fletcher, george. o justo e o razoável

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    SumrioSumrioSumrioSumrioSumrio

    ResumoResumoResumoResumoResumo

    O Justo e o Razovel **

    George P. Fletcher*

    1.Introduo; 2. Dois estilos de Raciocnio Legal; 2.1 Justificao eExculpao; 2.2 Argumento Estruturado; 3. A Ordem R/I; 4. A Ordem

    I/R; 5. A Indiferena entre I(Ilicitude) ou R(Responsabilidade); 5.1Raciocnio Jurdico Plano; 6. O Conceito de Justo; 7. LegtimaDefesa Putativa: Um Estudo Comparativo do Caso entre oraciocnio Plano e o Estruturado; 7.1 Justificao como Sinnimode Defesa; 7.2 Justificao como Conduta Permissiva; 7.3Direitos como direitos Prima Facie; 8. Monismo e Pluralismo naTeoria Jurdica; Notas e Referncias.

    Existem duas distintas formas de raciocinar juridicamente, umaprpria do Common Law e outra prpria do Civil Law. Baseia-se adiferena, principalmente, na equivalncia dos usos dos termosJusto e Razovel em cada um dos Sistemas como referncia paraa estruturao dos argumentos. Esta distinta forma de raciocinarjuridicamente leva, em Direito penal, a diferentes aproximaes dajustificao e da exculpao. H distintas possveis formas deordenar a excluso de responsabilidade penal, precedendo a

    *Catedrtico de Direito Penal. Universidade de Columbia, New York, EUA. [email protected]

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    justificao ou a exculpao. Uma breve anlise dos Direitos comodireitosprima faciee as perspectivas monista e pluralista da TeoriaJurdica.

    Justo e Razovel; Justificao e Exculpao.

    Ns juristas anglo-saxes deveramos ouvir o modo como falamos.Se parssemos para ouvir nosso padro de discurso, ficaramossurpreendidos por alguns aspectos distintivos. Uma das mais clarasparticularidades do nosso discurso a infinita confiana que temosno termo razovel. Continuamente empregamos expresses como:tempo razovel, atraso razovel, confiana razovel ou cuidadorazovel. Em Direito penal, ns falamos incessantemente sobreprovocao razovel, erro razovel, fora razovel, e risco

    razovel1

    . Por trs dessas expresses late a sensibilidade dapessoa razovel. Com toda a suposta firmeza do Common Law,ns mal podemos funcionar sem essa figura hipottica no centrodo debate jurdico. Nem sequer podemos comear a argumentarsobre vrios temas de responsabilidade e imputao sem antes nosperguntarmos o que uma pessoa razovel faria nestascircunstncias.

    Nossa confiana no razovel merece ateno porque distinguenosso discurso jurdico do discurso jurdico de outras culturas.O fato que juristas franceses, alemes e soviticos argumentam

    Key wordsKey wordsKey wordsKey wordsKey wordsJust and Reasonable; Justification and Exoneration.

    PPPPPalavra-Chavealavra-Chavealavra-Chavealavra-Chavealavra-Chave

    AbstractAbstractAbstractAbstractAbstract

    1. IntroduoIntroduoIntroduoIntroduoIntroduo

    There are two separate forms of legal reasoning, one belonging toCommon Law and the other to Civil Law. The difference lies mainlyin the equivalence of the uses of the terms Just and Reasonable ineach of the Systems as a reference to the way in which thearguments are structured. This distinct form of legal reasoningleads, in Criminal Law, to different approaches to justification and

    exoneration. There are separate possible forms of systematizingthe exclusion of criminal responsibility, preceding the justification orexoneration. A brief analysis of the Rights, such as prima facierights, and the monist and pluralist views of Legal Theory.

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    em um idioma diferente. Suas lnguas efetivamente usam umconceito de razo, e seus termos para razo raison, Vernunferazumnost prontamente fornecem os adjetivos correspondentes.Entretanto, esses paralelos ao nosso termo razovel no figuramde forma proeminente no discurso jurdico continental. O Cdigo

    Civil francs utiliza o termo raisonnable somente uma vez2; osCdigos Civis alemo e sovitico no o utilizam3. Os cdigospenais o habitat natural da pessoa razovel tampoucomencionam estes derivados da razo4. Nos cdigos civis, vemosuma variedade de critrios para cuidado: na Frana, a condutaesperada de um bon pre de famille5; na Alemanha Ocidental, o ocuidado necessrio numa transao particular6; e na legislaosovitica, prevendo uma conseqncia social perigosa quequalquer um poderia ter previsto7. Erros razoveis so tambm

    tratados num lxico diferente. Os adjetivos que descrevem um erroescusvel, nessas lnguas, no so traduzidos pelo termo razovel,mas sim invencvel8, inevitvel9 e no-negligente10. Todasessas emanaes da pessoa razovel encontram diferentestradues no discurso jurdico continental, uma palavra diferentepara cada contexto.

    Na Europa continental, nem o adjetivo razovel nem a figura dapessoa razovel importa muito na hora de escolher um argumentojurdico. O que percebemos como denominador comum entre aconfiana razovel e o erro razovel est diludo no debatejurdico continental. O fato de que pensamos de forma diferente denossos colegas europeus no to facilmente perceptvel. Quefalamos de modo diferente, entretanto, fica bastante claro.

    Acredito que, no por acaso que ns juristas anglo-saxesclaramente dependemos do conceito do razovel e que oseuropeus no dependem. Esse padro do nosso discurso tem umpropsito, talvez muitos propsitos. Em primeiro lugar, considerarei

    alguns desses possveis propsitos e ento analisarei o problemaespecfico dos erros razoveis no Direito penal.

    2.2.2.2.2.Dois estilos de Raciocnio LegalDois estilos de Raciocnio LegalDois estilos de Raciocnio LegalDois estilos de Raciocnio LegalDois estilos de Raciocnio Legal

    At que ponto podemos apreciar o valor que o common lawconcede ao termo razovel? Sugiro que ouamos atentamente amaneira com que juristas franceses, alemes e soviticos debatemassuntos jurdicos. Para isso, devemos prestar ateno no s nalinguagem da legislao e das opinies jurisprudenciais, mas

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    tambm no estilo de argumentao utilizado nos livros, tratados eliteratura terica. Nosso objetivo nessa questo emprica deveriaser isolar as caractersticas do discurso europeu mais destacadasem seu contexto proeminentes em seu contexto e compar-lascom nossa patente dependncia do razovel. Limitando nossa

    investigao ao discurso jurdico alemo, encontramos um nmerode termos no facilmente traduzveis que aparecem quase tofreqentemente no discurso jurdicos alemo como o derazoabilidade no discurso jurdico ingls. Considerei os termos Treuund Glauben (boa-f e negcio justo)11, Recht(direito objetivo)12 ,Rechtsmibrauch (abuso de direito)13, e Zumutbarkeit(exigibilidade)14. Que estes termos sejam to significantes nodiscurso alemo quanto o de razovel no ingls no dependem,contudo, to somente da freqncia com que aparecem. Aquesto se um ou mais desses termos assinala umacaracterstica mais profunda, estrutural, do pensamento legalalemo.

    O argumento a seguir que o conceito de justo (Recht) molda opensamento jurdico alemo assim como o de razoabilidade nocommon law. Para desenvolver esse argumento, primeiramentepreciso introduzir e tornar clara a distino entre dois tipos dediscurso jurdico, os quais, por falta de termos melhores, chamarei

    de plano15 e estruturado. O discurso jurdico plano ocorre em umnico nvel, marcado pela aplicao de uma norma legal que invocatodos os critrios relevantes para resoluo da disputa. O discursolegal estruturado ocorre em dois estgios: primeiramente, umanorma absoluta declarada e em segundo lugar se introduzemqualificaes para restringir o propsito da norma supostamentedispositiva.

    Essa distino facilmente compreendida no contexto. Considere

    o problema de impor limites ao direito de utilizar a fora paraimpedir uma agresso ao direito de algum. A lei alem trata esseproblema com um estilo de discurso jurdico estruturado. De acordocom o Cdigo Penal de 197516 (assim como o Cdigo anterior de187117), todos que sofrem uma violao injusta de seus direitostm o privilgio absoluto de usar a fora que seja necessria paraimpedir esta violao. Se, por exemplo, a nica maneira de deterum ladro fugitivo, at mesmo uma criana furtando frutas, atirarnele, a jurisprudncia18 e a doutrina19 alems consideravam

    originalmente que o proprietrio tinha o direito de usar uma fora

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    letal. Contrariamente a essa tendncia, alguns comentaristas20 e ajurisprudncia21 no ps-guerra invocaram o princpio do abuso dedireitos para limitar esse direito em um segundo nvel de anlise22.No primeiro nvel, permanece existindo um direito absoluto a usarfora letal quando necessrio; em um segundo nvel, o exerccio

    desse direito se submete, entretanto, a uma ulterior verificao. Seo direito exercido mediante um custo excessivo, se lhe consideraabusivo e, portanto, fica sem efeito. Nada no Cdigo Penalprev essa restrio, mas o mtodo do pensamento jurdicoestruturado permite um nvel adicional de argumentao, um nvelonde consideraes extra-jurdicas podem limitar as previsesexplcitas do Cdigo.

    De modo distinto, o discurso do common law normalmente evita

    essa bipartio. Ns anglo-saxes no nos sentimos inclinados adizer, primeiro, que a parte que est se defendendo tem todo odireito de usar toda a fora necessria para reivindicar suaautonomia, e segundo, que invocar esse direito em certascircunstncias seria um abuso23 . A vantagem do simples termorazovel que ele inclui os critrios iniciais normativos que soos mesmos ou similares queles invocados pelos que usam oargumento do abuso de direito em um segundo nvel deargumentao. O resultado da unificao das duas dimenses de

    argumentao que o privilgio da legtima defesa no maisabsoluto, porque desde o incio vem limitado pelo conceito dorazovel.

    O estilo estruturado de argumentao jurdica se expressatambm nas limitaes impostas ao uso da propriedade. Noprimeiro nvel de argumentao, propriedade privada entendidacomo absoluta; no segundo nvel, o direito de sua propriedade abusivo se outros direitos so afetados de maneira

    desproporcional24

    . Ao contrrio do que sucede na anlise a doisnveis de legtima defesa, na argumentao plana esta estrutura unificada desde um princpio: todos tm o direito do uso razovelde sua propriedade25 .

    Depois dessa comparao entre o pensamento jurdico estruturadoe o plano, podemos ver que nossa dependncia do termo razovelfavorece o pensamento jurdico plano. Com modificadoressintticos livres como razovel e substancial, cada regra docommon law pode conter substitutivos para tudo que algumprecisa saber para resolver um problema em particular. Claro que

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    a adio de conceitos abertos modificadores sacrifica tanto aaparente preciso quanto o aparente carter absoluto da regraposta. Mas um jurista americano sofisticado provavelmente diriaque essas ostensivas virtudes da lei alem so ilusrias e que melhor trabalhar com as normas jurdicas vagas e qualificadas, mas

    pelo menos no enganosas. Tanto a anlise estruturada como aplana tm seus atrativos. Se no tivessem, dificilmenteencontrariam expresso em duas culturas jurdicas mundialmentelderes. Apesar de simpatizar com a clareza da anlise jurdicaestruturada, meu primeiro propsito aqui provar as diferenassubstantivas e retricas expressas nestes distintos modos depensamento jurdico.

    Antes de mencionar outros exemplos do Direito americano e

    alemo, permitam-me matizar a presente argumentao em doispontos. Primeiro, a tese que aqui se expe representa umaprimeira aproximao para uma completa valorao do que seentende por razovel no common law. Mas tambm perfila esteargumento conectando particularmente o conceito do razovel comas idias bsicas da teoria jurdica alem. Segundo, o conceito dorazovel no o nico aspecto que facilita o pensamento jurdicoplano no common law. Qualquer outro conceito modificador abertocomo, por exemplo, o termo substancial, nos permite formularnormas que incluem critrios qualificadores desarticulados nacriao de uma regra.

    22222.1 Justificao e Exculpao.1 Justificao e Exculpao.1 Justificao e Exculpao.1 Justificao e Exculpao.1 Justificao e Exculpao

    Olhemos agora no modo em que nossa onipresente invocao dapessoa razovel permite-nos funcionar sem a distinofundamental entre justificao e exculpao. Essa distino

    bsica no Direito penal alemo. Era tambm indispensvel nocommon law na regulamentao do homicdio proposta porBlackstone26. Hoje, entretanto, somente aqueles tericos docommon law que ainda lem e respeitam a literatura filosfica tmalta considerao por essa distino.

    Essa distino entre justificao e exculpao no particularmentedifcil de entender. As alegaes em pr da justificao dizemrespeito ao que est correto ou, no mnimo, o que est legalmentepermitido27, em um ato que viola nominalmente a lei. Se uma

    conduta geralmente no permitida justificada com base em,

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    digamos, legtima defesa, estado de necessidade, consentimentoou cumprimento do dever legal, o ato deve prevalecer na situaode conflito. Ningum est autorizado a defender-se de um atojustificado, e aos terceiros permitido, at mesmo encorajado, aajudar o autor que atua justificadamente28.

    Ao contrrio nas causas de exculpao no se fala sobre o que correto ou desejvel no ato, mas da culpabilidade pessoal do autor.Estas causas vm considerao somente quando se decidiu queo ato inconveniente (errado ou ilegal) e por isso, pede-seexculpao ou desculpas29. Se uma causa de exculpao, tal comoinsanidade, intoxicao involuntria, ameaa, ou erro de direitoaplica-se ao caso, a incorreo do ato permanece inalterada30. Aexculpao s implica em que o autor no pessoalmente culpvel

    pelo ato antijurdico ou ilegal que realizou. As causas dejustificao dirigem nossa ateno para aos atributos do ato emabstrato; as causas de exculpao, para a culpabilidade do autorna situao concreta.

    A distino entre justificao e exculpao tem um valor prtico eterico fundamental. Para elaborar uma teoria da responsabilidadeou um Cdigo Penal racional31, a primeira coisa a fazer perguntarse uma eximente em particular se refere s circunstncias do fato

    ou da culpabilidade pessoal do autor. Contudo, esta distino nofoi mencionada nos textos de lngua inglesa dos ltimos cemanos32. A indiferena pela distino pode ser vista claramente naobra publicada em quatro volumes, Encyclopedia of Crime and

    Justice33, por Sanford Kadish. Essa obra contm os conceitosortodoxos americanos concernentes ao Direito penal e todos ostextos legais das duas ltimas dcadas. Virtualmente todos osautores mais proeminentes neste campo contriburam com umartigo em algum assunto de justia penal. Os artigos no so

    particularmente originais, nem essa sua inteno. Foram feitos noprincpio de 1980 para refletir sobre o modo com que oprofessorado americano pensava sobre Direito penal, processopenal, e outros mbitos relacionados. A Enciclopdia constitui umavitrine para o pensamento ortodoxo sobre esses assuntos.

    Na verdade, a Enciclopdia reconhece o trabalho filosfico recentena estruturao das eximentes de responsabilidade34 . Mas umnmero surpreendente de artigos no presta ateno em se aseximentes em particular podem ser construdas diferentemente setratadas como causas de justificao ou de exculpao. George

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    Dix escreve sobre legtima defesa sem chegar questo de se suafuno justificar a conduta ou meramente exculp-la35. Ainda quea legtima defesa tenha razes em ambas as teorias36, para queanalisar assuntos particulares tais como defesa de um terceiro37 ouo dever de fugir38, se deve, necessariamente, discutir se o

    fundamento desta eximente uma justificao ou uma exculpao.Martin Levine, que, por outro lado, escreve cuidadosamente sobreameaa, passa muito rapidamente sobre a relevncia da distinoentre justificao e exculpao39. Argumentando sobre a extensoda ameaa nos casos de homicdio, descuida em sua anlise deque a soluo desse assunto depende de, se a classifica comojustificao ou exculpao40. Abraham Goldstein escreve sobreenfermidade mental41, mas se equivoca ao discutir se estaeximente funciona como uma iseno jurisdicional de

    responsabilidade, analogamente responsabilidade do menor deidade, ou como uma causa de exculpao, por analogia com aintoxicao voluntria42. Steven Duke se ocupa da obedincia ordem de um superior hierrquico4, mas trata com indiferena aquesto bsica e rica de se confiana na legalidade das mesmasserve para justificar a conduta ou meramente exculp-la44. HymanGross, escreve sobre os conceitos americanos na rea de erro dedireito45, mas se equivoca ao analisar as analogias possveis entreerro de direito e outras causas de exculpao4.

    Existem duas perspectivas com as que qualquer pessoa podeentender a indiferena que mostram estes cinco autores ante adistino entre justificao e exculpao. Assim, por exemplo, eudiria que a anlise que se faz das eximentes em particular superficial e que falha na percepo das implicaes tericas eprticas da explicao da razo bsica de cada uma delas. Os cincotemas legtima defesa, ameaa, enfermidade mental, ordenssuperiores e erro de direito so analisados sem distinguir se a

    eximente uma justificao, uma exculpao ou possivelmente umproblema de jurisdio (como pode ser o caso com da enfermidademental). Parece que esses cinco autores simplesmente no reagemaos argumentos disponveis na rea. como se em um artigoescrito hoje sobre teoria do ato ilcito no se analisasse suasimplicaes na anlise econmica da lei.

    possvel, entretanto, imaginar que a ortodoxia implcita naEnciclopedia no mais que produto de uma evoluo intelectual.A questo que aparece, ento, no se seus argumentos so

    certos ou errados, ou se so sofisticados ou no, mas trata-se de

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    uma questo de outra ordem: como que esses autores analisamo Direito penal sem mencionar uma distino que tanto os tericosalemes como os filsofos americanos contemporneosconsideram fundamental?47 Minha resposta para essa perguntanos levar de volta para o ponto de partida: a patente dependncia

    no Direito americano do conceito do razovel e do pensamentojurdico plano. Mas agora precisamos voltar a analisar asdiferenas entre fazer distines, por um lado, e pensarjuridicamente de forma estruturada, por outro.

    22222.2 Argumento Estruturado.2 Argumento Estruturado.2 Argumento Estruturado.2 Argumento Estruturado.2 Argumento Estruturado

    As distines no geram por si mesmas o pensamento jurdico

    estruturado. Algum poderia, por exemplo, seguir a distino quefaz J.L. Austin entre erros e acidentes48. Isso nos levaria aperceber duas razes da negligncia. Uma forma de neglignciaconsistiria em causar dano por um acidente culposo; a outra, ematuar com base em uma percepo culposamente errada domundo. Ainda que esses traos distintivos de anlise noproduzam uma ordem lxica49, parece que uma dimenso doargumento deve preceder a outra.

    Como, ento, a distino de justificao e exculpao gera umaforma estruturada de argumentao jurdica? Isso no tofacilmente perceptvel, se no se tem em conta que, na verdade, aimportncia da distino est na sua imagem especular: nosconceitos afirmativos negados por cada eximente. A justificaonega uma assertiva de conduta errada. A exculpao nega umaacusao de que o agente pessoalmente culpvel pela condutaerrada. Apesar de que o acusado atuou intencionamente violandoa lei, ele no pessoalmente culpvel por uma violao

    injustificada se agiu sob ameaa, enquanto enfermo mental, ousegundo certos tipos de erro de direito. A estrutura que estimplcita nesse modo de enquadrar a anlise de responsabilidade(exculpaes por violaes injustificadas) o conceito deconduta antijurdica que logicamente precede o conceito deculpabilidade pessoal50. A anlise de justificao deve preceder aanlise da exculpao.

    A questo que propriamente nos interessa, portanto, se essaordem dos termas est logicamente determinada. Analisando oproblema da responsabilidade, pode ser que algum considere

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    primeiramente uma causa de exculpao, seja de insanidade ouintoxicao voluntria, e mais tarde um problema de legtima defesaou uso justificado da fora? Por que no deveria o tema daresponsabilidade (que os juristas americanos comumente rotulam oassunto de culpabilidade pessoal) ser o primeiro assunto a

    considerar na anlise da imputao?Para os juristas alemes, parece natural considerar antes o tema deilicitude e logo o de responsabilidade (uma ordem I/R). Os textosalemes nem sequer param para explicar essa ordem. Ainda queaceitemos uma distino clara entre ilicitude (ausncia dejustificao) e de responsabilidade (ausncia de causas deexculpao), outras duas relaes lgicas entre esses termas sopossveis. possvel (1) indagar sobre responsabilidade antes de

    ilicitude (uma ordem R/I), ou (2) que no necessria nenhumaordem entre os dois assuntos. A ltima possibilidade reflete aorientao do pensamento jurdico plano. Coerentemente com aminha tese geral, tentarei demonstrar porque sou contrrio ao pontode vista ortodoxo americano a respeito da anlise daresponsabilidade penal. Primeiramente, entretanto, gostaria deconsiderar a possibilidade de uma ordem R/I e ento falar daaceitao da ordem I/R como um problema bvio no Direito alemo.

    3.3.3.3.3. A Ordem R/IA Ordem R/IA Ordem R/IA Ordem R/IA Ordem R/INa tradio do common law possvel encontrar algum apoio paradar prioridade lgica ao tema da responsabilidade sobre o tema dailicitude. O primeiro assunto a considerar deveria ser se o acusado um destinatrio da norma legal aplicvel. Se criana, o acusadono sujeito para a norma. Se um psictico, ou se, na linguagemdo common law, ele comporta-se como um animal selvagem,deve ser tratado como uma criana como algum que fica fora doobjetivo da lei penal. A analogia continua, mais ou menos, para oenfermo mental que comete um delito. Mas difcil fazer a mesmareivindicao para ameaa, intoxicao involuntria, ou o erro dedireito. Porm, no common law ainda est nos estatutos estaforma de enfrentar o problema.

    A seo 26 do Cdigo Penal da Califrnia enuncia seis categoriasde pessoas que no so capazes de cometer crimes51. As 2primeiras categorias so crianas e idiotas. As ltimas quatro so

    definidas assim:

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    03 Pessoas que cometeram o ato ou omitiram-se por ignornciaou erro de fato, o que exclui qualquer inteno criminosa.

    04 Pessoas que cometeram o ato sem estarem conscientes disso.

    05 Pessoas que cometeram o ato ou omitiram-se por caso

    fortuito ou por acidente, quando aparenta no haver nenhum traode maldade, inteno, ou negligncia culpvel.

    06 Pessoas (a menos que o crime seja punido com morte) quecometeram o ato ou omitiram-se sob ameaa ou perigo suficientespara demonstrar que eles tinham uma causa razovel paraacreditar e efetivamente acreditaram que suas vidas estariam emperigo se negassem a realiz-lo52.

    O contedo das categorias trs, cinco e seis obviamente so

    diferentes do sujeito da previso: pessoas incapazes de cometercrimes. Os temas de erro, acidente e ameaa falam no dacapacidade do autor, mas do modo pelo qual o ato foi realizado.Aqueles que invocam essas eximentes so inquestionavelmentecapazes de cometer crimes, mas eles no podem obviamenteser responsveis pelo ato particular em discusso.

    Existem alguns sinais de uma ordem R/I no common law53 , mascomo o Cdigo da Califrnia indica, trata a responsabilidade como

    equivalente do assunto geral de capacidade pessoal. Se, aocontrrio, a responsabilidade considerada como exculpao,ento a determinao de se uma conduta ilcita precede aconsiderao da possvel exculpao. Essa a relao conceitualque eu agora tentarei explicar.

    A anlise de justificao logicamente precede a considerao daexculpao somente se os conceitos afirmativos correspondentesso ordenados da mesma forma. Na ordem I/R, a responsabilidade(R) entendida no como a capacidade geral do autor, mas comosua culpabilidade ou reprovabilidade por realizar um ato emparticular. Dois argumentos sustentam a prioridade lgica dailicitude sobre a responsabilidade. O primeiro conceitual e estimplcito no prprio significado do termo exculpao.

    Falar de exculpao s tem sentido no contexto de umaresponsabilidade e isso supe a possibilidade de responsabilidade.

    44444. A Odem I/R. A Odem I/R. A Odem I/R. A Odem I/R. A Odem I/R

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    No faz sentido escusar eventos naturais como chuva ouavalanche; esses eventos no apresentam nenhum problema deculpabilidade porque no existe nenhuma pessoa para serresponsabilizada. As causas de exculpao tampouco se aplicam aatos benficos porque neles no h nada a ser culpado e portanto

    nada a exculpar. A questo sobre culpabilidade e exculpao limita-se aos atos humanos danosos. Deve existir algo negativo para queum autor possa ser culpado coerentemente.

    Entre as condutas humanas, apenas aquelas que do lugar a umaavaliao negativa requerem prima facienossa ateno. No casoespecfico de violaes legais, da violao de uma proibio legal sededuz prima facieuma avaliao negativa. Mas esta avaliao

    prima facie um tpico refutado em casos de justificao. Se a

    violao justificada, seja por legtima defesa, estado denecessidade, ou consentimento vlido, o ato , no balano final,correto e bom. No se d a avaliao negativa necessria para quea exculpao seja relevante. No h necessidade de argumentarsobre culpabilidade ou exculpao de um ato justificado, da mesmaforma que no haveria que culpar ou exculpar um ato benfico. Ajustificao santifica o ato e torna a exculpao irrelevante.

    Tudo isso plausvel, e qualquer um poderia admiti-lo, mas isso noprova que a anlise de das causas de justificao logicamenteprecedem a anlise da exculpao. Por que no considerar osassuntos nessa ordem: (1) violao de uma proibio legal; (2)culpabilidade e exculpao; e ento (3) justificao possvel? Esse um desafio sensato que prope o problema de se quando seinfringe uma proibio legal suficiente a avaliao negativa queimplica, permitindo passar diretamente, sem necessidade dedeterminar previamente a ilicitude, a dar relevncia exculpao.Se isso ocorresse, seria possvel considerar a exculpao daviolao antes de sua justificao.

    Esse argumento tem uma fora particular at o momento quenossas leis esto perto de nossas normas morais. Isso porque asviolaes dessas leis geram fortes implicaes negativas,permitindo propor desde um primeiro momento o tema daexculpao. Implicitamente, isso serve para argumentar que aviolao de uma proibio moral traz consigo uma forte presunode conduta ilcita. Ainda, essa presuno pode ser objeto derefutao se h alguma causa de justificao. Se tanto a violao

    de uma proibio como a questo de justificao tratam da ilicitude

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    do ato, faz pouco sentido separar os assuntos e consider-los,respectivamente, no primeiro e no terceiro passos do raciocnio.Certamente, desde o ponto de vista terico, se poderiamconsiderar causas de exculpao antes que as de justificao. Masum mtodo conformado com a estrutura lgica do problema

    consideraria primeiramente todos os assuntos relativos valoraonegativa que afetam tambm a exculpao.

    At o momento, o argumento para a prioridade lgica da ilicitudeprovm de um questionamento conceitual. A reivindicao tem sidode que a ordem I/R pertence natureza das exculpao. Umsegundo argumento deriva das teorias retributivas de pena. Essasteorias como opostas queles que do nfase proteo social mantm, simplesmente, que a pena deve ser imposta para fatos

    ilcitos. A retribuio requer que os ofensores sejam punidos porsuas violaes para retificar o desiquilbrio representado pelaviolao impune. A maneira com que a punio compensa o fatoinjusto pode ser mstica para o sentido que lhe d Hegel54. Poderiater vindo da abordagem kantiiana de universalizao do atoinjusto55. Ou pode vir da tese mais moderna que pode serencontrada no trabalho de Herbert Morris: a retribuio retifica am distribuio dos benefcios e deveres que decorrem dacomisso do delito56. Em toda teoria retributiva, o primeiro tema

    a ilicitude. A gravidade da violao determina a severidade mximado castigo. O castigo deveria ser atenuado no caso de falta deculpabilidade parcial57 ou excludo em caso de falta deculpabilidade ou conduta escusvel. A necessidade de considerar ailicitude antes da responsabilidade vem da estrutura dopensamento retributivo. A primeira questo se existe umainfrao para ser punida e, se existe, quantificar a punio. Asegunda questo, se o castigo deve ser atenuado, considerandose o autor deve ser exculpado ou deve ser punido pela totalextenso de sua violao.O argumento para mitigao poderia bem ser que o autor tem umcontrole incompleto sobre o desenvolvimento do delito. Quantomenos controle o autor tem, menos culpado pelo ato. Adiminuio de controle poderia resultar tanto de presses externascomo da condio psicolgica do autor. Em casos de ameaa eestado de necessidade, tal como fugir da priso para evitar umaviolao homossexual, o controle do autor to reduzido que

    culp-lo por sua conduta ilcita ofende nosso senso de justia.

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    Similarmente, intoxicao involuntria e a enfermidade mental,pelo menos na compreenso convencional desses estados, refleteperda interna de controle at o ponto que seria injusto consider-los culpveis. A anlise de erro de direito segue o mesmo modo deraciocnio at o ponto de que se algum no sabe que sua conduta

    ilcita, dificilmente pode considerar-se que tem controle sobre oato ilcito que possa cometer. Essas consideraes representamnada mais que o primeiro corte num conjunto difcil de assuntos,mas parece servir para uma avaliao geral das eximentes.

    Minha anlise da exculpao no passa de um nvel superficial deargumentao58, o objetivo dessas consideraes simplesmentedemonstrar a natureza secundria da culpabilidade e daexculpao na anlise da responsabilidade. A teoria da pena

    retributiva convida-nos a considerar o que merece o ofensor, massomente depois de estabelecida que ele se torna um agente de umato ilcito. Os assuntos de culpabilidade e exculpao fazemsentido somente se pergurtarmos: culpvel ou escusvel de que?O que nessa questo requer que ns especifiquemos o atoinconveniente que d significado s noes de culpabilidade eexculpao.

    55555. A Indiferena entre I(ilicitude) ou. A Indiferena entre I(ilicitude) ou. A Indiferena entre I(ilicitude) ou. A Indiferena entre I(ilicitude) ou. A Indiferena entre I(ilicitude) ou RRRRR(responsabilidade)(responsabilidade)(responsabilidade)(responsabilidade)(responsabilidade)Numa cultura que d nfase ao raciocnio jurdico plano, no cabeesperar uma ordem R/I nem uma I/R. E, efetivamente, ns noencontramos. O Cdigo Penal Modelo de 1950, mas ainda umdocumento ortodoxo no menciona nenhuma ordem. O preceitoque define o elemento material do delito trata a justificao e aexculpao com os mesmos critrios definindo prima facie aresponsabilidade59 . O Cdigo adota o modelo de raciocnio plano.

    Todos os elementos so de igual significado. Se qualquer elemento,seja afirmativo ou negativo, estiver ausente, o acusado no culpado. Carece de importncia analisar os elementos em umaordem particular, uma vez que temos que verific-los todos antesde exigir uma responsabilidade.

    55555.....1 Racicnio Jurdico Plano1 Racicnio Jurdico Plano1 Racicnio Jurdico Plano1 Racicnio Jurdico Plano1 Racicnio Jurdico Plano

    O conceito de razovel o modificador onipresente favorece uma

    argumentao plana de responsabilidade. A pessoa razovel

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    obscurece a linha entre justificao e exculpao, entre ilcito eculpabilidade, e assim impossibilita qualquer ordem dedeterminao da responsabilidade. O padro o que uma pessoarazovel faria nessas circunstncias? prope a questo dadiferena entre ilicitude e culpabilidade de um modo distinto. Os

    critrios tanto de justificao quanto de exculpao submetem-sea mesma questo. Por exemplo, em relao justificao delegtima defesa, se pergunta que quantidade de fora utilizaria umapessoa razovel. O questionamento similar quando analisamos aexculpao por ameaa. A pergunta o que mais razovel:roubar um banco, ou ser assassinado60; escapar da cadeia ouevitar uma violao homossexual61. Herbert Fingaretteengenhosamente argumenta que o elemento chave na ameaa que o ato do acusado fazer ilicitamente o que razovel 62. Amesma frmula funciona para a legtima defesa. Aquele que agrideilicitamente torna em razovel para a vtima da agresso usar afora em legtima defesa. Nesse modelo verbal, nos podemosmover para trs e para frente entre os critrios de justificao eexculpao com a maior facilidade63.

    Indiquei antes que os alemes aceitaram a ordem I/R no porrazes polticas, mas porque logicamente obrigatrio tanto pelanatureza da exculpao como por uma concepo retributiva da

    pena. Se isso verdade, necessitamos avaliar por que essasconsideraes no servem para afirmar a ordem I/R nopensamento do common law. As duas razes a favor da ordem I/R no so to distintas quanto parecem. As causas de exculpaotm um status secundrio apenas se assumimos a prioridade doilcito na anlise do castigo. Mas, se o castigo tem outro propsitoalm de retribuir o delito, ento essa relao de prioridade lgicapode falhar.

    A partir dos textos de Bentham64 e da traduo do livro deBeccaria65, os juristas ingleses tm sido cticos a respeito da idiade que o castigo dos fatos ilcitos seja um fim em si mesmo. Odever de punir os culpados no se adapta mentalidade anglo-americana que busca um propsito produtivo em toda prticasocial. Certamente a injustia nos ofende. Mas fazer justia porseus prprios meios tambm no nos atrai. Ainda que os juristasamericanos e ingleses tambm considerem que punir os inocentes um erro, tem pouco entusiasmo pelo princpio KANTiano de que

    temos um dever categrico de punir os culpados66. De acordo com

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    o ponto de vista dominante hoje, se entende que a funo daculpabilidade na maioria das vezes um limite de pena que servepara a intimidao e outros objetivos sociais67. Nem sequer com omximo esprito de tolerncia democrtica, podemos estar de acordocom os KANTianos e os utilitaristas68. Separamos e escolhemos

    entre os fins da pena o que entendemos mais adequado69. Nessadesordem tolerante, lgico que no entendamos bem umaestrutura lgica com dois estgios de anlise que vm de umcompromisso de punir os culpados como um imperativo de justia.

    No surpreende, portanto, que os tericos ortodoxos do commonlaw no distingam entre o ilcito e a responsabilidade, entrejustificao e exculpao. Estes problemas se prope com a mesmafora no mbito do controle social. No teramos porque ter

    problemas separando distines to facilmente descritas, mas nspensamos e argumentamos numa sobre problemas instrumentaisque consideram que estas distines so pouco mais quecuriosidade filosfica.

    66666. O Conceito de Justo. O Conceito de Justo. O Conceito de Justo. O Conceito de Justo. O Conceito de Justo

    Dificilmente chegaramos ao conceito de justo simplesmenteprocurando tradues em contextos particulares do termo

    onipresente razovel. Se prestarmos ateno queles pontos dodebate jurdico onde o raciocnio plano americano corresponde aopensamento estruturado alemo, nos surpreenderia quofreqentemente encontramos a noo do justo no discurso alemo.O conceito de justo, ento, torna-se um candidato para ser oequivalente sistmico do razovel. Por equivalente sistmico, merefiro a um conceito no Direito alemo que to bsico quanto orazovel no common law e um ponto de referncia em umsistema estruturado de pensamento jurdico que funciona sem oefeito de graduao gerado pela pessoa razovel.

    Nos dois assuntos de Direito penal que temos discutido o fim dalegtima defesa e a distino entre justificao e exculpao oconceito do justo oferece um instrumento com o qual a doutrinaalem identifica em nveis distintos, lexicamente ordenados, dediscurso. Quero explicar como acontece isso e fazer algumasdedues sobre a argumentao do pensamento jurdicoestruturado em um sistema jurdico em que o termo de referncia

    o conceito de justo.

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    Para isso preciso que ao menos tentemos valorar o que osalemes querem dizer com Recht, os franceses, com droit; e osrussos, compravo. Esses termos expressam um conceito normativode justo ou direito correto (Nota dos tradutores: Tenha-se em contaque aqui o conceito de direito que emprega o autor no corresponde

    com o termo ingls law, mas com o right, que equivale mais aosque nos idiomas latinos se considerajusto ou correto; da que nestecontexto tenhamos preferido utilizar este termo. Alis, a traduo daverso inglesa para o espanhol, de Paulo Csar Busato e FranciscoMuoz Conde adota a mesma proposio, utilizando a expresso

    justocomo equivalente a right). Cada um desses sistemas jurdicostem tambm tem um termo para expressar um conceito descritivo delei positivada: Gesetz, loie zakon. Os princpios normativos dodireito adquirem sua fora obrigatria de seu efeito moral intrnseco.Que uma pessoa no pode ser juiz em seu prprio caso, queningum pode beneficiar-se de seu prprio erro, que nenhumapessoa inocente pode ser castigada so princpios j aceitos comodireito reconhecido no common law assim como em outros sistemasocidentais. Em contraste, as regras de Gesetz, loi e zakon sopositivas. Essas so leis que retiram sua fora obrigatria no deseu contedo, mas de sua forma. O aspecto crtico da sua forma seu pedigree: elas devem ser positivadas ou declaradas por um

    legislador reconhecido como autoridade dentro do sistema legal. Odebate entre positivistas e seus oponentes reside na exclusividadeda lei positivada dentro do sistema. Como Thomas Hobbes, umpositivista original, colocou: No sabedoria, mas autoridade quefaz o Direito70. Os oponentes do positivismo consideram uma parteou todo o sistema legal como uma expresso de justia71.

    A tradio legal alem tem razes positivistas, como o influente livrode KELSEN, Die Reine Rechtslehre, nos recorda72 . O positivismo deKELSEN era posto de maneira simples: todo Recht positivado porum legislador que tenha autoridade para isto. Essa raiz nunca foidominante no pensamento alemo, pelo menos no com a mesmaextenso que a mensagem positivista de Hobbes, Bentham, Austine Hart na tradio anglo-americana. O pensamento jurdicoalemo, particularmente no perodo ps-guerra, procura nutrir umsenso vivo de direito, uma concepo de Direito que transcenda amatria da lei positivada.

    Definir direito em contraste com o conceito positivista de lei uma

    posio negativa pouco afortunada. Isso s nos diz que o direito

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    no se reduz ao conjunto de leis positivadas. Ainda mais difcildefinir positivamente o que o direito (quer dizer, o que justo).Para Kant, cuja influncia ainda sentida no pensamento jurdicoalemo, o direito o conjunto de condies sob o qual as escolhasde cada pessoa podem ser conciliadas com as escolhas das outras,

    sob as leis universais da liberdade73. Kant distingue claramenteDireito e moral. O primeiro afirma a estrutura de liberdade quepermite s pessoas com diferentes propsitos viverem juntas numasociedade civil. A moral, ao contrrio, se refere a si mesma,invocando mais nosso dever de respeitar a humanidade em nsmesmos e os demais74.

    Kant concebeu o direito como garantia da segurana e daliberdade externa de todos numa sociedade civil75. Uma vez que se

    respeitem essas esferas de autonomia dos outros, qualquer um legalmente livre para ser moral ou no como quiser. Essa liberdadejurdica se expressa na viso, que plausivelmente atribumos aKant do dever de socorro. O imperativo categrico ordena socorreruma pessoa perigo76. Porm, se no se faz, isso no viola asegurana ou a liberdade externa da pessoa em perigo, pelo que,o direito, estritamente considerado, no impe este dever.

    Essa concepo estrita de direito assemelha-se fortemente ao

    princpio de justia de Rawls77

    . Rawls procura garantir a estruturabsica da sociedade sem resolver os conflitos inevitveis queocorrem na vida social e econmica78. Uma concepo do sculovinte de direito conduz por si mesma aos conflitos e no caminho deresolv-los surge o compromisso entre o dever moral de protegeros interesses dos outros e a autonomia assegurada pela estruturabsica. Essa concepo de direito expressa na tendnciacrescente a respeito dos deveres legais impostos para ajudar aosdemais79. Outro exemplo significativo o estado de necessidade

    na responsabilidade civil e no Direito penal, um princpio que exigeque os Tribunais decidam quando um indivduo pode lesionar osinteresses menos valiosos de outro80. A pessoa que sofre a lesodeve renunciar a seus interesses jurdicos. Essa concepomoderna de direito compromete os valores da segurana e daliberdade externa, negociando esses aspectos de autonomiapessoal contra outros interesses num esforo de resolver o conflitosocial.

    significativo, entretanto, que o conceito tradicional de justo aindainforme a legtima defesa. O 32 do Cdigo penal alemo diz:

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    (1) Quem cometer um ato movido por legtima defesa atualicitamente.

    (2) Por legtima defesa deve entender-se a defesa necessriapara repelir um ataque ilcito iminente de uma pessoa a outra81 .

    O termo ilcito aparecendo em ambas as previses, significacontrrio ao direito. Somente ataques contrrios ao direitotrazem o privilgio ou direito de legtima defesa (incluindo a defesade si mesmo, da propriedade e de terceiros)82; a fora mnimanecessria para repelir um ataque ilcito no contrria ao direito.No mesmo contexto, a legislao americana usaria o termoilegal83, um termo que arrisca a confuso entre lei como direito elei reduzida lei positiva. Para explicar melhor o termo alemo,utilizo a palavra ilcito como equivalente a contrrio ao direito.

    Limitar a legtima defesa para repelir ataques significa que se umataque no ilcito, uma pessoa no tem o privilgio de respondera ele. O ataque em si mesmo pode ser justificado por uma legtimadefesa, e neste caso o 32 (1) nos diz o que no ilcito. De modosimilar, o 34 diz que ataques justificados no mbito de estadosde necessidade no so ilcitos84. Isso vem da estrutura dessasprevises nas quais ataques justificados, os quais no so ilcitos,no geram o direito de legtima defesa. Lembrando da distino

    entre ilicitude e culpabilidade85, entretanto, ns podemos inferir queataques exculpados por enfermidade mental, ameaa e estado denecessidade geram um direito de legtima defesa plena86. Se oataque meramente exculpado, ele , ainda, contrrio ao direitoe pode sofrer resistncia. Mais adiante voltaremos a este ponto.

    Para os propsitos presentes, o ponto importante queerroneamente o 32, reformado em 1975, no incorporou oprincpio proporcionalidade da fora como um limite ao direito de

    legtima defesa. Apesar de importantes vozes na doutrina semanifestaram favoravelmente87 a esta limitao na lei, o Cdigoadotou a tradicional regra alem de que toda fora necessria privilegiada, permitindo que quando seja necessria se pode empregaruma fora letal para prevenir a fuga de um ladro insignificante. Oargumento comum para essa posio extrema invoca a mximaalem: o direito nunca deve ceder ao injusto88. A prpria idia deestar em seu direito contra um agressor, de ter o direito pessoalinvadido, significa que pode se legitimamente resistir. Isso o que

    significa ser uma pessoa autnoma numa sociedade civil. Como diria

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    Kant, resistir a um agressor em nome do direito refora a estruturabsica da sociedade civil89. Foradamente repelir o agressor asseguraque todo indivduo pode exercer sua liberdade em relao aosoutros90.

    Da vem, ento, que o sistema jurdico no requer que os indivduoscedam seus direitos aos agressores; ao contrrio, permite usar a foranecessria para reivindicar tanto sua autonomia como a ordemjurdica.

    Apesar do contedo do 32, os tericos alemes contemporneosconsideram que o direito deve ceder em alguns casos particularmente se o agressor estava obviamente alcoolizado, erauma criana, ou membro da famlia91. Como se indicou anteriormente,a razo doutrinria para essa restrio que apesar do defensor tero direito de usar toda fora necessria, abusa desse direito se oexercita em determinados casos92. O que poderia levar a essarestrio na reivindicao de autonomia pessoal? Em princpio,poderamos dizer que algum equilbrio necessrio entre osinteresses do defensor e os interesses do agressor. Fora letal seriacorreta para evitar um estupro, mas no para evitar um beijo; ferir oagressor seria aceitvel para prevenir um roubo, mas no para frustraruma tentativa ilegal de conseguir uma vaga para estacionar93. A

    primeira questo, entretanto, por que o que se defende, quandoseus direitos so atacados, deve preocupar-se com os interesses doagressor.

    A resposta, simplesmente, que o agressor um ser humano.Mesmo que ele esteja engajado numa agresso ilcita, ningum podetrat-lo simplesmente como uma fora intrusa que deve ser anuladaa qualquer custo. Com sua nfase exclusiva de reivindicar autonomiapessoal, a filosofia alem de que o direito no precisa nunca ceder aoinjusto trata, de fato, o injusto como uma fora que sempre nega odireito. A resposta humanitria que algumas vezes o custo da defesado direito simplesmente muito alto; algumas vezes o direito deveceder no propsito de preservar valores encontrados at na pessoado agressor.

    A resposta humanitria leva diretamente moderna concepode direito, a qual incorpora os interesses do agressor em afirmaros limites da legtima defesa lcita. Pode-se achar essaconcepo moderna em Blackstone94, que argumenta que se no

    executarmos pequenos ladres por seus crimes, tambm no

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    poderamos permitir o uso de fora letal contra eles. O proprietriono poderia reagir mais severamente nas ruas do que faria umaautoridade no Tribunal. Sejam quais forem os limites lgicos dessaanalogia95, constitui um standard integrado na legtima defesa: emum nico plano de argumentao, a valorao sobre o mrito da

    posio do defensor se enlaa com a preocupao pelos interessesdo agressor.

    O critrio dominante dos alemes a respeito desse problema, semantm tratando-o em dois nveis distintos. No primeiro nvel oargumento se apoia nos critrios de segurana e liberdadepessoal, os valores expressos no tradicional conceito do justo. Osegundo nvel suaviza a severidade dessa viso absolutistaintroduzindo critrios de solidariedade. Indo do primeiro ao

    segundo nvel, mudamos o direito por interesses. De acordo com aviso KANTiana, o agressor no tem direitoa que a pessoa queexerce legtima defesa tenha em conta seus interesses como serhumano. Como o direito requer a reivindicao de autonomia, estcompletamente ao lado do defensor.

    Aqueles que rejeitam o reconhecimento de critrios humanitrioscomo segundo nvel, argumentam como se segue. Claro que oagressor tem interesses, mas o direito est inteiramente ao lado do

    defensor, ento o defensor quem decide se tem ou no em contaos interesses do agressor. Nenhuma vtima de ataque injusto estobrigada a exercitar seu privilgio de defender-se; ela podeescolher compadecer-se, mas o Estado no tem a autoridade deobrigar-lhe a ceder seus direitos em nome do altrusmo96. Esse um ponto importante, que ilustra que a cesso obrigada daautonomia pessoal na sociedade civil no implica de fato quetambm exista a obrigao de ser altrusta. O nico desacordoseria se do interesse do Estado assegurar que as pessoas atuem

    altruisticamente e compassivamente, at com relao a aquelesque as atacam ilicitamente.

    A mesma distino entre direito e compaixo emerge ao analisaros critrios que tm relao com as reivindicaes de justificaoe exculpao. Olhando para o lado oposto dessas categorias, nosencontramos com que a anlise do ilcito leva questo do justo;e a anlise de culpabilidade, questo de compaixo. Se aconduta do acusado justificada, no ilcita e o Estado no temmais o direito de punir. No h nada que permita a punio. Se, aocontrrio, a conduta ilcita, o Estado tem o direito de punir97.

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    A nica questo se, no ponto de vista das circunstncias exigidaspelo fato, a compaixo impede o exerccio do direito de punio.

    Fundamentar a exculpao na compaixo pelo acusado traz algunspontos difceis. No h dvida de que no caso de ameaa, estado

    de necessidade, ignorncia escusvel da lei ou perturbao mental,autores de fatos ilcitos merecem nossa compaixo. Mas, difcildizer que um juiz que administra uma instituio como a do Direitopenal tem o dever de ser compassivo. O que aconteceria se no diado julgamento, o juiz sentenciador no sentisse nada nem ultrajenem compaixo pelo alegado ofensor? Tomado muito seriamente,esse ponto arruinaria toda a instituio da culpabilidade no Direitopenal. O reconhecimento de uma conduta culpvel no podedepender se o juiz sente que deve culpar o acusado. A resposta

    prpria do juiz no perguntar-se se sente que deve culpar oacusado, mas se o acusado merece ser culpado. O mesmo modode pensamento deve aplicar-se quanto merece compaixo.

    Alm disso, a fundamentao da exculpao na compaixo traz aquesto de se uma pessoa que cr que se encontra em situaolegal de exculpao tem o direito de ser exculpada. difcil decompreender que o sistema jurdico possa empregar uma prticadeterminada sem que os beneficirios dessa prtica possam ter o

    direito aos seus benefcios. Esse particularmente o caso onde asprticas so determinadas por regras que vem j reconhecidas naseximentes. Os acusados tm um direito que os Tribunais sigam asregras legisladas, e nesse sentido eles tm um direito de serexculpados quando assim o permita uma regra legal.

    O direito a exculpar algum corresponde to s aos Tribunais. Seriadifcil de dizer que um acusado tem, no momento de realizao dosseus atos, o direito a realizar um ato ilcito. Suponhamos quetemos que valorar se houve estado de necessidade em um casocomo Dudley & Stephens98. Matar o grumete e com-lo evidentemente um ato ilcito, mas absurdo pensar que pessoasem transe de perecer por fome tenham medo de cometer o atoilcito. A exculpao aparecer ex post, no tempo do julgamento.Mas ex ante, ao momento do fato, no adequado falar sobre odireito de matar o grumete e do dever deste de ser vtima de umassassinato.

    Se o autor que atua em uma situao de exculpao tivesse o

    direito a fazer o que ele fez, deveria ser capaz, conscientemente e

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    deliberadamente, de confiar nesse direito no momento em quecometeu o fato. Mas, ao confiar na expectativa de um perdo, jno se daria o elemento de compulso necessria para configuraro estado de necessidade. As causas de exculpao so aplicveissomente onde a conduta ilcita atribuda essencialmente mais s

    circunstncias exigidas que escolha voluntria do ofensor. Umavez que o autor espere ser exculpado e perdoado, sua condutatoma os contornos da escolha voluntria e planificada99.

    Para resumir o argumento empregado at agora, tenteidemonstrar que a anlise do justo difere significativamente de umaanlise secundria que invoca consideraes de compaixo ealtrusmo para o interesse dos delinqentes. No campo da defesanecessria, a noo de direito gera um direito absoluto de usar a

    fora necessria para prevenir uma agresso ilcita. Na anlise deresponsabilidade penal, o conceito do justo fornece um limite paradeterminar quando a conduta ilcita e permite uma punio. Emambos campos de questionamento, as consideraes humanitriastm relao com um segundo nvel de anlise. Na legtima defesa,essas preocupaes altrusticas restringem o emprego da foradefensiva permissvel no caso de pequenas intruses. Na anlisede responsabilidade, a compaixo vem como etapa central sejapara atenuar a responsabilidade ou para reduzir ou eliminar a

    punio merecida pelo delinqente, quando concorremdeterminadas circunstncias.

    77777..... LegtimaLegtimaLegtimaLegtimaLegtima DDDDDefesa Putativa: Um Estudo Comparativoefesa Putativa: Um Estudo Comparativoefesa Putativa: Um Estudo Comparativoefesa Putativa: Um Estudo Comparativoefesa Putativa: Um Estudo Comparativodo caso entre o Raciocnio Plano e o Estruturadodo caso entre o Raciocnio Plano e o Estruturadodo caso entre o Raciocnio Plano e o Estruturadodo caso entre o Raciocnio Plano e o Estruturadodo caso entre o Raciocnio Plano e o Estruturado

    As duas primeiras sees desse ensaio permitem-nos generalizarexperimentalmente dois estilos de raciocnio jurdico. Um estilo enraizado na noo do razovel; o outro, na concepo do direito(do justo). O primeiro gera regras planas que, com a incluso demodificadores imprecisos, inclui implicitamente ou explicitamentetodos os critrios relevantes que tm relao com um problemajurdico em particular. O outro estilo de pensamento rende-se auma srie de argumentos jurdicos, com o argumento do direitoocupando uma srie e consideraes humanitrias outra, desegundo nvel.

    Provavelmente, no h rea no Direito penal que melhor ilustre um

    conflito entre dois estilos de pensamento que o problema da

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    justificao putativa, particularmente o problema da legtimadefesa putativa. Ainda que muitos professores de Direito penalnos Estados Unidos e na Inglaterra facilmente possam entender adiferena entre justificao e exculpao, poucos so capazes decompreender a etiqueta legtima defesa putativa. Esse fato por

    si mesmo significativo. A frase legtima defesa putativa bemconhecida entre os penalistas no Oeste100 e Leste Europeu101, naUnio Sovitica102, na Amrica Latina103, e no Japo104. Que omundo de fala inglesa se afaste desse padro merece nossointeresse.

    A frase legtima defesa putativa refere-se aos problemas quesurgem quando algum acredita razoavelmente que est sendoatacado, mas de fato no est, e usa fora contra a pessoa que

    no de fato o agressor. O problema que do ponto de vista deo que o autor razoavelmente acredita, o uso da fora pode causaruma leso ou, se a vtima morrer, um homicdio. A legtima defesa chamada putativa porque no um caso real de legtima defesa,mas de fora usada contra um agressor putativo.

    Suponha que Dan cr razoavelmente, mas erroneamente, queAllan o est atacando. As jurisdies mencionadas antesdenominam essa a situao de legtima defesa putativa. O uso

    da fora por Dan no pode ser justificado. A justificao harmonia com o Direito um fenmeno objetivo. Mera crenano pode gerar justificao, mesmo que a crena seja razovel.Isso no quer dizer que Dan no tenha defesa. Ele pode alegar oseu erro para negar sua responsabilidade pelo uso da fora contrao inocente Allan105. Agora, suponhamos que Dan, acreditando queAllan o est atacando, pe em perigo a vida de Allan. Pode oinocente Allan defender-se por seu turno? Virtualmente todosacreditam que Allan tenha um direito de defesa contra a pessoa

    que erradamente est tentando mat-lo. O uso da fora por Dan ilcito contra Allan, e portanto, segundo o 32(2) do Cdigo penalalemo, Allan pode usar a fora necessria para repelir o ataque deDan. Na anlise final, tanto Allan quanto Dan poderiam serabsolvidos; Dan com base em um erro no culpvel e Allan, combase na legtima defesa.

    As principais proposies dessa anlise so corretas. Primeiro, oerro no pode justificar um homicdio. Segundo, o autor que atuaem erro pode s contar com seu erro; mas o que tomado por umagressor putativo pode defender a si mesmo, como parte inocente,

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    e pode justificar seus atos com base na legtima defesa. Estasproposies no se apresentam, contudo, como possibilidadessrias para os reformadores da legislao americana. Seguindo asrecomendaes do Cdigo Penal Modelo106, as legislaesamericanas rotineiramente igualam a crena razovel na existncia

    de uma justificao com a efetiva existncia de justificao107.Deste modo incluem o problema da legtima defesa putativa naanlise da legtima defesa real. Portanto, no caso de Allan e Dan,a resposta padro americana que Dan tem pleno direito delegtima defesa contra Allan e Allan tem pleno direito de legtimadefesa contra Dan. O razovel igualado ao justificvel. Nopoderia existir melhor prova de que os juristas americanos nolevam a srio a distino entre justificao e exculpao.

    No estou certo de se esse estado de coisas nos Estados Unidossimplesmente reflete uma confuso que, no curso do debate, se iraclarando, ou se reflete um modo de pensar que est toprofundamente arraigado na conscincia jurdica americana que osesforos para clarear o assunto viro sempre marcados comoimportao das idias alems. Na maioria dos meus trabalhos,tenho defendido a primeira proposio. necessrio considerar,entretanto, se um sistema fundado na razoabilidade provavelmentepode gerar uma distino clara entre justificao objetiva e a crena

    subjetiva necessria e distinguir entre legtima defesa real eputativa.

    Para abordar esses assuntos, gostaria de fazer algumas reflexessobre minhas numerosas discusses com juristas acadmicosamericanos, tanto escritas, como privadas, sobre as duasproposies centrais. As duas proposies, se aceitas, levariam distino entre legtima defesa atual e putativa. A primeiraproposio que crena subjetiva no pode por si mesma justificar

    uma conduta. A crena em que a fora defensiva lcita no pode,por si mesma, torn-la lcita.

    Um argumento filosfico a favor de que a crena subjetiva podejustificar a conduta se constri a partir de uma leitura errada datese de Kant que a boa vontade o maior bem concebvel108. Aboa vontade levada condio de sinnimo de boas intenes, ecomo o defensor putativo age com boas intenes, sua condutadefensiva deve ser moral e, portanto, presumivelmentejustificada. Um argumento desse tipo encontrado no trabalhode Charles Fried109.

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    Esse argumento defeituoso primeiro na leitura da teoria moral deKant e segundo na sua tentativa de conectar a teoria moral comos critrios de justificao. De acordo com Kant, a vontade boasomente se algum age pelo senso de dever, o que significa que oato avaliado necessariamente por sua referncia moral 110 .

    Suponhamos que o imperativo categrico (a lei moral) requer quens defendamos o direito contra a agresso ilcita111. Esse onosso dever. Tambm quem se defende putativamente atua sobesse sentido de dever e, portanto, com boa vontade. Sua condutaseria moral no sentido de Kant. Mas isso no autoriza a igualarboa vontade com intenes de boa-f112. Y tampouco existealguma base para uma transio lgica da boa vontade para oconceito de justificao. As noes de Direito e de justificaoaparecem na teoria jurdica, que Kant propriamente considera

    distinta da teoria moral113. A moralidade uma caracterstica danossa atitude interna114, mas o direito uma estrutura objetiva pararegular a prtica de relaes na sociedade civil. Por isso constituium erro invocar a teoria moral de Kant na argumentao sobrejustificao por matar um agressor em nome do direito115 .

    Alm disso, o argumento de que boas intenes podem justificarnossas aes, claramente prova muito. Segundo este argumento ouso da fora defensiva, se ocorre de boa-f, seria sempre

    justificado. At uma crena de que no fosse razovel, mas quefosse em boa-f, na necessidade do uso da fora defensivaestabeleceria que a vontade boa Haveria necessidade de maisque uma leitura equivocada de Kant para convencer-nos que boa-f se iguala ao direito. O ponto de vista contrrio, de que umadistino de princpios separa a conduta justificada da percepoerrada das circunstncias justificantes, ainda carece de apoio nasconstrues mais sofisticada do pensamento jurdico americano.

    A segunda proposio que poderia levar-nos distino entrelegtima defesa putativa e real deriva da causa pela qual a naturezada conduta justificada. A causa que em qualquer situao deconflito fsico, onde somente uma parte pode prevalecer, a lgicanos probe admitir que mais de uma parte pode fazer uso de suafora justificadamente. Denomino essa proposio de tese daincompatibilidade.

    No conflito exposto acima, entre Dan e Allan, o nico modo em queo Cdigo Penal Modelo poderia dar proteo a Allan contra a

    legtima defesa errada de Dan seria reconhecer que Allan tambm

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    poderia usar uma fora defensiva116. O problema se essa respostadefensiva deve ser considerada justificvel. Grande parte doscomentaristas e colegas parece pensar que no h nada contrareconhecer que ambas as partes no conflito atuamjustificadamente117. Esses tericos no duvidam em dizer que ambas

    partes tm o direito de usar fora defensiva. De fato, quandodefendo minha tese, raramente encontro colegas que concordamcomigo em que apenas uma parte pode ser justificada, somente umlado pode estar de acordo com o Direito e ter o direito pessoal de usara fora. H uma dificuldade bvia em qualquer argumento baseado emanlises conceituais. Meu argumento permanece no nvel de nossoentendimento comum dos conceitos de justificao e direito. Pertence essncia da nossa linguagem, que aes incompatveis no podemambas ser justificadas. Em qualquer situao de conflito, s uma daspartes deve estar em seu direito e ter direito a atuar. Mas se eu nopuder convencer minha audincia sobre o significado comum na nossalinguagem, pouco posso dizer para provar minha posio. Devorecorrer a temas mais amplos que giram em torno ao debate.

    Muitos fatores podem explicar o desejo de muitos sisudoscomentaristas americanos de que ambas as partes em uma disputatm direitos e atuam justificadamente. Qualquer das seguintescrenas pode funcionar, e so de fato operantes em diferentes grause diferentes combinaes, entre os tericos americanos.

    77777.1 Justificao como Sinnimo de Defesa.1 Justificao como Sinnimo de Defesa.1 Justificao como Sinnimo de Defesa.1 Justificao como Sinnimo de Defesa.1 Justificao como Sinnimo de Defesa

    Possivelmente, os juristas americanos tendem a pensar ajustificao como sinnimo de qualquer eximente substantivareconhecida por lei. Eles devem pensar a justificao como umaalegao a ser interposta ex postquando se roga ao Tribunal queno haja condenao. Claro, qualquer justificao e exculpaopode ser conceituada exclusivamente como uma razo para nocondenar o acusado. Mas, os critrios de justificao devemsupostamente funcionar no somente ex post como regras dedeciso, mas ex antecomo regras de conduta118. Em um estadoideal de relaes, todos que contemplassem uma ao danosadeveriam saber se a conduta lcita. No necessrio saber comoos Tribunais avaliariam subseqentemente as circunstncias.

    A idia de que se pode conhecer o que diz a lei sem instruojudicial reflete um ideal de regulao de um Direito penal autnomo.

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    Esse um ideal com implicaes anarquistas. Sugere um corpo denormas enraizadas no na legislao, mas no entendimento tcitoda comunidade. Desde essa perspectiva, as causas de justificaoaparecem no como alegaes ante os tribunais, masprimariamente como reivindicaes dos indivduos entre si.

    Para pensar as causas de justificao desse modo, imaginemosque em situaes de conflito por exemplo, Dan versus Allan aspartes conflitantes argumenam sobre suas reivindicaes em vezde agir uma contra outra; argumentam e contra-argumentam sobrequem o errado e quem deve desistir da luta. Isso insustentvelconceitualmente no caso de Allan resistir legtima defesa erradade Dan, j que Dan hipoteticamente no pode dizer nada a Allana respeito de seu erro. Mas, se o ideal a hegemonia do direito

    inclusive sobre a legislao, ento todos os conflitos deveriam, emprincpio, prestar-se resoluo. Toda luta parece ser um conflitoentre o Direito e aqueles que, por seus atos, opem-se a ele.

    O conceito de justificao melhor entendido como umaexpresso desse ideal de regulao autnoma. As partes em lutadeveriam, a princpio, ser capazes de determinar para elas mesmasqual conduta est conforme o direito e qual no est. Por isso,parece que esse ideal informa a teoria jurdica americanacontempornea. Esta teoria partidria de pensar todo o Direitopenal como coero imposta de cima, como produto da intervenopela polcia, promotores e juzes. Se pensarmos o Direito penalcomo algo dominado e definido por essas decises oficiais, parecebvio pensar todas as eximentes de responsabilidade como apeloss instncias oficiais. E no h razo para que estas instncias,encarregadas de encontrar solues razoveis para os problemasprticos, no possam pensar que duas pessoas em conflito Dane Allan possam ter atuado razoavelmente e, portanto,justificavelmente.

    77777.2 Justificao como conduta Conduta Permissiva.2 Justificao como conduta Conduta Permissiva.2 Justificao como conduta Conduta Permissiva.2 Justificao como conduta Conduta Permissiva.2 Justificao como conduta Conduta Permissiva

    Outro argumento contra a tese da incompatibilidade emerge deuma classificao das aes em lcitas, permissveis e escusveis. Alegtima defesa e, particularmente, estados de necessidade seentendem melhor no como aes lcitas, mas permissivas. H defato suporte para essa viso na legislao germnica, a qualdenomina essas reivindicaes justificatrias como no-ilcitas e no

    como lcitas119. A doutrina alem repetidamente salienta a distino

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    entre conduta que sai fora do interesse do Direito penal, como mataruma mosca, e conduta justificvel que viola nominalmente a lei,como matar em legtima defesa120. JUDITH THOMSON ilustra essadistino tratando as condutas justificveis como infrao de uminteresse protegido, mas no uma violao desse interesse121. Que

    a conduta justificvel seja uma infrao sugere que talvez no sejacorreto pensar desses atos como lcitos.

    O conceito de permissivo entra para preencher a aparente lacunaentre lcito e ilcito. A noo do common law de privilgio tambmparece ocupar esse espao ambivalente. Todas as opes razoveistornam-se privilegiadas e permissivas. Assim, tanto a conduta deDan como a de Allan poderiam ser consideradas permissveis e,nesse sentido, justificveis. Se isso tudo que significa a causa de

    justificao, a tese da incompatibilidade deve ceder espao parauma multiplicidade de aes permissveis.

    O melhor argumento contra a viso de que a conduta justificvel meramente permissvel deriva da mesma argumentao queutilizamos para rechaar a viso de que causas de justificao someramente apelos para os Tribunais. De acordo com o ideal deDireito penal como um conjunto auto-regulador de regras deconduta, as regras devem gerar uma soluo ex ante para cadacaso. O permissvel resultado de um ceticismo sobre apossibilidade de uma nica soluo. Isso favorece uma extensolimitada de resultados razoveis. Assim, a noo do permissvel notem espao nesse sistema de auto-regulao imaginado. Disso sededuz que a tese da incompatibilidade pode no encontrar apoio naconsiderao da conduta justificvel como meramente permissvel.

    77777.3 Dir.3 Dir.3 Dir.3 Dir.3 Direitos como direitos como direitos como direitos como direitos como direitoseitoseitoseitoseitos PPPPPrima Frima Frima Frima Frima Facieacieacieacieacie

    Os juristas alemes pensam nos direitos como absolutos, apesar

    de submet-los posteriormente anlise de abuso122 . Um direitoabsoluto ocupa o espao moral disponvel. logicamente impossvelalgum afirmar um direito frente a algum que tem um direito. Seuma me tem o direito de abortar um feto, o feto no pode tambmter o direito de nascer. Se um condenado tem o direito de deixar umacadeia pegando fogo, um guarda no tem tambm direito de mant-lo preso. Se Dan tem o direito de usar a fora contra Allan, Allantambm no pode ter o direito de usar fora contra Dan. Isso soacomo um modo natural de falar de direitos. A impossibilidade dedireitos incoerentes parece implcita na gramtica do discurso sobre

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    os direitos. Como a justificao gera direitos, a impossibilidade dejustificaes incoerentes continua123.

    No est claro, entretanto, que os americanos pensem em direitodessa forma. Se discute muito sobre se h direitos que podem ser

    superados e permitir incurses utilitaristas contra os interesses dostitulares desses direitos124. Em geral, os juristas que trabalham comos direitos na jurisprudncia contempornea admitem que osprprios direitos so superveis, ou suscetveis de no seremlevados em conta em casos extremos. Os inocentes tm o direito deno serem condenados, mas esse direito pode ser superado pelanecessidade de salvar a nao de um manaco que ameaa acionaruma bomba se no castigamos uma pessoa determinada125. Temosum direito constitucional livre expresso, mas esse direito pode ser

    superado por um perigo claro e presente para o Estado. Que osdireitos podem ser superados desse modo se formula dizendo queos direitos so apenas prima facie126.

    H no mnimo duas interpretaes distintas do que significa dizerque um direito prima facie, uma interpretao para cada modo depensamento jurdico que tentei articular. Os partidrios do raciocnioestruturado insistem que mesmo se o direito superado ou no levado em conta, devemos manter um senso de perda ao constatarque um direito foi superado127 . O direito permanece intacto, apesarde o nosso senso comum nos dizer que ns devemos sacrific-lo emcircunstncias extremas, tal como sacrificar uma pessoa inocente nopropsito de salvar a nao. A outra interpretao se refere aoraciocnio jurdico plano. Um direito prima faciesignifica que ocupaapenas uma poro do nico plano do argumento moral. Quandoum direito no resolve uma disputa em particular, outro direito nomesmo plano de espao moral prevalece. Uma vez que o direito superado, no tem mais fora. Essa a maneira pela qual muitaspessoas pensam que no se deve levar em conta o direito livreexpresso ante um claro e presente perigo ao bem comum.

    Se as justificaes geram direitos prima facie no sentido doargumento estruturado, pareceria que a tese da incompatibilidadeainda permaneceria no primeiro nvel de anlise. Mas se primafacie se entendesse no segundo sentido do raciocnio jurdicoplano, no pareceria existir nenhum impedimento lgico emreconhecer que ambos, a me e o feto, ambos o prisioneiro e oguarda, tm direitosprima facie. Esses direitos entram em conflito,

    mas continuam coexistindo. Para resolver o conflito, devemos no

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    levar em conta o direito de uma pessoa e permitir que o da outrapessoa prevalea. Ainda que a base para no levar em conta odireito no que o direito da outra pessoa seja superior, pois issoseria reconhecer que a ltima parte tem um direito absoluto. Asuperao de um direito prima faciepode tornar-se um critrio de

    prudncia e interesse social qualquer que seja de fato o critriopelo qual o direitoprima faciese converte em absoluto.

    Convm destacar uma ambigidade adicional quando se fala dedireitos prima facie. O modificador prima faciepoderia referir-setanto existncia de um direito absoluto quanto prpria naturezado direito. Quando eu digo que uma me tem um direitoprima faciede abortar, poderia dizer: No estou convencido de que a metenha o direito de abortar nesse caso, mas h um caso prima facie

    em seu comportamento. Ou poderia dizer tambm: O direito queela tem qualificado por sua prpria natureza. A primeira viso,baseada como num estado parcial de evidncia, seria compatvelcom a crena em direitos absolutos. A segunda viso a quenecessitamos para reivindicar que apesar de haver evidncia, tantoa me quanto o feto tm direitos prima facie, e apesar deconflitantes, so direitos.

    A divergncia entre o pensamento do common law para o

    pensamento continental na legtima defesa putativa deriva de umpadro de suposies inter-relacionadas. Os juristas americanostendem a pensar que todas as eximentes legais disponveis soanlogas, assumem que tudo que permissvel justificado, evem os direitos como reivindicaes superveis. Na base dessassuposies est o conceito de razovel, um conceito que permiteaos americanos obscurecer as distines entre objetivo esubjetivo, legtima defesa e legtima defesa putativa, ilicitude eresponsabilidade.

    88888. Monismo e Pluralismo na T. Monismo e Pluralismo na T. Monismo e Pluralismo na T. Monismo e Pluralismo na T. Monismo e Pluralismo na Teoria Juridicaeoria Juridicaeoria Juridicaeoria Juridicaeoria Juridica

    Apesar de que os conceitos do justo e do razovel nos levarem adirees diferentes, os dois tm muito em comum. Ambosrepresentam esforos para transcender as fontes do Direitopositivo e alcanar um plano normativo mais alto e duradouro. Comexceo de Kelsen128, o pensamento alemo claramentereconhece o direito como um repositrio inesgotvel da verdade

    definitiva sobre justia na sociedade civil. Um senso vvido de

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    Dirieito se expressa na Constituio alem, que diz que os juzesno s esto vinculados pela lei positiva e consuetudinria, mastambm pelo direito129. Ns expressamos o mesmo ponto de vistaraciocinando que os juzes no somente esto vinculados a regraspositivas, mas tambm a princpios de moralidade e justia130.

    Do mesmo modo que Direito no reduzido a leis positivas, orazovel no limitado por um conjunto finito de regras. Comosabemos dos casos reparao de danos por ato ilcito, se aplica aregra pra, v e escuta, nenhum conjunto de regras podedeterminar o que razovel em cada uma das situaes. Nem orazovel suscetvel de dar especificaes definitivas com base emcostumes ou prticas de mercado131. Nem sempre sabemos o queo razovel, mas trabalhar com esse conceito aberto no ncleo do

    nosso sistema nos salva de sofrer os efeitos compressivos dopositivismo. Seja o que for que os filsofos argumentem, sabemosque a regra da lei significa mais que a lei das regras.

    Apesar de tanto o critrio do justo como o do razovel permitem apermanente infuso de valores morais na lei, esses dois conceitosarquitetnicos impem diferentes estruturas na ordem jurdica. Oconceito de justo prima por uma ordem legal monista, pelaexistncia de uma nica resposta correta em toda disputa legal.Este conceito requer que aceitemos que somente uma parte podeser justificada em qualquer situao de conflito. O razovel, emcontraste, leva-nos em direo a uma ordem jurdica pluralista.Talvez apenas um lado esteja em acordo com o Direito, mas ambosos contendores podem ser razoveis. As duas podem, pois, serjustificadas.

    Entender essa divergncia entre o justo e o razovel nos ajuda acompreender estrutura mais profunda do debate entre H.L.A. Harte Ronald Dworkin sobre discricionariedade do juiz no processo. Em

    minha opinio, no por acaso que Hart, ao explicar porque osjuzes atuam de forma discricionria ao aplicar a lei, usa o exemploparadigmtico da negligncia e o cuidado razovel132. O padro dorazovel apela considerao de diversos critrios normativos aoresolver uma disputa. Isso no aponta necessariamente, para umanica resposta correta. Se existem diversas solues razoveispara uma disputa, ento no existe meio de decidir entre elas ano ser por exerccio judicial de escolha ou discricionariedade. Umaordem jurdica pluralista demanda discricionariedade. Como Hart

    conclui: No h possibilidade de tratar a questo trazida em

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    vrios casos como se existisse apenas uma resposta correta aser encontrada, como distinta de uma resposta que umcompromisso razovel entre muitos conflitos de interesse133.

    Para opor-se tese de Hart, Dworkin procura recursos nos

    modos de raciocnio jurdico que tambm se encontram nopensamento continental1 35. Primeiramente, desenvolve ummodelo de argumentao jurdica estruturada. Seu caso preferido Riggs versusPalmer1 36. Nele se levanta a questo de se umapessoa designada herdeira que mata o autor de testamento,pode herdar. A regra admite que todos os que tenham sidopropriamente designados num testamento tm o direito deherdar. Essa regra parece ser absoluta; mas, na verdade, a regra sujeita a revogao em outro plano de anlise: o plano do

    princpio ou do Direito1 37

    . Se o herdeiro assassina o autor dotestamento, o princpio relevante nesse segundo plano queningum pode beneficiar-se de seu prprio ato ilcito. Salientandoque princpios jurdicos so aceitos ou rejeitados com base suafora intrnseca e no por sua positivao, Dworkin efetivamenteliquida a suposio positivista que que todo direito sejareduzido lei positivada.

    Mas invocar esse modo de argumento estruturado, no suficiente para rebater a tese de que os juzes exercitamdiscricionariedade ao interpretar e aplicar a lei. preciso,adicionalmente, um compromisso com a ordem monista. Seexiste uma nica verdade para o problema e os juzes soobrigados a encontrar essa verdade, ento eles no podemexercitar uma escolha entre alternativas razoveis1 38. A teseque eventualmente surge no trabalho de Dworkin que existeuma resposta correta em toda disputa, ainda que seja difcildescobri-la 1 39 . Numa outra verso da mesma raiz monista,Dworkin argumenta que sempre h uma soluo que a melhorentre os materiais legais autoritrios em um caso particular euma interpretao desses materiais que tambm a melhor1 40.Seja qual for o rumo a que esse argumento monista leve, aconfiana do trabalho de Dworkin elaborar a teoria do justo noDireito americano.

    O conflito entre pluralismo e monismo, entre o razovel e o justo,se reflete na metodologia da teoria jurdica. Devemos assumir queh diferentes, igualmente plausveis, teorias de Direito Penal? A

    soluo do common law para o problema de legtima defesa

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    putativa to consistente quanto soluo alem? Ou deveramosestar comprometidos com o monismo na busca de uma melhorteoria de Direito penal que transcenda culturas legais emparticular? A teoria jurdica comparada pode eliminar nossoentendimento de estilos jurdicos distintos. Mas, para mim, seria

    uma tragdia intelectual converter todos os conceitos de estilo oucultura em uma limitao de outros possveis modos deargumentao. Deveramos dizer a Dworkin: Voc no podeargumentar no sentido de haver apenas uma resposta correta nocontexto do common law, porque pensamos diferente aqui? Umareferncia cultura no um argumento. Um modo particular depensamento mantido por um sculo ou dois no nos diz coisaalguma sobre o que devemos pensar neste sculo. Meu prprioponto de vista que como um problema descritivo, nossa cultura

    jurdica pode nos inclinar a uma direo particular. A tarefa daargumentao jurdica deter essa inclinao e estabelecer umabase comum para o discurso que nos permita transcender nossasprticas particulares convencionais. No tarefa da culturalegitimar argumentos. tarefa da argumentao legitimar edeslegitimar cultura.

    Notas** Este trabalho foi publicado primero em: 98 Harward law Review 949 (1985); e

    posteriormente em: Albin ESER/ George P. FLETTCHER, Rechtfertigung undEntschuldigung, Justification and Excuse, Volume I, Freiburg, i. Br., 1987, pp. 67a 119, de onde se traduz com autorizao do autor. (Traduo: Paulo CsarBusato e Mariana Cesto).

    1 O Uniform Commercial Code, o Model Penal Code, e vrios pronunciamentoscombinam o adjetivo razovel e o advrbio Razoavelmente com mais de 100

    palavras diferentes. Um exemplo disso a frase fora razovel, a qual apreceno Restatement (segundo) de Ato ilcito 63(1), 77, 97, 101, 147(2), 150(1965).

    2 Code Civil (C. Civ.) art. 1112 (Fr.) (definindo influncia desnecessria numaparte contratante apelando s impresses de une personne raisonnable).

    3 Ver Brqerliches Gesetzbuch (BGB) (W. Germ.); Civil Code (RSFSR) (o CdigoRusso Socialista da Repblica Federal Sovitica serve como um modelo para asoutras repblicas soviticas).

    4 Ver Strafgesetzbuch (StGB) (W. Germ.); Criminal Code (RSFSR).

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    5 C. civ. Art. 1137

    6 BGB 276 (definindo negligncia como a falha de exercer die im Verkehrenforderliche Sorgfalt)

    7 Cdigo Penal (RSFSR) 9

    8 G. Stefani & G. Levasseur, Droit Pnal Gnral 316 (9 edio 1976). Mas noteque essa passagem tambm se refere aos erros que qualquer hommeraisonnable et prudent teria feito sob as circunstncias.

    9 StGB 17 (literalmente, o autor carece de culpabilidade se ele no pudesseevitar seu erro sobre proibio legal).

    10 2 Kurs Sovetskogo Ugolovnogo Prava (Curso de Direito penal sovitico) 358 (A.Piontovsky et al. edio 1970).

    11 Ver BGB 242 (estabelecendo o princpio geral que os contratantes devemcumprir suas obrigaes de acordo como que dita o Treu und Glauben). Essa

    previso tornou-se a fonte de jurisprudncia de eqidade e justia recproca naexecuo de relaes contratuais.

    12 Na distino entre Recht e Gesetz e sua significncia, ver 4 W. Fikentscher,Methoden des Rechts 328 (1997), e Fletcher, Two Modes of Legal Thought, 90Yale L.J. 970, 980-984 (1981).

    13 Ainda que as Brgerliches Gesetzbuchnunca usem a palavra Rechtsmibrauch,e o Code civil nunca use a frase abus de droit, a limitao dessas doutrinas noexerccio de direitos privados claramente reconhecida tanto na lei alemquanto na francesa. Ver, e.g., 1 L. Enneccerus, Allgemeiner Teil des des

    Brgerlichen Rechts1439-1443 (H. Nipperdey 15 reviso edio 1959); Ersi,Rechtsmibrauch und funktionsmige Rechtsausbung im Westen undOsten, 6 Zeitschrift fr Rechtsvergleichung 30, 39-40 (1965); Gutteridge,

    Abuse of Rights, 5 Cambridge L.J. 22 (1935).

    14 Ver StGB 35(1) ( um ato ilcito no ser escusado com base na necessidadeou ameaa se a absteno daquele ato justamente esperada nascircunstncias.

    15O termo raso pode soar a alguns leitores como pejorativo. difcil achar umtermo neutro. O professor Albin Eser de Freiburg, Alemanha Ocidental, tem

    usualmente sugerido a mim o termo holstico para capturar a qualidadeimplcita no raciocnio legal raso. Ainda que holstico parea muito mstico,para alguns, aprovvel.

    16 StGB 32

    17 StGB 53 (revogado em 1975)

    18 Ver, e.g., julgamento de 20 de setembro de 1920, Reichsgericht, Ger., 55Reichsgericht em Strafsachen (RGSt) 82. O defensor atirou e feriu um ladro defrutas. A Corte Suprema afirmou a absolvio, no raciocnio que o Direito deveprevalecer na luta contra o anti-Direito. Id. At 85

    19 Ver, e.g., Himmelreich, Nothilfe und Notwehr: insbesondere zur sog.

  • 7/25/2019 FLETCHER, George. O Justo e o Razovel

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    Interessenabwgung , 21 Monatsschrift fr Deutsches Recht 361, 363-364(1967), Stratenwerth, Prinzipien der Rechtfertigung, 68 Zeitschrift fr dieGesamte Strafrechtswissenschaft 41, 60 (1956) (notando que a opiniodominante na Alemanha rejeita balancear os interesses da vtima contra quelesdo agressor).

    20 Ver, e.g., Baumann, Rechtsmi bei Notwehr, 16 Monaschrift fr DeutschesRecht 349 (1962); Schaffstein, Notwehr und Gterabwgungsprinzip, 6Monatsschrift fr Deutsches Recht 132, 135 (1952). Alguns tratados correntese livros no comprometem-se nas bases para limitar o direito de legtimadefesa. Ver, e.g., H-H. Jescheck, Lehrbuch des Strafrechts 279 (3 ed. 1983).

    Um comentarista rejeitou o abuso de direito como muito vago para formulao,argindo que a limitao no direito de um membro da famlia usar a foranecessria na legtima defesa contra outra pessoa deve ser baseada na teoriaanloga no dever de ajudar a famlia do membro em sofrimento. K. Marxen, Diesocialethischen grenzen der Notwehr 57 (1979) (fazendo um analogia ao StGB 13). Essa teoria tambm procede em dois estgios: primeiro umreconhecimento do direito absoluto de usar fora defensiva e, segundo, um deverde renunciar a fora defensiva para uma relao com o agressor.

    21 Ver julgamento de 22 de janeiro de 1963, Oberlandesgericht, Bavaria, 16 NeueJuristische Wochenschrift (NJW) 824. O defensor tentou tirar uma mulher deuma vaga de carro dirigindo em sua direo. Na sua alegao de legtima-defesa, a corte decidiu que apesar do motorista ter o direito de usar a vaga, eleusou um nvel de fora que foi excessivo, e portanto, um abuso de direito. Essadoutrina foi invocada mais recentemente no julgamento de 24 de novembro de

    1976, Oberlandesgericht, Hamm, 30NJW 590, 592.22 Alguns autores aceitam uma limitao de legtima-defesa sem utilizar uma

    anlise em dois estgios. Eles derivam essa limitao diretamente da condioestatutria no StGB 32 que a legtima defesa requerida (geboten) sob certascircuntncias. Ver Leckner, Gebotensein und Erforderlichkeit der Notwehr,1968, Goltdammers Archiv fr Strafrecht 1; Roxin, Die sozialethischenEinschrnkungen des Notwehrrechts, 93 Zeitschrift fr die GesamteStrafrechtswissenschaft 68, 79 (1981).

    23 Ver, e.g., Restatement (segundo) of Torts 63(1) (1965) (um autor pode usar fora

    razovel para defender-se quando ele razoavelmente acredita que outra pessoaquer atac-lo); W. LaFave & A. Scott, Handbook on Criminal Law 391 (1972).

    24 Um conjunto de restries no uso da propriedade a rea do Direito que nschamamos incomda representa uma instncia central no abuso de direito.Ver Ersi, nota supra 13, em 32-33 (discutindo a transio do common law dodireito de propriedade absoluto para o restrito). O artigo 544 do Code civildispe: Propriedade o direito de gozar e dispor de uma coisa da maisabsoluta maneira possvel, propiciando que ningum dessa forma engaje-se emuso proibido por lei (traduo do autor). Essa disposio comumente pensadacomo sendo aquela que mais aproxima-se da idia de abuso de direitos. Ver

    nota supra 13 (discutindo abus de droit).

  • 7/25/2019 FLETCHER, George.