp. 316-317; Friedrich Mller, Juristische Methodik, p. 63; do mesmo autor, Die Positivitt der Grundrechte, p. 18. Bernhard Schlink, Abwgung im Verfassungsrecht, pp. 76 ss., por exemplo, sugere que a proporcionalidade em sentido estrito deve garantir o ncleo essencial do direito restringido, sem a necessidade de sopesamento. Hirschberg, contudo, insinua que Schlink, ainda que rejeite a necessidade de sopesamento como parte da proporcionalidade em sentido estrito, inclui-o, disfaradamente, no exame da necessidade. Cf. Lothar Hirschberg, Der Grundsatz der Verhltnismigkeit, pp. 174-175. Para uma crtica idia de sopesamento na teoria de Robert Alexy, cf. Matthias Jestaedt, Grundrechtsentfaltung im Gesetz, pp. 229-241. Recomendvel tambm a anlise de Walter Leisner, Der Abwgungsstaat, especialmente pp. 11-45.

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    pela liberdade e dignidade humana (art. 5 e 1, III), ainda que isso possa, em tese, implicar um nvel

    menor de proteo sade pblica (art. 6).

    Para que uma medida seja reprovada no teste da proporcionalidade em sentido estrito, no

    necessrio que ela implique a no-realizao de um direito fundamental. Tambm no necessrio

    que a medida atinja o chamado ncleo essencial de algum direito fundamental.61 Para que ela seja

    considerada desproporcional em sentido estrito, basta que os motivos que fundamentam a adoo da

    medida no tenham peso suficiente para justificar a restrio ao direito fundamental atingido.

    possvel, por exemplo, que essa restrio seja pequena, bem distante de implicar a no-realizao de

    algum direito ou de atingir o seu ncleo essencial. Se a importncia da realizao do direito

    fundamental, no qual a limitao se baseia, no for suficiente para justific-la, ser ela

    desproporcional.62

    Exemplo 1: ADC 9-6, racionamento de energia

    Como j foi explicado anteriormente, dada a relao de subsidiariedade que as sub-regras da

    proporcionalidade guardam entre si, s h que se falar em exame da proporcionalidade em sentido

    estrito caso a medida estatal tiver sido considerada adequada e necessria. Como, na anlise acima

    realizada, chegou-se concluso de que as medidas previstas pelos arts. 14 a 18 da MP 2152-2 no

    so necessrias, ento no h a possibilidade de se indagar acerca de sua proporcionalidade em

    sentido estrito.

    Exemplo 2: ADIn 855-2, pesagem de botijes de gs

    Como visto, a exigncia de pesagem de botijes de gs na presena do consumidor pode ser

    considerada adequada para fomentar a realizao dos fins perseguidos. Dentro das possibilidades da

    presente anlise, a medida pde tambm ser considerada como necessria, pois ainda que a medida

    alternativa de pesagem por amostragem pudesse restringir em menor escala a livre iniciativa das

    empresas distribuidoras de gs, tal alternativa no parece ter a mesma capacidade de fomentar a

    proteo do consumidor. Na anlise da proporcionalidade em sentido estrito deve ser questionado se

    a proteo ao consumidor justificaria essa pequena limitao liberdade de iniciativa. 61 Em sentido oposto, cf. Humberto Bergmann vila, "A distino entre princpios e regras e a redefinio do dever

    de proporcionalidade", pp. 159-160 e 173; Willis Santiago Guerra Filho, "Sobre princpios constitucionais gerais: isonomia e proporcionalidade", RT 719 (1995), p. 59.

    62 Alexy costuma dividir o grau de restrio de um direito fundamental e o grau de importncia da realizao do direito que justifica a medida restritiva em alto, mdio e pequeno. Assim, se o grau de restrio a um direito mdio - portanto longe de implicar a sua no-realizao -, mas o grau de importncia da realizao do direito colidente pequeno, ento a medida desproporcional. Como se v, o conceito de no-realizao de um direito no fundamental na anlise da proporcionalidade em sentido estrito. Cf., nesse sentido, o posfcio que Robert Alexy elaborou para a traduo inglesa da sua Teoria dos direitos fundamentais, no qual rebate algumas das crticas a suas teses (Robert Alexy, A Theory of Constitutional Rights, Oxford, no prelo, com previso de publicao para 2002. Uma traduo desse posfcio para o espanhol ser publicada na Revista Espaola de Derecho Constitucional, provavelmente no ltimo nmero de 2002).

  • Revista dos Tribunais 798 (2002): 23-50.

    A resposta parece bvia, e no foi toa que me referi limitao liberdade de iniciativa,

    nesse caso, como pequena. A proteo ao consumidor parece ter um peso maior do que uma

    restrio mnima liberdade de iniciativa. O Supremo Tribunal Federal, no entanto, decidiu de forma

    diversa.63

    [42]

    6. A regra da proporcionalidade no direito brasileiroAqui se cuida do que, na introduo deste artigo, chamei de dimenso emprica, isto , da

    identificao da regra da proporcionalidade no direito positivo brasileiro. A questo de se saber se a

    aplicao da regra da proporcionalidade encontra fundamento no direito positivo brasileiro tem

    recebido respostas diversas.

    Em algumas decises do STF, como j visto, esse fundamento meramente pressuposto, o que

    em nada contribui para o deslinde da questo. Em vrias outras, contudo, o tribunal encontra um

    fundamento para a proporcionalidade no inciso LIV do art. 5.

    Boa parte da doutrina entende que a regra da proporcionalidade tem seu fundamento no

    chamado princpio do Estado de Direito, como o caso de Gilmar Ferreira Mendes,64 Lus Roberto

    Barroso,65 e Suzana de Toledo Barros.66 Esta uma tendncia que, na Alemanha, encontra apoio em

    decises do Tribunal Constitucional e na doutrina.67

    H tambm quem encontre o fundamento da proporcionalidade nos mais diversos dispositivos

    constitucionais. o caso, por exemplo, de Suzana de Toledo Barros, Antonio Magalhes Gomes

    Filho, e de Carlos Affonso Pereira de Souza e Patrcia Regina Pinheiro Sampaio.68 Segundo esses

    autores, fundamentam a aplicao da proporcionalidade os artigos 5, II (legalidade), 5, XXXV

    63 Cf., contudo, o voto divergente do Min. Marco Aurlio Mello, RTJ 152, 455 [462].64 Cf. Gilmar Ferreira Mendes, "O princpio da proporcionalidade na jurisprudncia do Supremo Tribunal Federal:

    novas leituras", p. 372, citando Hans Schneider, que, no entanto, tem postura crtica acerca da fundamentao da regra da proporcionalidade com base no princpio do Estado de Direito. Cf. Hans Schneider, "Zur Verhltnismigkeits-Kontrolle insbesondere bei Gesetzen", pp. 390-392.

    65 Cf. Lus Roberto Barroso, "Os princpios da razoabilidade e da proporcionalidade no direito constitucional", pp. 75 e 77.

    66 Cf. Suzana de Toledo Barros, O princpio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais, p. 95.

    67 Sobre a jurisprudncia do Tribunal Constitucional, cf. sobretudo BVerfGE 23, 127 [133]; para decises mais recentes, cf. BVerfGE 90, 145 [173]; BVerfGE 92, 277 [317]; NJW 1995, 383; BVerfGE 93, 99 [108]; NVwZ 1996, 1199 [1200]; NJW 1997, 1910. Na literatura, cf. Eberhard Grabitz, "Der Grundsatz der Verhltnismigkeit in der Rechtsprechung des Bundesverfassungsgerichts", pp. 584 ss.; Konrad Hesse, Grundzge des Verfassungsrechts, Rn 185, p. 78; Chistian Starck, Praxis der Verfassungsauslegung, pp. 26-27. Para uma crtica a essa posio, cf. Peter Lerche, berma und Verfassungsrecht, p. 64 e 81 ss. Veja tambm nota 64, supra.

    68 Cf. Suzana de Toledo Barros, O princpio da proporcionalidade, p. 93; Antonio Magalhes Gomes Filho, "A violao do princpio da proporcionalidade pela Lei 9296/96", Bol. IBCCrim 45 (1996), p. 14 (Gomes Filho cita apenas os arts. 60, 4, IV e 5, II); Pereira de Souza / Pinheiro Sampaio, "O princpio da razoabilidade e o princpio da proporcionalidade", pp. 39 ss. O Supremo Tribunal Federal tambm afirma freqentemente que o "princpio da proporcionalidade [...] extrai a sua justificao dogmtica de diversas clusulas constitucionais", sem nunca afirmar quais so essas diversas clusulas. Cf., por exemplo, ADIMC 1407-2, DJU 15.03.1996.

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    (inafastabilidade do controle jurisdicional), 1, caput (princpio republicano), 1, II (cidadania), 1, III

    (dignidade). So ainda citados os institutos do habeas corpus (art. 5, LXVIII), mandado de

    segurana (artigo 5, LXIX), habeas data (artigo 5, LXII), assim como o direito de petio (artigo

    5, XXXIV, a). No mesmo sentido, e provavelmente como inspirador dos autores citados, leciona

    Paulo Bonavides.69

    [43]

    H, ainda, baseada tambm na lio de Paulo Bonavides,70 uma tendncia a tratar os diversos

    dispositivos constitucionais que mencionam o adjetivo "proporcional",71 ou termos correlatos, como

    expresses da regra da proporcionalidade no direito constitucional brasileiro.

    Por fim, h a tese de que a proporcionalidade integra o direito positivo brasileiro por meio do

    2 do art. 5, por decorrer do regime e dos princpios adotados na Constituio, defendida

    especialmente por Willis Santiago Guerra Filho e Paulo Bonavides.72

    de se reconhecer que pelo menos alguns desses dispositivos exigem que as atividades

    legislativa e executiva sejam controladas, para que se evitem abusos. O que resta sem resposta,

    contudo, a razo pela qual esse controle deve ser feito por intermdio da aplicao da regra da

    proporcionalidade e no por outro mtodo. H diversos outros modelos de controle que poderiam

    desempenhar a mesma tarefa. Na Itlia, por exemplo, fala-se em ragionevolezza, para a qual no se

    aplicam as trs sub-regras aqui discutidas.73 O mesmo vale para qualquer outro mtodo.

    A despeito da opinio de inmeros juristas da mais alta capacidade, entendo que a busca por

    uma fundamentao jurdico-positiva da regra da proporcionalidade uma busca fadada a ser

    infrutfera.74

    A exigibilidade da regra da proporcionalidade para a soluo de colises entre direitos

    fundamentais no decorre deste ou daquele dispositivo constitucional, mas da prpria estrutura dos

    direitos fundamentais.75 Essa fundamentao no se confunde, contudo, com aquela anteriormente 69 Cf. Paulo Bonavides, Curso de direito constitucional, p. 395.70 Cf. Paulo Bonavides, Curso de direito constitucional, p. 395; tambm Pereira de Souza / Pinheiro Sampaio, "O

    princpio da razoabilidade e o princpio da proporcionalidade", p. 40.71 Por exemplo, o art 5, V; art. 7, V, XXI; art. 45, caput e 1; art. 58, 1 e 4, entre outros.72 Cf. Willis Santiago Guerra Filho, "Princpio da proporcionalidade e teoria do direito", p. 278; do mesmo autor,

    "Hermenutica constitucional: direitos fundamentais e princpio da proporcionalidade", mimeo, p. 20, in verbis: "A circunstncia de ele [o princpio da proporcionalidade] no estar previsto expressamente na Constituio de nosso Pas no impede que o reconheamos em vigor tambm aqui, invocando o disposto no 2 do art. 5"; cf. tambm Paulo Bonavides, Curso de direito constitucional, p. 396. No mesmo sentido, citando Paulo Bonavides, cf. Juarez Freitas, "O intrprete e o poder de dar vida constituio", p. 233.

    73 Digna de nota, contudo, a tese de Laura Di Gregorio no sentido da necessidade da aplicao dessas sub-regras para o aperfeioamento do princpio da ragionevolezza. Cf. Laura Di Gregorio, The Necessary Criteria for Legal Reasonableness in Italian Constitutional Adjudication, especialmente pp. 198 ss.

    74 Cf., no mesmo sentido, Humberto Bergmann vila, "A distino entre princpios e regras e a redefinio do dever de proporcionalidade", p. 160.

    75 A igual concluso, seguindo a tese de Alexy, chegam Humberto Bergmann vila, "A distino entre princpios e regras e a redefinio do dever de proporcionalidade", pp. 158-160 e 175; e Suzana de Toledo Barros, O princpio da proporcionalidade, pp. 157 e 158. Suzana de Toledo Barros, contudo, recorre a quase todas as possibilidades de fundamentao, seja recorrendo ao argumento do Estado de Direito (vide nota 66), seja a diversos outros preceitos

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    citada, segundo a qual a exigncia de aplicao da regra da proporcionalidade, por decorrer "do

    regime e dos princpios" adotados pela Constituio, encontraria sustentao legal no 2 do art. 5.

    A fundamentao aqui seguida tem um carter estritamente lgico, e valeria ainda que esse 2 no

    existisse.

    Se se admite que a grande maioria dos direitos fundamentais so princpios, no sentido

    defendido por Robert Alexy, analisado brevemente no tpico 2, admite-se que eles so [44]

    mandamentos de otimizao, isto , normas que obrigam que algo seja realizado na maior medida

    possvel, de acordo com as possibilidades fticas e jurdicas.76 E a anlise da proporcionalidade

    justamente a maneira de se aplicar esse dever de otimizao ao caso concreto. por isso que se diz

    que a regra da proporcionalidade e o dever de otimizao guardam uma relao de mtua

    implicao.77

    Qual a relao entre a otimizao diante das possibilidades fticas e a regra da

    proporcionalidade? As possibilidades fticas dizem respeito s medidas concretas que podem ser

    utilizadas para o fomento e a proteo de direitos fundamentais. Se para o fomento do princpio P1,

    h duas medidas estatais, M1 e M2, que so igualmente adequadas para esse fim, mas M1 restringe um

    outro direito fundamental P2, de se admitir que a otimizao desse princpio P2 exija que seja

    empregada a medida M2. Essa conseqncia da otimizao de P2 em relao s possibilidades fticas

    presentes nada mais do que a j analisada sub-regra da necessidade.78

    J o exame da terceira sub-regra - a proporcionalidade em sentido estrito - nada mais do que

    um mandamento de ponderao ou sopesamento, como j visto acima (item 5.3). Quando dois ou

    mais direitos fundamentais colidem, a realizao de cada um deles depende do grau de realizao dos

    demais e o sopesamento entre eles busca atingir um grau timo de realizao para todos. A

    otimizao de um direito fundamental, nesse caso, vai depender das possibilidades jurdicas

    presentes, isto , do resultado do sopesamento entre os princpios colidentes, que nada mais do que

    a sub-regra da proporcionalidade em sentido estrito.79

    7. ConclusoComo concluso, antes de arrolar sucintamente as teses aqui defendidas, examino mais um

    caso concreto sobre a aplicao ou no-aplicao da regra da proporcionalidade. Nos controvertidos

    constitucionais (vide nota 68).76 Contra essa idia, cf. Jrgen Habermas, Faktizitt und Geltung, pp. 310-317.77 Cf. Robert Alexy, Theorie der Grundrechte, p. 100.78 Cf. Robert Alexy, Theorie der Grundrechte, p. 101.79 Cf. Robert Alexy, Theorie der Grundrechte, pp. 100-101.

  • Revista dos Tribunais 798 (2002): 23-50.

    casos sobre a admissibilidade de provas obtidas por meios ilcitos, a regra da proporcionalidade

    constantemente aventada. Nesse sentido, sustenta Ada Pellegrini Grinover:

    "embora se aceite o princpio geral da inadmissibilidade da prova obtida por meios ilcitos, propugna-se a idia de que em casos extremamente graves, em que estivessem em risco valores essenciais, tambm constitucionalmente garantidos, os tribunais poderiam admitir e valorar a prova ilcita. primeira vista, a Constituio brasileira parece impedir essa soluo, quando no abre nenhuma exceo expressa ao princpio da proporcionalidade [...]".80

    Como visto, a Constituio no prev a aplicao da regra da proporcionalidade. E, por uma

    razo lgica, se no a prev, tambm no pode abrir excees e dizer quando ela no aplicvel. Se

    se entende, no entanto, que a regra da proporcionalidade decorre logicamente do fato de os direitos

    fundamentais, em sua maioria, serem princpios, e no regras, no h como tentar afastar a aplicao

    da regra da proporcionalidade, sob o argumento de que no [45] h previso constitucional a

    respeito. Isso no significa, contudo, que, necessariamente, uma aplicao da proporcionalidade

    poder autorizar a admisso de provas obtidas por meios ilcitos. Se se entende que essa vedao

    uma regra, no sentido definido por Alexy e brevemente comentado no item 2 deste trabalho, no

    haveria a possibilidade de sopesamento com outros princpios colidentes, porque regras, ao contrrio

    dos princpios, no comportam sopesamento. No haveria, por conseguinte, como relativizar a

    proibio das provas ilcitas por meio da aplicao da regra da proporcionalidade, pois essa s

    aplicada quando h coliso entre princpios, no nos casos de conflitos entre regras.81

    Por fim, algumas das principais teses defendidas neste trabalho:

    1. Proporcionalidade e razoabilidade no so sinnimos. Enquanto aquela tem uma estrutura

    racionalmente definida, que se traduz na anlise de suas trs sub-regras (adequao, necessidade e

    proporcionalidade em sentido estrito), esta ou um dos vrios topoi dos quais o STF se serve, ou

    uma simples anlise de compatibilidade entre meios e fins;

    2. Na forma como discutida neste artigo, a regra da proporcionalidade tem origem na

    jurisprudncia alem, e no na jurisprudncia inglesa ou norte-americana;

    3. A aplicao da regra da proporcionalidade pelo Supremo Tribunal Federal consiste apenas

    em um apelo razoabilidade;

    4. As sub-regras da proporcionalidade guardam uma relao de subsidiariedade, o que significa

    dizer que nem sempre ser necessria a aplicao de todas elas;

    80 Ada Pellegrini Grinover, "A eficcia dos atos processuais luz da Constituio Federal", RPGE-SP 37 (1992), p. 46 (grifei). No mesmo sentido, cf. Lus Roberto Barroso / Ana Paula de Barcellos, "A viagem redonda: habeas data, direitos constitucionais e as provas ilcitas", RDA 213 (1998), pp. 159 ss.

    81 Discute-se, muitas vezes, a possibilidade de coliso real entre uma regra e um princpio. Como j foi dito anteriormente, no h espao para uma anlise aprofundada da teoria dos princpios jurdicos neste artigo dedicado proporcionalidade. A resposta fornecida acima suficiente dentro dos limites deste artigo. Para referncias bibliogrficas em lngua portuguesa, cf. nota 7, supra.

  • Revista dos Tribunais 798 (2002): 23-50.

    5. Para que uma medida seja considerada adequada, nos termos da regra da proporcionalidade,

    no necessrio que o seu emprego leve realizao do fim pretendido, bastando apenas que o

    princpio que legitime o objetivo seja fomentado;

    6. A regra da proporcionalidade no encontra seu fundamento em dispositivo legal do direito

    positivo brasileiro, mas decorre logicamente da estrutura dos direitos fundamentais como princpios

    jurdicos;

    7. Se se aceita, portanto, a definio de princpio jurdico como mandamento de otimizao,

    necessrio tambm aceitar a aplicao