programa universidade para todos - democratizar ou mercantilizar - roberto leher

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Programa Universidade para Todos: democratizar ou mercantilizar? Muitos estudantes se beneficiaram do ProUni. E devem ser apoiados em seu direito à educação superior. O problema é que tal política destrói qualquer projeto democrático de nação por Roberto Leher A expansão das matrículas do ensino médio, o recrutamento de força de trabalho pelo capital e as mobilizações de estudantes e docentes em prol de uma reforma universitária tornaram improrrogável a questão da democratização do acesso à educação superior. O crescimento econômico motivou a emergente classe média a investir – como o passaporte para a mobilidade social – em cursinhos pré-vestibulares para garantir o acesso de seus filhos à universidade. Os estudantes excedentes (aprovados, mas sem vagas) saíram às ruas em protestos que abalavam a imagem do “Brasil potência”. Diante das pressões, o governo argumentou que as vagas públicas não poderiam atender prontamente à demanda. “Sensível” aos reclamos sociais, induziu a abertura de vagas no setor privado, em instituições universitárias ou não (uma firula, diante da causa democrática), por meio de pesadas isenções tributárias e empréstimos estudantis fortemente subsidiados pelo poder público. Assim, o anseio dos estudantes poderia ser realizado “aqui e agora”. Ao mesmo tempo, contemplaria os interesses capitalistas dos empresários da educação, segmento que demonstrara força política no processo de elaboração da Lei de Diretrizes e Bases. Evidentemente, referimo-nos até aqui à ditatura civil- militar de 1964. O sistema de bolsas foi colocado em prática pela Emenda Constitucional n. 1, de 1969, que determinava a criação de bolsas de estudo restituíveis, e pelo artigo 20 da Constituição de 1967, que vedava à União, aos estados e aos municípios a cobrança de impostos sobre renda, patrimônio e serviços dos estabelecimentos de ensino. Houve uma acentuada expansão

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Texto esclarecedor do professor Roberto Leher.

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Programa Universidade para Todos: democratizar ou mercantilizar?

Muitos estudantes se beneficiaram do ProUni. E devem ser apoiados em seu direito educao superior. O problema que tal poltica destri qualquer projeto democrtico de naopor Roberto Leher

A expanso das matrculas do ensino mdio, o recrutamento de fora de trabalho pelo capital e as mobilizaes de estudantes e docentes em prol de uma reforma universitria tornaram improrrogvel a questo da democratizao do acesso educao superior. O crescimento econmico motivou a emergente classe mdia a investir como o passaporte para a mobilidade social em cursinhos pr-vestibulares para garantir o acesso de seus filhos universidade. Os estudantes excedentes (aprovados, mas sem vagas) saram s ruas em protestos que abalavam a imagem do Brasil potncia.

Diante das presses, o governo argumentou que as vagas pblicas no poderiam atender prontamente demanda. Sensvel aos reclamos sociais, induziu a abertura de vagas no setor privado, em instituies universitrias ou no (uma firula, diante da causa democrtica), por meio de pesadas isenes tributrias e emprstimos estudantis fortemente subsidiados pelo poder pblico. Assim, o anseio dos estudantes poderia ser realizado aqui e agora. Ao mesmo tempo, contemplaria os interesses capitalistas dos empresrios da educao, segmento que demonstrara fora poltica no processo de elaborao da Lei de Diretrizes e Bases.

Evidentemente, referimo-nos at aqui ditatura civil-militar de 1964. O sistema de bolsas foi colocado em prtica pela Emenda Constitucional n. 1, de 1969, que determinava a criao de bolsas de estudo restituveis, e pelo artigo 20 da Constituio de 1967, que vedava Unio, aos estados e aos municpios a cobrana de impostos sobre renda, patrimnio e servios dos estabelecimentos de ensino. Houve uma acentuada expanso das matrculas no ensino superior: entre 1960 e 1980, de 200 mil para 1,4 milho (cerca de 500%), mas o grande impulsionador da expanso foi o setor privado (crescimento superior a 800%), que partiu de um patamar de 42% das matrculas no incio dos anos 1960, alcanando 50% em meados dos 1970 e, em 1980, sendo responsvel por 63% do total. A soluo emergencial do problema do acesso expandiu e diferenciou as instituies de ensino superior privadas, legitimando a contrarreforma de 1968, calibrada pelos Acordos MEC-Usaid. Ao final da ditadura, o sistema pblico assumiu funo complementar ao privado. As fraes mais pauperizadas teriam de se conformar com cursos aligeirados, adequados para formar o exrcito industrial de reserva.

A crtica ditadura colocou em evidncia o perverso modelo privado-mercantil: embora ofertando cursos, em geral sem qualidade, os lucros do setor ampliaram exponencialmente sob o manto da filantropia. Da por que a luta na Constituinte ter priorizado a consigna: verbas pblicas para as escolas pblicas. Derrotas e avanos coexistem no captulo da educao da Carta de 1988. O artigo 207 consagra a universidade como uma instituio autnoma e referenciada na indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extenso, mas o artigo 209 estabelece que o ensino livre iniciativa privada, e os artigos 150 e 213 admitem a possibilidade de repasse de recursos pblicos (apenas) para as instituies sem fins lucrativos (comunitrias, filantrpicas e confessionais).

Fernando Henrique Cardoso institucionalizou o carter privado-mercantil das particulares (Decreto n. 2.306/1997). A expanso, doravante, foi liderada por essas instituies com fins lucrativos (em 2008, das 2.016 privadas, 1.579 eram particulares). Aps o boom das matrculas privadas entre 1995-1999, o setor educacional foi afetado por uma crise semelhante dos anos 1980: no havia mercado consumidor, com renda, para comprar o servio educacional. Nesse contexto, o poder do atraso se imps. O resgate das organizaes privadas dar-se-ia em nome do interesse pblico. Tratava-se de democratizar o acesso aqui e agora, ainda que financiando as instituies privadas. O diagnstico do governo era de que o setor pblico no daria conta e era pouco eficiente nos gastos. O setor privado seria auspiciado por uma dupla medida j conhecida: a) oferecer isenes tributrias para as organizaes privadas (Programa Universidade para Todos), ultrapassando at mesmo os limites da Constituio (ao conceder isenes s instituies com fins lucrativos) e b) turbinar o programa de emprstimos subsidiados para os clientes (Fies).

Muitos estudantes se beneficiaram do ProUni. E devem ser apoiados em seu direito educao superior. No resta dvida de que outros muitos se beneficiaram da expanso e das bolsas na ditadura. O problema que tal poltica destri qualquer projeto democrtico de nao. A opo pelo setor privado leva ao encolhimento do setor pblico. Em 2002, apenas 27% das matrculas eram pblicas; em 2010, 25%. Difunde-se um padro de educao minimalista e desvinculado das necessidades do pas: apenas 0,002% das bolsas do ProUni foram para Geologia e 0,6% em Medicina, por exemplo; o grosso se destina a cursos de humanidades, tecnolgicos de curta durao (sem relao com as reas tecnolgicas duras) e cincias sociais aplicadas, cursos fast delivery diploma.

O prprio nome do programa enganoso: no universidade para todos. Melhor seria Universidade de Qualquer Jeito (VNS), j que as vagas esto dispersas em todo tipo de instituio de ensino superior, inclusive nas mal avaliadas pelo MEC. de baixa efetividade. Em 2005, apenas 77% das vagas anunciadas em macias campanhas publicitrias foram ocupadas. Em 2008, apenas 58% das vagas anunciadas. O custo-aluno para o Estado enorme, muito acima da mensalidade mdia das empresas: a) organizaes com fins lucrativos: R$ 436; custo do bolsista: R$ 495; b) sem fins lucrativos beneficentes: R$ 597; valor pago por aluno: R$ 1.043 (2006).

Uma diferena em relao aos anos da ditadura precisa ser realada. Atualmente, o setor controlado por corporaes e fundos de investimento com grande participao de capital estrangeiro. No se trata mais de empresas familiares, mas de negcios que compem o rol de investimentos especulativos do setor financeiro. Permitir, em nome da democracia, que a juventude brasileira permanea prisioneira dessa educao mercantilizada algo brutal. Urge mudar a direo da poltica educacional. E o eixo tem de ser pblico e universal. Uma universidade aberta a todos os que possuem um rosto humano. A histria se move!

Roberto Leher

Professor titular da Faculdade de Educao e do Programa de Ps-Graduao em Educao da UFRJ, alm de pesquisador do CNPq