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UFBA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA EA ESCOLA DE ADMINISTRAÇÃO PDGS PROGRAMA DE DESENVOLVIMENTO E GESTÃO SOCIAL CAROLINA GUSMÃO MAGALHÃES IÊ, CAPOEIRA NA GESTÃO, CAMARÁ!: Um estudo sobre as práticas organizacionais de uma associação em expansão internacional Salvador - BA 2014

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Page 1: Projeto de Tese de Doutorado - repositorio.ufba.br£es... · Danças folclóricas brasileiras. I. Universidade Federal da Bahia. Escola de Administração. II. Título. CDD – 394.3

UFBA – UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

EA – ESCOLA DE ADMINISTRAÇÃO

PDGS – PROGRAMA DE DESENVOLVIMENTO E GESTÃO SOCIAL

CAROLINA GUSMÃO MAGALHÃES

IÊ, CAPOEIRA NA GESTÃO, CAMARÁ!:

Um estudo sobre as práticas organizacionais de uma associação em

expansão internacional

Salvador - BA

2014

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CAROLINA GUSMÃO MAGALHÃES

IÊ, CAPOEIRA NA GESTÃO, CAMARÁ!:

Um estudo sobre as práticas organizacionais de uma associação em

expansão internacional

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado

Multidisciplinar e Profissional em

Desenvolvimento e Gestão Social do

Programa de Desenvolvimento e Gestão Social

da Universidade Federal da Bahia como

requisito parcial à obtenção do grau de Mestre

em Desenvolvimento e Gestão Social.

Orientador(a): Profa. Dra. Claudiani Waiandt

(Doutora em Administração pela UFBA)

Salvador - BA

2014

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Escola de Administração - UFBA

M188 Magalhães, Carolina Gusmão.

Iê, capoeira na gestão, camará!: um estudo sobre as práticas organizacionais de uma associação em expansão internacional / Carolina Gusmão Magalhães. – 2014.

120 f.

Orientadora: Profa. Dra. Claudiani Waiandt. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal da Bahia, Escola de Administração, Salvador, 2014.

1. Associação Cultural GUETO - Cultura organizacional – Estudo de

casos. 2. Capoeira – História – Brasil. 3. Modelos em organização. 4. Capoeira - Associações, instituições etc. 5. Danças folclóricas brasileiras. I. Universidade Federal da Bahia. Escola de Administração. II. Título.

CDD – 394.3

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CAROLINA GUSMÃO MAGALHÃES

IÊ, CAPOEIRA NA GESTÃO, CAMARÁ!:

Um estudo sobre as práticas organizacionais de uma associação em

expansão internacional

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em

Desenvolvimento e Gestão Social, Universidade Federal da Bahia, pela seguinte banca

examinadora:

Banca Examinadora

Prof. ª Dr.ª Claudiani Waiandt________________________________________

Doutora em Administração (BAHIA)

Universidade Federal da Bahia (UFBA)

Prof. Dr. Jair Nascimento Santos ____________________________________

Doutor em Administração (MINAS GERAIS)

Universidade do Estado da Bahia (UNEB)

Universidade Salvador (UNIFACS)

Prof. Dr. Fábio Ferreira__________________________________________

PhD em Comunicação (BAHIA)

Universidade Federal da Bahia (UFBA)

Prof. Ms. Jean Adriano Barros da Silva ________________________________________

Vice-presidente da Associação Cultural GUETO

Mestre de Capoeira (BAHIA)

Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB)

Salvador | BA, 05 de dezembro de 2014.

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Aos meus pais, Celso e Dalva,

pelo incentivo à educação, os

valores que trago e o respeito às

minhas escolhas. Aos meus filhos,

Brisa, Théo e Luiza Adriano, por

serem minha mola propulsora. Ao

meu companheiro Jean por me

fazer acreditar que sempre posso e

ao meu sogro, vovô José Adriano,

em memória póstuma, homem

justo e perfeito, trabalhador

incansável, sempre duro nas

palavras que me levavam ao

crescimento.

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AGRADECIMENTOS

À Deus e ao nosso mestre Jesus, pela oportunidade de ser e estar nessa

caminhada atual, junto às pessoas certas e as oportunidades que preciso.

À Capoeira, por me dar o sentido da luta.

Aos meus filhos, Brisa, Théo e Luiza, por me ensinarem a ser muito mais.

Aos meus pais, pelo amor, incansável e incondicional.

Ao meu companheiro Jean Adriano, por ser um vencedor na vida e por sempre

ter desejado o meu sucesso.

À vovó Lalá, minha sogra e conselheira de muitas horas.

Ao GUETO e seus dirigentes, pelo acolhimento e abertura na edificação de um

grupo para TODOS.

Ao Dr. e Mestre Ângelo Augusto Decânio Filho, pelo seu brilhantismo na leitura

da arte da capoeira, nos motivando e demonstrando o quão importante e especial

é a possibilidade de fazer tal leitura.

À minha orientadora Professora Dra. Claudiani Waiandt, lindamente sensível,

por todo incentivo e direcionamento na pesquisa e por já ser minha referência na

arte da vida acadêmica.

Á Professora Dra. Tânia Fischer pelo exemplo de mulher e cientista, grande e

incansável referência mundial na Gestão Social.

Ao Professor Dr. Eduardo Davel pela irreverência e sensibilidade com que

conseguiu nos encantar e motivar para a pesquisa no mestrado.

Ao CIAGS | EA | UFBA pela oportunidade dada através do Mestrado

Profissionalizante de fazer valer toda a nossa experiência na Gestão Social

dentro da academia.

Aos amigos, frutos colhidos nesta caminhada que sinalizam a maturidade no

caminho.

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"Há um tempo em que é preciso

abandonar as roupas usadas, que já tem a

forma do nosso corpo, e esquecer os

nossos caminhos, que nos levam sempre

aos mesmos lugares. É o tempo da

travessia: e, se não ousarmos fazê-la,

teremos ficado, para sempre, à margem

de nós mesmos.

Fernando Pessoa

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II

MAGALHÃES, C. G. “Iê, capoeira na gestão, camará!”: um estudo das práticas

organizacionais de uma associação em expansão internacional. (Dissertação) Mestrado em

Desenvolvimento e Gestão Social da Universidade Federal da Bahia. 120f. Salvador, BA,

2014.

RESUMO

A presente pesquisa tem como objetivo central reconhecer e analisar a influência da cultura da

capoeira sobre as práticas organizacionais de uma associação, pautada por princípios não-

econômicos e em fase de expansão internacional, a fim de reconhecer os limites e as

possibilidades do seu modelo de gestão. Para tanto, foi realizada uma pesquisa qualitativa, de

caráter exploratório, com orientação analítico-descritiva, mediante observação participante.

Os sujeitos são os dirigentes e membros da Associação Cultural GUETO, organização sem

fins lucrativos que tem cinco sedes internacionais. A interpretação do material coletado

seguiu os ensinamentos da "análise de conteúdo". Foi constatada uma grande influência da

capoeira frente às práticas organizativas, sobretudo pelo viés do sistema iniciático de

formação, o aprender fazendo, a oralidade, a expansão dos laços de participação.

Independente de avançarmos identificando tais influências, muito há de ser feito na busca

pelo desenvolvimento institucional de tais instituições que nem sempre dialogam de maneira

harmônica com essa aproximação da cultura organizacional empresarial.

Palavras-chave: cultura organizacional; cultura da capoeira; práticas organizacionais.

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MAGALHÃES, C. G. “Iê, capoeira on management, camará!”: a study on organizational

practices of an association in international expansion. (Dissertation) Master’s in Social

Development and Management. Universidade Federal da Bahia - UFBA. 120f. Salvador,

2014.

ABSTRACT

This research mainly aimed at recognizing and analyzing Capoeira’s culture influence on an

association’s organizational practices, guided by non-economic principles and on an

international expansion phase, in order to recognize the limits and possibilities of its

management model. Therefore, a qualitative research was carried on, with an exploratory

characteristic, also with an analytical-descriptive orientation, through participant observation.

The research subjects are the leaders and members of the GUETO Cultural Association, a

non-profit organization that has five international offices. The interpretation of the collected

data followed the teachings of "Content Analysis". A great influence stemming from

Capoeira’s culture was observed towards organizational practices, especially from the

perspective of the initiatory graduation system, regarding some of its characteristics, such as

learning by doing, teaching and learning by oral means, the expansion of participation bonds.

Regardless of our advancement on identifying such influences, much has to be done in the

search for institutional development of such institutions that not always dialogue

harmoniously with this approach based on business organizational culture.

Keywords: organizational culture; Capoeira’s culture; organizational practices.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1. Objetivo Geral da pesquisa ...................................................................................... 18

Figura 2. Objetivos específicos da pesquisa ............................................................................ 19

Figura 3. Roda de Capoeira ..................................................................................................... 26

Figura 4. Níveis de Cultura ..................................................................................................... 47

Figura 5. Caminhos metodológicos da pesquisa ..................................................................... 76

Figura 6. Estudo de Caso Associação Cultural G.U.E.T.O. .................................................... 86

Figura 7. Estrutura Associação Cultural G.U.E.T.O. .............................................................. 97

Figura 8. Ambiente da G.U.E.T.O. ......................................................................................... 99

Figura 9. Graduações da fase de Iniciação - GUETO ........................................................... 103

Figura 10. Graduações da fase de Licenciatura - GUETO .................................................... 104

Figura 11. Graduações da Fase de Professor - GUETO ........................................................ 104

Figura 12. Graduações da Fase de Contramestre - GUETO ............................................. 104

Figura 13. Graduações de contramestre GUETO .................................................................. 105

Figura 14. Graduações da Fase de Mestre - GUETO ............................................................ 105

Figura 15. Ritual da G.U.E.T.O............................................................................................. 106

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LISTA DE QUADROS

Quadro 1. Valores da Cultura da Capoeira ............................................................................. 27

Quadro 2. Sistema Oficial de Graduação da Confederação Brasileira de Capoeira - CBC .... 42

Quadro 3. Classificação organizacional quanto à orientação / papel. ..................................... 54

Quadro 4. Classificação Internacional das Organizações Não-Lucrativas (INCPO) .............. 54

Quadro 5. Classificação organizacional quanto ao nível de Operações .................................. 55

Quadro 6. Classificação organizacional quanto à prestação de contas. .................................. 55

Quadro 7. Classificação organizacional quanto ao ciclo de vida ............................................ 56

Quadro 8. Mecanismos envolvidos no processo de estruturação da organização ................... 66

Quadro 9. Tipos de estrutura organizacional .......................................................................... 70

Quadro 10. Ambiente organizacional...................................................................................... 72

Quadro 11. Tipologia dos ritos através das suas manifestações e consequências sociais

expressivas. ....................................................................................................... 73

Quadro 12. Conclusões da pesquisa ...................................................................................... 109

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

BAHIATURSA Empresa Baiana de Turismo

CBC Confederação Nacional de Capoeira

CIAGS Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social

EA Escola de Administração

EO Estudos Organizacionais

GUETO Grupo Unido para Educação e Trabalhos de Orientação

ONG Organizações Não Governamental

PDGS Programa de Desenvolvimento e Gestão Social

PETROBRÁS Petróleo Brasileiro

SECULT Secretaria Estadual de Cultura

SETRE Secretaria Estadual de Trabalho, Renda e Emprego

SETUR Secretaria Estadual de Turismo

SUDESB Superintendência de Desenvolvimento de Esporte da Bahia

UFBA Universidade Federal da Bahia

UFRB Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

UNEB Universidade do Estado da Bahia

UNESCO Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura

UNIFACS Universidade Salvador

ZDP Zona de desenvolvimento proximal

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ......................................................................................... 15

2 CAPOEIRA: UMA TRAJETÓRIA HISTÓRICO-CULTURAL ........ 21

2.1 PROCEDIMENTOS RITUALÍSTICOS ..................................................................................... 27

2.2 PRINCÍPIOS FILOSÓFICOS .................................................................................................. 34

2.3 MUSICALIDADE E ORALIDADE .......................................................................................... 36

2.4 O JOGO DA CAPOEIRA ....................................................................................................... 37

2.5 SISTEMA INICIÁTICO DE FORMAÇÃO ................................................................................. 38

3 CULTURA DA ORGANIZAÇÃO E PRÁTICAS

ORGANIZACIONAIS .............................................................................. 44

3.1 CONCEITO DE CULTURA ................................................................................................... 44

3.2 CULTURA ORGANIZACIONAL ............................................................................................ 46

3.3 COMPREENDENDO AS ORGANIZAÇÕES SOCIAIS, A GESTÃO SOCIAL E AS PRÁTICAS

ORGANIZACIONAIS ........................................................................................................... 50

4 CAMINHOS METODOLÓGICOS PERCORRIDOS ......................... 75

4.1 CONTEXTO DA PESQUISA .................................................................................................. 75

4.2 PESQUISA QUALITATIVA ................................................................................................... 76

4.3 ESTUDO DE CASO ............................................................................................................. 79

4.4 OS SUJEITOS DA PESQUISA ................................................................................................ 82

4.5 TÉCNICAS DE ANÁLISE DE INFORMAÇÕES ......................................................................... 84

5 ASSOCIAÇÃO CULTURAL GRUPO UNIDO PARA EDUCAÇÃO E

TRABALHOS DE ORIENTAÇÃO – GUETO CAPOEIRA ............... 86

5.1 TRAJETÓRIA INSTITUCIONAL ............................................................................................ 87

5.2 ANALISANDO AS PRÁTICAS ORGANIZACIONAIS À LUZ DA CULTURA DA CAPOEIRA ........... 90

5.2.1 Estrutura ........................................................................................................................ 90

5.2.2 Ambiente ........................................................................................................................ 97

5.2.3 Ritual ............................................................................................................................ 100

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................. 107

REFERÊNCIAS .............................................................................................. 113

APÊNDICES .................................................................................................... 119

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1 INTRODUÇÃO

A capoeira, ao longo de seus quase quinhentos anos de Brasil, projetou-se de luta marginal `a

jogo de inclusão, ganhando no século XX um grande impulso institucional, adentrando

espaços de formação humana como instituições de ensino formal (escolas, creches,

universidades). Esta trajetória provocou, no campo científico, questionamentos em direção ao

estudo da capoeira e de suas potencialidades educacionais.

A capoeira então é transformada de jogo exótico e performático à uma arte de inclusão, que

respeita as diversidades, promove o autoconhecimento e as relações interpessoais, utilizando-

se da dialogicidade dos movimentos corporais na promoção do ¨jogar com¨, signo de parceria,

companherismo e solidariedade. Esses valores seguem na contramão dos valores amplamente

estimulados em nossa sociedade moderna capitalista que valora a competição em detrimento

das relações harmônicas e de parceria.

Enquanto reflexo do empoderamento e engajamento social desencadeados no século XX,

evidenciam-se às Organizações Não-Governamentais, movimentos organizados que se valem

do voluntariado para atuar junto às populações em vulnerabilidade social, desprovidas

economicamente, realizando desde ações assistencialistas até ações no campo da formação

humana – educação, saúde, meio ambiente, dentre outros. Em consonância com tais

transformações sociais, a capoeira acompanha esse processo de engajamento social em prol

do desenvolvimento do país, na consolidação do terceiro setor, inserindo-se nas organizações

sociais que trabalham com a população em vulnerabilidade social.

A capoeira esteve como aliada nas intervenções propostas por essas entidades, agregando

conhecimento histórico, cultural, técnico-performático, de autoconhecimento, dentre outros.

Por se tratar de uma manifestação cultural que tem no seu arcabouço ideológico-formativo

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peculiariaridades características dos sistemas iniciáticos1, com o passar do tempo o núcleo de

capoeira passa a apresentar novas demandas a serem atendidas pela organização, demandas

que versam sobre a expansão de seus núcleos e a gestão da internacionalização.

Essas demandas de internacionalização nascem com o advento da expansão mundial da

capoeira proporcionada pelas viagens internacionais dos grupos folclóricos brasileiros que

levavam alunos oriundos do trabalho de capoeira das ONGs para se apresentar no exterior,

bem como, pelos inúmeros praticantes que passaram a residir fora do país.

Estes capoeiristas, que carregavam na sua trajetória formativa a contribuição do seu mestre e

que por isso firmava com ele ligação de respeito e lealdade, levavam sua arte para o mundo

afora, atraindo e encantando os públicos inicialmente pelas suas ferramentas performáticas e

exóticas, e posteriormente, pelo seu importante potencial educativo, terapêutico. Muitos

desses capoeiristas acabavam por residir por anos nestes países e passavam a ter no ensino da

capoeira o seu maior aliado enquanto fonte de subsistência.

Não obstante, os estrangeiros que se encantavam com a capoeira, a partir desse contato,

passavam a nutrir como meta principal de seu aprendizado e formação, a ida ao Brasil, em

especial a Bahia - Meca da Capoeira -, onde por esta ocasião poderiam estreitar seus contatos

com os antigos mestres dessa arte. Estes estrangeiros muitas vezes decidiam, por questões de

custo-benefício, passar mais do que uma a duas semanas nestes destinos, estabelecendo-se no

país por mais de um ano, período pelo qual aproveitavam para fazer especialização em

capoeira.

Quando seguiam na capoeira, estes estrangeiros fundavam seus núcleos de trabalho no

exterior, passando a representar os centros culturais ou grupos de capoeira que o formaram,

passando a estabelecer vínculo institucional e formativo pelo tempo em que tiver inserido no

universo da capoeira, pois a sua formação tal como nas manifestações de matriz

afrodescendete, a exemplo do candomblé, é do tipo familiar, vinculando-o a vida inteira ao

responsável pelo seu ingresso nesta atividade, salvo raras excessões.

Estes novos núcleos de ação internacional, representantes dos grupos de capoeira brasileiros,

1 Sistemas de conhecimento baseado na experiência vivida, que confere ao participante conhecimento a partir de

da transmissão dinâmica de valores e de relações interpessoais concretas.

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passam a utilizar-se deste know-how, logomarca, visitas anuais do mestre do grupo em seus

novos núcleos, numa relação não permeada por princípios econômicos, e sim filosóficos,

ideológicos, de formação continuada e difusão cultural e institucional.

Este contexto traz a tona um grande desafio, pois as ONGs que emprestam todo o seu

expertise na formação em capoeira, por não ter sua lógica de relação interinstitucional

baseada em princípios lucrativos, teme ou não compreende de que forma pode estabelecer

uma relação mínima econômica para a sua sustentabilidade.

O presente estudo questiona, portanto: Como entender e gerenciar organizações sociais, em

fase de expansão internacional, consolidadas a partir da cultura da capoeira?

A realização deste trabalho traz contribuições ao campo das Organizações não-

governamentais que trabalham com a Capoeira e que estão em processo de expansão

internacional, promovendo uma visão da cultura organizacional deste tipo de organização e

favorecendo a compreensão de seus limites e possibilidades de atuação que aporte novos

rumos institucionais.

A dissertação tem como finalidade pesquisar e produzir conhecimento em torno do processo

de gestão de ONGs de capoeira em fase de expansão internacional, com vistas em seu

desenvolvimento organizacional, analisando as características particulares que permeiam sua

cultura organizacional influenciada pela cultura da capoeira, validando-a e adequando-a às

necessidades de sustentabilidade econômica institucional.

O objetivo geral desta pesquisa é analisar a influência da cultura da capoeira sobre as práticas

organizacionais em uma associação, pautada em princípios não-econômicos e em fase de

expansão internacional, a fim de reconhecer os limites e as possibilidades do seu modelo de

gestão, conforme sintetiza a figura 1.

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18

Fonte: Elaborada pela autora

A fim de resolver este objetivo geral, foram propostos os seguintes objetivos específicos

(figura 2):

Descrever a trajetória da capoeira destacando suas dimensões constitutivas e sua

cultura organizacional;

Entender a capoeira como prática organizativa;

Sistematizar dimensões de análise organizacional, a partir da abordagem da

cultura organizacional;

Descrever as práticas de gestão social a partir do desenvolvimento organizacional.

A pesquisa foi realizada por meio de um estudo de caso, numa perspectiva qualitativa. A

experiência da pesquisadora facilitou a pesquisa, pois permitiu a observação participante.

Além disso, foram realizadas análise documental, questionários e entrevista com gestores e

mestres de capoeira.

Figura 1. Objetivo Geral da pesquisa

PRÁTICAS

ORGANIZACIONAIS

ONG EM EXPANSÃO

INTERNACIONAL

CULTURA

DA CAPOEIRA

GESTÃO

ORGANIZACIONAL

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19

Fonte: Elaborado pela autora

O estudo pretende contribuir na reflexão sobre os aspectos interseccionais entre a cultura da

capoeira e a cultura organizacional de ONGs de Capoeira, com atenção especial às práticas

organizativas. Buscamos preencher uma lacuna na área de estudos organizacionais e fornecer

informações e reflexões sobre a cultura da capoeira e a cultura organizacional. Oferece

aportes sobre outra maneira de entender a lógica da cultura organizacional, sobretudo quando

vinculadas à organizações que tem como mote de ação as manifestações culturais de matriz

africana, com suas peculiaridades ritualísticas e valorativas, lógicas que podem ser

aproveitadas e transferidas às demais organizações congêneres, auxiliando-as no seu

desenvolvimento institucional.

Após a Introdução, o Capítulo 2 descreve a trajetória histórica e cultural da capoeira, suas

dimensões constitutivas, a fim de compreender a capoeira enquanto manifestação cultural

popular brasileira, que anuncia em seu ritual códigos e valores civilizatórios africanos que por

sua vez conferem características peculiares à dinâmica das práticas organizativas institucio-

nais.

Capoeira como prática organizativa Influências da cultu-

ra da capoeira na gestão

Capoeira: dimensões constitutivas e cultura

organizacional

Dimensões de análise (cultura organizacional)

Práticas de gestão social

Figura 2. Objetivos específicos da pesquisa

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20

O Capítulo 3 trata sobre a cultura organizacional, as organizações sociais, a gestão social e

suas práticas organizativas no esforço de compreender os nexos e correlações estabelecidas

entre esta área e o processo de institucionalização da capoeira com suas práticas

organizacionais.

O Capítulo 4 apresenta e descreve a abordagem metodológica de pesquisa, os instrumentos e

os procedimentos utilizados para na coleta e análise dos dados, justificando o uso de tais ins-

trumentos e procedimentos com base na fundamentação teórica apresentada no Capítulo 2 e

nas questões de pesquisa que embasam este trabalho.

O Capítulo 5 apresenta a organização em estudo – Associação Cultural GUETO, sua trajetória

institucional e uma análise das suas práticas organizativas à luz da cultura da capoeira. Para

tal análise elegemos três categorias, estrutura, ambiente e ritual organizacionais, onde funda-

mentaremos nossas reflexões e comparação possíveis.

O Capítulo 6 tem como objetivo central trazer as críticas pertinentes à gestão da organização

alvo de nossos estudos, bem como ao processo de construção de suas práticas organizacionais.

Os nossos esforços se concentram no levantamento dos pontos de interseção entre a cultura da

capoeira e a gestão organizacional, especificamente as suas práticas organizacionais, ou seja,

como esse processo se deu e quais influências surgiram desta relação?

Por fim levantamos as Considerações Finais ao presente trabalho, descrevendo sob a ótica da

autora quais sugestões são indicadas ao processo de desenvolvimento organizacional de insti-

tuições congêneres à estudada.

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2 CAPOEIRA: UMA TRAJETÓRIA HISTÓRICO-CULTURAL

Este capítulo descreve a trajetória histórica e cultural da capoeira, suas dimensões constituti-

vas, a fim de compreender a capoeira enquanto manifestação cultural popular brasileira, que

anuncia em seu ritual códigos e valores civilizatórios africanos que por sua vez conferem ca-

racterísticas peculiares à dinâmica das práticas organizativas institucionais.

A capoeira, manifestação cultural afrobrasileira, forjada ideologicamente para contrapor os

ditames da ordem escravagista vigente nos séculos em que perdurou o tráfico e a utilização da

mão de obra escrava africana no país, era um misto de dança, anunciando e consolidando a

versatilidade e flexibilidade enquanto signos da cultura africana, e de luta, resultante inevitá-

vel da condição de opressão vivida pela população africana traficada nos consecutivos anos de

diáspora africana para as Américas (REGO, 1968, p.34).

Inventada por negros africanos no Brasil (REGO, 1968) e desenvolvida por seus

descendentes afrobrasileiros como estratégia para rebelar-se aos ditames da

sociedade escravocrata, a capoeira, mais do que um jogo de entretenimento serviu

como uma arte marcial, uma luta, um instrumento de resistência e combate. Como

não possuíam armas suficientes para fazer frente à opressão de seus opositores,

feitores, capitães do mato, dentre outros, os escravizados utilizavam os movimentos

fruto da cultura corporal africana como recursos instintivos e naturais de preservação

da vida, por intermédio do próprio corpo. Foram quando surgiram os “floreios”

manhosos, ágeis, espertos e traiçoeiramente defensivos que conferiam a esta luta o

seu caráter lúdico, caráter este intrinsecamente envolvido na estrutura da capoeira na

Bahia (MAGALHÃES; MOREIRA, 2014, p.14).

A capoeira nasce, portanto, em território brasileiro da necessidade de africanos escravizados

de rebelar-se e manter viva sua cultura, ideais, seus valores e crenças. Era uma alternativa

frente a opressão a qual estavam subordinados diante de tal sociedade escravagista, e reunia

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22

povos de diferentes etnias africanas que se encontravam em situação semelhante de submissão

e trabalho escravo.

Conforme aponta Rego (1968, p.35) “a capoeira foi inventada com a finalidade de

divertimento, mas na realidade funcionava como uma faca de dois gumes. Ao lado do normal

e do quotidiano, que era divertir, era luta também no momento oportuno.”. Este trecho aborda

com propriedade uma das características marcantes das sociedades africanas que vivenciam os

diversos planos e momentos da vida de maneira mesclada, misturada, não-dissociada, onde o

lazer, o trabalho, os estudos e os afetos podem estar sendo vividos em um único instante. Nes-

sa perspectiva a capoeira tanto podia estar sendo feita com caráter lúdico, quanto bélico,

quanto religioso.

Sua origem deu-se, provavelmente, no grupo Bantú-Angolense, uma das divisões de

povos mais fortes oriundas da África. Os negros desta região eram considerados

altos, ágeis e fortes, com grande capacidade de adaptação cultural e, portanto,

adequados ao trabalho e às exigências que se faziam presentes (MAGALHÃES;

MOREIRA, 2014, p.14).

Provavelmente esta seja a origem da condição de negociação inerente ao jogo da capoeira,

princípio fundamental sem o qual a mesma poderia resistir vigorosamente há tantos séculos,

se reelaborando para permanecer viva e dando vida aos tantos ideais desse povo oprimido.

Porém, independente da condição de negociação nata desta arte, sua participação em diversas

insurreições no período escravagista levou-a a desenvolver seu potencial bélico e de luta de

revide. Os milhões de negros sequestrados no continente africano colaboraram também para o

desenvolvimento e aperfeiçoamento de seu viés marcial e, utilizando-na para enfrentar os

ataques e desmandos de seus opressores (MAGALHÃES; MOREIRA, 2014).

Pernambuco, Rio de Janeiro e Bahia, três regiões que mais receberam negros

africanos demonstravam consenso no objetivo em torno da prática da capoeira: o de

extinguir a dominação e a exploração das elites com intuito de alcançarem a tão

fragilizada e negligenciada liberdade. A capoeira, em virtude da dominação, da

perseguição e da discriminação para com os negros africanos, com o decorrer do

tempo ganha cada vez mais força no Brasil (MAGALHÃES; MOREIRA, 2014, p.

14).

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Ou seja, por ter a capoeira objetivos que corroboravam com o movimento abolicionista, a

mesma encontra rapidamente adeptos e simpatizantes, aliando-se ao mesmo em busca da

“abolição”, que, por fim, é proclamada e deixa uma difícil herança para os então “libertos”,

pois, não tendo os mesmos acesso aos meios de produção e à educação, ou mesmo por não

receber indenização ou algo semelhante, eram destituídos de condições mínimas para

enfrentar o mercado de trabalho, restando-lhes o convívio e a condição marginal.

Estes foram períodos de sofrimento e confusão para a população negra e suas lideranças,

afinal de contas, estava posta uma contradição, para que a conquista da tão sonhada liberdade

se não havia lugar para onde ir, onde trabalhar, alimento para comer e nem o que vestir? Nesta

hora as elites aproveitaram a conjuntura e deram uma significativa “contribuição”: associaram

à imagem do negro, o perfil de um “agente criminoso”, vadio, malandro e capadócio. A

perseguição e a exploração continuavam, nada foi feito na prática para promover a integração

social do cidadão negro “liberto” após a lei de 13 de maio de 1888.

A República, que sucedeu o Império, por sua vez manteve esta conformação, perpetuando os

velhos grilhões e seus preconceitos. A capoeira, se já era perseguida no século XIX, nesta

nova conjuntura política recebeu um aval de continuidade, recebendo oficialmente tratamento

criminal em todo o território brasileiro a partir do Código Penal da República que discorre em

seus artigos toda a sua intenção e estratégia de manutenção de status quo:

Art. 402. Fazer nas ruas e praças públicas, exercícios de agilidade e destreza

corporal conhecida pela denominação capoeiragem (...) Pena: de prisão celular por

dois a seis meses.

Parágrafo Único: É considerada circunstância agravante pertencer o capoeira a

algum bando ou malta.

Art. 404. Se nesses exercícios de capoeiragem perpretar homicídio, praticar alguma

lesão corporal, ultrajar o poder público e particular, perturbar a ordem, a

tranquilidade ou segurança pública ou for encontrado com armas incorrerá

cumulativamente nas penas cominadas para tais crimes.(REGO, 1968, p.292).

E em conformidade ao caráter repressor exposto nestes instrumentos legais, assim mesmo se

deu a aplicação dos mesmos. José Murilo de Carvalho (1987) revela em sua obra que “Talvez

o único setor da população a ter sua atuação comprimida pela República tenha sido o dos

capoeiras. Logo no início do governo provisório, foram perseguidos pelo chefe de polícia,

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presos e deportados em grandes números para Fernando de Noronha” (CARVALHO apud

VIEIRA, 1998, p. 94). O autor ainda traz um ponto interessante desta época quando descreve

a atuação das “maltas” de capoeira, em pesquisa sobre a formação de grupos sociais marginais

na Primeira República, como organismos fundamentais para a compreensão da dinâmica da

sociedade civil brasileira na passagem do século.

Segundo Carvalho (apud VIEIRA, 1998, p. 94) as “maltas” de capoeiras do Rio de Janeiro, no

século XIX, ganharam fama e eram, ironicamente, revestidas pela impunidade por serem

organizações com grande respaldo junto aos líderes políticos da época. Sua atuação na

política foi importantíssima, dissolvendo os comícios, fazendo a segurança de políticos

importantes, “emprenhando urnas” e coagindo eleitores. Ou seja, esses grupos revelavam o

controverso pensamento brasileiro que bania do convívio social o capoeira que lutava por

liberdade e direitos, mas usava seus serviços quando lhes era conveniente para servirem como

escudo bélico em comícios políticos.

Por fazer parte de um grande contingente sem ocupação delimitada e fixa, o capoeira circula-

va meio a legalidade e a ilegalidade, a ordem e a desordem, e era associado à figura de um

marginal, vadio, transgressor das normas de convívio social, trazendo instabilidade e baderna

aos lugares onde se expunha com seus dotes bélicos corporais.

Neste período, a maior parte dos registros: policiais, bibliográficos, dentre outros, levantados

nas principais capitais brasileiras se referiam à capoeira ora descrevendo a atuação dos

capoeiras, citados e reconhecidos como desordeiros, vadios, etc, ora de suas “maltas”,

associando a capoeira a uma atividade de caráter marcial, bélica, política, despojada de

associação com o ritual, a circularidade e a ludicidade, características presentes na formação

concebida na Bahia (MAGALHÃES; MOREIRA, 2014).

Com isso não podemos afirmar que na Bahia o capoeira não tivesse o perfil marginal, de

malandro, vadio ou desordeiro, muito menos que neste lugar os mesmo não prestassem servi-

ços à grupos políticos, conforme as maltas encontradas no Rio de Janeiro, impugnando urnas,

por exemplo. Só é preciso considerar que isso acontecia de forma significativamente reduzida,

não estigmatizando a ação do capoeira na Bahia à das maltas de capoeira do Rio de Janeiro.

Em verdade, segundo alguns jornais da época, na grande maioria dos casos os capoeiras

baianos se envolviam em confusões ocorridas nos locais frequentemente visitados por

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bandidos e outros delinquentes, tais como: Cais do Porto, Cais Dourado, Estrada da

Liberdade, rua dos Capitães, dentre outros, o que lhes conferiam o perfil marginal associado

nesta época.

Quanto à marginalidade vinculada a capoeira, aponta Rego que “O Cais Dourado, no final do

século passado, se tornou famosíssimo pelo excesso de desordens e crimes que ali se

praticavam, sobretudo por ser zona de meretrício e para lá convergirem, além dos capoeiras,

marinheiros, soldados de policia e delinqüentes” (REGO, 1968, p. 37). Isso se afirma nas

cantigas entoadas por antigos mestres onde o Cais é lembrado como ponto de encontro e de

grandes desafios entre os capoeiras do passado. Podemos verificar esse contexto na cantiga do

Mestre Ezequiel:

Eu aprendi capoeira/ Lá na rampa no Cais da Bahia/ Vim de Ilha de Maré/ No

Saveiro do Mestre João/ Fui morar lá n Preguiça/ Me criei na Conceição/ Eu subi o

Pelourinho/ Eu desci a Gameleira/ Eu passava o dia a dia nas rodas de capoeira/ Eu

aprendi Capoeira/ Lá na Rampa e no Cais da Bahia/ Camafeu e Traira tocava/

Waldemar jogava com seu Zacarias...(In cd Mestre Ezequiel, 1989)

Independente de o capoeirista baiano estar associado à figura do malandro, marginal e

desordeiro, assim como em outras capitais brasileiras, pode-se constatar através de

depoimentos dos mais antigos mestres da Bahia, quando se referem ao ritual das antigas rodas

praticada no começo do século passado, que desde esta época a capoeira na Bahia vem sendo

realizada de forma diferente às das outras capitais brasileiras, vinculadas às maltas.

É interessante observarmos que, embora existam registros que identificam a prática

da capoeira entre os estratos marginalizados nas principais cidades brasileiras a

partir de meados do século passado, apenas na Bahia, conforme demonstraram

nossas pesquisas, há uma continuidade entre a forma antiga e o jogo atualmente

praticado nas academias.(VIEIRA, 1998, p.97)

Ainda sobre a capoeira que se desenvolveu na Bahia e suas particularidades

A capoeira baiana é um processo dinâmico, coreográfico, desenvolvido por 2 (dois)

parceiros, caracterizado pela associação de movimentos rituais, executados em

sintonia com ritmo ijexá2, regido pelo toque do berimbau, simulando intenções de

2 a)Ramo da nação nagô, formado por mulheres dissidentes, com rituais religiosos específicos. b) Ritmo musical

de candomblé, usado no culto de Oxum, Oxalá, Nana Borokô, Nhançan, Yemanjá, Logunedé, Ogun, Oxosse,

etc; lento, suave, calmo e magestoso.

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ataque, defesa e esquiva, ao tempo em que exibe habilidade, força e autoconfiança,

em colaboração com o parceiro do jogo, pretendendo cada qual demonstrar sua

superioridade sobre o companheiro. O complexo coreográfico se desenvolve a partir

dum movimento básico denominado de gingado3 do qual surgem os demais num

desenrolar aparentemente espontâneo e natural, porém com um objetivo dissimulado

de obrigar o seu parceiro a admitir a própria inferioridade. (DECÂNIO FILHO,

2007, p.1).

Figura 3. Roda de Capoeira

4 Fonte: Blog Capoeiragem na UFAL

Esta manifestação reúne, em seu arcabouço ideológico e ritualístico, diversos valores

civilizatórios da cultura africana tais como: circularidade, religiosidade, corporeidade,

musicalidade, memória, ancestralidade, cooperativismo, oralidade, energia vital e ludicidade,

que orientam as ações e as relações dentro de sua cultura organizacional (Figura 1).

3 Movimento ritmado de todo o corpo acompanhando o toque do berimbau, com a finalidade precípua de manter

o corpo relaxado e o centro de gravidade do corpo em permanente deslocamento, pronto para esquiva, ataque,

contra-ataque ou fuga É o fulcro da capoeira, donde partem todos os seus movimentos! Durante o gingado o

praticante deve manter-se em movimento permanente, simulando tentativas de ataque, contra-ataque, sempre

atento às intenções do parceiro, em contínua postura mental de esquiva e proteção dos alvos potenciais de

ataques. 4 Disponível em site: http://capoeiragemnaufal.blogspot.com.br/. Acesso em nov. 2013.

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2.1 PROCEDIMENTOS RITUALÍSTICOS

A roda de capoeira enquanto ritual reuni diversos procedimentos desde sua abertura ao

encerramento, dando-lhe sentido e encaminhamento, conhecimentos fundamentais e que

identificam um grande conhecedor de capoeira. Aliás, um grande conhecedor deste ritual é

considerado no meio capoeirístico como “fundamentado”, uma pessoa que conhece os

“fundamentos” da capoeira, sua razão de ser, suas estruturas internas e que por isso pode

gozar de reconhecimento público.

Quadro 1. Valores da Cultura da Capoeira

Valores Descrição

Aliança Estabelecimento de um parentesco comunitário, semelhante à recriação das

linhagens e da família extensiva africana.

Participação Participação na comunidade, de acordo com a antiguidade, as obrigações e a

linhagem iniciática.

Ancestralidade/Antiguidade Unidos por laços de iniciação à capoeira, aos demais iniciados, aos mais

antigos, aos mestres, aos antepassados e ancestrais da comunidade.

Sistema de conhecimento Iniciático, só pode ser apreendido na medida em que é vivido pela experiência,

só tendo significado quando incorporado de maneira ativa

Transmissão de valores Forma dinâmica, em relações interpessoais concretas, oralidade.

Relações Interpessoais Marcantes, determinam a forma pela qual os integrantes de um determinado

grupo de capoeira irão gerir o espaço de formação e convívio social e

estabelecer suas relações hierárquicas Nota: Fonte: elaborado pela autora (MAGALHÃES; MOREIRA, 2014).

Não se pode deixar de pensar que sendo a oralidade a estratégia de transmissão e perpetuação

dos conhecimentos produzidos pela sociedade africana e, portanto, pela capoeira também, é a

partir destes conhecedores, detentores destes fundamentos, que se consegue manter vivos

tantos procedimentos ritualísticos encontrados nesta arte.

Tudo inicia com a formação de uma roda, um círculo humano, onde todos se encontram

equidistante anunciando o princípio democrático inerente práxis capoeirana. Esta formação

geométrica predispõe seus praticantes a horizontalização nas relações independente da

diferença de níveis hierárquicos na capoeira, reunindo-os em torno do mesmo propósito e

construindo um ambiente harmônico para que se desenrole a capoeira.

Em sua extensão e delimitando-a, encontram-se os capoeiras investidos de seus apelidos, co-

dinomes que tiveram origem no período em que a Capoeira no Brasil estava proibida, incluída

inclusive nos artigos do código penal, período que vai de 1890 até 1937. Os capoeiristas utili-

zavam-se de nomes fictícios a fim de despistar a investida policial quando procurados.

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Esta roda é também constituída por uma bateria de instrumentos, de corda e de percussão, que

vão conferir ritmo e harmonia, bem como definir o tipo de jogo que será executado a cada

tempo. Dentre os instrumentos que compõem esta bateria ou orquestra temos o berimbau, que

“é um arco musical que tem procedência de arcos musicais egípcios, com aproximadamente

4.000 anos de existência, possuidor do título de criador de todos os instrumentos de corda, e

que para surpresa de muitos, nem sempre esteve associado às rodas de capoeira” (CASCUDO,

1993, p.27).

A hipótese mais aceita por historiadores é a de que o contato do berimbau com a capoeira se

dá nas regiões portuárias onde havia ambulantes tocando berimbau para chamar a atenção da

freguesia para as suas mercadorias, bem como, diversos trabalhadores jogando capoeira no

período ocioso entre o atracamento de um navio e outro.

Daí, possivelmente, nasce a relação perfeita e dolente entre berimbau e capoeira, inclusive

este é o fato que explicaria a sobrevivência deste instrumento musical de origem centro-

africano no Brasil, já que outros instrumentos de origem africana, como alaúde de arcos,

acabaram por desaparecer.

No entanto, se por um lado à junção foi por acaso, atualmente não se pode pensar em capoeira

sem berimbau, o mesmo é parte condicionante da roda, é uma das marcas da capoeira

mundialmente conhecidas, que dita o ritmo e o tipo de jogo na roda.

Em se tratando dos toques de berimbau, peça musical executada pelo mesmo, e do tipo de

jogo desenvolvido podemos afirmar que eles são inseparáveis uma vez que é o primeiro quem

determina a ação do segundo, ou seja, seu estilo (Angola, Regional, Contemporâneo, etc), seu

andamento (se mais lento ou mais rápido), dentre outras características.

Como exemplo, se tem o toque de Angola, característico da Capoeira Angola, que pressupõe

um jogo mais “manhoso”, com movimentos rasteiros e maior proximidade entre os jogadores;

o toque de São Bento Grande de Regional, que como o nome revela é utilizado na Capoeira

Regional, melodicamente mais rápido e mais cadenciado e que desenrola um jogo em nível

mais “alto”, mais objetivo do ponto de vista bélico, onde um dos parceiros de jogo tenta a

todo custo aplicar movimentos de queda (rasteiras, vingativas) no outro.

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É possível encontrar a depender do estilo de capoeira que se pratique, um ou três berimbaus,

sendo que quando da formação de três berimbaus, eles se diferenciarão através do tamanho da

cabaça - caixa de ressonância encontrada preza à madeira do berimbau - sendo: uma grande,

denominando o berimbau enquanto gunga ou berra-boi; uma média, denominando o berimbau

enquanto médio) e uma pequena, denominando o berimbau enquanto viola.

Nesta formação instrumental de três berimbaus cada um terá sua função específica na

execução da roda. Esta formação é semelhante a dos atabaques do candomblé que, apesar de

invertida, encontra o “Lê” (atabaque pequeno) tem a função de marcar o ritmo, o “rumpi”

(atabaque médio) a função de inverter a marcação do “Lê” e o “rum” (atabaque grande) a fun-

ção de fazer variações (repiques, improvisos). (DECÂNIO FILHO, 1997)

O maior berimbau, chamado de Gunga, com o som mais grave tem a função de iniciar a

bateria de instrumentos e ditar o ritmo, o toque e, consequentemente, o tipo de jogo; já o

berimbau Médio, com o som intermediário, nem grave nem agudo, terá que inverter o toque

do Gunga; resta o Viola, com o som mais agudo, que terá a função de fazer variações,

comprometido somente com o ritmo.

Além dos berimbaus são encontrados nesta orquestra o pandeiro, e ocasionalmente a depender

do estilo de capoeira, o agogô, o reco-reco e o atabaque, sendo este último incorporado à

capoeira em meados do século XX, segundo alguns mestres mais antigos. Um velho Mestre

da Cidade de Santo Amaro, próxima a Salvador, observa que:

Capoeira antigamente era dois pandeiros, dois berimbaus e um agogô. Hoje em dia é

que tem timbau em capoeira. Um timbau, para quem não conhece, já parece com

candomblé. Dois timbaus, o que não parece? Tem academia que tem dois timbaus. O

timbau esconde o instrumento.(VIEIRA, 1998, p. 106)

Mestre Waldemar do Pero Vaz informa que sobre a composição da instrumentação musical da

roda de capoeira: “A bateria da capoeira tem três berimbaus: um berra-boi, uma viola e um

gunga. Agora com essa moda nova apareceu o atabaque. Mas eram três pandeiros, três

berimbaus e um reco-reco. Tinha também agogô”. (VIEIRA, 1998, p. 106).

Mestre Canjiquinha, renomado mestre de capoeira de Salvador, diz ainda que “Capoeira

autêntica mesmo é dois berimbaus e dois pandeiros. Aí, pra atrapalhar, pra fazer zoada

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colocaram o atabaque. Eu tenho um aqui na academia mas é para ensinar maculelê”.

(VIEIRA, 1998, p.107). Apesar da diferença entre o número certo de instrumentos, há

unanimidade na inexistência ou pouco uso do atabaque, talvez pela resistência criada diante

dos seus vínculos com o sentido religioso (onde tem a função de fazer a ligação entre o ayê-

terra e o olorum-céu).

Seguindo o percurso dos procedimentos que iniciam a roda de capoeira, encontra-se um

elemento importantíssimo na consolidação do sistema de transmissão oral que são as suas

cantigas. Elas representam uma riquíssima ferramenta de comunicação responsável por

garantir a transmissão dos conhecimentos construídos historicamente na capoeira. O exemplo

do teor das informações contidas e transmitidas nestas cantigas se encontra: descrição ou

exaltação das terras africanas; saudações à deuses africanos; impressões sobre o tráfico

negreiro; o período escravocrata e a “libertação” dos escravos; situações cotidianas; lições de

vida; enfim, são verdadeiras aulas de história e cultura brasileira, religião, ciências sociais,

tudo melodicamente entoado.

As cantigas encontradas na capoeira são classificadas em ladainhas, quadras, chulas e

corridos. As ladainhas, que segundo Câmara Cascudo (1993), eram “tiradas (declamadas) ou

cantadas durante o terço ou a novena, etc”. são incorporadas à capoeira com essa conotação

de oração, bem como para contar alguma história acontecida, homenagem a algum velho

mestre, dentre outros sentidos. Nesta, as cantigas sempre terminam em uma louvação com o

vocábulo “iê” cujo significado encontra-se na cultura africana com o sentido de “atenção”.

É interessante citar que estas ladainhas também se iniciam com este pequeno vocábulo para

alertar os capoeiristas quanto ao que será cantado. Estes tipos de cantigas geralmente abrem a

roda de Capoeira Angola.

Iê/ Eu não sei como é que eu vivo/ Nesse mundo enganador/ Se sou feio sou

desprezado/ Se sou bom perco o valor/ Meu pai sempre me dizia/ Meu filho não se

engane/ Se no rosto o dente aberto/ No coração há traição/ Faça como eu faço/ Pra

de mim não ter inveja/ É por isso que Caim/ Matou seu irmão Abel/ Quem tem fé

em Deus não cai/ Se cair ele levanta/ Ele é o nosso protetor/ Ele é quem nos dá mão/

Iê ... Viva a meu Deus/ Iê viva a meu Deus, camará(coro)(In cd Mestre Felipe de

Santo Amaro)

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As quadras são cantigas semelhantes à ladainha, porém, são próprias da Capoeira Regional,

logo, são cantadas em melodias ritmicamente cadenciadas, rápidas, que incitam o jogador a

luta, uma vez que foram idealizadas para compor um estilo de capoeira voltado a eficiência

bélica. Em sua estrutura elas são compostas por estrofes de quatro a seis versos terminando

com uma louvação que será respondida pelos capoeiristas da roda.

Menino quem foi teu mestre/ Meu mestre foi Salomão/ Sou discípulo que aprende/

Sou mestre que dou lição/ O mestre que me ensinou/ Tá no Engenho da Conceição/

A ele devo dinheiro, saúde e obrigação/ Segredo de São Cosme/ Só quem sabe é São

Damião/ Ê, ê, água de beber/ Ê, ê, água de beber, camará (coro) (In cd Mestre

Bimba)

As chulas são críticas pouco decorosas, irrespeitosas e zombeteiras, que se dizia de forma

solada, e não cantada, porém na capoeira estas são cantigas que variam no tamanho e que nos

contam uma história: sotaque, mal dizer, fatos do cotidiano, costumes, episódios históricos, o

negro livre, a escravidão, mestres de capoeira, mitos, religião, etc. (CASCUDO, 1993). Elas

não findam com uma louvação, tal como as ladainhas, mas com um canto corrido, repetido

quantas vezes quiser.

Era um capoeira/ Era um capoeira/ Que agora eu vou contar/ Quando chegava na

roda / Todos paravam pra olhar/ Sua voz fazia vibrar/ Seu canto chamava atenção/

Cantando tão alto e forte/ Que falava de libertação/ Era um capoeira/ Tão valente e

respeitado/ Mas um dia ele foi respeitado/ Por um sorriso de mulher/ Ele não pode

acreditar/ Quando uma moça bonita/ Fez o capoeira chorar/ Cruz credo Ave Maria

(refrão)/ Quanto mais eu chorava ela sorria (DP)

Já o canto corrido é uma cantiga estruturada entre o verso sugerido pelo cantador e uma

resposta curta em forma de coro dos capoeiristas da roda. Esta é uma das cantigas mais

utilizadas quando da necessidade de construção das cantigas de improviso, corriqueiramente

utilizadas pelos capoeiristas mais “fundamentados” que aplicam-nas para se fazer superior ao

parceiro de jogo, discorrendo na mesma sobre assunto da ordem do dia ou da hora. A exemplo

tem-se a seguinte cantiga de domínio público: “Nem tudo que reluz é ouro/ Nem tudo que

balança cai/ Cai, cai, cai, cai... capoeira balança mais não cai (refrão)” (DP)

Os cantadores da roda ao entoar suas cantigas contam necessariamente com a ajuda dos

capoeiristas que as respondem ininterruptamente. São eles que juntos, e somados à orquestra

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de instrumentos, reúnem vozes e “presença de espírito”, compondo e construindo um

ambiente favorável ao desenvolvimento das interlocuções corporais, ou seja, o jogo.

Logo à frente dos berimbaus, dentro da roda, existe um lugar investido de mística, onde os

capoeiristas se encontram para jogar, partindo um de cada lado da roda. Este lugar é

denominado “pé do berimbau”. Místico, pois, acredita-se ser um espaço onde os praticantes:

fazem suas preces pedindo proteção a partir de suas crenças religiosas, percebem de forma

intuitiva e sensorial (olhar, aperto de mão, outros sentidos) quais as intenções de seus futuros

parceiros de jogo, cumprimentam-se e saem para jogar.

Acredita-se que o jogo inicia neste espaço e que um capoeirista “fundamentado” sabe

reconhecer, valorizar e aproveitar a sua passagem por ele. É nele que os jogadores se

encontram, trocam olhares (como primeira janela de percepção das energias), apertam as

mãos cumprimentando-se, e se reconhecem para poderem investir no passo seguinte - o jogo

propriamente dito. Este deverá ser repleto de dramaturgia e dissimulação, uma vez que um

bom capoeira não se deixa perceber em suas reais intenções, enquanto condição de

sobrevivência e invencibilidade. Ele deve ainda tentar descobrir as intenções do outro, bem

como simular intenções a fim de que o parceiro se deixe enredar.

A partir desta estrutura, a iniciativa de começar a roda vem do mais antigo na seguinte ordem:

os instrumentos tocam (berimbaus, pandeiros, reco-reco, agogô e o atabaque), seguidos da

cantiga de entrada, para daí os parceiros poderem se cumprimentar como sinal de respeito,

fazerem reverência ao berimbau - pedindo e agradecendo pela proteção divina, e, assim,

adentrarem a roda pra jogar.

Esta entrada acontece geralmente com um movimento corporal de inversão denominado de

“aú”, na capoeira regional, ou com uma queda de rim, na capoeira angola. Em ambos os mo-

vimentos o jogador tem que momentaneamente inverter a hierarquia corporal, sustentando as

pernas e o tronco sobre os braços apoiados no chão, enquanto movimento de autorização à

inserção neste novo e diferente mundo.

A seguir inicia-se o diálogo de corpos, estabelecido entre dois jogadores, num movimento

contínuo, um jogo harmonicamente estruturado de perguntas e respostas, sendo que as

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perguntas se configuram por movimentos de ataque, restando os movimentos de defesa

enquanto respostas.

O jogo será harmonicamente estruturado quando houver uma disputa equilibrada de forças,

onde perguntas e respostas são deferidas por ambos os jogadores não configurando

supremacia de nenhum dos lados. Há também episódios de jogos onde o diálogo torna-se

tenso pelo fato de um dos jogadores demonstrar maior habilidade funcional, “perguntando”

mais que o outro, deixando o mesmo sem muitas opções de saída, ou melhor, de respostas.

Intercalado aos movimentos de perguntas e resposta poderemos encontrar, a depender da

habilidade e compreensão do capoeirista, movimentos denominados “floreios”, que, como o

nome já diz, enfeitam o jogo, enriquecendo o bailado corporal geralmente com a

intencionalidade de iludibriar o outro a cerca de suas intenções.

A roda segue formada pelos participantes que tocam instrumentos, cantam, a depender do

estilo também batem palmas, enquanto dois participantes jogam. Todos os componentes

devem estar atentos às cantigas entoadas, pois em meio ao seu potencial comunicativo as

mesmas podem informar sobre questões imediatas, tais como desavenças; mudanças de ritmo;

questões subliminares da roda; a presença de uma pessoa ilustre ou indesejada que acaba de

chegar e etc.

A gestão deste ritual é de responsabilidade do mais velho capoeirista presente na roda, o

mestre, que antigamente era facilmente encontrado tocando o berimbau Gunga, e que ao

contrário da lógica afirmada na nossa sociedade capitalista, não subjuga o mais novo, não

abusa do poder a ele investido e a sua “patente” lhe é dada pela sabedoria e capacidade

adquirida de administrar tantas autonomias a partir da divisão de responsabilidades.

Estes são os procedimentos ritualísticos encontrados em torno do processo de construção da

roda de capoeira, a seguir serão discutidos os aspectos filosóficos que permeiam a roda de

capoeira.

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2.2 PRINCÍPIOS FILOSÓFICOS

Inúmeros são os princípios filosóficos que permeiam a prática da capoeira; alguns destes

serão evidenciados neste trabalho a fim de demonstrar sua influência na dinâmica de

consolidação da capoeira. São eles: a circularidade, negaça, esquiva, criatividade, ludicidade,

mandinga e malícia.

A princípio e sempre em evidência encontra-se a roda e sua simbologia, apresentada por um

círculo que talvez seja o mais universal dentre os símbolos sacros de todos os povos. Isso se

deve, por um lado, ao fato de que este símbolo aparece unanimemente, direta ou

indiretamente, em todas as tradições primitivas, e parece ser consubstancial ao homem. Por

outro lado, a própria universalidade dos significados da roda, e sua conexão direta ou indireta

com os demais símbolos sagrados, em especial, números e figuras geométricas, fazem dela

uma espécie de modelo simbólico, uma imagem do cosmos.

A roda no plano é um círculo, e a circularidade é uma manifestação espontânea de todo o

cosmos; tal qual o caso de uma roda, símbolo do movimento e também da imobilidade, onde

todos os pontos da circunferência estão a igual distância do centro, lhes são equidistantes,

motivo pelo qual as inumeráveis energias do cosmos se neutralizam em seu seio.

Dentro dessa lógica todos os participantes da roda estão equidistantes, comungando e

contribuindo para a implantação da mesma energia circundante. A roda de capoeira se

transforma numa microrrepresentação de cosmos, um mundo de relações interpessoais onde

tudo se passa a partir da contribuição de cada pessoa que a compõe.

Visto desta forma, a roda passa a ser um universo onde se pode manipular intenções, onde se

deve ponderar atitudes, desenvolvendo um campo de relações interpessoais harmônicas. “A

capoeira está associada à calma, a prudência, a tolerância e a esperteza, e tem por fundamento

a esquiva, a negaça, a malícia, a simulação e a dissimulação de intenção e objetivo,

indispensáveis à sobrevivência, às dificuldades e a alegria do viver bem”. (DECÂNIO, 1999,

p.5). Vale a pena ressaltar que, como na vida, nem sempre são harmônicas e amistosas essas

rodas, podendo, na mesma, serem deflagradas as antipatias existentes entre os participantes,

criando um campo de batalha com consequência indesejável do ponto de vista do bem estar de

todos.

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A esquiva se constitui por um movimento de defesa que incorpora a rede de princípios

filosóficos instituídas na capoeira, pois, em sua essência, atua proporcionando ao capoeirista

que ele se desvencilhe dos golpes garantindo a manutenção da integridade física sem sair dos

preceitos da capoeira. Ou seja, o jogador passa pelo movimento do outro, saindo da situação

com uma esquiva, fuga que aumenta as chances de sair ileso do diálogo corporal.

Esse tipo de movimentação tem sua origem ideológica nos tempos de escravidão quando o

negro cativo, responsável pelo invento da capoeira, se via na situação de constantes ataques a

sua integridade física e moral, e por estar momentaneamente fragilizado sua opção mais

acertada era a de esquivar-se de tais investidas para ao menos manter-se vivo. Essa atitude de

esquiva diante dos ataques denomina-se negaça na capoeira. Quanto maior a habilidade do

capoeirista de negar o movimento esquivando-se, maior sua negaça.

A criatividade é outra condição sine qua non para a prática da capoeira que confere ao

jogador uma maior capacidade de improvisação. É percebida mais veemente quando o

jogador se encontra em uma situação de difícil resolução, “sem saída”, e cria ou tira do bolso

uma nova chance de dar continuidade ao jogo.

A ludicidade é um fator intrínseco ao ritual da capoeira, que a torna prazerosa e terapêutica,

contribuindo para o exercício constante da criatividade e do improviso. É o que faz a pessoa

se sentir feliz, solto, leve, desestressado, após uma roda de capoeira. O processo de

desportivização da mesma, iniciado na década de 80, tem contribuído muito para que este

importante princípio seja dissociado do ritual da capoeira, pois não há espaço para ludicidade

diante da sobrecarga de competitividade e rivalidade estimulada nessas últimas décadas.

Outro princípio encontrado no jogo da capoeira, muito citado como característica inerente aos

malandros de rua é a mandinga. O capoeirista é mandingueiro quando possui trejeitos e

expressões corporais que simulam desde gestos religiosos até expressões de outras

manifestações culturais como frevo, samba duro, etc.

Mandinga é um jogo de corpo enganoso, marcado pela ambiguidade da

movimentação, onde se anuncia algo e realiza-se o contrário, exatamente para

ludibriar a expectativa do parceiro. Nessas interações, as expressões faciais e,

sobretudo, o sorriso (se comportando como uma espécie de máscara capaz de

dissimular a real intenção do jogador), são elementos essenciais estando ligados a

sedução, ao encanto que leva o outro a entrar e a se arriscar no jogo. (CRUZ, 1996,

P.45)

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Associado a mandinga está a malícia, que confere ao jogador a habilidade para negociar e

para deduzir do outro suas segundas intenções, a fim de salvaguardar sua integridade física de

possíveis ataques sorrateiros e em surpresa. É evidente que apesar desse princípio aguçar a

ação reflexa do capoeirista, no tocante a intencionalidade do parceiro de jogo, poderá também

desenvolver constante e demasiado estado de vigília, simulando inclusive uma desconfiança

exarcebada para com os mesmos.

Enfim estes são princípios encontrados no ritual da roda de capoeira, os quais serão discutidos

no próximo capítulo quanto as suas contribuições na formação de pessoas praticantes desta

arte.

2.3 MUSICALIDADE E ORALIDADE

A musicalidade na capoeira tem papel fundamental, pois dela se desencadeia boa parte do

processo ritualístico da capoeira, ou seja, é a partir da musicalidade que os movimentos são

executados, os instrumentos são tocados e as cantigas entoadas. Portanto, toda a contribuição

da musicalidade no processo pedagógico poderá facilmente ser transportado para a

intervenção da capoeira neste contexto, haja vista que a mesma é condição fundamental para a

prática da capoeira.

Um aspecto importante sobre a musicalidade é que a capoeira tem, tradicionalmente, sua

difusão pautada na oralidade, e tem nas cantigas um mecanismo importante de

desenvolvimento fisiológico da fala, bem como de transmissão da cultura de geração para

geração, desse modo, as letras das cantigas são carregadas de ditos populares e parábolas que

traduzem posturas morais, cívicas e afetivas, que podem servir de estratégia na construção de

uma sociedade mais justa e humana.

A capoeira, como herdeira de uma cultura oral, apresenta nas cantigas dos antigos mestres a

exibição da sua sabedoria através desafios, referências históricas, aconselhamento ao modo

africano, constituindo um fundo cultural litero-filosófico característico do grupo social e da

região em que se insere.

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Atualmente na roda de capoeira as cantigas são uma das formas de comunicação entre os

praticantes, sendo as mesmas utilizadas sob algumas formas estruturais: Ladainhas, Chulas e

Corridos. As ladainhas eram “tiradas” (declamadas) ou cantadas durante o terço na novena,

etc”. (CASCUDO, 1993), que a capoeira incorpora com essa conotação de oração, mas

também se utiliza para contar alguma história acontecida, homenagem a algum velho mestre,

dentre outros sentidos.

Nesta, as cantigas sempre terminam em uma louvação com o vocábulo iê cujo significado é

encontrado na cultura africana com o sentido de “atenção”. É interessante citar que estas

ladainhas também se iniciam com este pequeno vocábulo para deixar atentos os capoeiristas

ao que vai ser cantado. Estes tipos de cantiga geralmente abrem a roda de capoeira angola.

Já a chula entenda-se enquanto,

[...] críticas pouco decorosas, irrespeitosas e zombeteiras, que se dizia de forma

solada, e não cantada, porém na capoeira estas são cantigas que variam no tamanho

e que nos contam uma história: sotaque, mal dizer, fatos do cotidiano, costumes,

episódios históricos, o negro livre, a escravidão, mestres de capoeira, mitos, religião,

etc, e que findam com um canto corrido, repetido quantas vezes quiser (CASCUDO,

1993, p.56).

No canto da capoeira ainda encontra-se o corrido enquanto cantiga que apresenta um

constante trocadilho entre o verso sugerido pelo cantador e uma resposta curta em forma de

coro dos capoeiristas da roda.

2.4 O JOGO DA CAPOEIRA

O jogo dentro da roda de capoeira é sustentado pela musicalidade. Palmas, canto e coro dão

forma à melodia necessária, que por sua vez influencia o tipo e a forma na qual ele será

desenvolvido.

O Pé do Berimbau é um espaço sagrado que pode ser utilizado com inúmeros propósitos. Ao

se agachar neste local, o capoeirista saúda o grande mestre da roda, o berimbau, logo faz seus

preceitos religiosos a fim de salvaguardar sua integridade física, mental e espiritual, e tem a

possibilidade também de neste momento fazer, de forma sutil, uma análise do seu parceiro de

jogo estudando sua postura corporal (rígida, tensa, descontraída, dispersa, maliciosa), seu

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olhar (raivoso, alegre, tendencioso), seus sotaques, caso ele chegue a se utilizar das cantigas

de improviso (diálogo) destinadas também à comunicação dos capoeiristas e etc.

No jogo da capoeira os jogadores devem se atentar para inúmeras características pertencentes,

tais como: proximidade, que confere a chance de se criar inúmeras possibilidades de ataque e

defesa; a pouca cobrança pela plasticidade, podendo o jogador deferir golpes sem a amplitude

total muscular como forma de assegurar a integridade física e de mostrar que não é a presença

dessa valência que assegura a eficiência do jogo, fundamentando o princípio citado pelo

mestre Moraes da “forma disforme”; flexibilidade e a destreza corporal, para que se possa

criar mais possibilidades de desvencilhar-se do ataque, dentre outros.

Na capoeira Angola por exemplo, existem as “chamadas ou pedidas que são movimentos que

articulam dimensões relativas à luta, ao jogo e a brincadeira, trazendo consigo um aumento da

tensão destacada por uma certa teatralidade” (CRUZ, 1996, p. 25) e são utilizadas na roda

para reverter situações de desvantagens; para amenizar e acalmar um jogador nervoso por ter

levado ou não desvantagem; por cansaço físico; por esgotamento mental no sentido da criação

de novas possibilidades de ataque; para veicular possíveis ataque, dentre outras motivações.

Estes são movimentos que ao serem realizados implicam na aceitação e resposta do parceiro

de jogo, com certos gestos específicos que visam o bloqueio de qualquer possibilidade de

ataque e que são dependentes de qual chamada se utilize inicialmente.

Analisando então o jogo da capoeira enquanto diálogo corporal é possível afirmar que o

mesmo permite aos praticantes estabelecerem uma infinidade de tipos de relação, tal qual

queiram os envolvidos, jogos amistosos, belicosos, traiçoeiros, de animação, lúdicos, de faz-

de-conta.

2.5 SISTEMA INICIÁTICO DE FORMAÇÃO

Para compreendermos a dinâmica formativa, comportamental e relacional dentro do universo

da capoeira, bem como, de que forma isto impacta nas práticas de gestão vivenciadas nas

instituições de capoeira, é preciso entender como estes valores influenciaram e influenciam a

vida das comunidades que tem a capoeira como prática iniciática, formadora e diretiva.

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Em uma possível comparação com as comunidades de terreiro, por se tratar de manifestações

de matriz africana que nasceram da resistência cultural do negro africano e seus descendentes

no Brasil. Diz-se que as comunidades de capoeira também se constituem em um verdadeiro

sistema de alianças, desde a simples condição de aluno-iniciante até a mais complexa

organização hierárquica, existe o estabelecimento de um parentesco comunitário, semelhante

à recriação das linhagens e da família extensiva africana.

Entenda-se a família extensiva na concepção de Todd (1985), inserida em um sistema

ideológico mais amplo, ao mesmo tempo em que desenvolve e reproduz um sistema de

valores próprios. No caso das manifestações de origem africana, os laços consanguíneos são

substituídos pelos laços da participação na comunidade, de acordo com a antiguidade, as

obrigações e a linhagem iniciática. Todos estão unidos por laços de iniciação à capoeira, aos

demais iniciados, aos mais antigos, aos mestres, aos antepassados e ancestrais da comunidade.

Ainda em comparação as comunidades de terreiro, a seguir são estabelecidos caminhos

percorridos no sistema iniciático de uma das religiões brasileiras de origem africana.

Em todo caso, todos percorrem um caminho espiritual hierárquico, que vai desde

Abiã até Ebomi. Nesse caminho, o Abiã torna-se Iaô quando é “feito” ou iniciado no

Santo. Ele deverá ainda, antes de atingir o grau máximo de Ebomi, passar por mais

três cerimônias ritualísticas, chamadas de obrigação: uma cerimônia depois de um

ano de feitura, outra depois de três anos e outra aos sete anos depois de iniciado. Ca-

da etapa o transfere para um nível hierárquico imediatamente superior. Nesse itine-

rário, o tempo não é contado de forma cronológica e sim ritualística. Mesmo que

uma pessoa já tenha sido iniciada há mais de sete anos, mas somente agora está dan-

do sua obrigação de um ano, ela está hierarquicamente abaixo de uma pessoa que

tem cinco anos de feito e que já deu obrigação de três anos. (LODY, 1987, p.24-25).

As semelhanças ocorrem por conta do processo iniciático, onde o que impera é o tempo de

imersão na capoeiragem (efetiva prática, contato com a comunidade e o conhecimento dos

fundamentos do ritual da capoeira), ao invés do tempo cronológico. O aluno é iniciante até

que seja batizado pelas mãos do mais antigo mestre presente no ritual de Batismo. Este ritual

de passagem permite ao capoeirista o encontro com a geração mais antiga, e por consequência

sua chancela nesta passagem. Esse ritual independe do estilo de capoeira (Angola, Regional,

de Rua, contemporânea e outras) que se esteja ligado. As diferenças ficam apenas por conta

do incremento do rito, a exemplo da Capoeira Regional que incorpora elementos utilizados na

formatura universitária (paraninfos, oradores, nomenclaturas, etc.) enquanto a capoeira angola

permanece com rito simples, o aluno apenas jogando com a geração mais antiga.

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A formatura de um mestre se dá pelo reconhecimento público de sua comunidade,

chancelando sua experiência e o aclamando enquanto mestre desta arte. É claro que por detrás

deste percurso formativo, convencionou-se ao longo do tempo e na grande maioria dos grupos

de capoeira no mundo, uma sequência de títulos dados por mérito e aprofundamento nos

conhecimentos da práxis capoeirana. Na maioria dos grupos esta sequência segue os títulos de

monitor, instrutor, aluno formado ou treinel, professor, contramestre ou mestrando e mestre, o

título máximo reconhecido em capoeira.

Se fosse possível ainda levantar uma estimativa temporal na formação de um mestre de

capoeira, se diria que mais recentemente e na contramão do processo de especialização

profissional vividos na contemporaneidade onde se procura saber muito de pouco, um mestre

leva em torno de 20 anos para ser reconhecido publicamente. Serão reunidos nesta formação

conhecimentos em torno do fazer pedagógico, saber histórico, técnico, ritualístico,

psicológico, administrativo, dentre outros representando então uma formação generalista.

Os mais antigos reconhecidos enquanto mestres são as peças fundamentais do ritual, já que

sua experiência se transforma em verdadeiro repositório vivo, e são eles – os mestres – que

recebem, distribuem e multiplicam o axé ou energia constitutiva do ritual. Essa figura do

mestre é fundamental no núcleo de uma cultura na qual a transmissão do saber perpassa pela

via da oralidade, e que por isso depende desses guardiões da memória coletiva para que esta

seja preservada e transmitida às novas gerações.

O mestre é reconhecido publicamente pela sua comunidade, como o detentor de um saber que

incorpora os sofrimentos e lutas, celebrações e alegrias, perdas e conquistas das gerações

passadas, e tem a missão de disponibilizar esse saber àqueles que a ele recorrem. Ele

corporifica assim, a ancestralidade e a história de seu povo e se compromete por essa razão,

por dignificar o presente, e conduzir a ação construtiva do futuro.

Neste sentido o pesquisador Pedro Abib afirma que:

Na cultura popular, em geral, há sempre uma figura fundamental, responsável pelos

processos envolvendo a memória coletiva: a figura do mestre. Os mestres exercem

um papel central na preservação e transmissão dos saberes que organizam a vida

social no âmbito da cultura popular, caracterizando, assim, a oralidade como forma

privilegiada dessa transmissão. (ABIB, 2006, p.91)

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A capoeira enquanto cultura popular afro-brasileira preserva em local de respeito e devoção o

mais antigo, o mestre. A ele é entregue no ritual da roda de capoeira para manejo o berimbau

gunga, instrumento símbolo do mestre, do mais antigo, do gestor mais experiente, que assim o

faz evocando para a roda a harmonia e energias necessárias ao desenrolar do jogo da capoeira.

Segundo Helena Theodoro em seu estudo sobre samba de roda:

Os cultos afro-brasileiros se constituem num sistema iniciático, adquirido e

transmitido de forma especial. Seus componentes vivem uma experiência em que

recebem, absorvem e desenvolvem um poder místico e simbólico, poder de

realização ou axé, princípio que torna possível o processo vital. (THEODORO,

2009, p.4)

Sendo assim, o sistema de conhecimento da capoeira, por ser iniciático, só pode ser

apreendido na medida em que é vivido pela experiência, só tendo significado quando

incorporado de maneira ativa. Cada praticante vive o rito, durante o qual o mundo histórico,

psicológico, étnico e cósmico se ritualiza. A transmissão dos valores se dá de forma dinâmica,

em relações interpessoais concretas.

O desenvolvimento dos praticantes de capoeira na roda é identificado por seus conhecimentos

em torno do fundamento do jogo, toque e canto, seu tempo de iniciação, treinamento e mili-

tância na arte da capoeira, porém, também é identificado pelo uso de um sistema de gradua-

ções – representado por cordas de algodão ou lã ou lenços, tingidos, trançados, etc. Esta vari-

edade de materiais representa muito fielmente a diversidade de opiniões, concepções e siste-

matizações encontradas na capoeira.

Muitos foram os esforços de padronização em torno de um sistema de graduação único no

universo da capoeira nestes últimos 50 anos, mas, seguindo a latente predisposição da capoei-

ra à subversão, os agrupamentos de capoeira sempre tiveram dificuldade em se reunirem e

fecharem um denominador comum com relação a este assunto. Muitos grupos de capoeira

após a sugestão do sistema único de graduação, proposto pela Confederação Brasileira de

Capoeira – CBC se negaram a adotá-lo. Tais comportamentos corroboraram para que atual-

mente entre os grupamentos haja muitos sistemas de graduação.

Com relação ao sistema de graduações utilizado na capoeira, o que se pode observar é que não

há uma padronização nem de material utilizado, nem de títulos e tempo para cada graduação.

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Em pesquisa ao site da CBC, encontramos o sistema oficial de Graduação utilizado e proposto

por esta Confederação (quadro 2).

Quadro 2. Sistema Oficial de Graduação da Confederação Brasileira de Capoeira - CBC

Graduação infantil: 3 a 14 anos Graduação padrão:acima de 15 anos

1o. Iniciante S/ corda ou cordão 1o. Iniciante S/ corda ou cordão

2o. Batizado Verde/cinza claro 2o. Batizado Verde

3o. Graduado Amarelo/cinza claro 3o. Graduado Amarelo

4o. Adaptado Azul/cinza claro 4o. Adaptado Azul

5o. Intermediário Verde/amarelo/cinza claro 5o. Intermediário Verde/Amarelo

6o. Avançado Verde/azul/cinza claro 6o. Avançado Verde/Azul

7o. Estagiário Amarelo/azul/cinza claro 7o. Estagiário Amarelo/Azul

Graduação oficial Estágio Corda/Cordão Idade mínima Tempo de capoeira

Formado 8o. Verde/amarelo/azul 18 anos 5 anos

Monitor 9o. Branco e Verde 20 anos 7 anos

Instrutor 10o. Branco e Amarelo 25 anos 12 anos

Contramestre 11o. Branco e Azul 30 anos 17 anos

Mestre 12o. Branco 35 anos 22 anos

Fonte: Site da CBC - CAPOEIRA DO BRASIL, 2014

A Associação Cultural Grupo Unido para Educação e Trabalhos de Orientação - G.U.E.T.O.,

organização social alvo do caso desta pesquisa, juntamente com a maioria das outras institui-

ções de capoeira, se utilizam de outros sistemas de graduação montados por seus mestres. O

sistema de graduação da Associação Cultural GUETO está exposto no capítulo do estudo de

caso, e descreve com maior minúcia cada estágio de graduação.

O sistema de graduações tem a função de expor as fases contempladas pelo capoeirista em

toda sua trajetória de estudo e prática da capoeira. Geralmente a troca de cordas acontece anu-

almente a depender do esforço e competência do praticante numa cerimônia. Semelhante ao

candomblé que por ritos de oferendas “gradua” seu adepto, a capoeira vai graduar seus prati-

cantes pelo rito do batismo e troca de graduação, ritual de passagem marcado por uma ceri-

mônia vivenciada dentro da roda de capoeira em um jogo com um capoeirista mais velho e

renomado. Caso o capoeirista não passe por estas cerimônias de graduação propostas por seu

mestre, existe a possibilidade de seu tempo de prática e de efetiva produção e conhecimento

desta arte possam edificar seu reconhecimento público.

Desta forma, as relações pessoais na capoeira são características e marcantes, e acabam por

influenciar de maneira incisiva na forma pela qual os integrantes de um determinado grupo de

capoeira irão gerir este espaço de formação e convívio social, e estabelecer suas relações

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hierárquicas, consolidando assim um contraponto nas práticas gerenciais vivenciadas pelo

contexto institucional dentro do universo das ONGs de capoeira.

Vale a pena ressaltar que estas relações historicamente construídas, não estão isentas das

influências oriundas do modelo econômico estabelecido em suas sociedades e que por isso

sofreram e irão sofrer diversas mediações nem sempre favoráveis ao projeto de sociedade

defendido nestas comunidades.

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3 CULTURA DA ORGANIZAÇÃO E PRÁTICAS ORGANIZACIO-

NAIS

O interesse e aproximação pela temática dos estudos organizacionais foram desencadeados

pela vontade de compreender como se constroem práticas organizacionais em ONGs que tem

a capoeira o seu mote de ação e que estão em expansão internacional e quais os principais

desafios dessa gestão. Para tanto, este capítulo trata sobre cultura organizacional no esforço de

compreender os nexos e correlações estabelecidas entre esta área e o processo de instituciona-

lização da capoeira com suas práticas organizacionais.

Uma vez que se deseje entender sobre a cultura organizacional é importante que entendamos

sobre o conceito de cultura. Esta orientação será adotada a seguir.

3.1 CONCEITO DE CULTURA

O conceito de Cultura oriundo da Antropologia americana (CAVEDON, 2008) tem como

precursor Franz Boas, e entende a cultura como fenômeno dinâmico, em processo de fluxo

constante seja por fatores externos ou internos. Para entendê-la é preciso analisá-la em si

mesma e como ela interage com o meio externo. Essa corrente conceitual tão particularista irá

levar ao relativismo cultural, neste cada cultura segue os seus próprios caminhos em função

dos diferentes eventos históricos que enfrentou.

Kroeber (1975 apud CAVEDON, 2008, p.34-35), outro representante da escola americana,

afirma que “cultura é algo diferente do biológico, seria como uma esfera superorgânica

superando a esfera orgânica no momento em que responde as necessidades instintivas de

maneira diferenciada dos animais, libertando-se da natureza por ser portador de capacidade de

aprendizagem forjada no convívio social”.

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Já Geertz (1978, p.15) revela que “Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal

amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo que a cultura como sendo essas

teias e a sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas

como uma ciência interpretativa, à procura do significado”.

Neste sentido, uma organização será estruturada a partir dos significados atribuídos pelos seus

integrantes e enredados em um emaranhado de comportamentos, crenças, valores, que, por

sua vez, darão encaminhamento a vida organizacional, suas escolhas, normativas, regulamen-

tos e práticas organizacionais construídas.

Como teia de significados, “a cultura pode ser compreendida como um sistema simbólico ou

uma configuração de sistemas simbólicos, porém, para entendê-los se faz necessário

relacioná-los com o sistema total ao qual estão atrelados”. (LÉVI-STRAUSS, 1981, p.260).

Ou seja, a cultura é formada por um conglomerado de significados e representações que só

podem ser compreendidas caso possam ser correlacionadas aos elementos e representações do

todo ao qual pertencem. É como, por exemplo, na roda de capoeira onde o berimbau é a per-

sonificação do mais antigo, o mestre, e, portanto, comanda o ritual. Essa simbologia pode ser

interpretada e compreendida se correlacionada aos valores civilizatórios de matriz africana -

ancestralidade e memória - que colocam o mais antigo enquanto repositor vivo da sabedoria

social.

Uma teoria de interpretação de culturas que se baseia nos pressupostos da antropologia

interpretativa, ancorados na hermenêutica, foi proposta por Geertz (1989) validando aspectos

como o da diversidade, ambiguidade, conflito e pluralismo. A cultura seria um construto

social, com seus significados analisados a partir de uma perspectiva semiótica, emergindo de

um contexto de sistemas entrelaçados recheados de símbolos públicos interpretáveis.

Ainda segundo Geertz (1989), por meio de uma descrição densa é possível interpretar os

símbolos sociais, e é também uma descrição densa o resultado deste trabalho interpretativo. O

pesquisador/antropólogo pode analisar as dimensões simbólicas da ação social realizando um

trabalho de campo quase que obsessivo de peneiramento do material etnográfico, e encarando

tal análise enquanto ciência interpretativa à procura de significados, e não de leis ou relações

de causa e efeito.

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Este processo de garimpagem dos significados que enredam a vida organizacional é um pro-

cesso denso e requer contato com o maior número de agentes integrantes deste universo já que

a teia de significados, este objeto plural é consolidado por significantes singulares. “A cultura,

bem como os seus sistemas emaranhados de símbolos interpretáveis são públicos, por que o

seu significado também o é” (GEERTZ, 1989, p. 20, 37).

3.2 CULTURA ORGANIZACIONAL

A partir da compreensão em torno da cultura, direcionamos a atenção para a organização e a

sua gestão. Tanto a primeira, a organização, com suas dimensões substantivas e verbais, quan-

to à segunda, a gestão, em sua condição procedimental sistêmica consolida formas de adapta-

ção ao meio externo e interno, estruturando metodologias e resultados de tal interação que são

denominadas por cultura organizacional.

Os estudos sobre cultura organizacional têm sofrido com a grande variabilidade de

abordagens teóricas e metodológicas, que tem como causa mais importante as pressuposições

filosóficas e metateóricas. Estes pressupostos lançam uma diferenciação a visão funcionalis-

ta/objetivista da realidade social, a qual atribui de maneira incisiva significados a um conjunto

de dados, e a visão interpretativa/subjetivista dessa mesma realidade, considerando a cultura

de maneira singular, deixando que seus significados surjam dos membros desta relação inter-

pessoal. (ALVESSON, 1993).

Cavedon (2008) sinaliza uma concordância dos estudiosos quanto ao atrelamento da cultura

organizacional ao condicionamento dos integrantes de uma dada organização, no que tange às

ações e aos comportamentos socialmente aceitos pela mesma.

Schein (1992) define três níveis para a observação da cultura (figura 4): Artefatos, Valores e

pressupostos. Os artefatos ficam em nível mais superficial, visível, representados pelas estru-

turas e processos mais facilmente identificados na organização, padrões e estilos de

comportamento dos empregados, por exemplo. No nível intermediário e denominado por va-

lores, estão as estratégias, metas e filosofias, que dão o direcionamento necessário às práticas

organizacionais, resultando em ações a curto, médio e longo prazo.

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Fonte: Schein, 1992, p.17.

Por fim, e invisível como a porção submersa de um iceberg, tem-se o terceiro e mais incons-

ciente nível que é denominado por pressupostos, representados pelas crenças mais

significativas, subjetivas, impressões, percepções e pensamentos, determinadores de valores e

ação, dificilmente identificado e modificado dentro da vida organizacional. Essa

especificidade de cada organização é vista enquanto a identidade da mesma, a marca

característica de cada organização, legitimada e reconhecida dentro e fora da instituição

(TAVARES, 1993).

Estes níveis e respectivas representações são construídos pelo grupo pertencente a uma

determinada organização no enfrentamento com o ambiente externo e interno, elementos

(artefatos, valores e pressupostos inconscientes) que serão considerados e ensinados como

perfil para os futuros integrantes da mesma. Vale a pena frisar que estes elementos ou repre-

sentações estarão sempre subordinados ao processo de equilíbrio organizacional, sujeitos,

portanto a reconvenções e reinterpretações.

ARTEFATOS

Estrutura e processo visíveis na organização.

VALORES de suporte

Estratégias, metas e filosofias.

PRESSUPOSTOS básicos de suporte

Inconscientes, crenças mais significativas, percepção, pensamento e sentimentos

(determinadores de valores e ação).

Figura 4. Níveis de Cultura

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As organizações que lidam com práticas formadoras e diretivas, a exemplo da cultura popular

e suas manifestações, constroem enquanto práticas organizativas, metodologias alternativas e

não convencionais de ação e interpretação frente às suas realidades socioculturais. Estas me-

todologias surgem do trinômio pensar-agir-pensar desencadeado por seus integrantes frente às

suas realidades e por isso faz-se tão necessário validar o maior número de significados a fim

de compreender a cultura organizacional desta entidade.

“A cultura possui uma dinâmica que lhe é própria, fruto de um processo contínuo de repre-

sentação” (CAVEDON, 2008, p.55) e, neste sentido, Morgan (1996) evidencia o caráter inter-

pretativo a ser dado a um determinado ambiente na busca de conhecer a dinâmica de uma

cultura organizacional.

[...] é possível compreender a maneira pela qual uma organização dá sentido ao seu

ambiente como um processo de reinterpretação do social. As organizações escolhem

e estruturam o seu ambiente através de um conjunto de decisões interpretativas. O

conhecimento que tem e as relações com o ambiente são extensões de sua cultura,

desde que se chegue, a saber, e a compreender o ambiente a partir dos sistemas de

crenças que guiam as interpretações e as ações (MORGAN, 1996, 141).

Por isso a busca e levantamento dos valores, crenças, impressões e significados constitutivos

de uma cultura são tão importantes para dar sentido às interpretações necessárias no processo

de compreensão da cultura organizacional (ambiente, estrutura, etc.). Este posicionamento

entra em consonância com o conceito de cultura organizacional definido por Pettigrew (1979,

p.574) “[...] um sistema de significados aceitos pública e coletivamente por um dado grupo

num dado tempo. Esse sistema de termos, formas, categorias e imagens interpretam para as

pessoas as suas próprias situações”. Este autor interpreta a organização como um sistema con-

tínuo, que tem passado, presente e futuro e assume que tanto o homem cria a cultura como é

criado por ela.

Pode-se ainda dizer que a organização tem uma cultura e que ela é uma cultura (THÉVENET,

1991). Smircich (1983) apresenta um quadro de referência teórica para a cultura organizacio-

nal associando-a como variável ou metáfora de raiz. Neste quadro o autor apresenta a perspec-

tiva da cultura como variável, quando a organização tem uma cultura, possuindo um conjunto

de elementos que lhe são próprios, dimensões constitutivas que podem ser descritas e que

revelam, portanto, sua existência, e a perspectiva da cultura como metáfora de raiz, quando na

condição semelhante à de uma sociedade humana, apresenta símbolos, signos que confirmam

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a existência da organização e que a apresentam enquanto criação coletiva (SMIRCICH,

1983).

[...] a cultura como variável se associa a uma perspectiva tradicional, objetivista e

positivista, tendo suas organizações a produzir traços culturais mais ou menos

distintos, tais como valores, normas, rituais, cerimônias e expressões verbais que,

em conjunto, afetam o comportamento dos empregados e dirigentes. Já a cultura

como uma metáfora de raiz promove uma visão de organizações como formas

expressivas, manifestações de consciência humana. Organizações devem ser

compreendidas e analisadas principalmente em termos de sua forma expressiva,

referente à idéias e aspectos simbólicos, e não nas suas condições econômicas ou

materiais, explorando o fenômeno da organização como experiência subjetiva e

investigando os padrões que tornam sua ação organizada possível (FERREIRA;

ASMAR, 2002, p.2)

Embora reconhecendo este quadro apresentado por Smircich como primordial para ordenar a

área de estudos em cultura, Alvesson (1993) assinala que ele não esgota as várias tendências

teóricas de análise.

Assim é que um grande número de estudiosos não se insere, de fato, em uma ou

outra categoria, mas, sim, em uma categoria intermediária, na medida em que a

adoção de uma postura não reducionista (cultura como variável) não implica

necessariamente conceber a cultura de forma metafórica. Em contrapartida, tomar a

cultura como metáfora restringe a organização a símbolos e significados,

desprezando-se as dimensões inerentes à concepção da organização como entidades

econômicas – condições materiais, ambiente externo, competição e performance,

entre outras - as quais não podem deixar de ser incluídas em qualquer análise cultu-

ral. (FERREIRA; ASMAR, 2002, p.3)

Esta categoria intermediária será considerada como mais adequada aos estudos ora realizados,

pois abarcam a perspectiva objetivista discutindo, por exemplo, as condições materiais que

tanto influenciam na cultura destas organizações, porém também subjetivista/interpretativista,

que dará conta de validar as experiências simbólicas e o ideário da organização ora estudada.

Sem a pretensão de esgotar as várias tendências teóricas de análise, o objetivo desta seção foi

realizar uma abordagem sobre o conceito de cultura e de cultura organizacional para dar su-

porte às discussões levantadas a seguir sobre a cultura das organizações que tem na capoeira o

seu mote de ação.

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3.3 COMPREENDENDO AS ORGANIZAÇÕES SOCIAIS, A GESTÃO SOCIAL E AS

PRÁTICAS ORGANIZACIONAIS

O século XX no Brasil é marcado pelo fortalecimento e expansão de um grande número de

organizações sociais voltadas para o trabalho com as minorias. Na década de 70, especifica-

mente, as associações civis, grupos ambientalistas e de defesa da população menos favorecida

economicamente, ganham força e destaque surgindo assim um grande número de Organiza-

ções Não-governamentais (ONG’s). Tais instituições estruturam um novo modelo de organi-

zação e gerenciamento de recursos, com vínculo principal instituído a partir da mobilização

civil, sob a base do voluntariado.

Neste capítulo procuraremos qualificar a compreensão sobre as organizações sociais, sua mis-

são, metas, características, limites e desafios, bem como entender sobre a gestão social e as

práticas organizacionais consolidadas no terceiro setor. Este referencial teórico nos auxiliará

na análise do caso escolhido que reuni características em torno das organizações sociais, da

capoeira e sua influência no modelo de gestão construído pela mesma.

Um dos primeiros desafios para se entender as organizações sociais enquanto campo de

conhecimento é a sua relação com a dispersão do seu objeto. Não há na academia um

consenso em relação a este tema, mas as discussões “aludem a uma suposta disciplina que tem

como objetos empíricos a organização e a gestão” (FISCHER, 2001, p. 127). Essa duplicidade

vem do próprio significado da palavra organização, que conforme dicionário:

Ato ou efeito de organizar (-se) 1. Composição, estrutura, inter-relacionamento

regular das partes que compõem o ser vivo. 2. Entidade que serve à realização de

ações de interesse social, político, administrativo, etc; instituição, órgãos,

organismos, sociedade. 2.1. Grupo de pessoas que se unem para um objetivo,

interesse ou trabalho em comum; associação. 3. Conjunto de normas e funções que

tem como objetivo propiciar à Administração de uma empresa, negócio, etc. 4.

Ordenação das partes de um todo; arrumação. O. das Nações Unidas DIR. INT.

PÚB. A mais ampla entidade mundial, criada em 1945 basicamente pelos países

vencedores da Segunda Guerra Mundial, cujo objetivo primordial de defesa da paz

[...] O. do Tratado do Atlântico Norte pacto firmado em 1949 pelos EUA, Canadá,

Turquia e países da Europa Ocidental [...] (HOUAISS, VILLAR, 2001, p. 2.079)

Tamanha são as formas de acepção para a referida palavra, o que demonstra o quão difícil

torna-se delimitá-la do ponto de vista conceitual e, de maneira análoga, estruturar-se para co-

lher os frutos de seu efetivo exercício. Sendo assim, avançamos trazendo a origem da palavra

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“organização”, o vocábulo em latin org᷄anun, que significa instrumento, engenho ou órgão e

remete a duas dimensões: uma verbal e outra substantiva (FRANÇA FILHO, 2004; BASTOS,

2004).

A dimensão verbal que reporta-se a ação de construir, ou seja, o ato ou efeito de organizar,

por exemplo, organização de um evento. Como verbo de ação traduz-se numa visão muito

usual da administração que a associa a um conjunto de atividades muito práticas voltadas para

a gestão, ou seja, “algo eminentemente prático” – de natureza técnica (FRANÇA FILHO,

2004, p. 120). Nesta dimensão, temos o exemplo das organizações de capoeira consolidadas

para promover a organização administrativa e burocrática institucional dos grupos de prati-

cantes desta arte-luta.

E a outra dimensão substantiva, ou seja, ao produto dessa ação, por exemplo: o governo

federativo, a Organização Mundial de Saúde (OMS), as Organizações Globo, etc. Na

produção do conhecimento, essa dimensão substantiva pode ser adjetivada de várias formas,

dependendo do sujeito que a caracteriza. Assim, a organização pode ser vista como um

sistema que existe em uma ordem social específica que se relaciona mais aos aspectos

simbólicos do trabalho, ou seja, um fenômeno social – de natureza simbólica (FRANÇA

FILHO, 2004).

Como exemplo desta dimensão substantiva tem-se as organizações de capoeira, onde o perfil

jurídico atualmente da maioria destas instituições, recém-saídas da informalidade, está enqua-

drado como associação, ou seja, uma organização social, sem fins lucrativos. Todavia, a for-

malização ainda é uma realidade da minoria (30%) dos grupos de capoeira conforme aponta

Mapeamento Internacional de Grupos de Capoeira, pesquisa realizada no ano de 2009, pelo

Escritório Internacional de Capoeira e Turismo da Secretaria de Turismo do estado da Bahia

(SETUR, 2009).

Seja como produto ou processo, o termo pode ser caracterizado de diversas maneiras,

dependendo da interpretação do sujeito que o caracteriza. Assim, o termo organização pode

tanto “designar as ações de construir algo como para descrever as características ou

qualidades de algo construído” (BASTOS, 2004, p. 64) e, consequentemente, essa diversidade

de significados se traduz em diferentes perspectivas conceituais e tentativas de se encontrar

uma definição para o fenômeno.

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Dentro da visão de cultura apresentada acima e defendida por Geertz (1989, p.24), enquanto

um “sistema entrelaçado de signos interpretáveis”, bem como, da abordagem conceitual em

torno da cultura organizacional, na perspectiva culturalista (BASTOS, 2004), destacamos as

organizações sociais enquanto espaço privilegiado, pois nestas estão associados diversos ele-

mentos (valores, crenças, comportamentos etc.) produzidos pela interpretação de seus atores

organizacionais e produtores de significados, que se relacionam de maneira plural, ambígua e

conflituosa, sem serem necessariamente extintos.

As Organizações “são sistemas artificiais, criadas pelo homem, que formalmente

regulamentam a colaboração entre seus membros, assim como os recursos técnicos

empregados, no sentido das finalidades e do propósito do sistema” (HELMUT, 1983, p. 13).

Elas são distintas dos outros grupos informais por voltarem suas ações para propósitos, em

longo prazo ou permanentes, objetivos e metas (ações com tempo e alcance definidos).

Quando adjetivadas de sociais, essas organizações passam a incorporar a idéia da utilidade

pública, dos fins beneficentes e assistenciais, com missão estatutária voltada para o interesse

comum, e ainda, pertencentes ao domínio do terceiro setor.

O Poder Executivo, através da lei federal n. 9.637, de 18.5.1998, qualifica enquanto

organizações sociais às pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, cujas

atividades sociais sejam dirigidas ao ensino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento

tecnológico, à proteção e preservação do meio ambiente, à cultura e à saúde, atendidos os

requisitos previstos nesse mesmo diploma (Em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9637.htm>. Acesso em: 30 novembro 2014.).

O objetivo declarado pelos autores da reforma administrativa5, com a criação da figura

das organizações sociais, foi encontrar mecanismos que permitissem ao Poder Público trans-

ferir algumas atividades exercidas pelo mesmo ao setor privado sem que fosse necessário a

devida concessão ou permissão. Inicia-se assim uma nova parceria, com a valorização do

chamado terceiro setor, ou seja, serviços de interesse público, mas que não necessitam ser

prestados pelos órgãos e entidades governamentais, desonerando-os do ponto de vista econô-

mico, burocrático e funcional.

5 Plano diretor da reforma do aparelho do Estado. Brasília: Ministério da Administração e Reforma do Estado -

MARE, 1995. Em: <http: www.jus.com.br/artigos/165/terceiro-setor>. Acesso em: 20 setembro 2014).

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Em seu estudo sobre a gestão de organizações, Roesch (2002) acrescenta ainda que a origem

dos termos organização não-lucrativas e organizações voluntárias se dá em meio as pesquisas

acadêmicas sobre o terceiro setor dentro da realidade de países industrializados, e que a de-

nominação de Organizações não-governamentais (ONGs), por sua vez, representam uma

espécie de ator emergente no desenvolvimento no cenário institucional, onde Estado e merca-

do estão inseridos.

Temos uma descrição do perfil adquirido por este tipo de organização na apresentação pro-

posta por Salamon e Anheier (1992). Os autores descrevem-na enquanto formal, ou seja,

institucionalizada; privada, ou seja, institucionalmente separada do governo; sem

distribuição de lucros, significando que embora possa acumular lucros, estes não podem

reverter aos donos ou diretores, mas sim financiar a missão da organização; auto-gerida, via

procedimentos internos, sem ser controlada por entidades externas e voluntária, ou seja,

envolvendo algum grau de participação voluntária, ou para o desenvolvimento de suas ativi-

dades, ou na sua gestão.

Estas características reunidas e agregadas ao trabalho no campo da cidadania, com tendência

ao assistencialismo, formação dos sujeitos para a criticidade, autonomia e criatividade,

demonstram grande capacidade na produção de mudanças nos espaços onde atuam (RUAS,

2013), e apresentam grande afinidade com o universo simbólico e filosófico trabalhados na

capoeira. Nesta afinidade encontra-se o motivo pelo qual tantos gestores da capoeira (mestres,

professores, etc.) busquem esta formatação jurídica que corrobora com as intenções da prática

e formação desta manifestação cultural.

Muitas variáveis têm sido consideradas na literatura tendo em vista estudos comparativos

internacionais, tais como: orientação (papel), foco setorial, nível de operações, prestação de

contas e ciclo de vida, que independente de não tratarem especificamente das organizações de

cunho social, revelam muitas características das mesmas, trazendo contribuições para o seu

entendimento.

Quanto à variável da orientação (papel) Vakil (1997 apud ROESCH, 2002) apresenta um mo-

delo classificatório referente aos setores que orientam suas atividades, ou o papel desempe-

nhado por estas organizações, resumido no quadro 3.

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Quadro 3. Classificação organizacional quanto à orientação / papel.

Setor Ação / Missão

1. Bem-estar Prover serviços a grupos específicos, baseados no modelo de caridade, p.ex.,

provisão de necessidades básicas para populações pobres, com frequência em

resposta a desastres naturais ou graves.

2. Desenvolvimento Melhorar a capacidade de uma comunidade de prover suas próprias necessidades

básicas (desenvolvimento sustentado, construção de capacidades).

Inclui sub-tipos:

2.1 Associações - onde os beneficiários são os próprios membros. Abrange

cooperativas e organizações informais;

2.2 Serviços - agem como intermediárias na provisão de serviços a outras

organizações ou à população em geral. Nesta categoria é essencial distinguir:

a) se há ou não pagamento em dinheiro para os bens ou serviços providos

(mercantilizado ou não-mercantilizado);

b) se a organização pode escolher (se possui ou não fundos suficientes) entre

cobrar ou não os seus serviços.

3. Proteção, defesa,

campanhas

Influenciar políticas ou o processo decisório relacionado a questões específicas, ou

construir apoio social entre organizações semelhantes, assim como da população

mais ampla, em torno destas questões.

4. Educação para o

desenvolvimento

Centram-se em educar os cidadãos, de países industrializados, sobre questões

importantes a respeito do desenvolvimento como ineqüidade global e dívida

externa.

5. Ação em rede

(networking)

Canalizar informações e prover assistência técnica ou de outros tipos a ONGs de

nível mais baixo ou a indivíduos (operam em níveis nacional ou regional).

6. Pesquisa Desenvolver pesquisa (especialmente participativa) como um meio legítimo de

adquirir conhecimento para subsidiar intervenções sociais.

Fonte: Elaborado pela autora

Quanto ao foco setorial, as organizações são classificadas a partir do setor ao qual estão liga-

das (quadro 4). Houve nos últimos anos grande expansão dos setores abrangidos por estas

organizações (cultura e recreação, habitação, assistência social, religião, associações profissi-

onais) que iniciaram suas ações nos setores de educação, agricultura e saúde.

Quadro 4. Classificação Internacional das Organizações Não-Lucrativas (INCPO)

Grupo 1 – Cultura e Recreação Grupo 7 – Direito, Advocacy e Política

1100 Cultura e artes

1200 Recreação

1300 Clubes de Serviços

7100 Organizações cívicas e de advocacy

7200 Direito e serviços legais

7300 Organizações políticas

Grupo 2 – Educação e Pesquisa Grupo 8 – Intermediários Filantrópicos

2100 Educação primária e secundária

2200 Educação superior

2300 Outras formas de educação

2400 Pesquisa

8100 Intermediários filantrópicos

Grupo 3 – Saúde Grupo 9 – Atividades Internacionais

3100 Hospitais e reabilitação

3200 Abrigos de idosos

3300 Saúde mental

3400 Outros serviços de saúde

9100 Atividades internacionais

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Grupo 4 – Serviços Sociais Grupo 10 - Religião

4100 Serviços sociais

4200 Emergência e refugiados

4300 Manutenção de renda

10100 Congregações e organizações religiosas

Grupo 5 – Meio Ambiente Grupo 11 – Associações Profissionais e Sindicatos

5100 Meio ambiente

5200 Animais

11100 Associações profissionais e sindicatos

Grupo 6 – Desenvolvimento e Habitação Grupo 12 – Não Classificados em Outros Grupos

6100 Desenvolvimento econômico, social e

comunitário

6200 Habitação

6300 Emprego e treinamento

12100 Não classificados em outros grupos

Fonte: Salamon and Anheier, 1992

Quanto ao nível de operações, as organizações são divididas em abrangência internacional

(organizações baseadas em países industrializados); nacional, regional (onde aponta maior

crescimento quantitativo e apresenta ações em rede e em serviços de proteção e defesa de di-

reitos) e comunitário, conforme quadro 5.

Quadro 5. Classificação organizacional quanto ao nível de Operações

Abrangência das operações

organizacionais

Internacional

Nacional

Regional

Comunitário

Fonte: Elaborado pela autora a partir de Vakil (1997).

Quanto à prestação de contas, os seus padrões são vinculados aos diferentes tipos de organi-

zações sociais, bem como ao seu grau de mercantilização dos produtos e serviços produzidos,

tamanho, liderança, estrutura organizacional, não esquecendo da contratação de serviços pelo

governo e doadores (VAKIL, 1997 apud ROESCH, 2002). A prestação de contas pode ser

classificada como múltipla, externa e interna conforme apresenta o quadro 6.

Quadro 6. Classificação organizacional quanto à prestação de contas.

Prestação de contas

organizacional

Interna Realizada para o Conselho ou membros da organização.

Externa Realizada para doadores ou governo, consumidores, e

outros externos à instituição.

Múltipla Realizada para ambos os públicos.

Fonte: Elaborado pela autora.

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Quanto ao ciclo de vida organizacional, os estudos publicados por Greiner (1972), sobre os

ciclos ou estágios da vida organizacional ainda servem de referência para trabalhos acadêmi-

cos na área, mesmo tendo-se passado tantos anos. Baseando-se nos fundamentos da psicolo-

gia, construiu um modelo de ciclo de vida e a partir daí constatou que a situação vivida por

uma organização é fruto de suas ações anteriores, de sua história de vida. Afirmou ainda que o

término de cada estágio deste ciclo é marcado por uma crise que, caso seja transposta, deter-

minará as características da etapa posterior.

Greiner (1975 apud VASCONCELOS, 2009) propõe uma divisão na vida organizacional

composta por 5 etapas de evolução ou crescimento que criam ou proporcionam etapas de re-

volução ou crise como marco para a transição entre estes estágios. O quadro 7 apresenta cada

etapa e suas respectivas características.

Quadro 7. Classificação organizacional quanto ao ciclo de vida

Etapas Características Crise

1. Criatividade

Marcada exclusivamente foco na produção e

venda, e à medida que a organização conquis-

ta mais mercados, aumenta a produção e o

número de empregados, surge a primeira crise.

Busca pela Liderança, a informalidade

deve dar vez a controles administrativos.

O empreendedor não pode mais dedicar-

se a fazer e vender

2. Direção

Começa-se a delinear uma estrutura

organizacional com alguma especialização

(formalismo, padronização, rotina,

capacitação, etc.) e a diferença principal em

termos de estrutura é a separação entre

comercialização e produção.

Busca pela autonomia, enquanto fator de

sobrevivência.

3. Delegação

O empreendedor está cada vez mais longe do

nível operacional. Etapa marcada por mais

formalização, descentralização como pretexto

para o crescimento, mais autonomia conforme

anunciava a crise da etapa anterior.

Necessidade de controle, com setores

cada vez mais autônomos e, por vezes,

dissonantes. A questão crucial é se vale

ou não a pena centralizar de novo as

decisões na alta direção? Diante da

grande estrutura em que se encontra a

organização, não há outra saída retomar

o controle das ações, sem centralizar.

4. Coordenação

Marcada pelo planejamento necessário ao alto

nível de complexidade adquirida pela

organização. Com setores descentralizados,

autônomos, com recursos próprios e

destinação de verba, surge o papel da

administração central, com programas

sofisticados de controle, que em longo prazo,

tornam-se cada vez mais burocráticos em face

ao tamanho e complexidade da organização.

Crise marcada pela burocracia.

5. Colaboração Etapa que se funda na necessidade de estabe-

lecer sistemas de parcerias entre as equipes e

Equilíbrio organizacional.

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seus gestores, revendo os valores na gestão de

equipes para que se possa aumentar a produti-

vidade da organização, tão saturada por es-

quemas de trabalho intensivos e desgastantes.

Ou seja, a saída da crise promovida pela buro-

cracia está numa ação coletiva, harmonizando

as relações de controle intenso sobre as bases

operacionais, retomando as relações de credi-

bilidade e confiança na equipe para que desta

retomada se origine a saída e equilíbrio orga-

nizacional.

Fonte: Elaborado pela autora a partir de Greiner, 1975.

Partindo para a análise específica das organizações sociais, Tenório (2004) nos apresenta al-

gumas características do gerenciamento destas entidades, estudo feito a partir de série de en-

trevistas realizadas com dirigentes de ONGs do Rio de Janeiro. São elas:

a) A motivação para o trabalho realizado vem de um ideal compartilhado pelos membros

da organização. Neste aspecto os ideais motivadores para o trabalho no campo social

estão quase sempre vinculados ao auxílio na condição de sobrevivência – acesso à

alimentação e saúde, bem como de qualidade de vida – educação, lazer, etc, condições

básicas para o desenvolvimento humano e nem sempre garantidas pelo estado à toda

população;

b) O planejamento de suas atividades está sujeito às fontes de financiamento e efetuado

para um período de três anos. Isso acontece em virtude da mesma precisar arcar com

as despesas oriundas do seu trabalho social e sua condição econômica caracterizada

pelos fins não lucrativos serem um impedimento para obtenção de recursos próprios, o

que gera na maioria das vezes a dependência por financiamentos externos e todas as

suas condicionantes (planejamento orçamentário para três anos, adequação à política

institucional dos financiadores, etc.);

c) As ONGs nem sempre tem uma idéia clara de sua missão, de forma a orientar suas

ações, objetivos, metas e avaliações. Na verdade, existem dois pontos: primeiro acre-

ditamos que esta missão exista inicialmente mas sofra mudanças substanciais a partir

do tempo, mudanças através do contexto econômico, político, cultural, etc; segundo,

dentro da organização quase nunca há a preocupação de difundir a missão institucional

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amplamente para os colaboradores que participam de suas atividades e isso gera gran-

des reflexos na orientação de seus objetivos, metas e avaliações;

d) Com a ânsia de acolher as demandas sociais, novos projetos e demandas são ativados

tendo como determinante exclusivo a disponibilidade da equipe técnica, o que tem

ocasionado desgaste grande por excesso de trabalho, sem a possibilidade de avaliar o

retorno para a organização. É a “veia” altruísta e solidária sobrepondo-se a condição

efetiva de trabalho da equipe institucional;

e) Os membros das ONGs pouco sistematizam os dados para efeito de avaliação do de-

sempenho gerencial e isso pouco é entendido pelas organizações enquanto obstáculos

ao seu desenvolvimento;

f) As organizações primam pela informalidade, praticamente sem normas e procedimen-

tos escritos, o que as torna ágeis, mas dificulta sua gestão, porque as funções e as res-

ponsabilidades de seu pessoal não são claramente definidas;

g) O tipo de trabalho que realizam apresenta dificuldade para ser avaliado, seja por seu

efeito de longo prazo, seja por seu caráter mais qualitativo;

h) O produto de seu trabalho, em geral, não é vendido, o que torna sua produção depen-

dente de doações;

Este levantamento teórico sobre as características das organizações, sociais ou não, traduz o

quão complexo torna-se conceber e gerenciar tais organismos, dada às inúmeras variáveis

(jurídicas, contábeis, recursos humanos, mercado etc.) que influenciam em sua gestão.

No processo de formalização dos grupos sociais, estas variáveis colocam-se como verdadeiros

desafios lançados na gestão das futuras organizações. Após a decisão de adquirir personalida-

de jurídica, esses grupos enfrentam diversas etapas: análise do melhor enquadramento jurídi-

co, contratação de assessoria contábil e jurídica, pagamentos de taxas de impostos e tributos,

processo da prestação de contas, contratação e pagamento de pessoal, captação de recursos

financeiros, dentre outros tantos passos extremamente burocráticos, porém essenciais à rotina

organizacional, e que obrigam o núcleo gestor a um posicionamento sistemático e regular

frente a estas novas demandas adjuntas à missão estatutária propriamente dita.

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Muitos são os desafios encontrados pelas organizações sociais na sua trajetória de desenvol-

vimento. Estes desafios se dão em vários campos (contábil, abrangência, publicidade, relações

institucionais, estrutura etc.) e subordinam a instituição às crises sazonais necessárias a sua

evolução, impulsionando a mesma no enfrentamento das novas demandas.

Em estudo realizado com ONG’s brasileiras, Tenório (2004) levantou alguns desafios vividos

pelas mesmas a partir da década de 90:

Migrar do micro para macro: não limitar suas ações a microrregiões, contribuindo com

sua experiência para o desenvolvimento de outras regiões (nacionais e/ou internacio-

nais);

Migrar do privado para o público: dar visibilidade e transparência às suas ações, di-

vulgando ao grande público o que são, por que lutam, o que propõem?

Passar da resistência à proposta: transpor a ideia de ação contrária ao Estado e à mar-

gem do mercado para uma ação participante, propondo ações entre os três setores que

visem às maiorias menos abastadas e necessitadas de apoio;

A partir da compreensão do campo conceitual das organizações sociais, seu ativismo social,

seus limites e desafios na ampliação para públicos cada vez mais distantes e na parceria junto

ao governo e o mercado, procuraremos compreender qual a forma de gestão que mais se adap-

ta a este perfil organizacional, que estruturam suas ações reinterando as suas respectivas mis-

sões institucionais.

Debruçar-se em torno da gestão, e em especial a gestão social, é caminho obrigatório na bus-

ca por entender o universo sistêmico, filosófico e estrutural das ONG’s, até por que uma ter-

minologia e campo tão generalista quanto é a gestão, só ganha sentido quando

contextualizado, em sua materialidade. Este sentido é dado a partir das questões nascidas da

intervenção social - seja ela em qualquer dos planos (social, político, das redes e fóruns,

ações, etc) porque fazer análise de um contexto é referenciar esta análise ao real.

Em seu significado dicionarizado: s.f. Ação de gerir. / Gerência, administração ou s.f. gestão é

um conjunto de princípios, normas e funções que têm por finalidade ordenar a estrutura e

funcionamento de uma organização (RUAS, 2011) que segue afirmando:

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[...] i) Refere-se ao ato de estabelecer procedimentos sistêmicos, que são

estabelecidos, por unidade com delegação para supervisionar, avaliar, dirigir,

planejar e decidir sobre atos na dimensão política, econômica e organizacional. ii)

Refere-se também à condução técnico-política, combinando exercício de poder

derivado de delegação pública para fazer uso adequado dos recursos disponíveis e

conhecimento técnico-especializado. Portanto, é característico da gestão sua

vinculação aos processos decisórios. (RUAS, 2011, p. 2).

Quanto às formas de gestão organizacional o autor apresenta a gestão privada, ou estratégica,

a gestão pública e a gestão social. Na primeira delas, a gestão privada, Tenório (1998) afirma

que

[...] é um tipo de ação social utilitarista, fundada no cálculo de meios e fins e

implementada através da interação de duas ou mais pessoas, na qual uma delas tem

autoridade formal sobre a(s) outra(s). [...] É uma combinação de competência

técnica com atribuição hierárquica, o que produz a substância do comportamento

tecnocrático. Por comportamento tecnocrático, entendemos toda ação social

implementada sob a hegemonia do poder técnico ou tecnoburocrático, que se

manifesta tanto no setor público quanto no privado, fenômeno comum às sociedades

contemporâneas. (TENÓRIO, 1998, p.14)

Neste tipo de gestão a “finalidade econômico-mercantil da ação organizacional condiciona

sua racionalidade técnica” (FRANÇA FILHO, 2008) onde todas as tomadas de decisões, me-

tas e objetivos institucionais serão pautadas pelo estrito cálculo das consequências desta ação

estratégica. É a supremacia da finalidade econômica, estritamente mercantil, a frente do inte-

resse comum (cultural, político, assistencial, etc.).

Já a gestão pública, entendida enquanto o modelo de gestão aplicada no âmbito das institui-

ções públicas e suas variadas instâncias tem natureza de objetivo diferente da gestão privada,

pois nesta o alvo é o “bem comum”, mesmo encontrando, na prática, tantos casos de apropria-

ção indevida do bem público. Com relação à forma de operacionalizar a gestão a mesma se

aproxima da gestão privada, utilizando-se da racionalidade técnica, instrumental, na obtenção

de resultados sistematicamente planejados.

Por último vem à gestão social que não está diretamente relacionada nem ao âmbito estatal,

nem ao mercadológico, apesar de travar contínua relação com estes dois ambientes societais

quando da busca por sustentabilidade de suas ações. A gestão social se aproxima teoricamente

da gestão pública pelo interesse ou bem comum, tendo uma ação pública por ser ação imple-

mentada pela sociedade civil, mas não considerada estatal.

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“A gestão social se opõe à gestão privada ou estratégica, quando tenta substituir a gestão tec-

noburocrática, monológica, por um gerenciamento mais participativo, dialógico, onde o pro-

cesso decisório é exercido por meio de diferentes sujeitos sociais” (TENÓRIO, 1998, p.16), e

não imposto de cima para baixo sem a consciência e consentimento dos sujeitos participantes

da gestão. Nesta, é validada a racionalidade comunicativa ao invés da instrumental e técnica,

onde a intenção da gestão é partilhada por todos, a escuta e participação no processo decisório

é garantida, e sua validade vem do consentimento e aprovação de todos os sujeitos sociais

envolvidos na ação gerencial. Um questionamento cabível é a efetiva viabilidade de se institu-

ir tais dinâmicas de gestão, quando encontramos tantas diversidades compondo a mesma vida

organizacional, e que nem sempre tornam possível tal harmonia e convergência diante de to-

dos os sujeitos sociais inseridos neste universo.

Descrevendo ainda a gestão social, a mesma seria definida primeiramente pela sua finalidade

(no social), propondo uma inovação significativa para a disciplina administrativa, ao tratar de

um ideal de gestão que não se orienta prioritariamente para uma finalidade econômica, o que

contradiz inclusive a tradição de desenvolvimento das técnicas e metodologias gerenciais em

administração (FRANÇA FILHO, 2008).

A finalidade econômica, nesta forma de gestão, “aparece apenas como um meio para a reali-

zação dos fins sociais, que podem definir-se também em termos culturais (de promoção, res-

gate ou afirmação identitária etc.), políticos (no plano de uma luta por direitos etc.) ou ecoló-

gicos (em termos de preservação e educação ambiental etc.), a depender do campo de atuação

da organização”. (FRANÇA FILHO, 2007, p.05).

É por este perfil voltado ao social, à escuta qualificada e à construção coletiva como meio

para seu crescimento que o desempenho gerencial esperado das organizações sociais é o prati-

cado na gestão social em vez do praticado pela gestão estratégica, neutralizando as

consequências oriundas desse último modelo.

A gestão social vem propor desse modo que, para além do Estado, a gestão das demandas e

necessidade do social possa ser pensada e atendida via a própria sociedade, através das suas

mais diversas formas e mecanismos de auto-organização, em especial através do fenômeno

associativo. Como diz França Filho (2007): “Este é o espaço próprio da chamada sociedade

civil, portanto uma esfera pública de ação que não é estatal”.

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A administração e, em especial, o estudo em gestão social, tem se debruçado de maneira

especial aos estudos organizacionais, suas características e peculiaridades, a fim de produzir

ferramentas de gestão mais compatíveis com a diversidade deste campo6, sem que assim

incorram no erro da homogeneização de padrões e técnicas que não serão adaptáveis às

múltiplas realidades do campo social ou que as obriguem a tencionar negativamente seus

projetos políticos frente a tão almejada sustentabilidade, rendendo-as aos projetos de difusão

de empresas patrocinadoras.

Como o conhecimento se constrói no ato relacional, com base em uma conversação que

envolve compartilhamento de (con)texto e negociação de significados, torna-se conceitual e

operacionalmente inadequado assumir que as pessoas precisam ser organizadas por algo que

lhes é estranho (HOSKING, DACHLER and GERGEN, 1995).

Neste sentido consideramos pertinente a intenção dos estudiosos desta área (FISCHER, 2001;

TENÓRIO, 1998; FRANÇA FILHO, 2004) em transformar a gestão em uma abordagem cada

vez mais situacional e contextualizada, excluindo a hipótese de exercê-la dissociada do plano

político institucional das organizações. É provável que este posicionamento traga

contribuições significativas para organizações sociais, como as da capoeira, que precisam

dialogar com o universo da administração, mas também respeitar e não negligenciar os seus

princípios fundantes, alicerçados na sua matriz africana que pregam pela solidariedade,

respeito, ancestralidade, memória, oralidade etc., valores distintos dos pregados pela

perspectiva mercantil que orienta a gestão organizacional.

A expansão do Terceiro Setor, junto às conquistas advindas da regulamentação para constitui-

ção de parcerias entre os três setores, provocou o aumento da busca competitiva por recursos,

as obrigações legais, as exigências dos financiadores e a complexidade da gestão das organi-

zações, o que o culminou no caminho da profissionalização (FRAZÃO; RAMOS, 2006).

Este movimento de profissionalização das organizações sociais tem-se concentrado no aper-

feiçoamento gerencial e técnico para vencer o desafio de desenvolver uma estrutura de gestão

que contemple a institucionalização, o desenvolvimento de ferramentas gerenciais e a susten-

tabilidade (TENÓRIO, 1997; MARÇON; ESCRIVÃO FILHO, 2001).

6 Campo neste caso refere-se à noção de campo institucional.

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Nesse sentido, Falconer (1999) considera que as iniciativas de aperfeiçoamento gerencial es-

tão revolucionando o Terceiro Setor no Brasil. Nesses termos, entidades “[...] organizam-se,

redefinem sua orientação, seus processos, serviços ou atividades segundo critérios de excelên-

cia gerencial, adquirem técnicas de planejamento, acompanhamento e avaliação de processo e

resultado" (FALCONER, 1999, p. 11).

Hofstede e colaboradores (1990), apoiados na ideia de que os elementos da cultura organiza-

cional diferem quanto ao grau de visibilidade e acesso, propõem um modelo baseado na exis-

tência de dois elementos: práticas e valores. As práticas organizacionais representam a ca-

mada mais externa e visível da cultura enquanto na camada mais subjetiva e interna, configu-

rando o núcleo da cultura, estão os valores. Elas seriam, portanto, o elemento revelador da

cultura organizacional, reflexo dos valores subjacentes à cultura e caracterizadas como pa-

drões presentes nas diferentes atividades executadas em uma organização. (FERREIRA; AS-

SMAR, 2004).

Nesta seção procuraremos compreender sobre as práticas organizacionais, elegendo para tanto

algumas categorias de análise, tais como: estrutura, ambiente e ritual.

A estrutura organizacional, “[...] representa o aspecto tido como mais concretos da vida

organizacional e que permitem enxergar a organização como entidade, algo duradouro e ex-

terno às pessoas que a constituem. [...] Ela reflete um processo por meio do qual a autoridade

é distribuída, as atividades são especificadas e o sistema de comunicação é delineado. [...] Ela

é uma cadeia relativamente estável de ligação entre pessoas e o trabalho que constituem a

organização” (LOIOLA, 2004, p.91-93).

A estrutura das organizações, também denominada de arquitetura organizacional, está materi-

alizada em seus organogramas, os quais definem a divisão de trabalho e da autoridade e o

sistema de comunicação utilizado.

Howard (2000) apresenta três componentes-chave na estrutura organizacional, são eles: o

hardware, o pessoal e o software. Alguns destes têm sua terminologia associada ao campo da

informática a fim de torná-los didaticamente mais compreensível e aproximar tais componen-

tes do universo de significação.

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De origem, os termos associados apresentam-se com a seguinte significação: o hardware re-

presenta a parte física de um computador, são seus componentes eletrônicos, como por exem-

plo, circuitos de fios e luz, placas, utensílios, correntes, e qualquer outro material necessário

para fazer com o que computador funcionar; e o software, uma sequência de instruções escri-

tas para serem interpretadas pelo computador com o objetivo de executar tarefas específicas,

são os programas que se utilizam do hardware para funcionar.

Enquanto componente-chave da estrutura organizacional, o hardware seria suas dimensões e

elementos desta estrutura, tais como seus sistemas de planejamento, mecanismos de controle,

sistemas de mediação, relacionamentos de subordinação, sistemas de recompensa, etc.; já o

software seria suas redes e práticas informais que tem como função unir as pessoas, são seus

sistemas de valores e as culturas organizacionais. Por último, teríamos o terceiro componente-

chave, o pessoal, que compreende as habilidades cognitivas, interpessoais e emocionais, para

a efetividade no trabalho.

No processo de organização, a divisão e a coordenação correspondem às duas faces necessá-

rias a completude de tal tarefa, são, portanto, mecanismos envolvidos na estruturação organi-

zacional (quadro 8). A necessidade de organizar nasce do fato de que o trabalho precisa ser

dividido, pela sua complexidade, entre as pessoas. Com essa divisão, emerge a necessidade de

que as ações das pessoas sejam coordenadas ou articuladas de modo a gerar o produto final,

resultado da ação coletiva.

Loiola (2004) explica que a divisão/diferenciação, portanto precede a etapa da coordenação

no ato de organizar, e promove a diferenciação das tarefas, individualizando-as (especializa-

ção) e reunindo-as por critérios pré-estabelecidos (departamentalização). A divisão ou dife-

renciação prevê enquanto etapas a especialização e a departamentalização, levantando cada

uma dessas questões centrais a serem analisadas e respondidas. Na especialização, por exem-

plo, questiona-se em que nível as tarefas precisam ser subdivididas em trabalho separado, e na

departamentalização, em que base os trabalhos serão agrupados?

A especialização pode ser de dois tipos: horizontal e vertical, conforme veremos no quadro 8.

Na especialização horizontal o trabalho executado em cada nível hierárquico de uma organi-

zação é dividido em trabalhos discretos e comuns, a exemplo da departamentalização funcio-

nal onde teremos especialistas em determinada função reunidos em uma mesma área em bus-

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ca da eficiência. Para além da função agregando os profissionais num mesmo departamento,

esse processo pode se dar também quanto ao produto, clientela, território, dentre outros

(LOIOLA, 2004).

Já a especialização vertical diz respeito ao grau ao qual a organização está dividida em dife-

rentes níveis hierárquicos, e ao grau de controle – pouco ou muito - ao qual o trabalho é sub-

metido. As organizações superespecializadas têm apresentado um grande desperdício por ne-

gligenciarem o que a administração dispõe como recurso mais valioso: as complexas e múlti-

plas capacidades de seu pessoal, bem como problemas de comunicação e coordenação, apesar

de apresentarem bons resultados em termos de produtividade.

A coordenação ou integração, segunda face do processo de estruturação organizacional vem,

por sua vez, cumprir a demanda de integrar as diversas atividades dos inúmeros setores, de-

partamentos ou segmentos implantados a partir do processo de divisão estabelecido na primei-

ra fase do ato de organizar.

Segundo Loiola (2004) alguns mecanismos são utilizados para estabelecer a coordenação den-

tro das organizações, são eles: ajuste mútuo, processo simples que tem como marca a comu-

nicação interpessoal, é realizado a partir da troca de informações entre colegas que estabelece

quem e como deve realizar o trabalho; supervisão direta, que envolve a definição de uma

pessoa enquanto supervisor que ficará diretamente responsável pelo trabalho de um grupo. O

mesmo terá autoridade hierárquica para decidir e designar o quê, quem e como serão feitas as

tarefas em questão, emitindo ordens aos seus subordinados.

Ao se tratar desse mecanismo da coordenação, reportamo-nos diretamente à três outros con-

ceitos da estrutura organizacional: a hierarquia, a centralização e a esfera ou amplitude de

controle, descendentes de uma especialização vertical. A hierarquia e, consequentemente, a

cadeia de comando define a quem cada indivíduo se reporta ou as relações de supervisão exis-

tentes, e encontra-se explicitado no organograma da organização. A centralização, por sua

vez, defini a localização da autoridade para a tomada de decisão. Ela pode promover tanto a

concentração da decisão nas mãos da cúpula da empresa, quanto pode diminuir o tempo ne-

cessário a se tomar uma decisão já que a submete a um número limitado de pessoas envolvi-

das no processo decisório. E a amplitude de controle que defini qual a área de abrangência

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de determinadas supervisões, com o número de subordinados que um gerente pode coordenar

com eficiência e eficácia (LOIOLA, 2004).

Fonte: elaborado pela autora

De um lado, percebe-se que grandes empresas têm muita afinidade por processos centraliza-

dos, vendo o poder decisório nas mãos de poucos, por outro, as organizações mais modernas

têm se voltado para a descentralização enquanto caminho para adquirir mais motivação dos

funcionários, que se sentem participantes do processo decisório da empresa; mais informações

por parte dos funcionários para compor tais processos e, ainda, mais flexibilidade necessária

em tais negociações.

Por último temos a padronização que envolve o planejamento e a implementação de padrões

e procedimentos que controlam o desempenho do trabalho. Ela pode se dá pelo processo de

trabalho, habilidades, normas e resultados.

Dentre os diversos sistemas de classificação dos tipos de estruturas organizacionais (quadro

9), trataremos de três grandes categorias apontadas por Loiola (2004) e que definem modelos

historicamente construídos e que tomam como ponto central o sistema burocrático, são elas:

pré-burocráticas, burocráticas e pós-burocráticas.

As organizações pré-burocráticas apresentam estruturas relativamente simples, enxutas ou

planas, nas quais todas as pessoas se reportam diretamente ao chefe gerando agilidade no pro-

cesso decisório da instituição. Loiola (2004, p.100) aponta as seguintes características para tal

tipo de organização:

- São pouco complexas, com baixa especialização ou diferenciação, baixo grau de departa-

mentalização;

1) Divisão/Diferenciação:

Especialização: Horizontal e Vertical

Departamentalização

2) Coordenação/Integração:

Ajuste mútuo

Supervisão direta: Hierarquia, centralização e amplitude de controle.

Padronização

Quadro 8. Mecanismos envolvidos no processo de estruturação da organização

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- Tem pouca formalização;

- Possui ampla esfera de controle;

- A autoridade é concentrada numa única pessoa;

Este tipo prevalece em empresas em fase inicial, cuja estrutura é simples, sem tantos profissi-

onais especializados, tendo geralmente perfil de natureza familiar. E neste último caso, o que

seria uma empresa familiar?

Há múltiplas respostas para esta pergunta, o que reflete um grau de discordância re-

lativamente elevado entre os estudiosos desse fenômeno. Em meio a esta pluralida-

de, há, todavia, um relativo consenso em torno da ideia de que a empresa familiar

caracteriza-se, de uma maneira geral, inter-relação e combinação complexa entre a

família e a identidade da empresa [...] fortemente identificada com uma família, por

pelo menos, duas gerações, na qual se verifica ainda uma influência recíproca entre

suas políticas, interesses e objetivos. (LOIOLA, 2004, p.100)

A burocracia se apoia na formalização do comportamento para alcançar a coordenação, por-

tanto, organizações burocráticas têm como perfil as estruturas rígidas, superespecializado

vertical e horizontalmente, impessoalidade, grande departamentalização, com autoridade e

hierarquia bem definidas. São ainda formatos organizacionais deste tipo a burocracia funcio-

nal, a divisional e a estrutura matricial.

Na burocracia funcional, as unidades e posições da organização são definidas a partir das

atividades especializadas executadas por grupos de trabalhadores, a exemplo das empresas

com um único produto final onde os departamentos são divididos em recursos humanos, en-

genharia, produção, finanças etc, permitindo a clara identificação das responsabilidades de

cada setor. Para tanto este formato necessita de ambiente estável e previsível, porte pequeno à

médio, função e postos de trabalho podem ser agrupados de maneira satisfatória em áreas fun-

cionais.

A burocracia divisional normalmente origina-se numa empresa com estrutura inicial funcio-

nal, e se impõe a partir do crescimento e diversificação de seus produtos passa a necessitar de

ambientes distintos e características tecnológicas diversas, criando assim departamentos espe-

cíficos para cada produto permitindo a lida com seu mercado específico. Cada unidade desen-

volve, produz e comercializa os seus próprios bens e produtos, mas mantém ainda o desenho

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funcional no interior das divisões. O grande desafio deste formato é lidar com coordenação

destas atividades.

Já na estrutura matricial, ou integrada, são combinados os dois formatos acima apontados,

funcional e divisional, visando aproveitar os pontos fortes de cada um tendo assim pessoas

participando de grupos por função e por produtos, projetos ou divisões (LOIOLA, 2004). Esse

arranjo matricial tem como características o fato de romper com o princípio de unidade de

comando tão central na estrutura burocrática funcional, estando o empregado subordinada a

duas chefias (função e projeto), dupla cadeia de comando; a lida com grupos flexíveis de in-

divíduos, arranjos montados em favor de projetos e programas da organização; e o ampliado

grau de descentralização ao trabalhar com maior autonomia e responsabilidade para os gru-

pos. Representa, portanto tentativa de romper com as rígidas e pesadas estruturas burocráticas,

ampliando a capacidade de coordenação quando a organização dispõe de muitos e complexos

projetos interdependentes para desenvolver; facilita a alocação dos especialistas, valorizando

suas competências ao máximo, bem como garante maior flexibilidade e capacidade adaptativa

à organização (LOIOLA, 2004, p.104).

Por fim, as estruturas pós-burocrática nascem da crise vivida pelas organizações de estrutu-

ra burocrática sob a necessidade de contrapor a utilização demasiada dos seus mecanismos

burocráticos tais como: padronização, centralização, especialização, dentre outros, configu-

rando assim um novo modelo de estrutura organizacional que compartilhavam de diversas

características em comum.

Essas novas estruturas organizacionais, ora denominadas de pós-burocráticas, apresentavam

arquitetura mais horizontalizada que as anteriores; estimulam o empoderamento das pessoas;

sobrelevam a natureza dinâmica das estruturas organizacionais; endossam a importância das

competências organizacionais; e reconhecem no conhecimento a mola mestra do sucesso or-

ganizacional.

São formatos oriundos das estruturas organizacionais pós-burocráticas as organizações em

rede e as virtuais. As primeiras, também denominadas organizações modulares, tem sido

utilizada como alternativa para estruturar organizações com maior flexibilidade, descentrali-

zação e habilidade para articular diferentes atores sociais. Segundo Loiola (2004) as redes têm

fundamentação na sua arquitetura social, diferente do que se chama de estrutura, compreen-

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dendo os mecanismos pelos quais as interações e as informações fluem dentro da rede, não

implicando em harmonia absoluta entre os membros da rede, mas sim, em maturidade para

lidar e resolver os conflitos entre os mesmos.

Dentre as características marcantes da organização em rede está o desenho ou formato hori-

zontal representando sua arquitetura que, ao contrário das organizações burocráticas cujo

formato é piramidal e apresenta, na direção do topo, menor número de integrantes e maior

poder decisório e controle, apresentam vínculos horizontais, criando uma malha de múltiplos

fios que cresce para todos os lados, ou seja, “uma comunidade de agentes atuando para a rea-

lização de uma meta comum, o que requer trabalho cooperativo e participativo“ (LOIOLA,

2004, p.107). A união desta malha se dá pelos vínculos de confiança entre os seus elementos.

As vantagens apresentadas por essa estrutura, ou melhor, arquitetura social seriam a maior

agilidade e rapidez; menor necessidade de capital; custos fixos mais baixos; maior capacidade

empreendedora e maior capacidade de absorver tecnologia externa. Uma desvantagem é a

“vulnerabilidade a concorrência dos seus fornecedores; menor controle sobre sua produção;

risco de perder a exclusividade na tecnologia de projeto e de fabricação; menor garantia de

fornecimento; menor capacidade de manter linhas de produtos que não sejam lucrativas e re-

sultados mais voláteis” (LOIOLA, 2004, p.107).

O outro tipo de organização pós-burocrática são as organizações virtuais, um tipo de rede

organizacional que possui sua rede de fornecedores e parceiros dispersos geograficamente e

conectada pela tecnologia da informação e da computação. Tem estrutura leve e seus proces-

sos decisórios acontecem de forma horizontal. O sentido do virtual se dá pela “invisibilidade”

cada vez maior do trabalho, onde o manuseio dos objetos e materiais é realizado por meio

eletrônico e não presencial.

Porém não há uma só designação para o significado de organização virtual. Para Strausak

(apud LOIOLA, 2004, p.107), esta pode ser entendida como: 1) organização virtual pelo uso

de tecnologias da informação e comunicação enquanto elemento central em lugar da relação

presencial a fim de romper barreiras do tempo, espaço e unidade; ou 2) organização virtual

por seu caráter temporário onde as empresas entrelaçadas na rede se articulam em torno de um

objetivo para ganhar vantagem competitiva, pois somam as competências centrais de cada

participante.

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Reúne enquanto características tecnologia, excelência, oportunismo, confiança e ausência de

limites. A tecnologia se dá através de uma rede de computadores conectados; a excelência é

garantida pela reunião das competências centrais de cada parceiro, criando assim níveis ele-

vados de desempenho; o oportunismo é o motivo de sua formação e desfecho; a confiança

estabelecida pelos membros que se aliam pela necessidade uns dos outros para atingir seus

objetivos e a ausência de limites por estabelecerem parcerias virtuais com fornecedores, com-

petidores e consumidores, fugindo ao formato organizacional tradicional.

Quadro 9. Tipos de estrutura organizacional

TIPOS

Dimensões Estruturas Pré-

burocraticas Estruturas burocráticas Estruturas pós-burocráticas

Indiferenciada

simples Funcional Divisional Matricial Redes Virtuais

Mecanismos de

coordenação: ajuste

mútuo

Alto Baixo Baixo

Alto (nas

camadas

superiores)

Alto, secun-

dado por rede

de computa-

dores. proces-

samento de

informações

via computa-

dor substitui

hierarquia.

Alto, secun-

dado por rede

de computa-

dores. proces-

samento de

informações

via computa-

dor substitui

hierarquia.

Mecanismos de

coordenação:

supervisão direta

Baixo Médio Médio

Alto (nas

camadas

inferiores)

Ausente Ausente

Mecanismos de

coordenação:

padronização

Baixa Alta Alta

Alto (abaixo

das camadas

superiores)

Média Baixa

Formalização Baixa Alta Alta Alta (idem

anterior)

Vertical e

horizontal Baixa

Especialização Ausente Alta Alta Alta Polivalente Alta

Departamentalização

funcional Ausente Alta Ausente Alta Baixa

Alta – cada

departaemnto

é quase uma

empresa auto-

noma.

Departamentalização

divisional Ausente Ausente Alta Alta Baixíssima Ausente

Centralização Alta Alta Baixa

Média

Baixa (entre

gerentes da

matriz)

Baixíssima Baixa

Descentralização

Alta Baixa

Alta no nível

dos gerentes

da matriz

Altíssima Altíssima

Fonte: LOIOLA, 2004, p. 109

Iniciando a interpretação sobre o ambiente organizacional, ao contrário do que se imagina as

organizações não existem em um vácuo social, elas são sistemas abertos, e não fechados, e é

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nesta característica que se estabelecem as relações de dentro e fora da organização. Faremos a

seguir uma abordagem teórica sobre o ambiente organizacional, sua tipologia, modelos e di-

mensões resumidas no quadro 10, a fim de podermos analisar a organização em estudo.

A literatura aponta dois tipos de ambientes que circundam a organização, o ambiente geral

representado por tudo o que existe fora da organização, que não oferece impacto direto a

mesma, senão por influência indireta; e o ambiente organizacional específico ou ambiente de

tarefa, representado por tudo que, mesmo fora da organização, oferece influência direta, no

todo ou em parte (LOIOLA, 2004).

O ambiente organizacional específico está associado aos domínios ambiental, representado

pelo nicho organizacional, ou seja, o território que uma organização demarca para si mesma

em relação a sua atuação (produtos, serviços e mercados), e “de tarefa”, que são todos os

setores com os quais a organização interage diretamente, oferecendo impacto direto na

capacidade que a organização tem de alcançar seus objetivos.

Quando analisamos as relações entre a organização e o ambiente, dois modelos se apresentam

segundo Loiola (2004), o primeiro deles é tradicional e denominado modelo de acionistas e o

segundo é o modelo emergente dos “interessados ou stakeholders”. O primeiro modelo tem

perfil contingencialista e tem seu ambiente circunscritos à uma força geral e externa, como

um conjunto de pressões técnicas e econômicas que influenciam a organização, e com as

quais ela deve lidar cotidianamente para se manter funcionando.

Mas é no segundo modelo, interessados ou stakeholders, que pautaremos a análise da rela-

ção entre a organização em estudo e o ambiente ao seu redor. Este é um modelo ampliado,

representado por qualquer grupo ou pessoa que possa afetar ou ser afetado pela organização.

Este modelo incorpora para além dos acionistas, em contínuo destaque, uma relação vasta de

outros interessados que não somente servem para enriquecerem os acionistas da organização,

mas também mantém interesses próprios e legítimos para com a empresa, a exemplo dos fun-

cionários, consumidores, comunidade local e outros públicos importantes. Neste modelo re-

toma-se o conceito de organização enquanto uma unidade social entrelaçada em uma comple-

xa rede de influências e trocas (LOIOLA, 2004).

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São apontadas ainda pela literatura (LOIOLA, 2004) duas principais dimensões para análise

do ambiente organizacional: a estabilidade e a complexidade. O dinamismo que se refere ao

grau de estabilidade ou instabilidade, traduzindo-se no ritmo de mudança que coloca novas

exigências à organização, e a complexidade que se refere ao grau de concentração observado

e o quão homogêneas ou heterogêneas são as unidades que compõem o setor no qual a orga-

nização se insere. Essas dimensões reunidas determinam o nível de incerteza ambiental (fal-

ta de informações para as decisões), logo, o nível de subordinação e/ou preparo das organiza-

ções frente aos fatores externos. Ao gestor cabe reduzir as fontes de incerteza ambiental, e

sempre que puder, criar ambiente propício às suas atividades.

Quadro 10. Ambiente organizacional

1. Tipos

1.1 Geral (influência indireta)

1.2 Específico (influência direta total ou parcial)

1.2.1 Domínio ambiental

1.2.2 Domínio de tarefa

2. Modelos

2.1 Acionistas

2.2 Interessados ou Stakeholders

3. Dimensões de análise

3.1 Estabilidade

3.2 Complexidade

Fonte: Elaborado pela autora

A terceira categoria de análise que discutiremos é o ritual organizacional ou corporativo a

fim de poder embasar os estudos organizacionais e dar conta de desvendar a distinta relação

entre a cultura da capoeira e a cultura organizacional de suas ONGs.

O processo de ritualização implica a assunção de símbolos, sistemas simbólicos, a partir de

gestos, ações com sentido especial para quem os pratica. Por serem formas repletas de signifi-

cação, os rituais dão aos atores sociais a possibilidade de marcar, negociar e articular sua exis-

tência enquanto seres sociais.

O ritual nos proporciona a experiência de relembrar em conjunto. Essa memória comparti-

lhada é, conforme Simson (1991), um processo que constrói sólidas pontes de relacionamento

entre os indivíduos, por ser estruturada a partir de uma bagagem cultural comum e, assim,

poder conduzir à ação. Portanto, esse ato de compartilhar memórias, que por ora está sendo

associada ao processo desencadeado pelo ritual, é para a autora, “[...] tanto forma de domar o

tempo, vivendo-o plenamente, quanto empuxo que nos leva à ação, constituindo uma estraté-

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gia muito valiosa nestes tempos em que tudo é mercadoria, tudo possui valor de troca” (SIM-

SON, 1991, p.10).

A importância dessa memória está na sua representação enquanto esteio da identidade social,

estruturas que possuem “[...] a função de evitar que o presente se transforme em um processo

contínuo, desprendido do passado e descomprometido com o futuro” (NEVES, 2000, p.112).

É através do ritual que esse processo se constitui.

Trice e Beyer (1985) e Johann (2004) apresentam uma tipologia similar para os ritos (quadro

11), mostrando exemplos, manifestações sociais e consequências.

Quadro 11. Tipologia dos ritos através das suas manifestações e consequências sociais expressivas.

Tipos de Ritos Exemplos Manifestações, conse-

quências sociais ex-

pressivas

Exemplos de possíveis

consequências expres-

sivas

Ritos de passagem Iniciação e

treinamento básico

Facilidade de transição

de pessoas dentro dos

papéis sociais e estatutos

que são novos para estas

Facilita a transição de

pessoas para

papéis e status sociais

novos para elas.

Ritos de degradação Substituição de altos

executivos

Dissolução das identida-

des sociais e do seu

poder

Dissolve a identidade

social e o poder

de seus seguidores.

Ritos de reforço Noite anual de premia-

ção.

Reforço das estruturas

sociais e do seu poder

Reforça as identidades

sociais e aumenta o

status dos funcionários.

Ritos de renovação Atividades de

desenvolvimento

organizacional

Remodelagem das estru-

turas sociais e melhoria

nas suas formas de fun-

cionamento

Renovam as estruturas

sociais e melhoram o

funcionamento organi-

zacional.

Ritos de redução de

conflitos

Negociação coletiva Redução dos conflitos e

da agressividade

Redução de conflitos e

agressões restabelecendo

o equilíbrio.

Ritos de integração Festa de Natal da empre-

sa

Encoraja e revive senti-

mentos compartilhados

que unem as pessoas e as

mantém comprometidas

com o sistema social

Incentiva e revigora os

sentimentos

comuns que unem as

pessoas e as

envolvem com a organi-

zação.

Fonte: adaptado de Trice e Beyer (1985, p. 374-375).

As cerimônias, ritos e rituais, são atividades planejadas com o objetivo de ilustrar a cultura

organizacional de maneira prática e tangível. São, ainda, eventos internos e coletivos que

unem pessoas que compartilham os mesmos valores culturais. De acordo com Johann (2004),

as cerimônias reforçam normas e valores considerados importantes, passados através de ritos,

que em função da repetição e relevância serão denominados rituais. Estes, por sua vez, são

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carregados de símbolos que revelam as crenças e valores mais intrínsecos das pessoas e da

instituição.

Esta foi a abordagem teórica em torno das temáticas e categorias de análise escolhidas para

avaliar os dados que serão levantados e apresentados sobre a organização em estudo. A cultu-

ra organizacional, as organizações e a gestão social, bem como as suas práticas organizacio-

nais são consolidados a partir da escolha de um determinado grupo social, seus valores, cren-

ças, rituais, ambiente, e isso nos faz reconhecer a importância de tal aprofundamento teórico a

fim de darmos mais um passo em direção ao entendimento das questões de pesquisa.

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4 CAMINHOS METODOLÓGICOS PERCORRIDOS

Este capítulo tem o objetivo de apresentar e descrever a abordagem de pesquisa, os instrumen-

tos e os procedimentos utilizados para na coleta e análise dos dados (figura 5), justificando o

uso de tais instrumentos e procedimentos com base nas questões de pesquisa que embasam

este trabalho.

4.1 CONTEXTO DA PESQUISA

A escolha pela Associação Cultural Grupo Unido para Educação e Trabalhos de Orientação -

GUETO se deu pelo fato da aproximação profissional, enquanto mestra de capoeira, formada

por esta instituição e engajada como voluntária na maioria dos projetos implantados pela or-

ganização.

Tendo feito contato pela primeira vez com a organização em 1999, a pesquisadora pode parti-

cipar na condição de aluna da sua escola de formação de professores de capoeira, bem como

ministrar aulas a partir dessa formação. Por uma questão de dificuldade na captação de recur-

sos humanos voluntários para trabalhar na ONG e ainda financeiros para contratá-los, a mes-

ma decidiu engajar-se na coordenação de alguns projetos da organização, bem como, na cap-

tação de recursos para subsidiar eventos inicialmente, e projetos contínuos desenvolvidos pela

organização mais tarde.

Neste sentido, a pesquisa dentro desta instituição significa dar mais um simbólico passo, tanto

para sua sobrevivência frente à crise institucional vivenciada, quanto para contribuir com os

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estudos em capoeira e suas organizações. É retornar à capoeira, tudo o que a mesma tem pro-

porcionado pessoal e profissionalmente.

Como realizar uma pesquisa é como realizar uma viagem, e nesta é necessário haver metas,

empatias, harmonia, e outros sentimentos capazes de corroborar com a mesma, as motivações

e a ambiência nesta situação encontravam-se consolidadas para que se pudesse iniciar imersão

sobre este estudo organizacional. Muito auxiliou nesta imersão o fato de vivenciar a ambiên-

cia da capoeira enquanto mestra desta arte, pois era possível realizar leitura sobre o cenário,

desvendar esta realidade social com maior propriedade e legitimidade.

Figura 5. Caminhos metodológicos da pesquisa

Fonte: Elabora pela autora

4.2 PESQUISA QUALITATIVA

A pesquisa foi delineada pela abordagem qualitativa que apareceu no âmbito das ciências so-

ciais e humanas com o objetivo de estudar “o outro”, inicialmente em países e contextos soci-

oculturais “selvagens”, “exóticos” e considerados “primitivos” através de etnografias, para

aos poucos investigar contextos mais próximos de “casa” (CAPUTO, 2000). Tem natureza

aberta e contextualizada, já que o estudo é realizado em seu ambiente natural, em contato di-

reto com o grupo pesquisado e concebido através de uma perspectiva ampla, que pretende

considerar uma realidade como um todo.

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O conceito de pesquisa qualitativa adquiriu diferentes significados, ao longo da sua trajetória

histórica, porém, segundo Denzin e Lincoln (2005), na tentativa de encontrar um denomina-

dor comum entre várias concepções eles afirmam que “a pesquisa qualitativa é uma atividade

situada que coloca o observador no mundo. Consiste de um conjunto de práticas e materiais

interpretativos que tornam o mundo visível. Estas práticas transformam o mundo. Traduzem

ele em uma série de representações, que incluem o caderno de campo, entrevistas, conversa-

ções, fotografias, gravações e anotações para si. A este nível, a pesquisa qualitativa envolve

uma abordagem interpretativa e naturalística do mundo” (DENZIN; LINCOLN, 2005, p. 4).

Para Bresler e Stake (1992), “pesquisa qualitativa” se traduz por um termo abrangente que se

refere a muitas estratégias de pesquisa que compartilham algumas características: “(1) obser-

vação nao-intervencionista no contexto natural; (2) ênfase na interpretação de questões êmicas

(aquelas do participante) e éticas (aquelas do pesquisador); (3) uma descrição altamente con-

textualizada das pessoas e dos acontecimentos; e (4) a validação das informações através de

um processo de triangulação” (BRESLER & STAKE, 1992, p. 75- 76).

Godoy (1995) por sua vez afirma que embora haja muita diversidade entre os trabalhos de-

nominados qualitativos, alguns aspectos essenciais identificam os estudos desse tipo. Por

exemplo, a pesquisa qualitativa ela é naturalista, pois tem o ambiente natural como fonte

direta de dados e o pesquisador como instrumento fundamental, valorizando-se o contato dire-

to e prolongado do pesquisador com o ambiente e a situação que está sendo estudada.

Ainda segundo Godoy (1995) ela é descritiva e os seus pesquisadores se preocupam com o

processo e não simplesmente com os resultados ou produto, buscam verificar como determi-

nado fenômeno se manifesta nas atividades, procedimentos e interações diárias.

Para o autor a “ [...] maior preocupação dos investigadores deste tipo de pesquisa está relacio-

nada ao significado que as pessoas dão às coisas e à sua vida” (GODOY, 1995, p.57). Os pes-

quisadores qualitativos tentam compreender os fenômenos que estão sendo estudados a partir

da perspectiva dos participantes. Tendo todos os pontos de vista como importantes a pesquisa

qualitativa acaba esclarecendo o dinamismo interno das situações, frequentemente invisível

para observadores externos.

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Outra característica pertinente nas pesquisas qualitativas é a utilização do enfoque indutivo na

análise de dados pesquisados. Por não partir de hipóteses estabelecidas a priori, os pesquisa-

dores qualitativos não se preocupam em buscar dados ou evidências que corroborem ou ne-

guem tais suposições. As abstrações são construídas a partir dos dados, num processo de bai-

xo para cima. Quando um pesquisador de orientação qualitativa planeja desenvolver algum

tipo de teoria sobre o que está estudando, constrói o quadro teórico aos poucos, à medida que

coleta os dados e os examina (Godoy, 1995).

Santana (2009) afirma que a pesquisa qualitativa não faz parte de uma única disciplina, sendo

utilizada em várias áreas do conhecimento e, ainda, não apresenta métodos e procedimentos

próprios. Possui pelo contrário, várias práticas metodológicas, pois seu foco é plural. Sendo

assim, ao longo da pesquisa é que vão sendo definidos os percursos, associando-o a diversos

procedimentos, dados empíricos, perspectivas e olhares, que são assumidos enquanto estraté-

gias que vão conferir rigor, amplitude, complexidade, riqueza e profundidade a pesquisa.

É imprescindível que o pesquisador esteja atento ao contexto físico, temporal, histórico, soci-

al, político, econômico e estético (BRESLER; STAKE, 1992) e tenha certa flexibilidade, pois

tanto o método como as questões podem sofrer alterações, a partir das informações coletadas

durante o trabalho de campo. Phelps e al. (2005, p. 80) afirma que,“os pesquisadores qualita-

tivos indutivamente trabalham em direção do desenvolvimento de uma teoria (partindo de um

conjunto preliminar de questões e intuições)”.

Denzin e Lincoln (2005), no entanto, alertam quanto à natureza humana do pesquisador, ca-

racterizada por uma história de vida, e, portanto um contexto social, cultural, étnico e de gêne-

ro específico. Segundo eles,

o pesquisador situado em termos de gênero e multiculturalismo aborda o mundo

através de um conjunto de ideias, uma estrutura (teoria e ontologia), que especifica

um conjunto de questões (epistemologia), que ele ou ela deverá analisar em

determinadas maneiras (metodologia, análise). [...] Cada pesquisador se pronuncia a

partir de uma comunidade interpretativa distinta que configura, em um modo

especial, os componentes multiculturais e de gênero do ato de pesquisar (DENZIN;

LINCOLN, 2005, p. 21).

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4.3 ESTUDO DE CASO

Yin (2001, p.32) apresenta o estudo de caso enquanto estratégia de pesquisa do tipo explana-

tória, um estudo empírico que “[...] investiga um fenômeno contemporâneo dentro de seu con-

texto da vida real especialmente quando os limites entre o fenômeno e o contexto não estão

claramente definidos”.

O caso é a metodologia de investigação dos fenômenos humanos e sociais bem delimitados,

realizada através de uma descrição holística e intensiva, e, segundo Merriam (1988), voltada

aos pesquisadores que tem seu interesse focado na compreensão aprofundada dos processos

sociais de um determinado contexto, enfatizando seu interesse para os vários envolvidos. O

estudo do caso escolhido para este presente estudo se dá justamente pelo imbrincamento entre

o fenômeno organizacional estudado e sua contextualização na organização tomada como

caso para estudo neste trabalho.

Cinco propósitos de aplicabilidade desse tipo de estudo foram apontados por Yin (2001), são

eles: explicar, descrever, ilustrar, explorar e meta-avaliar. Sendo assim vemos adiante como

cada uma dessas aplicações contribui significativamente para estruturar as possibilidades

abarcadas por essa estratégia de pesquisa.

A mais importante aplicação do estudo de caso se dá quando esta estratégia explica o emara-

nhado de causas implicadas em um fenômeno contemporâneo considerado complexo para as

demais estratégias de pesquisa. O estudo de caso pode ainda, descrever uma intervenção e o

contexto na vida real onde a mesma acontece; ilustrar de maneira descritiva certos tópicos

dentro de uma avaliação; explorar situações nas quais a intervenção que está sendo avaliada

não apresenta um conjunto simples e claro de resultados; e, por último, o estudo de caso pode

ser utilizado para realizar uma meta-avaliação, ou seja, uma avaliação de um estudo de avali-

ação.

Na presente pesquisa, a escolha deste tipo de estudo se deu pelo fato do mesmo proporcionar

a explicação das causas envolvidas no fenômeno oriundo da influência da capoeira sobre a

gestão e cultura organizacional de suas organizações e descrever o contexto dessas organiza-

ções na vida real.

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Algumas características do estudo de caso são importantes para definir o perfil deste tipo de

pesquisa. Utilizaremos, para tanto, as características propostas por Merriam (1988) que as cita

como particularista, heurística, descritivo e indutivo. O caso é particularista, pois deve estar

centrado em evento particular cuja importância vem do que ele revela sobre o fenômeno, ob-

jeto da investigação; é um processo que tem como característica a heurística, pois é acompa-

nhado do aparecimento de novos significados – insights – que proporcionam o repensar do

fenômeno sob investigação.

O caso tem por característica ainda ser descritivo, tanto na forma de obtenção de dados, utili-

zando-se da transcrição de entrevistas, diário de campo e documentos, quanto na construção

de relatório de disseminação do caso, tendo uma narrativa como produto final; e, por último,

ser indutivo no seu processo de coleta e análise de dados, colocando em suspenso suas pré-

concepções, compreendendo padrões que emergem dos dados em vez de verificar hipóteses,

modelos ou teorias pré-concebidas (MERRIAM, 1988).

Dentro do processo de elaboração de um estudo de caso existem cinco componentes conside-

rados por Yin (2001) como importantes peças-chaves num projeto de pesquisa. São eles: a)

questão de pesquisa; b) proposição de estudo; c) unidade de pesquisa; d) a lógica que une os

dados à proposição; e, por fim, o e) os critérios para interpretar as descobertas. Inicialmente

temos a questão de pesquisa que é como uma chave importante para se estabelecer a estratégia

de pesquisa mais relevante a ser utilizada. Nesse caso, o questionamento que define o estudo

de caso são as questões do tipo “como” e o “porquê”.

Nesse presente estudo levantamos, por exemplo, enquanto questão de pesquisa a investiga-

ção de como a cultura da capoeira influencia as práticas organizacionais de suas ONGs,

pautadas em princípios não econômicos e em fase de expansão internacional, a fim de

reconhecer os limites e possibilidades do seu modelo de gestão.

Seguindo para o segundo componente surgem as proposições de estudo que apontam para

determinados pontos que deveriam ser estudados dentro do escopo do estudo. No caso do

presente estudo seria como lançassemos como proposição de estudo um olhar sobre as

modificações encontradas na cultura organizacional das ONGs de capoeira proporcionadas

pela cultura da capoeira, seu ritual, ambiente e estrutura.

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O terceiro componente é a denominada unidade de análise, um contexto (individuo, grupo,

organização, etc.) escolhido para estudo do fenômeno delimitado pela pesquisa, que possa

servir de base para o levantamento das proposições determinadas no estudo. A exemplo neste

estudo temos a organização enquanto locus do estudo do fenômeno organizacional, mais

especificamente a ONG Associação Cultural GUETO, que subsidiará o estudo das

proposições levantadas em torno da cultura organizacional.

O quarto e quinto componente é a ligação dos dados às proposições e os critérios para a

interpretação das descobertas representam as etapas de análise de dados e devem ter um

projeto de pesquisa apoiando sua execução. Quanto à interpretação dos dados coletados

utilizaremos três categorias de análise, estrutura, ambiente e ritual, que serão importantes na

identificação dos elementos constituintes da cultura organizacional e da cultura da capoeira, e

por analogia, o quão aquela foi influenciada pela última.

Os estudos de caso podem ser tipificados como descritivo, interpretativo e avaliativo (GO-

DOY, 2008). No tipo descritivo temos um relato de um fenômeno social que envolva sua

configuração, estrutura, atividades, mudanças no tempo, no relacionamento com outros fenô-

menos. São ateóricos, pois não se guiam por hipóteses previamente estabelecidas e importan-

tes, pois apresentam informações sobre fenômenos pouco estudados.

São interpretativos os estudos que promovem uma rica descrição do fenômeno, buscando

por encontrar padrões nos dados estudados e desenvolver categorias conceituais que possibili-

tem ilustrar, confirmar ou opor-se a suposições teóricas. Neste estudo o pesquisador procura

reunir o máximo de informações suficientes para interpretar e teorizar sobre o fenômeno (di-

ferentemente do caso descritivo).

Já o caso avaliativo preocupa-se com a “geração de dados e informações, obtidas de forma

cuidadosa, empírica e sistemática, com o objetivo de apreciar o mérito e julgar os resultados e

a efetividade de um programa” (GODOY, 2008, p.125). Os estudos podem reunir característi-

cas de mais de um tipo.

A escolha do estudo de caso enquanto abordagem de pesquisa foi motivada pelo desejo de

concentrar o olhar no contexto da Associação Cultural GUETO, e assim responder ao objetivo

da pesquisa: analisar a influência da cultura da capoeira sobre a práticas organizacionais em

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uma ONG, pautada em princípios não econômicos e em fase de expansão internacional, e por

fim reconhecer os limites e possibilidades do seu modelo de gestão. Alguns fatores fizeram

com que se optasse por este design metodológico como, por exemplo, o fato dessa abordagem

metodológica propiciar a investigação dos fenômenos humanos e sociais que estão por trás de

um dado contexto; a forma das questões de pesquisa, centradas principalmente no “como” e

no “por que”; o fato da pesquisa ser realizada no seu contexto natural, não tendo o pesquisa-

dor controle sobre os acontecimentos; a necessidade de coletar os dados de várias formas,

dentre outros.

Já quanto ao tipo, o caso desenvolvido no presente aproxima-se do tipo interpretativo quando

busca estudar uma organização sem fins lucrativos que trabalha com a cultura da capoeira

enquanto prática educativa e cultural, na sua matriz e filiais internacionais, e que sofreu modi-

ficação do ponto de vista da cultura organizacional a partir da cultura da capoeira, incorpo-

rando práticas organizativas características desta prática.

4.4 OS SUJEITOS DA PESQUISA

Participaram desta pesquisa 18 membros da GUETO, entre dirigentes (quase toda a diretoria

executiva – presidente, vice-presidente, diretora social, diretor financeiro e secretária), cola-

boradores voluntários (designer) e filiados responsáveis pelas sedes nacionais e internacionais

(GUETO Argentina, Colômbia, Equador, Espanha, e Japão).

As técnicas de coleta de dados utilizadas neste estudo foram a observação, o grupo focal, os

documentos e as entrevistas e/ou roteiros de entrevista.

Segundo Oliveira e Freitas (1998), grupo de foco ou grupo focal é um tipo de entrevista em

profundidade realizada em grupo, cujas reuniões apresentam características definidas quanto à

proposta, tamanho, composição e procedimentos de condução. O foco ou o objetivo de análise

é a interação dentro do grupo.

A escolha pelo método do grupo focal se deu pela sua aplicabilidade, a pesquisadora realizou

reuniões com a diretoria e alguns dos membros colaboradores da GUETO, ao menos os que

tinham disponibilidade de participação por viverem próximo a sede Brasil. Foi utilizada na

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primeira fase da pesquisa e tinha como tema a avaliação situacional da GUETO, temática que

procurava fundamentar a trajetória da organização e seu processo de adequação a cultura da

capoeira.

Além disso, foi realizado uma análise dos documentos da ONG (portfólio, estatuto, atas de

eleição e de reuniões). Esta técnica foi escolhida por nos proporcionar acesso à história e tra-

jetória da ONG, pelos registros feitos através de atas, estatutos, projetos, relatórios técnicos,

currículo, portfólio, dentre outros relevantes para tal pesquisa.

A observação participante (YIN, 2001), técnica mais utilizada na pesquisa, é uma técnica de

caráter objetivo que proporciona ao pesquisador apreender aparências, eventos e/ou compor-

tamentos. É importante, pois apesar do pesquisador ver a totalidade do fenômeno no contexto

da vida real, pode deixar que seu foco de interesse oriente claramente sua observação em tor-

no de alguns aspectos. A observação foi realizada junto à matriz da organização, em Salvador

| Bahia, e em algumas filiais internacionais como é o caso da GUETO Equador, onde visita-

mos as sedes das cidades de Quito, Manta e Guayaquil, e da GUETO Japão, onde visitamos as

sedes das cidades de Tóquio, Kanazawa, Fukui, Takaoka, Joetsu, Osaka e Nagoya, quando se

realizou concomitantemente as atividades da Residência Social do Programa de Mestrado em

Desenvolvimento e Gestão Social (PDGS).

A técnica foi escolhida justamente por permitir o levantamento de muitas informações dentro

do ambiente onde elas foram e estão sendo produzidas, e, ainda, permitir um olhar ampliado e

irrestrito nesta coleta já que se pode investigar uma finalidade de elementos quando em ob-

servação direta. A pesquisadora realizou neste período da pesquisa, observação participante

através de oficinas e diversas outras atividades em que se pode verificar o fenômeno em estu-

do.

A entrevista, quarta técnica utilizada na pesquisa, é geralmente combinada com a observação

e tem por características ser informal, curta e rápida. Foram realizadas entrevistas semi-

estruturadas que buscavam a compreensão dos significados que os entrevistados atribuem às

questões e situações relativas ao tema de interesse. Foi construído um roteiro de entrevista

(APÊNDICE A). O roteiro de entrevista foi respondido por 10 membros da GUETO, filiados

internacionais, quando estiveram aqui no Brasil, ou por email, ou quando a pesquisadora visi-

tou as sedes em viagem internacional.

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O roteiro procurou levantar informações quanto à natureza da aproximação dos filiados, suas

trajetórias, estruturas, ambientes, limites e desafios para o desenvolvimento da GUETO, em

sua dimensão local e internacional.

O questionário, quinta técnica utilizada, foi escolhido pela facilidade de aplicação frente aos

representantes das sedes internacionais do GUETO, que recebiam por internet (email) e de-

volviam assinado pelo mesmo meio.

Resumindo, a pesquisa optou pelo uso da observação participante, documentos e grupo focal

na primeira fase, que identificou a trajetória da ONG, as suas ações e, ainda, produziu uma

avaliação situacional da GUETO. Entre os principais fatores que explicam esta escolha estão:

pouca disponibilidade de recursos, de tempo e de pessoas para reunir e avaliar cada sede da

GUETO no mundo, bem como a necessidade de estabelecer caminhos a seguir a partir da rea-

lidade atual a partir da avaliação situacional feita com os dirigentes. Curto espaço de tempo

para realização da pesquisa (dois anos para completar a pesquisa, com a análise dos dados e

divulgação dos resultados). Contamos ainda com a morosidade dos representantes das sedes

para dar retorno, tendo em vista fatores que dificultaram como: idioma, virtualidade, acessibi-

lidade aos beneficiários da GUETO fora do país, tempo, dentre outros fatores.

Na segunda fase da pesquisa, sob a pretensão de aprofundar os dados coletados, realizou-se

uma nova coleta de dados, apenas com as sedes que já tem mais de 08 anos de experiência na

GUETO, a fim de se identificar quais realidades enfrentam em seus países, e como tentar tra-

çar metas para o planejamento estratégico da ONG. Como nesta etapa foi usada uma amostra

menor ainda e seu objetivo é conseguir um aprofundamento dos dados desse tema, resolveu-

se usar o método da entrevista e questionários.

4.5 TÉCNICAS DE ANÁLISE DE INFORMAÇÕES

A análise dos dados é a última etapa antes da redação do texto final e, segundo Bogdan e

Biklen (1982), “é o processo de busca e organização sistemática das transcrições das

entrevistas, notas do campo, e outro material que o pesquisador acumula para aumentar o

próprio entendimento sobre eles e para que apresente o que descobriu para outras pessoas”

(BOGDAN & BIKLEN, 1982, p. 145).

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Phelps (2005) já entende que a análise dos dados é um processo que inicia durante a

observação e as entrevistas, e chega ao topo após a conclusão do trabalho de campo. A análi-

se foi realizada a partir de algumas categorias de análise escolhidas por auxiliarem a pesquisa

e o estudo do fenômeno da cultura organizacional à luz da cultura da capoeira, evidenciando

os pontos de corte que se pretende analisar nas informações coletadas. As categorias de análi-

se escolhidas para tanto foram: estrutura, ambiente e ritual.

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5 ASSOCIAÇÃO CULTURAL GRUPO UNIDO PARA EDUCAÇÃO E

TRABALHOS DE ORIENTAÇÃO – GUETO CAPOEIRA

Neste capítulo apresentamos a organização em estudo – Associação Cultural GUETO, sua

trajetória institucional e uma análise das suas práticas organizativas à luz da cultura da capoei-

ra. Para tal análise elegemos três categorias, estrutura, ambiente e ritual organizacionais, onde

fundamentaremos nossas reflexões e comparação possíveis (figura 6).

Figura 6. Estudo de Caso Associação Cultural G.U.E.T.O.

Fonte: Elaborado pela autora

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Caracterizando a GUETO quanto aos critérios estabelecidos no referencial teórico levantado

para a cultura organizacional, temos: uma organização sem fins lucrativos; que tem sua orien-

tação voltada para a educação de crianças e jovens em situação vulnerabilidade social, priori-

tariamente; com abrangência de operações internacional; prestação de contas de caráter múlti-

plo; e com planejamento de suas atividades sujeito às fontes de financiamento.

5.1 TRAJETÓRIA INSTITUCIONAL

A Associação Cultural Grupo Unido para Educação e Trabalhos de Orientação (G.U.E.T.O.) é

uma entidade privada sem fins lucrativos, reconhecida enquanto Utilidade Pública Estadual na

Bahia, desde o ano de 2002, e como Ponto de Cultura do Estado da Bahia, através da SE-

CULT em parceria com o Governo Federal, desde o ano de 2008. Possui experiência com

projetos sócio-educativos e culturais, atuando em comunidades de baixa renda há pelo menos

23 anos com recursos próprios, doações esporádicas e apoios pontuais de organizações esta-

duais, municipais, empresas privadas e outros organismos. A sua fundação se deu no início da

década de 90 a partir da crença no voluntariado dos então estudantes de capoeira e sócio-

fundadores Jean Adriano Barros da Silva - Presidente (professor de Educação Física), Cássio

Adriano Barros da Silva – Vice-presidente (professor de História), Benedito Carlos Libório

Caires (professor de Educação Física), Carlos Emilio Libório Caires (turismólogo) e Daniel

Ramos Moreira (médico veterinário).

As ações tinham público alvo variado, dentre eles a terceira idade, os portadores de necessi-

dades educacionais especiais e, principalmente, as crianças e jovens filhos de amigos do bair-

ro que se encontrava em vulnerabilidade social em Pituaçu e invasões7 adjacentes, áreas con-

sideradas de alto índice de violência urbana, violência contra a mulher, prostituição infantil e

rota de tráfico de drogas e entorpecentes na região metropolitana de Salvador.

Assim, em 1992 deram início às ações do Projeto Social Camaradinhas e sob o pretexto do

ensino da capoeira e outras práticas culturais crianças e jovens foram acolhidos no salão da

7 Áreas ilegais invadidas pela população civil sem que possuam escritura do terreno.

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casa de um dos fundadores do projeto recebendo para além dos fundamentos destas expres-

sões culturais, alimento e cuidados especiais muitas vezes negligenciados pelos seus respon-

sáveis.

O projeto acabou se destacando de tal forma que foi reconhecido socialmente sendo convida-

do a apresentar-se na edição anual do Programa Criança Esperança em 1996, mantido pela

rede Globo de televisão, tendo ainda muitas reportagens e documentários projetados em pro-

gramas de televisão da rede local, nacional (ESPN Brasil) e internacional (Nathional Geogra-

phyc), jornais impressos locais (A Tarde, Tribuna da Bahia e Correio da Bahia) e em eventos

culturais e de responsabilidade social de grande repercussão no Estado da Bahia.

O projeto Camaradinhas é, portanto, o grande motivador para que a GUETO fosse fundada.

Tal iniciativa se deu pelo fato do projeto ter sensibilizado muitos empresários que ao procura-

rem o projeto não encontravam mecanismos legais para doação de recursos financeiros e ma-

teriais, pois a mesma ainda não se encontrava juridicamente consolidada para receberem doa-

ções de maneira legalizada. Foi assim que em 1998 foi fundada a GUETO, com perfil jurídico

de associação sem fins lucrativos, que passa a contar esporádica e pontualmente com doações

de empresas parceiras do projeto.

Neste ínterim alguns sócio-fundadores do projeto Camaradinhas se afastaram restando apenas

os irmãos Jean Adriano Silva e Cássio Adriano Silva, que continuaram a frente do projeto e a

praticar a capoeira, tendo inclusive seu reconhecimento público e título de mestre sido entre-

gues no ano de 2005. Esta então é a história de uma instituição que teve sua origem a partir de

um grupo informal de capoeira, e que foi fundada justamente para subsidiar e dar sustentação

às ações projetadas dentro do âmbito do ensino e gestão da capoeira.

De acordo com a missão institucional da GUETO, conforme ressalta o artigo 1º do seu Esta-

tuto, ela foi constituída “para fins de promover a educação de crianças das comunidades em

geral, através da prática de atividades culturais brasileiras para formação do cidadão” (Estatu-

to da Associação Cultural GUETO, 1999), ou seja, sua missão se consolida na promoção da

educação de crianças e jovens em sua grande maioria afrodescendentes vivendo em situação

de risco social e pessoal, através de práticas culturais brasileiras (em especial a capoeira) para

atuar na formação desses cidadãos e evitar a marginalização destes indivíduos.

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Em seu artigo 2º, o Estatuto social revela a finalidade da associação dividida em três pontos.

São eles:

ART . 2ª A associação terá como finalidade a de promover: A sociabilização de

crianças de baixa renda através de atividades culturais. Desenvolver atividades que

fortaleçam a ligação entre o meio acadêmico e a cultura popular. Fazer da cultura

popular um instrumento social, que possa contribuir para diminuição da miséria, dos

vícios e analfabetismo.

Na alínea a, o estatuto apresenta a sua primeira finalidade já citada em parágrafo anterior e

que guarda similaridade com a missão institucional da organização.

Na alínea b, a organização revela a intenção de subsidiar ações que promovam a ligação dos

saberes acadêmicos e populares, muito por conta da formação dos seus fundadores em pleno

curso do ensino superior no momento de sua fundação, e do entendimento que são saberes

complementares e que se retroalimentam.

Na alínea c, explicitado está o entendimento que as práticas que tem origem na cultura popu-

lar por emergirem do povo e de seus anseios e forma de ver o mundo, têm o poder e por isso

devem ser utilizadas como tecnologias de gestão social.

Parágrafo único – Constitui - se ainda como objetivos desta associação: Promover o

intercâmbio com entidades congêneres e com instituições culturais, educacionais e

outras afins. Promover junto à sociedade atividades como: prática de desportos,

oficinas de trabalho, shows folclóricos e o ensino da capoeira; Desenvolver todas as

atividades sem fins lucrativos e com número ilimitado de associados (GUETO,

1999).

O envolvimento através da cultura afro-brasileira regional propunha uma educação baseada na

pedagogia dos sentidos, tornando os educandos mais sensíveis e cônscios do grande valor

inerente aos saberes populares e seus mestres “Griôs8” (“guardiões”, “bibliotecas vivas”),

comportamento esse que, atualmente, segue na contramão dos valores da nossa sociedade

brasileira que privilegia o conhecimento científico, nem sempre acessado pelas comunidades

menos favorecidas, taxando o mais velho enquanto símbolo do ultrapassado e improdutivo.

8 Termo do vocabulário franco-africano criado na época colonial para designar o narrador, cantor, cronista e genealogista que, pela tradição oral,

transmite a história de personagens e famílias importantes para as quais, em geral, está a serviço. Presente, sobretudo na África ocidental, no-tadamente onde se desenvolveram os faustosos impérios medievais africanos (Gana, Mali, Songai etc.), recebe denominações variadas, dyéli ou diali, entre os Bambaras e Mandingas, guésséré entre os Saracolês, wambabé, entre os Peúles, aoulombé, entre os Tucolores , e guéwel, (do árabe qawwal) entre os Uolofes. (Diáspora Africana - Ney Lopes)

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A instituição foi fundada também com a preocupação da renovação do espaço público, do

resgate da solidariedade e cidadania, da humanização do capitalismo e na busca da superação

da pobreza. Seu discurso se baseia no bem comum como base para o bem estar de cada indi-

víduo, passando a refletir sobre questões relativas à responsabilidade social, aos direitos e

deveres dos cidadãos e das organizações, assim como padrões éticos e morais comuns, além

das necessidades de investimento no bem cultural.

5.2 ANALISANDO AS PRÁTICAS ORGANIZACIONAIS À LUZ DA CULTURA DA

CAPOEIRA

5.2.1 Estrutura

Em seu estatuto a diretoria executiva da GUETO é composta por cinco diretores, dentre eles o

presidente, vice-presidente, diretor financeiro, diretor social, diretor administrativo, tendo

ainda um secretário, porém em efetivo exercício, e não na composição estatutária atualmente

a GUETO é composta por presidente, vice-presidente, diretor financeiro, diretora social, uma

secretária e um contador, todos voluntários nesta função por uma decisão estatutária. A Dire-

toria executiva tem muitas atribuições, todas estas descritas no 38º artigo de seu estatuto,

a) Cumprir e fazer cumprir o Estatuto e as decisões da Assembléia Geral, bem como

prestar-lhe o assessoramento necessário;

b) Mobilizar recursos técnicos, humanos, materiais e financeiros necessários ao desen-

volvimento das atividades da associação;

c) Receber e movimentar recursos financeiros comprovando as despesas realizadas;

d) Elaborar e submeter à Assembléia Geral os regulamentos para campeonatos e festi-

vais, internos ou externos, promovido pelo grupo;

e) Estabelecer as normas operacionais, administrativas e contábeis-financeira que rege-

rão as atividades da associação, respeitadas as disposições do estatuto;

f) Decidir sobre a admissão de novos associados, demissões e readmissões;

g) Aplicar as penalidades previstas neste estatuto;

h) Reunir-se, em caráter ordinário, uma vez por mês e em caráter extraordinário, quan-

do necessário;

i) Promover a adequada divulgação dos objetivos e das atividades da associação;

j) Articular – se e manter intercâmbio com associações e grupos congêneres;

k) Articular-se e manter com instituições privadas e/ou oficiais, no sentido de receber

apoio para o desenvolvimento de atividades culturais e educacionais;

l) Realizar em caráter permanente, estudos e pesquisas que visem ampliar os conheci-

mentos a serem transmitidos aos participantes da associação;

m) Fixar as políticas de ação da associação;

n) Apresentar proposta para a decisão da Assembléia Geral, sobre a extinção da associ-

ação e alteração do estatuto;

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o) Deliberar quanto à aquisição, leilão, alienação, penhora ou hipoteca de bens móveis

da associação.

p) Deliberar com base nos relatórios financeiros sobre as contas de cada exercício da

Diretoria Executiva; e

q) Deliberar sobre a assinatura de convênios, contratos, acordos e/ou ajustes. (GUE-

TO,1999)

A Associação Cultural GUETO por se tratar de instituição sem fins lucrativos tem ao longo

desses anos contado prioritariamente com o voluntariado para a realização de suas atividades

e gestão da ONG. A diretoria executiva é toda formada por membros da família dos fundado-

res Jean e Cássio Silva, não sendo remunerados por esta função, nem pelas outras funções

administrativas, pedagógicas, culturais, sociais etc, que desenvolvem como voluntários.

A assessoria contábil foi sempre feita por voluntários, amigos dos fundadores da ONG, até

que com algumas ações de captação de recursos financeiros pontuais foi possível remunerá-

los eventualmente. Há mais de 01 ano, a GUETO contratou a assessoria contábil contínua e

remunerada em função de um convênio de prestação de serviços administrativos e pedagógi-

cos realizado com a Petrobrás S/A.

A Gestão cultural, assessoria jurídica, a comunicação institucional, a captação de recursos,

professores de capoeira (Projeto social Camaradinhas), designer e outros serviços essenciais

ainda funcionam em sistema de voluntariado ou pagamentos simbólicos, captados em doações

pontuais. Este é um grande desafio na gestão da ONG, pois não conta ainda com a segurança

de captação de verbas para custeio das ações da ONG. Seus dirigentes têm outras fontes de

renda, doando parte do tempo para auxiliar nas atividades da ONG. O relacionamento com os

voluntários é nutrida pelos ideais da ONG voltados para a solidariedade e construção do bem

estar social das crianças camaradinhas, alvo da instituição.

A formação da diretoria executiva da ONG, ou seja, a constituição de seu corpo de dirigen-

tes seguiu o princípio da escolha dos familiares para assumir tais cargos, dada a confiança

estabelecida e a possibilidade de contar sempre com sua prestatividade voluntária. Não obs-

tante, esse critério é encontrado na cultura da capoeira que delega as responsabilidades dos

“fazeres” aos membros da “grande família” consolidada na capoeira, descendentes imediatos

na linhagem do mestre, uma relação estabelecida pela confiança impressa nos sistemas iniciá-

ticos de formação.

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Como exemplo, temos a escolha de quem sucederá ao mestre em quaisquer necessidades de

afastamento do mesmo, seja por uma viagem, seja na roda de capoeira para que o mesmo pos-

sa sair da responsabilidade da condução da orquestra, para jogar. Nesse momento, geralmente

o mestre designará de imediato o mais antigo discípulo para lhe substituir. São situações onde

a confiança é o sentimento mais influente na condução de tal decisão. Este tipo de escolha nos

reporta a um modelo de gestão centrada no poder, de estrutura familiar, característicos de es-

trutura organizacional pré-burocrática e familiar.

A Associação tem sua matriz em Salvador, dentro do terreno dos pais do sócio-fundador Jean

Adriano Silva, o Mestre Jean Pangolin, dispondo de uma estrutura física que oferece dois sa-

nitários, uma sala de reuniões, recepção, núcleo de inclusão digital, salão para atividades cul-

turais e práticas pedagógicas, sendo o atendimento de segunda a sábado, em diversos horários,

de acordo com a disponibilidade dos sócio-educadores voluntários.

Nas sedes localizadas fora da matriz em Salvador, as ações da GUETO são desenvolvidas

tanto em sedes próprias quanto em instituições de ensino formal como escolas, universidades,

academias e afins. O ensino nestas unidades de ensino formal se originou, prioritariamente,

para atender a demanda profissional dos jovens oriundos do Projeto Social Camaradinhas e

formados pelo curso profissionalizante em Capoeira que necessitavam inserir-se no mercado

de trabalho para assim promover, através deles, o aumento da renda familiar, além de ampliar

suas perspectivas de sucesso profissional.

Os alunos inscritos no Projeto social Camaradinhas recebem o fardamento de capoeira com-

posto por calça de helanca branca e camisa da instituição para participar das aulas semanais

de capoeira, lanche nas atividades diárias e participam das festas em datas comemorativas

durante o ano. É realizada também, toda sexta-feira, uma grande roda de capoeira aberta ao

público com a participação de todos os alunos da Associação Cultural GUETO da sede Salva-

dor.

O processo de expansão internacional, uma trajetória da parceria com princípios não-

economicos, proporcionou a GUETO uma grande estrutura e responsabilidade que a mesma

carrega atualmente.

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Na capoeira, a formação se dá de maneira iniciática durando no mínimo vinte anos para a gra-

duação de mestre, máxima titulação, sendo assim a relação entre o mestre e seu discípulo é

estabelecida em laços fortes de respeito, devoção e lealdade, o que torna peculiar as relações

estabelecidas entre a sede e suas filiais parceiras.

A instituição foi recebendo, com o passar do tempo, a visita de capoeiristas estrangeiros inte-

ressados na qualificação de sua formação em capoeira, que ao concluírem o período básico

(formação técnica, pedagógica, ritualística e filosófica) estabeleciam parceria com a institui-

ção, voltando com esse aporte de conhecimento aos seus países para assim, fundarem novos

núcleos da mesma.

Estas são parcerias configuradas com formato especial na medida em que os novos parceiros

estabelecem vínculo inicial e contínuo com o mestre de capoeira, para, por consequência, vin-

cular-se a organização. Ou seja, sem estar vinculado a algum mestre da ONG não seria possí-

vel ser um parceiro da GUETO, ora também qualificado enquanto filiado, e ter um núcleo de

extensão das suas ações.

Estes filiados guardam com o mestre Jean Pangolin (atual vice-presidente da GUETO) uma

relação especial pelo vínculo de formação em capoeira, esta relação é pautada em um sistema

de aliança contínua e ininterrupta, configurando por vezes em relação paternalista, devendo ao

mestre a “devoção” e o “eterno” respeito pelos conhecimentos adquiridos, como descreve a

letra da cantiga de capoeira de domínio público intitulada “Menino quem foi teu mestre?

Menino quem foi seu mestre? / Meu mestre foi Salomão / Sou discípulo que aprende

/ Sou mestre que dou lição / O mestre que me ensinou / Tá no engenho da Conceição

/ A ele devo dinheiro, / saúde e obrigação / Segredo de São Cosme, / mas quem sabe

é São Damião, / Camará, água de beber / éé agua de beber camarada!

A primeira “filial” estrangeira foi fundada em Buenos Aires, na Argentina, pelo Sr. Martin

Sebastian Flax, conhecido no universo da capoeira como Martin Pescador ou Argentina. Ele

já fazia capoeira em Buenos Aires e conheceu a ONG a partir da indicação de um amigo ca-

poeirista. Foi visitá-la logo após sua chegada à Salvador no ano de 2000, em busca de treinar

capoeira com o então contramestre Jean Pangolin (presidente da ONG).

Após cumprir o período básico de formação na GUETO, revelou o interesse de ao retornar a

sua cidade natal – Buenos Aires, retomar seu trabalho docente com um grupo de pessoas que

deixara treinando sozinhos e fundar assim a sede argentina da GUETO. Foi exatamente o que

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aconteceu em 2001 ao retornar para Argentina. Atualmente o trabalho segue na cidade de Bu-

enos Aires com o contramestre Martin Pescador e um aluno formado conhecido na capoeira

como “Mudo”.

Fundada a primeira filial estrangeira na Argentina, a segunda foi fundada na Colômbia, na

cidade de Bogotá. Nesta, a história foi semelhante, dois professores de capoeira de um grupo

de capoeira colombiano vieram pra Bahia participar do evento Mundial da GUETO em Sal-

vador no ano de 2006, por indicação de um amigo da GUETO Argentina. Ao término do

evento eles revelaram o interesse em estabelecer cooperação técnico-filosófica e ritualística

com a GUETO, assim que em 01 ano era fundada a segunda filial da GUETO na Colômbia,

sede que já contava na época com um trabalho em 08 cidades colombianas. Atualmente o

trabalho segue sendo realizado nas cidades de Bogotá, Medelin e Cali, pelo professor Davi

Molina, conhecido na capoeira como “Bode” e o aluno formado Dorman Chacón, conhecido

como “Avô”.

Estas filiações contavam com um interesse dos estrangeiros na localização privilegiada da

GUETO. Ela se localiza na cidade de Salvador, considerada capital da capoeira no mundo,

cidade a qual os capoeiristas visitam ao menos uma vez na vida para conhecer os antigos mes-

tres e toda a ambiência que dá vida a essa manifestação cultural. Esta situação era aliada ao

know-how da GUETO na área de ensino, fundamentos e difusão da capoeira, sendo uma insti-

tuição de capoeira respeitada no seu universo.

A terceira filial estrangeira da GUETO seria fundada pelas “mãos” de um professor, que trei-

nou desde pequeno no Projeto social Camaradinhas, e que ao casar-se com uma espanhola foi

morar na cidade de Manreza, próximo a Barcelona – Espanha, fundando assim em 2007 a

sede Espanhola da GUETO. A fundação desta filial, em especial, trouxe para os gestores da

GUETO um retorno muito positivo pois era a certeza de que o projeto social Camaradinhas,

principal missão da instituição, conseguia de alguma forma ajudar a vida das crianças em vul-

nerabilidade social assistidas em Salvador. Atualmente a filial espanhola segue com as ações

na cidade de Manreza e Barcelona sob a responsabilidade do Mestre Luís Henrique, conheci-

do na capoeira como “Strong” e a instrutora Dinma, conhecida como “Dinma Mosquitinho”.

A quarta filial estrangeira foi fundada em Guayaquil, Equador, por um professor que saiu da

Colômbia para morar neste país, decidiu levar o trabalho da GUETO e fundar esta extensão

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da ONG em 2008. As demandas desta filial cresceram e dois professores foram para auxiliar

nos trabalhos desta filial. Foram trabalhar nesta filial um colombiano e um brasileiro que de-

pois de dois anos levou sua esposa que também é profissional de capoeira. Atualmente, a filial

conta com 01 contramestre, 02 professores e 01 aluna formada, trabalhando nas cidades de

Guayaquil, Manta e Quito, capital do Equador.

A quinta filial estrangeira foi fundada em Kanazawa, estado de Ishikawa, no Japão pelo con-

tramestre Ikezaki Iuichi, conhecido no mundo da capoeira como Contramestre Mate Leão. Ele

chegou em 2007 à Salvador em busca de se filiar a algum mestre de capoeira, já que já tinha 5

anos treinando e ensinando capoeira no Japão, mas sem ter conseguido estabelecer vínculos

com algum mestre, por conta de passado por problemas de inúmeras ordens na relação com os

mesmos (incompatibilidade filosófica, quando não, moral e ética).

Por uma indicação de um amigo foi parar na sede da GUETO em Salvador, iniciando sua

aprendizagem com o Mestre Jean Pangolin, e após a conclusão do período básico de formação

voltou para o Japão, fundando em 2008 a filial japonesa da GUETO. Atualmente o trabalho é

realizado por 01 contramestre, 05 alunos formados e 04 instrutores.

Para além da relação de discípulos do Mestre Jean Pangolin, os gestores filiados estas parceri-

as estrangeiras não são dotadas de vínculos jurídicos, se restringindo ao campo filosófico e

metodológico. Desta forma, não estabelecem princípios econômicos, hoje principal regente do

sistema de franquias pelo mundo. Estes parceiros levam para os seus países a experiência da

GUETO na área da docência, gestão e conhecimento da capoeira, abrindo novas frentes de

ação social da instituição, com relativa autonomia na gestão de seus núcleos.

As sedes da GUETO estão atualmente localizadas em Vitória da Conquista - BA, Amargosa -

BA, Rio de Contas - BA, Dom Basílio – BA, em Comunidades tradicionais quilombolas: Ro-

cinha, Bananal e Barra - BA; Rio Grande do Norte na cidade de Parnamirim; em São Paulo

capital; nos países da América Latina: Argentina – Buenos Aires, Equador – Guayaquil, Quito

e Manta, Colômbia – Bogotá, Medelin e Cali; no Japão: Osaka, Joetsu, Fukui, Takaoka, Fu-

kuoka, Tóquio e Kanazawa, na Espanha em Manreza e Barcelona, e em Taiwan.

Com relação às responsabilidades dentro da organização, o que se observou foi o reconhe-

cimento das funções de cada departamento, mas a ausência de protocolos formais de respon-

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sabilidades para cada departamento e cargo dentro da organização. Esse comportamento é

característico de organizações com estruturas de grupos informais, o que talvez gere fluidez

nas rotinas administrativas, porém cause algumas confusões em torno das obrigações diante

do funcionamento da instituição.

No quadro da abrangência de responsabilidade temos: o vice-presidente que é responsável

pelas filiais internacionais; o presidente responsável pela coordenação dos projetos; o diretor

financeiro pela prestação de contas, compras, vendas, contratações em geral; a diretora social

por uma série de atividades, inclusive a confecção dos fardamentos utilizados pelos alunos da

ONG, etc.

Com relação à departamentalização da organização, a GUETO possui, ainda que de maneira

incipiente, voluntária e sazonal, departamentos com perfis funcionais que contam com a atua-

ção de algum familiar ou colaborador, todos subordinados ao departamento financeiro. O de-

partamento financeiro é, por sua vez, gerido voluntariamente pelo pai dos mestres Jean e Cás-

sio, o Sr. José Adriano Silva - empresário da área de informática. Cada departamento nem

sempre conta com participação de algum colaborador, levando outros membros a exercerem

dupla função na tentativa de manter a gestão da ONG equilibrada. A organização possui os

seguintes departamentos: pedagógico, de comunicação visual, coordenação de projetos e fi-

nanceiro (este último abarca ainda o de compras, vendas, administrativo e recursos humanos).

Nunca consolidou, ou o fez por pouco tempo, os departamentos de relações públicas, jurídico,

marketing e de captação de recursos.

Quanto ao departamento de comunicação organizacional, a GUETO possui um departamen-

to de comunicação visual, sob a responsabilidade da designer Sra. Kelly Adriano Silva, irmã

dos mestres fundadores, setor responsável pela confecção do material promocional da ONG.

Entretanto, a organização não tem garantida a existência de um departamento de relações pú-

blicas, nem de uma assessoria de imprensa o que limita as possibilidades de desenvolvimento

institucional dada às inúmeras potencialidades de tais setores.

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Figura 7. Estrutura Associação Cultural G.U.E.T.O.

Fonte: elaborado pela autora.

Sintetizando, conforme verificamos na figura 7, a GUETO encontra no seu processo de divi-

são, a especialização horizontal sendo encaminhada, mas, em contrapartida, baixa especiali-

zação vertical, pois a ONG não está efetivamente departamentalizada por escassez de recurso

que viabilize contratações de pessoal. O processo de coordenação, mesmo em estágio embrio-

nário de especialização horizontal tem uma cadeia hierárquica que se reporta aos dirigentes da

GUETO, equipe formada por familiares, estrutura centralizada neste núcleo familiar e que

define para cada membro da diretoria uma amplitude de controle dividido por áreas de atua-

ção. Ainda no critério coordenação, a ONG tem pouca padronização fruto de sua estrutura

considerada ainda, pré-burocrática.

5.2.2 Ambiente

A organização atende variados públicos, abrangendo crianças de 02 à 12 anos, adolescentes

de 13 à 18 anos, jovens de 19 à 25 anos e adultos, incluindo a terceira idade. Mensalmente em

Salvador são atendidas em torno de 100 praticantes, tendo ainda mais de 1.000 pessoas aten-

didas fora da sede soteropolitana.

Além do Projeto Social Camaradinhas, a GUETO realizou outros projetos com atividades

voltadas para diferentes clientelas, tais como: oficinas culturais para crianças em escolas da

rede particular de ensino, com o projeto Brincapoeira; cursos para pessoas com necessidades

educacionais especiais, com o projeto Capoeira Especial; aulas de cursos profissionalizantes

para jovens e adultos, em sua grande maioria afrodescendentes vivendo em situação de risco

social e pessoal, com a Escola de formação em Capoeira. Este último projeto já formou cerca

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de 50 profissionais em Metodologia de Ensino, Pesquisa e Extensão em Capoeira, muitos des-

ses professores trabalhando como voluntários no Projeto Camaradinhas em Salvador, bem

como nas sedes internacionais da GUETO.

Enquanto grupo de capoeira a GUETO possui quatro mestres (01 em Salvador - BA, 02 em

Amargosa – BA e 01 em Barcelona - ESP), quatro contramestres (01 na Bahia, 01 na Argen-

tina, 01 no Equador e 01 no Japão), sete professores (02 no Equador, 01 na Colômbia, 01 em

São Paulo, 04 na Bahia), dez alunos-formados e diversos instrutores pelo mundo afora, for-

mados na Escola GUETO desde sua criação.

Segundo Freeman (1988), stakeholder é qualquer grupo ou indivíduo que pode afetar ou ser

afetado pela conquista dos objetivos de uma empresa, por exemplo: acionistas, credores, ge-

rentes, empregados, consumidores, fornecedores, comunidade local e o público em geral.

Desta forma, descreve-se os apoiadores da GUETO que colaboraram com serviços ou financi-

amento para manutenção de suas ações sociais.

Ao longo desses anos algumas parcerias (empresas na área de alimentação – Restaurantes e

Delicatessens, Confecções, brindes, Telefonia celular, Aviação, hotelaria, Poder público mu-

nicipal, estadual e federal, etc.) foram estabelecidas e obtiveram resultados dentro das pers-

pectivas estabelecidas. Na sua grande maioria foram pontuais e realizadas para dar suporte

técnico-pedagógico e logístico a eventos artísticos, culturais e desportivos propostos pela ins-

tituição, contando com serviços prestados (sistema de sonorização para os teatros locados,

disponibilização de corpo docente da instituição parceira para palestras, disponibilização de

pauta dos locais para realização das ações planejadas, etc.) ao evento, patrocínio em produtos

(camisas, materiais promocionais, refrigerantes em lata, etc.) necessários para a execução dos

mesmos, foram eles: Coca-cola através da Norsa Refrigerantes Ltda., Universidade do Estado

da Bahia (UNEB), Universidade Federal da Bahia (UFBA), Governo do Estado da Bahia,

Prefeitura Municipal de Salvador, Livramento de Nossa Senhora, Rio de Contas, Itajuípe,

Dom Basílio e Vitória da Conquista, diversas empresas de lanches e Panificadoras, restauran-

tes, escolas da rede particular de ensino, teatros etc.

Em minoria, alguns patrocínios pontuais em dinheiro, configurando cooperação financeira

para alguns de seus eventos anuais: Empresa autorizada Claro em 2004; Superintendência de

Desportos da Bahia (SUDESB), um órgão da Secretaria de Trabalho e Renda (SETRE) do

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Governo do Estado da Bahia em 2007 e 2009; PETROBRÁS S/A em 2006 e 2009 e da Secre-

taria de Turismo (SETUR) e BAHIATURSA em 2009 e 2010.

Pequenas parcerias foram firmadas com o objetivo na ampliação das ações sócio-educativas,

portanto a médio e longo, junto ao público do Projeto Social Camaradinhas, foram elas:

Curso e Colégio Oficina – sede Salvador - que do ano de 2003 até 2010, através do

Projeto de Cidadania da escola, atua promovendo doações mensais de cestas básicas

e encontros, para discussões de temas variados, oficinas de coral e percussão minis-

tradas na sede da associação por estagiários contratados pela escola. Esta parceria

trouxe para o Colégio Oficina o selo de “Escola Solidária”, certificado pela UNES-

CO desde 2006 pelo programa Faça Parte.

Ponto de Cultura do Estado da Bahia, reconhecido desde 2008 pela Secretaria de

Cultura do Estado da Bahia (SECULT) em parceria com o Governo Federal. Este re-

conhecido vem aliado a um plano de injeção de capital durante três anos (R$

5.000,00 x mês), verba que poderá ser usado, exclusivamente, para ampliação das

ações da associação – custeio e capital - com fins na auto-sustentabilidade destas

ações ao final do repasse.

Não tendo atualmente nenhuma parceria fixa, a ONG possui entrada restrita de capital oriun-

do da venda de fardamentos e graduações para as “filiais”, escolas de capoeira GUETO, nos

outros países e as instituições de ensino formal onde atuam os sócio-educadores formados

pela associação.

Figura 8. Ambiente da G.U.E.T.O.

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Fonte: Elaborado pela autora

Quanto ao ambiente organizacional, conforme figura 8, a GUETO tem domínio ambiental ou

nicho ambiental representado pela relação com indivíduos e instituições envolvidas na produ-

ção de suas atividades (fornecedores, colaboradores, etc.), serviços (colaboradores, alunos,

coordenadores, etc.) e mercado (apoiadores, cidadão-beneficiário, etc).

Analisando a partir do modelo de interessados e stakeholders (LOIOLA, 2004), a ONG apre-

senta grande nível de incerteza ambiental. Isso acontece devido à instabilidade frente à entra-

da de capital, e, consequente, à sua sustentabilidade financeira, tendo em vista à instabilidade

frente aos fatores externos à associação (apoiadores, economia etc.).

5.2.3 Ritual

Os principais rituais da GUETO têm conexão estreita com os rituais oriundos da cultura da

capoeira, interpondo influências marcantes nas práticas organizacionais da instituição. Temos,

portanto enquanto rituais organizacionais o ritual do “aprender fazendo”, da “hierarquização

horizontal” das relações, a roda, do “batismo” ou filiação, do sistema iniciático de formação

etc.

O aprender fazendo é um dos mais importantes elementos no “jogo” do ensino aprendiza-

gem que a capoeira encerra em seu arcabouço ritualístico. Neste, o aprendizado está atrelado à

contextualização do conteúdo, ou seja, esta herança que herdamos da sociedade africana nos

ensina que não devemos dicotomizar a ação prática do aprendizado teórico, isto é, boa parte

de tudo que aprendemos na capoeira acontece por uma experimentação prática, que geralmen-

te é catalisada por um ambiente que mescla indivíduos com diferentes experiências, mediados

pela intervenção do mestre para a produção de um bem comum a todos. Esta metodologia é

aplicada na GUETO em todos os processo de ensino aprendizagem seja ele referente à uma

nova função, à um novo status na hierarquia organizacional etc.

Quanto à hierarquia, a cultura da capoeira aponta ainda para uma relação de “hierarquização

horizontalizada” entre educandos e educadores, garantindo a presença qualificada do mais

antigo nas relações de ensino aprendizagem, a preservação do respeito e equilíbrio necessário

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para o processo de desenvolvimento dos mais novos e, ainda, a isenção da ameaça do abuso

de poder por parte do mais antigo.

Essa horizontalização da hierarquia fortalece ainda a zona de desenvolvimento proximal

(ZDP), apresentada por Rego como “à distância entre aquilo que ele é capaz de fazer de forma

autônoma (nível de desenvolvimento real) e aquilo que ela realiza em colaboração com os

outros elementos do seu grupo social (nível de desenvolvimento potencial) caracterizando

aquilo que Vygotsky chamou de zona de desenvolvimento proximal ou potencial” (REGO,

1995, p.73). Ainda segundo Rego (1995, p.74) “o aprendizado é o responsável por criar a zo-

na de desenvolvimento proximal na medida em que, em interação com outras pessoas, o indi-

viduo é capaz de colocar em movimento vários processos de desenvolvimento que, sem a aju-

da externa, seriam impossíveis de ocorrer”.

Essa horizontalização hierárquica foi identificada nas relações estabelecidas entre os familia-

res dirigentes da GUETO, que independente de ter a presença marcante e com alto poder de-

cisório do pai dos mestres fundadores da GUETO, Sr. José Adriano, o mesmo respeitava e

incentivava a autonomia dos demais familiares componentes dos departamentos da organiza-

ção.

O ritual de maior notoriedade na capoeira se apresenta através de sua roda, grande rito de

passagem. Conforme Pedro Abib, este ritual é um dos momentos mais ricos do processo de

aprendizagem na capoeira, “aberto às influências e inventividades, quando o aluno, através

dos toques e dicas do mestre que acompanhava atento o seu desenvolvimento, dos conselhos

de outros camaradas da roda ou por si próprio, ia descobrindo as articulações, truques e ma-

nhas do jogo” (ABIB, 2005, p.128). A partir de então, o aluno começava a adaptar o seu jeito

de jogar, bem como aprender algo mais sobre a vida.

A roda influencia as práticas organizacionais construindo a consciência da coletividade im-

pressa na dinâmica organizacional, levando os departamentos da organização e seus dirigentes

à uma tônica de engrenagem, onde somente na coletividade é que se produziria o desenvolvi-

mento institucional. E assim, mesmo diante de tantas intercorrências e escassez de colabora-

dores, os departamentos mantêm uma unidade de engrenagem no seu funcionamento.

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O ritual do “batismo” ou da filiação, nacional ou internacional, acontece sempre quando a

GUETO recebe um novo integrante para seu quadro organizacional, seja ele um novo colabo-

rador ou o representante de uma nova sede. Geralmente na capoeira este processo de acolhi-

mento é marcado com uma roda de capoeira onde será analisada personalidade deste novo

integrante e, em seguida, uma reunião informal para conhecimento e ajustes de interesses.

Estabeleceu-se na rotina organizacional, um ritual semelhante para receber um novo colabo-

rador voluntário ou um novo representante uma espécie de reunião informal, com um dos

mestres, ou o diretor financeiro. Nessa reunião é explicado o funcionamento da ONG, históri-

co, missão, regras de funcionamento das filiais, bem como é entregue o logo da ONG e falado

sobre os cuidados com o uso da marca.

A relação de ensino aprendizagem das práticas organizacionais na ONG, entre dirigentes,

colaboradores e beneficiários, se dá prioritariamente pela oralidade, ritual e memória, resis-

tindo há anos sem, no entanto, gerarem desestrutura ou desregramento pela ausência da escrita

nestes processos.

“[...] a cultura da palavra não é algo abstrato ou isolado da vida: a palavra tem em sua essên-

cia a força vital, a força criadora e encontra-se relacionada com as atividades humanas”

(SANTANA, 2009, p.70). Desta forma, a cultura oral, sistema de transmissão válido nas prá-

ticas organizativas da capoeira, e, consequentemente, na GUETO produzem valores, crenças,

normas e rituais, elementos que se perpetuam no continuum da vida organizacional.

Na capoeira, o processo de ensino-aprendizado se dá da mesma maneira através da cultura

oral. Esta é uma herança da matriz africana vinculada a esta prática. Nos ensinamentos do

mais antigo os fundamentos da capoeira vão se sedimentando no educando que tanto aprende

quanto futuramente ensina aos seus futuros discípulos. Esses ensinamentos são perpetuados

através da fala, de um conselho, de uma cantiga de aviso, ou de abertura e/ou encerramento,

carregados de simbologia e conhecimento e que vão levando gerações afora os saberes dessa

cultura.

Esse é um aspecto da comunicação organizacional, a instituição faz expressivo uso da orali-

dade em seus processos de comunicação interpessoal e intersetorial, o que traz benefícios di-

ante da seletividade e perpetuação dos procedimentos mais significativos e importantes para a

ONG, porém pouca utilização e usufruto das contribuições advindas da sistematização e regis-

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tro escrito. Não conta com departamentos e profissionais da área de relações públicas e mar-

keting, fato que tem prejudicado muito a divulgação das ações da ONG para com o público

externo, passo importante na legitimidade das ações institucionais, bem como na consolidação

da sua sustentabilidade financeira.

O sistema de formação e, consequentemente, de graduação utilizado pela ONG, conforme

citado acima, foi desenvolvido pelos mestres da mesma em parceria com outros mestres de

grupos de capoeira parceiros e é utilizado por alguns grupos de capoeira no Brasil. Neste sis-

tema os mestres demonstram especial preocupação por desenvolverem uma fundamentação

filosófica para o sistema de graduações da capoeira, que compõem o seu sistema de formação,

e a peculiaridade desta produção se dá pelo ineditismo de tal elaboração, haja vista ter encon-

trado muito pouca produção neste aspecto voltado para a formação do capoeirista na literatura

e órgãos competentes. Talvez isso aconteça pela pouca oportunidade que a comunidade de

capoeira tenha em acessar a educação formal, consequentemente, reconhecer tais processos e

ser capaz de produzir tais sistematizações. A seguir descrevemos o embasamento técnico-

filosófico construído para os níveis deste sistema.

Fase 1. Iniciação

O sistema de graduação nesta fase consiste em quatro graduações representativas de iniciação

do adepto, divididas em sua ordem: 1ª) verde cana; 2ª) verde cana e verde; 3ª) verde e 4ª) ver-

de e amarela. Estas cores representam o estágio de desenvolvimento do adepto em diversas

questões referentes à “prática” da capoeira, simbolicamente representando o verde do fruto

amadurecendo para amarelo (ouro).

Fonte: Associação Cultural GUETO

Fase 2. Licenciatura

Figura 9. Graduações da fase de Iniciação - GUETO

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O sistema de graduação nesta fase consiste em três graduações representativas do processo de

aprimoramento do aluno iniciado, delegando ao mesmo, funções disciplinares e didáticas.

Estágio preparatório para o “ensino aprendizagem”, possibilitando-o vivenciar o aprendizado

da licenciatura (cursos de monitoria, instrutor e formado). Simbolicamente esse estágio inicia-

se com a cor amarela representando riqueza (Monitor), passando para o amarelo e azul (ins-

trutor), seguindo para azul (formado) símbolo de nobreza, na medida em as futuras

graduações aumentam a responsabilidade e autonomia do adepto.

Fonte: Associação Cultural GUETO

Fase 3. Professor

Esta fase do sistema de graduações consiste nos estágios de professor, subdividida em quatro

etapas que se iniciam no aprendizado da docência. Simbolicamente, o marrom será permutado

com outras cores até adquirir sua pureza, fruto do amadurecimento, representada pela cor

marrom, símbolo da sobriedade e sabedoria. São etapas desse estágio: 1ª) Professor Aprendiz;

2ª) Professor Ouro; 3ª) Professor Nobre e 4ª) Professor Considerado | Sábio.

Fonte: Associação Cultural GUETO

Fase 4. Contramestre

Esta fase do sistema de graduações consiste nos estágios de contramestre, período de

maturação entre a fase de professor a mestre, dividido em quatro etapas que visam estimular o

total domínio da relação do adepto com a capoeira e sua comunidade, bem como, objetiva

Figura 10. Graduações da fase de Licenciatura - GUETO

Figura 11. Graduações da Fase de Professor - GUETO

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menos o aporte e desenvolvimento técnico e mais a parte filosófica na preparação para a ma-

estria. Simbolicamente é representada pela cor vermelha representando a vida, sangue e

esforço, entrelaçada inicialmente na cor amarela (riqueza), azul (nobreza), marrom (sobrieda-

de), até a cor vermelha pura (Contramestre Considerado), supondo que ao chegar a essa etapa

não terá que passar por amadurecimento inicial (cores verde e amarelo). São etapas desse es-

tágio: 1ª) Contramestre Ouro; 2ª) Contramestre Nobre; 3ª) Contramestre Sábio e 4ª)

Contramestre Considerado (Valente).

Fonte: Associação Cultural GUETO

Fase 5. Mestre

Esta fase do sistema de graduações consiste nos estágios de mestre, estágios supremos em que

o indivíduo passa por uma “purificação” simbolizada pela cor branca e marcada pelo reconhe-

cimento público de sua mestria, sabedoria na lida com seus discípulos e instituição, verdadei-

ro repositor vivo dos saberes e fazeres da capoeira. Galgadas todas as fases: 1 de maturação, 2

da nobreza, 3 da sobriedade e 4 do esforço, é chegada a hora de buscar a fase da purificação

dos conhecimentos, atitudes, relações, comportamentos, etc. São etapas desse estágio: 1ª)

Mestre Nobre; 2ª) Mestre Sábio; 3ª) Mestre Valente e 4ª) Mestre Supremo.

Fonte: Associação Cultural GUETO

Figura 14. Graduações da Fase de Mestre - GUETO

Figura 13. Graduações de contramestre GUETO

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Este processo de formação influenciou as práticas organizacionais da GUETO gerando um

sistema de reconhecimento público frente aos colaboradores da organização, baseado na par-

ticipação do colaborador, sendo assim, quanto mais participativo e presente da dinâmica or-

ganizacional, mais conhecedor, confiável e respeitado é o colaborador.

Ademais se pode contar com pequenos outros rituais incorporados pela organização a partir

das práticas da cultura da capoeira, são eles: realização de festas comemorativas para as crian-

ças do Projeto Social Camaradinhas, jovens e adultos em algumas datas festivas (São João,

Dia das Crianças, Natal), onde são entregues presentes e comes-e-bebes; realização de evento

de Batismo e Troca de Graduações, 02 vezes por ano, para os cidadãos-beneficiários pratican-

tes de capoeira, que reuni apoiadores da ONG, alunos e familiares dos projetos da ONG, pro-

fessores e dirigentes da ONG; entrega mensal de cestas básicas para os alunos do Projeto So-

cial Camaradinhas, dada a condição econômica dos mesmos etc.

Figura 15. Ritual da G.U.E.T.O.

Fonte: Elaborado pela autora

Sendo assim, podemos considerar (figura 15) o grande potencial e apelo transformador da

capoeira frente às dinâmicas pessoais e institucionais, reconfigurando práticas organizacionais

e gerando, neste processo, reflexos qualitativos para o continuum de organizações sócias que

tem a capoeira, ou as manifestações de matriz africana como mote de ação .

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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente capítulo traz algumas interpretações conclusivas, mesmo que provisoriamente,

pois a contínua caminhada acadêmica poderá alterar tais constatações construidas em torno do

universo da cultura da capoeira e suas implicações no campo da cultura organizacional. Tal

aprofundamento vem trazer significaticas contribuições tanto para a pequisadora, quanto para

a organização em estudo, como para as organizações que tem na capoeira o seu mote de ação

e que estão vivenciando um processo de expansão em nível internacional sem principios

econômicos. Tais contribuições aportam a área dos estudos organizacionais, especificamente

das organizações sociais, estruturadas no terceiro setor, e que trabalham com a Capoeira,

promovendo uma visão da cultura organizacional deste tipo de organização e favorecendo a

compreensão de seus limites e possibilidades de atuação que aporte novos rumos

institucionais.

O estudo traz ainda a produção de conhecimento em torno do processo de gestão dessas

ONGs, com vistas em seu desenvolvimento organizacional, analisando as características

particulares que permeiam sua cultura organizacional influenciada pela cultura da capoeira,

validando-a e adequando-a às necessidades de sustentabilidade econômica institucional.

Neste percurso, foram projetadas estratégias de aprofundamento e utilização de técnicas de

coleta e análise de dados para aportar tais descobertas que proporcionaram a construção de

uma trajetória histórico-cultural para a capoeira, destacando suas dimensões constitutivas e

sua cultura organizacional; o entendimento da capoeira enquanto prática organizacional e,

respectivamente, análoga às práticas das organizações sociais de capoeira; bem como, a

estruturação de dimensões de análise organizacional a partir da abordagem da cultura

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organizacional.

Contribue, ainda, na reflexão sobre os aspectos interseccionais entre a cultura da capoeira e a

cultura organizacional de ONGs de Capoeira, com atenção especial às práticas organizativas

instituídas gradativamente neste tipo de organização social, preenchendo uma lacuna

importante na área de estudos organizacionais (EO) e fornecendo informações e reflexões

sobre a cultura da capoeira e a cultura organizacional. Este novo olhar sobre as práticas

organizacionais aporta os EOs sobre outra maneira de entender a lógica da cultura

organizacional, sobretudo quando vinculadas às organizações que tem como mote de ação as

manifestações culturais de matriz africana, com suas peculiaridades ritualísticas e valorativas,

lógicas que podem ser aproveitadas e transferidas às demais organizações congêneres,

auxiliando-as no seu desenvolvimento institucional.

Dessa forma, o estudo construiu a seguinte sequência teórica: a trajetória histórica e cultural

da capoeira e suas dimensões constitutivas; seguindo pela cultura organizacional, as organiza-

ções sociais, a gestão social e suas práticas organizativas; apresentando e descrevendo a abor-

dagem metodológica de pesquisa, os instrumentos e os procedimentos utilizados para na cole-

ta e análise dos dados; trazendo a organização em estudo – Associação Cultural GUETO, sua

trajetória institucional e uma análise das suas práticas organizativas à luz da cultura da capoei-

ra em três categorias, estrutura, ambiente e ritual organizacionais, para daí levantar as consi-

derações finais do presente trabalho, como as críticas pertinentes à gestão da organização alvo

de nossos estudos.

A questão de pesquisa foi, portanto, respondida na medida em que apontou, através de inúme-

ros pontos e categorias, a influência da cultura da capoeira sob as práticas organizacionais de

associações de capoeira em fase de expansão internacional e princípios de atuação não

econômicos, conhecimento ainda não explorado no campo dos EOs e que são significativos

para o desenvolvimento institucional destas organizações, na medida em que revelam suas

práticas, limites e desafios.

O design metodológico e as referências escolhidas foram sobremaneira importantes, pois au-

xiliaram respectivamente na ampla e satisfatória coleta dos dados e orientar e elucidar as des-

cobertas necessárias ao embasamento, interpretação dos dados e resposta da questão de pes-

quisa.

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Para finalizar, algumas críticas e sugestões merecem ser registradas em relação à gestão da

organização, visto o caráter da dissertação de um mestrado profissional que também tem co-

mo objetivo a intervenção.

Quadro 12. Conclusões da pesquisa

Fonte: Elaborado pela autora

Do ponto de vista estrutural, a GUETO atualmente vive um sério quadro de crise institucio-

nal muito vinculado à sua necessidade de profissionalização. Como citado no capítulo do ca-

so, a ONG atualmente tem como realidade um tamanho desproporcional a sua real condição

de sustentabilidade financeira. Isso se dá, pois, ao crescer baseada em vínculos da relação

mestre x discípulo em capoeira, a mesma introjetou e perpetuou os princípios não econômicos

que embasam tal relação, pois os mesmos não inviabilizam um projeto de sustentabilidade,

somente não os subordinam ao lucro. E, ainda, deixou de estabelecer enquanto ponto prioritá-

rio a construção de um projeto de subvenção para tais ações sociais, gerando uma grande crise

na instituição que atualmente se vê com suas ações e projetos em risco de serem suspensos

pela falta de subvenção.

Na cultura da capoeira, a relação entre o mestre e o seu discípulo também não tem geralmente

como prerrogativa a subordinação financeira, inclusive na maioria das vezes esta relação se dá

pautada na gratuidade já que a capoeira tem cumprido uma missão social de dar acesso cultu-

ral a uma camada da população com baixo poder aquisitivo. Sob a promessa e esperança de

que discípulos se transformem em fiéis seguidores e futuros grandes mestres de capoeira, o

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mestre já passa a tratá-lo com relativa afeição e intimidade, transformando em mais que um

aluno, em fiel discípulo. Essa marca na relação já afasta quaisquer finalidades lucrativas na

transmissão de saberes de um para o outro. O que vai perdurar até o fim de sua relação, natu-

ralmente com a morte do mestre, com raras exceções.

Assim sendo, muitas organizações de capoeira que naturalmente passam pelo processo de

expansão, nesses moldes, tem uma tendência a melindrar e não saber lidar com tais situações,

gerando um grande problema, pois a nova roupagem institucional requererá uma fonte de sub-

sídio que não se vê projetada pelos gestores. Faz-se necessário portanto uma reestruturação

das etapas de gestão (planejamento, direção, controle e avaliação) para que se possa encontrar

os pontos de conflito na gestão, a fim de desencadear o desenvolvimento sustentável da ONG.

É nítida também a necessidade de se propor uma separação das relações estabelecidas entre

mestre x discípulo e gestor x colaboradores, para que se possa avançar diante da crise institu-

cional à qual a organização se encontra, limitando a intervenção de cada um destes atores

(mestre e gestor) aos seus cenários.

A capoeira enquanto prática social sempre estabeleceu relações pautadas na confiança, do tipo

familiar e que tinham como prerrogativas o voluntariado para acontecerem. Os grupos de ca-

poeira são verdadeiras comunidades, que se ajudam, se ensinam, se respeitam e convivem em

constante busca de harmonia e aprendizado. Portanto, a capoeira traz esse traço de voluntaria-

do em sua estrutura de funcionamento, o que corrobora com o perfil das relações estabeleci-

das nas organizações sociais.

A GUETO, como outras organizações sociais, fundamentam boa parte de suas relações de

trabalho no voluntariado, isso se dá por diversas questões: a primeira delas, pela motivação

social de tais ações que motivam muitas colaborações; a segunda, pela parca condição de ar-

car financeiramente com tais colaborações não tendo tantos recursos – princípio não lucrativo

e poucos financiadores externos. Portanto, e mais uma vez, faz-se necessário uma efetiva

reestruturação da organização a fim de garantir a entrada de capital econômico que garanta a

estrutura mínima da ONG.

Ao tratarmos dos desafios da formalização / profissionalização dos grupos sociais, podemos

trazer como exemplo as organizações de capoeira, que precisam lidar com as novas

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competências gerenciais oriundas deste processo, momento em que entram em choque com as

demandas do cotidiano do mestre de capoeira, até então preocupado somente com a formação

em capoeira e a lida e conservação dos seus princípios técnicos, filosóficos e ritualísticos.

Voltando ao caso dessa organização social que trabalha com o ensino e a difusão da capoeira

como mote de ação, citamos ainda os novos desafios de seus gestores no estabelecimento da

política da organização em tempos distintos (longo, médio e curto prazos) e o zelo pela

efetivação destas políticas, através das práticas necessárias para a construção de novas

realidades. Neste sentido, os responsáveis por lidar com estes desafios precisam utilizar-se de

ferramentas gerenciais tradicionalmente utilizadas pela administração, novas práticas organi-

zacionais que farão parte do cotidiano da instituição a fim de auxiliar o núcleo gestor na ad-

ministração da ONG.

A gestão já vivenciada no microcenário das práticas organizativas da capoeira amplia-se num

continuum de ações gerenciais da recém-criada organização. Com isto aumentam as preocu-

pações oriundas da lida e gerenciamento organizacional, na busca do entendimento de quais

práticas organizacionais podem corroborar com uma boa administração.

Quanto à expansão das sedes da GUETO, aspecto pertinente ao ambiente organizacional,

através de novas sedes no mundo podemos destacar que o processo se deu a partir do vínculo

de confiança estabelecido na capoeira, entre o mestre de capoeira da ONG e seus discípulos,

dando a estes a oportunidade de iniciar os trabalhos pedagógicos em capoeira, princípio para

sua formação continuada, que acabou dando origem aos vários núcleos da instituição. Esse

processo é carregado de insígnias, são elas: a confiança, o respeito ao mais antigo - ancestrali-

dade, a responsabilidade e a continuidade, que vinculará para toda vida a qualificação deste

discípulo a seu mestre, por conseguinte à instituição. Isso acontece, pois a ONG tem muitas

de suas práticas organizacionais vinculadas à cultura da capoeira.

Conforme citado em capítulo anterior, a formação em capoeira se dá de maneira iniciática

durando no mínimo vinte anos para a graduação de mestre, máxima titulação, sendo assim a

relação entre o mestre e seu discípulo é estabelecida em laços fortes de respeito, devoção e

lealdade, o que torna peculiar as relações estabelecidas entre a escola do mestre e as futuras

escolas montadas pelos discípulos.

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Novamente temos configurada a relação centrada na figura do mestre, em estrutura baseada

em laços fortes de confiança, respeito, ancestralidade, traços de cultura familiar, que precisa,

no entanto encontrar meios de existir, planejando estratégias de sustentabilidade financeira

para a sede no Brasil.

A expectativa da pesquisa, no entanto, é que de posse deste “pontapé” inicial traçando as

interseções dentre a cultura da capoeira e da cultura organizacional, se possa propor a

continuidade dos estudos, só que agora em nível de doutorado e que, através da pesquisa-

ação, se possa descobrir e produzir uma tecnologia de gestão social (TGS), no formato de um

manual de desenvolvimento institucional que verse sobre as etapas de gestão organizacional e

auxiliem na sustentabilidade das organizações de capoeira em expansão internacional, tendo

em vistas suas peculiaridades.

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8 APÊNDICES

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APÊNDICE A - Avaliação Situacional da GUETO

Técnica: grupo focal

Macro-Abordagem:

Gerencialista

Avaliação:

Situação institucional

Demandas:

Avaliar situação atual da instituição GUETO na visão de seus dirigentes, após a sua expansão

internacional

Roteiro de Perguntas avaliativas:

1. Como nasceu a organização?

2. Quais valores que predominaram no começo?

3. Como foi o processo de transformação?

4. Como eles se vêem hoje como instituição? (Porte)

5. Quais os desafios inerentes ao tamanho?

6. Como foi essa transição?

7. Quais os valores de hoje?

8. Quais são as Incertezas de hoje?

9. Quais são as expectativas para a instituição?

APÊNDICE B - ROTEIRO DE ENTREVISTA

Membros do grupo – FILIADOS INTERNACIONAIS

Perguntas:

1. Como você conheceu a organização?

2. Quais valores que predominaram para a filiação à GUETO?

3. Como foi o processo de transição de suas instituições anteriores para a GUETO?

4. Como vocês se vêem hoje como instituição GUETO?

a. Estrutura

b. Ambiente interno

c. Ambiente externo

d. Ritual

5. Quais as dificuldades inerentes ao tamanho da GUETO?

6. Houve mudança de valores? Quais?

7. Quais são os desafios da filial?

8. Quais são as expectativas para a instituição em relação ao futuro?