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ISSN 1980-6493 (eletrônica) Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem Universidade do Sul de Santa Catarina Palhoça – SC v. 8, n. 1, p. 1-157, jan./jun. 2013

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ISSN 1980-6493 (eletrônica)

Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem

Universidade do Sul de Santa Catarina

Palhoça – SC

v. 8, n. 1, p. 1-157, jan./jun. 2013

Reitor

Sebastião Salésio Herdt

Vice-Reitor

Mauri Luiz Heerdt

Pró-Reitor de Ensino, Pesquisa e Extensão

Mauri Luiz Heerdt

Pró-Reitor de Operações e Serviços Acadêmicos

Valter Alves Schmitz Neto

Pró-Reitor de Desenvolvimento Institucional

Luciano Rodrigues Marcelino

Diretor do Campus Universitário de Tubarão

Heitor Wensing Júnior

Diretor do Campus Universitário da Grande Florianópolis

Hércules Nunes de Araújo

Diretor do Campus Universitário Unisul Virtual

Fabiano Ceretta

Programa de Pós-graduação em Ciências da Linguagem

Fábio José Rauen (Coordenador)

Solange Leda Gallo (Coordenadora Adjunta)

C95 Crítica cultural = Cultural critique/Universidade do Sul de Santa Catarina. -v. 1, n. 1 (2006). - Palhoça: Ed. Unisul, 2006-. 23 cm

SemestralISSN 2179-9865

1. Linguagem e cultura. 2. Comunicação e cultura I. Universidade do Sulde Santa Catarina. II. Título: Cultural critique.

CDD (21. ed.) 401.4

Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Universitária da Unisul

Crítica Cultural (Critic), Palhoça, SC, v. 8, n. 1, p. 1-157, jan./jun. 2013http://linguagem.unisul.br/paginas/ensino/pos/linguagem/critica/revista.htm

Editores/Editors

Alessandra Soares Brandão (Universidade do Sul de Santa Catarina)Antonio Carlos Santos (Universidade do Sul de Santa Catarina)Dilma Beatriz Rocha Juliano (Universidade do Sul de Santa Catarina)Fernando Vugman (Universidade do Sul de Santa Catarina)Jorge Wolff (Universidade Federal de Santa Catarina)Ramayana Lira de Sousa (Universidade do Sul de Santa Catarina)

Conselho editorial/Editorial board

Ana Cecilia Olmos (Universidade de São Paulo)Ana Porrúa (Universidad Nacional de Mar del Plata)Anelise Corseuil (Universidade Federal de Santa Catarina)Carlos Eduardo Capela (Universidade Federal de Santa Catarina)Célia Pedrosa (Universidade Federal Fluminense)Cláudia Mesquita (Universidade Federal de Santa Catarina)Edgardo Berg (Universidad Nacional de Mar del Plata)Flávia Seligman (Universidade do Vale do Rio dos Sinos)Florencia Garramuño (Universidad de Buenos Aires/Universidad de San Andrés)Idelber Avelar (Tulane University)Javier Krauel (University of Colorado at Boulder)João Luiz Vieira (Universidade Federal Fluminense)José Gatti (Universidade Federal de São Carlos)José Roberto O’Shea (Universidade Federal de Santa Catarina)Luiz Felipe Soares (Universidade Federal de Santa Catarina)Manoel Ricardo de Lima (Universidade Federal de Santa Catarina)Mario Cámara (Universidad de Buenos Aires/Universidad de San Andrés)Raúl Antelo (Universidade Federal de Santa Catarina)Sandro Ornellas (Universidade Federal da Bahia)Silviano Santiago (Universidade Federal Fluminense)Susana Scramim (Universidade Federal de Santa Catarina)Veronica Stigger (Universidade de São Paulo)Verónica Tell (Universidad de Buenos Aires)

Equipe Técnica/Technical Team

Alexandra Filomena Espindola (Secretaria)Fernando Vugman (Resumos em inglês)Fábio José Rauen (Editoração e Diagramação)Suelen Francez Machado (Editoração)

Volume 8 ▪ Número 1 jan./jun. 2013

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Dados postais/Mailing address

Revista Crítica CulturalPrograma de Pós-Graduação em Ciências da LinguagemUniversidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL)Av. Pedra Branca, 25 – Cidade Universitária Pedra BrancaCEP: 88.132-000Palhoça, Santa Catarina, [email protected]

SUMÁRIOSummary

Arte e sociedade burguesa na teoria do texto teatral de Peter Szondi

Art and bourgeois society in Peter Szondi’s theory of the theatrical text

Pedro Rocha de Oliveira............................................................................ 11

Discurso na vida e discurso na arte de atuar: contribuições de Vygotski

e do círculo de Bakhtin para a análise da prática teatral

Discourse in life and discourse on the art of acting: contribution of Vygotski

and the Bakhtin circle for the analysis of the theater practice

Andrea Vieira Zanella, Graziele Aline Zonta, Kátia Maheirie .......................... 27

Releituras, paródia e intertextualidade

em Braz, Quincas & Cia (2002), de Antonio Fernando Borges

Rereading, parody and intertextuality in Braz,

Quincas & Cia. (2002) by Antonio Fernando Borges

Flávio Pereira Camargo ............................................................................ 39

A alegria em Tutameia: terceiras estórias de Guimarães Rosa

The joy in ‘Tutameia: third stories’ by Guimarães Rosa

Giselle Bueno ......................................................................................... 66

Os prefácios dos romances iniciais

e o método de composição de Machado de Assis

The prefaces of the novels and the initial composition method of Machado de Assis

Cilene Margarete Pereira .......................................................................... 83

“Let the madness... begin!”: A dialética entre a razão

e a sanidade no culto à personalidade do cantor Ozzy Osbourne

“Let the madness... begin!”: the dialectic between

reason and sanity in the cult of personality of singer Ozzy Osbourne

Flavio Pereira Senra ................................................................................ 97

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Um lugar difuso e violento, não muito longe daqui:

o primeiro romance de Reni Adriano

A diffuse and violent place, not far from here: the first novel by Reni Adriano

Wanderlan da Silva Alves ....................................................................... 115

Palco movediço: questões para o teatro de Machado de Assis

Moving stage: questions for the theatre of Machado de Assis

Rafaela Scardino ................................................................................... 132

Pintura, fotografia e a crítica de arte na pós-modernidade

Painting, photography, and art criticism in post-modernity

Marcos Fabris ....................................................................................... 139

Utilitarismo em Ariel

Utilitarianism in Ariel

Maurício Silva ....................................................................................... 153

Editorial

A REVISTA CRÍTICA CULTURAL, em seu v.8 n.1, opta por não separar os artigosem seções, o que se quer é a miscelânea. E, nisso, se reconhece o borramento dasbordas, a indeterminação dos limites que foram convencionados ao fatiar asmanifestações culturais em literárias, cinematográficas, teatrais, musicais e assim pordiante.

A miscelânea aqui, nesse volume, é a que propõe a percepção do espaço fértilque se encontra nas aproximações e cruzamentos. É nas zonas borradas que somoscapazes de, hoje, fazer brotar as novidades, os insólitos, os ainda não vistos e ditos.Por outro lado, a CRÍTICA CULTURAL não aceita o ‘nado de superfície’ que algumasindeterminações são capazes de, empobrecidamente, considerar. Ou seja, mantém-se,na miscelânea, o rigor de análise e a exigência teórica na construção dos artigos que,ora, se expõe à leitura.

Em “Arte e sociedade burguesa na teoria do texto teatral de Peter Szondi”,Pedro Rocha de Oliveira traz a preocupação de Peter Szondi no entrelaçamento dotexto teatral ao contexto social da escritura; desde a feitura do texto, nas escolhas dotrágico e do dramático, o escritor reflete sobre o que chama de “sociologia daliteratura”, não sem apontar os conflitos que emergem da relação entre escrita esociedade.

Estruturado sobre os apontamentos teóricos de Vygotsk e do Círculo de Bakhtin,o artigo “Discurso na vida e discurso na arte de atuar: contribuições de Vygotski e docírculo de Bakhtin para a análise da prática teatral” afirma a formação estética dosujeito social no fazer teatral. As autoras Graziele Zonta, Andréia Zanella e KátiaMaheirie compreendem a estética como “variedade social”, tal qual o fizeram Bakhtin eVoloshinov, tornando indissolúvel a relação entre arte e sociedade. Neste sentido, aarte-teatral aparece como fio que enleia autor-ator-espectador, mediando a formaçãoestético-social destes sujeitos.

Flávio Pereira Camargo, no artigo “Releituras, paródia e intertextualidade emBraz, Quincas & Cia (2002), de Antonio Fernando Borges”, toma os procedimentos doescritor Antonio Fernandez Borges, lendo Machado de Assis, para retomar o debatesobre a paródia e a intertextualidade como ferramental da literatura em suapotencialidade de autoreflexão, tanto para o autor quanto para o leitor. Ao salientar osprocedimentos, o autor afirma a metaficção como ênfase na literatura brasileira atualque, reconhecendo a historiografia, renova a herança literária, retomando, porexemplo, Machado de Assis e sua plêiade de personagens.

Como assinalado no título, a alegria provocada pelo humor é o fio que conduz oartigo “A alegria em Tutameia: terceiras estórias de Guimarães Rosa”. Nele, GiselleBueno acompanha Guimarães Rosa por Tutaméia e suas histórias, não deixando deassinalar, no entanto, as reincidências da ‘alegria’ no restante da prosa do autor.Atentando para o trabalho com a linguagem, que em Guimarães é arte, no artigo sãoenfatizadas características dos personagens que, sob a forma de substantivos-adjetivos, marcam a alegria em uma infinda cadeia semântica: “plenos de energia”,“animaizinhos buliçosos”.

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O debate sobre a metaficção e Machado de Assis volta em “Os prefácios dosromances iniciais e o método de composição de Machado de Assis”, masdiferentemente, neste artigo, Machado fala de suas escolhas de escrita em outrostextos, nas Advertências; ele estende linhas de um texto ao outro, armando seupróprio mapa. Cilene Pereira por sua vez, no artigo, rearticula as linhas expondo asmanobras utilizadas pelo autor para dialogar com seus leitores, à moda dos prefáciosque conduzem a leitura, mas também como reflexões críticas de sua própria literatura.

Apresentando uma crítica à espetacularização da cultura, no artigo “‘Let theMadness... Begin’: a dialética entre a razão e a sanidade no culto à personalidade docantor Ozzy Osbourne”, Flávio Pereira Senra mostra que a construção da ‘celebridade’,na pós-modernidade, apoia-se numa ampla gama de fatores que não só as habilidadesmusicais, no caso de Ozzy Osbourne. Mais do que distinção, a notoriedade, para oautor, viria da relação entre afastamento e proximidade estabelecida pela exposição,midiática, da vida do músico e cantor. O homem comum e o excêntrico, o excessopotencialmente desejável, dão forma a dialética da identificação do público e,consequentemente, do sucesso, da celebração.

Wanderlan da Silva Alves traz à crítica um autor recém-chegado à literatura,Reni Adriano. No artigo “Um Lugar difuso e violento, não muito longe daqui: o primeiroromance de Reni Adriano”, a reflexão se dá sobre o romance de estreia do autor,quando “lugar” transforma-se, narrativamente, em tempo: gerações de uma mesmafamília. O artigo ressalta que a palavra sobra e, por vezes, falta no romance, mas ésempre linguagem que narra a condição humana, nos personagens.

Rafaela Scardino, no artigo “Palco movediço: questões para o teatro de Machadode Assis”, toma o teatro de Machado de Assis para afimar, no período inicial deprodução ficcional, sua visão sobre a necessidade de se “copiar a civilização existente”nos palcos, num procedimento que acompanhasse a modernização em curso. Noentanto, para Rafaela Scardino, Machado de Assis “desordena o realismo”, criandodistanciamentos entre palco e plateia por meio, por exemplo, da ironia. Neste sentido,a modernidade de Machado de Assis não é cópia, antes crítica.

Partindo do presente cultural, na perspectiva da prevalência das imagens,Marcos Fabris, em “Pintura, fotografia e a crítica de arte na pós-modernidade”, revisaconceitos como “industrialização da cultura” e noções de “distinção de classe” nousufruto cultural, apoiando-se nas produções artísticas desde o século XIX. A crítica,neste artigo, dessacraliza o sublime na arte e afirma as “imagens-simulacros” queexpõe a forma sem conteúdo, na pós-modernidade.

Fechando o número da Revista, no artigo “Utilitarismo em Ariel, de José EnriqueRodó”, Maurício Silva apresenta o romance Ariel, publicado em 1900, no Uruguai,realçando a aversão do autor à influência dos Estados Unidos na formação dajuventude latino-americana. Para tanto, o artigo se pauta na crítica ao utilitarismo dacultura, da ética, da política norte-americana, presente na obra do escritor uruguaio. Outilitarismo norte-americano estaria, segundo o crítico, em oposição ao que JoséEnrique Rodó predizia como valor fundamental à juventude – “contemplación ideal”.

Desejamos proveitosas e prazerosas leituras a todos.

Os Editores

Editors’ note

This issue of CRITICA CULTURAL adopts a heterogenous organization. By doingso, we acknowledge the blurring of borders and the indeterminacy of limits that werecreated to separate literary, film, theatre, musical manifestations.

The heterogeneity that characterizes this issue paves the ground for prolificapproaches. Zones of indeterminacy are spaces where new, unexpected, unseenthings may arise. On the other hand, CRÍTICA CULTURAL does not subscribe to theimpoverishment that some instances of indeterminacy may create. Heterogeneity doesnot mean doing away with rigor of analysis and theoretical depth in the writing of thearticles.

In “Arte e sociedade burguesa na teoria do texto teatral de Peter Szondi”, PedroRocha de Oliveira discusses Peter Szondi’s interweaving of drama and social context;Oliveira analyzes the writing of the text, involving the choices between tragic anddramatic, and points out the conflicts that emerge from the relationship betweenwriting and society.

The article “Discurso na vida e discurso na arte de atuar: contribuições deVygotski e do círculo de Bakhtin para a análise da prática teatral” focuses on the worksof Vygotski and Bakhtin and affirms the aesthetic formation of subjects in the theaterpractice. Authors Graziele Zonta, Andréia Zanella and Kátia Maheirie understandaesthetics as a “social variety”, implying that the connection between art and society isindissoluble. Thus, theater is presented as the thread that entwinesauthor/actor/spectator and mediates the aesthetic-social formation of subjects.

Flávio Pereira Camargo in “Releituras, paródia e intertextualidade em Braz,Quincas & Cia (2002), de Antonio Fernando Borges”, takes on Antonio FernandesBorges’ approach towards Machado de Assis in order to discuss parody andintertextuality as tools used by literary works in their self-reflexive potential. Byhighlighting such procedures, the author identifies metafiction as a focal point inrecent Brazilian literature. Contemporary works acknowledge historiography and renewour literary heritage, including Machado de Assis and his characters.

As the title suggests, joy caused by humor is the theme in “A alegria emTutameia: terceiras estórias de Guimarães Rosa”. Here, Giselle Bueno emphasizeshumor in Tutaméia, but also points out its incidence in other works by Rosa. Payingclose attention to Rosa’s work with language, which resides in the very core of his art,the article analyzes the description of characters and the use of adjective-nouns as thetraces of joy in an infinite semantic chain: “full of energy”, “passionate little animals”.

The debate around metafiction and Machado de Assis is also present in “Osprefácios dos romances iniciais e o método de composição de Machado de Assis”.Machado’s artistic choices are annotated and explained in his work Advertências. Inher article, Cilene Pereira considers Machado’s maneuvers when constructing adialogue with his readers, expressed in prefaces that lead interpretations but also ascritical reflections about literature.

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In “‘Let the Madness...Begin’: a dialética entre a razão e a sanidade no culto àpersonalidade do cantor Ozzy Osbourne”, Flávio Pereira Senra shows that theconstruction of celebrities in postmodernity is grounded in more than musical abilities,in the case of Ozzy Osbourne. Notoriety derives from the relationship betweenproximity and distance created by the exposure of Osbourne’s life in the media. Thedialects between the ordinary and eccentric man and the potentially desirable excessgive shape to the audience’s identification with the British singer and to the success ofcelebration.

Wanderlan da Silva Alves writes about a beginner author, Reni Adriano. In thearticle “Um Lugar difuso e violento, não muito longe daqui: o primeiro romance deReni Adriano”, Alves discussed Adriano’s first novel, where “place” is transformed, inthe narrative, into time: generations of a family. The article pinpoints the fact thatwords may lack or exceed, but language insists on narrating the human condition.

Rafaela Scardino, in “Palco movediço: questões para o teatro de Machado deAssis”, follows Machado’s first theater works and his attempts at “copying existingcivilizations” on stage and, thus, introducing a sense of modernity. However, forScardino, Machado de Assis “disarranges realism”, introducing a distance betweenaudience and stage by using irony, for example. Assis’ modernity is, therefore, criticaland not copy.

The concepts of “industrialization of culture” and “class distinction” are revised inMarcos Fabris’ “Pintura, fotografia e a crítica de arte na pós-modernidade”, whichfocuses on the pervasiveness of the image in present times. Art criticism, the articleargues, de-sacralizes the sublime and affirms “simulacra” that expounds thecontentless forms in postmodernity.

The last article in this issue, “Utilitarismo em Ariel, de José Enrique Rodó”,reviews the novel Ariel as an expression of aversion to the influence of the UnitedStates in the formation of Latin American youth. The author, Maurício Silva, criticizesthe utilitarianism of U.S. culture, ethics and politics that is present in Rodó’s novel.According to Silva, utilitarianism opposes what the Uruguayan writer considered to bethe fundamental value for young people - “ideal contemplation”.

We wish you all a pleasent and productive reading.

The editors

Crítica Cultural (Critic), Palhoça, SC, v. 8, n. 1, p. 11-26, jan./jun. 2013

Arte e sociedade burguesa na teoria dotexto teatral de Peter Szondi

Pedro Rocha de Oliveira∗

Resumo: O presente ensaio analisa os argumentos desenvolvidos por Peter Szondi emEnsaio sobre o trágico (1961), Teoria do drama burguês (1973), e Teoria do dramamoderno (1956), de modo a empreender uma caracterização geral de sua sociologiada literatura, salientando a atenção que o autor dá aos conflitos entre a escritura dostextos teatrais e a tradição dos gêneros teatrais. Aquele processo de escritura é talque enraíza o texto firmemente em seu contexto social, cristalizando formalmente suasituação social sob a forma de uma estrutura lógica que faz um relato de seu tempo. Éassim que, no teatro burguês, as contradições do esforço civilizatório ocidental sãoformalmente expressas.

Palavras-chave: Peter Szondi. Sociologia da literatura. Sociedade burguesa.

Na Teoria do drama burguês (1973), Peter Szondi declara que o objetivo de umasociologia da literatura deve ser “tornar claras as mediações [...] pelas quais as obrase suas teorias foram condicionadas historicamente – e isso significa tambémsocialmente” (SZONDI, 2004b, p. 174). Tomando essa declaração como a enunciaçãodo projeto teórico de Szondi, o presente texto visa expor a mecânica em queconsistem essas mediações, seguindo as definições de Szondi da tragédia, do dramaburguês e do drama moderno, e salientando criticamente a lógica dessas definições.Serão analisados argumentos selecionados de três textos chave de Szondi – Ensaiosobre o trágico (1961), Teoria do drama burguês, e Teoria do drama moderno (1956)–, com especial atenção aos momentos desses argumentos em que Szondi identifica aapropriação estética de um tema histórico-social.

I.

Antes de proceder à análise dos textos chave de Szondi, é preciso salientar quea importância de se estudar tanto “as obras” quanto “suas teorias”, para acompreensão do enraizamento sócio-histórico da arte, está em que há uma influênciamútua entre o texto teatral1 e sua teoria. Essa influência mútua é uma dialética entre

∗ Universidade Federal de Juiz de Fora. E-mail: [email protected] Vale observar: a teoria de Szondi é uma teoria da literatura teatral, e não do teatro: seus

objetos não são peças encenadas, e as qualidades específicas das encenações só entram emjogo na medida em que se depreendem do próprio texto. Contudo, evidentemente, a análise daliteratura teatral envolve uma lógica diferente daquela empregada para analisar o romance,

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gênero e material, ou seja: o pensamento sobre o que as formas de texto teatralmobilizam – que tipo de personagens elas apresentam, através de que tipo de ação,como essa ação afeta o público, etc. – influencia a produção desses textos através doconhecimento que seus autores têm da tradição da qual vão participar. Mas osesquemas que os gêneros carregam, e que tendem a funcionar como parâmetros deprodução para os autores, por mais rígidos que sejam desde o ponto de vista da teoriaque os identifica historicamente e explicita seus traços formais, têm uma relaçãoproblemática com a experiência social que irá preenchê-los através das situaçõesteatralmente representáveis que possam ocorrer ao autor. Isso porque nem todas asrelações sociais se encaixam diretamente em todos os esquemas formais. Recursosliterários diferentes precisam ser mobilizados para apresentar as ações de um rei oude um advogado, porque tais ações envolvem espaços sociais diferentes,caracterizados por experiências sociais diferentes: o alto plano das decisões de Estadoe da relação com as forças divinas, em um caso, e o plano quotidiano da vida privadaem sua relação com a vida pública, em outro.

Em termos mais gerais: não há forma artística descolada de um contextohistórico-social. Os gêneros não são construções lógicas puras, mas são produto datentativa de seus autores de tornar representável algo que está em seu horizonteexperiencial finito, específico, temporal. Theodor Adorno, que é referência para Szondinesse ponto, expressou isso dizendo que a forma da obra – sua lógica, embutida nogênero – é um “precipitado” do conteúdo2 – das coisas que vão aparecer na obra: nocaso do teatro, os personagens, suas ações, seus problemas, o cenário, etc. A razãopela qual se trata de um precipitado – algo que é formado quase como que através deum processo inorganicamente automático – é que a história da humanidade é feita aosborbotões: embora seja produto da ação da humanidade, tem que ser sempredescoberta por nós através de um esforço específico mais ou menos árduo, como senos fosse estranha. Isso dá origem a pontos de ruptura entre gêneros artísticos maisou menos rígidos (porém produzidos, reproduzidos e destruídos conscientemente pelosautores) e as realidades sociais cambiantes de que esses gêneros acabam não dandomais conta. Nesses pontos de ruptura aparece a especificidade histórico-social dohorizonte social das obras. Determinadas relações sociais que começam a cativar acriatividade dos autores não cabem mais nos esquemas literários que esses autoresherdam. Segundo Szondi, o resultado geral disso parece ser sempre uma combinaçãoentre alterações formais no gênero e a escolha cuidadosa de um material socialpropício à manutenção das antigas formas: para retomar o exemplo acima, seria ocaso de se representar a vida de um rei nos termos da vida de um profissional liberal3.Entretanto, paralelamente a essas tentativas de adequar a forma artística já existenteao conteúdo social novo, surgem obras específicas nas quais a relação problemáticaentre os dois termos é que salta aos olhos. Essas obras são privilegiadas pela leiturade Szondi.

assim como os elementos que estão em jogo na análise do romance não são os mesmosrelevantes à análise da poesia lírica, etc.

2 ADORNO, Theodor. Philosophie der neuen Musik. Tübingen, 1949, p. 28, apud SZONDI, 2001,p. 25.

3 O emprego de categorias da vida burguesa para a representação teatral da vida da aristocracia– algo absolutamente típico da ruptura entre forma artística e forma social – é, segundoSzondi, um traço característico do teatro de Diderot. Cf. SZONDI, 2004b, p. 121-122.

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É interessante observar que Szondi se dá o trabalho de justificar essa suaabordagem – baseada, então, na atenção especial à relação entre gênero dramático ematerial teatralizável – em termos da história da teoria dos gêneros. Mais exatamente,ela corresponderia ao momento da superação dessa teoria – de sua obsolescência, aqual é consonante com a conhecida tese hegeliana sobre o fim da arte. Em seu Ensaiosobre o trágico, numa argumentação que pode ser lida como a fundamentação do seupróprio método, Szondi expõe três momentos dessa história em função decaracterizações da forma trágica. O primeiro é Aristóteles, cuja obra se situa noregistro da poética dos gêneros, ou seja, trata apenas de “determinar os elementos daarte trágica” (SZONDI, 2004a, p. 23). O segundo diz respeito ao papel que ateorização sobre a tragédia desempenha nos sistemas do Idealismo Alemão, bemcomo no pensamento de seus críticos. Nesse contexto, a tragédia não diz respeitoexclusivamente a uma experiência no teatro: trata-se, antes, de uma ideia, uma formalógica autônoma, que funciona na filosofia para caracterizar questões que em muitoextrapolam a simples caracterização de obras teatrais. Exemplo claro disso é o papelda tragédia no sistema hegeliano (p. 37-45). Trágica, aí, é a forma de um momentoda autodivisão e autoconciliação do Espírito: a tragicidade é intrínseca ao desempenhodo atributo ético pelo ser humano. Em resumo, o problema se coloca da seguintemaneira: a efetiva socialização segundo princípios morais só pode se dar quando essesprincípios são vivenciados não como imposição externa, mas como vocação internaconstitutiva do indivíduo para determinação da sociabilidade. Essa identidade entre oexterno e o interno – a qual, não obstante, preserva o momento do individual – é oque Hegel designa propriamente por Ético. No entanto, o problema é que, quando oindivíduo aparece num universo moral, de início ele necessariamente experimenta esseuniverso como externo, como imposição. E deve ser assim, pois a ausência dessaoposição significaria o colapso do indivíduo, sua absorção total pelo meio, a qual éinsuficiente, em termos hegelianos, para caracterizar o Ético. O caminho para aeticidade, portanto, envolve um momento de oposição entre o indivíduo e o pano defundo moral. Essa oposição, na medida em que precisa ser produzida ativamente peloindivíduo, tem a forma da hybris, do destacar-se voluntário e consciente frente aopano de fundo social e moral através da ação imoral e antissocial. De modo a confluirem eticidade, esse momento deve ser seguido pela culpa, através da qual o indivíduodescobre negativamente o quanto a sua verdade é constitutiva por sua aderência aopano de fundo moral. A reinterioração final da moralidade se dá através da punição,por meio da qual o indivíduo exterioriza sua culpa, ao mesmo tempo que interiorizapraticamente o pano de fundo moral.

O fundamental é entender que esse esquema, que pode ser empregado para aanálise formal de peças trágicas4, precede essas peças, na medida em que espelhafilosoficamente um problema social fundamental, o da inerência do indivíduo àtotalidade social. E é assim que, no Idealismo – sempre segundo Szondi – a tragédia écaso de uma lógica mais ampla: caso da dialética. A particularização frente aouniversal ético original é, por definição, culpável, imoral, mas essa particularização énecessária para a reconstituição verdadeira daquele universal.

4 Para Hegel, a tragédia por excelência é a Antígona de Sófocles, que “realiza” aquele esquemaipsis litteris.

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Ora, o terceiro momento da história da supressão da teoria dos gêneros,caracterizado pela abordagem de Walter Benjamin, e inspirador para o trabalho deSzondi, funciona mais ou menos nessa direção, mas ao invés de encarar a tragédiacomo caso da dialética, encara a dialética como caso do trágico. Se a imbricação entretragédia e dialética é aproveitada por Benjamin, a tragédia, ao mesmo tempo, éeximida do caráter de subordinação a um sistema filosófico, e aparece como fenômenohistórico primeiro, iniciativa de leitura da realidade empreendida pela cultura grega: atragédia é ela mesma filosofia da história. O objeto dessa filosofia da história é ummovimento do mundo grego rumo à estabilidade social e política da era clássica,distanciando-se da “ordem demoníaca”5 dos períodos mais arcaicos. A visão de mundoligada à ordem demoníaca conhece a natureza como esfera ameaçadora e estranha aohomem, mas, ao mesmo tempo, e justamente por isso, exige a humanização donatural como pressuposto lógico da magia através da qual essa natureza pode serapaziguada. A natureza povoada de demônios é a natureza que pode ser influenciada,seduzida, comprada, coagida pelos termos humanos do feiticeiro. A natureza, a um sóturno oposta ao universo humano (em seu caráter ameaçador), e parecida com ele,induz o pensamento arcaico à forma da “ambiguidade”.6 É que, no mundo povoado dedemônios, cada coisa é ao mesmo tempo mundana e extramundana, “ao mesmotempo ela mesma e outra coisa diferente dela, idêntica e não idêntica” (ADORNO;HORKHEIMER, 1985, p. 29).

Pois bem: no esquema benjaminiano aproveitado por Szondi, a “ambiguidade”como forma geral do pensamento arcaico é substituída pelo “paradoxo”, cujaexpressão máxima é a tragédia da Atenas Clássica. A estrutura lógica do paradoxoalimenta a tragédia, é tema dela: paradoxal é o “sacrifício que, obedecendo aestatutos antigos, institui novos”, ou “a morte que é expiação e, no entanto, só levaao eu”7. A experiência estética fundamental da tragédia pressupõe uma claradiferenciação entre termos, entre o natural e o humano, entre o divino e o humano,entre o antigo e o corrente, e a ambiguidade é fraturada, dissolvida, criticada pelavivência estética explosiva do choque entre esses termos, trazida à cena pelascontradições do destino trágico. O que a forma do texto trágico clássico diz é: aquiloque antes estava confusamente junto, formando uma esfera única, agora estáseparado, conforme atestam, pela via negativa, os resultados sempre nefastos de suasdesgraçadas misturas. O sentido histórico último dessa configuração formal é areflexão sobre um momento de transição civilizatória rumo à organização social para adominação da natureza através do trabalho (Ibidem, p. 32): as raízes da civilizaçãoocidental – do Esclarecimento burguês, entendido como mais que um movimentointelectual – de que falam Theodor Adorno e Max Horkheimer na Dialética doEsclarecimento (Ibidem, p. 80-81).

Szondi salienta o quanto, nessa apreensão de Benjamin, a teorização ao redordo trágico não se dá a partir do gênero, mas a partir das obras. Elas são a origem deuma análise histórica, ao invés de consistirem momento de um relato filosófico já

5 BENJAMIN, Walter. Usprung des deutschen Trauerspiels. Berlim, 1928, p. 19. Apud. SZONDI,2004a, p. 79.

6 BENJAMIN, Walter. op. cit., p. 102. Apud. Ibidem, p. 80.7 Idem.

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preparado. Ao mesmo tempo, a consideração das obras faz emergir delas o “fatordialético” – é assim que Szondi chama o “paradoxo” identificado por Benjamin – quefunciona como “denominador comum” das obras trágicas, e assim “constitui umapossível base para o seu conceito geral” (Ibidem, p. 81). A abordagem benjaminiana,portanto, recusa que tal conceito geral brote de instruções para a redação da tragédia,como no caso da poética de Aristóteles, ou da emanação, sob a forma de disposiçãocênica, de um princípio metafisicamente inscrito no fazer social humano, como nossistemas idealistas. Nesse sentido, ela prepara o caminho para a análise formal dasobras ao mesmo tempo em que enraíza essas obras na história – e não numa históriaabstrata, na mera temporalidade, mas no processo de formação civilizatória ocidental,o qual tem conteúdo e sentido específicos: a criação e autodeterminação de ummundo especificamente humano.

É isso que decorre de certo conjunto de análises empreendidas por Szondi noEnsaio sobre o trágico, através do emprego do procedimento benjaminiano. Emespecial, é útil, para efeitos do presente texto, apresentar quatro casos da relaçãoentre o “denominador comum” da forma trágica e diferentes materiais histórico-sociaismobilizados pelos textos.

O primeiro desses casos é o Édipo de Sófocles. O tema geral do paradoxoaparece através das linhas gerais da organização da história apresentada, as repetidastentativas de evitar o destino previsto pelo oráculo, as quais ocasionam justamente arealização inexorável da previsão. Szondi enfatiza o aspecto paradoxal dessaorganização: não é que o destino se realiza a despeito da tentativa de evitá-lo, ele serealiza somente através dessa tentativa. O que é propriamente trágico é “o fato de asalvação tornar-se aniquilamento” (Ibidem, p. 89). No sentido de uma análise dasalterações históricas na forma da tragédia, entretanto, é fundamental perceber ondeestá enraizado o paradoxo: no âmbito natural-divino. Édipo nasce marcado peloparadoxo, na medida em que está fadado a destruir aquele que o gerou, e essedestino é o resultado da maldição sobre sua casa, que remonta à justiça divina.

A especificidade desse enraizamento aparece com bastante clareza à luz dadiferença frente aos resultados modernos da organização de materiais sociais maisrecentes em função da forma trágica, ou do paradoxo. Na tragédia Demétrio, deSchiller, por exemplo, o paradoxo está sediado na subjetividade, e nos tormentos dopersonagem em assenhorar-se moralmente de si mesmo: Demétrio está enganado arespeito de sua própria identidade; sendo assim, ele mente exatamente quando buscaser sincero a respeito de quem é. Já na peça A família Schoffenstein, de Kleist, oelemento que desencadeia a ação cênica paradoxal está na esfera do contrato, doacordo com efeito legal, a intersubjetividade objetivada, transformada em coisa,reificada: um testamento ancestral, visando assegurar o equilíbrio de posses entreramos diferentes da família e, portanto, sua manutenção harmônica, torna-se elemesmo objeto de contenda, e causa da destruição da linhagem. Finalmente, em Amorte de Danton, de Büchner, o paradoxo está enraizado no próprio alcance históricoda ação individual. Danton sucumbe à vitória da revolução que é obra sua; suatentativa de impedir a guinada autoritária do processo revolucionário resulta em suacondenação pelo “tribunal do povo”. E ele não é condenado, e portanto submetido aoextremismo, a despeito de sua posição moderada, mas justamente por causa dela! Aí,a hybris não é subjetiva, mas objetiva.

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Dessa exposição em quatro momentos do aparecimento do princípio formal datragédia – o paradoxo – em função de diferentes materiais pode ser extraída umalógica para a história da tragédia. Seguindo, ademais, as indicações benjaminianas deque a tragédia é filosofia da história, essa lógica aparece como leitura artística de umprocesso histórico, cujo teor poderia ser evocado através da percepção de que, no quediz respeito à forma trágica, o que se passa é uma humanização do paradoxo datragédia. Partindo do seu enraizamento no âmbito divino-natural, o paradoxo passapara a subjetividade, daí para a esfera da lei, e finalmente para a ação histórica emsentido amplo. A submissão de nascença do homem ao designo divino, no Édipo, dálugar à submissão ao processo histórico, como consequência direta do posicionamentopolítico de um sujeito em um mundo inteiramente humano. Szondi vê esse movimentocomo um “aprofundamento mítico do contexto histórico” (Ibidem, p. 133). Estáembutida uma alusão aos problemas envolvidos pela concepção de Benjamin datragédia como superação do período arcaico pelo clássico, bem como uma tematizaçãoque faz eco à ideia frankfurtiana de uma Dialética do Esclarecimento. Na medida emque, ao longo de sua história, o foco da tragédia vai deslizando do natural para ohistórico-social, o que a forma da tragédia vai salientando é a semelhança dosprocessos históricos aos processos naturais: o “acontecimento histórico” aparecedotado de “tragicidade natural” (Ibidem, p. 134). Mas isso ao mesmo tempo em que oprocesso civilizatório como um todo ruma – ao menos supostamente – em direção àmodernidade burguesa, ou ao desencantamento e superação do natural. Significa quea trajetória descrita pelo processo de apropriação do mundo natural pelo homem – oqual, no período clássico, consiste na superação do mundo ambíguo dos demônios –não tem a forma de uma linha ascendente. A ameaça demoníaca da natureza ésuperada apenas para reaparecer como violência histórica. O processo como um todoé trágico.

É verdade que as manifestações primevas da tragédia no contexto da culturaburguesa em sua fase liberal, heroica – aqui ilustradas pelo exemplo de Schiller –exibem uma reconfiguração do lugar do paradoxo no âmbito subjetivo, reconfiguraçãoessa que marca uma diferenciação ainda mais nítida frente ao mundo dos demônios doque o que se passa no Édipo de Sófocles. Entretanto, com Kleist e, definitivamente,com Büchner, o fundamento do paradoxo migra novamente para fora, e não importaque o mundo externo, aí, seja o mundo humano: o que sua compatibilidade com aforma trágica mostra é justamente sua semelhança com o mundo natural, suaopacidade, a hostilidade engendrada pela alteridade – em uma palavra, sua alienação.

De fato, toda essa problemática está condensada na peça de Büchner. Aquelecaráter de iluminação do processo civilizatório que está contido já de maneira tênue nanovidade da tragédia é realçado pelo tema da Revolução Francesa. Trata-se, afinal, docapítulo recente da história da humanidade cuja autocompreensão incluiu umrenovado levante explícito contra o paradigma do universo espiritualizado, sob a formada instauração oficial de uma ordem secular baseada em princípios racionais deigualdade e liberdade. No entanto, o ápice desse levante é a formalização de umEstado de banqueiros e burocratas, seguida pela restauração de uma forma social

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imperial sob a figura de Napoleão Bonaparte, ultrapassada, então, pela aliança entre aantiga burguesia revolucionária e os setores mais reacionários da sociedade a partir de1848, e a extinção da Segunda República em 1851, com o golpe de Estado de LuízNapoleão.

Esse movimento como um todo já haviam levado Karl Marx – através de umaalusão a Hegel – a empregar a forma da tragédia (e da comédia!) para lançar luzsobre sua lógica: o heroísmo revolucionário que precisa ser empregado para a criaçãode uma sociedade incompatível com o heroísmo (MARX, 1978, p. 19), a maneira comoa essência conservadora dessa sociedade se expressa pelo apelo ao imaginário arcaicode Roma para promover a mudança e o novo (Idem). As revoluções burguesas liberamum enorme potencial político e econômico através da destruição da rígida sociedadefeudal hierarquizada: porém, essa liberação se dá sob um controle rígido de classe, naperspectiva da acumulação de riqueza através da exploração. As demandas popularesexplosivas que alimentam a Guerra Civil inglesa, ou o Terror na França, têm que ser –e são – politicamente domesticadas sob um Estado moderno fundamentalmentecomensurável com o absolutista8, erguido justamente através do cancelamento dopoder popular, das experiências de democracia direta, das promessas mais radicais da“primavera dos povos”. É assim que as revoluções burguesas, ao mesmo tempo quedesmontam a sociedade feudal obscurantista e parecem permitir um vislumbre domundo esclarecido para além dela, precisam de “recordações da história antiga parasufocarem seu próprio conteúdo” (Ibidem, p. 20)9.

De modo que o que está em jogo é a exaustão do potencial revolucionário daburguesia, ou o limite da positividade emancipatória de seu projeto esclarecedor.Jean-Paul Sartre discutiu esse mesmo problema em função da dialética douniversalismo da ideologia burguesa, o qual funcionava como crítica específica dosprivilégios da nobreza, mas obscurecia a permanência de uma dominação de classe(SARTRE, 1958, p. 18ss). E Dolf Oehler, trabalhando com a ideia de uma revoluçãotraída em 1848, expõe as leituras estéticas desse momento em que a ainda jovemcivilização burguesa já mostra seu potencial destrutivo (OEHLER, 1999). A sociedadeburguesa como produto alienado, reificado (SZONDI, 2004b, p. 174), de ummovimento de atuação consciente e de socialização total – um encobrimento total danatureza pela civilização, projetado tanto pela Física que os iluministas tantoadmiravam, quanto pelo esquema de um mercado mundial que já estava no gérmendo capitalismo mais primevo – inspira a formulação de Szondi de que, no “mundoburguês”, a “tragicidade imanente não reside na morte, mas na própria vida”(SZONDI, 2001, p. 45-46). Paradoxal é a própria manutenção dessa sociedade; noplano econômico, sua forma específica é a da crise sempre renovada e sempre adiada.

Desse teor paradoxal da experiência social burguesa, surgirá o problemaintrínseco para a forma teatral típica da cultura burguesa, o drama. A vida burguesacoloca limites para si mesma, e esses limites aparecerão na cena.

8 Isso é patente no caso da Inglaterra, e ainda mais naquelas partes da Europa – sua maioria –em que as “revoluções” burguesas tiveram um caráter de transição e atualização, muito maisdo que de mudança. O exemplo preferido pelos historiadores, aí, é a Prússia.

9 Tradução corrigida.

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II.

Szondi dá atenção ao problema dos limites e da reversão do papel políticorevolucionário e progressista da burguesia numa polêmica com György Lukács10. Esteafirma, em um texto sobre a “Sociologia do drama moderno”, citado por Szondi, que“o drama burguês é o primeiro a se desenvolver a partir de uma oposição conscientede classes”; nele aparece “uma classe lutando por liberdade e poder”.11 De forma maisou menos explícita, Szondi contesta essa afirmativa em todas as análises que faz naTeoria do drama burguês. Para efeitos do presente texto, basta atentar para doisaspectos dessa contestação.

O primeiro emana da análise de O mercador de Londres, peça inglesa do séculoXVIII, da autoria de George Lillo. Nela aparece explicitamente, não a luta de classes,mas o acordo entre elas, em especial numa cena em que é exibido o papelfundamental dos mercantes em auxiliar a Rainha Elizabeth: convencendo seus colegasvienenses a não emprestar dinheiro para o Rei de Espanha, eles evitam que essepossa formar um exército para atacar a Inglaterra. É verdade que há, aí, uma disputacom a aristocracia: passando por cima dos aristocratas estadistas, diplomatas,guerreiros, a burguesia comercial mostra iniciativa política e salva o dia. Mas essadisputa diz respeito apenas a uma luta por equanimidade, a demonstração dascapacidades da burguesia de exercerem um papel significativo na promoção da coesãosocial – ou seja, trata-se de buscar igualdade junto à aristocracia (SZONDI, 2004b, p.59). Ora, isso fazia todo sentido numa Inglaterra em que a nobreza haviademonstrado protagonismo mercantil desde o início do século XVI, e no qual asreformas da chamada Revolução Gloriosa já haviam sido compatibilizadas com amanutenção das estruturas monárquicas. De tal modo que a análise sociológica não éinvalidada pelo fato de que a luta de classes não aparece nas peças; é a rigidez daconcepção de luta de classes presente em Lukács – a qual enfatiza em demasia opapel novidadeiro e progressista da burguesia – que é invalidada pela coerênciasociológica com que a posição política dúbia da burguesia entra nas peças (Ibidem, p.39).

Essas considerações levam ao segundo aspecto, o qual se depreende de umgolpe de vista sobre as temáticas de textos teatrais paradigmáticos na fundação dodrama burguês. Como é o caso em Lessing, e em Diderot, “muitas vezes nem osheróis dos dramas burgueses são burgueses, e sim aristocratas” (Ibidem, p. 28). Oque marca a determinação burguesa da cena não é a proveniência dos personagens,

10 Na verdade, o próprio Lukács poderia ser empregado para tratar desse problema e de suasconsequências literárias: no texto “Narrar ou descrever”, de 1936, por exemplo, Lukácstrabalha – exatamente como Marx – com o 1848 francês como marco do esgotamento dopotencial revolucionário da burguesia, o que tem consequências diretas no interesse dorealismo burguês. Entretanto, curiosamente consonante com a antirrevolucionária política defrente ampla com as burguesias nacionais, promovida pelo COMINTERN, Lukács muda de ideiamais tarde e – como atesta, por exemplo, o “Franz Kafka ou Thomas Mann”, de 1955 –promove o romance realista burguês como modelo da boa arte no século XX. Trata-se, entreoutras coisas, da justificação teórica do realismo socialista. É com esse Lukács que Szondi estápolemizando. Cf. LUKÁCS, 1968 e LUKÁCS, 1969.

11 LUKÁCS, György. Zur Soziologie des modernen Dramas. In: Schrifien zur Literatursoziologie.Neuwied, 1961, p. 277 apud SZONDI, 2004b, p. 27.

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mas o espaço de sua ação. E isso justamente por causa de uma princípio ideológicoburguês que, aliás – como enfatiza Sartre –, vai marcar a persistência da dominaçãode classe na sociedade pós-absolutista. Segundo o ideário burguês universalistavitorioso, o importante não era tanto a classe, mas o Homem. Mesmo nos momentosde posicionamento político mais negativo frente às formas sociais precedentes, “osmembros do Terceiro Estado na Constituinte eram burgueses na medida em que seconsideravam simplesmente como homens”. Entretanto, no quotidiano da novasociedade a ser instaurada, “as boas ações burguesas são os atos individuais que sedirigem à natureza humana universal na medida em que ela está encarnada numindivíduo” (SARTRE, 1958, p. 18-19).

Trata-se de um universalismo individualista, portanto, cuja síntese está na vidaprivada que, sendo a base alienada da produção social, tem importância mais do queprivada. Por um lado, de acordo com a ideologia liberal, cuidar dos negócios privados éinstaurar uma economia saudável, e portanto buscar o bem geral: a cena dos úteismercadores evocada na peça de Lillo mostra que ser bem sucedido nos negóciossignifica também alçar ao poder para contribuir com o bom andamento da sociedade eaté a salvação do reino. Por outro lado, conforme traduzido no lema da “fraternidade”social, a própria sociedade como um todo é lida na perspectiva do universo privado dafamília (algo, ademais, bastante compatível com uma sociedade monárquica), umarelação amparada no sentimento (Ibidem, p. 18).

Na prática do drama burguês, isso significa que, para aparecerem como sereshumanos, os personagens aparecem como membros de uma família. Obviamente,conforme será explorado por Diderot e Lessing, entre outros, os aristocratas tambémtêm família. No entanto, é importante salientar que a apresentação da famíliaaristocrática pelo drama burguês, no que centra na experiência privada, éespecificamente burguesa. Para usar um contraexemplo extremo: poder-se-ia dizerque a matéria do Édipo é, em grande medida, a família, mas a esfera privada nãoaparece enquanto tal. O destino dos reis e de suas linhagens tem relevância para todaa sociedade, e é assunto para conspirações divinas e reconfigurações da ordem naturale social. Se a família aristocrática acaba aparecendo no contexto do “aburguesamentoda cena no século XVIII” (SZONDI, 2004b, p. 121) é porque “a vida que esses nobreslevam é a vida burguesa” (Ibidem, p. 122). Retomando a polêmica com Lukács, Szondiobserva que isso reforça a ideia de que o drama burguês não marca tanto o “adventode uma nova camada social”, mas uma “mudança na forma de organização dasociedade” (Ibidem, p. 121-122). Para retomar o exemplo, o contraste entre a formado tratamento do problema do incesto no Édipo e no Fedra de Racine mostra bem emque consiste essa mudança: o tema da “tragédia burguesa”.12 (sobre a família real!) énada mais, nada menos, que os sentimentos contraditórios da rainha (SZONDI, 2004a,p. 112).

12 Essas peças da alvorada do teatro burguês ainda eram reconhecidas por seus autores numconflito explícito com as categorias teatrais clássicas. Para efeitos do presente texto, elas serãoentendidas na sua dimensão que, devido ao material mobilizado, já não cabe naquelascategorias.

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Essa primazia dos sentimentos e, sobretudo, seu lugar como origem e cimentoda própria socialização que marca a autocompreensão burguesa13 também temalcance sobre a relação entre o espectador e a peça, no paradigma do drama burguês.Nesse sentido, a teoria do drama burguês nascente aponta para uma substituição dasemoções produzidas pela experiência teatral: o temor recomendado pela apropriaçãobarroca da poética aristotélica da tragédia deve dar lugar à compaixão (SZONDI,2004b, p. 36). A promoção da compaixão significa a aproximação entre o público e oespetáculo: ela estimula e reafirma uma já existente identificação daquele com este. Éno registro dessa identificação que será lido o efeito esclarecedor do teatro, a partir desua função catártico-terapêutica herdada de Aristóteles. Sua ferramenta é a comoção.Assim como era possível ler a história da tragédia em termos do enraizamento de seuprincípio formal – o paradoxo –, o desenvolvimento do drama burguês se dá emtermos das configurações do processo de promoção da identificação entre espectadore espetáculo, baseada na comoção. Para efeitos do presente texto, basta levar emconta, em linhas gerais, cinco dessas configurações.

A primeira aparece na peça de Lillo já mencionada. A comoção é ferramentapara uma didática do enriquecimento. O Mercador de Londres quer mostrar a conexãoentre o caráter equilibrado e ascético e o sucesso nos negócios através do exemplonegativo de um aprendiz desleal, que é levado a roubar de seu mestre para atender oscaprichos da moça que deseja.

A segunda caracteriza as peças de Diderot. Nelas, retrata-se tipicamente aentristecedora tendência à desintegração da família, seguida pelo embate moral entreseus membros e, através desse embate, o consequente restabelecimento da famíliacomo espaço privilegiado de socialização. Na medida em que a desintegração émotivada por elementos externos – elementos sociais daninhos, más influências sobreos filhos, filhas e esposas – essa forma, intrinsecamente, põe um problema na esferasocial ou pública, mas só na medida em que joga com uma fuga para o privado(Ibidem, p. 140). Esse âmbito aparece através de um halo que instaura “a pequenafamília burguesa e sentimental como utopia real” (Idem), mas a comoção edificanteque tem lugar no coração do espectador está conectada com os altos e baixos sociais– públicos – da família.

13 Interessante observar que relatos que datam da virada do século XIX para o XX, e que,portanto, tratam de uma sociedade burguesa já centenária, identificarão as bases dasocialização não no sentimento, mas na frieza burocrática: é o caso de Max Weber,evidentemente, mas também do romantismo crítico, e de parte do modernismo. Essa mudançade perspectiva é acompanhada por um aprofundamento das tendências contraditórias daautocompreensão burguesa: de um lado, o projeto universalista de abolição da sociedadehierárquica; de outro, o cálculo para a apropriação privada de mais-trabalho, as relaçõeseconômicas alienadas, e a exploração como fundamento da produção material. O sepultamentodo projeto civilizatório otimista da burguesia, sob a forma de uma crescente consciência daderrota e obsolescência do humanismo, foi marca da autoconsciência do mundo capitalistaquando do ingresso na fase às vezes chamada de “monopolista” ou “imperialista”, que tevelugar por volta da Primeira Guerra Mundial: é a época das grandes corporações e da extinçãodo pequeno homem de negócio. De qualquer forma, pelo menos no que diz respeito a Weber, éimportante observar que mesmo a ascética moralidade protestante tipicamente capitalista deveestar baseada na convicção pessoal, na vocação subjetiva e, portanto, na esfera do sentimento.Cf. SZONDI, 2004b, p. 68.

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A terceira configuração da comoção, o teatro de Mercier, faz reaparecer adicotomia público/privado, mas ao invés da primazia da moralidade que se vê peças deDiderot, os problemas do âmbito privado funcionam em Mercier como trampolim paraas questões de ordem pública. O autor reconhece explicitamente que, se adeterioração da família, identificada por Diderot, de fato ocorre, o motivo dela é umadeterioração do espaço público (Ibidem, p. 159), de modo que a comoção íntima comaquela deterioração deve ser estímulo à atuação no exterior. A imbricação entrepúblico-privado, em Diderot, pesava para o lado do privado: Szondi mostra que suaspreocupações eram de ordem moral (Ibidem, p. 161); já em Mercier ela pesará para olado do público. Se a sociedade degradada ameaça o espaço familiar – e o espectadoré convidado a sentir na carne as agruras dessa ameaça, pois ela tem lugar na cena,mas também no pequeno palco subjetivo de seus medos – é preciso corrigir asociedade (Ibidem, p. 160). “Diderot fala do Homem, Mercier do cidadão” (Ibidem, p.161). Nesse sentido, Mercier se assemelha a Lillo, até certo ponto: no autor inglês,entretanto, o âmbito público aparecia como objeto para mostrar a harmonia social,enquanto que em Mercier o que emerge é a sociedade como problema. O que apareceem suas peças é a maneira como o pai de família da França pré-revolucionária não vêcom bons olhos a vida dissoluta que a nobreza publicamente leva.

Isso também é elemento importante da quarta configuração, que se dá nasobras de Lessing. Seu herói burguês típico “é vítima impotente da arbitrariedadeabsolutista”. No entanto, a “esfera de influência” dessa arbitrariedade “se restringe àsua família” (Ibidem, p. 158). Vigora, portanto, um entendimento privado da esferapública: a sociedade é perigosa porque ameaça a família querida, e é como se nãoexistissem problemas sociais em sentido estrito. Não obstante, no entendimento deLessing, essa redução do público aos seus efeitos privados tem finalidade didática: asquestões específicas à política são abstratas, e não têm lugar num palco onde o queestá em jogo são os sentimentos (Idem); trata-se, assim, de traduzi-las em termo daconcretude do privado e, nesse sentido, a comoção se coloca explicitamente comoproblema. Essa tradução, entretanto, na medida em que configura uma fuga para oestético, e para longe da esfera própria onde os problemas estão enraizados – a esferapública –, deixa para o teatro a função única de apresentar as consequências amargasda degradação social: o teatro de Lessing é um teatro da comiseração, da experiênciada impotência burguesa (Idem).

O reconhecimento da abstração das questões políticas também é importantepara a quinta configuração, o teatro do Sturm und Drang. Da premissa de Lessing deque “o Estado [é] um conceito demasiado abstrato para os sentimentos”, essesdramaturgos tiraram a conclusão oposta à de Lessing: “no drama não importam ossentimentos” (Idem). Isso significa uma explosão da esfera da comoção. A causa dacomoção – em Diderot, Mercier e Lessing, mas à diferença de Lillo – era uma relaçãoproblemática com o espaço social; a partir dessa origem externa, o drama burguêsestabelece uma dialética entre público e privado na qual, mesmo quando a esfera dopúblico sobressai, é seu efeito sobre o privado que está em jogo. O clímax disso é otom de resignação frente ao destino social que às vezes emerge em Lessing. O Sturmund Drang rejeita essa resignação, voltando-se contra a dialética burguesa do público-privado, exibindo a esfera pública em sua dimensão independente, indiferente à esfera

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privada, e mostrando o quanto é exatamente o peso de uma objetividade social alheiaà vida privada harmoniosa que causa a degradação dessa vida. O tema do dramadeixa de ser a comoção com a vida destruída, e torna-se “a força destrutiva doexistente” (Ibidem, p. 174). Para Szondi, o dramaturgo paradigmático, aí, é Lenz, emcujas obras os incidentes tornam-se mais importantes que os personagens, a situaçãocondiciona a ação. A dramaturgia se vê como correspondente formal da vida burguesana medida em que retira o foco de sobre a vida privada, e coloca-o sobre os processosque impedem a configuração dessa vida: é uma dramaturgia da sociedade reificada(Idem).

III.

É possível identificar um movimento na lógica do drama que aponta para adissolução do seu princípio formal ancorado na comoção, algo análogo à “humanizaçãodo paradoxo” que ocorre na breve história da tragédia delineada por Szondi. No casodo drama, esse movimento vai da construção cênica da comoção, passando pelareflexão sobre suas causas, em direção à apresentação dessas causas, sob a forma daprioridade da situação político-social no Sturm und Drang. Também é interessanteobservar que a prioridade da situação, sob a forma da exibição de um âmbito públicooposto ao privado, consiste no reaparecimento, no âmbito dramático, do motor dasalterações do paradoxo trágico: a alienação da vida burguesa. Em Teoria do DramaModerno, esse reaparecimento será discutido por Szondi em função da infiltração deum elemento épico na forma dramática (SZONDI, 2001, p. 27).

O ponto de partida de Szondi é um aprofundamento da definição do drama apartir de certos traços fundamentais dessa forma. O foco na esfera privada, comoçãocomo matéria do texto, e a produção de compaixão identificadora entre o espetáculo eo público significam uma centralidade formal da intersubjetividade (Ibidem, p. 29), oua apresentação teatral da realidade em termos de relações entre sujeitos – em últimainstância, através do diálogo. Na medida em que o diálogo é perfeitamenterepresentável num palco, a construção estética do drama é tal que só faz alusão aoselementos que ela mesma coloca no palco. O diálogo como meio da expressãosubjetiva e da apresentação da ação exige que o tempo e o lugar da ação sejam otempo e o lugar da peça, de modo que tudo que diz respeito a ela está dentro dela: “odrama é absoluto” (Ibidem, p. 30).

Contudo, a partir dessa definição, Szondi apresentará uma série de obrasteatrais que tendem ultrapassá-la, justamente na medida em que buscam aderir aocaráter absoluto do drama. O fundamento desse caráter absoluto já está desdesempre ameaçado por aquele mesmo elemento da vida burguesa que a marca comotrágica (Ibidem, p. 46). Esse elemento é a reificação social, a alienação da esferapública, e o fato de que o universo da intersubjetividade precisa ser mantido sempreem oposição a ele, como mostra a própria organização formal das peças. O esforçoespecífico de construção da esfera onde a intersubjetividade faz sentido aparece cadavez mais nas peças: a tematização mais ou menos explícita da comoção por Lessing jáera sinal disso e, ao longo do século XIX, estará configurada uma crise do drama. A

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história dessa crise, que Szondi conta através da análise de obras-chave do período, éa história da infiltração de elementos extrínsecos à intersubjetividade no esforço deexibição cênica da intersubjetividade, algo que foi inaugurado pelo Sturm und Drang.

Para os objetivos da presente discussão, será suficiente apresentar um esboçode alguns momentos importantes da história dessa crise. Um deles é a obra de Ibsen.Nela, os personagens estão marcados pelo peso do passado, por eventos que,portanto, extrapolam o tempo absoluto do drama, o tempo dos acontecimentos nopalco. O problema dessa extrapolação, entretanto, é resolvido através do recurso àrememoração por parte dos personagens, ou seja, a exibição do passado comointerioridade, segundo o recurso formal da “técnica analítica” (Ibidem, p. 37). Trata-sejustamente disso: de fazer análise do passado, de falar dele hoje, no tempo da cena, emostrar o quanto a vida, hoje, está marcada por ele. Entretanto, na medida em queesse recurso se torna fundamental para o drama, a ação propriamente dita adquire umcaráter periférico na cena: a ação não pode resolver nada, ela tem seu sentido foradela e, o mais das vezes, ela acaba resvalando ou numa resignação impotente ounuma repetição confirmadora do passado. Na medida em que o que a ação mostra éas relações que as pessoas mantêm umas com as outras e confirmam através dodiálogo, o caráter absoluto do drama é mantido, mas isso ao custo de umesvaziamento do seu sentido, o que emerge na atmosfera ao mesmo tempo pesada erarefeita das peças de Ibsen.

Algo semelhante ocorre com Tchékov. Os personagens estão divididos entrenostalgia e utopia: o presente retratado pela cena é esvaziado entre esses doisextremos que não estão na cena, mas que entram nela refletidos pelos personagens. Éque, por mais alienados que eles estejam de sua realidade, eles não renunciam àsociedade. Beneficiando-se do que Szondi identifica como “expansividade dos homensrussos” (Idem, p. 50), os personagens abrem seus corações uns para os outros,presentificando o passado ressentido e o futuro que gostariam, mas não chega. O fatode que um presente esvaziado resulta num desinteresse mútuo das pessoas umaspelas outras não detém aquela expansividade, que então assume a forma domonólogo. A solidão compartilhada aparece no lugar da intersubjetividade. O conceitode drama não pode se realizar plenamente aqui.

Em Hauptmann, essa falta de aderência dos sujeitos ao presente, que apareceem Ibsen e em Tchékov, é ela mesma tematizada, e o drama sofre uma guinadasocial. O presente alienado, sem atrativos, que não funciona como amálgama para aintersubjetividade, é transformado em matéria dramática, sob a forma das “condiçõeseconômicas e políticas a cujo ditame está sujeita a vida individual” (Ibidem, p. 76), aserem estudadas pelas peças. A remissão a pessoas reais e a condições reais faz comque a experiência do teatro aponte para fora de si mesma, para o mundo fora dopalco. Mas Hauptmann lança mão de um recurso formal para manter essa saída maisou menos no registro do drama: a narrativa sobre a realidade, potencialmente épico,antidramático, é absorvido na figura de uma subjetividade entre as outras. O pontomáximo disso, em Antes do nascer do sol, é o personagem do Pesquisador Social, cujafunção de eu-épico determina um distanciamento frente aos demais personagens, umaquebra da malha intersubjetiva. E a inadequação entre a forma dramática e o social

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aparece, nessa mesma peça, com ainda mais força quando os personagens revoltam-se contra as condições econômicas e políticas que ao mesmo tempo impossibilitam odrama e reificam a vida real. Essa revolta não é dramatizável, não pode ser mostradaem termos puramente intersubjetivos, de relações entre indivíduos, mas depende deuma reflexão de âmbito diferente e mais complexo, com sujeitos coletivos e estruturassociais maiores que as pessoas que as corporificam. A solução de Hauptmann pararepresentar isso dramaticamente é não apresentar a revolta no palco, mas torná-laassunto de conversa. A intersubjetividade está salva, mas, por outro lado, o diálogo seremete a algo fora da cena e, portanto, o caráter absoluto do drama não é preservado.Ao mesmo tempo a revolta desaparece em sua especificidade épica – em seu alcanceespecificamente explosivo, a uma só vez, da forma social e da forma teatral.

À luz desses e de outros exemplos, Szondi qualificará a crise do drama emtermos de uma “oposição sujeito-objeto” (Ibidem, p. 92). Por um lado, a matériatratada – o lado objetivo – não se esgota simplesmente na relação entre personagens;por outro lado, os personagens não alcançam, enquanto simples sujeitos atômicos,imagens típicas da ideologia burguesa, a especificidade dessa matéria. Em sentidosocial mais amplo, trata-se de reconhecer que os processos sociais – os quais entramno drama como situação –, embora mobilizem os indivíduos e os submetam, não setraduzem em termos individuais. O sentido econômico e político dessaincomensurabilidade aparece nas próprias peças, na medida em que os autores, apartir da tematização de problemas de moral (Diderot), ou seja, pessoais, passampara a exibição de problemas de costumes (Tchékov), e vão se voltando cada vez maispara problemas especificamente sociais (Hauptmann). O mal-estar no palco, paralelo àinfiltração do elemento épico na forma dramática, vai falando da alienação social real.

Essa infiltração tende cada vez mais a abolir totalmente os pressupostos dodrama. Diante disso, dois caminhos se apresentam para os dramaturgos: ou insistir naforma, procurando um conteúdo especial e adequando-o a ela, ou desistir da forma,admitindo a exigência do fator épico demandado pelo material e explodindo o drama.O primeiro caminho é o das tentativas de “salvar” o drama; o segundo, das tentativasde “solucionar” o problema que apareceu na forma (Ibidem, p. 97). Para mostrar oque está em jogo aqui, bastarão dois exemplos da primeira, e um da segunda.

Importante tentativa de salvação do drama é o Naturalismo. Percebendo adireção do desenvolvimento histórico-social, sua tendência a eliminar a possibilidadeexpressiva da intersubjetividade, o Naturalismo se volta para aqueles setores dasociedade onde a reificação é tão completa, onde o peso do existente se faz sentir demaneira tão acachapante, que se produz, através da impotência e da ausência deconflito, o sentimento de um destino comum e, portanto, de uma subjetividade. ONaturalismo, assim, busca o “elemento arcaico no presente” (Ibidem, p. 102), masjustamente lá onde as tendências do presente estão totalmente realizadas. Mas se,assim, o drama consegue sobreviver, ele só se mantém sob a forma de uma espéciede relíquia ingrata. Esse teatro entrega, às plateias burguesas, a lembrança históricada mera forma da intersubjetividade, preenchida pela degradação dos pobres. Assim,o espectador não está entre os personagens, e muito mais do que identificaçãoreforçadora do caráter absoluto do drama, o que o Naturalismo produz – e, decerto,busca – é o estranhamento e até a repulsão.

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Outra tentativa de salvação, onde a própria artificialidade do projeto de salvaçãose converte em recurso formal, é o teatro de confinamento de Hebbel. Aquelesindivíduos que o processo social isola e atomiza aparecem sob a forma de personagensque o destino confinou juntos – por exemplo, na cadeia –, de maneira que aintersubjetividade aparece como resultado da força. A cena é literalmente cercada comuma “muralha contra a épica do mundo exterior” (Ibidem, p. 117).

Quanto às tentativas de solução do problema da infiltração épica no espaçodramático, o exemplo mais claro delas é o teatro de Brecht, no qual a épica não étraduzida em termos da matéria teatral – seja como narrativa de fatos histórico-sociais, rememoração, ou força que obriga à intersubjetividade –, mas é preservadacomo elemento da própria forma. Szondi fala de uma “entronização do princípiocientífico” no teatro épico de Brecht: trata-se do fato de que as peças são instrumentode esclarecimento sobre o próprio processo histórico-social. Nas palavras do próprioBrecht, esse processo não é “personificado” ou representado diante do espectador,mas é “narrado” ou apresentado para o espectador (BRECHT, 1978, p. 16). Nessesentido, o espetáculo está distanciado de si mesmo: por um lado, a matéria não seencerra na cena, mas a cena alude à matéria; por outro lado, o próprio espetáculopode ser matéria de si mesmo, na medida em que Brecht insere, no texto, prólogos,projeções de títulos, e autoanálises por parte dos personagens. As coisas do mundoque ganham espaço no palco são mostradas e criticadas: as rupturas que invadiam asimples representação dramática, impossibilitando-a, são assumidas comoconstituintes da forma, que é investigativa.

Assim, a “autoalienação do homem” na sociedade burguesa, “para quem opróprio ser social tornou-se algo objetivo [...], recebe em todas as camadas da obrasua precipitação formal e se converte assim no princípio universal de sua forma”(SZONDI, 2001, p. 139). A distância dolorosa dos indivíduos frente às suas condiçõesnão é mais experimentada nem mesmo como dor subjetiva, mas como condição geral,exibida pela peça no espaço que ela abre entre as coisas representadas e aconsideração científica delas, tudo no interior da cena. Trata-se de uma forma que fazjustiça à realidade reificada. Sem dissolver os personagens, ela mostra o quanto suasubjetividade é problemática. Os interesses e projetos dos personagens sãorepresentados objetivamente pela cena: não estão fundados na convicção dospersonagens, ou no sentimento que essa convicção evoca nos atores e, através deles,no público. Em vista dos recursos de distanciamento, tanto a convicção quanto ossentimentos estão todo o tempo em questão no teatro de Brecht, e o público, assim, écolocado na posição de autor de sua própria experiência teatral: quem está certo? Deque lado ficar? Que fazer com minha revolta/ira/dúvida? Em vista do fato de que setrata sempre de matéria passível de questionamento social e político, essadeterminação consciente da experiência estética é uma alusão à determinaçãoconsciente do âmbito histórico, de modo que, enquanto culminância explosiva dainfiltração do elemento épico na forma dramática, o teatro de Brecht está marcadopela resolução de encarar o problema do drama como um problema histórico-social dasociedade burguesa, e tematizar esse problema esteticamente. Essa tematizaçãoestética aponta para a superação da forma burguesa de drama; em paralelo, trata-sede apontar para a superação da alienação e, portanto, da forma burguesa deorganização social.

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Title: Art and bourgeois society in Peter Szondi’s theory of the theatrical text

Abstract: This essay analyses the arguments deployed by Peter Szondi in his Essay onthe tragic (1961), Theory of bourgeois drama (1973), and Theory of modern drama(1956) so as to undertake a general characterization of his sociology of literature,highlighting the author’s attention to the conflicts between the writing of theatricaltexts and the tradition of theatrical genres. That writing process is such that plants thetext firmly in its historical background, so that its complex social situation is formallycrystallised in its logical structure as a sort of aesthetic account of its time. As theWestern civilizing effort itself thus becomes thematic for theatrical works, itscontradictions express themselves in their form.

Keywords: Peter Szondi. Sociology of literature. Bourgeois society

Recebido em: 18/08/2012. Aceito em 17/06/2013

Crítica Cultural (Critic), Palhoça, SC, v. 8, n. 1, p. 27-38, jan./jun. 2013

Discurso na vida e discursona arte de atuar: contribuições

de Vygotski e do círculo de Bakhtinpara a análise da prática teatral

Andrea Vieira ZanellaGraziele Aline Zonta

Kátia Maheirie*

Resumo: Este estudo analisa a prática teatral desde considerações teóricas presentesnos textos de Vygotski e do círculo de Bakhtin. Neste viés, a arte é concebida comosocial, uma forma especial de relação entre criador e contemplador fixada em umaobra, em determinado tempo/espaço. Na arte de atuar, o ator se posicionaexotopicamente com relação ao personagem, dele se aproximando e distanciando paradefinir seu contorno estético.

Palavras-chave: Teatro. Círculo de Bakhtin. Vygotski.

O objetivo deste trabalho é considerar a prática do teatro a partir das reflexõessobre arte e processos de criação presentes nos textos de Liev Semiónovich Vygotski edo círculo de Bakhtin.1 Apesar de enfatizarem a arte literária, os textos desses autoresevidenciam a possibilidade de ampliação do escopo de análise para outras linguagensartísticas, dentre elas a encenação teatral, foco deste estudo.

Inicialmente, cabe localizar o lugar social de onde falam esses autores e comoconcebem a arte. Já na introdução do texto Discurso na Vida e Discurso na Arte,Bakhtin e Voloshinov situam o estético como uma variedade do social: “o meio socialextra-artístico afetando de fora a arte, encontra resposta direta e intrínseca dentrodela” (BAKHTIN; VOLOSHINOV, 1976, p. 2). Dessa maneira, os autores concebem a

* Andrea Vieira Zanella é doutora em Psicologia da Educação pela Pontifícia Universidade Católicade São Paulo e pós-doutora pela Università Degli Studi di Roma La Sapienza, é docente doPrograma de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina. GrazieleAline Zonta é mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina, psicóloga naPró-Reitoria de Assuntos Estudantis da Universidade Federal do Paraná. Kátia Maheirie édoutora em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e pós-doutoranda em Educação pela UNICAMP, é docente do Programa de Pós-Graduação emPsicologia da Universidade Federal de Santa Catarina.

1 Assumimos a expressão Círculo de Bakhtin em referência ao conjunto da obra do grupo deautores russos formado por Mikhail M. Bakhtin, Valentin N. Voloshinov e Pavel N. Medvedev. Deacordo com Faraco (2006), estes três autores mantiveram um grupo de estudos que durou dezanos (1919-1929) no qual partilharam “um conjunto expressivo de ideias” (p. 14). Destecompartilhar de ideias nasceram obras cuja autoria nunca foi certeiramente definida e, por estemotivo, passaram a ser referenciadas ao círculo, como um todo, por estudiosos posteriores.

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possibilidade de uma teoria da arte que compreenda todos os elementos queconstituem a obra artística em seu conjunto, de modo que estudos sobre arte que serestringem às particularidades da obra, da psique do criador, ou ainda à psique docontemplador são, para Bakhtin, desconsiderados. “O artístico é uma forma especialde inter-relação entre criador e contemplador fixada em uma obra de arte” (BAKHTIN,1976, p. 3, grifo do autor).

O contemplador que participa do processo de criação, importante esclarecer, éum contemplador potencial, um outro que o artista tem como referência para odiscurso/arte proferido e para o qual se dirige - é um participante constante na falainterior e exterior do autor e a quem ele orienta sua obra e quem, por consequência,ajuda a determinar a sua estrutura. Assim sendo, a análise da obra, sua forma, seuconteúdo, seus materiais, os elementos que a tornam concreta não podem serdissociados do estudo das relações que criador e contemplador estabelecem e que alise encontram amalgamadas.

Neste viés, o conceito de cronotopo2 desenvolvido por Bakhtin (1993) tambémacrescenta a esta análise ao enfatizar que o tempo e o espaço são instânciasindissociáveis nas quais se estruturam sócio-historicamente as relações sociais. A obrade arte, por sua vez, só existe enquanto criação do artista no diálogo com um outro,enquanto produzida em um determinado cronotopo que constitui alguns de seusmúltiplos sentidos. Tais sentidos se atualizam/transformam/reformam quando a obra évivenciada por um outro contemplador, em um cronotopo outro que constitui aspossibilidades de leitura da própria obra.

A partir desta introdução compreendemos que, na perspectiva bakhtiniana, aarte é necessariamente social e deste ponto de vista deve ser estudada. Emconsonância com a posição bakhtiniana, temos o olhar de Vygotski, que situa a arteenquanto “uma espécie de sentimento social prolongado ou uma técnica desentimentos” (VYGOTSKI, 2001, p. 308 – grifo do autor). A arte, para este autor,permite não somente vivenciar sentimentos ou expressá-los, mas superá-los,organizando o comportamento:

[...] a verdadeira natureza da arte sempre implica algo que transforma, que superao sentimento comum, e aquele mesmo medo, aquela mesma dor, aquela mesmainquietação, quando suscitadas pela arte, implicam o algo a mais acima daquilo quenelas está contido. E este algo supera esses sentimentos, elimina essessentimentos, transforma a sua água em vinho. (VYGOTSKI, 2001, p. 307).

Considerando que os sentimentos e sentidos objetivados na obra sãosocialmente produzidos e particularmente apropriados, compreendemos que a relaçãodo leitor com a obra de arte implica não somente uma recepção passiva, a vivência

2 Bakhtin (1993) apropria a palavra cronotopo (que significa tempo-espaço) da teoria darelatividade de Eistein e o transporta para a crítica literária como uma categoria de fusão dasrelações temporais e espaciais, artisticamente assimiladas em literatura: “No cronotopoartístico-literário ocorre a fusão dos indícios espaciais e temporais num todo compreensivo econcreto. Aqui o tempo condensa-se, comprime-se, torna-se artisticamente visível; o próprioespaço intensifica-se, penetra no movimento do tempo, do enredo e da história. Os índices dotempo transparecem no espaço, e o espaço reveste-se de sentido e é medido com o tempo.Esse cruzamento de séries e a fusão de sinais caracterizam o cronotopo artístico” (p. 211).

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sincera do sentimento que dominou o autor da obra contemplada, ou a compreensãodas particularidades da sua estrutura. A leitura da obra implica o contemplador na suarecriação, na atualização, negação e transformação de sentidos, alçando-o à condiçãode cocriador da obra. A cocriação do contemplador neste processo não se referenecessariamente à objetivação do leitor em uma nova obra, como no processo decriação do autor, e sim a um processo de síntese de criação secundária (Vygotski,2003), no qual a vivência da obra por cada contemplador permite a transformação dosujeito e a ressignificação da obra à sua maneira.

Considerar que a obra é recriada pelo contemplador não significa dizer que oartista deve criar a fim de satisfazer as ambições e expectativas do seu público, masque aquele também não ignora que a sua obra é feita para ser vista por um outro quenão vivenciou com ele o processo de criação e as torturas que o caracterizam.Torturas, pois do ponto de vista de Vygotski (2003), o processo criativo não é somenteprazeroso, fruto da inspiração, ao contrário, é um processo complexo, ativo e objetivono qual a imaginação ganha vida a partir da percepção da realidade e reorganiza asimpressões sobre esta realidade em uma nova forma a ser concretizada no contextoreal.

Podemos agora refletir sobre como estas considerações sobre a arte aplicam-seà linguagem específica do teatro. Na arte de atuar, a criação não se realiza em umobjeto externo ao ator, e sim no seu próprio corpo que assume a forma estética dopersonagem. O ator enforma3 a personagem e, assim, transforma o seu corpo, o quesó é possível a partir de um trabalhoso processo de criação anterior ao momento daestreia, mas que continua sendo elaborado a cada apresentação. Concebemos destemodo, que assim como o autor literário elabora sua obra a partir da concepção de umcontemplador/leitor por ele idealizado, também o ator, nos momentos de ensaio,realiza seu processo de criação, dá forma à sua personagem, a partir da sua relaçãocom o contemplador idealizado, ou seja, aquele espectador que não está presente nomomento da apresentação, mas que é imaginado como espectador potencial pelo ator.

Entretanto, distintamente da criação literária, a criação teatral conta com outromomento do qual participa o ouvinte real - o contemplador/espectador em carne eosso que compõe o público da peça apresentada. Roubine (1987) propõe que o olhardo público, sua reação de apoio, aborrecimento, ironia, hostilidade ou indiferença,contribui para modificar, com diferentes intensidades, cada apresentação, fazendo delaum momento único.

Deste modo, a forma artística que é criada e objetivada no corpo do ator, emcena, só se realiza no momento do espetáculo, diante dos olhos do espectador.Contempladores potenciais e reais participam do acontecimento artístico do teatro eajudam a compor o processo de encenação teatral, este, composto pelo pequenocírculo social que constitui o contexto dos acontecimentos da vida das personagens eda trama representada, e por um contexto social mais amplo composto pela plateiaque se faz contempladora ativa da obra a partir da significação das situaçõesencenadas.

3 O termo enformação foi apropriado de Reis (2007) a partir da sua análise do processo deenformação e transformação do corpo da bailarina da dança do ventre.

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Estas considerações sobre o teatro e sobre a relação entre os atores econtempladores justificam que o processo de criação teatral receba o seu acabamentopor parte do artista somente na presença do espectador/contemplador, no momentode cada apresentação. Visto isso, se nos pautarmos pelos caminhos propostos porBakhtin, nosso olhar para o teatro não pode ser reduzido ao estudo dos aspectos deforma, nem tampouco à análise psicológica do autor da obra, do encenador, do ator ouda plateia. Sob esta ótica, faz-se importante compreender como todos estes elementossão unidos pelo encenador para dar origem a uma manifestação única que seestabelece enquanto comunicação estética entre artistas e espectadores.

Ao aceitar, como o faz Magaldi (1986), que o teatro é uma arte que se realizapela síntese de elementos artísticos – literatura, pintura, arquitetura, expressãocorporal, música, entre outras possibilidades de expressão – que dão origem ao texto,ao cenário, à atuação do ator, assume-se que são estes os elementos que medeiam acomunicação proposta entre artistas e espectadores. Assim, consideramos como pontode partida para a análise do processo de criação de um espetáculo teatral, o estudo dotexto dramático.

Propomos que, na perspectiva bakhtiniana, seria possível conceber um estudodeste texto observando os elementos apresentados como conteúdos, somados aossentidos produzidos sobre o texto pelo leitor e ainda às particularidades referentes àscaracterísticas do contexto em que vive o autor e as problemáticas com as quais estedialoga no processo de criação e que se objetivam na obra criada.

Retomando o conceito de cronotopo, cabe considerar que o autor do textopertenceu a uma determinada sociedade, escreveu sua peça em certo momentohistórico, determinado espaço-tempo, objetivando-se em sua obra a partir daconcepção de um herói que, de acordo com Bakhtin (1976), diz respeito àquele ouaquilo de quem o autor fala – em permanente relação com um ouvinte – esteidealizado pelo autor. Assume-se, então, que o texto teatral, quando tomado comobase para a encenação teatral, é objetivação de outro processo de criação, o do autor,que deu forma à sua obra literária a partir do diálogo entre aqueles diversos elementosnaquele espaço-tempo.

Sendo o estudo da peça parte do processo de criação teatral, reconhecemos osencenadores do espetáculo primeiramente como contempladores da obra literária naqual se constitui o texto encenado (contemplador cocriador que supera os sentimentosque a obra nele desperta). Por conseguinte, o texto, ao ser lido e posteriormenteencenado em uma época diferente daquela em que foi escrita, é relido, recebe novossentidos, próprios daqueles que o vão encenar e do cronotopo da sociedade em que seconstituem. Este texto é então recriado, reobjetivado em uma nova forma e a partir deuma nova linguagem, a dramatização, para ser assim apresentado a novos leitoresque, por sua vez, vão atribuir à nova obra, novos sentidos. Podemos então conceberatores e diretores como cocriadores da obra dramática, pois fazem desta, elementopara a criação da sua própria obra, a qual resulta da transformação do texto escritoem um texto de corpo e voz que se concretiza em um espaço-tempo planejado erealizado no espaço cênico.

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As considerações de Koudela (2008) acerca do texto cênico4 ajudam acompreender esta transformação da linguagem escrita em linguagem dramática.

Na encenação, o poder de ruptura estética do material de partida necessita sertraduzido para o sistema de símbolos e signos teatrais. A materialidade da arte doteatro exige uma transformação da expressão escrita para a oralidade da fala. Acorporeidade do atuante, aliada a elementos visuais e auditivos dão uma forma aotexto cênico que se desdobra no tempo e no espaço. (KOUDELA, 2008, p. 52, grifoda autora).

Atores e diretores, portanto, dão um novo acabamento estético ao texto,recriam o seu contexto, modificando-o em razão das condições e característicasespaço-temporais em que se situam.

Mas o texto, conforme ressaltamos anteriormente, é somente um dos elementosdentre os que constituem a obra teatral. Os atores, e os personagens aos quais dãovida, o cenário, os adereços, os figurinos, tudo isso em conjunto é estruturado paradar forma ao conteúdo do texto e do espetáculo.

Para abordarmos esta questão, acolhemos as ideias de Bakhtin (1976) no que serefere ao discurso da vida e ao discurso da arte, destacando as particularidades dacomunicação cotidiana e da comunicação artística. Na vida cotidiana, o discurso verbalnasce de uma situação pragmática extraverbal e permanece diretamente vinculada aesta situação. O enunciado concreto só pode ser compreendido uma vez que o eventoextraverbal que o engendra compõe um contexto social no qual os interlocutorescompartilham um horizonte espacial e ideacional. Este contexto compartilhado é o queelucida os julgamentos de valor que permanecem presumidos no enunciado concreto,ou seja, é por meio dos significados socialmente compartilhados que compreendemosaqueles sentidos do discurso que não se realizam concretamente na palavra, mas quese fazem presentes enquanto informação extraverbal. É o fator denominado entoaçãoque localiza a fronteira do verbal com o extraverbal, do dito com o não dito, na medidaem que é a entoação quem faz transparecer a expressão emocional, e é por meio delaque o falante expressa os juízos de valor atribuídos aos objetos e compartilhados pelosindivíduos de uma comunidade.

A partir desta fronteira do dito com o não-dito, Bakhtin (1976) caracteriza odiscurso artístico como um discurso que se faz por uma transformação da forma decomunicação pragmática. Referindo-se ao enunciado poético, afirma: “Julgamentos devalor, antes de tudo, determinam a seleção de palavras do autor e a recepção destaseleção (a co-seleção) pelo ouvinte” (BAKHTIN, 1976, p. 10 – grifo do autor). O autoresclarece que as palavras que o poeta escolhe para construir sua obra são retiradasnão de um dicionário, mas do contexto da vida onde se impregnaram de julgamentosde valor e são selecionadas a partir do ponto de vista dos próprios portadores destesjulgamentos, ou seja, seus ouvintes – aqueles que o autor concebe no momento decriação – e em relação ao objeto do seu enunciado – o herói. Vemos, portanto, que

4 A utilização da expressão texto cênico é concebida como o faz Koudela (2008) desde sua leiturade Pavis (1999). Para estes autores, o texto dramático é o material bruto sobre cuja base sãoconstruídas novas versões que dão origem a um novo produto assim denominado texto cênico.Este deve ser avaliado como obra independente em relação ao modelo literário.

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enquanto na vida o discurso se vincula diretamente aos interlocutores quecompartilham um contexto social, na arte, o discurso é construído, não vinculado auma situação concreta, mas a partir das situações que o autor cria para permitir ainter-relação entre seu herói e seu ouvinte a partir dos julgamentos de valor quecompartilham.

A entoação também se faz presente no discurso artístico, mas não só elaexpressa os seus presumidos: o gesto, afirma Bakhtin (1976), também se faz presentepara expressar as emoções e os julgamentos de valor. Sendo assim, entoação e gestosão ativos e objetivos por tendência, de modo que não somente expressam a condiçãopsicológica do falante, mas também se relacionam de maneira forte e viva com omundo externo e o meio social. “Quando uma pessoa entoa e gesticula, ela assumeuma posição social ativa com respeito a certos valores específicos e esta posição écondicionada pelas próprias bases de sua existência social” (BAKHTIN, 1976, p. 8).

É precisamente neste aspecto objetivo e social da entoação e do gesto “queresidem as forças da arte responsáveis pela criatividade estética e que criam eorganizam a forma artística” (BAKHTIN, 1976, p. 8). Apesar de diferenciar estasformas de discurso, Bakhtin enfatiza que o discurso da arte não pode existir descoladodo contexto da vida, pois é nele que a arte encontra seus elementos e os reestrutura,produzindo algo novo.

Aqui encontramos novamente uma consonância entre as ideias de Bakhtin e deVygotski. Afirma este em seu texto Arte e Vida: “A arte está para a vida como o vinhopara a uva – disse um pensador, e estava coberto de razão, ao indicar assim que aarte recolhe da vida o seu material, mas produz acima desse material algo que aindanão está nas propriedades desse material” (VYGOTSKI, 2001, p. 308) e mais adianteacrescenta: “A arte completa a vida e amplia as suas possibilidades” (p. 313).

Transpondo estas considerações para a criação teatral – criação do texto cênico– podemos sugerir que cada elemento dentre aqueles que o compõem também foramcuidadosamente escolhidos de acordo com os juízos de valor que se expressam pormeio da forma construída. Assim, ao contrário da manifestação literária da arte, queexige a descrição verbal do contexto extraverbal para ser compreendido, a criaçãodeste contexto no teatro se faz pelo espaço, pelo cenário, figurinos, iluminação,adereços.

Dando foco ao ator, de maneira análoga, para a expressão dos sentimentos, aentoação das palavras é acompanhada dos gestos, da postura, dos movimentos eposicionamentos do ator em cena. Dessa maneira, no teatro, o ator juntamente comas palavras, lança mão de outros recursos de expressão, recursos estes que sãoobjetivados no seu corpo, na postura, nos gestos, nas vestes, de modo que estesestabelecem uma relação de comunicação diferenciada com o público, extrapolando asregras gramaticais da língua e criando uma forma de dizer regida por suas própriasnormas e guiada por objetivos próprios.

Para esclarecer a relação do espaço-tempo com a compreensão dos juízos devalor e a produção de sentidos no contexto teatral, podemos imaginar um ator emcena, durante uma peça que se passa no contexto histórico-cultural dos anos 50 doséculo XX, mas que está em cartaz no ano de 2012. Em determinada cena, durante

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um momento de desespero, a personagem enformada pelo ator exclama: “Valha-meDeus!” Neste momento, ele expressa, por meio da entoação e dos gestos, os juízos devalor socialmente contidos na expressão e os sentidos que tal expressão desperta napersonagem devido à situação encenada. Mas estes sentidos só são compreendidos namedida em que a peça apresenta à plateia aqueles elementos cenográficos, figurinos,adereços, sonoplastia que foram cuidadosamente escolhidos para localizar o ator notempo-espaço em que se passa a peça. Diferente seria se a mesma expressão fossedita em uma situação cotidiana, por exemplo, por uma pessoa que espera o ônibus,em meio a um grupo de estudantes, no mesmo ano de 2012. Aqui, já não há mais oselementos que no teatro localizavam a época da expressão. As palavras podem ser asmesmas, mas o contexto, as condições, as possibilidades psicológicas são outras,assim como as possibilidades de sentidos: alguns podem ser socialmentecompartilhados, outros não. Por este motivo, a entoação pode não conseguir, agora,fazer compreender o juízo de valor que antigamente a expressão carregava, e osentido será perdido ou transformado.

É, portanto, por meio da estruturação daqueles elementos em um espetáculoque localiza histórica e culturalmente a trama encenada, que se faz a conexão entre omomento histórico em que se passa a peça e aquele em que ela é encenada, entre ossentidos do autor do texto, os do encenador e os do espectador. Do mesmo modo,qualquer palavra no contexto da vida, ou mesmo uma comunicação sem palavrascomo as de Kity e Levin, personagens da obra literária Ana Karenina de Tolstoi, sócomunicam para um outro que compartilha o contexto e as motivações daquele quefala/gesticula (Vygotski, 2001).

Outra situação que apresentamos para expressar essa relação entre arte e vida,extraímos do conto A Esbofeteada, de Nelson Rodrigues, publicado na coluna A vidacomo ela é... do jornal Última Hora, entre os anos de 1951 a 1961.

No referido conto, o autor apresenta a personagem Silene e a descreve comouma alma doce e terna. Silene se apaixona por Sinval, namorado da amiga Ismênia.Ismênia se vangloria dos acessos de ciúmes de Sinval e inclusive dos tapas em queseus acessos costumam resultar. A trama se desenvolve de tal forma que Sinvalconfessa seu verdadeiro amor por Silene e opta por deixar Ismênia para assumir comaquela o seu relacionamento. Mas, ao contrário do modo como agia em relação àIsmênia, Sinval não demonstra ciúmes por Silene. A moça então, para tentardespertar os ciúmes do namorado, passa a chamar a atenção de todos com, naspalavras do autor, “atitudes desagradáveis, de escândalo”. Nas festas, bebe ao pontode ser carregada e deixa evidentes as suas traições. Chega o momento em que Sinvalalcança o seu limite e, tomado pelos ciúmes, põe-se a esbofeteá-la. Silene seconvence assim do amor de Sinval e passam a manter, daí por diante, umrelacionamento feliz, permeado pelos bofetões que o rapaz dá na namorada atendendoaos seus pedidos.

“Heróis” como os apresentados em A Esbofeteada – seus personagens e enredos– renderam a fama polêmica à obra de Nelson Rodrigues. A seguinte transcrição deum comentário de Ruy Castro, registrado na obra Nelson Rodrigues: Teatro completo,de Sábato Magaldi (1993), sobre o contexto e processo de criação de A vida como elaé..., revela particularidades que lançam luz a esta polêmica:

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Durante dez anos, de 1951 a 1961, Nelson Rodrigues escreveu sua coluna A vidacomo ela é... para o jornal Última Hora, de Samuel Wainer. [...] E quase sempresobre o mesmo assunto: adultério. [...] As histórias saíam de casos que lhecontavam, da sua própria observação de subúrbios cariocas ou das cabeludaspaixões de que ele ouvia falar em criança. Mas principalmente da sua meditaçãosobre o casamento, o amor e o desejo.O cenário dos contos de A vida como ela é... é o Rio de Janeiro dos anos 50. Umacidade em que casanovas de plantão e mulheres fabulosas flertavam nos ônibus ebondes; em que poucos tinham carro, mas esse era um Buick ou um Cadillac; emque os vizinhos vigiavam-se uns aos outros; e em que maridos e mulheres viviamsob o mesmo teto com as primas e os cunhados, numa latente volúpia incestuosa.Uma cidade em que, como não havia motéis, os encontros amorosos se davam emapartamentos emprestados por amigos – donde o pecado, de tão complicado,tornava-se uma obsessão (MAGALDI, 1993).

Esta descrição do cenário das histórias de Nelson Rodrigues revela, desde oponto de vista de Magaldi, como o referido autor apreendia o discurso da vida, dassituações cotidianas do Rio de Janeiro da década de 1950 e o transformava em umnovo discurso nos seus contos. Podemos dizer que o autor objetivava em textos comoA Esbofeteada, os sentidos das relações por ele apropriadas. Seus personagensganhavam vida a partir da sua leitura da realidade. São os julgamentos de valor que oautor fazia sobre as relações do seu tempo que o impulsionavam a dar vida àspersonagens desta trama e às situações que entre elas se desenrolam.

O comentário de Ângela Leite Lopes (1993), também nos ajuda a refletir sobreesta questão: “A primeira imagem que se tem de Nelson Rodrigues no que se refere àsmulheres é o do autor da frase “mulher gosta de apanhar”. Ouve-se aí um veredictoque encerraria a sua visão não só das mulheres como da questão do feminino”(p.262). Esta fala de Ângela Lopes resumiria a posição ativamente assumida peloautor diante das mulheres de sua época e das que retrata em suas obras. Mas apolêmica frase encontra repercussão não somente no julgamento de valor assumido,mas no fato de este nascer do contexto social, contexto da vida e revelar os paradoxosdeste contexto. Ao colocar a nu o que, para muitos, seria conveniente deixarsilenciado, o autor elegeu seus “heróis”, trazendo para a arte, o discurso da vida dasua época.

Já no momento em que A Esbofeteada é montada no teatro, tudo isso passa aacontecer em cena, assim como poderia acontecer no subúrbio carioca. Estesjulgamentos, dentre inúmeros outros que permanecem presumidos nos textos deNelson Rodrigues, são significados pelo encenador que dará forma à peça naconcretização da montagem teatral. Mas também no teatro não há a simplesreprodução da situação da vida, e sim uma avaliação específica sobre a tramaencenada, avaliação esta que determina uma postura ativa do encenador em relaçãoao conteúdo captado na vida e encenado no palco – são os valores que o autorobjetivou em seu texto e que o encenador apropriou na sua leitura, além daquelesnovos sentidos que o encenador atribuiu à cena de acordo com o contexto real da suasociedade, no momento histórico em que vive.

Além disso, é preciso considerar que o processo de leitura do texto dramático eprodução de sentidos sobre o mesmo irá relacionar-se diretamente com a forma e oconteúdo que se realizarão no texto cênico. Afirma Bakhtin que a forma artística não

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se resume ao material – ela se realiza com a ajuda dele, mas em virtude da suasignificação, o ultrapassa e mantém relação com o conteúdo. “A seleção do conteúdo ea seleção da forma constituem um e o mesmo ato estabelecendo a posição básica docriador; e neste ato uma e a mesma avaliação social encontra expressão” (BAKHTIN,1976, p. 11).

Mas como acontece este processo no teatro? Como o ator organiza os recursosde que dispõe para realizar sua atividade estética, dar forma a sua personagem? Nesteponto, é preciso apresentar algumas considerações sobre o processo de criação dapersonagem pelo ator e, para isso, vamos novamente recorrer à analogia com oprocesso de criação literária proposto por Bakhtin.

Bakhtin (2003a) defende o nascimento da criação estética a partir doposicionamento exotópico do autor com relação à obra. A este respeito, Todorov – noprefácio da referida obra de Bakhtin – esclarece: “A criação estética é, pois, umexemplo bem-sucedido de um tipo de relação humana: aquela em que uma das duaspessoas engloba inteiramente a outra e por isso mesmo a completa e a dota desentido” (TODOROV em BAKHTIN 2003a, p. XIX).

O texto dramático, enquanto criação estética, estrutura-se desde esta posiçãoexotópica do autor para com suas personagens. O autor do texto, exotopicamenteposicionado com relação aos seres e à trama criada, enxerga e conhece tudo o quecada personagem enxerga e conhece dentro do seu mundo, bem como tudo o que elasnão podem enxergar estando imersas neste. A consciência do autor é, portanto, umaconsciência que abrange a consciência da personagem com elementostransgredientes5 a ela mesma, definindo assim, o acabamento estético da existênciadesta (Bakhtin, 2003a).

A partir do conceito de exotopia, Bakhtin define os movimentos de aproximaçãoe distanciamento que compõem a atividade estética. A aproximação é o momento decompenetração, no qual o autor busca ver e inteirar-se do outro (indivíduo, ser,personagem) tanto quanto for possível, “adotar o horizonte vital concreto desseindivíduo tal como ele o vivencia” (BAKHTIN, 2003a, p. 24). Após inteirar-se do mundoda personagem, o autor realiza o movimento de distanciamento, retornando ao seupróprio lugar, de fora da trama, onde a objetivação estética se realizará natransformação dos sentidos advindos do material compenetrado na forma do textoliterário.

Contrariamente ao processo de criação literária no qual o herói a quem o autordá vida se concretiza em um objeto externo a ele, no caso do teatro, este herói ganhavida no corpo do próprio ator/criador. Conforme aludido anteriormente, o ator faz-seoutro de si mesmo ao enformar no seu corpo, o corpo da personagem. Em outraspalavras, o corpo do ator assume o contorno estético do personagem e, para isso,também o ator se posiciona exotopicamente com relação àquele, enxerga-o comooutro e dele se aproxima, se inteira do seu mundo, vivencia o que ele vivencia, sente-se como ele se sente, para então se afastar e definir sua forma, seu andar, sua fala,seus movimentos e gestos, suas características físicas e psicológicas, seu jeito de ser.

5 O termo transgrediente, adotado por Bakhtin, apresenta entre seus significados os seguintes: “iralém, atravessar, exceder, ultrapassar, transgredir”, esclarece Paulo Bezerra, em nota detradução do livro Estética da Criação Verbal.

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O ator se torna outro sem deixar de ser ele mesmo, processo que não se dá deforma linearmente definida, pois o ator se envolve com e se distancia da personagemem diversos momentos da criação, como nas leituras, nos ensaios, nos exercícios deimprovisação6.

Retornemos à proposta de encenação do conto A Esbofeteada. Considerando oponto de vista apresentado, para o conteúdo deste texto ganhar forma, os atorestransformarão seus corpos nos corpos das personagens, dando vida às situaçõesdescritas. Para isso será preciso considerar algumas questões como: Em que espaço-tempo se passa a história? Em que contexto histórico ela acontece? Como se portafisicamente uma moça como Silene neste contexto? Como ela anda? Como ela seveste? Qual o seu tom de voz? Qual a intenção de Silene quando pergunta a Sinval oque ele faria se ela o traísse? Que reação espera da parte dele? Que gesto acompanhaesta pergunta?

Os atores descobrem as respostas para estas, e muitas outras questões, a partirdo estudo do texto dramático, dos sentidos a ele atribuídos, do que se quer comunicarao público por meio da encenação, das descobertas realizadas durante os ensaios.Assim, para a construção do corpo da personagem, seus movimentos, atitudes eintenções precisam ser pensadas, elaboradas, experimentadas e reconstruídas nopalco para traduzirem os sentidos produzidos para a linguagem da obra teatral.

Também os demais elementos de cena participam desta construção,acrescentando forma e conteúdo à história: Como estariam dispostos os móveis noquarto de Silene? Que cores predominam neste cômodo? Que luz o ilumina? Comodispor dos adereços, iluminação e sonoplastia para que o ambiente da Silene meiga doinício da história contraste com a Silene descrita por Nelson Rodrigues comodesagradável no fim da história? Aqui, também, cada elemento é pensado eposicionado a partir dos sentidos produzidos, para melhor representar o contexto socialem que se estabelece a trama, definindo um acabamento estético para a obra criada.

Por sua vez, a partir da experiência ativa do espectador/contemplador, conteúdoe forma ganharão uma nova leitura. Pelo olhar do público, olhar de fora da trama, aobra será significada e ressignificada pelo leitor, o qual, quando afetado pela obra,deixará o espetáculo, transformado.

E cabe aqui pontuar que é devido a esta possibilidade de abertura à produção desentidos que uma obra permanece viva, ao longo do tempo, enquanto obra de arte.Algumas obras atravessam gerações, despertando em seus leitores/espectadorespossibilidades de relações e reações esteticamente produzidas, suscitando novosolhares, novas leituras. A este respeito, Bakhtin afirma:

As obras dissolvem as fronteiras da sua época, vivem nos séculos, isto é, no grandetempo, e, além disso, levam frequentemente (as grandes obras, sempre) uma vidamais intensiva e plena que em sua atualidade. [...] Entretanto, uma obra não podeviver nos séculos futuros se não reúne em si, de certo modo, os séculos passados.Se ela nascesse toda e integralmente hoje (isto é, em sua atualidade), não dessecontinuidade ao passado e não mantivesse com ele um vínculo substancial, nãopoderia viver no futuro. Tudo o que pertence apenas ao presente morre juntamentecom ele (BAKHTIN, 2003b, p. 362, grifo do autor).

6 Um estudo sobre o movimento exotópico no processo criativo do ator e no contexto do teatro-educação pode ser encontrado em Carvalho (2004) e Zonta (2009).

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Bakhtin defende que as grandes obras não são construídas somente no seumomento presente. Ao contrário, nascem da relação do seu presente com o tempopassado lançando-se ao futuro. A obra contém elementos a serem significados em ummomento futuro, até distante, ao momento de sua criação: “No processo de sua vidapost mortem elas se enriquecem com novos significados, novos sentidos: é como seessas obras superassem o que foram na época da sua criação” (BAKHTIN, 2003b, p.363).

É justo recorrer novamente a Nelson Rodrigues, e sua obra como exemplo, apartir de alguns de seus críticos, como Sábato Magaldi e Ronaldo Lima Lins:

A permanente fusão de elementos na aparência inconciliáveis autorizaria amultiplicidade de leituras das obras. Enquanto um encenador pensa em Dorotéiacomo sombria tragédia, outro coloca homens em papéis femininos e prefere a farsadescabida. Onde um analista vê comédia de costumes, outro enxerga mitoancestral (MAGALDI, 1993, p. 131).[...] Quero salientar que nada permanece imune, autônomo, independente doresto, no teatro rodriguiano. Todos os seus ingredientes se tocam e se repelem, daío riso misturado ao choro, o prazer prejudicado pelo sofrimento, o drama e omelodrama próximos e quase inseparáveis (LINS, 1993, p. 250).

Os comentários de Magaldi e Lins ressaltam como Nelson Rodrigues concretizoua reunião de elementos opostos em obras esteticamente acabadas, possibilitando aexperiência de múltiplas leituras e sentimentos considerados contraditórios. Mais demeio século após o nascimento das suas obras, o leitor/espectador de NelsonRodrigues encontra nestas, sentidos que só germinam no contexto cultural atual.Afirma Bakhtin: “Os fenômenos semânticos podem existir em forma latente, em formapotencial, e revelar-se apenas nos contextos dos sentidos culturais das épocasposteriores favoráveis a tal descoberta” (BAKHTIN, 2003b, p. 363). Talvez por taiscaracterísticas, as obras de Nelson Rodrigues permanecem no grande tempo, sendoressignificadas por seu público, a cada geração.

Mais do que dar a conhecer aos leitores de hoje como eram significadas asmulheres por Nelson Rodrigues na sua época, a montagem de suas peças provoca algomais em seus espectadores. Sua obra torna presentes os sentidos nela amanhados,quando esta foi criada, despertando sentimentos que são superados pelamultiplicidade de novos sentidos que engendra. Talvez afete os leitores destecronotopo “transformando sua água em vinho”, propiciando a experiência de umarelação esteticamente construída pela mediação de obras que apresentam um discursoantigo e atual, ao mesmo tempo.

Referências

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Title: Discourse in life and discourse on the art of acting: contribution of Vygotski andthe Bakhtin circle for the analysis of the theater practice.

Abstract: This study analyses the practice of theater acting since the theoreticalconsiderations found in texts of Vygotski and the Bakhtin circle. In this perspective, artis conceived as a social form of relationship between the author and the viewer fixed ina work of art, in a certain time/space. In the art of acting, the actor assumes anexotopic position in relation to the character, approaching and distancing him to defineits aesthetic boundaries.

Keywords: Theater. Bakhtin circle. Vygotski.

Recebido em: 26/09/2012. Aceito em 17/06/2013.

Crítica Cultural (Critic), Palhoça, SC, v. 8, n. 1, p. 39-65, jan./jun. 2013

Releituras, paródia e intertextualidadeem Braz, Quincas & Cia (2002),

de Antonio Fernando Borges

Flávio Pereira Camargo∗

Resumo: Neste ensaio, temos como objetivo analisar os procedimentos e asestratégias narrativas utilizadas por Antonio Fernando Borges em Braz, Quincas & Cia(2002) em suas releituras da obra de Machado de Assis, por meio da intertextualidade,principalmente através da paródia como estratégia para o autoquestionamentoestético, e as suas implicações tanto para a construção da narrativa quanto para suarecepção por parte do leitor.

Palavras-chave: Narrativa brasileira contemporânea. Metaficção. Personagem-escritor. Intertextualidade. Paródia.

No decorrer de nossa investigação procuraremos comprovar a tese de que umadas linhas de força da prosa de ficção brasileira contemporânea é justamente anarrativa metaficcional marcada, entre outros aspectos, pelo espelhamento da próprianarrativa e de seus elementos composicionais, como, por exemplo, a duplicação depersonagens e do romance dentro do romance, revelando ao leitor um textoespelhado, uma escrita em abismo narrativo e ensaístico.

Nessa narrativa metaficcional, temos observado que há a recorrência de umsujeito na escritura, conforme a terminologia de Wladimir Krysinski, que explicitaconscientemente os mecanismos de engrenagem dessa narrativa ao seu leitor,exigindo dele uma cooperação e uma coparticipação ativa em seu percurso de leitura,pois ele é instigado a decifrar as pistas textuais deixadas pelo personagem-escritor emseu processo de criação e de elaboração da narrativa.

A estratégia de duplicação do autor no personagem ou da duplicação dospróprios personagens no interior do romance revela o autoquestionamento danarrativa e de seus elementos composicionais. Essa duplicação cara à narrativa que sedobra sobre si mesma, que se projeta ou se reproduz, remete-nos à presença de umpersonagem no seu universo intradiegético, cuja função se desdobra em personagem-autor/escritor, personagem-leitor e personagem-narrador, problematizando aspectosreferentes à própria teoria do romance.

∗ Pós-doutor em Estudos Literários pela UFMG. Doutor em Literatura pela UnB. Doutor e Mestreem Letras e Linguística (Estudos Literários) pela UFG. Professor de Literatura Brasileira daUFT/Campus Universitário de Araguaína.

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Temos, portanto, o romance dentro do romance, no qual “a história deixa de seralgo que se conta para ser algo que se constrói” (JÍTRIK, 1979, p. 231), a partir daexperimentação de técnicas e de estratégias narrativas e discursivas na composição doromance contemporâneo, entre as quais destacamos a dissolução das fronteiras entreos gêneros literários e os não literários, o entrecruzamento de diferentes linguagensna elaboração do romance, a reescrita ou a releitura de nossa tradição literária e atécnica do diálogo com o leitor, como um dos recursos da narrativa que seautoquestiona.

Nesse sentido, o leitmotiv da narrativa metaficcional é a sua própria elaboraçãoenquanto ficção, cujo processo de composição é explicitado ao leitor. O engajamentoé, antes de tudo, estético, um engagement que revela o “radical questionamento daprópria escritura e da linguagem” (RODRÍGUEZ MONEGAL, 1979, p. 135). Portanto,não é social.

A experimentação estética está na base do autoquestionamento das estruturastradicionais da narrativa: “a ruptura existe, mas quero dizer também que alguma coisacontinua, muda e se amplia. Do mesmo modo, a ruptura procura estabelecer certasgenealogias” (RODRÍGUEZ MONEGAL, 1979, p. 135).

Observamos que há uma estreita relação de alguns dos autores contemporâneoscom a nossa tradição literária, que é retomada por meio da intertextualidade,principalmente através da paródia como estratégia para o autoquestionamentoestético, e também como forma de reverenciar grandes autores de nossa tradiçãoliterária.

A paródia pode ser compreendida, nesse caso, como uma das principaisestratégias da releitura ou da reescritura de textos e de autores já consagrados, o quenos remete à afirmação de Rodríguez Monegal de que, mesmo quando há umaruptura, esta não implica necessariamente uma destruição do passado, pelo contrário,há uma relação de continuidade e de renovação a partir de técnicas e de estratégiasque outrora foram utilizadas e que, agora, na contemporaneidade, são retomadas elevadas adiante, mas de modo mais amplo, como ocorre, por exemplo, com anarrativa metaficcional, cujas estratégias são retomadas, ampliadas e potencializadaspelos escritores da contemporaneidade, dando, portanto, continuidade a uma tradiçãoliterária metaficcional.

Em seu estudo sobre a natureza e a função da paródia na ficção e nas artes doséculo XX, Linda Hutcheon afirma que, se a mudança também implica continuidade deuma tradição, a paródia pode ser considerada como uma estratégia muito produtiva,sobretudo no que se refere aos processos constantes de reflexividade e deautoquestionamento estético. Aliás, a metaficção no romance contemporâneo “ésimultaneamente dialógica e verdadeiramente paródica num grau maior e maisexplícito” (HUTCHEON, 1985, p. 105).

A paródia, como um modo autorreflexivo, chama a atenção do leitor para oconvencionalismo da arte, de um modo geral, questionando as suas estruturasconsideradas tradicionais. Além disso, mantém a continuidade cultural na medida emque resgata outros textos, outros saberes culturais. No entanto, permite, ao mesmotempo, uma distância crítica e a mudança, por isso o seu emprego na narrativametaficcional demanda do leitor um grau maior de participação e de cooperação emseu percurso de leitura.

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Para Linda Hutcheon (1985, p. 45), boa parte dos teóricos que se dedica aoestudo da paródia faz referências à sua etimologia, cuja raiz grega, para, significa“contra”, “oposição”, e odos, “canto”, ou seja, eles compreendem o conceito deparódia, na maioria das vezes, como um “contracanto” e suas reflexões se limitam auma compreensão desse recurso apenas como uma oposição ou um contraste entretextos.

Para um aprofundamento da natureza textual e discursiva da paródia, Hutcheonretoma a sua raiz etimológica para lembrar que o prefixo para, em grego, tambémsignifica “ao longo de”. Esse sentido teórico atribuído à paródia permite umalargamento de seu escopo pragmático, pois o seu conceito não fica restrito apenas aosentido de contraste ou de oposição entre textos.

Para Linda Hutcheon, a paródia é transformadora no seu relacionamento comoutros textos, e uma de suas marcas é precisamente a diferença que se procuraestabelecer com o texto anterior. A paródia, nesse sentido, exige tanto uma distânciairônica e crítica do escritor com relação ao texto-base, quanto uma participação ativado leitor que, em seu processo de decodificação, deve ser capaz de identificar asalusões, ou as citações intencionais ou não do codificador.

A paródia é, pois, na sua irónica “transcontextualização” e inversão, repetição comdiferença. Está implícita uma distanciação crítica entre o texto em fundo a serparodiado e a nova obra que incorpora, distância geralmente assinalada pela ironia.Mas esta ironia tanto pode ser criticamente construtiva, como pode ser destrutiva.O prazer da ironia da paródia não provém do humor em particular, mas do grau deempenhamento do leitor no “vai-e-vem” intertextual (bouncing) para utilizar ofamoso termo de E. M. Forster, entre cumplicidade e distanciação. (HUTCHEON,1985, p. 48).

Ao se valer do recurso da paródia, o escritor contemporâneo se volta para osseus antepassados, para aqueles que o precederam, e com eles estabelece umdiálogo, retomando certas estratégias narrativas e discursivas de seus predecessores,ampliando-as e aperfeiçoando ainda mais o seu emprego nas técnicas de composiçãode seus romances. Trata-se, portanto, de um modo de os autores contemporâneosreverenciarem os escritores considerados como clássicos pela historiografia literária.

Esse diálogo com a tradição, por meio da paródia, exige muita atenção do leitor,pois ele é convidado a perscrutar os indícios de intertextualidade presentes nas tramasda narrativa, além de estabelecer uma relação de maior cumplicidade com o texto,pois a paródia, como um modo autorreflexivo, chama a sua atenção para osprocedimentos de elaboração da narrativa.

Na narrativa metaficcional, o recurso à estratégia da paródia, como vimos,permite ao personagem-escritor evidenciar o status ontológico do romance ao leitor,ou seja, a narrativa como artifício, cuja literariedade do texto é mostrada ao leitor,principalmente por meio da ironia que é, segundo Hutcheon, um dos mecanismosretóricos, senão o principal, para despertar a consciência do leitor em relação ao seupapel ativo no processo de colaboração e de cooperação com o texto ficcional.

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Esse espelhamento, próprio de uma narrativa que se dobra sobre si mesma,enreda o leitor para a sua teia discursiva, ao colocar em xeque alguns valores daestética romântica, como, por exemplo, o conceito de gênio, de originalidade e deindividualidade, pois a paródia se propõe justamente como uma repetição, umareleitura, uma reescrita, mas com distanciamento crítico que marca a diferença, sejareferente ao estilo seja ao tratamento temático dado à obra literária.

A paródia é, portanto, um texto em palimpsesto, uma escrita sobre a rasura deoutra, enfim, um texto que retoma outro, mas dele se distancia e se diferencia,explicitando ao leitor um diálogo entre textos, pois “todo texto se constrói como ummosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto”,conforme assinala Julia Kristeva (1974, p. 64).

É com essa narrativa, que se vale da paródia como um dos recursos daautorreflexividade, que o leitor se depara ao ler o romance Braz, Quincas & Cia, deAntonio Fernando Borges. As relações de intertextualidade são explicitadas ao leitordesde o título da obra, em uma referência clara aos romances de Machado de Assis,entre eles, Memórias póstumas de Brás Cubas e Quincas Borba.

Desde o início de seu contato inicial com o livro de Antonio Fernando, o leitor élevado a interagir com a obra, pois percebe a referência a um de nossos grandesescritores em língua portuguesa: Machado de Assis, seja por meio do título da obra,seja na duplicação de personagens ou da própria narrativa, retomando técnicasconsideradas inovadoras à época da publicação dos romances machadianos. Trata-se,portanto, de um romance no qual o leitor estético percebe uma releitura ou umareescrita que se vale do recurso da paródia e da ironia.

Para Flávio Carneiro (2005, p. 98), Antonio Fernando Borges, em seu segundolivro, dá continuidade a uma “narrativa labiríntica”, engendrada a partir de uma escritainteligente, elegante e irônica, a exemplo de um Machado de Assis ou de um JorgeLuis Borges.

Assim como em Que fim levou Brodie?, no qual Antonio Fernando faz umareleitura da obra de Jorge Luis Borges, em Braz, Quincas & Cia ele dá continuidade aoseu projeto literário. Dessa vez, fazendo referência a Machado de Assis, convidando oleitor a interagir com o texto e a desvendar algumas de suas pistas, mesmo aquelasque descobrimos serem falsas.

Em Braz, Quincas & Cia o leitor encontra

aqui e ali, as marcas da obra do bruxo do Cosme Velho em frases, nomes depersonagens, cenários, episódios, na feitura dos capítulos (curtos) e na própriaforma de se contar a história. Por exemplo, o enredo nada linear lembra as idas evindas, os volteios na ordenação dos fatos que são marcas dos melhoresnarradores machadianos (CARNEIRO, 2005, p. 99).

Nessa narrativa metaficcional, Antonio Fernando utiliza como recurso paraexplorar os procedimentos da composição de seu romance, a paródia, por meio daqual o seu personagem-escritor estabelece um diálogo irônico com o leitor, que éconvidado a entrar em um jogo de espelhos.

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Vimos anteriormente, que a paródia, como um canto ao lado de, ou paralelo aoutro, contribui para inscrever a continuidade de uma tradição, embora com diferençae distanciamento crítico. Nesse sentido, Flávio Carneiro, consciente dessa releitura queAntonio Fernando faz da obra de Machado de Assis, afirma:

Em Machado, porém, a estratégia de desnortear o leitor é alcançada porque, emcontrapartida, o enredo em si é simples. A trama principal de Memórias póstumasde Brás Cubas, de Dom Casmurro e do Memorial do Aires, entre outros, não temnada de labiríntica, pelo contrário, são histórias banais, que ganham seu teor deoriginalidade pelas artimanhas dos narradores.Ao optar por outra saída, a de um enredo labiríntico narrado de forma labiríntica,Antonio Fernando Borges marcou uma posição de diferença em relação aohomenageado, o que é sem dúvida louvável, mas o resultado não foi dos melhores.O excesso de enigmas e de reviravoltas na trama, associado ao modo fragmentadode narrar, torna o texto confuso às vezes, e o que poderia soar como originalidadecorre o risco de parecer apenas performance cerebral, de pouco rendimento emtermos ficcionais.[...]O que sustenta todo o livro e que, a meu ver, se mostra como seu maior trunfo, é aforma encontrada por Antonio Fernando Borges para a defesa ferrenha do direito àindividualidade num mundo cada vez mais avesso à aceitação da diferença (2005,p. 99-100).

A diferença entre ambos os escritores se estabelece à medida que, em Braz,Quincas & Cia, o crítico verifica um enredo labiríntico. Se a originalidade de Machadode Assis se restringe, nesse caso, às artimanhas de um narrador que rompe com aobjetividade e as convenções esperadas pelos realistas, a narrativa de AntonioFernando dá continuidade à tradição da narrativa metaficcional, principalmente porapresentar ao seu leitor um personagem-escritor que, entre outros aspectos, dialogacom o leitor demandando dele certa cooperação.

Justamente por isso, não concordamos com o posicionamento de Carneiro,quando este afirma que o excesso de enigmas, as reviravoltas e a fragmentação danarrativa, com suas idas e vindas, não traz “rendimentos em termos ficcionais”. Pelocontrário, essa fragmentação da narrativa, fruto, por exemplo, das digressões dopersonagem-escritor sobre a elaboração e a composição de personagens, que sãoduplicados pela própria escrita, colaboram para a construção de uma narrativalabiríntica, em um abismo narrativo e ensaístico, que demanda do leitor muita atençãoe certa desconfiança em relação ao narrador, pois este joga com o leitor, inclusivedando-lhe pistas falsas que só posteriormente são reveladas a ele.

Acreditamos que a contribuição do romance de Antonio Fernando para o cenárioda narrativa brasileira contemporânea não se restringe simplesmente ao fato de oescritor fazer coro à defesa da individualidade em uma sociedade massificada como anossa. É extremamente válido esse posicionamento de Carneiro, ao lado dacontribuição maior do escritor que, a nosso ver, é o emprego de técnicas e deestratégias narrativas e discursivas que são empregadas em grau maior deprofundidade e talvez de complexidade na narrativa metaficcional, no contexto dacontemporaneidade, na esteira de Sérgio Sant’Anna, de Rubem Fonseca, de OsmanLins e de Chico Buarque, entre outros escritores.

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O romance Braz, Quincas & Cia está dividido em duas partes: “Biscoitos finos” e“O silêncio das massas”. Na primeira parte, temos a encenação de um jogo deespelhos, e na segunda, as suas regras são explicitadas com maior nitidez ao leitor.Em ambas, o personagem-escritor, que não sabemos ao certo se está morto ou vivo,narra em primeira pessoa alguns fatos e acontecimentos diversos que o levaramàquele estado que oscila entre a vida e a morte.

Logo no início da narrativa, o personagem-escritor, de “sessenta e oito anos,quatro ex-mulheres, oito livros” publicados, revela ao leitor o seu estado de quasemorte em um “quarto barato de hotel” (BORGES, 2002, p. 13). Nas primeiras páginasdo romance, o diálogo do personagem-escritor com o leitor nos remete ao narradormachadiano, sobretudo por ser um diálogo no qual ele informa ao “possível leitor” asua quase morte.

Por esse e por outros motivos, o personagem-escritor não sabe por ondecomeçar a sua narrativa, se pelo início, pelo meio ou pelo fim. Para ele, não se tratasomente de uma questão de estilo, mas de uma estratégia narrativa:

Na dúvida, e sem fugir à metáfora anatômica, preferi começar pelo próprio ventreda Besta, de onde brotou quase tudo, ou pelo menos a parte pior. Mesmo porque,pensando bem, há monstros, e histórias, sem pé nem cabeça. A minha, porexemplo: tentei morrer, sem conseguir – mas, de alguma forma, estou morto. Esobretudo cansado. (BORGES, 2002, p. 15).

O personagem-escritor não está morto, na verdade ainda está vivo, mascansado da vida, da massificação e dos valores da sociedade na qual está inserido. Éesse personagem-escritor que irá narrar ao leitor o percurso que o levou a um estadode quase morte, além de evidenciar algumas das referências a Machado de Assis,como ocorre na passagem que segue:

A imagem, convite ao conformismo, usurpa o direito à palavra, talvez para espantode tio Maria, que por sinal se deliciava com os biscoitos finos do Velho e, em seutempo, jamais deu a gravuras ou mesmo a telas clássicas a atenção reverente quehoje qualquer criança dispensa a um desenho animado. (BORGES, 2002, p. 16).

Há, nessa passagem, duas referências que merecem a atenção do leitor: uma aoVelho, e outra ao tio Maria. O personagem-escritor reverencia Machado de Assis aoficcionalizá-lo, criando um personagem, também escritor, cujo nome é Maria, deJoaquim Maria Machado de Assis. Outros indícios na narrativa revelam ao leitor essaaproximação entre tio Maria e o escritor Machado de Assis, sobretudo quando opersonagem-escritor se refere ao período histórico em que o seu falecido tio Mariaviveu, às suas obras e ao sucesso de crítica e de público, assim como algumas firulasda vida particular de Machado de Assis que são ficcionalizadas na narrativa dopersonagem-escritor.

Além disso, o segundo personagem citado, o Velho, seria irmão de seu tio Maria,portanto, seu tio-avô, que também se enveredou pela literatura, mas em decorrênciado sucesso de seu irmão não obteve reconhecimento da crítica, ficando, sempre, à suasombra, restando-lhe então se dedicar à confecção de biscoitos finos, que eramapreciados por todos, inclusive por seu irmão famoso.

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Entremeadas às histórias pessoais do personagem-escritor, há váriasrecorrências de reflexões sobre a arte e a literatura de um modo geral, o que nosremete à mimesis do processo (HUTCHEON, 1984), pois ao mesmo tempo em que oleitor lê a narrativa ele também adentra em suas engrenagens:

Deus o livre, leitor, do dever moral de crer no absurdo. Deus o poupe, desde já, deacreditar neste livro – que por enquanto é apenas um caderno sem pauta e semfuturo nas mãos de um homem morto, mas sobretudo cansado, que há poucoacordou cheio de espanto, neste quarto barato de hotel, preso à impossibilidade desair, ou de voltar a viver num mundo cada vez mais parecido com seus pesadelos.(BORGES, 2002, p. 16).

O nome do personagem-escritor é Antonio Borges, o que nos remete àqueladuplicação de nomes e à narrativa em abismo, pois temos um personagem-escritorcujo nome faz referência direta ao do autor empírico do livro, Antonio FernandoBorges1.

Trata-se, pois, de um espelhamento que expõe a própria tessitura do romance eos questionamentos estéticos referentes à sua elaboração, pois Antonio Borges é umsujeito inscrito na escritura que problematiza o processo de escrita da narrativa, queexpõe ao leitor a sua ficcionalidade e os seus elementos composicionais.

No caso de Antonio Borges, trata-se de uma narrativa que é, inicialmente,escrita em um caderno com folhas sem pauta, nas quais ele registra suas ideias quepodem vir a se transformar em um livro. Este livro, que Antonio Borges desejaescrever, na verdade não está pronto e acabado. São apenas algumas anotações erascunhos que podem servir como referência para a confecção final de seu livro.

A questão é que o livro que o leitor está lendo é justamente o caderno deanotações do personagem-escritor, o que nos remete à noção de mimesis do processo,pois se trata de uma narrativa em processo de construção e de elaboração, por meioda qual Antonio Borges explicita ao leitor a sua ficcionalidade, rompendo com umasuposta ilusão de realidade.

O personagem-escritor, ao resgatar os fatos e os acontecimentos que marcaramsua vida, volta a sua infância, e oferece ao leitor a imagem de um garoto doentio quevivia a assustadora “síndrome da igualdade progressiva” (BORGES, 2002, p. 17)durante as reuniões familiares, como, por exemplo, nos jantares, ou em outrosmomentos nos quais ele não se via como igual aos outros, incluído na coletividade,sempre se mantendo afastado, tentando preservar, desde a infância, a suaindividualidade.

Esse sentimento de individualidade se contrapõe aos valores massificados nasociedade contemporânea e principalmente à coletividade, em detrimento davalorização da individualidade, dos valores pessoais e particulares do sujeito, assimcomo de seus direitos e deveres.

No enredo da narrativa, Antonio Borges é um escritor que já escreveu e publicouoito livros, o que faz com que ele seja considerado um intelectual respeitado pelo

1 Para nos referirmos ao nome do personagem-escritor, utilizaremos a entrada Antonio Borges, epara fazer menção ao autor, Antonio Fernando ou Antonio Fernando Borges.

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público e pela crítica. Ele é casmurro, prefere o silêncio e os livros de sua biblioteca aomundo exterior a ela, pois parece acreditar mais nos livros do que na própria realidadena qual está inserido.

É na manhã de 21 de junho2, dedicada à leitura e aos seus estudos, que AntonioBorges recebe a visita de Dr. Faustino Xavier3, uma figura enigmática, que seapresenta como sendo um advogado, desconhecido por ele até esse exato momento. Éo início do jogo4 para Antonio Borges:

“Faustino Xavier, às suas ordens!”, foi como o estranho visitante se apresentoudesde logo, ao invadir o monastério de sossego e livros que construí para mim nobairro do F***, à custa dos modestos rendimentos de oito romances e exageradosanos de funcionalismo exemplar. (BORGES, 2002, p. 22).

Nessa passagem, assim como em outras, temos uma referência ao personagem-escritor como leitor assíduo, como aquele que, enclausurado em seu universo literário,se alimenta da palavra, da leitura, e faz de sua biblioteca um lugar quase sagrado,pois é ali que Antonio Borges mantém contato com a leitura de textos antigos, comoutros códigos culturais e sociais.

Em suas manhãs solitárias, ele se encontra com seus livros, seus mundos, seusvalores, mantendo-se, como sempre, afastado da coletividade e preservando, até ondeconsegue, a sua individualidade.

No entanto, a visita de Dr. Faustino Xavier não é gratuita, pois ele deseja queAntonio Borges avalie a originalidade e a autenticidade do livro Os perigos doindividualismo: um tratado, destinado “ao uso da mocidade”, de autoria de J. Deus &Silva. Segundo as informações de Faustino Xavier, trata-se de um livro que foipublicado no exterior em 1891 e, dependendo da avaliação de Antonio Borges, elegostaria de reeditá-lo, por isso a necessidade de se verificar a sua autenticidade, poisa edição

pertence a uma época em que as falsificações eram um vaidoso costume. Naquelesdias, saber falsificar um livro era uma espécie de arte que quase igualava o falsárioao autor do original. Eis o que pretendemos do senhor: que investigue para nós aschances de autenticidade deste livro. (BORGES, 2002, p. 26-27).

Faustino Xavier, por sua vez, propõe a Antonio Borges um pagamentoconsiderável pelo trabalho que o personagem-escritor terá em sua investigação acercado livro que tem em mãos, o que ele não sabia é que estava entrando em um jogo doqual não teria mais como sair, como veremos ao longo de nossa análise.

2 Referência ao nascimento de Joaquim Maria Machado de Assis em 21 de junho de 1839, naentão capital do Império, Rio de Janeiro.

3 Referência a Faustino Xavier de Novais – cunhado de Machado de Assis – que era responsávelpela publicação de O Futuro, periódico no qual Assis publicou alguns de seus contos e crônicasno início de sua carreira.

4 Trata-se, aqui, da primeira referência ao Jogo do Número, que será devidamente retomado nodecorrer de nossa análise.

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Antonio Borges, ao fazer uma investigação literária do livro de J. Deus & Silva,termina por fazer uma investigação dos próprios elementos constitutivos da narrativaque o leitor está lendo, além de colocar em xeque conceitos como o de autenticidade ede originalidade no processo de criação de uma obra literária:

Qualquer leitor habituado às boas páginas (melhores, em tudo, do que estas) jádeve ter percebido a fragilidade lógica da cena anterior – quem sabe até tolerávelnum romancista estreante, mas absurda e indefensável em alguém com meuprestígio, minha obra e, sobretudo, com tantas rugas e cabelos brancos. Jamaiscortejei leitores, mas de bom grado faria isso agora, interrompendo a narrativapara admitir que todas essas palavras não passam de má literatura, ensaio deromance de um velho, solitário e morto, em crise de afeto e de criatividade.(BORGES, 2002, p. 28).

Antonio Borges interrompe a sua narrativa, constantemente, com comentárioscríticos sobre o que acabara de escrever. Em seus diálogos com o leitor, opersonagem-escritor justifica ao leitor o que ele julga ser a fragilidade de sua obra.Trata-se, pois, de um julgamento de valor, por meio do qual Antonio Borges tentaconvencer o leitor de que o livro é, na verdade, um “ensaio de romance”. Não é umromance, mas o esboço para a criação, a elaboração, a composição de um romance.Afinal, um romance não seria escrito em um reles caderno com folhas sem pauta comoo que ele está escrevendo.

Como vimos anteriormente, na mimesis do processo o personagem-escritorexpõe ao leitor o procedimento de construção da narrativa, incluindo-se aí os seusdilemas em seu processo de criação, tais como a alegada crise de afeto e decriatividade, responsáveis pelas várias interrupções do fluxo narrativo pelopersonagem-escritor.

Entre essas idas e vindas, as referências a Machado de Assis vão se tornandomais explícitas no decorrer da narrativa, como ocorre na passagem abaixo:

Tio Maria adorava os biscoitos finos que o irmão caçula fazia chegar até ele naAcademia.Filhos da pobreza honrada e da ambição honesta, cada um era frustrado e triste aseu modo – de uma tristeza e uma frustração que, salvo engano ou exagero,nenhuma glória alcançada parecia capaz de apagar.Tio Maria sonhava com um Ministério que nunca lhe foi oferecido comoreconhecimento natural pela carreira pública exemplar. Sua indiferença à políticaparece ter sido a causa principal dessa injustiça jamais reparada: num ambientedividido entre liberais e monarquistas, republicanos e ingratos, sua fraquezaincorrupta não era um passaporte suficientemente confiável. Quando morreu, tinhao espírito adornado por todas as insígnias literárias de seu tempo, mas era como sepreferisse ostentar a ferida incurável de haver sido preterido (BORGES, 2002, p.30-31).

Na passagem acima, as referências a aspectos diversos da vida de Machado deAssis, como, por exemplo, a infância pobre, a origem humilde, a carreira comofuncionário público, e seu reconhecimento como escritor e como membro-fundador daAcademia Brasileira de Letras são nítidas, havendo, portanto, uma ficcionalização doreferido escritor que é representado no universo intradiegético da narrativa como o tio

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de Antonio Borges, também escritor. No entanto, este não chega a ser tão hábil naescrita de seu “ensaio de romance”, pois ainda não conseguiu, como seu antecessor,dominar plenamente os artifícios da linguagem literária em seu processo decomposição, uma vez que seu “machado” ainda não é tão afiado.

Nas passagens seguintes a essa, o personagem-escritor faz nova digressão parainformar ao leitor um detalhe que ele julga importante para que possamos,posteriormente, compreender melhor alguns dos acontecimentos nos quais ele seenvolveu.

Trata-se de um resgate de fatos e acontecimentos diversos que o levaram aconhecer Maria Inês em uma noite de lançamento e de autógrafos do escritor S*** emuma livraria. Maria Inês, como sua editora, estava, como ela mesma afirma,“condenada a ler todos os livros de S***!” (BORGES, 2002, p. 34, grifo do autor), aopasso que Antonio Borges só está ali por causa de seu editor que, praticamente, oobrigou a comparecer ao lançamento, mesmo não tendo afinidade com o outro escritorou com sua obra.

Em suas reflexões sobre o seu envolvimento um tanto conturbado com MariaInês, sua quarta mulher, ele também relembra as constantes traições dela comrapazes bem mais jovens e o seu envolvimento com Faustino Xavier, J. Deus & Silva etodos os outros acontecimentos que ainda estariam por vir.

Em uma de suas referências a Maria Inês, no lançamento do livro de S***,destacamos a passagem a seguir, na qual o personagem-escritor cede gentilmenteuma taça de vinho a uma senhora, por julgarmos que ela pode contribuir para asnossas reflexões referentes à narrativa metaficcional:

“O vinho que me ofereceu: por acaso o senhor já provou?”Àquela altura, já havia bebido duas taças – por que iria mentir? Mas a reação dadesconhecida superou o horror e o imprevisível?!”O diálogo que travamos eu não teria coragem de incluir em nenhum dos oito livroscom que, ao longo dos anos, procurei fazer frente aos caprichos da vocaçãonacional para o naturalismo. A cena a seguir é transcrição de algo real, emboramais terrível do que meus pesadelos.[...]“Prezada senhora”, ainda arrisquei, “imagino que cada indivíduo...”“Ora, o indivíduo!” – e seu tom era de escárnio evidente. “O indivíduo é uma ilusão”A culpa pela má qualidade deste vinho é de todos! Então, é sua também!” E atirouo restante do conteúdo do copo contra mim, enquanto se afastava (BORGES, 2002,p. 37-38, aspas e itálico do autor).

Na passagem citada, há dois aspectos que nos chamam a atenção. Primeiro, aafirmação de que o personagem-escritor se propõe a “transcrever algo real”, mas essarealidade é criada por Antonio Borges, uma vez que ela faz parte de seu ensaio deromance, o que podemos compreender como uma estratégia para tentar criar no leitoruma ilusão de realidade que é, em seguida, quebrada, ao fazer os seus comentáriossobre a elaboração de sua narrativa. Segundo, trata-se da questão referente aoindivíduo versus o coletivismo, que perpassa toda a narrativa.

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Nessa passagem, como o leitor irá descobrir mais tarde, a personagemfeminina, que aparece no lançamento e discute com Antonio Borges por causa da máqualidade do vinho, é parte do “Jogo do número” ou “Jogo do Grupo”, que AntonioBorges está jogando sem o saber.

As regras desse jogo, de modo geral, referem-se à tentativa de anulação detoda e qualquer individualidade em detrimento da coletividade, por isso ela afirmarque a culpa de o vinho servido ser ruim é de todos, portanto, também é dele.

Em outra digressão acerca dessa relação dual entre os valores da individualidadee da coletividade, representada pelo Jogo do número, Antonio Borges resgata ummomento específico em que estava na Confeitaria C*** para fazer um lanche eaproveitar a tranquilidade do ambiente.

Nesse exato instante, entra na Confeitaria um grupo de jovens alvoroçados,barulhentos e com roupas bem distintas das suas, de modo que ele se senteincomodado pelo grupo e solicita ao garçom que lhes peça para se comportaremadequadamente no local.

Em reposta, os jovens solicitam que ele se retire da Confeitaria, pois estão emmaior número e também se sentem incomodados com a presença dele, um homemvelho e fora de moda. O que parece, à primeira vista, uma brincadeira de mau gosto,não é, pois Antonio Borges é convidado a se retirar do local por não se enquadrar nosnovos valores da coletividade, por ser um homem de outro tempo, cujos princípiosindividuais são rechaçados por causa da coletividade e do bem-estar da maioria.

Como vemos, o romance de Antonio Fernando Borges é, de fato, uma narrativalabiríntica com um enredo igualmente labiríntico, com idas e vindas constantes, queexigem do leitor muita atenção para não se perder no fluxo da narrativa.

As digressões de Antonio Borges ocorrem em quase todos os capítulos, por issohá retomadas constantes de temas, assuntos ou acontecimentos que surgem em umaentrada, são deixados de lado posteriormente, e depois são novamente retomadospelo personagem-escritor.

Exemplar é o fato de Antonio Borges, ao retomar a sua investigação literária dolivro de J. Deus & Silva, resolver ligar para o telefone de dr. Faustino Xavier paraavisar a ele que aceita fazer a avaliação do livro e acabar descobrindo que o númerodo telefone dado a ele é, na verdade, de “um asilo popular para idosos carentes,localizado no bairro velho da G***” (BORGES, 2002, p. 47).

Primeira das várias descobertas de Antonio Borges, o tal dr. Faustino Xavier,advogado, é falso. A duplicação de personagens e, principalmente, de personagensfalsos, assim como as pistas falsas, vai sendo revelada ao leitor. Entre essas pistas,descobrimos que Antonio Borges é, em seu ensaio de romance, um ator que encena umgesto de criação literária, explicitando ao leitor o caráter teatral da linguagem literária:

A velhice é a melancolia do estilo, uma espécie de crepúsculo que desce sobre avontade de escrever. E para alguém – eu, um velho – que escreve sem tervontade, a Musa reserva o castigo impiedoso das metáforas pobres ou fora demoda: a “vida-como-um-teatro”... meu Deus! Nem nas páginas mais desertas esem inspiração, nesse ofício desigual de escrever, cometi o despudor de passarpara o papel tamanha pobreza de ideias. (BORGES, 2002, p. 53).

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O personagem-escritor procura, a todo instante, estabelecer um pactoromanesco com o leitor, que é devidamente avisado de que está diante de uma ficçãoque se quer como ficção e não como uma ilusão de realidade. O leitor é, então,convidado a entrar nesse jogo, cujas regras são ditadas por Antonio Borges.

Roland Barthes, em suas reflexões sobre o leitor e a leitura de textos ficcionais,ao se referir ao papel do leitor afirma que

Abrir o texto, fundar o sistema da sua leitura, não é, pois, apenas pedir e mostrarque é possível interpretá-lo livremente; é, sobretudo e muito mais radicalmente,forçar o reconhecimento de que não existe verdade objectiva ou subjectiva daleitura, mas apenas uma verdade lúdica; todavia o jogo não deve ser aquicompreendido como uma distração, mas como um trabalho – do qual todo esforçose tivesse evaporado; ler é fazer trabalhar o nosso corpo. (1987, p. 28).

Nesse sentido, o leitor estético deve estar atento às filigranas do texto, pois estedemanda dele uma interação constante com o texto. O jogo lúdico que se estabeleceentre o personagem-escritor e o leitor é, na verdade, uma das estratégiasmetaficcionais, que são utilizadas por Antonio Borges ao enredar o leitor para dentrode sua narrativa, forçando-lhe sua participação na engrenagem da própria narrativa.

Por isso os constantes diálogos do personagem-escritor com o leitor, por meiodos quais ele reflete sobre o seu processo de escrita, questionando-se sobre a validadee a qualidade estética de seu romance, como vemos na passagem que segue:

Quem sabe amanhã (quer dizer, algum dia) as frases que armazeno sem muitavontade neste caderno barato ganhem afinal forma definitiva de livro: lombada,orelhas, colofão, folha de rosto... Aprisionadas na letra de fôrma da páginaimpressa, elas já pouco terão da escrita trêmula e nervosa de um velho como eu,em desabafo post mortem. Já não despertarão a incredulidade ou o espanto –essas duas variantes do sucesso editorial. Hão de parecer, no máximo, máliteratura, jogo de salão ou (pior) o testamento vulgar de um escritor em quem acrítica nunca terá visto muitas qualidades.Mas, enquanto isso não acontece, restará sempre o consolo de sua companhia,leitor imponderável, aí do outro lado desta folha deserta (BORGES, 2002, p. 59).

O personagem-escritor estabelece um diálogo com certo leitor imponderável,pois não pode prever quem será e em que circunstâncias ele irá ler o seu ensaio deromance. Na verdade, o que nós, leitores, estamos lendo não é, segundo a afirmaçãode Antonio Borges, um romance, apenas esboços, anotações e reflexões dispersas emfolhas brancas.

Há, pois, referências ao processo de composição da obra, ao trabalho manual,artesanal do escritor com a palavra, que faz esboços e rascunhos para retomá-los naconfecção da composição de sua narrativa. Portanto, Antonio Borges justifica as suasdigressões ao leitor ao afirmar que não se trata, de fato, de um romance, mas de umprocesso de elaboração constante que exige dele, enquanto escritor, muita dedicaçãoà sua elaboração, sobretudo o que se refere às suas referências intertextuais a outrosautores, como Machado de Assis, que é novamente reverenciado por Antonio Borges:

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Não tive filhos, nem pretendo transmitir a nenhuma criatura – muito menos a você,leitor – a impressão de que compreendo as leis da herança e da continuidade daespécie. Escritor que sempre fui, entendo no máximo da geração de seres que, aseguir, já não se reproduzem por si mesmos. Mas, guardadas todas as limitações,sempre me comovi diante do espetáculo da vida se transformando e perpetuandona gravidez das mulheres, para além de seus caprichos e “desejos” voluntariosos.(BORGES, 2002, p. 63).

Em Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, lemos:

Este último capítulo é todo de negativas. Não alcancei a celebridade do emplasto,não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento. Verdade é que, ao ladodessas faltas, coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meurosto. [...]. Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará que nãohouve míngua nem sobra, e conseguintemente que saí quite com a vida. Eimaginará mal; porque, ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com umpequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: – Não tivefilhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa história. (ASSIS, 2001,p. 254).

Como vimos anteriormente, há na prosa de ficção contemporânea umatendência à reescrita ou à releitura de clássicos de nossa literatura. No caso daprodução literária de Antonio Fernando Borges, vimos que ele presta reverência a doisautores consagrados da América Latina: Jorge Luis Borges e Machado de Assis.

Na passagem acima, é perceptível a referência à obra machadiana, pois noromance Braz, Quincas & Cia, Antonio Fernando não apenas se vale de aspectos dabiografia de Joaquim Maria Machado de Assis para criar seus personagens e seuenredo, ele também se vale de referências intertextuais a algumas de suas obras,como é o caso de Memórias póstumas de Brás Cubas.

No fragmento de Antonio Borges, que acabamos de citar, o personagem-escritorchama a atenção do leitor para o fato de que ele não deixou filhos aos quais poderiatransmitir suas heranças, apesar de ter se casado quatro vezes. Desse modo, eleentende apenas da geração de seres que não se reproduzem sozinhos, ou seja,enquanto personagem-escritor, Antonio Borges entende de seres criados a partir dapalavra, são seres ficcionais, criados pelo escritor, que se reproduzem a partir daelaboração e da composição de novos personagens que entram na trama da narrativa,que está sendo tecida, escrita, por ele.

Portanto, os personagens são seres de papel, seres que realmente não têmcomo se reproduzir sozinhos. Aliás, o personagem-escritor é, também, um ser depapel, criado pelo autor Antonio Fernando Borges, como um duplo do escritor nouniverso intradiegético da narrativa, atuando ao mesmo tempo como autor e comoator no universo da narrativa.

Essa relação do escritor contemporâneo com a tradição que o precede éretomada em outra passagem:

Sei que a vida é feita de regras, ciclos, repetições. Por trás de toda paixãoinesperada, de todo grande gesto de heroísmo e até do mais inocente bom-dia,espreita uma série de padrões que conspiram contra a espontaneidade, aoriginalidade e o ineditismo. Por trás de meus oito livros, séculos de influências mecontemplam – e o mesmo diria dos biscoitos admiráveis do Velho, cujo grandesegredo era o de serem fiéis a uma receita antiga de família. (BORGES, 2002, p. 66).

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Nesse excerto, Antonio Borges reflete com muita lucidez sobre a relaçãoestabelecida entre o escritor contemporâneo com aqueles que o precederam, isto é,ele retoma a questão referente à relação do escritor com a tradição literária, sobretudono que se refere aos padrões estéticos que já foram empregados anteriormente poroutros escritores e que, na contemporaneidade, são retomados e levados adiante.

Como vimos anteriormente, a ruptura não implica apenas a fissura, mastambém a continuidade de uma tradição, o que leva o personagem-escritor a sequestionar sobre a espontaneidade, a liberdade no processo de criação e,principalmente, o conceito de originalidade e de ineditismo.

A despeito de certos escritores que acreditam no ineditismo e na originalidade, opersonagem-escritor reconhece a influência daqueles que o precederam, o que nosremete à influência da obra de Jorge Luis Borges e de Machado de Assis na produçãoficcional de Antonio Fernando Borges.

A originalidade questionada por Antonio Borges no interior da narrativa não éapenas sobre a sua própria narrativa, mas também do livro de J. Deus & Silva, umlivro que, à primeira vista, não suscita nele qualquer interesse. No entanto, o livropermanece, para ele, como um enigma, que ele precisa decifrar por meio de umainvestigação literária.

É essa investigação que o leva a descobrir, entre os seus papéis guardados emuma pasta de couro alemão, herdada de seu pai, recortes de jornais cujas manchetesnoticiavam a falência da fábrica de biscoitos finos de seu tio-avô, o Velho, em 1932,quando foi invadida e teve seu estoque de biscoitos totalmente destruído, levando oVelho a fechar a fábrica. O que nos chama a atenção é o fato de apenas um únicoobjeto ter sido roubado: um “envelope de papel grosso, que talvez contivesse algumatentativa literária do Velho” (BORGES, 2002, p. 71).

A dúvida instala-se no pensamento de Antonio Borges, e é a partir dela que elecontinuamente se propõe a investigar o seu próprio passado, pois as referências dosrecortes jornalísticos às Indústrias Assis e ao seu tio-avô já estavam registradas nolivro de J. Deus & Silva, publicado anteriormente, cerca de quatro décadas atrás.Portanto, a autenticidade e a originalidade do livro de J. Deus & Silva não é validadapor Antonio Borges. Essa descoberta o leva a um diálogo irônico com o leitor emrelação ao livro que está escrevendo:

Tudo é ritualístico e, de certo modo, parece uma velha peça que venha se repetindohá muito tempo – como velho e repetitivo é o desconforto, desprevenido leitor, comque você lê estas páginas, vagas e exageradas. A esta altura, você já deve sentirvontade de fechar este livro (se isto for mesmo um livro...) e abandoná-lo emalgum canto – quem sabe, atirá-lo ao lixo. Sinceramente, eu faria o mesmo, nãofosse minha a obrigação de terminar de escrevê-lo. (BORGES, 2002, p. 72).

Nessa passagem, o personagem-escritor evidencia ao leitor dois aspectosimportantes para a nossa reflexão sobre a narrativa metaficcional. Primeiro, a ironiadele em relação ao leitor e a sua leitura do romance. Segundo, a conscientização deque o leitor está diante de uma narrativa em processo de construção, uma narrativaque, de certo modo, é desprezada por ele, ao se referir a ela com o pronome “isto”.

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Na mimesis do processo, o leitor é justamente levado a ter consciência docaráter ficcional da narrativa. Nesse caso, o personagem-escritor, em seu diálogo como leitor, também problematiza, muito ironicamente, a leitura confortável desejada porele. O desconforto advém, a nosso ver, da ausência de linearidade do fluxo narrativo,e das diversas digressões que exigem do leitor muita atenção diante de umamultiplicidade de informações que vão surgindo na trama da narrativa.

É essa dispersão que demanda do leitor o papel de colaborar, unindo as pontasdos fios da narrativa, tecendo, junto com o personagem-escritor, a teia na qual se vêenredado.

Essa reflexão é recorrente em várias passagens de Braz, Quincas & Cia, comoocorre, por exemplo, no fragmento a seguir:

Que bom seria poder escrever um romance de mistério, desses que facilitam tudodesde o prólogo, de forma cômoda e igual, para autor e leitor. Aos dois – aqueleque escreve e quem lerá –, consola a ilusão de que a Literatura venha a ser, nomáximo, a descrição de um crime, além de um punhado de razões e circunstâncias.Tudo isso, é claro, temperado pelo empenho estilístico, nem sempre honesto, decamuflar a resposta até a última página.Confesso que nunca sonhei em produzir “tais livros” (como sempre os chamei, nãosem preconceito), nem nas horas de maior fracasso de vendas ou desesperoamoroso. Nem mesmo agora – quando sou pouco menos do que um morto. Comoeste, então, jamais será um desses livros baratos (se isto for, de fato, um livro),estamos os dois condenados, leitor: eu, a registrar à mão sobre o papel sem pautaos horrores que antecederam um final nada feliz; você, a perceber, afinal, que avida nem sempre é digna da grande arte. (BORGES, 2002, p. 78, grifo do autor).

Neste diálogo de Antonio Borges com o leitor, observamos o questionamentoirônico do gênero romance de mistério, que é visto e compreendido pelo personagem-escritor como uma narrativa menos elaborada esteticamente, resultado de umprocesso de composição no qual o escritor parte de fatos e de acontecimentos reaispara recriá-los no universo ficcional.

O autoquestionamento de Antonio Borges refere-se justamente a esse processode elaboração e de composição do enredo e da própria narrativa de mistérios, quesegue os moldes tradicionais de um romance do gênero.

Nesse caso, essa narrativa poderia oferecer ao leitor certo conforto em sualeitura, e ao escritor uma maior facilidade na sua elaboração, pois Antonio Borgesjulga que escrever uma narrativa de mistérios seria mais cômodo e confortável, por seadequar a técnicas e a estratégias de criação comuns a várias outras do gênero.

A questão que julgamos basilar é o autoquestionamento do personagem-escritorque coloca em xeque a oposição mimesis do produto versus mimesis do processo.

Por um lado, Antonio Borges se refere à narrativa de mistério como um romanceque tem a intenção de criar em seu leitor uma ilusão de realidade ou uma ilusãoreferencial, pois o escritor parte de elementos banais de seu cotidiano para criar a suanarrativa, de modo fidedigno.

Por outro lado, na mimesis do processo, o personagem-escritor expõe ao leitor aficcionalidade da narrativa, pois ele não quer iludi-lo com uma ilusão de realidade, oque é perceptível ao final da citação, quando Antonio Borges afirma que “a vida nemsempre é digna da grande arte”, portanto, a literatura é ficção, é criação, e nãomeramente uma reprodução da realidade empírica.

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No entanto, Antonio Borges chama a atenção para o fato de que ainda háleitores que preferem esse tipo de narrativa, uma “modalidade barata de história deação, por não [suportarem] a monotonia estrondosa da vida” (BORGES, 2002, p. 79).

Entremeada a essas digressões de Antonio Borges sobre a leitura, o leitor e aficcionalidade inerente ao romance, ele retoma o fio da narrativa que conduzia o leitora sua investigação da obra de J. Deus & Silva.

Como vimos anteriormente, ao ligar para o número que estava no cartão dofalso advogado Faustino Xavier, ele descobre que, na verdade, o telefone e o endereçosão de um asilo, localizado em um prédio velho, no bairro antigo da G***.

Decidido a desvendar os mistérios que rondam o livro que traz em suas mãos,ele vai pessoalmente ao asilo no intuito de averiguar se alguém conhece, ou temnotícias de Faustino Xavier.

Ao chegar ao local, Antonio Borges é recebido por um recepcionista que oconduz até o gabinete de dra. Virgília5 Nabuco, a diretora-substituta, com quem eleinicia um diálogo tentando explicar a ela o porquê de ele estar ali. Em uma tentativade obter respostas para várias de suas perguntas, Antonio Borges termina por revelara Virgília a história de sua família, desde o tio-avô, o Velho, e o tio Maria, até osurgimento repentino de Faustino Xavier em sua vida, levando-o a investigar as pistasque vão surgindo sobre sua família, principalmente em relação aos manuscritos de seutio-avô, a partir do momento em que recebeu o falso livro de J. Deus & Silva.

Durante sua conversa com Virgília, alguns enfermeiros a chamam com urgênciadizendo a ela que o velho Xaxa estava novamente em crise. Ao seguir Virgília até osaposentos de Xaxa, Antonio Borges se depara com um homem velho, magro e triste,correndo de um lado para outro com um ar de possuído.

Nesse exato momento, Antonio Borges pressente que aquele velho é a chavepara os mistérios que tenta desvendar. Além disso, ele tem plena consciência de que éum mero ator no palco de um espetáculo que precisa continuar sendo encenado.Nesse teatro da vida, o roteiro é sinistro, repleto de mistérios e de coadjuvantes,restando a ele, o protagonista, a investigação de seus (falsos) mistérios.

Essa consciência de Antonio Borges de que é apenas uma marionete no teatroda vida é retomada em outros momentos por ele, de modo que esseautoquestionamento dos limites entre vida e ficção, realidade e imaginação sãoconstantemente colocados em xeque, como ocorre na citação a seguir, na qual opersonagem-escritor questiona esses limites:

Que bom seria se tudo fosse apenas uma tentativa de escrever um novo livro – onono – para quebrar meu desastroso jejum. Eu teria a meu alcance todas aschances de alterar o curso do enredo, quando o sentisse claudicar, ou se aproximarperigosamente do inverossímil. Neste ponto, por exemplo: eu poderia interrompero episódio do asilo e colocar o narrador em sua cama – transtornado, masdespertando a salvo de um pesadelo vagamente real. Mas o fato é que o mundo ésuficientemente concreto e a vida realista demais para permitir essas manobrasestilísticas. (BORGES, 2002, p. 105).

5 Referência à personagem Virgília de Memórias Póstumas de Brás Cubas, uma das mulheres comquem o protagonista se relaciona afetiva e sexualmente.

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São reflexões que interrompem o fluxo narrativo para problematizar no interiorda própria narrativa a relação entre realidade versus imaginação, evidenciando aoleitor o caráter ficcional da narrativa, a sua verossimilhança, e a impossibilidade de opersonagem-escritor registrar ou representar na literatura uma dada realidade talcomo ela se apresenta, criando uma ilusão de realidade.

Trata-se, pois, de uma ruptura com essa ilusão de realidade, por meio da qualAntonio Borges expõe a imaginação, a ficcionalidade e a invenção, que estão nasbases da construção da narrativa, ao leitor. A narrativa, nesse sentido, écompreendida por Antonio Borges como um palco de teatro, no qual todos ospersonagens são conscientes de seus papéis no cenário da narrativa, como o leitor irádescobrindo pelas várias pistas deixadas ao longo das anotações de Antonio Borgesem seu caderno com folhas sem pauta.

Trata-se de uma narrativa labiríntica que, em suas idas e vindas, provocadaspor um enredo igualmente labiríntico, envolve o leitor em sua encenação, de modoque, ao exercer um papel ativo no percurso de sua leitura, cooperando e colaborandocom o texto, ele também passa a ser parte constitutiva desse espetáculo que estásendo encenado, dessa narrativa que está em processo de construção.

A rigor, as peças do jogo são explicitadas ao leitor, inclusive as referências aMachado de Assis se tornam mais frequentes, como vemos no fragmento a seguir:

Dizem que tio Maria fez algum sucesso em seu tempo apostando em romances econtos a respeito da loucura e seus adeptos. Seus personagens preferidos variavamentre um psiquiatra com sobrenome de arma de fogo que encarcerava toda umacidade, um doido que doava sua fortuna a um amigo e seu nome a um cachorro, eum advogado casmurro e “louco de ciúme” – repetição em que alguns viam apenaso equivalente literário de sua preocupação com o temperamento esquivo e anti-social do irmão caçula: meu avô, o Velho.Li alguns desses livros, em bravas edições que resistiram ao tempo e ao cordão desilêncio e esquecimento com que tentam anular tio Maria, seu senso crítico e suaironia fina. [...]. Como me ajudariam agora, com sua lucidez e seu estilo, adescrever a insanidade que me coube enfrentar, e que se apossou dos últimos diasde minha vida! (BORGES, 2002, p. 94-95).

As referências às obras machadianas são dadas ao leitor por meio de sugestõesou pistas, tais como a menção à temática da loucura, recorrente na narrativa de Assis,assim como a referência aos personagens Simão Bacamarte, protagonista de “Oalienista”, e Quincas Borba e Bentinho, protagonistas, respectivamente, de QuincasBorba e Dom Casmurro.

O tributo a Machado de Assis é constante nessa narrativa de Antonio FernandoBorges, por meio da qual o seu personagem-escritor, leitor assíduo da obramachadiana, revela a sua admiração e respeito pela obra daquele que é consideradopela crítica literária um de nossos melhores escritores do século XIX.

Antonio Borges se vale praticamente dos mesmos recursos machadianos, aironia e a crítica, em seu diálogo ferino com o leitor, lembrando-o, a todo instante, daatenção que deve dar aos mistérios do romance e às suas pistas, inclusive aquelas quedescobrimos serem falsas.

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Após essas digressões, Antonio Borges volta novamente ao momento em queestava observando o velho Xaxa, correndo de um lado para outro, quando égentilmente acompanhado por Virgília, que o escolta até a saída do prédio. Este fato oleva a desconfiar de que é realmente ali que ele irá descobrir os segredos de seusmistérios.

Ao sair do prédio, o personagem-escritor ouve uma gargalhada que soa muitofamiliar, é a risada do velho Xaxa. Ao apurar os sentidos, Antonio Borges percebe queela vem de um quarto cuja janela dá para a rua, e ele simplesmente resolve pular omuro para se encontrar com Xaxa.

O diálogo de Antonio Borges com Xaxa é esclarecedor tanto para Antonio Borgesquanto para o leitor que acompanha as peripécias do personagem-escritor em suaperegrinação em busca de respostas para uma melhor compreensão de si mesmo, desua família e da própria narrativa que está escrevendo, afinal, trata-se de umainvestigação literária.

Nesse diálogo, Antonio Borges acaba descobrindo que Xaxa é, na verdade,Faustino Xavier que, em sua juventude, conheceu e conviveu com seu tio-avô, oVelho, que fabricava excelentes biscoitos amanteigados, mas não era tão bomadministrador quanto confeiteiro.

Embora os biscoitos fizessem muito sucesso, o Velho não sabia comoadministrar a sua empresa e, após ela ter sido arrombada, e seus estoques debiscoitos finos serem totalmente destruídos, o Velho foi à falência e poucos mesesdepois morreu, deixando ao amigo um envelope com um manuscrito que parecia umlivro ou as regras de um jogo que poderiam abalar os alicerces de uma sociedade.

Questionado por Antonio Borges sobre o paradeiro do manuscrito, Xaxa indica aele uma das gavetas de uma cômoda, onde o personagem-escritor encontra apenasum envelope vazio, de papel pardo, grosso e gasto pelo tempo, no qual estava escrito

em caligrafia mais que perfeita, o que pareciam ser o nome e a autoria de um livro:

BRAZ, QUINCAS & CIA.

Abaixo do estranho título, vinha o nome inconfundível do Velho – ou, pelo menos,aquele com que sonhou se fazer notar no terreno em que o irmão maior – tio Maria– havia brilhado. (BORGES, 2002, p. 102).

Eis o romance no romance, uma narrativa labiríntica e espelhada, ao mesmotempo, na qual há a duplicação da própria narrativa, Braz, Quincas & Cia, escrita peloVelho, e Braz, Quincas & Cia, de Antonio Fernando.

Uma narrativa metaficcional que se autoquestiona, que põe em xeque, porexemplo, a questão da autoria, pois o nome e a assinatura do Velho estavam lá,indicando a autoria. Mas apenas a assinatura e o nome seriam suficientes para indicara autoria e a originalidade de uma obra? Estes são alguns dos autoquestionamentos deAntonio Borges em sua investigação literária.

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São esses mistérios que Antonio Borges tenta decifrar e compreender ao voltarpara sua casa, pois Xaxa, após lhe contar parte de sua história, se cala, deixando derevelar qualquer pista ao personagem-escritor que, durante dias, vê-se diante demistérios que ainda não consegue compreender.

Aliás, é em sua casa que ele irá receber, sem saber o motivo, um jornal diárioque tem como manchete a morte de um velho, não identificado, nas proximidades doasilo onde Xaxa estava internado.

A foto do corpo do cadáver comprova o que Antonio Borges já havia deduzido,Xaxa estava morto, outro mistério para ele, que se vê como um personagem de umromance de mistérios, um ator no palco da vida, encenando, atuando, conforme asregras de um jogo que ainda desconhece.

Antonio Borges, em seu desespero, percebe que as folhas do caderno no qualestá escrevendo estão acabando e talvez não dê tempo de terminar as suas anotaçõese revelar ao leitor as suas descobertas, principalmente aquelas que se referem àsregras do Jogo do Número, que serão reveladas ao personagem-escritor porConceição6, a tia de Virgília, uma senhora distinta e bonita, que comparece no lugar dasobrinha ao encontro marcado por ela com Antonio Borges na Cafeteria V***

Conceição está desesperada devido ao sumiço de Virgília que, desde que seenvolveu com os integrantes do Grupo, que faziam parte do Jogo do Número, mudouradicalmente seu comportamento e suas atitudes. Conceição revela a Antonio Borges,entre outras coisas, o fato de o asilo, assim como o cargo de Virgília como diretora-substituta serem partes de um jogo sinistro, denominado por “Jogo do Número, Jogodo Grupo ou Razão das Maiorias” (BORGES, 2002, p. 125).

Um jogo criado há muitos anos com o objetivo de eliminar a individualidade emprol da coletividade, e àqueles jogadores que perdessem ou não quisessem se igualarà maioria, restaria apenas o

suicídio originário. Parecem que se recolhem a um canto isolado de todos e ingeremalgum tipo de veneno, repetindo a atitude do Patrono-Fundador – um escritorfrustrado do início do século, que se matou sozinho num quarto de hotel. (BORGES,2002, p. 126).

Após sair da Cafeteria V***, Antonio Borges tem plena certeza de que eletambém é uma peça nesse Jogo do Número ou Jogo do Grupo. Essa suspeita seráconfirmada por ele no Departamento da P*** F***, localizada na Praça M*** – M demorte, de mistérios – onde Antonio Borges se encontra, com o objetivo de adquirir ovisto para participar de um Congresso de escritores em Madri. Na fila, a sua frente,estavam dois jovens que

Falavam de jogos, da tentativa lúcida de aprimorar o mundo...e de Braz e Quincas,como posições estratégicas no “Jogo da Companhia”. (“O Velho!”, sempre ele.)Posso lhe garantir, leitor: comentavam nada menos do que os fracassos recentesna “última rodada do Jogo” e – com requintes de sarcasmo – ironizavam a falta deempenho da “jovem coroa”. (“Virgília...?”). (BORGES, 2002, p. 132-133).

6 Conceição é a personagem do conto “Missa do Galo”, de Machado de Assis. Uma mulherbalzaquiana, de seus trinta anos, que desperta no jovem Nogueira, então com dezessete anos,certo desejo, que surge do diálogo entre os dois antes de ele ir à Missa do Galo, às vésperas doNatal.

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É nesse momento da narrativa, praticamente nas últimas folhas de seu caderno,que Antonio Borges vai tendo conhecimento das regras do jogo do Velho, seu tio-avô.Inclusive ele ouve os dois jovens comentarem a forma utilizada para cometer osuicídio por aqueles que não conseguiram aderir à Companhia, isto é, abrir mão daindividualidade em detrimento dos valores da coletividade, do Grupo. Aos fracos eperdedores era reservado apenas o “amido”, que eles deveriam digerir em localafastado, sozinhos, e aguardarem a morte.

Antonio Borges foi atendido no mesmo balcão que os dois jovens “jogadores”,que deixaram propositadamente um envelope grosso e pardo sobre o balcão, o quelevou Antonio Borges a pegá-lo para si imediatamente, pois estava certo de que ali,naquele envelope, encontraria as demais respostas para os seus mistérios.

O que ele não sabia ainda é que ele já estava morto, pois ao consultar osregistros, inúmeras vezes, a recepcionista afirma a ele que, pelos dados do sistema dogoverno, ele já está morto há duas semanas, ou seja, Antonio Borges é consideradopelos jogadores do Grupo um perdedor, restando-lhe apenas a morte como únicasaída.

Em sua casa, ele abre o envelope e encontra “um saquinho plástico cheio de póbranco: sem dúvida, era o tal amido. E um calhamaço de folhas manuscritas que nem[precisou] examinar muito para [se] certificar: sem dúvida, era o Jogo do Velho!”(BORGES, 2002, p. 137, grifo do autor).

Em uma “leitura ansiosa e superficial” Antonio Borges constata que, de fato,encontrou as respostas para seus mistérios. Ao ler o texto que julga ter sido escritopor seu antepassado, o tio-avô, ele se dá conta das regras, dos objetivos e da filosofiado Jogo do Grupo ou Jogo do Número, “um extravagante jogo, que o Velho sonhavaver em prática nos salões da nascente República” (BORGES, 2002, p. 138), que viviamais de aparências e de valores superficiais e individuais, excluindo todos aqueles quenão se encaixassem nos seus padrões. Por isso, o Velho, sempre à sombra do prestígioe da fama do irmão, resolveu criar um jogo assustador e devastador, ao mesmotempo:

no início da partida, cada participante recebe um “papel básico” que deveráencarnar. Mas, ao contrário das brincadeiras comuns, não se trata de nenhumadisputa: o inesperado objetivo é fazer com que os participantes anulem suasdiferenças até formarem, todos, um único personagem, violentamente coletivo,indistinto – a Companhia. (BORGES, 2002, p. 138).

Nessa passagem, já ao final da primeira parte do romance, o leitor, assim comoo personagem-escritor, tem consciência das regras do jogo e da encenação que cadaum deve interpretar no cenário da trama. É essa encenação, ou melhor, dramatização,que percebemos no decorrer de todo o romance, pois Antonio Borges atua como umdos atores e também como um ator, pois é ele quem escreve essa peça que nós,leitores, estamos lendo.

Uma peça escrita em um caderno com folhas sem pauta, na qual ele estabeleceum diálogo com o leitor, marcado pela ironia, em uma tentativa de compreendermelhor os fatos e acontecimentos de sua vida. Uma história que, segundo Antonio

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Borges, não era plausível, apenas a sua “história real”, mas esta realidade também écriada por ele e a partir de sua ótica, portanto, é passível de questionamento e dedesconfiança por parte do leitor.

Ao personagem-escritor, Antonio Borges, resta apenas o suicídio, uma vez queele é considerado um perdedor, justamente porque valoriza mais a sua individualidadedo que os valores coletivos. Para tanto, ele se hospeda em um quarto barato de umdos vários hotéis da L***, levando consigo apenas o envelope com o texto que julgarealmente ser de seu tio-avô, o Velho, e o saquinho com o amido.

No apartamento, ele segue todas as indicações das regras do jogo, que preveemque o perdedor deve, por conta própria, cometer o seu suicídio, consciente de que nãohá lugar para ele e para o individualismo na sociedade. Certo de sua derrota e de suamorte anunciada, Antonio Borges deita-se na cama, come do amido e espera pelamorte.

Felizmente, ele não morre. Pelo contrário, começa a escrita de um novo cadernoque lhe foi imposto, pelo falso dr. Faustino Xavier, na segunda parte do romance,intitulada “O silêncio das massas”. Essa parte é composta por apenas quatorzecapítulos, curtos, irônicos, rápidos, nos quais o personagem-escritor dá continuidadeàs suas descobertas sobre as regras e os objetivos do jogo e, principalmente, vai ficarsabendo do falso dr. Faustino Xavier o porquê de sua inserção no Jogo do Grupo.

Como vimos anteriormente, o Velho criou o Jogo do Grupo para se vingar de boaparte da sociedade, cujos valores eram considerados por ele como falsos, irrisórios,superficiais e pautados na individualidade, talvez por isso mesmo ele tenha criado umjogo que se encaminha para o igualitarismo progressivo ao propor um choque deigualdade:

Com a pena da melancolia e a tinta da galhofa, assim escreveu naquele tempo oVelho – meu avô – no Prefácio a Braz, Quincas & Cia. – a falsa ficção, o Jogomaldito. Era isso, ao menos, o que eu supunha, quando o li sem acreditar, naquele(neste) quarto barato, antes de tomar a dose letal que me cabia – e foi o que denovo supus, quando tornei a ler, sem acreditar no que lia e, sobretudo, semcompreender sequer por que ainda estava vivo. (BORGES, 2002, p. 143, grifo doautor).

Como afirmamos em momentos anteriores, o romance de Antonio Fernandopode ser compreendido como uma narrativa espelhada em um abismo narrativo eensaístico, que se dobra sobre si mesma, expondo ao leitor as suas engrenagens, oseu funcionamento, enfim, a sua ficcionalidade.

Na passagem citada, esse espelhamento, que reflete a própria narrativa em seuprocesso de construção, é evidenciado conscientemente ao leitor, na medida em queAntonio Borges afirma que o livro Braz, Quincas & Cia é uma falsa ficção.

Não é apenas o texto escrito pelo tio-avô de Antonio Borges que é falso, eletambém afirma que se vê, nesse momento, obrigado a escrever um novo caderno paradesmentir o que foi escrito no anterior: “ele me foi imposto, como uma revelação,condenando-me agora a escrever, mais que um novo caderno, um livro diferente, comuma nova numeração, para desmentir o anterior” (BORGES, 2002, p. 145, grifo doautor).

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Antonio Borges, sujeito inscrito na escritura, mantém seus diálogos com o leitor,revelando a ele o caráter fictício da narrativa que acabou de ler. Portanto, o leitor éforçado, de todos os lados, a reconhecer o caráter artificial da linguagem literária, nãodevendo, em sua leitura, estabelecer relações entre o texto e a realidade, pois sendoficção, há uma ruptura com aquela ilusão de realidade dos romances realistas.

O choque de Antonio Borges ao se conscientizar das regras e dos objetivos doJogo do Grupo ou do Jogo do Número são visíveis, pois se trata de um jogo que, aopropor um igualitarismo progressivo, também propõe a própria aniquilação do sujeito.

O jogo de salão, enquanto uma estratégia para criar uma sociedade igualitária,nega ao homem a sua individualidade, a sua experiência particularizada, enfim, osseus valores pessoais nos quais acredita. Valores que devem ser anulados em prol deuma coletividade. O jogo deve ser jogado com três ou mais integrantes, cada umrepresentando uma “Equipe individualista” que, no decorrer do jogo, deve fazer comque os outros jogadores se integrem ao “Coletivo Final”. Para tanto, o jogo seestrutura nas seguintes etapas:

Na etapa inicial, ou Estática, os jogadores se estudam uns aos outros, em silêncio,buscando descobrir os “pontos igualitários e coletivizantes” para o “imediatocontato”; a fase seguinte, Expansiva, obriga os participantes ao “ataque benéfico”,anódina expressão que significa apenas um punhado de gestos humildes e gentisde “imitação e submissão”, para que as “distinções somáticas e psíquicas se vãotornando progressivamente indistintas”; finalmente na fase três, ou Contrastiva,ocorre a “absorção planejada” de todas as equipes “estático-individuais” numaCompanhia única – o “coletivo do Um”, a “Cia”, do título. (BORGES, 2002, p. 152,grifos do autor).

São exatamente essas as três etapas pelas quais passou Antonio Borges, nodecorrer da narrativa, ou melhor, no outro livro escrito por ele no caderno anterior, aprimeira parte da narrativa. A questão é que ele não se deixou assimilar pelo coletivo,isto é, não passou da individualidade à coletividade progressiva e, por isso, foicondenado ao suicídio, como perdedor.

Um aspecto importante observado por Antonio Borges refere-se ao fato de oVelho, ao elaborar o seu Jogo, optar por retirar dos livros de seu irmão, Maria, osnomes de seus personagens e do próprio título do livro, como uma forma de vingança.Além disso,

havia um benefício adicional: disfarçado em texto literário, quem sabe o brinquedoviesse a circular para além da roda dos frívolos, como matéria de leitura e reflexão.Sem dúvida, era um daqueles males que vêm para bem – de quem o pratica...(BORGES, 2002, p. 154).

Braz, Quincas & Cia é, portanto, um jogo disfarçado de texto literário. Naverdade, é o jogo como estratégia narrativa e discursiva, pois o que o leitor percebena leitura desse romance que se duplica, dessa narrativa espelhada, é a configuraçãode um jogo estético com o leitor, pois o personagem-escritor joga com o leitor,seduzindo-o e explicitando a ele algumas de suas regras ou de seus elementoscomposicionais.

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O personagem-escritor, Antonio Borges, afirma em vários momentos que nãoquer iludir o seu leitor, deixando-o consciente de que ele não estaria diante de umromance, mas de meras anotações esparsas feitas por ele em um caderno com folhassem pauta.

Inclusive o personagem-escritor, em seus constantes diálogos com o leitor,demanda dele a sua cooperação e colaboração na tessitura dessa narrativa labiríntica,exigindo do leitor um posicionamento ativo para unir as pontas de um enredoigualmente labiríntico.

Ao final da segunda parte da narrativa, a pergunta do leitor é a mesma deAntonio Borges: se ele estava jogando, mesmo sem saber, o Jogo do Grupo, por queele não morreu depois de comer o amido?

É o falso dr. Faustino Xavier, que o aguarda do outro lado da rua do hotel ondeAntonio Borges está, que irá explicar tudo o que aconteceu a ele desde o momento emque Xavier e outros integrantes do Grupo descobriram que ele era o únicodescendente direto do Velho.

Ao caminharem juntos pela Rua do O***, outrora famosa na época em que seutio Maria reinava entre os escritores de outrora, sendo aplaudido em todas as livrariasda moda naquele momento, ele constata que até mesmo a Leiteria S***, que aindapreservava um ar mais tradicional, está passando por um processo de modernizaçãopara se adequar ao gosto do público atual, isto é, à coletividade, pois o ambienteavaliado como tradicional por Antonio Borges, um dos poucos individualistas de seutempo, é considerado ultrapassado pela coletividade.

O falso dr. Faustino Xavier, no diálogo com Antonio Borges, inicia a sua conversaretomando as ideias do Velho e o fato de ele ter sido menosprezado em detrimento dosucesso de seu irmão, Maria, fato, entre outros, que o levou a planejar e a elaborar oJogo do Grupo ou o Jogo do Número.

Além disso, Xavier revela a Antonio Borges que tudo não passou de um jogo, deuma encenação, inclusive o livro de J. Deus & Silva é falso, feito especialmente emencadernação diferenciada e luxuosa para atrair a atenção de Antonio Borges, umbibliófilo.

Nesse sentido, o personagem-escritor tem plena consciência de que participavado jogo como um ator e de que tudo não passou de mera ficção:

“Sabemos o que está pensando. O manuscrito de seu avô – como foi que oencontramos? Esqueça! O texto que o induzimos a roubar também é falso – tantoquanto o são Virgília, sua tia-madrinha, o velho Xaxa, a assinatura de seu avô, oasilo na G*** e todo o resto. Sabíamos de seu fraco por mistérios insolúveis emulheres bonitas. Na verdade, o manuscrito verdadeiro nunca foi encontrado. [...].Mesmo sem encontrar, encontramos afinal: o Jogo do Um, o Coletivo Universal comque sempre sonhamos.” (BORGES, 2002, p. 164).

Ficções, encenações, representações. O teatro na vida, a vida no teatro. Oslimites entre realidade e ficção revelam ao leitor o jogo ficcional da narrativa. O enredolabiríntico forjado pelo escritor revela as fissuras, as brechas, pelas quais o leitor vaipenetrando nas entrelinhas do enredo e do texto como um todo.

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Ao se deparar com a ficcionalidade que é espelhada conscientemente nanarrativa, pelo personagem-escritor Antonio Borges, o leitor se vê diante de um textoliterário que não esconde dele a sua ficcionalidade, pelo contrário, ao expô-la ao leitor,Antonio Borges leva-o a romper com uma ilusão de realidade, inclusive ao questioná-loe ao chamar a sua atenção para as (falsas) pistas, que podem levá-lo a decifrar anarrativa.

Diante de tantas descobertas, ocorre ao personagem-escritor que o leitortambém pode ser uma ficção. Para Antonio Borges, o leitor talvez não exista, por seencontrar em uma época em que não há mais espaço para o hábito solitário eindividual da leitura.

No entanto, ele ainda acredita nos livros, na leitura, nos valores individuais e,principalmente, na existência do leitor, mesmo que este se restrinja a um númeromuito reduzido. Por isso mesmo, Antonio Borges dedica os cadernos que estáescrevendo aos seus leitores:

Dedico a você estes cadernos, leitor possível – a quem, agora ou depois, caberá meacompanhar nesse esforço de perguntar: por quê? Quem sabe eles possam virainda a ser úteis – ou venham, ao menos, a se tornar um livro, que a maioria lerácomo obra de pura ficção literária. (BORGES, 2002, p. 167).

São cadernos que estão em processo de escrita, livros que estão sendoesboçados, rascunhados pelo personagem-escritor. Antonio Borges está escrevendo e,ao mesmo tempo, ele revela ao leitor o seu processo de escrita e de elaboração deseus livros, de suas narrativas ficcionais, conscientizando o leitor do seu caráterficcional.

Trata-se de uma ficção que é elaborada a partir de suas experiências comojogador do Jogo do Grupo:

“Engana-se, meu caro. Tudo está apenas começando, e nossas esperanças sãomuitas. Temos muito interesse, por exemplo, no livro que o senhor certamente háde escrever com tudo isso – se é que já não começou... Que não seja por falta depapel...”Mostrou então com a mão direita um grosso caderno de capa marrom, queempurrou por sobre a toalha, na minha direção, num gesto cheio de certezas –como se já soubesse, desde sempre, que nele eu iria escrever a parte mais sinistrade toda esta história.Não sei por quanto tempo mantive os olhos presos naquele objeto medonho – estecaderno... (BORGES, 2002, p. 169, grifos do autor).

A afirmação do falso Faustino Xavier remete o leitor ao conceito de mimesis doprocesso, pois, nessa passagem, novamente há uma explicitação do processo deconstrução da narrativa. Nesse sentido, o autoquestionamento e o interesse de Xaviere dos outros integrantes do Jogo do Grupo se refere ao fato de Antonio Borges poderescrever um livro no qual relate as suas experiências com esse jogo.

A questão que nos interessa aqui é justamente essa tensão entre a realidadeversus a imaginação, a criação, uma vez que, para Xavier, a literatura é compreendida

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como uma forma de registrar o mais fielmente possível os fatos e os acontecimentosvivenciados por Antonio Borges, e a literatura, para o personagem-escritor, é oresultado de uma elaboração estética que pode até se valer de um dado elemento darealidade, mas para transfigurá-lo no universo ficcional.

Além disso, Antonio Borges se refere a “este” caderno como sendo o livro que jáse encontra escrito, que foi elaborado à medida que ele ia vivenciando o jogo, mas oleitor deve prestar muita atenção, pois esse caderno, com um enredo e uma estruturalabiríntica, é o livro que estamos lendo.

Portanto, Braz, Quincas & Cia é uma ficção, de modo que o leitor não deveacreditar que está diante de fatos que remetem a uma realidade empírica, mesmoporque o próprio personagem-escritor se vê como um mero ator:

pareço, no máximo, um ator (a “marionete sem cordões” do velho Cosme)interpretando ainda o exótico papel de alguém que termina de escrever este livro.Uma história feita de idéias e palavras alheias, e em que já quase ninguémacreditará, ocupados que estão em jogar, sem perceber, o Braz, Quincas & Cia.Sou este ator, que remédio?, sem chances de aplausos ou de vaias – apegadoapenas à improvável esperança de que algo ainda possa mudar, antes dofim... (BORGES, 2002, p. 171, grifo do autor).

Ao final da narrativa, Antonio Borges faz duas reflexões que contribuem paranossas discussões acerca da narrativa metaficcional: primeiro, o caráter fictício danarrativa que é explicitado ao leitor; segundo, o autoquestionamento consciente dopersonagem-escritor em seu processo de elaboração e de composição da narrativa.

Ambos convergem para o aspecto metaficcional dessa narrativa espelhada, poisAntonio Borges se refere a Braz, Quincas & Cia, como sendo o jogo de seu avô, oVelho, mas o romance que estamos lendo também tem o mesmo nome.

No romance de Antonio Fernando, o emprego da paródia como recurso deautorreflexividade é visível para o leitor, que percebe as referências, por meio decitações ou de alusões, às obras de Machado de Assis, dando continuidade a umatradição da narrativa metaficcional, ao retomar, potencializar e levar adiante algumastécnicas e estratégias machadianas, evidenciadas por nós ao longo de nossa análise.

Portanto, temos uma narrativa metaficcional, que se autoquestiona, expondo aoleitor a sua ficcionalidade e a dissolução das fronteiras entre os gêneros literários e osnão literários.

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Title: Rereading, parody and intertextuality in Braz, Quincas & Cia. (2002) by AntonioFernando Borges

Abstract: In this essay, we aim to analyze the procedures and narrative strategiesused by Antonio Fernando Borges in Braz, Quincas & Cia. (2002) in their rereading ofthe work of Machado de Assis, through intertextuality, especially through parody as astrategy for aesthetic self-questioning, and their implications for both the constructionof the narrative as to their reception by the reader.

Keywords: Brazilian contemporary narrative. Metafiction. Character-writer.Intertextuality. Parody.

Recebido em: 14/12/2012. Aceito em 17/06/2013.

Crítica Cultural (Critic), Palhoça, SC, v. 8, n. 1, p. 66-82, jan./jun. 2013

A alegria em Tutameia: terceiras estóriasde Guimarães Rosa

Giselle Bueno∗

Resumo: Este artigo tem como objeto a alegria em Tutameia: terceiras estórias. É asimpatia de João Guimarães Rosa por ela que também está em causa nas reflexõestão fundamentais sobre o humor do primeiro prefácio, “Aletria e hermenêutica”. Ohumor pode ser pensado como meio de influir a alegria tutameica e, simultaneamente,como uma das formas em que ela se manifesta. Sob o viés do autor mineiro, a alegriaé fruto de certa hermenêutica, de um exercício de interpretação da realidade,compreendida, por sua vez, como visceralmente contraditória. Em eterna invenção nointerior do sujeito, a alegria é empreendimento, risco, proeza. Angústia-que-ri, dásinal de si sempre a partir de uma profunda consciência do absurdo.

Palavras-chave: Guimarães Rosa. Tutameia: terceiras estórias. Alegria.

Graças às orientações do prefácio “Aletria e hermenêutica”, nunca ficou veladopara a crítica rosiana que um dos temas cardinais de Tutameia: terceiras estórias(1968)1 é aquele do cômico, cujo estudo se desenvolve a meio vapor já há algumtempo nos círculos acadêmicos. Nada obstante, não é para a comicidade que se voltaa atenção deste trabalho, mas para uma noção que, embora lhe seja próxima e,muitas vezes, até fronteiriça, não deixa jamais de ser distinta. Trata-se da alegria.

O humor de Tutameia: terceiras estórias pode ser entendido como meio deinfluir a alegria e, simultaneamente, como uma das formas em que ela se manifesta.Tal como desenhado no primeiro prefácio “Aletria e hermenêutica” e encenado cá eacolá no restante do livro, o humor é, grosso modo, uma disposição do espírito ouuma forma de pensamento e de linguagem que se inclinam para o riso, para o prazerheurístico ou a deleitação de ler o mundo e recriar. Faz-se visível, principalmente, umcômico intelectual e abstrato, espirituoso e engenhoso, que se põe a defrontar-se coma antinomia, o dislate e o absurdo, e que está intimamente ligado à paixão dainvenção, ao gesto poético criador de narrativas, microestórias, anedotas, gnomas,parábolas, alegorias, enigmas, etc. Por mais que o humor cobre a si mesmo o própriogozo, ele é, na verdade, meio e ensejo para outra coisa, para uma ordemtranscendente, seja esta identificada ao “alegórico espiritual”, ao “supra-senso”, ao

∗ Pós-Doutoranda em Teoria e História Literária do Instituto de Estudos da Linguagem daUNICAMP. Bolsista da FAPESP. Email: [email protected]. Boa parte destas páginas é resultadode meu doutorado, que foi subsidiado pelo CNPQ.

1 Sigo, para o título do livro, a grafia correspondente à recente reforma ortográfica.

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“mágico”, ao “sublime”, etc. (ROSA, 1968, p. 3, 4, e 11). Não se deve jamais perderde vista, porém, que o trágico, o melancólico e o prosaico são a outra face dessamesma moeda tutameica. Aqui, o humor ou o cômico, disposição-pensamento-linguagem, é imago mundi paradoxal.

Se o trabalho psicológico e linguístico com o humor tem como uma de suasfinalidades acordar a alegria, é porque, na obra rosiana, ela goza de maior prestígio eaponta para um gosto mais profundo, em contato mais estreito, aparentemente, coma experiência em si da transcendência e do sublime, se bem que, nem por isso,destituído de contradições.

A alegria é objeto de investigação de dois importantes ensaios críticos quemobilizam forças para edificar pontes entre a obra rosiana e um amplo cenárioestético-filosófico-religioso, estabelecendo, de modo mais ou menos direto, relaçõesintertextuais: “João Guimarães Rosa y la alegria” de Javier Domingo (1960) e “A‘alegria’: tema rosiano ou princípio estético e filosófico?” de Kathrin Rosenfield (1998).

Javier Domingo, que se atém, principalmente, ao Grande Sertão: Veredas,trabalha por ligar a mística deste livro a certa atitude ontológica ocidental e oriental,que estaria representada, entre outros, por Santa Teresa, São João da Cruz, SãoFrancisco de Assis, Raimundo Lúlio, Ramakrishna e os sufis. Neles, como emGuimarães Rosa, a alegria, consequência de uma autodestruição admiravelmenteotimista e libertadora, seria, mais que um gozo, maneira nova de contemplar omundo. De forma individual, por ela, a alma, em plena realização de suas faculdades,penetra no mistério primeiro da Criação e no universo do Amor. Esse estado dealegria, transcendente ao da graça, produziria, de uma maneira física, a anulação deparadoxos aparentes e dolorosos, responsáveis por aquilo que os místicos conhecerampor secura, e os modernos, angústia, náusea e Nada. O homem que adere a essapostura ontológica busca um contato unitário com a Natureza ou a Matéria e umaconexão íntima com a essência da linguagem, a nomeação adâmica e eficaz dascoisas. No caso específico de Rosa, a literatura seria meio para recriar toda essacondição de “coito cosmico” (DOMINGO, 1960, p. 60). Abaixo, na conclusão de seuartigo escrito em estilo muito bem-posto, transido de dissolvências místicas, oestudioso tem em mente, de modo particular, a vida de Riobaldo e sua paixão porDiadorim:

Es el camino difícil y duro de la santidad en el misterio de una locura librementeaceptada. Es la alegria de la anegación del todo en la nada, el dolor gozoso de devenirnada en el todo. [...]. Lo que cuenta en el hombre es el vacío inmenso del Amor y lamaterialidad orgánica de la realización de este amor destructor. Lo que cuenta es laserena alegria “sin causa precedente” del hombre que se consume como una espermaposeído por una materia devoradora, infinitamente dulce, infinitamente cruel.(DOMINGO, 1960, p. 63).

Kathrin Rosenfield também se aplica ao estudo das conexões entre a arte doficcionista mineiro e certas tradições anteriores, sejam elas antigas (Platão, Aristótelese Plotino), ou modernas (Goethe e Dostoïevski, entre outros). Segundo a autora, é otema ou, mais exatamente, a atitude ou o problema metafísico que vincula GuimarãesRosa não só à filosofia e a esses pensadores citados, como também à mística, à

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teologia e à religiosidade. É por esta porta de entrada, por conseguinte, a da “relaçãoentre a realidade sensível e o domínio suprassensível, entre as coisas cognoscíveis eas incognoscíveis”, que Rosenfield vai introduzir suas considerações sobre a alegria, ede tal sorte que a aconchega e quase a identifica com a ideia de êxtase, como severifica também no ensaio de Javier Domingo, embora ambos divirjam na descrição danatureza ou do feitio dessa espécie de comunhão mística, desse enlevosimultaneamente poético e sagrado. De fato, Rosenfield escreve que, na obra deGuimarães Rosa, “reina muitas vezes a aura do Cântico dos cânticos”, e “a alegriabíblica é a base poética dos conceitos filosóficos”. Tema essencialmente estético eapenas aparentemente brasileiro e rosiano, “a alegria representa a célula fundamentalda intensidade poética e está ligada à sensação efêmera de uma realidade outra doque a cotidiana e habitual, momento ínfimo da certeza do Ser, da Presença, do Amor,do Absoluto.” (ROSENFIELD, 1998, p. 172).

O leitor haverá de reparar que algumas dessas ideias serão retomadas,exploradas e moduladas nas páginas que se seguem. No entanto, dado que não é meuobjetivo organizar uma síntese abstrata e (filosoficamente) integradora da obrarosiana, esta abordagem distingue-se, principalmente, por dois aspectos: em primeirolugar, como já ficou claro, pela concentração em Tutameia: terceiras estórias, quepermanece como uma das peças de Rosa menos visitadas pelos especialistas; emsegundo lugar, pela estratégia de leitura desenvolvida, marcadamente intratextual;vale dizer, por meio de uma perspectiva menos abrangente, de uma análise e de umainterpretação mais detida e miúda, de um exame cioso de esclarecer microconexões,procuro trazer para primeiro plano o texto, aquilo que é especificamente literário,ficcional ou “estórico”.

Dentro das balizas do senso comum e de um discernimento lexicológico mínimo,a alegria pode ser pensada como uma disposição mais ou menos transitiva do espírito,correspondente a emoções ou sentimentos unívocos (essencialmente opostos àtristeza) e implicados, via de regra, em relações causais: nascem da posse de um bemdesejado ou da fruição de um prazer.

Entre seus sinônimos mais imediatos, estão “satisfação” e “contentamento”.Ambos têm em comum a noção de preenchimento interno, como se o sujeito estivessepleno de si mesmo ou do mundo ou do outro que o cerca. Ernout e Meillet (1959, p.684) ensinam que o radical de “contente”, por exemplo, procede de “contentus”,originalmente, “que se contém”, “que se limita a”; os desejos, como que contidos nocontinente-indivíduo, encontrar-se-iam, até o topo, contentados. “Contentus é ‘o quecabe em si’ e não cobiça alargar-se” (MAGNE, 1961, p. 277).

Ainda na língua de dia de semana, como diz Rosa, pode-se dizer que também aalegria é uma sensação monocrômica de completude e, em seus melhores e maisloucos vórtices, transbordamento interior. O campo sinonímico da palavra alberga,com certa gradação, grosso modo, desde uma noção de viva satisfação oucontentamento, certa jovialidade, passando por ideias afins à exultação, euforia, júbiloe embriaguez, até as grimpas do êxtase, da felicidade, da beatitude, da bem-aventurança, etc.

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A alegria tutameica é ainda mais multiforme, possuindo inúmeras e delicadasnuances. Texto e contexto fornecem, para este termo, cambiantes de significado queacabam por refabricar, de modo original, conceitos dicionarizados, de uso comum efilosófico. Assim, parece-me apropriado vasculhar o sentido da alegria no remexer daleitura; aí, con-forme o sertão, haverá perambeiras, complexidões, tragadouros.

De saída, lembro a boa dose de jovialidade, certo temperamento voltado para aalegria, que marca vários dos ciganos do livro, como Güichil, Rulú e Prebixim. Neles,voz, palavras, gestos, cantos ou atos, estão a manifestar, amiúde, leveza, graça eespírito. Melim-Meloso, Maria Euzinha, Romão, Yao Tsing-Lao, Rebimba, o bom, etc.são personagens que dilatam o grupo. Todos eles, no contexto sempre problemáticodo livro, é verdade, podem alcançar o estatuto de sábios camuflados ou mestresanônimos de uma alegria pouco ou nada afiançada por motivos racionalmentedetectáveis, inquebrantável, entre natural e espiritual.

Além da jovialidade, o caráter de personagens como os ciganos, que conhecema ligeireza do mundo (ROSA, 1968, p. 57), Melim-Meloso e outros, é singularizado peloque se poderia chamar alacridade e lepidez. Esta seria a alegria ágil e festinante,enquanto, segundo Nascentes (1981, p. 57), aquela, a alegria recheada de“vivacidade, presteza de ânimo”. Não por acaso, o adjetivo “álacre” qualifica a corvermelha da roupa das ciganas (ROSA, 1968, p. 106). Mas toda esta expressãohumoral não está muito longe também do “fervor sem miudeio” de Maria Euzinha,protagonista expedita, para não dizer precípite, de “Tresaventura” (ROSA, 1968, p.174). Já em “Intruge-se”, por exemplo, o narrador pinta a ação e o estado de espíritode alguns vaqueiros que se levantam alegres e lestos à friagem. Aplica sufixo novo àpalavra “lepidez”, com o fim estético de embebê-la, a ela também, em semelhantefrescor afetivo: “O orvalho de junho molhava miúdo, às friagens. Levantavam-se,todos tantos, com lepidão” (ROSA, 1968, p. 70). Para mais complicar a leitura, repare-se ainda no decalque e na ressonância paradoxal do antônimo, “lentidão”, que servecertamente de base para a formação deste neologismo rosiano. Farei referência, logoadiante, à contraparte morosa dessa mesma alegria ligeira e vivaz.

Por ora, contudo, mais importante é não retardar a observação de que o própriosubstantivo “alegria” se origina da palavra latina alacer: “vivo”, “cheio de entusiasmoou ardor”, “animado”, “esperto”, “alegre”, “risonho”, “pronto”, “bem disposto”, “ágil”,“veloz”, etc. (TORRINHA, 1942, p. 39). Trata-se de um adjetivo cuja raiz, de formaçãomuito obscura, seria *al. Nesta, assim como nas formas paralelas, uma ideia de vigore apressuramento apareceria misturada a outra, de movimento ou de ida.2 Por isso,provavelmente, Fernand Martin (1941, p. 7) aponta que, em seu significado primário,alacer é aquele que se bole ou se (re)mexe, se move ou agita.

À força dessas migalhas filológicas, iluminar-se-iam, por exemplo, umapassagem de “Os três homens e o boi” e outra de “Tresaventura”, em que, extra-ordinariamente, “pressa”, seja a dos sáurios, seja a da criança, valeria como sinônimo

2 Vejam-se, por exemplo, as palavras “exILium” (do latim, “lugar para onde se despede, comenergia, alguém”), “ambULare” (do latim, “ir à volta de”), “ALáomai” (do grego, “vaguear”),“eILen” (do alemão, “correr”, “apressar-se”). Todas essas informações são um apanhado doque se pode ler em Julio Cejador y Frauca (1926), Fernand Martin (1941), Alfred Ernout eAntoine Meillet (1959) e Augusto Magne (1961).

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de “alegria”: “Dispararam a rir, depois se ouvia o ruìdozinho da pressa dos lagartos”(ROSA, 1968, p. 111). “Os pássaros? Na fina pressa, não os via, o passarinho cala-sepor astúcia e arte” (ROSA, 1968, p. 175). No bojo da noção de alacridade ou alegriade Terceiras estórias, está o movimento (do que é vivo), a ida (para a vida); e, se meé permitido extrapolar a etimologia em favor da invenção, a travessia, conforme aconcepção de Guimarães Rosa.

Não que em nada dessas coisas se exaure o assunto. A alegria de Terceirasestórias possui, por exemplo, uma contradimensão quaresmal e mórfica, um aspectode lentação e molúria, que não só não consta da origem do vocábulo, como se chocacom ela. Basta que se traga à mente, por exemplo, a vadiagem ditosa dos ciganos, aslongas viagens monótonas-e-contentes dos vaqueiros, a pausa preguiçosa dosboiadeiros como ensejo para a criação folclórica, a inação sublime do Gouvêia, o meio-sono natalino de Tio Bola e, finalmente, o próprio ritmo detençoso da narração e dealguns dos enredos. Há, aqui e ali, um espírito de indefinível e doce tristeza que secompraz na meditação, a presença de um exercício lutuoso e de uma atmosferainspirada, sem dúvida, em um conceito alemão que muito interessou a GuimarãesRosa: “Allerseelenstimmung”, “Estado de ânimo do dia de Finados”, festa litúrgica daIgreja, que ocorre, no centro da Europa, quando a atmosfera é morrinhenta, cinzentae pluviosa (COUTINHO, 1983 p. 82).

De qualquer maneira, mexida e remexida, conceda-se à boa alegria tutameicanão a precipitação moderna e, muitas vezes, doentia, mas a vivacidade e a prontidão.Significativamente, simbolizam-na os pássaros, estes animaizinhos buliçosos,cantadores plenos de energia, voadores e saltitantes, cuja tristeza, não obstante, éfolcloricamente célebre, e o estilo de trabalho, pouco trabalhoso; dir-se-ia indolente oupreguiçoso; nos termos evangélicos de “Grande Gedeão”: sem semeio, sem ceifa esem atulho (ROSA, 1968, p. 77).3 O cigano pachola e joliz de “O outro ou o outro”,que vive a vida a passarinhar, isto é, a vadear, chama-se Prebixim, nome de uma aveconhecida também como tietinga, pintassilgo-da-mata-virgem, etc.

Outra variante da alegria que está presente em Tutameia é aquela coberta pornoções como exultação, júbilo e entusiasmo, as quais, por sua vez, tocam a ideia deendeusação ou êxtase. Em “Rebimba, o bom”, o povo se entusiasma na morte eenterro cheio de vida daquele homem extraordinário (ROSA, 1968, p. 129). Em“Arroio-das-Antas”, as velhinhas, confiosas de terem levado a palma por ocasião damorte sacrificial de Edmunda, votam-se a uma jubilação ritual: “A avó Edmunda, derepente, então. ‘Morreu, morreu de penitências!’ a triunfar, em ordem, tãoanciãs, as outras jubilavam.” (ROSA, 1968, p. 19). Lembro também a mímicaesfuziante do novo e “jubiloso” Gouvêia, após o advento de uma proposta de negócio.Ele “meneava e mais com fagulhas financeiras ao curto crédito e trato de seugesto. Entrava a remudado, lúcido luzente, visante.” (ROSA, 1968, p. 79).

3 Bem, pelo menos, essa é a interpretação literal e primeira do personagem principal, depoisrepensada: “os pássaros não voam de-todo no faz-nada-não, indústria nenhuma, praxe que seremexem, pelos ninhos, de alt’arte” (ROSA, 1968, p. 79). Quanto ao esplim dos pássaros,confira-se, por exemplo, uma expressão como “passaroco” (= “sentimento de tristeza”,“melancolia”).

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O “carnaval”, a grande festa coletiva que finaliza Tutameia, parece balançarentre a exultação genuína e certa euforia postiça, com exceção, talvez, das últimaslinhas, que puxam para uma alegria esperançuda e sublimosa, mais expectada pelacriação artística do que real ou atual: “So-Lau decide: São coisas de outras coisas...Dá o sair. Se perfaz outra espécie de alegria dos destrambelhos do Rancho-Nôvo.Serafim sopra no chifre os sons berrantes encheram o adiante.” (ROSA, 1968, p.192).

O espasmo eufórico, tal como nas excitações anteriores, é intenso, expansivo epassageiro; entretanto, pode não corresponder a uma alegria autêntica. Casoexemplar é a visita desbragada à Europa de um Radamante instilado de “vontade degôzo”, que se engaja, então, em uma prosa boêmia com o prefaciador (ROSA, 1968,p. 146-147). Situar-se-ia também nos entornos da euforia, do êxtase e da exultação,a morte imoral, alvoroçada e audaz, de “doença de Deus”, do Palhaço da bôca verde,acompanhado de Mema (ROSA, 1968, p. 118).4 Uma vez que o ficcionista costumavirar e revirar a subjetividade humana, não há nada de espantoso em que a alegria,muitas vezes tratada positiva e levantadamente, tenha conotações dúbias, como noolhar do Doutor Mimoso (ROSA, 1968, p. 177), e baças, como no casamento de JóJoaquim (ROSA, 1968, p. 39); talvez até mesmo monstruosas, como no mau costumede Iô Isnar, caçador de antas que não poupa nem mesmo aos filhotes. Embora aliRosa não se sirva do substantivo “alegria”, surgem termos fortemente correlatos:“regozijava”, “distração”, “esquecer-se do espírito”, “passatempo” e “folguedo” (ROSA,1968, p. 171-172); de fato, não seria descabido dizer que o velho Isnar se alegra noassassinato.

Euforia e embriaguez são passíveis de mistura. Não são poucos osemborcadores de copo em Terceiras estórias. Há aqueles não tão destemperados ou,quando menos, até onde se pode crer, ocasionais, como Teresinho (ROSA, 1968, p.21); e há aqueles decididamente incontinentes e inveterados, como Prudencinhano(ROSA, 1968, p. 13-15). Se embriagado ou ébrio, em acepção estrita, é quem tem arazão ou o juízo transtornado por haver bebido demais (NASCENTES, 1981, p. 61),figuradamente ébrios são, por exemplo, os amantes cegos e encantadores deTutameia, como Yao Tsing-Lao. Também Hetério, “ébrio por dentro” (ROSA, 1968, p.24), e o já citado Teresinho que, com o perdão da má rima, se embriaga miudinho aolado de Dlena (ROSA, 1968, p. 22). É possível referir ainda o Bio, enfeitiçado por seucavalo, ou melhor, seu supercorcel além de todo nome (ROSA, 1968, p. 130), e o Zito,influído por coisa não menos sublime que o quadrúpede: a poesia (ROSA, 1968, p.162). O verbo aplicado ao vaqueiro é exótico (do Minho): “acatrimar-se”,precisamente, “embriagar-se” (MARTINS, 2001, p. 7); ação impossível, por sinal, aXênio Ruysconcellos, etilizado, mas não enfrascado: “o álcool não lhe tirava o senso deseriedade e urgência” (ROSA, 1968, p. 117). Já “temulência” é vocábulo literário eerudito que indica o embebedamento por excesso de vinho do latim, temetum ,substância integrante da simbólica de Baco e da melancolia (ARISTÓTELES, 1998, p.83). Curiosamente, apesar do título, em “Nós, os temulentos”, o contador explicita

4 A negação do prefixo em “imoral” não é necessariamente privativa, podendo indicar superaçãoou transcendência.

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apenas que Chico ingere, entre outros bebestíveis nunca nomeados, uísque. Dequalquer maneira, é de vinho que se regalam os escritores-bebedores de “Sôbre aescôva e a dúvida” (ROSA, 1968, p. 147).

A proposta de uma hermenêutica alegórica e transcendente de uma condiçãoletificante como a da embriaguez não é, evidentemente, inaugurada pelo escritormineiro. Consta, por exemplo, da obra do Pseudo-Dionísio. Não que eu pretenda comeste paralelo equiparar, sem mais, o método de interpretação alegórica deste teólogoe filósofo antigo com os (des)caminhos humorístico-sublimes de Guimarães Rosa:pressupostos, contextos e armações teóricas são destoantes. Meu intuito aqui éapenas o de sugerir, e muito ligeiramente, que a aproximação não deixa de seresclarecedora.

Dionísio observa que, na Bíblia, Deus é, às vezes, apresentado conduzindo-secomo “bêbado vulgar” (PSEUDO-DIONÍSIO, 2004, p. 314). As Escrituras ora glorificama divindade pelas altas aparências, como “Sol de Justiça” ou “Estrela da manhã”, orapelas medianas, como “Fogo” e “Água”, ora pelas mais baixas, como “Ursa enfurecida”e “Verme da terra” (PSEUDO-DIONÍSIO, 2004, p. 146-147). Imagens dessemelhantesde Deus ou semelhantes, não há escapatória: todas são absolutamente inadequadas, eas últimas, talvez, mais do que as primeiras, devido à ilusão de adequação. Aoiniciado, só resta sempre ultrapassar os sinais simbólicos, elevar-se, do material ousensível, ao espiritual, contemplativo ou inteligível (PSEUDO-DIONÍSIO, 2004, p. 139,197, 204). Para que o leitor possa visualizar essa transição, vale a cópia da leituraengendrada por Dionísio para a ebriez suprema:

Pero como es verdad que entre nosotros la embriaguez tiene un significadopeyorativo de exceso indebido y de enajenación de la mente y de la voluntad[expresiones que aluden al éxtasis], respecto a Dios debemos entender la embriaguezen el mejor de los sentidos y únicamente como sobreabundancia inconmensurable detodos los bienes que Dios posee previamente por ser su causa. Y a lo que llamamos enla embriaguez pérdida de la razón, al referirnos a Dios se debe entender como lasobreabundancia ininteligible que tiene Dios por la cual, al estar por encima de todoconocimiento, queda fuera del conocer y por encima de ser conocido y sobrepasa elmismo ser. En una palavra, Dios está “ebrio” y a la vez fuera de todas las cosas queson buenas. Está sumamente lleno de todas ellas, sobrepasa toda inmensidad, y poroutra parte tiene su morada fuera y más allá de todas las cosas. (PSEUDO DIONISIOAREOPAGITA, 2002, p. 282).

Dentre os termos que gravitam em torno do circuito sinonímico aqui abordado,“felicidade” é daqueles que, na linguagem rotineira, portam um valor muito positivo;por contraste com ela, é possível que a alegria receba matiz trivial diferentemente,portanto, do que ocorre no livrinho rosiano, em que está, o mais das vezes, (pronta aser) empinada para o sublime. Quantitativamente, a felicidade expressa um prazer degrau máximo. Qualitativamente, um regozijo mais fundo, verdadeiro e estável, que sóencontraria rivais em ideias como beatitude e bem-aventurança. Ela é, nada maisnada menos, que o próprio “contento da alma” (NASCENTES, 1981, p. 231).5

5 Essas gradações não são restritas ao senso comum. Apreciações semelhantes acham-se nafilosofia. A teologia medieval, por exemplo, operava uma diferenciação entre a alegria terrena e

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Em Terceiras estórias, as coisas não são bem assim. Aqui e acolá, sobretudo nasnarrativas que menos re-voltosamente se engastariam no que se poderia designarcomo o fabulário da obra, “Arroio-das-Antas”, “Desenrêdo”, “Tresaventura” e outraspoucas, a palavra felicidade e seus cognatos ainda agasalham alguma modulaçãomaravilhosa; mas a univocidade surrada da ideia, engessada em fórmulasmonoliticamente harmônicas, entra em descrédito e chega a ser parodiada em textode termo nada altissonante: “Foram infelizes e felizes, misturadamente” (ROSA, 1968,p. 23). Longe se está do clichê ou da ingenuidade de uma afinação final e perfeita. Aobra guarda predileção por uma noção inventada e paradoxal de felicidade e alegria. Éassim que, ao descrever uma sensação de voo, saída de si mesmo fundamentalmenteindizível, tensa e relaxante, o prefaciador de “Sôbre a escôva e a dúvida” compara-a afelicidade, mas o nome, um tanto inadequado, surge entre aspas (ROSA, 1968, p.150).

O rapto do espírito, seu transporte a alturas pinaculares, parece ser traço deexperiências tutameicas vizinhas, como o êxtase, o sublime e a alegria. Esta pode serexperimentada no arrasto de uma cavalgada infinita e ascendental: “Tanto cavalgou,rumo a enfim nenhum, nem era passeio, mas um ato, sem esporte nem espairecer.[...]. A estrada nua limpa com águas lisices tudo o que nêle alegre, arrebatado degôsto e o azul que continua tudo. Êles subiam.” (ROSA, 1968, p. 132).

Já no passo de “Sôbre a escôva e a dúvida” acima mencionado, em visada maisprecisa, são dois os voos ou enleios descritos e postos em paralelo: o do personagemLucêncio e o do narrador/prefaciador e, igualmente, personagem, Guimarães Rosa.Este nome deve ser entendido como assinatura de uma persona ou máscara autoral,mas talvez se faça necessário explicitar o significado desta afirmação. Seria possívelrecorrer à análise da obra rosiana; porém, por brevidade, prefiro valer-me daentrevista concedida a Günter Lorenz e publicada por Eduardo Coutinho (1983, p. 74,76 e 89). Ali, Guimarães Rosa declara ter ódio à intimidade, a certo biografismo esubjetivismo, a certo autorreconhecimento (e não estranhamento) na própria ficção: épreciso encarcerar a personalidade e cultivar uma arte objetiva e impessoal. Aomesmo tempo, contudo, lança uma escaldadela aos cientistas inventores da separaçãoperemptória entre homem e artista. No final das contas, portanto, para efeito de umcompêndio crítico, ponha-se todo o problema sob a luz de um meio termo: a máscaraé aqui também rosto; de um lado, cobre, disfarça e até mesmo ludibria; de outro,expõe, espelha e revela.

De volta, então, a “Sôbre a escôva e a dúvida”, ambas as suspensões, a deLucêncio e a de Rosa, nada tendo que ver exteriormente com qualquer frenesi, comono caso de Xênio e Mema, compartilham, entre outros elementos, o semissono e odesvanecimento da percepção corrente, diurna e desperta, da passagem temporal, dosditames cronológicos. Trata-se de uma sensação fugidia de eterno presente vividanum momento de hiato entre os acontecimentos; ou seja, uma vivência subjetiva deinanidade ou vacuidade factual que leva à concentração no tempo em si mesmo,

efêmera, laetitia temporalis, e a felicidade do coração, gaudium spirituale, que chega a seucume após a morte, na visão da divindade, selada por um “riso discreto e mudo” (ALBERTI,2002, p. 69).

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enquanto ritmo cósmico e interior ou enquanto puro movimento, forma nãopreenchida por coisa alguma. Em certo sentido, é uma apreensão mais aguda dotempo e da vida. Tais características são incorporadas na forma, por assim dizer,extática de Tutameia, discernível, principalmente, em textos soporosos, como “Lá nasCampinas”, “Arroio-das-Antas”, “Presepe”, “No Prosseguir”. É o próprio prefaciadorquem confessa que se esfalfa, por meios vãos, para copiar e recaptar, na vida e naobra, aquele arroubo antigo, prodígio involuntário:

Desde o tríduo de noites, no caso meu, e até hoje, nunca mais veio-me aempôlgo, fatalmente de fé, a dita experiência. Isto faz parte da tristeza atmosférica?Tento por vãos meios, ainda que cópia, recaptá-la. Aquilo, como um texto alvonovamente, sem trechos, livrado de enrêdo, ao fim de ásperos rascunhos. (ROSA,1968, p. 151).

A evasão do tempo comum, não integral, instante discordante e acordante emque o ser se limita e se dilata infinitamente, consiste em uma espécie de trans ouparacontentamento (vide a etimologia de “contente” logo atrás). De início, à maneiracômica, é assombrosa e mesmo aterrorizante, guardando pouca ou nenhuma relaçãocom qualquer sentimento monocrômico de totalidade e harmonia. Confira-se, só paracomeçar, a anedota do sujeito sonolento e transtornado que pega a gritar que orelógio enlouqueceu e “deu uma hora quatro vêzes”, bem como a transcrição dosversos tenebrosos de Eugênio de Castro, em que relógios desconcertados, badalam, àmeia-noite, treze horas (ROSA, 1968, p. 149). Por um lado, Lucêncio, em estadohipnopômpico, pergunta com angústia e certa comicidade de palavreado, seguramenteirreflexa: “ Deus meu, descarrilhonou?” (ROSA, 1968, p. 150). Por outro, GuimarãesRosa afirma: “Era noite mais noite e mais meia-noite” (ROSA, 1968, p. 150). Trevas,temor, humor involuntário, beiras da loucura...

Em seguida, porém, o alheamento transmuda-se em rebimba apaziguante,levitação lânguida, lépida e ritmada.6 Não é apenas o tempo que é experimentado demodo outro; assim também o espaço, um tanto alforriado da força ou peso dagravidade. O narrador tenta traduzir sua arquifelicidade (ROSA, 1968, p. 151), suaabsorção e desligamento: “Senti-me diferente imediatamente: em lepidez de vôo edança, mas também calma capaz de parar-me em qualquer ponto. Se explico? Eragostoso e não estranho, era o de a ninguém se transmitir. Tinham aliviado o mundo.”(ROSA, 1968, p. 150). A esta altura, pode vir a quadrar uma definição hermética dealegria: “harmonia do ritmo interior com o ritmo exterior, do ritmo de baixo com o doalto, do ritmo da criatura com o ritmo divino” (MEDITAÇÕES, 1989, p. 612).

O epílogo da modorra é penoso para Lucêncio, num anticlímax genuíno: “Assimdespertou de todo, a pêso infeliz, conta.” (ROSA, 1968, p. 151). Este avessoperturbador da delícia extática não é desconhecido da tradição mística (cristã).7 Dupla

6 A palavra de gênero feminino “rebimba” denota “frouxidão”, “moleza” e “indolência” e estáinsinuada, juntamente com “rebimbo”/”rebimbar”, no nome do curandeiro da estória “Rebimba,o bom”.

7 Se os mais inexperientes, uma vez findado o sabor sempre provisório do recolhimento, sofremum “humor muito desgostoso e contrariado”, até colérico (CRUZ, 2008, p. 40), os mais santos,nesta noite tão escura da alma, sofrem uma fé absolutamente pura, sem qualquer consolação;sofrem a alegria de sofrer com Deus.

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face similar manifesta-se na saudade que se assenhora do ânimo de Siozòrinho, logodepois da partida da ciganada patusqueira; melancolia que ele, como que em seumomento de manucho, sabe saborear bem, botando no bolso o mugido de um boi,andando à toa, calcando(-se) (n)os cheiros da erva verde já rota do chão (ROSA,1968, p. 60).

O êxodo de si mesmo (que pode ser acompanhado ou não do acesso a umainterioridade mais verdadeira) é, a bem dizer, ideia bastante abstrata sob a qual sepodem subsumir experiências de naturezas as mais diversas todas fulcrais emTutameia: além do êxtase propriamente dito e da alegria, o amor, a possessão, oentusiasmo, a embriaguez, a loucura, o sublime, a inspiração (artística), o sono, osonho, a melancolia, a apoplexia, o medo, a violência, etc. Borrões fronteiriçospermitem a Guimarães, por exemplo, empregar uma terminologia digna do êxtasemais supino na descrição cômica de uma estase humilíssima, que, ao menos nanegatividade de seu alheamento, nada tem que ver com aquele. O eu de Joãoquerqueé um verdadeiro saidouro; estático de medo, o personagem sai de um eu exterior paraoutro, e assim, sem controle. Ao final, é ainda com um raio de arroubo que cai em si,o que, no contexto, significa: enfrenta, a seu modo trapalhão, não de todo centrado, oterrível matador de homens: “E, então, que então, o que nenhuma voz disse, o quelhe raiou pronto no ânimo. Mais já não parava assim, em al, alhures, alheio, absorto,entrado no raro estado pendente, exilando-se de si.” (ROSA, 1968, p. 51).Centramento da personalidade? Sim e não. Joãoquerque torna-se um semi-heróisemiaudaz. Ele poupa-se ao duelo e apanha, por ob-repção, na rua, o inimigo. Avalentia de seu machado está transpassada por sua “covarde coerência”, seu “nãoquerer contenda” (ROSA, 1968, p. 52).

Por fim, além da “bem-aventurança do bocejo” (ROSA, 1968, p. 63), Terceirasestórias conhecem aquela outra, bíblica. A cigana Aníssia, uma “pássara”, lê a “boa-ventura” a Sinhalice e a Sinhiza: é palmista (ROSA, 1968, p. 58-59). Entre outrasinterpretações, isto significa que Aníssia é cantatriz e recitante do saltério ou textossacros em geral, no caso, muito provavelmente, o Novo Testamento; não é à toa,pois, que é comparada a um bichinho musical, cuja divina (des)ocupação já foireferida.

De acordo com Antenor Nascentes (1981, p. 46 e 231), “ventura” indica aquiloque vem de bom ao destino do homem, quando este, todavia, pouco ou nada fez pormerecer. Aí está uma matriz de enredo bem ao gosto do criador das estóriastutameicas, se bem que, nestas, ela não só extrapole a noção de ventura e se estendaà compreensão global de alegria muitas vezes, dom que se recebe , comotambém se vincule a outras noções: graça, serendipity8 e boa estrela, por exemplo.Fortes Fortuna adiuvat é aforismo ainda razoável: “a bela vez é quando a fortunaajuda os fracos” (ROSA, 1968, p. 75). Sorte, dita, fortuna e que tais, todas palavraspresentes em Tutameia, situam-se entre as ideias de êxito ou malogro, acaso edestino (fasto ou nefasto). As ciganas que vivem “quase à boca dos ventos” são

8 Guimarães escreve em nota que este neologismo, cunhado por Horace Walpole, exprime afaculdade de fazer, casualmente ou por sagacidade, boas descobertas (ROSA, 1968, p. 157).Ou seja, serendipity combina sorte e engenho, distração e atenção, surpresa e perspicácia.

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“fortunosas”, literalmente, “cheias de fortuna”, porque ledas e livres, sempre emviagem; mas também porque cativas, sempre mal fadadas por um mandado de faraóque nunca termina (ROSA, 1968, p. 58-59).

Polpudo de ventura, ao menos sob seu próprio prisma, é o narrador de“Curtamão”, não pelo fruto visível de seu trabalho, a construção delongada em queamassa seu próprio sangue (ROSA, 1968, p. 37), mas por aquela casa de Deus queemerge como que pronta nela mesma, silenciosa e misteriosamente copiada, ao finalda narração. Igualmente, Maria Euzinha, que arremete ao “mato onde árvores seassombram” (ROSA, 1968, p. 174), é venturosa e aventurada; e talvez, por um saltode interpretação, bem-aventurada, como faculta o título do conto (ROSA, 1968, p.174). Ela é chamada também Djaiaí ou Dja ou Iaí; mais três charadas daonomastoteca rosiana. O significado da forma encompridada, em que as duas sílabassão adjungidas, pode ser tomado ao dicionário: Jaíra, feminino do hebraico Iaír, deétimo controverso: “que Deus anima, desperta”; “o iluminado de Deus”; “habitante dafloresta” (AZEVEDO, 1993, p. 319). O “D” (supostamente protético) dessa invençãorosiana traria sugestões divinais, truque já deslindado pelos críticos em outros nomese casos, como o de Diadorim. Hipóteses em algum grau convergentes com isto que seacaba de conjecturar são desembrulhadas diretamente do texto, mostrando-se, porconseguinte, mais convincentes: Dja remeteria a “dia” com toda a sua carga simbólicade atualidade e solaridade divina (ROSA, 1968, p. 175); já a parelha Dja/Iaí, demaneira similar, se soldaria com o modus vivendi do agora, da prontidão e datravessia: o “já” e o “aí”, tão próprios desse personagem. Com efeito, seu nome tendea confundir-se, sistematicamente, com esses dois advérbios, por força de uma fonéticaoculta que parece estar sempre a evocar tempo imediato e/ou transitivo. Ambos seacoplam na última sentença em que surgem: “Dja fechava-se sob o instante: caretapor laranja azêda.” (= “Já fechava-se sob o instante: careta por laranja azêda.”) “Iaípsiquepiscava.” (= “[E] aí psiquepiscava.”) “Djaiaí, sustou-se e palpou-se só aviolência do coração bater.” (= “Já-[e]-aí, sustou-se e palpou-se só a violência docoração bater.”) (ROSA, 1968, p. 175 e 176, os negritos são meus).

Seja como for, pergunta-se: é ela que salva o sapo que está em perigo ou é eleque, estando em perigo, a salva? Em “Curtamão”, até as derradeiras linhas, o receptoré levado a crer que lê a estória da construção de uma casa concreta, enquanto, naverdade, lê também (alegoricamente) a da brotação de outra, imaterial.“Tresaventura”, de forma análoga, com o perdão do trocadilho barroco, é menos umconto sobre uma sapeca que, por estro e por ventura, resgata um sapo do que sobreum sapo que, por encanto e por acaso, resgata uma sapeca. A estória tem seussegredos ou mistérios; e à Maria Euzinha, “os segredos a guardavam” (ROSA, 1968, p.174). Graças aos gritos da mãe e à convergência serendipitosa de sapo e sapeca navirada do caminho, é cumprida não a proeza temerária que ela mesma se haviaproposto ao pôr-se em viagem, mas outra, surgida de repente. Com o excitamento degrande empreita realizada, depois de libertar o sapo, a garotinha, até então obstinada,distrai-se da excursão perigosa em meio a cobras comedoras e resolve,inopinadamente, reconverter-se ao lar. E ela nem se dá por nada disso; nem de longedesconfia do furdunço de que se livrou. O “brejo em brenha” (ROSA, 1968, p. 174),sendo realmente isto o que é para os adultos, continua sempre a ser o paraíso que um

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dia foi imaginado pela pequenina. Quero dizer, para ela, ele é, de fato, isto. Eis talvez,na lente de Rosa, exemplum de uma certeira objetividade que um ponto de vistaprofundamente subjetivo pode alcançar. O namoro do texto com as narrativas domaravilhoso é flagrante: “A idéia de que tudo deva passar-se no universo de acordocom nossa expectativa [...] é a disposição mental específica do conto [Märchen].”(JOLLES, 1976, p.199). Mas não é, veja-se bem, que esse personagem meio lobatianodesconheça totalmente o mundo tal como os adultos e parentes o retratam: ele nãovinga é botar fé nele, conformar-se com ele a partir de seu coraçãozinho: “de-cor desi” (ROSA, 1968, p. 174). “E ria que rezava.” (ROSA, 1968, p. 175). O ato mágicotrans-formador posto em prática ritualiza a visão: ela pisca os olhos ou tapa-os com osdedos (cujas unhas estão pintadas de mentirinhas brancas), toda vez que a vida seprova como uma laranja azeda o que, ao cabo de contas, denuncia que acontrariedade do estragoso mundo foi ao menos intuída como tal (ROSA, 1968, p.174-175). Maria Euzinha psiquepisca: busca (re)centrar-se, fecha-se e interioriza-se;coloca-se a si mesma e ao mundo nas trevas para voltar a ver, “rever”, com outra luz:a da sua ideiazinha interior (ROSA, 1968, p. 175). O olhar, já, em si, atuante, não seconfunde com a recepção passiva do que está lá fora. A realidade é, para ela, antescoisa que se reza do que coisa que, simplesmente, se vê. É daí, enfim, que nasce todaa sua renitente negaça... infantil? Sim, há algo disto, certa e explicitamente; mas nãoé este o cheiro da estória. Descartado o enfoque de um realismo puro e ingênuo, ficadifícil para o leitor demarcar um cenário verdadeiro: o dela ou o dos pais? Apilantrinha, pelo menos, parece ter um bom pressentimento da porção de fantasia quehá em suas representações.

Enfim, por ora, o que pretendi salientar é que a alegria é mesmo proteica e temmiríades de entretons. Corporifica-se na vivacidade infantil (“Tresaventura”), nafestança meio triste (“Faraó e a água do rio”, “Zingarêsca”), na felicidade e boa estrelade tintas fabulescas (“Arroio-das-Antas”), no aprazimento de uma doída saudade (“Lá,nas campinas”), no repouso criativo e relaxante (“Os três homens e o boi”), na com-placência façanhosa e amorosa com o (aparentemente) feio e mau (“Orientação”,“Reminisção”), no regalo do efêmero e do insignificante (“O outro ou o outro”), nobem-estar corporal de um sono santo e ritualizado (“Presepe”), na embebiçãosensorial da natureza (“Hiato”), no gozo sofrido (quase) inconsciente do tempo lentoque passa (“Sota e barla”, “Vida ensinada”), no prazer do jogo e da inventação(“Melim-Meloso”), etc. Cada uma dessas materializações da alegria, em si mesmas,mais ou menos prosaicas, mais ou menos ambíguas, pode ganhar, eventualmente, nomovimento interpretativo, um suprassentido ou poético ou alegórico ou transcendente;até mesmo as cores fascinantes de um estado transitório de ventura, tres-aventuraespiritual. De fato, o prefácio deixa entrever que Terceiras estórias aspiram a guindarnão apenas o humor, mas a existência humana como um todo ao sublime.

Todavia, se a alegria triste ou, diriam alguns, a tristeza alegre de Tutameiatende a distanciar-se do senso comum por seu amálgama com noções opostas, como aangústia, e por seu desligamento de relações causais obrigatórias, pode ser proveitosoinsistir nestes dois pontos, aprofundando-os.

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Só para começar, é preciso reconhecer que, há, na verdade, uma marcadaintransparência que vela a inclinação de espírito deste livro de Guimarães Rosa. De umlado, é possível dizer que a obra, stricto sensu, não é nem (somente) alegre nem(somente) triste, mas, ao mesmo tempo e de modo paradoxal, inteiramente alegre etriste. Tutameia brinca e soluça na graça e angústia de rascunhos, farrapos,quinquilharias, e é como alguns de seus personagens: “mesmo alegres já tristes, logode tristes mais alegres” (ROSA, 1968, p. 190). De outro lado, poder-se-ia perguntar seo livro não é ainda, de maneira um tanto diferente, meio-alegre-meio-triste. Algosemelhante àquele “copo com água pela metade” sobre o qual o autor lança perguntadisjuntiva um tantinho capciosa: “está meio cheio, ou meio vazio?” (ROSA, 1968, p.12, o negrito é meu). Sim, trata-se de um estado de espírito ou humor que sabe quejamais poderá ser pensado de todo objetivamente, pois incorpora em sua própriacompreensão a contingência determinada pelo olhar do outro: haverá quem veja antesa falta e haverá quem veja mais o volume.

Mesclas à parte, o leitor rosiano há de ponderar possivelmente que a atmosferade Tutameia, em contraposição, por exemplo, à da obra anterior, Primeiras estórias(1967), não parece lá muito joliz (e há certamente razões históricas para isso). Aotraçar o rascunho de um universo arredio, o livro antes transuda melancolia. Nãoduvido de que esta opinião seja largamente sustentável, mas, nestas páginas, nãoinvisto nela. Talvez a alegria de Tutameia seja mais estudada, menos espontânea. Demodo mais marcado, fruto de um esforço e labor hermenêutico, de uma opçãointelectual e, claro, espiritual. Será acertado apelar à oposição exterioridade xinterioridade? Quero dizer, em se tratando dessa obra, quando a tristeza é maisevidente, não se poderá e deverá aí mesmo esgravatar uma alegria resistente eíntima, ainda que estranhíssima? Um humor singular e até mesmo bizarro? Não sei seé o caso realmente, pois aparência e essência, máscara e rosto, cambaleiam no textotanto quanto o Chico temulento, protagonista do terceiro prefácio do livro. Prefiroargumentar que alegria e melancolia são dois lados da mesma moeda. Contudo, e istoé crucial, se a tristeza da obra se encontra enraizada em uma construção de sentidoprovavelmente mais lógica, em razões éticas, históricas, sociais, estéticas e, sob certamirada, até mesmo religiosas, sua alegria, in extremo, costura-se ao suprassenso; sópode ser coisa de sábio (de místico) ou de louco; onde seja talvez absolutamente semsentido é exatamente aí que ela deve brotar, como experiência mesma da graça ou daliberdade ou da coragem. Não por casualidade, os vaqueiros dos Gerais, sabidos, “riemsem dificuldade” (ROSA, 1968, p. 161), ainda que se possa cuidar que lhes careçam asrazões. “ Só o pobre é que tem direito de rir, mas para isso lhe faltam os fins oumotivos...” (ROSA, 1968, p. 190). Proeza maior é “rir, da graça que não se ache”(ROSA, 1968, p. 126). Quando a alegria não vem tão fácil, pesa o sacrifício daliberdade. Nos versos do poema a quatro mãos de Paulo Dantas:

Naqueles pastos do longea alegria, fardo pesadotinha de ser levadana canga da cangalha, no cavalo alto,ao lado do Tio Terez. (DANTAS, 1975, p. 118).

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Parte do que foi apresentado acima já se patenteia em “Campo Geral” e naspalavras, titubeantes, é verdade, do Riobaldo de Grande Sertão: Veredas. Dito,Miguilim e o jagunço tateiam uma hermenêutica e uma mística da alegria, que não sereduz, portanto, a estado psicológico ou afetivo, a fluxos e efusões emocionais, mas étambém decisão de fé, atitude ontológico-existencial:

E o Dito também não conseguia mais falar direito, os dentes dele teimavam emficar encostados, a boca mal abria, mas mesmo assim ele forcejou e disse tudo: “Miguilim, Miguilim, vou ensinar o que agorinha eu sei, demais: é que a gente podeficar sempre alegre, alegre, mesmo com toda coisa ruim que aconteceacontecendo. A gente deve de poder ficar então mais alegre, mais alegre, pordentro!...” (ROSA, 2006b, p. 100).O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daíafrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. O queDeus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio daalegria, e inda mais alegre ainda no meio da tristeza! Só assim de repente, nahorinha em que se quer, de propósito por coragem. Será? Era o que eu às vezesachava. Ao clarear do dia. (ROSA, 2006a, p. 290).

A alegria é disposição subjetiva: não está nas coisas nem nos fatos, o que podecomungar-se com a ideia de que é problema de linguagem, sentido-orientação que seimagina e inventa. “Construção alguma vige porém por si triste, nem a do túmulo,nem a da choupana, nem a do cárcere.” (ROSA, 1968, p. 122). E: “Infelicidade équestão de prefixo.” (ROSA, 1968, p. 76). Não obstante, a reflexão sobre arelatividade da alegria, sobre a liberdade de sorrir ou chorar, é literariamenteconduzida a limites desnorteadores. Onde está o riso ou o vivo contentamento emtextos moldados por fôrma tantas vezes morreira ou dormente? Onde, em textospejados de crueldades e mesquinharias, como “Êsses Lopes”, “Barra da Vaca”, “SinháSecada”, ou até catástrofes coletivas, como “Azo de Almirante”? Sim, muito mais noenfoque de quem os narra ou observa e medita e na linguagem re-vitalizada no prazerde criar e des-cobrir. Mais trágico que a própria tragédia é a míngua do sublime ou dopoético ou da palavra: o homem que à sua desventura e a si mesmo, de algum modo,não transcende. Ao menos na imago mundi do fabulista, é este provavelmente ogrãozinho de ética. Atente-se ao caso do padrasto de Melim-Meloso, que vive na“desalegria” e não avista “o sutil de viver” (ROSA, 1968, p. 95). No entanto, éprecisamente por isso tudo que se repõe, insistente, a pergunta: até que ponto essasbrabas estórias sertanejas podem ser cheias de graça? Até que ponto a alegria é umaquestão de perspectiva e linguagem? Até que ponto é possível alegrar-se na tragédia,sublimá-la? É justamente nesta oscilação tensa e perturbadora entre pesadume eledice que se situam as Terceiras estórias, e assim caminha o livro, desobrigado adecidir-se e decidido a provocar, se bem que investindo suas mixas moedas, tuta emeias, na positividade de uma alegria meio tristonha, des-propositada e excelsa.

Terceiras estórias não negam que os cárceres e as cegueiras e as feiuras e asmisérias estejam por toda parte por sinal, não param de dizer isso. Mas, em“Tresaventura”, por exemplo, Maria Euzinha possui chave para uma prisão feliz: “donaem mãozinha de chave dourada, entre os gradis de ouro da alegria” (ROSA, 1968, p.176). Como todo tipo de sentimento e compreensão e atitude existencial diante domundo, a (escolha pela) alegria é, ela mesma, uma forma de limite. Mas não

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semelham grades douradas essas margens, as da alegria? De fato, neste conto (comoem outros), Guimarães Rosa está a desenhar a imagem antinômica de um livreaprisionamento: note-se que a pequena corajuda tem em mãos as suas chaves.

Em Tutameia, a alegria, sem que uma coisa necessariamente exclua a outra,pode ser matéria de liberdade, isto é, de vontade, mas também de temperamento ougraça, quando menos se conquista que se acolhe. Segundo o que se afirmouanteriormente, o temperamento jovial, a vocação mais orgânica, (quase) irrefletida,para a alegria, marca vários dos personagens do livro, como os boiadeiros rapsodos,Melim-Meloso, Drepes, etc. Todos eles sabem amistar-se com os fluxos e refluxosvitais; solfejar, com alguma euritmia, a disritmia da vida. Mas a espontaneidadepertence menos ao ponto de vista das narrativas do que aos seres que nelas pululam.Da perspectiva do poeta-pensador Guimarães Rosa, a alegria advém antes de umprocesso artístico e intelectual de decifração do sentido do ser. Isto não significa,obviamente, que a espontaneidade não esteja presente na alegria enquanto visão demundo, elaboração literária, filosófica e erudita. Também neste caso, em últimainstância, ela configura-se como lance ou rasgo espontâneo, pulo para o suprassenso,e dificilmente é inteligível até o fim.

No que tange aos personagens, um dos saltos mais escandalosos para a razão éo daquela mulher de caráter (aparentemente?) tão pouco ou nada jovial, “SinháSecada”, a quem arrancam cedo das mãos o filho pequeno. Já tão definhada, sofreainda, por ironia do destino, uma aguda decepção: o tristonho e crescido moçochegado à repentina não é o menino um dia amado e esperado desde as entranhas.No entanto, a reação, depois de tão dramático desencontro (e momento de peripécianarrativa), é surpreendente. Pode-se, sem dúvida, escarafunchar ou excogitar osmotivos de Sinhá Secada (e o texto dá margem a bonitas sutilezas), mas aquilo quetornou possível àquela mulher débil e delicada refazer a ledice e não demorar-se até amorte na tristeza é, ao cabo de contas, impenetrável. Nessa anagnórise enigmática enegativa (de ordinário o reconhecimento consiste na descoberta da existência de laçosfamiliares), não há continuidade lógica evidente:

Mas, ela, que sentada tudo recebera, calada, leve se levantou, caminhou paraaquêle, abençoando-o, pegou a mão do tristonho môço, real, agora assim mesmoum tanto conformado. Sorria, a Sinhá, como nunca a tinham avistado até ali,semelhava a boneca de brincar de algum menino enorme. Seu esqueleto era quasebelo, delicado.Nesse favor de alegria persistiu, todos exaltando o forte caso. (ROSA, 1968, p. 144).

Espreitada pelo avesso, também a compaixão ou a dor pode ser dom. “Doer-sede um bicho, é graça.” (ROSA, 1968, p. 172). Uma vez que podem conduzir ao supraou metassenso, ambas, tristeza e alegria, angústias e delícias, são veredas espirituaisgenuínas, se bem que manhosas e temíveis (ROSA, 1968, p. 149). A alegria “não ésem seus próprios perigos”, e a tristeza “produz à-toas cansaços” (ROSA, 1968, p.185). Esta pode ser o contrário da coragem (ROSA, 1968, p. 184), e aquela, conspirarcom a falta de liberdade, como na prosperidade cheia de ódio de Flausina (ROSA,1968, p. 45) e na distração cruenta do caçador de antas (ROSA, 1968, p. 171).Porventura se explique por isto também, isto é, pela prudência ou temperança, que,em Tutameia, não somente a alegria deixa-se, muitas vezes, limitar pela tristeza,

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como esta, por aquela. Assim, por exemplo, as mágoas são, geralmente, medidas(ROSA, 1968, p. 95), e há, inclusive, quem pranteie por um olho só (ROSA, 1968, p.36). Henriqueta Lisboa (1983, p. 174) já identificara, no Miguilim de “Campo Geral”,um “pudor no sofrimento, faculdade de contenção”.

Em suma, em Tutameia: terceiras estórias, a alegria, objeto de desejo, estáquase sempre mesclada ao pesar, ao luto e ao sofrimento. Sob o prisma do autor não necessariamente coincidente com o dos personagens, que podem experimentá-lade modo diferente , é, sobretudo, fruto de hermenêutica, de certo exercício deleitura da realidade, de uma maneira de conceber o mundo perpassada porcontradições. Em eterna geração e invenção no interior do sujeito, é empreendimento,risco, proeza. Angústia-que-ri, dá sinal de si sempre a partir de uma profundaconsciência do absurdo.

Alegria sem margens? O fundo sócio-histórico que o texto reconfigura não apermite. Nem a temporalidade, a maldade, a morte, os cataclismos, enfim, todos oslimites humanos e naturais. Tampouco o conceito e a vivência em si mesmos daalegria, que têm seus próprios trevores e trazem no âmago seu reverso, a tristeza,igualmente portadora de breu e luz. Porém, como redige Guimarães nacorrespondência com Paulo Dantas, pondo em pauta, certamente, a versão maisalumbrada da palavra: “Sertão é isto: intenção de alegria.” (DANTAS, 1975, p. 63).

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Title: The joy in ‘Tutameia: third stories’ by Guimarães Rosa

Abstract: This present paper focuses on the matter of joy in ‘Tutameia: third stories’.It is João Guimarães Rosas’s empathy for it which also motivates the fundamentalreflections on humour from the first preface, ‘Aletria and hermeneutics’. Humour canbe thought of as a means of inducing ‘tutameic joy’ and, simultaneously, as one of theways in which joy manifests itself. Accordingly to the author’s point of view, joy comesfrom a certain hermeneutics; from an exercise of interpreting reality, understood inturn as intrinsically contradictory. In an everlasting invention within the subject, joy isenterprise, risk and prowess. Laughing-anguish, always reveals itself from a deepsense of the absurd.

Keywords: Guimarães Rosa. Tutameia: third stories. Joy.

Recebido em: 29/12/2012. Aceito em 17/06/2013.

Crítica Cultural (Critic), Palhoça, SC, v. 8, n. 1, p. 83-96, jan./jun. 2013

Os prefácios dos romances iniciaise o método de composição

de Machado de Assis

Cilene Margarete Pereira∗

Resumo: Este artigo discute a importância dos textos introdutórios, denominadosadvertências, para o entendimento da obra ficcional de Machado de Assis, destacandoo prefácio de seu primeiro romance, Ressurreição, de 1872. Nele, o escritor apontaseu método de construção ficcional baseada na caracterização e oposição daspersonagens a partir de alguns versos motivadores de Shakespeare, retirados da peçaMedida por Medida.

Palavras-chave: Prefácio. Romance. Composição. Personagem. Oposição.

Há muito já se sabe a importância que os textos introdutórios às obras,comumente denominados prefácios, têm para o entendimento e leitura destas. Osescritores, especialmente os romancistas, desenvolveram ao longo dos tempostécnicas sofisticadas e criativas para dialogar com seus leitores neste curto, massignificativo, espaço textual. Normalmente, os prefácios desempenham a funçãoprincipal de mediadores entre as ideias e concepções do escritor e seu público,servindo, muitas vezes, como espécie de “guia de leitura”, oferecendo instruções sobrea obra ou como dela extrair maior prazer e/ou conhecimento. Essa relação íntimaentre autor e leitor é quase sempre explorada pela ótica da adulação e da identificaçãoentre estes dois elementos formadores do processo de significação da obra. Associadoa este papel primordial, o prefácio revela outras funções de grande interesse,especialmente ligada aos processos de construção da obra literária, pois serve tambémcomo espaço à resposta de críticas e elogios, reflexões de cunho artístico e exercíciosde lustração do ego do escritor e, muitas vezes, de porta de entrada para aficcionalidade.

Ainda que seja na segunda fase de sua vida literária que Machado de Assisconceberá romances e contos de maior complexidade, prefaciados por textos maisambíguos e cifrados (e em grande parte também ficcionais como ocorre em Memóriaspóstumas de Brás Cubas, Esaú e Jacó e Memorial de Aires); já em sua fase inicial, ele

∗ Doutora em Teoria e História Literária (UNICAMP); Professora e Coordenadora do Mestrado emLetras da Universidade Vale do Rio Verde (UNINCOR); Pesquisadora Colaboradora doIFCH/UNICAMP, onde faz a pesquisa de pós-doutorado “Das páginas dos jornais ao livro:versões narrativas dos contos machadianos e Editora da Revista RECORTE. E-mail:[email protected].

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encena sua veia narrativa para a construção de advertências reflexivas econtundentes, entremeadas por críticas (e autocríticas) e boa dose de espirituosidade.É assim que ele constrói o prefácio introdutório a Ressurreição (1872), seu primeiroromance. Pautando sua advertência1 em oposição aos demais e correntes prefácios daépoca, escritos com expressão de “falsa modéstia”, o escritor tende a distanciar-sedestes, assumindo um caráter aparentemente sincero em relação às críticas negativase/ou positivas advindas da apreciação do seu romance.

Para explicitar a distinção do prefácio (e do homem que o escreveu), Machadode Assis se vale de uma longa glosa a respeito da caracterização comum dos textosintrodutórios, ressaltando sempre a aparente modéstia dos seus autores.

A crítica desconfia sempre da modéstia dos prólogos, e tem razão. Geralmente sãoarrebiques de dama elegante, que se vê ou se crê bonita, e quer assim realçar asgraças naturais. Eu fujo e benzo-me três vezes quando encaro alguns dessesprefácios contritos e singelos, que trazem os olhos no pó da sua humildade e ocoração nos píncaros da sua ambição. Quem só lhes vê os olhos, e lhes diz verdadeque amargue, arrisca-se a descair no conceito do autor, sem embargo dahumildade que ele mesmo confessou, e da justiça que pediu.Ora pois, eu atrevo-me a dizer à boa e sisuda crítica, que este prólogo não separece com esses prólogos. (ASSIS, 1997, p. 116).

Algo que chama a atenção do leitor imediatamente é o fato de Machado secolocar à disposição do julgamento crítico de maneira aberta, assumindo uma posiçãorespeitosa (sem deixar de ser um pouco impertinente) em relação à “boa e sisudacrítica”. Sua descrição dos prólogos comuns realça sua sinceridade ao revelar o quantoele quer se distanciar dos “arrebiques de dama elegante, que se vê ou se crê bonita”.Aliado a isso está a constatação da necessidade do envolvimento da crítica, demaneira benévola, porém “franca e justa” para o aprendizado do escritor.

Aplausos, quando os não fundamenta o mérito, afagam certamente o espírito e dãoalgum verniz de celebridade; mas quem tem vontade de aprender e quer fazeralguma coisa, prefere a lição que melhora ao ruído que lisonjeia. (ASSIS, 1997, p.116).2

Certo é dizer que Machado de Assis faz-se aqui com ares de aprendiz deromancista (de aprendiz humilde, mas ambicioso), pois não só a vontade de aprendero impulsiona como o desejo de “fazer alguma coisa” no campo literário. A afirmação doescritor sugere a visão do romancista iniciante sedento por realizar-se no gêneroromance, a despeito de já ser jornalista, poeta e contista de algum renome. Essa ideia

1 Machado denomina sempre seus prefácios como advertências.2 Questões relativas à forma “correta” de julgamento de uma obra estão expostas no artigo “O

ideal crítico” (1865), em que Machado postula com bastante lucidez sobre os quesitosnecessários à boa crítica. Entre eles se destaca o papel da crítica na fecundação da literaturabrasileira: “Estabelecei a crítica fecunda, e não a estéril, que nos aborrece e nos mata, que nãoreflete nem discute, que abate por capricho ou levanta por vaidade; estabelecei a críticapensadora, sincera, perseverante, elevada, - será esse o meio de reerguer os ânimos,promover os estímulos, guiar os estreantes, corrigir os talentos feitos; condenai o ódio, acamaradagem e a indiferença, - essas três chagas da crítica de hoje, - ponde em lugar deles, asinceridade, a solicitude e a justiça, - é só assim que teremos uma grande literatura.” (ASSIS,1997, p. 798).

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persiste em seu prefácio, acrescida de outros elementos vitais ao desejo deamadurecimento do autor: a reflexão e o estudo. Não falta a esse Machado aindajuvenil, iniciando-se na arte do romance, a consciência da dificuldade do laborartístico, especialmente quando este se associa de modo intrínseco ao estudo e àreflexão (própria do amadurecimento humano). Persistindo no exercício de sua sincerahumildade, Machado pontua seu prefácio na caracterização e distinção entre os“gênios, a quem a natureza deu o poder quase inconsciente das supremas audácias”, ea “lei das aptidões médias, a regra geral das inteligências mínimas”, (ASSIS, 1997, p.116) lugar onde se coloca ambicioso por alcançar (e merecer) posição mais elevada.Assim, ao mesmo tempo em que Machado pontua seu prefácio pela distância queguarda dos prólogos comuns, ele esbarra no limite que os diferencia, praticando, demaneira mais disfarçada e consciente, a tópica da modéstia. Isso pode ser visto nãocomo uma maneira enganosa de se insinuar ao leitor, mas tão somente como modousual de criar uma espécie de identificação com seu público, apelando para umaleitura justa e condizente com seus propósitos romanescos.

O prefácio de Ressurreição tem um caráter bastante explicativo (algo que seráabolido pelo autor na chamada fase madura), pois Machado faz questão de evidenciaro modo de construção de seu primeiro romance, chamando-o mesmo de “ensaio”.Ensaio de um tipo de romance que deseja realizar e tentativa de se expressar em umgênero novo para ele. Um dos motivos que o levaram a se arriscar neste “gêneronovo” é a benevolência com que leitores e crítica receberam Contos Fluminenses(1870), um volume com sete textos ficcionais de longa proporção que sãocaracterizados pelo autor como “contos e novelas”.

Não é sem razão que grande parte do pequeno prefácio de Ressurreição seestrutura em torno da apresentação do romance, observando seu processo deconstrução e a ideia que o originou: versos retirados da peça Medida por Medida, deShakespeare.

Minha ideia ao escrever este livro foi por em ação aquele pensamento deShakespeare:Our doubts are traitors,and make us lose the good of might win,by fearing to attempt.3

Não quis fazer romance de costumes; tentei o esboço de uma situação e contrastede dois caracteres; com esses simples elementos busquei o interesse do livro.(ASSIS, 1997, p. 116).

Mesmo que Machado de Assis não chegue a teorizar de maneira satisfatóriasobre seu modo de construção romanesco – apesar de ter deixado vários escritoscríticos, Machado nunca formulou explicações teóricas sobre sua obra4 –, fica evidente

3 O trecho corresponde à fala de Lúcio que interpela Isabel por duvidar de sua força em favor doirmão condenado à morte. A tradução próxima seria: “Nossas dúvidas são traidoras, /E fazem-nos perder o bem que poderíamos obter, /Por receio de o buscar.”

4 Ainda sim é possível especular sobre os anseios e a maneira como Machado entendia aliteratura, especialmente o romance, à medida que nos valemos de seus escritos críticos. Osensaios fundamentais, nesse sentido, são “Instinto de Nacionalidade”, “O ideal crítico”,

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que, aqui, ele dá alguns indícios de como pensava o gênero. Objetivando criar umromance que pusesse em ação o pensamento de Shakespeare por meio da oposição deduas personagens, a partir de uma dada situação (no caso, o compromisso amoroso),Machado parecia estar afirmando a importância da concepção da personagem para odirecionamento do enredo/conflito. Ou seja, ao construir seu casal protagonista nasfiguras do indeciso e frio Félix (personagem que encena o pensamento shakesperiano)e da resoluta e sentimental Lívia, Machado mostrava a força de ação da personagemna construção romanesca. Em muitas de suas histórias o interesse recaiessencialmente sobre os caracteres de suas figuras ficcionais e no modo como elas seconstroem ao longo de suas próprias trajetórias. Não por acaso, a estrutura deRessurreição (e de outros romances) se assemelha, guardadas as devidas proporções,à composição da “narrativa de formação”, já que explora o processo deamadurecimento emocional/intelectual das personagens, que é revelado a partir dainteração com outros códigos de conduta e experiências morais.5

Essa ênfase na personagem literária está também marcada nos textos críticosde Machado, dos quais o relativo ao romance de Eça de Queiroz, O Primo Basílio,ocupa posição de destaque. Na avaliação que o escritor faz do texto, ele centra suasnegativas em torno da concepção da principal personagem feminina, mostrando-aausente de qualquer “força moral”. Para o crítico Machado, “Luísa é um caráternegativo, e no meio da ação ideada pelo autor, é antes um títere do que uma pessoamoral. [...] não lhe peçam paixões nem remorsos; menos ainda consciência.” (ASSIS,1997, p. 905).6 Machado destaca a oposição existente entre “títere” e “pessoa moral”,afirmando a ineficácia de uma narrativa que escolhe modelar sua personagem a partirda primeira concepção, já que sugere a desvinculação entre ela e o leitor. Essaoposição marca sua crença na personagem individualizada por meio de valores esentimentos próprios, que ajudam a definir sua trajetória como indivíduo atuante natrama.

Opondo Ressurreição ao “romance de costumes”, e eximindo-se talvez de umainjusta crítica de seus leitores (seria isso uma espécie de justificativa diante o gosto deseu público?), Machado concebe algo que, desde já, será vital para os processos deconstrução de sua obra ficcional, o “romance de (análise) personagens” e daexploração psicológica destes. Em seu mais importante texto crítico, “Instinto deNacionalidade” (1873), escrito um ano depois do lançamento de Ressurreição, oescritor observa a dificuldade, entre nós, da construção do “romance puramente deanálise”, especialmente em detrimento ao frequente “romance de costumes”:

“Presente, passado e futuro da Literatura Brasileira”; e as críticas relativas às obras de Macedo,Alencar e Eça de Queiroz.

5 Karin Volobuef explica que o “romance de formação” foi uma das formas mais correntes doromance romântico, já que em seu cerne “está uma das preocupações-chave do romantismoalemão: a formação do indivíduo e o pleno desenvolvimento de suas faculdades”, sendo, pois, omotivo da viagem fundamental, na qualidade de promover “o encontro com pessoas diferentes,que lidam com a vida e encaram a arte de perspectivas diversas.” (VOLOBUEF, 1999, p. 43-47). Por esta simples e rápida conceituação, já fica claro que a narrativa machadiana refere-se,de certo modo, a essa estrutura, sem ceder integralmente a ela.

6 O texto crítico de Machado é de 1878.

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Aqui o romance, como tive ocasião de dizer busca sempre a cor local. A substância,não menos que os acessórios, reproduzem geralmente a vida brasileira em seusdiferentes aspectos e situações.[...]Não faltam a alguns de nossos romancistas qualidades de observação e de análise,e um estrangeiro não familiar com os nossos costumes achará muita páginainstrutiva. Do romance puramente de análise, raríssimo exemplar temos, ou porquea nossa índole não nos chama para aí, ou porque seja esta cesta de obras aindaincompatível com a nossa adolescência literária.O romance brasileiro recomenda-se especialmente pelos toques do sentimento,quadros da natureza e de costumes, e certa viveza de estilo mui adequada aoespirito do nosso povo.[...]Pelo que respeita à análise de paixões e caracteres são muito menos comuns osexemplos que podem satisfazer à crítica; alguns há, porém, de merecimentoincontestável. Esta é, na verdade, uma das partes mais difíceis do romance, e aomesmo tempo das mais superiores. Naturalmente exige da parte do escritor dotesnão vulgares de observação, que, ainda em literaturas mais adiantadas, não andama rodo nem são a partilha do maior número. (ASSIS, 1997, p. 804-805)

O trecho destinado ao exame do romance se constrói pela oposição, como se vê,entre o tipo mais explorado por nossos romancistas (“romance de costumes”) e omodelo menos utilizado e mais difícil do gênero, segundo Machado de Assis, aquele“puramente de análise das paixões e dos caracteres” – forma evidenciada no seuprimeiro “ensaio” romanesco, conforme nos informa seu prefácio. É singular que oescritor se preocupe com um tipo de romance que tentara construir um ano antes,mostrando que a questão já estava na ordem de seus pensamentos, mas tambémservindo como justificativa das falhas obtidas nesse processo de construção do texto,já que o gênero é difícil e pouco experimentado pelos escritores do momento. “Instintode Nacionalidade” prega ainda que o escritor pode e deve falar das coisas locais,porém dando-lhes um tom mais universal “que o torne homem de seu tempo e do seupaís, ainda que trate de assuntos remotos no tempo e no espaço”, (ASSIS, 1997, p.804) conferindo outra saída para a questão da nacionalidade literária brasileira do quea sugerida pela exploração da “cor local”.7 Pondo em ação, em Ressurreição, opensamento de Shakespeare, Machado dá universalidade às suas personagens, aindaque estejam localizadas no espaço social/temporal da capital do II Império Brasileiro.Nessa perspectiva, vemos que “Instinto de Nacionalidade”, escrito para dar “notíciasda atual literatura brasileira”, serve também como uma espécie de posfácio àRessurreição, pois mesmo sem se deter no romance, Machado de Assis o explica,destacando ainda suas diretrizes básicas para a formação/consolidação da literatura (edo romance) no Brasil.

É possível perceber que Ressurreição, a despeito de ser o ensaio de um“romance puramente de análise”, é construído principalmente a partir da concepçãodas personagens. Em um primeiro momento essa afirmação pode soar estranha, poissabemos que em sua fase madura Machado ascenderá como um dos maioresescritores de nossa língua justamente (mas não só por isso) por ser capaz de construire modificar a posição do narrador na prosa literária brasileira. Ao conceber narradores

7 Nessa linha de ideia ver Abel Barros Baptista e seu estudo sobre o ensaio “Instinto deNacionalidade” em A formação do Nome.

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dotados de altíssima complexidade, ele estaria relativizando a verdade de seus relatos,entendendo-os como atores sociais comprometidos com os valores e ideologias daclasse a qual pertencem. Mas independente de serem Bento Santiago, Brás Cubas ouAires exímios narradores, são também personagens, e é devido a suas experiênciascomo personagens que se fazem narradores – e narradores dessa qualidade: osnarradores nascem da experiência social e existencial da personagem. Nesse sentido,afirmar a importância da concepção do narrador no romance machadiano,especialmente o de primeira pessoa, é apontar também a força fundamental que essesseres têm como personagens.8

Em A estrutura do romance, Edwin Muir (1975) analisa a organização textualdos dois principais tipos de romances, o de personagens e de ação, observando que oprimeiro apresenta, por meio de situações típicas, personagens menos elaboradas, quesão apresentadas da mesma forma tanto no início quanto ao final da narrativa(“personagens planas” na expressão de Forster); enquanto que o segundo se estruturaa partir de uma série de situações inusitadas que tem por finalidade empreender açãoao romance, objetivando a construção de um enredo preciso (e por vezesrocambolesco), não se importando com a configuração das personagens – é a ação oque realmente preocupa o romancista. Segundo o crítico, essas duas estruturas (do“romance de ação” e do “romance de personagens”) darão origem ao “romancedramático”, um tipo mais complexo de texto ficcional, em que desaparece o hiatoentre personagem e ação. A fim de investigar melhor as personagens (e fazê-las agir)há uma limitação do círculo social. As personagens têm consequências, influenciam emacontecimentos, criam dificuldades e, em circunstâncias diferentes, as resolvem.

Observando essa explicação teórica a respeito da estrutura dos romances, épossível discutir a associação de Ressurreição ao “romance de personagens” eestendê-la às concepções dos romances “dramático” e “psicológico”, pontuando aimportância dessas duas formas na obra de Machado de Assis. É claro que a estruturavislumbrada no “romance dramático” por Muir diz muito a respeito da configuraçãoque Machado dá a Ressurreição, no qual as personagens evoluem timidamente, masnão são plenamente estáticas, pois sugerem, por meio de suas ações, reviravoltas noenredo e contradições em seus caracteres. Algumas delas como Félix, por exemplo,são dotadas de aspectos tão opostos (intensificando o conflito íntimo vivido pelapersonagem masculina) que se caracterizam exatamente pela fluidez, não sendopossível apreendê-la de todo – pelo menos não da forma que visualizamos aspersonagens estáticas.

Se por um lado, a concepção de Ressurreição a partir da oposição entrepersonagens esbarra muito na estrutura do “romance de personagens”, é preciso não

8 Além da personagem, o narrador será um ponto importante na composição de Ressurreição – edesses primeiros textos –, já que ele é responsável, em parte, pela apresentação das figurasmachadianas. As cenas descritivas, centradas especialmente na observação das personagens,captam, assim como o discurso narrativo que as emoldura, a essência do próprio narrador, quese vale, muitas vezes, de comentários irônicos e desconcertantes em relação aos fatosnarrados. As descrições presentes em Ressurreição se adéquam muitos mais à funcionalidadeda história do que às exigências do romance romântico, pois que estabelecem meios de levar oleitor a apreender os aspectos mais relevantes da escrita machadiana quanto à caracterizaçãode suas personagens e de seu narrador.

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se esquecer de que se refere ainda mais aos moldes do “romance psicológico”, poisevidenciar os seres ficcionais é uma forma de Machado de Assis explorar sua psique.De nada adiantaria ao escritor construir um romance a partir de suas personagenssem dar vazão ao movimento interno existente nelas – Machado estaria criando nadamais que “fantoches” ou “títeres” – e essa não é a intenção do autor. Por outro lado,essa concepção inaugural no romance machadiano por meio da construção depersonagens abre também possibilidades de entender Ressurreição como participanteda estrutura do “romance dramático” dado à equação “personagens + situação”proposta por Muir. De qualquer forma, ainda que não consigamos apreender aestrutura exata do primeiro romance de Machado, visto sua associação a diferentestipos – pelo menos em termos teóricos claros –, é certo afirmar que sua preocupaçãoestá intimamente ligada à construção da personagem e sua exploração psicológica,que sugere sempre a complexidade do ser humano e suas implicações sociais.

Essa importância na concepção das personagens se apresentará também demaneira marcante em seus contos, delineando retratos e perfis bem traçados ecomplexos, especialmente de mulheres e de seres dotados de estranheza. JoséGuilherme Merquior observa que, dentre os contos maduros de Machado de Assis,cerca de pelo menos trinta “podem ser rigorosamente classificados de estudos decaráter.”. (MERQUIOR, 1977, p. 174). A propósito da construção do conto em Machadode Assis, José Aderaldo Castello destaca este mesmo aspecto:

A arquitetura do conto machadiano, primeiramente, é apoiada no esquema de umasituação adequada à demonstração de caracteres esboçados. Fatos ouacontecimentos são assim configurados muito mais na dependência da análise doque em função de um esquema narrativo. (CASTELLO, 1969 p. 76).

A análise é acentuada por meio de confrontos e contrastes que ora aproximampersonagens, ora distanciam as ações e revelam do que são capazes moralmente.9

Essa ênfase no caráter, que foi grande marca dos primeiros textos e ideia central naconstrução de Ressurreição, teria sido uma maneira encontrada por Machado de Assisde se distanciar do modelo maniqueísta do Romantismo, especialmente dotando suaspersonagens de aspectos contraditórios e irregulares. É preciso observar que aoconceber personagens que se confrontam, Machado não as está apenas dotando deelementos positivos ou negativos, mas faz com que as situações se desenvolvam demodo a colocá-las em posições conflitantes. Isto é, suas personagens não são fixadasa partir de elementos únicos e estáticos (bondade, virtude ou maldade e vício, porexemplo), mas ao se confrontarem com outras deixam expostas novas característicasque se opõem, inscrevendo boa parte de seus seres de papel no território daambiguidade ou em seus limites próximos. Esse aspecto da prosa ficcionalmachadiana, ainda em sua fase inicial, o levará incondicionalmente a desenvolverpersonagens (e narradores) mais complexos, repletos de contradições e capazes desoluções narrativas bem menos evidentes. Se considerarmos apenas os romances

9 “Na verdade, o que ele procura, essencialmente, é acentuar a análise, por meio deaproximações, confrontos, contrastes, encontros harmoniosos, situações hipotéticas, e darênfase à conjuntura moral”. (CASTELLO, 1969, p. 76).

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machadianos podemos identificar que a base de construção destes é sempre “mostraro drama resultante da inter-relação de naturezas contrastantes”, conforme observouHelen Caldwell a respeito de Dom Casmurro. (CALDWELL, 2002, p. 31).10

Nesse sentido é que podemos eleger o prefácio de Ressurreição como umaespécie de paradigma de construção dos textos ficcionais de Machado (não só dosromances), já que o próprio autor destaca um aspecto é que marcante em suasintenções ficcionais. Em seu segundo romance, A mão e a luva (1874), essa mesmaestrutura volta a aparecer enfatizada também pelo escritor no prefácio da obra.

Advertência de 1874

Esta novela, sujeita às urgências da publicação diária, saiu das mãos do autorcapítulo a capítulo, sendo natural que a narração e o estilo padecessem com essemétodo de composição, um pouco fora dos hábitos do autor. Se a escrevera emoutras condições, dera-lhe desenvolvimento maior, e algum colorido mais aoscaracteres, que aí ficam esboçados. Convém dizer que o desenho de taiscaracteres, - o de Guiomar, sobretudo, - foi o meu objeto principal, se nãoexclusivo, servindo-me a ação apenas de tela em que lancei os contornos dosperfis. Incompletos, embora, terão eles saído naturais e verdadeiros?Mas talvez estou eu a dar proporções muito graves a uma cousa de tão pequenotomo. O que aí vai são umas poucas páginas que o leitor esgotará de um trago, seelas lhe aguçarem a curiosidade, ou se lhe sobrar alguma hora que absolutamentenão possa empregar em outra coisa, - mais bela ou mais útil.Novembro de 1874.

M. De A.(ASSIS, 1997, p. 198).

Este prefácio revela aspectos que enfatizam o método de construção do textomachadiano – pelo menos até o presente ano de 1874 – e servem, ao mesmo tempo,de complemento à advertência de Ressurreição. Algo que se destaca de imediato édistinção quanto à maneira de composição e veiculação dos dois romances: enquantoA mão e a luva sai capítulo por capítulo, em forma de romance-folhetim no Globo;Ressurreição, ao contrário de alguns romances da época e de alguns escritosposteriormente por Machado, não é publicado em fatias, mas impresso como romancepronto e acabado; sendo, pois, de confecção distinta da experiência anterior do autorem Contos Fluminenses (1870), todas as narrativas, com exceção de “Miss Dollar”,advindas das páginas do Jornal das Famílias (abril de 1865 a janeiro de 1869). Se oprocesso de composição da obra diz respeito ao escritor, refere-se também à figuraanônima do leitor, modificando sua apreensão do conteúdo e da forma do escrito:

10 Este mesmo princípio está no cerne da construção das personagens principais em Helena(Helena e Estácio/Estácio e o Conselheiro Vale/Eugênia e Helena/Camargo e Estácio) e em IaiáGarcia (Estela e Jorge/Jorge e Valéria/Estela e Antunes/Iaiá e Estela/Luís Garcia e Antunes).Todas essas oposições se afirmam continuadamente, assemelhando as personagens em algunsaspectos e se distanciando em outros. Dessa forma torna-se difícil conferir alguma polaridade(positivo ou negativo) às personagens. Mas é na segunda fase machadiana que este confrontoentre naturezas contrastantes, especialmente encenado no campo amoroso, será maismarcante e complexo. As leituras de Helen Caldwell (2002), John Gledson (1991) e RobertoSchwarz (1997) são algumas que destacam a oposição entre os caracteres de Bentinho eCapitu. Essa mesma estrutura se converterá em esquema básico de construção de personagensem Esaú e Jacó, em que a oposição constante dos gêmeos Pedro e Paulo é levada às últimasconsequências pelo autor como forma de ressaltar a similaridade entre ambos.

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Uma coisa é ler [ou escrever, poderíamos inserir] um romance aos pedaços, comintervalos determinados pelo órgão de divulgação e a inserção diária deexperiências alheias ao mundo ficcional; oportunidade muito diferente oferece olivro cuidadosamente impresso, facultada a possibilidade de avançar, recuar, anotare refletir. (SCHÜLER. 1989, p. 58).

Pensar o romance como modelo acabado e assim estruturado por Machado deAssis é principalmente observar a ausência de diálogo com seu leitor – o quepossivelmente ocorria com os textos escritos para os jornais e revistas da época.11

Esse método, certamente, interfere no trabalho do escritor (assim como no dedecifração e entendimento do leitor) que teria espaço e tempo suficientes paraestruturar adequadamente seu texto, dando melhor acabamento e coerência interna.Essa distinção salientada pelo próprio escritor pode ser vista como maneira de sedesculpar pelo resultado final do romance, mas mostra também que o método aplicadoa Ressurreição é bem mais favorável ao romancista iniciante. A “urgência dapublicação diária” atrapalharia “o método de composição” do romance, gênero aindanovo para ele.

É preciso reconhecer que Machado sabe avaliar bem os defeitos de sua obra eacerta ao direcionar parte da culpa, quanto à composição do romance, ao métodofolhetinesco. Se há defeitos de composição em A mão e a luva, especialmente noscaracteres apressados das personagens, conforme avalia o autor, eles são frutos deseu próprio processo de composição. Assim, o escritor parece estar se isentando dosproblemas advindos da obra; entretanto, essa explicação é absolutamente importantepara compreendermos sua dificuldade em lidar com este “gênero novo”, tão indomável(e aglutinador) como o romance.

Ainda que uma avaliação crítica de A mão e a luva não possa ser feita semressaltarmos seus problemas de composição, é justo afirmar que este romance,baseado também no princípio do confronto entre caracteres, esboça com clareza enaturalidade uma situação semelhante à Ressurreição. Guiomar é a personagem emrelevância que se oporá a seus pretendentes, cada qual composto de elementospositivos e negativos, mas todos contrastantes com o caráter geral e os desejos damoça. Estevão é governado apenas pelo sentimento e tem sonhos de amorcompletamente idealizados – é uma personagem absurdamente romântica e, portanto,inadequada.12 Jorge, sobrinho da Baronesa, age apenas guiado pela razão, observandoas vantagens econômicas e sociais de um casamento com a afilhada (e “filha postiça”)

11 A experiência ocorrida com o conto “Confissões de uma viúva moça” pode revelar, em parte, aparticipação do leitor nos escritos publicados em formato folhetim. Apesar da suspeita da críticade que o leitor “caturra” que enxovalha o conto seja o próprio Machado numa atitudepublicitária, é interessante pensar até que ponto poderia ter havido uma mudança de tom e decomposição no final moralizador dado ao texto.

12 O que não significa que Machado estivesse em acordo com a tópica romântica. Um exemplobastante claro do questionamento machadiano dos modelos românticos ocorre em A mão e aluva, em que a construção idealista e fatalista de Estevão contribuía para uma espécie deconscientização do leitor da debilidade emocional/narrativa da personagem. A cena de aberturado romance não deixava dúvida em relação à crítica: leitor do insucesso amoroso de Werther eda poesia de Byron, Estevão concebe a morte como saída única para o fim do drama amorosoexistente apenas em suas ilusões. As palavras do narrador, no início do romance, marcavambem o tom de ironia e descaso dado à personagem inadequada às páginas de um romance queversava sobre as ambições (sociais e políticas) de um jovem casal.

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da tia. Será o equilíbrio entre o sentimento (afinidades de eleição) e a razão (desejosde ambição) que governará a escolha de Guiomar para Luís Alves, seu homem e parideal. Talvez, essa seja a solução encontrada por Machado para enriquecer suaspersonagens, especialmente as femininas. Se em Ressurreição a personagem centralera masculina e dotada de um descompasso grande entre estes dois polos opositores(razão e sentimento); agora o romance se constrói em torno da personagem mulher,esboçando uma constante na obra machadiana, já marcada em seus primeiros textos:a importância crescente das personagens femininas, especialmente daquelas dotadasdo senso prático de Guiomar.

Os prefácios das outras obras escritas por Machado de Assis na década de 1870servem como uma espécie de amostragem dos conteúdos e formas exploradas emseus textos introdutórios. Porém, não há nenhum texto tão esclarecedor em relaçãoaos aspectos de construção como o de Ressurreição. No prefácio de Helena (editadopela primeira vez em 1876, em formato de romance-folhetim no Globo), o autor fazuma autocrítica e ao mesmo tempo se justifica, apelando para o amadurecimento doartista e o envelhecimento da obra e, claro, para a complacência de seu leitor.

Esta nova edição de Helena sai com várias emendas de linguagem e outras, quenão alteram a feição do livro. Ele é o mesmo da data em que o compus e imprimi,diverso do que o tempo me fez depois, correspondendo assim ao capítulo dahistória do meu espírito naquele ano de 1876.Não me culpeis pelo que lhe achardes romanesco. Dos que então fiz, este me eraparticularmente prezado. Agora mesmo, que há tanto me fui a outras e diferentepáginas, ouço um eco remoto ao reler estas, eco de mocidade e fé ingênua. É claroque, em nenhum caso, lhes tiraria a feição passada; cada obra pertence a seutempo.

M. DE A.(ASSIS, 1997, p. 272).

Fica sugerido que Machado entendia (e concordava) com a divisão que a críticafez vigorar em relação à sua prosa ficcional, relacionando Helena à sua fase“romântica”, dado o caráter excessivamente romanesco do livro. É importante notarque o escritor, apesar de reconhecer os problemas de sua obra – mas não evidenciá-los –, guarda especial predileção por ela e em nenhum momento a nega. O queMachado faz para suavizar a crítica é reportar o livro à primeira fase de sua carreiraliterária, dando-lhe importância expressiva para o seu amadurecimento literário. Algosemelhante ocorrerá em relação à Ressurreição, que editado novamente no ano 1905,traz nova advertência:

Esse foi o meu primeiro romance, escrito aí se vão muitos anos. dado em novaedição, não lhe altero a composição nem o estilo, apenas troco dois ou trêsvocábulos, e faço tais ou quais correções de ortografia. Como outros que vieremdepois, e alguns contos e novelas de então, pertence à primeira fase de minha vidaliterária.

M. de A.1905.

(ASSIS, 1997, p. 116).

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Aqui, Machado evidencia a crença de que os romances de sua primeira faseforam importantes para o seu crescimento como escritor, justificando sua obra e,implicitamente, exigindo de seu público certa benevolência. O que chama a atenção naleitura desses prefácios é o caráter humilde do autor e o modo sutil como justifica ospequenos problemas de sua obra, apresentando Ressurreição como um “ensaio” deromance psicológico; A mão e a luva semelhante aos métodos empregados naconstrução das personagens de seu primeiro romance; Helena e a reedição deRessurreição como representantes dignos e legítimos de sua primeira fase literária.

O prefácio que introduz sua segunda coletânea de contos, Histórias da meianoite (1873), guarda duas importantes informações; uma relacionada à própriacomposição do volume, outra, à maneira de Machado lidar com sua crítica e público.

Advertência

Vão aqui reunidas algumas narrativas, escritas ao correr da pena, sem outrapretensão que não seja a de ocupar alguma sobra do precioso tempo do leitor. Nãodigo com isto que o gênero seja menos digno de atenção dele, nem que deixe deexigir predicados de observação e de estilo. O que digo é que estas páginas,reunidas por um editor benévolo, são as mais desambiciosas do mundo.Aproveito a ocasião que se me oferece para agradecer à crítica e ao público agenerosidade com que receberam o meu primeiro romance, há tempos dado à luz.Trabalhos de gênero diverso me impediram até agora de concluir outro, queaparecerá a seu tempo.

10 de novembro de 1873.M. A.

(ASSIS, 1997, p. 160).

Novamente, vemos repetidas as expressões de humildade (“páginasdesambiciosas”, “editor benévolo”, “agradecer à crítica e ao público”) e de atençãorespeitosa aos seus leitores, ao mesmo tempo em que propagandeia seu próximoromance. A tentativa contraditória de explicar e anunciar o volume de contos mostraum escritor tomado de cuidados ao se dirigir ao público, pontuando sua obra por ummisto de entretenimento e seriedade. Machado toma o devido cuidado para nãoafastar do âmbito de seus leitores “gente frívola” (devota sincera da leitura comodistração) e “gente grave” (expressão da leitura como reflexão) como classificaria anosdepois o defunto-autor Brás Cubas. Alguns pressupostos estão sempre presentes nosprefácios iniciais de Machado: a insistente apologia da humildade sincera;agradecimentos ao público e à crítica e a tentativa (às vezes frustrada) de explicar acomposição do volume, seja ele representado por vários textos ou por um único – esseaspecto se tornará índice de ambiguidade e ironia nos prefácios dos seus demaisvolumes de contos.

O prefácio de Ressurreição, paradigmático nesse sentido, é construído tendo emvista essas premissas básicas, além de comportar outros elementos de sumaimportância: mostrar o entendimento que Machado fazia da arte literária e de suaideia de aperfeiçoamento estético por meio do estudo reflexivo; e apresentar demaneira explicativa os procedimentos de construção de seu primeiro romance –procedimentos que dizem respeito às estruturas dos “romances de personagem edramático” e que servirão à concretização do “romance psicológico” na ficçãobrasileira.

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Do mesmo modo que os contos iniciais, Ressurreição é o romance menoscontemplado pela crítica machadiana, talvez porque os estudos de Lúcia Miguel-Pereira(1949) e de Roberto Schwarz (1977) tenham direcionado o interesse da crítica para a“trilogia do paternalismo” ou “ciclo da ambição”, que compreende os romances A mãoe a luva (1874), Helena (1876) e Iaiá Garcia (1878). Nesses livros, a figura paterna (epatriarcal) era propositadamente retirada de cena pelo autor para fazer “falar” a esferada subordinação, conforme identificou Schwarz.13 Ressurreição, ao contrário dosoutros romances da fase inicial, não explora os desajustes vindos desse modo deorganização social brasileiro; quando muito, esboça contornos ainda tímidos da figuraparasitária machadiana, dependente, no romance, dos assomos da irmã rica.

Os comentários críticos a respeito de Ressurreição esbarram em generalizações(e cobranças) de ordem moral e referentes à necessidade da cor local – importantespara a primeira geração de críticos do romance14 – e em aspectos modernos, taiscomo a divergência da prática do “romance de costumes”, tão comum ao RomantismoBrasileiro,15 e sua quase nulidade de enredo, contrária ao “romance de ação”, já queRessurreição se constrói a partir das “vacilações” do protagonista Félix. Entretanto,não faltou quem avaliasse de maneira bastante negativa essa primeira experiênciamachadiana no gênero, ressaltando a falta de importância do romance para atrajetória do escritor. Os comentários de Lúcia Miguel-Pereira resumem bem adepreciação do livro mediante sua associação ao romantismo:

Em prosa, não fez, de início, o que fizera em poesia; não rejeitou deliberadamenteas escolas literárias. Ao contrário, procurou enquadrar-se dentro do romantismo. Ecom isso conseguiu fazer três livros quase inteiramente maus. [ContosFluminenses, Ressurreição e Histórias da Meia Noite]. [...] Os dois livros de contospouco valem e talvez sempre valham mais do que o romance. (MIGUEL-PEREIRA,1949, p, 101-102).16

13 A respeito do romance Helena, essa “fala” ganha a designação de “diálogo político dosdependentes” na análise criteriosa que Sidney Chalhoub faz do romance. CHALHOUB, 1998, p.95-122.

14 Para análise de alguns comentários críticos quando da publicação do livro, consultarGUIMARÃES, 2004, p. 296-319.

15 “Ressurreição, embora fraco, tecido de incidentes tirados ao ambiente do RomantismoEuropeu, é uma curiosa tentativa de romance psicológico. Deslocando o interesse doacontecimento objetivo para o estudo dos caracteres, essa novela aparecia em uma linhadiferente e conserva para nós um indiscutível ar de modernidade.” (BARRETO FILHO, 1969, p.140). “... o repúdio ao “romance de costumes” esconde, com a sutileza que será marcaregistrada do autor, a desestima pela narração romântica tradicional; e a opção pelo „esboçode uma simples situação e contraste de dous caracteres‟, além de sublinhar a recusa doromance de intriga, que ainda seduzia as leitoras do tempo, aponta, na ênfase sobre oscaracteres, a via do psicologismo, trilha autônoma e fecunda de sua obra.” (MOISÉS, 1983, p.92). “Ressurreição apresenta mesmo uma estrutura arrojada para a literatura da época.Semelhante arrojo consiste na sondagem íntima de um casal de noivos, sem o suporte factualde uma ação externa cativante.” (TEIXEIRA, 1988, p. 15).

16 Antonio Dimas discorda do parecer negativo de Lúcia Miguel-Pereira, reforçando a importânciado livro: “Dizer que Ressurreição é romance menor de Machado é não perceber a vigorosavocação do romancista para o desenho de personagens ambíguas e escorregadias, que tudoignoram sobre si mesmas e não sabem nem mesmo do que são capazes e incapazes.” (DIMAS,1983, p. 7).

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A despeito dessas questões relativas ao gênero romance na obra machadiana ea seu julgamento crítico, podemos evidenciar, certamente, que uma preocupaçãomarcante do autor refere-se à construção das personagens. Não só os prefácios deRessurreição e A mão e a luva postulam isso, mas a própria crítica tem afirmado aquestão. Já em seus textos iniciais publicados no Jornal das Famílias, Machado, aindasem modelos próprios definidos, o escritor começa a esboçar pequenos estudos decaráter. É claro que grande parte dessas criações ficcionais guarda aspectosdemasiadamente estereotipados dos modelos excessivamente românticos, mas nempor isso deixam de antever elementos e circunstâncias de interesse do autor. É dessaforma que pode ser lida e examinada grande parte da obra ficcional produzida porMachado nos anos de 1870.

Contos Fluminenses parece servir, de certo modo, de exercício literário aosprimeiros romances do escritor. Não só algumas situações narrativas se repetem,como as personagens sugerem sempre algo similar ou contrário de outras, denotandoum esboço a ser estudado e devidamente elaborado pelo autor. O método decomposição explicado no prefácio introdutório de Ressurreição a respeito de seuprimeiro romance é também aplicado à construção dos seus contos iniciais. É por issoque uma leitura detida do prefácio pode indicar não só os detalhes dessas primeirascomposições, como marcar um método seguido pelo autor ao longo de sua vidaliterária: a caracterização opositiva das personagens.

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Title: The prefaces of the novels and the initial composition method of Machado deAssis

Abstract: This article argues the importance of the introductory texts for theunderstanding of the ficcional work of Machado de Assis, detaching the preface of hisfirst novel, Ressurreição, of 1872. In it, the writer points its method of ficcionalconstruction based on the characterization and opposition of the characters from someverses of Shakespeare.

Keywords: Preface. Novel. Composition. Character. Opposition.

Recebido em: 23/12/2012. Aceito em 17/06/2013.

Crítica Cultural (Critic), Palhoça, SC, v. 8, n. 1, p. 97-114, jan./jun. 2013

“Let the madness... begin!”: a dialéticaentre a razão e a sanidade no culto à

personalidade do cantor Ozzy Osbourne.

Flavio Pereira Senra∗

Resumo: O presente artigo tem como objetivo analisar a construção do discursoestético do cantor britânico Ozzy Osbourne, tendo como foco as estratégias utilizadaspara compor sua imagem de madman do heavy metal. Através da análise de letras decanções, entrevistas, episódios biográficos e fotos promocionais, evidencia-se oemprego de elementos pertencentes ao plano terrestre/humano na formação daimagem do artista pública como uma celebridade a ser cultuada. Dentre estes,constam o caráter limitado/insciente do ser humano “comum”, bem como o espectroda insanidade. Todavia, percebe-se que esses mesmos elementos, ainda queevidenciem um caráter “meramente mortal” da celebridade fomentam o culto àpersonalidade do artista, e se tornam traços fundamentais da construção de seudiscurso estético/imagético/identitário.

Palavras-chave: Pós-Modernidade. Cultura de Massas. Heavy Metal. Culto àCelebridade. Insanidade.

As celebridades feitas de metal

Sendo o heavy metal um dos muitos produtos da indústria fonográfica da Pós-Modernidade, seria esperável que ele servisse como terreno profícuo para aefervescência de um processo recorrente a diversos outros gêneros musicais dacultura popular: o da formação das chamadas celebridades e as dinâmicascomunicacionais que estas instituem com seus admiradores. A análise deste processose mostra relevante no contexto das construções identitárias dentro dos parâmetrosestéticos do heavy metal.

O termo “celebridade” indica, grosso modo, o indivíduo que se tornou “célebre”,ou, usando um termo simples, “famoso”. Todavia, deve-se problematizar a questão,trazendo à tona o que, afinal, constitui uma celebridade. Originalmente, um indivíduoganharia notoriedade demonstrando algum talento, algum saber que o tornasse dignode destaque. É neste momento que, envolto em uma aura de ordem olimpiana,empregando os termos de Edgar Morin (MORIN, 1986), um ser distingue-se dosdemais mortais, transformando-se em elemento que não mais integra um coletivo,

∗ Doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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uma massa composta por seres ordinários, mas sim alguém que ascendeu, alcançandoeste “Olimpo da grande mídia”, tendo sua individualidade como modelo a ser seguidopelos demais mortais.

Ainda que ressaltar um caráter divino das celebridades postule estar em umpatamar de idealização e superioridade, o que se testemunha na grande mídia doséculo XX é uma exposição dessas figuras públicas que realça não apenas o que asdiferenciam dos demais, mas também o que as assemelham ao “homem comum”. Aocontrário do que poderia parecer, realçar um aspecto humano, mesmo um de cunhovergonhoso – como escândalos envolvendo alguma figura pública – não promove umafastamento entre o ídolo e seus seguidores, mas sim reforça os elos entre eles. Talconcepção dupla da imagem desses ídolos como, simultaneamente, deuses e mortais,permite que a comunicabilidade entre eles e seus fãs seja solidificada, pois dessamaneira o admirador pode reconhecer-se no ídolo, em especial em suas origens, seupassado, de forma que possa até mesmo nutrir esperanças de ser como ele numfuturo, de ascender ao Olimpo midiático. Dessa forma, fatos de todo o tipo ligados àvida íntima dessa celebridade (e não à suas atividades profissionais), são elevadospela grande mídia ao estatuto de acontecimento de ordem histórica (Ibidem: p.51).

A maneira como a publicidade veicula e trabalha informações relacionados adeterminadas celebridades é determinante já que todos eles são componentes dessagrande narrativa mitológica pós-moderna que é personificada no indivíduo envolto naaura da fama. Uma celebridade pode representar o expoente máximo de um modusvivendi desejável por todos os membros de determinadas comunidades. Dependendodo caso, acontecimentos da vida íntima de celebridades que originalmente carregariamuma carga social negativa – como agressões públicas, vandalismos, bebedeiras ou atéoverdose – podem ser utilizados como alguns dos alicerces da construção desse entemidiático, moldando sua figura identitária e o imaginário que ela traz inerente consigo.

A trajetória do heavy metal na história do meio fonográfico mostra que o estilose tornou mister nessa inversão de valores sociais, onde o ato “condenável” pode servisto como “ousado”, “desafiador”, “libertário”. Sob essa leitura, excessos da vidaíntima de um determinado artista podem ser utilizados como ferramentas que,associadas com sua música, veiculam uma ideia de poder dessa celebridade,constituindo-se, dessa forma, as bases de um verdadeiro culto à sua imagem. É o casodo cantor Ozzy Osbourne, o madman do heavy metal.

Nascido em 1948 na cidade inglesa de Birminghan, John Michael Osbournecomeçou sua carreira musical em 1970 com a lendária banda Black Sabbath, lançandono mesmo ano o homônimo primeiro disco. Em carreira solo desde 1979, Ozzy é umexemplo de artista que construiu sua fama não apenas com suas composiçõesmusicais, mas também com todo um intrincado trabalho acerca de sua imagem. Aolongo de sua carreira, o artista estabeleceu para si a imagem de “homem louco”através de um complexo discurso imagético composto por sua música, suasperformances de palco, as capas de seus discos, imagens promocionais, entrevistas eepisódios de natureza vexatória, degradante ou até criminosa os quais, muitas dasvezes de forma proposital, foram aproveitados pelo madman para alimentar seu“marketing da insanidade”.

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Inicialmente, para abordar os elementos do plano terreno que integram acaracterização olimpiana de Ozzy Osbourne, reproduz-se um excerto de “Hero”:

I don´t wanna be your hero Não quero ser seu heróiI don´t wanna ever let you down Não quero te desapontarNo, I don´t wanna let you down. Não, não quero te desapontarI could try to take you higher Eu poderia tentar te erguerBut I don´t want to wear a Mas não quero usar umabroken crown coroa partidaYou know it brings me down Você sabe que isso me entristece

(OSBOURNE, 1988, p. 9)

A imagem do herói remete diretamente a um campo semântico de elementospertencentes a uma esfera mais elevada que a dos demais seres. Na Grécia antiga,essa ideia é construída com base nos conceitos areté e timé, sendo aquela referente àcapacidade de alguém de ser o mais notável; enquanto esta está conectada ao sensode honra e moral do indivíduo. No caso da canção “Hero”, tem-se uma preocupaçãopor parte do eu-lírico de afastar-se desse ideal, estabelecendo uma interlocução comseu(s) receptore(s) de forma a persuadi-los de que ele não é o herói que eles buscamou que eles acreditam que ele seja (“não quero te desapontar”). Assumindo suacondição de absoluta imperfeição, o sujeito presente na canção afirma que nãogostaria de usar uma “coroa partida”, ou seja, de assumir a imagem de um reiesvaziado de todas as suas capacidades e vocações monárquicas. Tal forma deconstrução identitária caminha na contramão de toda a idealização feita em torno dafigura de Ozzy Osbourne enquanto celebridade que “reina”1 dentro do cenário heavymetal.

Essa indisposição para qualquer forma de liderança afasta o eu-lírico da aura deheroísmo, contudo, curiosamente, é um dos elementos que o aproximam do manto dacelebridade. O herói é aquele que crê estar imerso em uma missão pelo bem-estarsocial, que vive pelos outros, enquanto a celebridade define-se muito mais através deuma construção de ordem narcísica que opera às avessas, um egocentrismo que podesustentar-se tanto nas formas desse sujeito demonstrar seu poder quanto suaspróprias falhas, como no caso “Hero”. Sobre isso, afirma Edgar Morin:

Um Olimpo de vedetes domina a cultura de massas, mas se comunica pela culturade massas com a humanidade corrente. Os olimpianos, por meio de sua duplanatureza, divina e humana, efetuam a circulação permanente entre o mundo daprojeção e o mundo da identificação. [...] Eles realizam os fantasmas que osmortais não podem realizar, mas chamam os mortais para realizar o imaginário.(MORIN, 1986, p. 53)

1 Não é exagero falar desse “reinado” de Ozzy Osbourne se for levado em conta que, sendo umdos membros-fundadores do Black Sabbath (banda considerada por muitos como o grupo “pai”de todo o Heavy Metal), é recorrente na mídia especializada em geral a associação do músico auma espécie de “panteão sagrado” dos primórdios da música pesada. Essa questão “deorigem”, somada à projeção da imagem do cantor no decorrer de sua carreira solo, solidificou onome de Ozzy Osbourne como uma figura paternal do universo cultural do heavy metal, sendoreverenciado como uma “institution of metal” (NYROCK, 2002) ou “The Godfather of heavymetal” (Ibidem).

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Ao longo de sua carreira, Ozzy Osbourne sempre fez questão de afirmar emdiversas entrevistas (bem como em sua autobiografia oficial) o quanto sua vidapessoal foi marcada por circunstâncias das mais adversas desde a infância. Tendocrescido em Aston, em Birminghan, localidade predominantemente habitada pelaclasse operária, o jovem John Michael Osbourne chegou a envolver-se com acriminalidade:

“O crime veio naturalmente para mim. Eu até tinha um cúmplice, um garoto deminha rua chamado Patrick Murphy[...]. Começamos roubando maçãs. Não asvendíamos, apenas queríamos comer as malditas porque passávamos fome.[...]Depois das maçãs passamos a assaltar parquímetros2. Depois começamos a roubarroupas em lojas de departamento. Meus pais tinham seis filhos e pouca grana, e sevocê está nessa situação desesperada você faz de tudo para garantir a próximarefeição. Não sinto orgulho disso, não sou desses caras que diz que ´ah, estou bemagora, cheio da grana, vou esquecer de meu passado´. É o que fez de mim quemeu sou.” (OSBOURNE, 2009, p.11)

Ao revisitar constantemente seu passado de pobreza Ozzy Osbourne constróipara si mesmo um status de celebridade que possui e reafirma elementos de uma vida“não-célebre” – no exemplo em discussão, pertencentes ao seio marginal. E como dizo próprio artista, são experiências que foram cruciais na composição de suapersonalidade (“É o que fez de mim quem eu sou”). Ao trazer à sua vida pública umasérie de narrativas que remetem a um passado de sacrifícios e obstáculos dos maisadversos, a celebridade constrói para si mesma a imagem de um ser humanometamorfoseado em ícone a ser admirado. Trata-se da “dupla-natureza” a que serefere Edgar Morin (MORIN, 1986), concomitantemente sobre-humana em suaexposição pública e humana em sua esfera íntima. Ozzy Osbourne é um exemplodesse tipo de construção midiática, tendo em vista que, tudo que vem à tona arespeito de sua vida privada, tanto a passada quanto a presente, apresenta umhomem que teve todas as condições necessárias para ser apenas mais um elementoantissocial ou, popularmente falando, um “zé ninguém”.

Contudo, ao contrário do que poderia-se imaginar numa primeira instância, aexposição desse caráter tão humano da celebridade olimpiana não promove umadesconstrução desta. Em verdade, funciona como um instrumento de solidificação dasconexões existentes entre o ícone e seu público, já que este pode estabelecer umaidentificação mais sólida e palpável com o ídolo, sentir suas fantasias mais distantesrealizadas nele e até mesmo, através de sua adoração, ter a esfera do “divino”penetrando em sua existência “comum”. Dessa forma, “conjugando a vida cotidiana ea vida olimpiana, os olimpianos se tornam modelos de cultura” (Ibidem, p.107).

Deve-se destacar que, no caso de Ozzy Osbourne, seus aspectos não-midiáticossempre estiveram vinculados a uma esfera de sofrimento e de conflito interno. Tantosua música quanto seus dados biográficos constroem a imagem de um ser em

2 A título de contextualização, deve-se ressaltar que os parking-meters ingleses são aparelhosonde algumas moedas são depositadas para que um motorista tenha o direito de estacionar ocarro ao seu lado. Há vários desses espalhados pelas ruas. Nesse ponto eles diferem da versãobrasileira deste mecanismo, que apenas emitem recibos e não coletam quantias de dinheiro,além de não existirem nas vias públicas nacionais.

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constante estranhamento com o mundo. De acordo com o próprio músico, desde suainfância essa sensação de inadequação já se fazia presente, principalmente no meioescolar:

Eu não conseguia ler apropriadamente, então eu não conseguia obter boas notas.Nada fixava em minha mente e não conseguia compreender por que meu cérebroera uma porra de um pedaço inútil de geleia. Eu olhava para uma página em umlivro e parecia que eu estava tentando ler chinês. [...] Eu me sentia como se fosseum perdedor nato. Só foi pelos meus trinta anos que descobri a respeito de minhadislexia e meu transtorno de déficit de atenção com hiperatividade. Ninguém sabianada a respeito dessa merda naquela época. (OSBOURNE, 2009, p.13)

Dentre os atributos de Ozzy Osbourne não-pertencentes originalmente a umuniverso “heróico”, alguns dos mais característicos são aqueles associados ao camposemântico da loucura. Declarações como a supracitada, aliadas a diversos episódios desua vida pessoal, servem como legitimação de uma condição psíquica instável, taxadaconvencionalmente como “insana”. O signo da loucura marca a imagem de OzzyOsbourne, a ponto de ele ter como um de seus mais famigerados epítetos a palavra“madman” (“louco”). Vê-se no álbum Diary of a Madman o primeiro emprego destesob um viés antonomástico. A faixa-título se mostra apropriada para essa discussão:

Diary of a Madman Diário de um loucoScreaming at the window Gritando na janelaWatch me die another day Veja-me morrer mais um diaHopeless situation Situação desesperançosaEndless price I have to pay Preço sem fim que devo pagar

Sanity now it’s beyond me A sanidade agora está além de mimThere’s no choice Não há escolha

Diary of a madman Diário de um loucoWalk the line again today Ando na linha novamente hojeEntries of confusion Registros de confusãoDear diary, I’m here to stay Querido diário, estou aqui para ficar

Manic depression befriends me A bipolaridade me traiHear his voice Ouço a voz deleSanity now it’s beyond me A sanidade agora está além de mimThere’s no choice Não há escolha

A sickened mind and spirit Uma mente e espírito doentesThe mirror tells me lies O espelho me conta mentirasCould I mistake myself for someone Poderia eu me confundir com alguémWho lives behind my eyes? Que vive atrás de meus olhos?Will he escape my soul Ele escapará de minha almaOr will he live in me? Ou viverá em mim?Is he trying to get out Ele está tentanto sairOr trying to enter me? Ou tentando entrar em mim?

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Voices in the darkness Vozes nas trevasScream away my mental health Afugentam minha saúde mentalCan I ask a question Posso fazer uma perguntaTo help me save me from myself? Para ajudar a me salvar de mim mesmo?

Enemies fill up the pages Inimigos enchem as páginasAre they me? Eles são eu?Monday ‘till Sunday in stages De segunda a domingo nos palcosSet me free Me liberta

(OZZY OSBOURNE, 1981, p. 8)

Pode-se encontrar na referida canção uma relação dicotômica do eu-lírico com aideia da loucura. Esta é um elemento perturbador para aquele, uma condição desofrimento simbolicamente análoga à própria morte (“veja-me morrer mais um dia”).A loucura é caracterizada como uma espécie de triste fardo, um “preço sem fim” quedeve ser pago. Entretanto, da mesma maneira que a concepção da insanidade éencarada sob um viés negativo, ela é aceita como uma parte inerente dessepersonagem da canção imerso em conflito. Mais do que isso, ele a caracteriza comoseu inevitável destino: “A sanidade agora está além de mim/ não há escolha”. Sabe-seque o vocábulo “Diário” implica o registro de atividades rotineiras (diárias, comosugere o nome). Ou seja, há nesta canção a compreensão e a aceitação de umacondição patológica enquanto parte da vivência cotidiana, mesmo com os (duros)conflitos que esta carrega consigo.

O uso da palavra “diário” não se limita ao título da canção, mas se estende aoemprego de termos pertencentes ao mesmo campo semântico. É o que se vê em“Ando na linha novamente hoje”, onde um curioso jogo semântico é construído. Aexpressão “andar na linha” significa, exatamente, seguir as regras, adotar ocomportamento esperado para todo um ente coletivo – em outras palavras, sernormal. Todavia, a palavra “linha” também designa a linha de um caderno ou de livrode registros (como um diário), onde se escreve. Logo, “andar na linha” nesse contextocarrega consigo uma conotação diametralmente oposta de seu sentido original, pois“andar na linha” de um “diário de um louco” significa seguir não um padrãoconsiderado ordeiro pelos demais, mas sim desordeiro e conflitivo, repleto de“registros de confusão”3.

Ainda sobre essa estrofe, pode ser percebida a menção explícita do interlocutordo eu-lírico: o próprio Diário. A caracterização prosopopeica de um objeto inanimado édeterminante para a imagem construída ao longo da letra, pois eleva um livro deregistros ao patamar de um ser que ouve e guarda as perturbações mais aflitivas doeu-lírico. Tal construção se faz perceptível no emprego conativo do adjetivo “querido”,recurso estilístico que indica uma evidente afetividade e proximidade entre o emissor eseu receptor. Além disso, pode-se identificar no mesmo verso uma aceitação daprópria insanidade enquanto condição irreversível e traço que define o eu-lírico: “estou

3 As observações feitas neste parágrafo a respeito da polissemia da palavra “linha” sãoigualmente válidas em língua inglesa (“line”), idioma em que foi gravada a canção em foco.

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aqui para ficar”. Ao afirmar que anda “na linha” (do diário) e que está “aqui” (nopróprio diário) para ficar, percebe-se que o eu-lírico constrói um nível de identificaçãocom a ideia da loucura que faz dele não mais um indivíduo guiado por ela, mas umelemento mesclado à própria concepção de insanidade. Escrever pensamentos,emoções e memórias em um diário significa registrar em papel o que há de maisíntimo e constitutivo de um ser. O que se tem em “Diary of a Madman” é a descriçãodessa concepção sob um viés metafórico que une o eu-lírico e a sua loucura, fazendodesta o elemento que define o indivíduo, o agente que possui o homem.

Ainda no tocante aos recursos estilísticos da canção, percebe-se uma construçãoantropomórfica em torno da própria ideia de insanidade. É o que pode ser observadoquando o transtornado protagonista da letra afirma ouvir a “voz” da bipolaridade(sendo esta a definição médica contemporânea do distúrbio conhecido como neurosemaníaco-depressiva). Tal forma de caracterização de um quadro de distúrbiopsiquiátrico reforça o tom conflitivo presente na abordagem do tema, estabelecendode forma mais enfática a relação de alteridade existente entre o eu lírico e seu arqui-inimigo, a loucura. Ou melhor, entre o eu-lírico e ele mesmo, conforme indicado peloemprego do pronome possessivo “dele” ao referir-se a seu transtorno bipolar.

Deve-se ressaltar que a tradução constrói um erro de concordância, já que osubstantivo “bipolaridade” é pertencente ao gênero feminino, o que, de acordo com anorma culta, impossibilitaria o emprego do possessivo masculino “dele”. Contudo, nooriginal em língua inglesa não há especificidade de gênero na denominação do referidotranstorno psiquiátrico (“manic depression”). Logo, não há um problema de ordemsintática em empregar o possessivo masculino em língua inglesa (“his”). O que chamaa atenção é, novamente, a visão personificada desse distúrbio, pois não foi empregadopara designá-lo o pronome possessivo “it´s”, que seria o gramaticalmente adequado.

Vem à tona então a intrigante dúvida a respeito da definição desse distúrbiopsiquiátrico como uma entidade antropomórfica masculina. Grosso modo, o transtornobipolar é uma doença caracterizada por alterações extremas no humor. Seu portadorpode passar por episódios de euforia, empolgação e excitação muito exacerbadas(característicos do estado maníaco) e por outros de mau-humor, desespero eirritabilidade (traços do estado depressivo). Com isso, percebe-se que aquele quecarrega consigo o espectro bipolar encontra em si mesmo seu maior inimigo, pois écomo se a qualquer momento algum “outro eu” pudesse vir à tona. Pode-se entãocompreender o porquê do eu-lírico de “Diary of a Madman” caracterizar sua doençacomo uma entidade do gênero masculino: ao utilizar esse recurso, o eu-lírico refere-sea si mesmo, pois descreve um inimigo que caminha dentro de sua própria mente.

Essa representação simbólica do transtorno bipolar promove uma espécie únicade autoalteridade em que o eu-lírico, ao opor-se a este outro que vive em sua própriamente, em verdade opõe-se a si mesmo. Esse intenso conflito interno recai numreconhecimento franco de sua doença (“Uma mente e espírito doentes”) e,simultaneamente, num não reconhecimento de sua própria identidade: “O espelho meconta mentiras”. O elemento espelho carrega consigo uma simbologia digna de nota,pois se trata de um instrumento que permite ao homem ver a si mesmo, ou seja,reconhecer o seu próprio eu, sua identidade. No caso deste eu-lírico, não ocorre um

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reconhecimento, mas sim um confrontamento/estranhamento. Essa noção partida desubjetividade se mostra presente nos versos através de perguntas retóricas: “Poderiaeu me confundir com alguém/ Que vive atrás de meus olhos?”. Através desse recursose faz perceptível um movimento duplo em relação à concepção identitária desse eu-lírico, já que, por um lado há a dúvida em relação à própria identidade enquanto poroutro impera a certeza de que existe um alter ego atrás de seus olhos – ou seja, emsua mente.

O questionamento assume um tom dramático nos versos seguintes: “Eleescapará de minha alma/ Ou viverá em mim?/Ele está tentando sair/Ou tentandoentrar em mim?”. Novamente, pode-se perceber a sólida caracterização dos distúrbiosmentais enquanto uma espécie de criatura consciente com vontade própria que possuilivre acesso à alma do eu-lírico. O que melhor imprime sobre esses versos um tom dedesespero é o sentimento de impotência absoluta do indivíduo em relação aofuncionamento de sua própria mente. Em nenhuma das perguntas o eu-lírico assumealgum papel ativo, não há alguma atitude que possa partir deste ser para se livrar desua própria insanidade. Não há uma indagação como “conseguirei expulsá-lo?”, e simse “ele está tentando sair”. O completo desconhecimento dos possíveis desígnios desseente que representa a loucura personificada caracteriza, simbolicamente, como o eu-lírico em questão é dominado por completo por sua própria insanidade, a ponto de nãosaber quem é esse ser, nem tampouco quem ele mesmo é.

Já ao término da canção, o eu-lírico afirma que “vozes nas trevas afugentam”sua saúde mental. Dado o que foi analisado até então, pode-se inferir que essas vozesseriam provenientes de sua própria mente. Tal hipótese é reforçada com a dúvidadesesperadora desse personagem: “Posso fazer uma pergunta/Para ajudar a me salvarde mim mesmo?”. Nesses versos em específico encontra-se um diferencial em relaçãoà abordagem da loucura, já que não há aqui uma construção da ideia de insanidadecomo outra identidade que habita a mente do eu-lírico. Ao desejar salvar-se de simesmo, esse atormentado personagem, numa perspectiva autorreferente, reconheceem si mesmo a origem de todo o seu conflito e de sua tormenta psicológica. Esseprocesso de reconhecimento da própria loucura contrasta com o conflito ocorridoestrofes antes em frente ao espelho, pois o eu-lírico começa a aceitar sua identidadede “insano”. Isso pode ser percebido em “Inimigos enchem as páginas/Eles são eu?”,levando-se em conta que esses “inimigos” seriam a representação de sua loucura, eque essas “páginas” são, evidentemente, as de seu diário. Ao indagar a si mesmo seessa insanidade seria realmente ele próprio, se ela seria seu eu real, o eu-lírico entraem um estágio de redefinição identitária enquanto “homem louco” – a síntese final dadialética entre o homem e a loucura disposta no decorrer da letra.

Nesta canção encontra-se um eu-lírico que dialoga livremente com toda abiografia de seu intérprete e autor, Ozzy Osbourne. Os versos finais talvez sejam osque fazem a referência mais direta ao cantor: “De segunda a domingo nos palcos/Meliberta”. A referência à rotina diária, além de remeter novamente ao campo semânticodo elemento Diário, descreve o dia-a-dia do cantor em turnês, perceptível através dapalavra “palcos”. O fato dos espaços onde ocorrem os espetáculos serem umalibertação pode ser encarado como a “solução” para o terrível conflito apresentado no

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decorrer da canção, sendo a realização artística (o show) a maneira de “saciar”, delibertar esse espectro de insanidade e “acalmá-lo” de certa maneira. Tal interpretaçãoé bastante representativa, pois implica em uma aceitação da ideia da loucuraenquanto elemento constituinte principal da identidade de Ozzy Osbourne, sendo suavida artística uma maneira de pôr essa demência em liberdade. Com isso, “Diary of aMadman” define de maneira mais objetiva o paradigma que guiaria a carreira-solo deOzzy Osbourne nas décadas subsequentes: o da insanidade.

Let the madness...begin!

É factível afirmar que ao longo de sua carreira Ozzy Osbourne ancorou de formaaberta sua imagem a elementos do campo semântico da insanidade. Essa estetizaçãoda loucura mostra-se explícita em uma série de contextos, tanto biográficos, quantofonográficos ou iconográficos. Um exemplo é o desenho abaixo, utilizado como símbolodo artista durante a década de 19904, presente em sua página oficial e em uma sériede produtos relacionados a ele, como camisetas e afins:

Figura 1: Caricatura de Ozzy Osbourne, 1996

Fonte: Caricatura de Ozzy Osbourne, 1996. Créditos da imagem pertencentes a OzzyOsbourne Management. Disponível em: <www.ozzy.com>. Acesso em: 19 nov. 2012.

Primeiramente, deve-se ressaltar o tom de simplicidade presente na imagem,esta em preto-e-branco e com traços pesados, emulando rabiscos feitos por algumamão inábil para o desenho. Todavia, é óbvio que esse desenho não foi projetado porum amador. Seus traços pesados, grossos e pouco exatos, com alguns borrões erabiscos inexatos, relacionam-se diretamente com a representação vigente da loucura

4 Mais especificamente, no período de 1996 a 1999. A página oficial de Ozzy Osbourne muda delayout de tempos em tempos, seguindo o projeto gráfico do último álbum lançado.

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enquanto um estado caótico, confuso e desnorteado. A forma como está escrito onome do artista sintetiza bem essa ideia, tendo em vista que as quatro letras que ocompõem estão desalinhadas, inclinadas, borradas e com rabiscos grosseiros na parteinferior, como se o desenhista tivesse problemas crônicos de coordenação motora.Essa maneira de se escrever o nome de Ozzy, diametralmente oposta aos logotiposbem elaborados presentes nas capas de seus discos, promove uma imediataassociação entre o artista e uma atmosfera de desordem e falta de controle.

Sob essa perspectiva, pode-se afimar que os traços pouco elaborados dacaricatura se coadunam com a representação do cantor enquanto louco. Vê-se naFigura 1 um desenho do madman anatomicamente desproporcional, com a cabeçamaior que o restante do corpo, recurso empregado em muitas caricaturas paraevidenciar o rosto e até imprimir um tom cômico ou satírico ao indivíduo representado.Entretanto, a face do artista é desenhada de uma forma minimalista, ao ponto de estanão conter absolutamente nenhum outro elemento facial além do par de olhos e daboca. Curiosamente, esses já são suficientes para caracterizar Ozzy Osbourne deforma eficaz. Os olhos arregalados, grosseiramente desproporcionais ao tamanho dorosto, aliados ao sorriso alargado, dão ao personagem desenhado uma aparênciamaníaca. Os cabelos compridos desalinhados colaboram para essa representação.

Todavia, o elemento-chave presente na imagem é a camisa de força no corpodo cantor. Na história da relação do homem ocidental com a insanidade, esse foi umrecurso importante utilizado em uma série de asilos psiquiátricos para conter surtos eoutros rompantes que tornavam o paciente “socialmente perigoso”.5 Feita de grossa eresistente lona, era praticamente impossível de ser rasgada. As mangasexageradamente compridas e fechadas tinham por meta não liberar as mãos dopaciente, de forma que ele não poderia pegar nenhum objeto e usá-lo como umaarma. Além disso, essas mangas eram amarradas ou acorrentadas às costas,imobilizando por completo o louco.

Com isso, vê-se que na referida imagem há uma representação iconográfica docantor como um indivíduo surtado, descontrolado e perigoso, a ponto de ter que serimobilizado com uma camisa de força. O que pode ser inferido é que a caracterizaçãoda figura de Ozzy Osbourne como um objeto de comunicação de massas relaciona-o asignos que, na história do pensamento ocidental, são pertencentes a um camposemântico de exclusão e alteridade, ao qual a concepção de loucura é pertencente.

A definição recorrente do adjetivo “louco” refere-se ao indivíduo que age oupensa em desacordo com as normas vigentes, podendo tornar-se um elemento danosopara a sociedade. Dessa forma, cria-se uma estigmatização da loucura que faz comque ela deva ser excluída e erradicada. Surge neste ponto uma questão importante: otermo “louco” com a sua carga semântica “maldita” é cunhado pelo “homem racional”,por aquele que irá promover o afastamento do “doente mental” do convívio com osdemais seres humanos. Recorrendo a Michel Foucault, podemos afirmar que revisitar ahistória dos loucos no pensamento ocidental é se deparar com a história dossilenciados – uma história, outrossim, escrita pelos “mentalmente sadios”.

5 Ressalta-se que a camisa de força teve sua relevância clínica muito reduzida com o surgimentodos neurolépticos e o desenvolvimento das práticas de reabilitação psicossocial.

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Pode-se identificar na Idade Clássica o grande estabelecimento da alteridadeentre razão e “desrazão”. A loucura é vista concomitantemente como uma forma detransgressão, de exceção e de invalidação da razão cartesiana do referido período.Dessa forma, o dito louco torna-se um elemento a ser excluído do pensamentoracional filosófico ocidental. Tal premissa sustenta a necessidade de se banir essegrupo de indivíduos do espaço social, o que justificou a construção dos asilospsiquiátricos, espaço de confinamento exclusivo para os ditos mentalmente doentes.Sob esse viés, vê-se como a loucura não é um objeto de estudo crítico, e sim umajustificativa “plausível” para uma forma de afastamento e reclusão do “louco”.

Com o surgimento da psiquiatria no século XIX, a loucura passa a ser um campode estudos científicos. Logo, tem-se uma subordinação completa da concepção deloucura à concepção de razão, na qual esta detém a fundamentação teórica necessáriapara compreender, categorizar, isolar e, finalmente, corrigir o indivíduo “alienado” darealidade. Através da internação em asilos psiquiátricos, o discurso médico torna-se ajustificativa irrevogável da necessidade de segregação desses indivíduos. O louco nãodeve permanecer no seio familiar para receber assistência, nem tampouco integrar apopulação, já que ele não se constitui como força de trabalho para o capitalismo emconstante desenvolvimento. De acordo com essa lógica, um indivíduo considerado“são” pela sociedade pode ser visto como um “cidadão” (leia-se: uma ferramenta deprodução para a economia vigente e um reprodutor das práticas sociais tradicionais).

O arcabouço teórico racionalista em questão apregoa que é “necessário” para opróprio bem-estar do enlouquecido abrigá-lo em um local especial onde receberá os“cuidados” adequados, o que gera inevitavelmente nos que moram do lado de fora dosmuros dos manicômios percepções distintas em relação aos “loucos”, ora decompaixão absoluta, o que enfatiza a “inferioridade” e “inabilidade” social dos insanos;ora de ódio, mediante o grau de periculosidade dos “psicopatas” e “dementes”.Compreendem-se esses cuidados como o conjunto de práticas definidas pelo Estado,ou seja, pelo sujeito racional, que considera o louco um risco aos outros e,principalmente, a si mesmo. Logo, com o advento dos asilos psiquiátricos, pode-seafirmar que

A loucura encontrou uma pátria que lhe é própria: deslocação pouco perceptível,[...] que indica que alguma coisa de essencial está acontecendo, algo que isola aloucura e começa a torná-la autônoma em relação ao destino com o qual ela estavaconfusamente misturada. (FOUCAULT, 1978, p.382-384).

Encontra-se nesse espaço a representação máxima do empoderamento dodiscurso da razão e do esvaziamento de qualquer critério de verdade que pudesse seratribuído ao “louco”. Nesse cenário insere-se a figura do psiquiatra, ferramenta maiorpara o restabelecimento da razão provisoriamente perdida do paciente. O caráter dereversibilidade do estado de desvio mental é evidenciado, já que é uma maneira dereafirmar o discurso científico como elemento controlador/disciplinador da desrazão.Esse antagonismo é evidenciável na relação médico-paciente, em que aquele é osujeito e este o objeto. A passividade do louco é importante, pois é o que permite queele, enclausurado nessa espécie de prisão, seja julgado como um “culpado” por um

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crime. O reencontro com a razão e o posterior reencaminhento à sociedade só podeocorrer com o autorreconhecimento do erro, ou seja, com o enfrentamento da loucurapor parte do próprio portador do desvio mental. Dessa forma, a alteridade demembros da “sociedade normal” versus pacientes do asilo é erradicada, fazendo doindivíduo “curado” e “reintegrado” mais um daqueles que irá estigmatizar e excluir osloucos.

Pode-se afirmar então que, a partir o momento em que Ozzy Osbourne assumea identidade de madman ele personifica o estigma da exclusão social. Entretanto, essaabordagem da loucura enquanto signo estético-ideológico não promove umafastamento, mas opera como um dos vetores comunicacionais de aproximação docantor ao seu público, fomentando o culto existente em torno de sua figura.Assumindo que é o elemento estranho ao mundo racional, o outro da razão, Ozzy, aopasso que satisfaz as fantasias de muitos de seus fãs que por diversas razões podemcompartilhar de um sentimento análogo de tensão Eu versus o Mundo, tambémdesconstrói qualquer discurso teórico-científico a respeito da loucura, associando-acom a ideia de liberdade (“de segunda a domingo nos palcos/me liberta”) e não com ade confinamento.

O paradigma da insanidade, invertido, torna-se um elemento potencializador doindivíduo perante a sociedade, uma forma de distanciá-lo do restante dos homens nãopor ser “inferior” ou “irracional”, mas por ser dotado de uma superioridade singulardada a sua racionalidade sui generis, inalcançável pelos demais. Esse recurso estético-ideológico é crucial na construção de Ozzy como uma celebridade, tendo o próprioartista dialogado com essa ideia de uma série de maneiras diferentes.

Um exemplo disso é a forma como muitos de seus shows se iniciam. Com asluzes já completamente apagadas, inicia-se em playback a execução da célebrecomposição “O Fortuna”, da ópera Carmina Burana, de Carl Off. O público, já emestado de expectativa mediante a iminência do espetáculo, fica progressivamente maisempolgado à medida que avança a canção, com sua dinâmica crescendo. A excitaçãodo público aumenta com a entrada gradual dos instrumentistas da banda. Quando “OFortuna” chega em seu clímax, com todas as vozes e instrumentos cantando emfortíssimo, Ozzy em pessoa adentra o palco, gritando, incitando a multidão, correndo,clamando para que eles “enlouqueçam, porra!” (“go fucking crazy!”). A plateia, jáenvolvida em uma espécie de delírio coletivo, grita cada vez mais pelo seu ídolo. É omomento em que o cantor, já no encerramento de “O Fortuna”, solta seu já aguardadobordão: “Let the madness...begin!” (“Deixe a loucura...começar!”) e no exato últimoacorde da canção de introdução, a banda entra em ação e tem início o espetáculo.

Com a recorrência de tais práticas em seus shows, Ozzy Osbourne estabeleceentre ele e seus fãs uma dinâmica análoga à do ritual e do culto, no tocante ao caráterde repetição e permanência de uma série de características que hão de definir e darpropósito a uma tribo6 em particular. Entretanto, o caso de Ozzy Osbourne tem comopremissa principal a enunciação erguida em torno não de uma ordem coletiva, e simde uma construção individual, no caso, o self do próprio emissor da mensagem.

6 A imagem da tribo opera, metaforicamente, como uma forma de representação de novas formasde organização social na Pós-Modernidade, em que haveria uma desconstrução do paradigmada individualização e o subsequente desenvolvimento de uma visão de mundo mais emotivaentre os homens. Essa questão é discutida de forma mais ampla por Michel Maffesoli(MAFFESOLI, 2006).

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Tal caráter de repetibilidade é crucial no processo de elaboração de um culto àpersonalidade no âmbito midiático já que, ao reforçar a imanência de certos traçosmesmo com o passar das décadas, solidifica-se essa figura como mais poderosa doque fatores limítrofes ao ser humano tradicional (como a passagem dos anos),elevando a celebridade midiática de um indivíduo humano comum a uma instânciamaior: a de um ente comunicacional genuinamente atemporal. Vê-se essa ideia em“Not Going Away”:

Not Going Away Não estou indo embora

Don’t tell me I’m wrong Não diga que estou erradoDon’t tell me that you knew all along Não me diga que sabia desde o inícioI won’t roll over dead Não cairei mortoOnly I know what goes Somente eu sei o que se passaon in my head em minha cabeça

I’ve got nothing to hide Não tenho nada a ocultarI’m not guilty inside Não me sinto culpado por dentroI won’t give up Não desistireiAfter all I’m still crazy Afinal, ainda sou louco

I’m not going away, I’m not going Não estou indo embora, não estou indoTry so hard to break me Tente me quebrar com vontadebut all your diamonds turn to sand mas todos os seus diamantes viram areiaI’m not going away, I’m not going Não estou indo embora, não estou indoSay goodbye forever, diga adeus para sempreI’ll wait for you in no man’s land Eu te aguardo na terra de ninguém

Get out of my way Saia de meu caminhoThere’s nothing you can do Não há nada que você possa fazerto change what I say para mudar o que digoI won’t ever let go Eu nunca me esquecereiI got the answer Eu tenho a respostabut you’ll never know Mas você jamais saberá

I got my eyes open wide Eu tenho meus olhos bem abertosAin’t gonna slip up or slide Não irei tropeçar nem cairCan’t take me down Você não tem como me derrubarAfter all I’m still crazy Afinal, ainda sou louco

(OZZY OSBOURNE, 2007, p. 1)

Há nesta canção um “atestado de poder atemporal” de um artista que passoupor uma série de episódios envolvendo casos que geraram muita polêmica, fatosdefiníveis como “bizarros”, abusos de drogas de diversos tipos, ilícitas (maconha,cocaína, LSD e outras substâncias) e legais (álcool, medicamentos e outros produtosquímicos), além de distúrbios de ordem emocional, comportamental ou até mesmopsiquiátrica. Essa primeira pessoa que veicula a mensagem da letra, transbordandotodas as barreiras possíveis entre um eu-lírico e o autor, posiciona-se como umpersonagem mais forte do que todas as décadas que carrega em suas lembranças eem seu corpo.

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É o que se mostra claro tanto no título quanto no refrão da canção: “Eu nãoestou indo embora”. Interessantemente, tem-se justamente nessa frase uma espéciede oxímoron, ou melhor, trata-se de uma negativa que reforça uma grande afirmativasobre a qual se constrói o conteúdo da mensagem – a afirmativa do eu enquanto forçamais poderosa do que o próprio homem em si. Essa oposição entre o eu-lírico e tudo oque está atrelado ao campo semântico do elemento humano é identificável namecânica bipolarizada descrita na letra. Nesta, é posicionada de um lado a primeirapessoa, o eu-lírico, afirmando o que é capaz de fazer; ao passo que do outro seencontra a segunda pessoa, tendo evidenciado tudo aquilo que não é capaz de fazercom o eu-lírico.

Esse jogo interlocutório estabelecido entre o elemento “eu-empoderado-correto”e o “você(s)-impotente(s)-errado(s)” opera em uma série de níveis distintos devalidação do poder humano. Um deles é aquele existente em torno do conceito demoral, no qual qualquer capacidade de julgamento humano é desconstruída (“Não mediga que estou errado/Não me diga que sabia desde o início”) em prol da afirmação deum senso particular de autonomia moral (“somente eu sei o que se passa em minhacabeça”), segundo a qual não é possível aplicar nenhuma forma de lei, regra,comportamento ou moralidade que seja relacionável ao que comumente se denomina“senso comum”.

Ou seja, trata-se, basicamente, da ênfase em uma força individual que seposiciona acima de qualquer forma de julgamento moral ou social. Pode-se notar que oolho desse grande outro com quem é estabelecida essa alteridade já condenou esseeu-lírico, mas em vão: “Não me sinto culpado por dentro”. Como se não fossesuficiente a concepção acerca de suas próprias atitudes ser oposta à do corpo socialque o condena, essa força individual que protagoniza a canção lança mão de umvocábulo fundamental para a definição de seu ser: “louco”. Ao abertamente constatarisso (“afinal, ainda estou louco”), percebe-se uma inversão da concepção tradicionalda palavra “louco”, de acordo com a qual o paradigma de exclusão inerente a essevocábulo é lido sob um viés diferenciado. Esse termo, empregado pelo interlocutor doeu-lírico para classificar de maneira pejorativa suas ações, é retomado pelopersonagem da canção, mas como uma representação de sua autenticidade esuperioridade perante os demais. Logo, o “excluído” deixa de ser o “exilado” por ser“perigoso”, “danoso”, “doente” e passa a ser o “único”, o “singular”, “o poderoso”, oque se destaca dos demais membros da sociedade por ser superior não por sersupostamente inferior (como eles originalmente estigmatizaram). A loucura ganha vozativa no processo social, deixando de ser apenas mero “barulho surdo debaixo dahistória, o murmuro obstinado de uma linguagem que falaria sozinha – sem sujeitofalante e sem interlocutor” (FOUCAULT, 1978, p.130).

Essa abordagem invertida da representação social da loucura não é nova nacarreira de Ozzy Osbourne, conforme já comentado. Essa permanência de seu caráterde insanidade é referida no advérbio empregado junto à palavra “louco”, “ainda”. Aoafirmar que ainda é insano, o eu-lírico traz à tona um referencial de ordemcronológica, como se dissesse ao interlocutor e aos ouvintes: “afinal, mesmo comtodos esses anos, ainda sou louco”. Isso pode indicar que este homem ainda é

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considerado “louco” pela sociedade -- perspectiva que reafirma a alteridade presenteentre o eu-lírico e os outros; e/ou que ele ainda se vê como “louco” -- um serincompreendido, diferente dos demais, um ente superior, um santo, um mártir ou umsábio.

Essa acepção remete à concepção da loucura enquanto experiência trágica,conceito trabalhado por Foucault (FOUCAULT, 1978). Tal abordagem da insanidade,presente em diversas manifestações artísticas na Renascença, imprime um tom defascínio pela ideia da loucura, postulando-a como um saber alcançável por poucos – os“loucos”. Esse conhecimento possuiria um caráter ao mesmo tempo enigmático erevelador, fruto da mais recôndita essência do ser humano. Com isso, o “louco” é o serque é capaz de descobrir e compreender a existência em sua magnitude, manuseandocom maestria os nuances do plano físico e do metafísico, e consagrando-se como odetentor daquilo que os demais homens comumente chamam de verdade.

Retornando à canção, é justamente em um nível epistemológico que esseprotagonista estabelece uma oposição entre ele e seu interlocutor: “Eu tenho aresposta/Mas você jamais saberá”. Vê-se que este eu-lírico posiciona-se em um planode enunciação notoriamente mais elevado, em que ele se destaca do restante doshomens por ser detentor de algum conhecimento definido simplesmente por“resposta”. Deve-se destacar o emprego desse vocábulo, pois por si só ele representaa solução objetiva e pragmática de algum questionamento. Essa definição podeinicialmente soar um tanto quanto óbvia, entretanto, deve-se efetuar uma leitura maisampla da palavra em questão. Compreende-se por “resposta” como a busca, anecessidade-maior do homem enquanto ser pensante seja no âmbito da filosofia ou noda ciência. A tentativa frenética de categorizar, compreender, captar e conceitualizartudo ao seu redor é uma constante em diversas áreas do saber universal. Ao afirmar“Eu tenho a resposta”, vê-se que não há uma especificação do tipo de pergunta a qualessa resposta seria destinada. Todavia, ainda que soe vago o emprego dessesubstantivo, ele é anteposto por um artigo definido: “a”. Não se trata de “uma”resposta, mas “a” resposta.

Logo, com esse simples emprego de um artigo definido precedendo um vocábuloamplo e, digamos, “indefinido”, percebe-se um aprofundamento semântico da palavra“resposta”, o que sugeriria que esse eu-lírico seria poderoso e especial o bastante parasaber a resposta para toda e qualquer pergunta a ser formulada. Propriedade essaexclusiva, já que ele categoricamente afirma a seu interlocutor que ele “jamaissaberá”, seja por falta de capacidade para compreendê-la ou por não-merecimentodesse saber (aparente e supostamente) sagrado.

Finalmente, todos esses fatores culminam em uma imagem de poder solidificadasobre a figura do eu-lírico (que, deve ser lembrado, traduz de forma assumida apersona de seu intérprete e compositor, Ozzy Osbourne). Essa potencialização se fazperceptível principalmente em versos que reforçam o caráter de invencibilidade dogrande Eu que dá voz à canção, tais como: “Tente me quebrar com vontade/todos osseus diamantes se tornam areia”. Retiradas do refrão, tais palavras mostram como ointerlocutor deste eu-lírico é debilizado, tendo suas armas (seus “diamantes”)inutilizadas e pulverizadas (transformadas em “areia”) perante a força do eu-lírico.

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Deve ser destacado que os termos “diamantes” e “areia”, empregados sob umviés metafórico nesses versos, são pertencentes a um campo semântico de elementosde origem mineral. O diamante, além de uma pedra preciosa de altíssimo valor, é omaterial de origem natural mais duro e resistente que existe na natureza, sendoimpossível de ser riscado por nenhum outro material além do próprio diamante. Logo,junto de suas características de luminosidade, tem-se no diamante uma representaçãodo ideal da perfeição, por isso que na cultura ocidental ele é “o símbolo da soberaniauniversal” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2006, p.338).

Pode-se então perceber que todo o poder a ser usado contra esse eu-lírico (sejaum poder soberano, pleno, coletivo, governamental, social...), mesmo sendo uminquebrantável diamante, será desmantelado e transformado em areia. Logo, umelemento considerado sólido e valioso pelo senso comum é destruído e transformadoem um monte de areia, um elemento constituído pela sua imensa quantidade degrãos, seu caráter se plasticidade e maleabilidade, em oposição à extrema rigidez dodiamante. Essa elaboração metafórica constrói a imagem de um ser capaz de resistir aqualquer julgamento de valor feito a seu respeito, destruindo e invertendo o discursoque condena e regula seu modus vivendi, deixando seus oponentes completamente“desarmados”.

Ao que consta, o que se estabelece ao longo da canção é uma tensão entre esseEu e seu Outro, de forma que fica evidenciada a impotência deste perante aquele.Essa debilidade de seu oponente se mostra presente no tocante à tensão existenteentre a visão de mundo do eu lírico e a do senso comum (“não há nada que vocêpossa fazer para mudar o que digo”). Adicionalmente, fica sacramentado que o sujeito,que afirma sua individualidade contra um ente coletivo, é bastante seguro a respeitode suas escolhas, do caminho que está trilhando, ao ponto de afirmar que nãocometerá deslizes: “Eu tenho meus olhos bem atentos/Não irei tropeçar nem cair”.Além disso, ele se mostra atento a quaisquer artimanhas ou obstáculos que possamser postos por seus inimigos: “Você não tem como me derrubar”. O verbo derrubarremete a uma evidente conotação de queda, sendo esta simbolicamente associada aalguma representação da derrota – seja pelo julgamento moral de outros, pelaspróprias ações naturais e biológicas do tempo ou por algum “tropeço” do próprio serque trilha o caminho.

Todos esses signos, associados à imagem de Ozzy Osbourne, são centrais naconstrução de uma espécie de releitura heavy metal do processo de culto àpersonalidade em torno de sua figura. Interessantemente, quanto mais se ressalta ainsanidade imanente ao artista, enfatiza-se de diversas maneiras seu papel deliderança dentro do estilo musical do qual seria, em tese, um dos “pais”: o heavymetal.

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Title: “Let the madness...begin!”: the dialectic between reason and sanity in the cultof personality of singer

Abstract: This paper aims to analise the construction of the aesthetical discourse ofOzzy Osbourne, focusing on strategies used to compose the image of madman ofheavy metal. Throughout the analisys of song lyrics, interviews, biographical episodesand promo pictures, it can be noticed in the formation of the image of this artist as acelebrity to be worshipped elements that belong to a human sphere. Among these,there´s the human/limited nature of men, alongside the spectre of insanity. However,it is noticeable that these same elements, although a proof of the “merely human”nature of the celebrity, feed the Cult of his personality, and become fundamental traitsin the construction of his aesthetical/imagetic/identity discourse.

Keywords: Post-Modernity. Mass Culture. Heavy Metal. Cult of Celebrity. Insanity

Recebido em: 29/01/2013. Aceito em 17/06/2013.

Crítica Cultural (Critic), Palhoça, SC, v. 8, n. 1, p. 115-131, jan./jun. 2013

Um lugar difuso e violento,não muito longe daqui:

o primeiro romance de Reni Adriano

Wanderlan da Silva Alves∗

Resumo: Analisamos o romance Lugar (2010), de Reni Adriano, destacando o modocomo a narrativa se constrói valendo-se de narrativas orais, do falar do sertão e daexpressão da violência para criar, no plano da linguagem, um Lugar mítico onde sedesenvolve a história narrada. Sua condição de narrativa que se incursiona pelomitopoético e assume uma perspectiva universal faz de Lugar um romance crítico darelação problemática entre o indivíduo e o meio e as oposições entre o litoral e ointerior nos processos de modernização do Brasil, situando-a como um romancecontemporâneo que dialoga com a vertente regionalista da literatura brasileira.

Palavras-chave: Reni Adriano. Representações da violência. Regionalismo. Narrativabrasileira contemporânea.

Lugar é o título do primeiro romance do escritor Reni Adriano, que foi vencedordo Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura, entre as obras concorrentes nacategoria ficção, na edição de 2009, e publicado pela editora Tinta Negra em 2010. Oromance de estreia de Reni Adriano encontra o seu lugar no seio de uma vertentenarrativa cujas marcas ainda hoje estão presentes na produção literária de toda aAmérica Latina: as narrativas voltadas à terra, ao indivíduo na terra e da terra e, porvezes, vítima de suas agruras. Mas o que nos interessa, aqui, é analisar como anarrativa de Lugar expressa, em sua estrutura, a sua fala e, também, as falas-narrativas que fundam a existência desse Lugar, por meio de uma linguagem violenta,calcada no choque, no baque, nos tropeços do corpo a corpo entre os indivíduos, oindivíduo e o meio, o indivíduo e a palavra. Numa linguagem que é, também,enfrentamento do indivíduo representado com sua própria voz e, por vezes,descoberta de uma voz, por meio da mobilização crítica da linguagem popular e denarrativas típicas da oralidade, o romance cria uma linguagem permeada dereferências que são, paradoxalmente, carentes de definição, como afirma Santini(2010).

∗ Doutorando em Letras pela Universidade Estadual Paulista (UNESP/SJRP) e mestre em Letraspela mesma instituição. Professor da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). E-mail:[email protected].

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Lugar narra as vivências de Inácio e dos membros de sua família, passando pordiversas gerações, num ambiente de ambígua referencialidade cuja designação é,simplesmente, Lugar. Em Lugar, Inácio vai conhecer toda a sua história, bem como ashistórias das demais personagens que aparecem na narrativa – Maldavina, Gaio (o Pai-avô), Fago, Tio Marío, Isga, Izé, Lurdia, Admirá, entre outras. É também em Lugar queInácio se torna consciente da violência cotidiana sob a qual vivem tais indivíduos e dosmodos pelos quais essa violência se apresenta como condição e ordem da existênciado Lugar.

Numa narrativa cujos capítulos são organizados em fragmentos episódicos quejustapõem temporalidades distintas sem referências claras, as vivências de Inácio –narradas a partir da perspectiva de um narrador cuja focalização varia, mas nas naqual predominam a onisciência seletiva (especialmente no tratamento conferido aInácio e a Gaio) e a onisciência neutra (FRANCO JUNIOR, 2009) –, se tornam o eixonorteador em torno do qual as demais histórias e personagens podem ser dispostas,visto que, de fato, é em função de sua constituição como indivíduo que Inácio seenvolve, de certo modo, com todas demais histórias e personagens presentes nanarrativa. Na verdade, o foco narrativo de Lugar é complexo. O romance institui umavoz narrativa em cumplicidade com as personagens, aparentemente colada a elas, orapor meio do discurso indireto livre ora a partir de uma perspectiva que aponta para aintimidade das personagens por meio de uma fala que parece ser a delas próprias,havendo, ainda, a presença do discurso direto que, nesse caso, lhes confere, de fato,uma voz. Desse modo, por mais que se trate de uma onisciência, ela não se apresentade maneira distanciada em relação ao narrado, mas, sim, procura enunciar-se, porvezes, como correferente aos acontecimentos, isto é, como se estivesse inserida namesma temporalidade das vivências das personagens, fundindo, por meio de talprocedimento, o tempo do narrado ao tempo da narração, o que se aproxima,estruturalmente, de uma perspectiva narrativa centrada na “visão com” (POULLION,1974). Um dos efeitos de tal procedimento é que esse Lugar se constitui, internamenteà narrativa, num meio mítico e violento cuja natureza é discutida e questionada peloinvestimento na linguagem das próprias personagens, que buscam expressões de si epara si.

1. Da força – a linguagem desse Lugar

O texto de Lugar é construído de modo a explorar a potencialidade sígnica emcada um de seus planos constitutivos, do plano sonoro, ao morfológico e ao sintático,elevando a linguagem, por vezes, ao plano simbólico. Trata-se de uma narrativa cujaconstrução mobiliza a atenção do leitor para seus componentes sensoriais, pela tensãoentre sonoridade e silêncio e entre rusticidade e maleabilidade, que são a marca danarrativa do romance, como se nota já na abertura do texto:

É escuro, Pai, na minha fonte. Lateja a fronte a escureza premente. Uma inocênciainfinita toda lodo de escureza absoluta. Que não responde pela própria escuridão.//É muito triste, Pai, ser inocente. Tão tudo nulo e fundo. Tão duro.// Torcido.//Taludo.// Pasmo (ADRIANO, 2010, p. 11).

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A sonoridade do trecho inicial da narrativa convida o leitor a envolver-se com onarrado. A reiteração de sons sibilantes, fricativos, laterais e tepes articula-se ànasalização vocálica e consonântica, impondo ao texto um tom que é, ao mesmotempo, de lamúrio, de lamento e de choque. “A linguagem é, neste caso, do aedo, i.e.a canção – uma canção que ao mesmo tempo é veículo de uma concepção do mundo esuporte de uma experiência numinosa” (TORRANO, 1981, p. 12). Esse tom écorroborado pela componente semântica dos dois primeiros parágrafos do texto, quenos apresentam a natureza desse Lugar: escuro, de escureza absoluta, nulo e fundo,duro, tal como se confirma nos três períodos seguintes aos dois primeiros parágrafos,cada um com uma palavra apenas, todas alternando consoantes oclusivas a outrassibilantes ou laterais que, no contexto, conotam a alternância entre dureza emaleabilidade que, no plano sensorial, representam a tensão constitutiva da realidadedo Lugar.

Trata-se, já na abertura do texto, de uma narrativa intranquila, como se fosseorigem de uma fala e estivesse, ao mesmo tempo, criando-se e descobrindo-se, numcontato que procura vincular-se diretamente à linguagem, pois essa linguagem é vista,na narrativa, como fundadora, uma espécie de “palmilhar calma e vagamente o Lugar”para senti-lo e expressá-lo. O romance almeja dar textura a uma linguagem queprocura expressão e tempo anteriores à racionalidade. Nesse sentido, a linguagem danarrativa de Lugar se quer arcaica, em sentido etimológico, isto é, “princípio inaugural,constitutivo e dirigente de toda palavra poética” (TORRANO, 1981, p. 13).

O romance aponta para o investimento do autor num exercício escritural quetoma forma à medida que se cria, desde um elemento primordial – a oposição entresom e silêncio – até os contornos plenos da palavra que, na narrativa de Lugar, portapoderes mágicos. Como espera Cortázar de uma narrativa eficiente, a linguagem deLugar “atrai todo um sistema de relações conexas, coagula no autor, e mais tarde noleitor, uma imensa quantidade de noções, entrevisões, sentimentos e até idéias quelhe flutuavam virtualmente na memória ou na sensibilidade” (CORTÁZAR, 1993, p.154), expressando uma realidade que, por um lado, institui sua referencialidade nomundo real – razão por que suas referências espaçotemporais são ambíguas, mas, empotência, correspondem à topografia de algumas regiões sertanejas do interior doBrasil – e por outro lado, se constrói como realidade autônoma, já que constituída deuma linguagem que se dobra sobre si mesma em busca da textualidade e daexpressão.

Em Lugar, é a linguagem que dá concretude ao Lugar referido pela narrativa eprocura mimetizar o contato entre o indivíduo representado e o mundo que o cerca e oengloba. Esse mundo apresenta uma linguagem própria: a língua das plantas, dasgrutas, das águas, o que corresponde a uma tentativa de transpor para a narrativa opróprio universo do narrado como pertencente a uma ordem arcaica de relações entreos indivíduos e entre os seres, pois o pensamento arcaico é concreto e simbólico pornatureza, como observa Torrano (1981). Em Lugar, a matéria narrativa – os planosfônico, morfológico e semântico-sintático da linguagem – está em busca pelaexpressão de algo fugidio, mas sempre expresso no cotidiano das personagens: a faladesse Lugar, marcada, já no plano formal, pela dureza da existência, da violência e daexpressão.

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Conhecer o Lugar mítico (aparentemente inserido num não tempo) em que sedesenvolve a narrativa desse romance implica, para o leitor, firmar um pacto deabertura ao sensível da linguagem que molda e dá concretude ao texto-Lugar danarrativa, situando-o, de certo modo, num lugar que é o seu: o lugar do discursoliterário. Pois, por um lado, a narrativa do romance nos permite identificar o espaçonarrativo como aparentemente pertencente a uma região interiorana do Brasil, talvezde Minas, mas, por outro, o texto constitui-se no único espaço onde, para aspersonagens, a existência adquire algum sentido concreto. Juliana Santini, em resenhaao livro, observa que

Circunscrita aos domínios do Lugar, toda a ação que engendra a narrativapermanece também fechada nesse território, que anula qualquer referênciageográfica mais ampla. O enredo se esquiva, ainda, de qualquer temporalizaçãodas ações e dos movimentos empreendidos pelos personagens, instaurando umpresente atemporal – o mesmo das narrativas populares – em que os sujeitospermanecem enclausurados (SANTINI, 2010, p. 174).

Lugar é, também, um meio que, a partir do imaginário, se pode criar e instalarno âmbito do “Era uma vez”, portanto, lugar feito de linguagem. Nele, a palavra portao poder de ultrapassar ou de obscurecer distâncias, superando bloqueios espaciais etemporais que, na linguagem, dão concretude ao Lugar. Espécie de clausura, alinguagem, no romance de Reni Adriano, se manifesta enquanto fala de si mesma, enão se esvai na inexorabilidade do som, mas é “O ronronar de dentro.// O aturdimentopré-silábico do tempo. O vergastado miasmento do idêntico” (ADRIANO, 2010, p. 12),sempre a busca de algo anterior à própria linguagem e ao próprio tempo, tentativa,talvez, de dar forma a elementos sensíveis anteriores à própria linguagem articulada,como o choro, o grito, o riso, a voz, meios que são, para as personagens,manifestações de sua individualidade e que, no âmbito de suas vivências, lhesparecem mais naturais para a expressão de sua subjetividade do que a palavra. Taiselementos funcionam, no romance, como ecos da presença de uma palavra origináriaque morreu quando o indivíduo perdeu seus vínculos míticos com o primitivo, tendopermanecido, porém, ali, no mesmo Lugar. Nesse sentido, Lugar procura expressar,paradoxalmente, o valor simbólico da palavra mítica e a perda, por parte dosindivíduos representados, da possibilidade de se estabelecer um contato pleno com oplano mítico da linguagem. De certo modo, tal tensão se manifesta porque Lugarprocura restabelecer, no texto, “uma relação quase mágica entre o nome e a coisanomeada, pela qual o nome traz consigo, uma vez pronunciado, a presença da própriacoisa” (TORRANO, 1981, p. 16).

Desse modo, Lugar é onde a palavra é mítica e tem poder de ação sobre osindivíduos e o meio, e o romance Lugar procura dar textura à experiência depersonagens em sua luta permanente com a “palavra-calada”, para empregar aquiuma expressão da própria narrativa, a linguagem-ação característica da vida nesseLugar, que, no entanto, nem todos os indivíduos representados dominam. Nessesentido, o romance retoma elementos comuns às culturas arcaicas, como a noção deuma imanência possível e recíproca na relação entre o indivíduo e o mundo, buscandoexpressar o desejo de recuperar a imanência mítica entre a linguagem e os seres. Poressa razão, no romance, é evidente a função da linguagem como instância de poder.

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A narrativa do romance elabora, então, a expressão da angústia daspersonagens, especialmente Gaio e Inácio, por não poderem expressar o de dentro –as origens – cuja presença/ausência marca o cotidiano da personagem de maiordestaque na narrativa: Inácio. A morte do Pai-avô, Gaio, representa para Inácio, noplano simbólico, a cisão com o passado mítico e a condenação a nunca mais reavê-lo.Em vez de um esquecimento que deixaria a personagem sem passado, fica, para ela,um lembrar difuso, definido por Inácio como uma impossibilidade de esquecer-se doque foi/está perdido. Inácio procura instaurar uma nova temporalidade justamentepara que essa “dor de nunca mais o avô se acabar de morrer” (ADRIANO, 2010, p. 23)se torne suportável e lhe torne possível a vivência no presente do Lugar, pois a mortedo Avô é, também, a morte simbólica de uma Era do Lugar. Não por acaso esse Pai-avô perdido se chama Gaio – Gaio vem de Gaia, que era a deusa da Terra, nascida doCaos. Lugar dá textura a um universo e a uma visão de mundo, como observa LuizRuffato, em texto de orelha ao livro. Do nome das personagens – Gaio (Gaia), Marío(Mar), Inácio (Início) – à concepção acerca das forças que regem o Lugar, toda anarrativa se sustenta em uma visão orgânica do mundo.

Gaio é o Pai-avô origem de Inácio e de toda a família. Tio Marío, filho de Gaio,porta traços identificados ao saber oracular e prático. Ambas as personagens (Gaio etio Marío) são, no âmbito da narrativa, as mais identificadas com a manutenção daordem: Gaio funda a casa da família, mas nunca entra nela, portanto, está fora de talordem e é capaz de controlá-la, até sua morte; tio Marío, em suas ações, muitas vezesinveste com violência contra Inácio. E elas são as únicas capazes de, no plano dahistória narrada, promover alguma retaliação à subversão/ruptura do poder e daordem que norteiam a organização da família e que serão, de fato, desestabilizadospor Inácio.

De certo modo, sendo Gaio é a origem de tudo, o primitivo até então presenteno Lugar, ao menos para a existência de Inácio, sua morte o torna uma presençaabstrata e atemporal que, num gesto violento de negação, Inácio substitui por outra.Sua ação de emancipação em relação à origem perdida (o Pai-avô) é, para ele, oresultado do desenvolvimento da trajetória de seu conflito individual – ainconformidade com a ordem aparentemente desde sempre assim das relações entreos indivíduos no Lugar –, e, por essa razão, tal emancipação se apresenta de modoambivalente, visto que pode estar restrita a ele e à sua família, não alcançando todo oLugar, como pretende.

Enquanto, no plano da história narrada no romance, temos um desfecho preciso– Inácio e Admirá juntos e o nascimento da filha Siga – as implicações sugeridas sãomúltiplas. O fato de o desfecho se circunscrever, apenas, ao núcleo Inácio-Admirá-Siga pode sugerir que o desdobramento das ações de Inácio tiveram uma dimensãorestrita ao âmbito individual e familiar, funcionando como condição da emancipação deInácio. Mas o peso simbólico do nome da filha sugere, também, um alcance maisamplo para o desdobramento da história do Lugar: a continuação da temporalidadeiniciada pela ação/ruptura de Inácio em relação à ordem anterior, até entãoestabelecida pelo Pai-avô. Essa ambivalência está presente, na verdade, ao longo detoda a narrativa, especialmente por causa da não determinação temporal dos

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episódios que constituem a história narrada em Lugar, o que acaba por criar o efeitoexpressivo de um tempo cujo sentido não é único nem irreversível, e sim se associaaos acontecimentos.

A linguagem do romance, entretanto, flagra a impossibilidade de recuperação decertos valores míticos por parte do indivíduo às voltas com os processos demodernização e de transformação do espaço e, ao mesmo tempo, assume como valor,para a articulação da narrativa, uma concepção acerca do sagrado segundo a qual elenão pode ser racionalizável e, por essa razão, o indivíduo se situa, na relação queestabelece com o Lugar, numa posição que pode ser tanto de compreensão quanto deincompreensão, pois,

Se essa experiência for apreendida e compreendida [...] então este discurso que sepropõe apresentá-la deve necessariamente frustar-se enquanto discurso.// Umdiscurso que se propõe dizer com rigor a essência do que em seu vigor é indizível(nefando e/ou inefável), não pode cumprir-se a rigor (TORRANO, 1981, p. 11).

Talvez por isso, na narrativa de Lugar, a cisão entre os indivíduos e sua origemcorrobora uma espécie de desenraizamento que é razão dos questionamentos quenorteiam a existência da personagem Inácio. Disso resulta uma tensão com seuuniverso, uma necessidade imensa de entendê-lo para conhecê-lo e, talvez,representá-lo por meio da palavra. Enquanto isso, “o que ficava era um lamentoperpétuo de Gaio, um nunca mais o Avô se acabar de morrer. E essa desmemoría deGaio perpétuo capacitava Inácio ao sofrimento” (ADRIANO, 2010, p. 23).

Segundo o narrador, Inácio sente no peito um canto esvaziando, “unsdedilhados rememorosos de um tempo não havido” (ADRIANO, 2010, p. 23), umaperda à qual a narrativa do romance procura, de certo modo, reagir, em potência, àmedida que, na inflexão da voz a ser mobilizada a cada leitura, a cada enunciação,torna possível ou repete um ato original de criação e de significação: o próprio texto-lugar onde a narrativa de Lugar acontece e, de certo modo, recria esse Lugar,procurando salvá-lo da fatalidade, da fragmentação que pode acontecer em razão dojogo de forças que os questionamentos de Inácio acerca da história e da existência doLugar instauram em sua própria história – de Inácio e do Lugar.

O aspecto sensível da linguagem enquanto forma dotada de uma materialidade,que é a presença física do signo no plano da expressão, é o que a põe emfuncionamento e sustenta tal movimento de criação e descoberta das possibilidadesexpressivas de cada uma das personagens da narrativa e da própria linguagem doromance, cujos poderes, aí, são da ordem da magia, visto que criam, moldam,elaboram, transformam a própria linguagem na expressão desse Lugar. Maldavina,personagem que é a contadora de histórias do Lugar, é expressiva a esse respeito:

Todas as histórias Maldavina sabia, mas nem tudo era ela quem contava. [...]//Para as crianças do lugar, tinha reserva de histórias as mais bonitas. [...] tudo secriou das histórias dela. O vento que passa me disse [...]. Diziam os Homens deBastante Inteligência do Lugar que foi exatamente dessa forma que a Terra searredondara. E se deliciadas com uma história as crianças a queriam muitas vezesrepetida, pediam na linguagem de Vina: Faz o vento passar novamente... E elafazia. (ADRIANO, 2010, p. 17 – grifos nossos).

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De certo modo, depois de perdidas as origens, o Lugar imobilizado no tempo foisendo capaz de, paradoxalmente, moldar a sua própria mitologia, com suas históriasexplicativas, educativas e organizativas desse universo em que a palavra é a forçamotriz, o que constitui um meio de dimensionar e representar as próprias origens doLugar. A incorporação de narrativas orais à narrativa de Lugar corresponde, nessesentido, a uma tentativa de instituir uma união harmoniosa, capaz de enfrentar arealidade indivisa e violentamente caótica do Lugar, marcada pela separação,recorrendo a uma mitologia própria e primitiva também. No Lugar, todos estavam sobo poder de forças sobre-humanas – a Desgraça Pelada, a Alma Gulosa, etc. Noromance de Reni Adriano, a linguagem se torna, portanto, um recurso para o indivíduotentar recuperar seu sentimento de pertencimento ao mundo e para se conhecer a simesmo.

A degradação do Lugar, seu “desmemorío” impossível de esquecer, impõe aInácio a razão de sua existência: “Preciso desencravá-la, Tio Marío. Desencravar apalavra. E talvez, nesse dia, eu finalmente saiba o que eu mesmo te digo agora...”(ADRIANO, 2010, p. 77). Conhecer o Lugar por meio da linguagem torna-se, para apersonagem, um modo de recuperar ou atribuir sentido(s) a seu presente. Essanecessidade de descoberta da palavra corresponde a um desejo de iluminação, porparte da personagem. Para Inácio, entender o presente implica conhecer e interpretaro passado e tem como consequência, portanto, negá-lo enquanto saber absoluto,origem e fim de si mesmo, o que questiona o saber prático que, como tal, está fora doâmbito do que pode ser julgado em abstrato. Desencravar a palavra significa, paraInácio, conhecer o poder fundador do Lugar para emancipar-se nele.

No texto de Reni Adriano, as personagens, por vezes sem palavras, se veemangustiadas por estarem, aparentemente, mais preparadas para perceber o mundo pormeio dos sentidos do que para comunicá-lo. Incapazes de expressá-lo pela palavra,elas o sentem, o experimentam – “É barrentoso, lamuriento./ Solfejo pantanoso”(ADRIANO, 2010, p. 11) –, sem nunca desistir de encontrar a palavra: “A língua quearrancada língua minha fosse, presa em mim, essa dor de arrancamento. E tê-la presaainda, intacta, em parte do meu corpo” (ADRIANO, 2010, p. 11).

Trata-se de um desejo intenso de conhecer o mundo que as rodeia, como seesse universo fosse maior que sua capacidade de conhecê-lo, e, portanto, somentelançando mão de todas as possibilidades individuais de estabelecer contato com ele,fosse possível apreendê-lo. No plano escritural, vocábulos são criados ou rearranjados– “poucorpo”, “corpouco” – numa tentativa, por parte do indivíduo representado nanarrativa e, mesmo, identificado com a voz do narrador, de dar corpo a um mundo-signo transbordante, em que as próprias personagens parecem transgredir o termoque as nomeia: Inácio é também Início; Fago parece ser um (A)fago violentado; Isga,no final da narrativa, acaba manifestando-se, às avessas, em Siga, filha de Inácio;Maldavina é, sempre, a mesma e uma outra: Malda, Mal da Vina, Maldava. Trata-se deum universo em que a palavra aparece sempre metamorfoseante, às vezes mutilada,como se, nele, nunca se fosse capaz “de achar unguento que fosse para o silêncio dapalavra” (ADRIANO, 2010, p. 14), para os vazios de significado que caracterizam alinguagem desse Lugar, um paradoxo, já que é tal condição que institui aexpressividade estilística da narrativa de Lugar.

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Em Lugar, o modo como a linguagem é mobilizada para a construção danarrativa – presente nos próprios estratos de arranjo e combinação da linguagem –expressa, criticamente, a violência que envolve as personagens em seu dia a dia noLugar. O signo da violência se manifesta em todos os níveis de organização doromance: são fragmentos cuja continuidade encontra-se interrompida e só muitoadiante é recuperada, neologismos que, na busca de expressar a singularidade de umarealidade que não se coaduna à linguagem do presente, pressionam o leitor,referências que desestabilizam o signo e o tornam não localizável, etc. É, também, pormeio da violência que as personagens se comunicam, expressando amor, compaixão,ódio, carinho e desejo, num procedimento paradoxal que procura, simultaneamente,apagar a temporalidade das ações para tentar alcançar a “dimensão atemporal do atonarrado” (SANTINI, 2010, p. 173), como se a existência de tudo se devesse à palavraque cria.

Em certa medida, a narrativa se desenvolve a partir de uma tensão constitutivada própria realidade circundante do Lugar: enquanto a fatalidade parece serconstitutiva do próprio ser do Lugar, Lugar também é um mundo de magia, mítico,divino, estranhamente marcado pelo sublime de uma linguagem criadora e peloterrível de uma realidade dura e violenta. O investimento nos poderes da linguagem seapresenta às personagens, especialmente Inácio, como sendo o único meio capaz desalvar da morte os indivíduos representados na narrativa, não da morte física, mas damorte “da palavra calada. Porque [...] a gente morre é por não poder mais falar alíngua das grutas, das águas, das plantas. E por isso se sentir sozinho nessas solidões”(ADRIANO, 2010, p. 67). O que o texto faz, obsessivamente, é tentar recuperar, nocorpo da sua linguagem, “a língua das grutas, das águas, das plantas”, essalinguagem capaz de expressar ou revelar as origens (da própria linguagem, daspersonagens, do tempo, do Lugar), constatando, entretanto, que o indivíduo perdera acapacidade de falar essa língua primitiva e, portanto, tal língua se tornou “palavracalada”, incompreendida e, por isso, dolorosa para os indivíduos do Lugar. Nessesentido, Lugar procura instalar sua linguagem no campo de uma experiência, mas seflagra, permanentemente, impossibilitado de uma experiência plena, dada a cisãoentre o indivíduo e sua(s) origem(ns) (BENJAMIN, 1986). A nostalgia de uma origem,no romance, cria para as personagens a demanda de uma nova linguagem, capaz deaproximar os indivíduos entre si e, talvez, de representar seus próprios vínculostelúricos perdidos, para tornar possível uma tentativa de continuidade da história dopróprio Lugar. O meio encontrado para levar a diante essa busca é lançar mão de ummodo de interromper a atemporalidade que os condena: a violência.

A violência, que, por si própria, é impotente, tem valor instrumental (ARENDT,1970), e sua mobilização no romance se deve a uma necessidade de ampliar o vigordos indivíduos representados, tornando-os capazes de suportar as agruras do Lugar e,potencialmente, de tornar representáveis as formas da sua própria violência, parapromover a multiplicação do vigor das personagens tornando-as emancipadas nele(talvez isso só se dê com Inácio, como já comentamos). Trata-se da única alternativaaparentemente possível de sobrevivência num Lugar cujo tempo circular fora solapadopelas ações invasivas do progresso e da máquina. Esse Lugar é, no presente de umanarrativa que só porta o tempo presente, um não lugar. Em certa medida,

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Fragmentado pelos silêncios e pelas interdições que marcam a vida dospersonagens que lhe dão sentido, Lugar é rasurado pela rusticidade, pelasimplicidade de habitações típicas do sertão ou da zona rural de qualquer regiãointeriorana, onde se vive do trabalho das mãos e do amassar do pão, onde adesgraça e a violência física misturam-se às imagens também violentas e trágicasde histórias populares plasmadas ao enredo. Assim como o sertão, que “está emtoda parte.” (ROSA, 1986, p.1), Lugar pode estar em qualquer lugar (SANTINI,2010, p. 175).

Em Lugar, as relações entre indivíduos, entre indivíduos e animais e entreindivíduos e o meio se dão, sempre, por relações de força. De certo modo, taisrelações parecem constituir, no universo das personagens, um prolongamento dasforças da própria natureza, junto à qual somente a violência nas relações entre osseres parece, de acordo com a lógica interna do relato, ser capaz de determinar “odepois” das personagens.

2. Manifestações da violência nesse Lugar

Na narrativa de Lugar, a violência aparece ora como força, ora como vigor, oracomo violência propriamente dita. Segundo Arendt (1970), o conceito de força,inicialmente, está vinculado às forças da natureza, e em Lugar, a força constitui-senum meio de expressão de sentimentos ou desejos, pondo em relação ora osindivíduos entre si, ora os indivíduos com o seu meio.

Num dos fragmentos da narrativa do romance, conta-se sobre certo momentoem que Gaio e o pai apanharam para si dois cachorrinhos ainda filhotes. O paiescolhera um que, segundo suas características, era briguento, arisco, ágil, hábil paraa caça e a vida no Lugar. Gaio, por outro lado, se encantara justamente com um que,aparentemente, seria de pouca serventia, e “o pai quis ceder só de ódio. Aquelaspresenças expunham caladas o que nenhum deles podia pensar: o menino tinha poucomedo do pai” (ADRIANO, 2010, p. 46). Desse modo, no romance, as ações procuramsuprir uma demanda de comunicação que não se dá de outro modo, isto é, não pormeio da palavra, mas, apenas, por meio de ações duras, expressão concreta desentimentos ainda incomunicáveis e, portanto, informes. A palavra das personagensaparece, em geral, revestida em atos e ações. Na continuação do trecho referido danarrativa, todos os cachorros são incitados a perseguirem um gato. Depois de morto ogato, a sequência da história narrada é a seguinte:

Mal viu o filho chegar e desferiu as cacetadas certeiras na cabeça do Baixinho presoao cambão do galinheiro. Um olho saltado para fora à primeira bordoada, a bolotaolhuda só um estufo, caroço ainda preso a um fio de gosma esbranquiçadasubitamente minada das órbitas. Outra bordoada e o arreganhado dos dentes sedesconjuntavam na quebradura do instrumento. O estufo da barriga d’água, outrabordoada, e as tripas saltando avolumadas pelo estreito traseiro. (ADRIANO, 2010,p. 51-52).

Desferir toda a raiva num dos animais representa para o pai, no âmbito dorelato, um meio de punir-se a si mesmo, mostrando, paradoxalmente, ao filho aprópria força. No entanto, no trecho em questão, a ação puramente violenta é

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relativizada pelas imagens resultantes, num procedimento do qual ressalta, ainda, opróprio lirismo (bárbaro) do corpo a corpo entre o indivíduo e sua linguagem (a ação)que, aqui, constitui a ponte para a linguagem da narrativa. Se, por um lado, asimagens resultantes referem-se a uma ação agressiva, a focalização particular esucessiva de cada parte violentada do animal, como aparece no texto, acaba pordestacá-las de seu contexto, desreferencializando-as, o que, portanto, asredimensiona em seu potencial estético: “Um olho saltado para fora”, “a bolota olhudasó um estufo, caroço ainda preso a um fio de gosma esbranquiçada subitamenteminada das órbitas”, “o arreganhado dos dentes” e “as tripas saltando avolumadaspelo estreito traseiro” passam a designar, antes de mais, formas físicas puras, quesão, em princípio, matéria, mas não necessariamente matéria canina, e sim parte deum ambiente mais amplo, o violento Lugar.

A estratégia textual da narrativa consiste em anular, em parte, o potencial daviolência enquanto ação sem nenhum fim em si mesmo, transformando-a em eventocuja representação, por meio da linguagem, desautomatiza um processo rotineiro, queé a própria violência como condição de existência do Lugar. Não se trata de vencernem de driblar a violência, mas de destacar dela o que pode ser linguisticamenterepresentável, também, de modo agressivo e potencialmente violento. A brutalidadedo cotidiano, na narrativa, se dá a ver violentamente, apresentando-nos o belo erústico que há nos seres e nas relações individuais no Lugar. Essa relação tensa entreo indivíduo e seu meio, na qual a energia é mobilizada tanto para a (auto)agressãoquanto para a produção de um efeito catártico, se associa, ainda que por contraste, àrelação entre os indivíduos, no Lugar:

[Pai] era tão bruto com mãe, uma cara fechada que engoliu o capeta, brabeza desatanás. Só amansava no final de semana, mãe deixando a roupa limpinha, pronta,desentortando a gola no pescoço de pai, puxava a orelha dele de brincadeira parapai não amarrotar a roupa na hora de se arrumar. Era bonito em casa nessa hora.Mãe e pai pareciam um casal. (ADRIANO, 2010, p. 56).

A rudeza dos contatos por parte do pai contrasta com a meiguice das ações damãe, do que resulta uma manifestação estranha de amor, em que força e submissãose alternam para, ao final, se conciliar – “Mãe e pai pareciam um casal”. Um amor queé, também, amor de bicho, macho que tem a obrigação de cuidar dos seus e de serduro com eles para mostrar-lhes sua autoridade e manter o grupo coeso e, também,em harmonia. Porque, no Lugar, a natureza se confunde com a história, e as ações doindivíduo retomam, em geral, forças ancestrais herdadas dos costumes da própriaterra. Ser indivíduo-animal, nas histórias do Lugar, é uma forma de enfrentar, comforça e saber prático, as agruras e a brutalidade com que o indivíduo se defronta emseu cotidiano.

Em Lugar, a força também se manifesta associada à palavra, tornando-se umapalavra-força capaz de reger as próprias leis da natureza do Lugar. No romance deReni Adriano, tudo o que acontece se dá sob a ação da palavra: “No dizer expirouGaio. Não em sonho, mas acordado, olhos que se abriram no reverbero das palavras:o avô morto, viu Inácio” (ADRIANO, 2010, p. 12 – grifos nossos). O mesmo poder

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enunciativo que, no plano simbólico, dá vida ao indivíduo, é capaz de subtrair-lhe avida. Revelando-lhe “o abismo, cortaram-lhe a palavra” (ADRIANO, 2010, p. 13).Palavra que é, também, violenta, no plano simbólico, na medida em que molda osdestinos das personagens. Da ausência da palavra surge, na narrativa, a expressãofísica da dor imposta pelo silêncio da “palavra-calada” dos indivíduos, condenados auma comunicação precária, sempre dor: “dor é sobretudo uma carne humana. A carnede que Izé era feito e de que nem Lurdia nem Inácio nem Isga e ninguém todos dolugar se livravam” (ADRIANO, 2010, p. 35-36). A essa dor-palavra-calada osindivíduos reagem de modo questionável, numa tentativa de expressar-se a simesmos, mas, em geral, sob os auspícios de uma força maior: o próprio Lugar.

Em Lugar, a palavra dá forma e existência às coisas: “Lugar era regido pelo piorxingamento de Isga – e a tia mesma, que tanto xingava, não o sabia: estavam sob osauspícios da Desgraça Pelada” (ADRIANO, 2010, p. 27). O que inicialmente podeparecer, simplesmente, a incorporação pela narrativa de mitos e histórias popularespertencentes ao folclore brasileiro, passa a desempenhar, no texto, função construtivado relato (TINIANOV, 2004), moldando a própria narrativa. O mito da “DesgradaPelada” não só é recontado no romance, mas se torna, também, força determinante deacontecimentos narrativos internamente à história narrada. É o que se nota nocomportamento da personagem Lurdia:

Os ataques de Lurdia começaram numa noite em que ficou se balançando até maistarde. [...] Isga subiu na árvore em que amarravam o balanço e o decepou com umfacão, berrando com voz cavernosa grossa: Cuidado com a Desgraça Pelada! Egargalhava.// Mas Isga nessa noite apanhou tanto que até Nadinha acordou de dó.Tio Marío deu-lhe um soco no brotinho do seio, onde por isso Isga nunca teve peito,e assim se achando mais desgraçada. Vestida ou pelada – Isga com seu peito umsó (ADRIANO, 2010, p. 33).

Inácio acorreu a Lurdia, que chorava gritando, gemendo, e ria a ponto deconvulsionar. [...] Tende piedade, Isga! Não, irmã, não castiga! Eu nunca xingueidesgraça pelada! Tenho medo, Isga, da mula-de-cabeça do quarto do Marío semcabeça, tenho medo desgraçapeta! Tende piedade, Desgraça! Nunca mais eu digo,Maldavina, Mão Carida, me dês graças! Livrai-me do bicho-bicho! Ai, me dês, aí,me dês graças! (ADRIANO, 2010, p. 30).

Dos xingamentos de Isga resulta uma espécie de invocação que passa adeterminar comportamentos de personagens e acontecimentos na narrativa, como semarcasse uma Era no Lugar, a Era da Desgraça Pelada. Reitera-se, no romance,entretanto, uma estratégia constante, que é a expressão de um corpo a corpo com alinguagem, em que o indivíduo procura dominar e subverter sua relação com alinguagem, numa tentativa de desestabilizar a violência rotineira (simbólica e de fato)que caracteriza a realidade do Lugar. O xingamento vai se tornando ambíguo, misto dexingamento e invocação, até converter-se em súplica pelo mesmo e,simultaneamente, por algo novo: “Tende piedade, Desgraça! Nunca mais eu digo,Maldavina, Mãe Carida, me dês graças! Livrai-me do bicho-bicho! Ai, me dês, aí, medês graças!”. Desgraça ou graça, as forças do Lugar são sempre ambivalentes, esomente o vigor do indivíduo em seu contato com a palavra parece ser capaz deromper a lógica desse universo.

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O vigor é, de fato, a marca de algumas das personagens do romance,especialmente Gaio e Inácio, não por coincidência, origem da família (no recorte quedela faz a narrativa do romance) e início de algo novo, respectivamente, ambosresponsáveis por transgredir uma determinada ordem, para que outra se estabeleça,ainda que restrita ao âmbito individual. No caso de Gaio, ele dá origem a umatemporalidade que estabelece um conflito da ordem da própria existência da famíliacom o passado e com a fundação do presente. Inácio, por sua vez, promove um saltorumo ao novo e ao dissonante, ao desconhecido cuja promessa é a esperança queainda resta para a sobrevivência do Lugar. Gaio e Inácio cumprem uma função:interromper aquilo que de outra maneira teria prosseguido automaticamente e,portanto, de forma previsível (ARENDT, 1970).

Num lugar em que natureza procura determinar o caráter (violento) das açõesdos indivíduos, a não aceitação plena de tais normas constitui, para Gaio e Inácio, umacaracterística própria de si e um meio de tentar conquistar para si um modo derelativizar as forças do Lugar sobre o indivíduo. Ambas as personagens procuram fazerisso investindo na palavra como meio de libertação, alternativa à indefinição e aocaráter não localizável do Lugar. Gaio o faz ao construir uma casa e separar-se dela, eInácio ao iniciar outra Era do Lugar. Como nota Santini, “a referência espacial do títulocoloca-se, na verdade, como uma antirreferência” (SANTINI, 2010, p. 171), o quedeixa sem resposta perguntas como: o que é Lugar? E, que Lugar é este?

O vigor de Gaio e Inácio está, pois, na tentativa que empreendem, cada um aseu tempo, de conhecer o Lugar, por meio de suas histórias, pela própria vivência e,enfim, por meio da palavra. Segundo o narrador: “Lugar era o proibido. Uma doençaque se dobra sobre si mesma e multiplica, redobrando-se quantas vezes mais sepronuncia aquele próprio nome” (ADRIANO, 2010, p. 102). Lugar torna-se, paraInácio, presença de um passado cuja dureza se faz presente, mas cujas experiênciasbelas desapareceram: Maldavina já não conta histórias, o avô expirou no dizer, etc.Com isso, o Lugar se desdobra e se multiplica em sua “doença” e vai se tornando“cada vez mais estreito” (ADRIANO, 2010, p. 102). Nesse aspecto, por um lado, oLugar continua indefinido, mas, por outro, vai ganhando contornos históricos eculturais reconhecíveis: “Lugar que sempre crescia, ampliando projetos do ciclo, aspatrolas rasgando a noite e o dia” (ADRIANO, 2010, p. 102). Lugar é, aqui, o interior,onde o progresso demorou a chegar, mas quando se apresentou, mesmo deficiente,acabou por alterar sensivelmente o ambiente e os modos de vida ali existentes.

O contato entre o Lugar cujo tempo é circular e o Lugar em transformação quevai se descaracterizando enquanto espaço mítico aproxima temporalidadesinconciliáveis – a atemporalidade mítica e as transformações do espaço que o tornamuma realidade temporal –, o que o desmistifica, de certo modo. “De raízes degameleira arrancada a tratores, raízes expostas esguichando a água decantada nasenormes formas das plantas. Raízes-troncos que vão buscar todas fundas, agarradas,tensas, vorazes cobras” (ADRIANO, 2010, p. 102). A descoberta do presente emestado de mudança confere ao Lugar uma existência temporal que o desvincula de seucaráter orgânico, o que o texto expressa, no trecho acima, ao mostrar o modo abruptoe violento como o ambiente vai se transformando. Paradoxalmente, enquanto se

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desmistifica e se atualiza, o Lugar se dá a ver em suas entranhas, mostrando que seuvalor simbólico está, justamente, em seu pertencimento à terra, local e tão particular,que chega a ser visto como se fosse o próprio mundo.

É essa ruptura abrupta das leis próprias do Lugar que impõe a Inácio anecessidade de empregar seu vigor para tentar fundar um novo Lugar, um Início, istoé, o seu Lugar. Da impossibilidade de recuperar esse Lugar que está se perdendo,Inácio extrai sua palavra definitiva: “Cale-se! Afasta de mim esse pai” (ADRIANO,2010, p. 103). Essa fala, cujo intertexto bíblico é evidente,1 aponta para o conflitodramático por que Inácio passa: ao se defrontar com a necessidade de continuar comseu projeto de ruptura, também lhe advém o medo associado a tal escolha, em razãoda cisão que tal rechaço da presença-força do Pai-avô representa para si e para aexistência de toda a família, o que, de certo modo, se metaforiza e se amplia, pondoem questão a existência futura do próprio Lugar. Nesse sentido, não é difícil notar, emInácio, certos pontos em que sua história apresenta homologias com a história deCristo: ambos fundam uma nova ordem, estabelecendo uma divisão de tempo e ainstituição de um espaço aberto ao questionamento de ordens até então estabelecidas.Há que ressaltar, porém, uma distinção em relação ao trecho intertextual citado:diferentemente da narrativa bíblica, em que a força do pai mítico se sobrepõe, e o filho(Cristo) faz a sua vontade, em Lugar, é o vigor de Inácio que ganha destaque e lhepermite levar adiante seu projeto de construção de uma nova temporalidade.2

Ao tomar consciência das transformações do Lugar, Inácio rompe com acircularidade do tempo do Lugar, e o que se perde deixa de ter sentido em seupresente. A negação de uma voz perdida – “Cale-se!” – é, também, a constatação deque não é possível recuperá-la plenamente. Morreu o Pai (mítico), e o Lugar sedesenraizou por ter se tornado impossível a percepção do primitivo em cada um dosseus indivíduos: “tanta coisa se dependurou nas janelas-teares de Maldavina que nadadaquilo fazia ditos de sentido nem mesmo para ela” (ADRIANO, 2010, p. 103). Amudança se dera não só com o Lugar, mas com seus habitantes e com sua capacidadede perceber o primitivo. Desse modo, o vigor de Inácio, em seu apelo-resolução está,pois, em expressar a dor da perda, ao mesmo tempo em que procura algo novo. Esselamento não deixa de apresentar, no plano simbólico, um tom de rechaço à própriaviolência naturalizada que tinha fundado esse Lugar.

No plano da história narrada, o Lugar se põe como algo que existe desdesempre e Gaio é quem marca a cisão entre dois espaços e tempos. Sem nunca seafastar da imagem mítica do Lugar, Gaio nunca explicou suas razões, impondo umgrande silêncio sobre sua escolha. Ao desejar: “Afasta de mim esse pai”, Ináciorompe, também, um tempo naturalizado: o do silêncio.

1 Estando com os apóstolos em Getsêmani, “Jesus foi um pouco mais adiante, prostrou-se porterra e pedia que, se fosse possível, aquela hora se afastasse dele. Ele rezava: ‘Aba! Pai! Tudoé possível para ti! Afasta de mim este cálice!’” (MARCOS, 14, 35-36 – grifo nosso).

2 Trata-se de uma diferença mais ampla, que não nos cabe esgotar aqui, pois, no texto bíblico, amorte de Cristo é parte de uma trajetória a ser cumprida por ele, como vontade do pai, para aascensão do filho, isto é, do próprio Cristo, e para a afirmação do poder do pai, enquanto emLugar, o embate com a imagem do pai se constitui num modo de o filho assumir, para si, umaexistência que possa desvencilhar-se do silêncio que caracteriza o modo de existência impostopelo Pai-avô, pois tal silêncio sustenta a temporalidade até então vigente nas relações dafamília e, por extensão, do próprio Lugar.

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3. Esse Lugar não é longe daqui

A narrativa de Lugar, ao desdobrar-se a partir de uma profunda consciência deuma realidade social e da valorização de mitos que constituem a cultura popular dointerior do Brasil, insere-se num campo escritural amplo do sistema literário brasileiro,que é o das narrativas que tocam o aspecto social das relações entre indivíduos eentre o indivíduo e o meio. Entretanto, ao assumir como realidade transcodificável pelalinguagem literária uma região interiorana sem referências claras e objetivas, Lugarredimensiona, internamente à história narrada, a noção de regionalismo, uma vez quese incursiona, também, no plano mitopoético da linguagem. Como já observou Santini(2010), Lugar pode estar em toda parte e em lugar nenhum, o que, nesse sentido, oaproximaria, pois, da concepção rosiana acerca do sertão-mundo do Brasil.

O investimento da narrativa do romance na representação, via linguagem, deum lugar marcado pela violência, pela tensão entre o indivíduo e o meio e pelacarência de uma linguagem que os expresse, a qual deve ser criada (e é o que oromance pretende fazer), aproxima Lugar da vertente da produção narrativa brasileirado romance de tensão crítica, que se estende por diversas gerações de escritores eque, definida por Alfredo Bosi, é aquela em que “o herói opõe-se e resisteagonicamente às pressões da natureza e do meio social” (BOSI, 2001, p. 392). Decerto modo, as homologias entre as tensões do indivíduo e o meio, ao longo danarrativa de Lugar, também aparecem em outras obras da literatura brasileiraregionalista, o que situa, pois, esse romance num campo mais amplo de criaçãoliterária. Tais tensões são: Lugar indefinido/universal; indivíduo calado/ameaçado pelaausência de uma linguagem capaz de dar-lhe relevo em sua relação com o espaçofísico e com o tecido social; e luta pela sobrevivência calcada em estratégias cuja basesão o enfrentamento da força da natureza por meio do vigor individual e da violênciacomo estratégia de desautomatização de acontecimentos que procuram silenciar oindivíduo. Trata-se de um paradigma crítico que encontramos, também, em OsSertões (1902) e em Vidas secas (1938), por vezes na poesia de Ferreira Gullar, ou,mesmo, em algumas músicas de Chico Buarque.

Como o livro de Euclides da Cunha e o de Graciliano Ramos, Lugar segue umalinha narrativa de valorização do regional e interiorano que efetua a representação deuma realidade em que os fatos e o local são criados ou transpostos para o literário demodo a expressar as fraturas nas relações sociais, nessa sociedade, e os efeitosdolorosos que produzem no indivíduo, acabando por privá-lo, por vezes, do acesso àprópria subjetividade ou por condená-lo ao desenraizamento e, mesmo, à morte. Aspersonagens de Lugar são, como as personagens históricas mencionadas em Ossertões ou como Fabiano, de Vidas secas, representações do que é, para o indivíduodo interior do sertão brasileiro, ser, antes de tudo, um forte em busca dasobrevivência e da subjetividade cerceadas pelo meio e pelo autoritarismo que afetamas relações entre modos de vida e concepções sobre o mundo que separam duasrealidades: o litoral e o interior. Nesse sentido, trata-se de obras que traçam umretrato simbólico da face cruel do Brasil e de seus processos questionáveis demodernização, apresentando-nos as distopias entre o litoral e o interior, o tempo domito e o tempo do progresso, o novo e o velho e, enfim, o indivíduo (do interior) como meio.

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Lugar mostra-se, portanto, um romance comprometido com a natureza, com ohomem e com a sociedade e expressa a crença de que as tensões sociais perturbamtanto as relações interindividuais quanto o meio e a própria ordem temporal em que osacontecimentos se desenvolvem. Desse modo, no plano formal, Lugar se insere numâmbito de diálogo crítico com o processo criativo dos anos 60-80 do século XX, quetem base na produção das vanguardas modernistas, já retomadas, por sua vez, emprojetos individuais, desde anos 30 e 40 do século XX, por exemplo, em GracilianoRamos, Guimarães Rosa e Clarice Lispector.

Como Ferreira Gullar em “Poema brasileiro”,3 Reni Adriano, em Lugar,desreferencializa a realidade do interior do Brasil transposta para a linguagem doromance, tornando-a esteticamente significativa para a linguagem narrativa dopresente, e, ao mesmo tempo, corrobora a ideia de que, no Brasil, vida, morte eviolência (simbólica e de fato) são elementos estruturais ainda vigentes na base dasrelações que norteiam a organização e a disposição da sociedade. Entretanto, por meioda tensão criada entre a linguagem e o mundo que ela designa, o romance mostraque, mesmo se não for possível extinguir plenamente tais mazelas, é possível, aomenos, desautomatizá-las e, desse modo, fazer a crítica de tal condição e do modoviolento como ela procura impor-se como sendo natural ante os indivíduos. Nessesentido, Lugar se faz, também, de modo violento, por meio de uma linguagem carentede referentes claros, fragmentada, em que o signo transborda-se, remetendo a outrossignos, desdobrando-se e, portanto, metamorfoseando: Gaio-Gaia, Inácio-Início, Isga-Siga, etc.

O possível diálogo crítico-paródico que a fala de Inácio em “Cale-se! Afasta demim esse pai” (ADRIANO, 2010, p. 103) estabelece com a canção “Cálice”, de ChicoBuarque, justamente num trecho da narrativa em que o protagonista se tornaconsciente de seu passado, não parece ser mera coincidência. Há, no trecho, umainversão na construção da letra da canção de Chico Buarque, que diz: “Pai! Afasta demim esse cálice”. Por um lado, para Inácio, é importante afastar o peso mítico do “Pai-avô” para a emergência de novos horizontes e, por outro, seu gesto está, também, emconsonância com o do eu-lírico da canção, por desejarem, ambos, afastar o legado debarbárie que até então sustentavam a ordem do Lugar sob a marca do silêncio, oucomo nos diz a própria narrativa, o domínio da “palavra-calada”. De maneira discreta,mas expressiva, cada um dos textos encontra um modo de posicionar-se criticamenteem relação às marcas do autoritarismo que reaparecem na vida do indivíduo, ao longoda história brasileira, sob distintas formas, como: o atraso social de regiões relegadasà própria sorte; as alterações na vida do indivíduo e na realidade do meio, no interior,em nome do progresso, correspondentes a projetos falhos de modernização que nãoalcançam a todos e desconsideram as micropolíticas constitutivas da vivência de cadalugar, com suas crenças, seus costumes, suas lendas e seus mitos, extirpando-os doshorizontes de cada população e, desse modo, apagando sua história; e os própriosprocessos políticos instituídos violentamente e mantidos por meio do silenciamento dosindivíduos, a partir do uso da violência, etc.

3 No Piauí de cada 100 crianças que nascem/78 morrem antes de completar 8 anos de idade//NoPiauí/de cada 100 crianças que nascem/78 morrem antes de completar 8 anos de idade//NoPiauí/de cada 100 crianças/que nascem/78 morrem/antes/de completar/8 anos de idade//antesde completar 8 anos de idade/antes de completar 8 anos de idade/antes de completar 8 anosde idade/antes de completar 8 anos de idade (GULLAR, 2000, p. 159).

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A consciência estética da narrativa de Lugar está, portanto, em procurar umalinguagem para a representação de questões pertinentes à discussão da dura realidadeda vida do interior do país, fazendo-o de modo a criar outra realidade, por meio deuma linguagem que recupera elementos estruturais topográficos e históricos quepodem, sim, ser associados a regiões e contextos definíveis no plano histórico e social,mas cuja autonomia, no plano narrativo, faz do Lugar onde se desenvolve a narrativado romance uma realidade que é, também, autônoma, discursiva, arranjada pelalinguagem e, logo, construída com fins estéticos.

A consciência crítica se faz presente no romance, pois fica a sugestão de queambas as realidades se coadunam à ação humana, porém se distinguem porque arealidade criada pela narrativa com fins estéticos, internamente ao romance, buscarepresentar, sob a ótica de individualidades identificadas com personagens, um idealhumanizador (CANDIDO, 2002), com objetivo de restaurar ou de conferir subjetividadeaos indivíduos representados, oferecendo-lhes uma linguagem. Logo, a realidadeestética criada pela linguagem se diferencia da realidade histórico-social, que, por suavez, também porta traços de escolhas políticas (individuais) em sentido amplo, mas,em geral, tais determinações são desprovidas de vínculos com a subjetividade doindivíduo em cuja vida as ações interferem, pois desconsideram seus dramasindividuais. A realidade histórico-social é violenta no modo como opera suas ações,transformando ou determinando, por vezes, os destinos dos indivíduos e do própriomeio sem levar em consideração o que lhe é próprio. Dessa forma, Lugar dialoga comuma perspectiva narrativa que, no século XXI, aponta para a fecundidade e para acapacidade expressiva de realidades ainda hoje significativas para a produção literáriabrasileira, presentes em nosso sistema literário há mais de um século, identificadascom a noção de regionalismo, a partir de um tratamento crítico do próprio conceito.

Referências

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GULLAR, Ferreira. Toda poesia (1955-1999). Rio de Janeiro: José Olympio Editora,2000.

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Title: A diffuse and violent place, not far from here: the first novel by Reni Adriano

Abstract: In this article we analyze the novel Lugar (2010), by Reni Adriano. Thework aims to discuss the constructive procedures of the narrative that can bedescribed as a reconstruction of popular and oral short-stories, the representation ofthe sertão man and the expressions of the violence. These structural elements areappropriated in the text to create a mythic place where the characters of the novellive. The Adriano’s novel does a critic reading of the opposition between the inland andcoast Brazilian regions and his narrative dialogues with a regionalist approach of theBrazilian Literature.

Keywords: Reni Adriano. Representations of the violence. Regionalism. ContemporaryBrazilian Narrative.

Recebido em: 25/02/2013. Aceito em 17/06/2013.

Crítica Cultural (Critic), Palhoça, SC, v. 8, n. 1, p. 132-138, jan./jun. 2013

Palco movediço: questõespara o teatro de Machado de Assis

Rafaela Scardino∗

Resumo: Analisaremos a comédia O caminho da porta, de Machado de Assis, a partirda proposição de Cecília Loyola, para quem o teatro machadiano nos oferece aparatosrealistas — como os cenários e o prosaísmo das situações que motivam o enredo —mas retira-lhes a estabilidade da estrutura nuclear, que substitui por outra, múltipla emovediça. Um exemplo dessa retirada de estabilidade seria a proposta machadiana deum raisonneur deliberadamente desacreditado, que significa um afastamentoconsiderável em relação à estrutura realista.

Palavras-chave: Machado de Assis. Literatura brasileira (teatro). Comédia. Teatrorealista. Raisonneur.

A atuação de Machado de Assis como crítico teatral foi especialmente intensa emseus anos de juventude, antes que viessem a público seus romances e coletâneas decontos. Poderíamos mesmo, juntamente com José Roberto Faria (2004), apontar umperíodo de “crítica militante”, em que o autor alimentava a crença na funçãomoralizante do teatro e condenava o grande volume de obras neoclássicas eromânticas levadas ao palco naqueles dias por serem obras que se afastavam doconfronto com a realidade social. Em um de seus artigos, Machado defende que oteatro seja “uma iniciativa de moral e civilização” (apud Faria, 2004, p. 306) e,criticando as peças românticas encenadas à época, afirma que

a arte não deve desvairar-se no doido infinito das concepções ideais, masidentificar-se com o fundo das massas[...].Copiar a civilização existente e adicionar-lhe uma partícula é uma das forças maisprodutivas com que conta a sociedade em sua marcha de progresso ascendente.(apud Faria, 2004, p. 306)

A partir deste fragmento, podemos detectar a admiração do autor pelo modelodo teatro realista francês, que tem como uma de suas principais características umempenho moralizante voltado para os valores caros à burguesia oitocentista.Referindo-se, muitas vezes, a essa forma teatral como “arte moderna” ou “teatromoderno” (cf. Faria, 2004), o jovem Machado de Assis valorizava sobremaneira suacapacidade de, ao trazer para o palco situações mais prosaicas, com atuações menosexageradas, delinear a correção dos vícios através da reafirmação de certasinstituições burguesas.

∗ Doutoranda em Letras pela Universidade Federal do Espírito Santo.

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Chamada, à época, de “escola de costumes” (Souza, 2006), tal estéticabaseava-se numa cópia da sociedade agregada a lições de caráter moralizante.

De modo geral, comédias realistas privilegiam o recinto familiar como local daação, e entre seus temas mais recorrentes encontram-se a infidelidade e o casamentopor interesse, atitudes que atentam contra virtudes caras à ideologia burguesa, comoa vida familiar harmônica, a honra e a fidelidade.

Uma outra característica marcante é a presença do raisonneur, personagem cujafunção é, por excelência, didática, atuando com porta voz das ideias moralizantes aserem transmitidas pela obra. Figura importante da comédia realista, o raisonneur éfrequentemente ligado ao autor do texto, pois através de suas falas plenas deconsciência moral, o autor buscaria elevar os valores da plateia.

A comédia O caminho da porta (Assis, 1962) é um dos primeiros textosdramatúrgicos de Machado de Assis. Publicada no período em que o autor trabalhoucomo censor no Conservatório Dramático, a peça, estruturada em um único atodividido em dez cenas, tem toda a sua ação concentrada na casa de D. Carlota, umaviúva pertencente à burguesia carioca de meados do século XIX que recebe a visita detrês possíveis pretendentes.

Como dito anteriormente, é clara a inclinação do Machado crítico em direção àcomedia realista. Contudo, propõe-se, no presente trabalho, que a produçãocomediográfica de Machado, contemporânea à sua produção crítica, afasta-se, aindaque sutilmente, do estilo realista. Apoiamo-nos, para tanto, em Cecília Loyola (1998),para quem o teatro machadiano nos oferece aparatos realistas — como os cenários e oprosaísmo das situações que motivam o enredo — mas retira-lhes a estabilidade daestrutura nuclear, que substitui por outra, múltipla e movediça. Um exemplo dessaretirada de estabilidade seria a utilização machadiana do raisonneur.

Já vimos que a esse personagem são delegadas funções didatizantes e étambém a ele que é ligada a figura do autor do texto, como se suas falas fossemrepresentativas das crenças e opiniões do dramaturgo. Sobre tal personagem, Silviade Souza escreve que

[c]om o teatro realista [...], o autor passou a aparecer sob as vestes do raisonneur.Raymond Willians observou que esta nova personagem, que cumpria no enredo afunção de unir tese e exposição de ideias, acabou por ajudar a transformar acomédia realista numa forma dramática quase única, por ser completa acongruência existente entre seu público-alvo, pertencente a um determinadosegmento social — a burguesia; seus dramaturgos, oriundos deste mesmo meio, eseu material dramático, preso a esta mesma vida. Vindo reiterar tais observações,cabe salientar que raisonneur era geralmente inspirado em advogados ou médicos,o que além de confirmar a ideia de Willians sobre sua vinculação com um dadosegmento social aponta, adicionalmente, para a função simbólica da qual estavarevestida a personagem que tinha na ação a função de diagnosticar o erro ou adoença, para os demais personagens e para as plateias, prescrevendo-lhe a penaou a cura. (Souza, 2006, p. 240)

Em O caminho da porta, essa função cabe, aparentemente, ao personagemDoutor Cornélio, um advogado que vai à casa de D. Carlota sob pretexto de convidar-lhe para a ópera. Seria, inclusive, adequado propor que o próprio personagem buscaimpor-se ao texto como aquele que detém o “poder de cura”.

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Logo na primeira cena, Dr. Cornélio empenha-se em dar conselhos a Valentim,um jovem que busca conquistar o coração da dona da casa, e, numa tentativa deconferir autoridade a si mesmo, afirma ser “a verdade em pessoa” (Assis, 1962, p.78). Também as opiniões desse personagem, numa visão que se ligasse à tradição dacomédia realista, seriam aquelas correspondentes às de Machado, especialmente porsuas críticas à atitude romântica. Mostrando-se sempre cético e analítico, Dr. Cornélioaparenta ser imune ao sentimentalismo, que apenas lhe interessa enquanto objeto deestudo. Liga o romantismo à doença, e afirma que foi curado graças a “uma dose deveneno tremenda” (Assis, 1962, p. 94).

Partindo das informações elencadas, poderíamos ver, em tal personagem, afigura do raisonneur, de acordo com as regras da comédia realista francesa. Mas seacompanharmos o texto machadiano, logo nos damos conta de que a estrutura realistaé ali subvertida e o pretenso raisonneur torna-se, então, motivo de riso. Em primeirolugar, sua tentativa de ser aquele que aponta os erros e lhes propõe um corretivo édesacreditada pelos outros personagens, como podemos ver no excerto abaixo:

CARLOTA — Ora, venha cá. [...] Admito que o seu amigo ande apaixonado pormim. Quero admitir também que eu seja uma namoradeira...DOUTOR — Perdão: uma encantadora namoradeira...CARLOTA — Dentada de morcego; aceito.DOUTOR — Não: atenuante e agravante; sou advogado!CARLOTA — Admito tudo isso. Não me dirá donde tira o direito de intrometer-senosatos alheios e de impor as suas lições a uma pessoa que o admira e estima, masque não é nem sua irmã nem sua pupila?(ASSIS, 1962, p. 96)

Não obstante, na sequencia desta mesma cena, ficamos sabendo as verdadeirasrazões que o conduzem à casa da viúva: há algum tempo, buscou fazer-lhe a corte, noque não obteve sucesso. Sua preocupação com a eventual decepção de Valentimreveste-se, então, de simples despeito, uma tentativa de ser um obstáculo ao possívelromance entre os jovens. Quando perguntado, por Carlota, de onde tiraria o direito depregar-lhe sermões, Cornélio responde que se vale do “direito da desforra” (Assis,1962, p. 97), ao que é avisado pela mulher que esta confere, às suas palavras, “ovalor que merecem” (Assis, 1962, p. 97), que vem a ser valor nenhum. E valendo-seainda mais uma vez da polidez superficial dos salões, a viúva informa-lhe quecontinuará a recebê-lo e a Valentim da mesma forma, e que continuará a ouvir “compaciência evangélica as suas prédicas não encomendadas” (Assis, 1962, p. 98), àsquais já sabemos que não atribui qualquer valor de ensinamento.

Podemos ver que Machado, deliberadamente, propõe um raisonneurdesacreditado, um afastamento considerável em relação à estrutura realista. Aindaassim, não podemos afirmar que não existam, na peça, momentos que não se prestemao empenho moralizante. A diferença é que tais lições de moral possuem um pano defundo que, opostamente àquele esperado, não propõe total congruência com a plateia,mas sim lhe oferece a oportunidade de um aprendizado que se dê justamente a partirdo estranhamento de seus costumes. Devemos buscar, então, não em um possívelraisonneur, mas em outro personagem a denúncia dos vícios daquela sociedade.

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Primeiro personagem a ocupar a cena, Valentim é um jovem herdeiro de vinte ecinco anos que já se encontra à espera de D. Carlota ao começar a peça. Dado aarrebatamentos, podemos identificá-lo ao romantismo, estilo ao qual Machado, comojá visto, destina críticas pela grandiloquência que o afasta da proposta teatral desuposto cunho pedagógico defendida pelo autor. Para o jovem, conquistar a viúva équestão de honra e chega a colocar-se de joelhos ao declarar seus sentimentos.Podemos reconhecer o tom cômico impresso no personagem pelo anacronismo de suasfalas — anacronismo que é percebido e ironizado pelos outros personagens. Caberia,então, atribuir duas “funções” a esse personagem, ambas convenientes à comédiarealista. Em primeiro lugar, atua como elemento cômico, de quem é possível rir dado orebaixamento gerado por seu discurso deslocado:

VALENTIM — Devo crer que não faço uma figura nobre e séria. Mas não me importaisso! A seu lado eu afronto todos os sarcasmos do mundo. Olhe, eu nem sei o quepenso, nem sei o que digo. Ridículo que pareça, sinto-me tão elevado o espírito quechego a supor em mim algum daqueles toques divinos com que a mão dos deuseselevava os mortais e lhes inspirava forças e virtudes fora do comum.CARLOTA — Sou eu a deusa.VALENTIM — Deusa, como ninguém sonhara nunca; com a graça de Vênus e amajestade de Juno. [...]CARLOTA — Oh! É demais! Deus me livre de o tomar por espelho. Os meus sãomelhores. Dizem coisas menos agradáveis, porém mais verdadeiras. (Assis, 1962,p. 87)

Como podemos perceber, o rapaz é desacreditado na grandeza de seussentimentos que, segundo D. Carlota, “não é dos nossos dias” (Assis, 1962, p. 110),mas o é também pela sua inaptidão em relação às regras de conduta social. Levadopelo entusiasmo de suas emoções, o jovem muitas vezes expressa, e pede que sejamexpressos, sentimentos de maneira completamente inadequada aos usos da sociedadeespartilhada do século XIX.

Em segundo lugar, cabe a esse personagem a denúncia da frivolidade doscostumes dos salões, tão em voga entre a burguesia carioca daquele tempo. Após serdesincentivado, por D. Carlota, em sua atitude “derramada” — que lhe incita a buscaro caminho do seu coração como num jogo de tentativa e erro —, Valentim decide,então, tentar outras formas de agir, mudando seu comportamento e assumindo outrasidentidades. Mais uma vez, estamos diante de momentos de grande comicidade,especialmente na passagem do texto em que somos informados pelo personagem desua intenção manipulatória:

VALENTIM — Ouve: sinceramente aflito e apaixonado, apresentei-me a D. Carlotacomo era. Não houve meio de torná-la compassiva. Sei que não me ama; mas crioque não está longe disso; acha-se em um estado que basta uma faísca paraacender-se-lhe no coração a chama do amor. Se não se comoveu à francamanifestação do meu afeto, há de comover-se a outro modo de revelação. Talveznão se incline ao homem poético e apaixonado; há de inclinar-se ao heroico ou atéao cético... ou a outra espécie. Vou tentar um por um.(Assis, 1962, p. 99-100)

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O conhecimento da conveniência de tal ou qual comportamento demonstra queo rapaz conhece as regras sociais dessa sociedade de aparências, mas a maneirahonesta como anuncia a manipulação dessas regras torna-se um espelho que refleteironicamente os vícios da sociedade e funciona, assim, como elemento didatizante,função normalmente reservada ao raisonneur.

Outro possível “espelho” é Inocêncio, terceiro personagem a compor a cena. Natentativa de impressionar D. Carlota, Inocêncio monta um buquê segundo ossignificados comumente associados às flores — “rosas, paixão; açucenas, candura”(ASSIS, 1962, p. 81) — e decora frases de efeito. É, também, o único que dá ouvidos,verdadeiramente, às lições de moral de Dr. Cornélio. O efeito moralizante destepersonagem encontra-se, justamente, no ridículo que alimenta sua comicidade. Ao serobrigado a deparar-se com a exacerbação da artificialidade das regras de contatosocial, o espectador, ainda que não possa identificar-se à figura de Inocêncio, numprimeiro momento, não pode deixar de reconhecer-se nesse outro, motivo de seu riso.

Possível personagem central da comédia, D. Carlota é o alvo preferencial dossermões do doutor. Mulher habituada à linguagem e aos usos dos salões, domina commaestria os artifícios reservados às mulheres como “armas” que lhes permitiriammovimentar-se socialmente. Poderíamos, até mesmo, compreender sua recusa emfirmar compromisso com qualquer de seus pretendentes como uma forma de manter-se na relativamente privilegiada posição reservada às viúvas, por já terem, de certaforma, “cumprido” seu papel social, tornando-se, assim, livres das amarras impostaspelo casamento e dispondo de certa liberdade, inclusive econômica.

A personagem rebaixada é, para Ivo Bender (1996), um dos elementosfundamentais da comédia. No texto de Machado, podemos identificar rebaixamento detodos os personagens, seja pelo anacronismo, o total despreparo em relação às regrassociais ou à falta de nobreza que conduz à ação. Pode-se notar o rebaixamento, napersonagem Carlota, pela desmesurada intensidade com que põe em circulação os“usos” do mundo, negando-se, muitas vezes, a abrir mão da polidez em benefício deum diálogo sem rodeios:

CARLOTA — [...] Sou eu culpada de alguma coisa? A ser verdade isso que contou, aculpa é da natureza que os fez fáceis de amar, e a mim, me fez... bonita?DOUTOR — Pode dizer mesmo encantadora.CARLOTA — Obrigada!DOUTOR — Em troca do adjetivo deixe acrescentar outro não menos merecido:namoradeira.[...]CARLOTA — Está dizendo coisas que não têm senso comum.DOUTOR — O senso comum é comum a dois modos de entender. [...] É umadesgraça que nos achemos em divergência.CARLOTA — Mesmo que fosse verdade, não era delicado dizer...(grifos nossos, Assis, 1962, p. 93-94)

A necessidade de expor seus sentimentos é outro evento que suscita, na viúva,grande embaraço, como exemplificado por sua reação à declaração do enamoramentode Valentim: “Que é isso? Seja forte! Se não por si, ao menos pela posição esquerdaem que me coloca.” (ASSIS, 1962, p. 91)

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Ainda nos apoiando no estudo de Bender, concebemos que os defeitos dapersonagem cômica deverão conduzir, ao findar da peça, à sua correção e felicidadedo próprio herói ou de outros personagens (cf. Bender, 1996, p. 24). Na comédia deMachado encontramos, mais uma vez, uma modificação estrutural, pois, ao findar daação, não podemos sequer confiar em que alguma lição tenha sido aprendida.

D. Carlota, tantas vezes repreendida por ser namoradeira, continua seu “jogo”com Valentim, sem dar atenção às prédicas do doutor. Como vimos anteriormente,após ter sido desincentivado em sua atitude apaixonada, o rapaz decide“experimentar” as facetas heroica e cética. Quando é desmascarado em seu plano porD. Carlota, o rapaz, aparentemente desiludido, resolve tomar o caminho da porta eabandonar a corte à viúva. Poderíamos ver nesta desistência de Valentim uma lição à“namoradeira”, abandonada por seu pretendente. Vejamos no texto de Machado:

CARLOTA — Desanima? (Entra o Doutor)VALENTIM — Dou-me por satisfeito. [...]CARLOTA — É arriscar-se a novas tentativas.VALENTIM — Não!CARLOTA — Não seja vaidoso. Está certo?VALENTIM — Estou. E a razão é esta: quando não se pode atinar com o caminho docoração toma-se — o caminho da porta. (Cumprimenta e dirige-se para a porta)CARLOTA — Ah! Pois que vá! Estava aí, Sr. Doutor? Tome cadeira.DOUTOR (baixo) — Com uma advertência: há muito tempo que me fui pelocaminho da porta.(Assis, 1962, p. 112-113)

É interessante notar que, se saem todos, inclusive Inocêncio, deixando só a D.Carlota, não podemos estar seguros quanto à permanência de sua distância, vistohaver o doutor já tomado o caminho da porta, mas por ele retornado. Dessa forma, a“lição” é tão superficial e efêmera quanto o comportamento daquela a quem se dirige.Mais uma vez podemos entrever uma desordem do modelo realista levada a cabo porMachado, que o utiliza de maneira irônica, numa ironia estrutural que, de certa forma,anunciaria aquela fundamental a suas narrativas mais importantes.

Referências

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BENDER, Ivo. Comédia e riso: uma poética do teatro cômico. Porto Alegre: Ed. daUFRGS/EDPUCRS, 1996.

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LOYOLA, Cecília. “O teatro de Machado de Assis: legado póstumo”. In: SECCHIN,Antonio Carlos; ALMEIDA, José Maurício Gomes de; SOUZA, Ronaldes de Melo e(orgs.). Machado de Assis, uma revisão. Rio de Janeiro: In-fólio, 1998, p. 191-204.

SOUZA, Silvia Cristina Martins de. Um Offenbach tropical: Francisco Correa Vasques eo teatro musicado no Rio de Janeiro da segunda metade do século XIX. Histórias eperspectivas 34. Uberlândia, MG: EDUFU, jan./jun. 2006, p. 225-259. Disponível em:<http://www.seer.ufu.br/index.php/historiaperspectivas/article/view/19040/10239>.Acesso em: 11 jan. 2013.

Title: Moving stage: questions for the theatre of Machado de Assis

Abstract: We will analyze the comedy O caminho da porta, by Machado de Assis, fromthe perspective of Cecilia Loyola, for whom the author’s dramatic productions offer usrealistic apparatuses — like the scenarios and the platitude that motivates the plot —but withdraw their stability, replacing the nuclear structure by an different one,multiple and slippery. An example of this new structure would be Machado’s use of theraisonneur, character that, in this play, is deliberately discredited, which means aconsiderable dismissal in relation to the realist structure.

Keywords: Machado de Assis. Brazilian literature (theater). Comedy. Realistic theater.Raisonneur.

Recebido em: 07/03/2013. Aceito em 17/06/2013.

Crítica Cultural (Critic), Palhoça, SC, v. 8, n. 1, p. 139-152, jan./jun. 2013

Pintura, fotografiae a crítica de arte na pós-modernidade

Marcos Fabris∗

Resumo: Este artigo pretende apresentar e discutir algumas das característicasprimordiais das imagens produzidas no período convencionalmente designado por“pós-modernismo”, almejando estabelecer relações entre os imperativos materiaispara a sua produção, o chão histórico sob o qual se assenta e a avaliação feita poruma parcela influente da crítica a este respeito.

Palavras-chave: Pintura. Fotografia. Crítica de arte. Pós-modernismo.

Introdução

Como compreender o mundo contemporâneo sem explicar as relações existentesentre capital financeiro, sociedade de consumo, cultura de massas, mídia e pós-modernismo? Como os produtores de imagem, mais precisamente os fotógrafos, seinserem no processo de produção imagético pós-moderno, no qual a cultura dodinheiro parece estabelecer diretrizes bastante precisas para a produção artística? E oque seria, afinal, uma “imagem fotográfica pós-moderna”? Quais são os elementos quea caracterizam, por que se apresentam da forma como o fazem e quais os conteúdossócio-históricos sedimentados neste tipo de produção?

A importância e complexidade destas questões não permitem que nosesquivemos da discussão proposta ou que ofereçamos respostas simplistas àsintrincadas e nem sempre aparentes relações entre a hegemonia global do capital, amercantilização da sociedade e da cultura e suas consequentes manifestações nasproduções artísticas – fotografia naturalmente inclusa. Desta maneira, a tentativa deesclarecer tais questões, buscando decifrar alguns dos elementos constitutivos daimagem fotográfica contemporânea (ou pós-moderna), é de fundamental importâncianão somente para melhor compreendermos a atual produção imagética e suasrelações com outras áreas da experiência humana, como também para melhorestabelecer as devidas conexões entre as diversas áreas da experiência social.

As questões acima mencionadas poderiam ser observadas de inúmerasperspectivas. No entanto, acredito que vertentes críticas que pretendem estabelecerrelações entre os processos estéticos e os conteúdos sócio-históricos sedimentados naobra deveriam ser utilizadas na análise de nosso objeto. Posto de outra forma, osprocedimentos formais utilizados pelos produtores de imagem não têm autonomia

∗ Doutor em Letras pela FFLCH – USP, pós-doutorado em Columbia University (Nova York), pós-doutorado no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo – MAC USP.

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própria: eles não estão desvinculados dos contextos sócio-históricos que osproduziram, não são meros joguetes formais. Assim, gostaria de refletir sobre taisquestões norteando-as por balizas críticas caras à crítica materialista, uma das maisimportantes tendências críticas que analisam a forma artística como sedimentação doconteúdo sócio-histórico na produção artística.

O esfacelamento das fronteiras entre a alta cultura e acultura de massas

Toda a arte modernista da primeira metade do século XX vive e se alimenta dadicotomia que nasce do conflito entre a vocação “realista” da arte, ou seja, a deestabelecer relações com a sociedade de seu tempo através da mimese, e a concepçãode que a “cópia” de uma vida que se tornou complexa demais já não é suficiente pararevelar a “verdade” de seu momento histórico. O alto grau de fragmentação da vidasocial (explicitado pelo início das batalhas nas ruas de Paris em 1848 e posteriormentecom as batalhas urbanas da Comuna em 1871), consequência da dissolução do projetoburguês de igualdade expresso pela Revolução Francesa de 1789, tornou a realidadecada vez menos passível de compreensão em seu “todo”, já que a partir destemomento não há mais a percepção de uma realidade única, coletiva (MARX, 1994).Assim, a cópia “fiel” de um modelo humano na pintura, por exemplo, não maisexpressa de modo claro o desespero e a angústia do homem moderno – para ser“realista” é preciso distorcer a realidade e o corpo humano para expressar esta“realidade” mais claramente (pensemos na obra de Picasso ou no homúnculo de Munchem O Grito). Por outro lado, o enredo de ação da literatura e do teatro comerciais,baseado numa visão “simplista” da vida cotidiana, também é uma “mentira”: coloca nocentro de nossa atenção personagens que, ao contrário do que acontece na vida“real”, podem “agir”, mudar suas vidas, resolver seus conflitos. Agora, portanto, asformas artísticas nas suas relações com a realidade “visível” devem se dissolver paraque a arte possa falar sobre aquilo que está debaixo das aparências. É este o papel daarte de “vanguarda” segundo Theodor Adorno. Contrapondo-se a essa arte de vocaçãodesestabilizadora e revolucionária, estaria a chamada “cultura de massas”, depósito deinteresses puramente comerciais, inimiga mortal da reflexão crítica. Ao contrário daalta cultura, que tenta manter vivos os ideais mais progressistas da humanidade edenunciar a falsidade da indústria cultural, a linearidade da arte da cultura de massatentaria facilitar o fluxo e o consumo fácil da arte como mercadoria, mantendo, assim,o status quo.

As distinções culturais acima descritas pareciam muito pertinentes no períodomodernista. Entretanto, com o avanço do capitalismo globalizado e a colonização davida por um processo sem precedentes de mercantilização, as fronteiras entre a “artede vanguarda” e a “cultura de massas” se dissolvem: as áreas da experiência humana,inclusive as produções artísticas, foram colonizadas pelo mercado e estão a serviço dalógica da mercadoria (JAMESON, 1991). Assim, as formas da arte modernista teriamsido, elas também, absorvidas pela cultura de massa na pós-modernidade. Destamaneira, o período denominado pós-moderno, com início no final dos anos 50 ouprincípios dos 60 do século XX, é marcado pelo esfacelamento gradual das antigasfronteiras entre as chamadas alta cultura e cultura de massas (ou cultura comercial).

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Esta nova “geografia”, (re)definida pela quebra de fronteiras entre estes dois“tipos” de arte, suscita toda sorte de postura ante a produção artística pós-moderna,da apologia do “novo” à estigmatização do material “decaído”, produzido sem a“nobreza” de valores da alta (e saudosa, como veremos a seguir) arte modernista. Ocrítico norte-americano Fredric Jameson alerta que nenhuma destas posturas são defato esclarecedoras, uma vez que tanto a apologia quanto a estigmatização da atualprodução artística são meras tomadas de posição sobre a natureza do capital: osapologistas, por um lado, celebram a vitória do fragmento na pós-modernidade, pois,segundo eles, as narrativas mestras do passado (ou seja, as grandes maneiras deinterpretar a vida do ponto de vista da totalidade como o marxismo, a luta de classeou a própria democracia) são totalitárias. Elas analisam o mundo segundo umaperspectiva logocêntrica e do ponto de vista do discurso hegemônico imperialista,criada nos centros destes grandes impérios. Negando tais narrativas, festejam asformas culturais híbridas (a mistura de etnias, grupos, nacionalidades), a dissolução daposição binária entre centro e periferia e o fluxo livre de cultura.

Em teoria, festejar esta nova humanidade, pluralismo e diversidade não é máideia: neste “novo” espaço, uma imensa gama de grupos, raças e etnias, que antesestavam restritas a seus pequenos universos, tem a chance de se manifestar. Estasminorias marginalizadas podem agora adquirir visibilidade e “aprendemos” então arespeitar as diferenças. Entretanto, o engodo parece estar precisamente no fato deque o fluxo livre de cultura no mundo pós-moderno está em descompasso com o fluxodo capital, que somente caminha em mão única (CEVASCO, 2001). Como decorrência,são os centros hegemônicos capitalistas quem determinam quais e como se darão astrocas culturais e artísticas. Desta maneira, os apologistas, no intuito de defender aquebra do paradigma centro-periferia, apenas o ratificam e o revigoram ao camuflarsuas questões sócio-históricas centrais. Por outro lado, aqueles que estigmatizam aprodução pós-moderna negam o possível valor da cultura de massa e afastam-se dosdebates e questões contemporâneas, como a (aparente) impossibilidade de modoscoletivos de interpretação. Assumindo muitas vezes uma posição elitista e saudosista,cultuam a ideia de que é a grande obra modernista quem resguarda os verdadeirosvalores da cultura negativa1, não se dando conta de que ela também se tornoumercadoria – como lembra o crítico inglês Terry Eagleton, grandes obras de mestresmodernistas pertencem e estão expostas em gigantescas instituições financeiras(EAGLETON, 1990) e se negando a compreender a arte e sociedade contemporâneas.É desta maneira que nem a apologia nem a estigmatização do material pós-modernoauxilia na sua compreensão.

A proposta de Jameson para o melhor entendimento da produção artística pós-moderna e de suas relações com seus contextos sócio-históricos é de, sem festejar ouestigmatizar, desenvolver um instrumento analítico que denominou “mapeamentocognitivo” (JAMESON, 1991): uma série de práticas interpretativas que visamestabelecer conexões entre as relações locais da experiência subjetiva e as forçasabstratas e impessoais do sistema global (HARDT e WEEKS, 2000). Em outras

1 O termo é aqui utilizado segundo a definição de cultura negativa de H. Marcuse: a negação dostatus quo e das condições existentes. In Marcuse, H. Cultura e sociedade. São Paulo, Paz eTerra, 1997.

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palavras, este mapeamento é um ato interpretativo que procura relacionar osfragmentos (que no pós-modernismo parecem adquirir “vida própria”), tentandocompreendê-los dentro de uma perspectiva de relações muitas vezes obscurecidascom o todo ao qual estão relacionados. Assim, o mapeamento cognitivo proposto porFredric Jameson pode ser, conforme a definição de ideologia do crítico francês LouisAlthusser, uma tentativa de compreensão da representação imaginária de nossasrelações com nossas reais condições de existência. Assim, Jameson, munido desteinstrumento de análise, propõe que sem celebração ou condenação do materialartístico pós-moderno, um debate se inicie em torno da seguinte questão: “Qual o(possível) poder que as obras pós-modernistas têm de revelar o conteúdo de verdadesócio-histórico de seu tempo?” (JAMESON 1991). A tentativa de responder tal questãonestes termos propõe que o pós-modernismo seja abordado de forma histórica e nãomeramente estilística. Este seria, segundo Jameson, um possível caminho paradesmascarar as atuais estruturas de dominação econômicas e culturais imperialistas,encobertas inclusive pelo mito da globalização pós-moderna, explicitando e elucidandoquestões referentes ao aparente fim da possibilidade de movimentos coletivos denatureza político-libertária (principalmente a partir do final dos anos 50, início do pós-modernismo) e de narrativas mestras que auxiliem a interpretação e compreensão dasrelações sociais do ponto de vista da totalidade.

O “estilo” pós-moderno

A pergunta acima proposta por Jameson gira em torno de uma série de questõesa ela relacionadas, uma delas ligada à questão do estilo no pós-modernismo. Oconceito de estilo como quebra de paradigma, característico no período modernista eexpresso pelos movimentos de vanguarda, desaparece por completo na pós-modernidade. As conquistas formais de artistas modernos como Picasso, Joyce ouSchönberg, ligadas à utilização de recursos anti-ilusionistas, ou seja, recursos quedesmascaram a ilusão de arte como cópia “fiel” da realidade, foram completamenteincorporadas e institucionalizadas no pós-modernismo. Esta institucionalização deprocedimentos formais na produção cultural pós-moderna, que outrora foram avant-garde e punham em cheque a mera fruição estética e os diversos processos deidentificação sem a devida reflexão e distanciamento críticos, serve hoje a interessesespecíficos para estimular e facilitar a produção, o fluxo e o consumo de mercadoriasnum mundo globalmente dominado pela economia de mercado. Tomemos por exemploas conquistas formais cinematográficas de Sergei Eisenstein. Se no alto modernismo ocineasta russo utilizava-se de recursos de montagem baseados no choque abrupto deimagens, claramente de cunho revolucionário, em filmes como O EncouraçadoPotemkin, Greve ou Outubro, buscando uma forma artística que mimetizasse o choquerevolucionário tanto no conteúdo das imagens como na própria forma utilizada, hojeestes mesmos recursos foram apropriados por outros veículos para falarem de outrosconteúdos, por exemplo, os vídeo-clips apresentados pela gigantesca rede de televisãoamericana MTV – Music Television e consumidos por um sem-número detelespectadores. Também na fotografia não nos faltam exemplos. Todas as conquistas

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formais de fotógrafos como Atget (e seu surrealismo avant la lettre2), Rodchenko (e aalteração do ponto de vista tradicional) ou Kertész (e suas distorções da formahumana) estão hoje a serviço da fotografia publicitária ou de moda. Em todos estescasos, muito do recurso criativo modernista tornou-se mais uma saída para facilitar eratificar tanto o fluxo de mercadorias como a própria lógica da economia de mercado(lembremo-nos de que o objetivo maior de um vídeo-clip é vender seu produto musicalbem como tudo que a ele se relaciona, do cd à imagem fabricada pelo/para o artista;este também é o principal propósito da fotografia publicitária ou aquela ligada àmoda).

Portanto, o que era estilo modernista transforma-se em mero código pós-moderno absorvido e incorporado à lógica da economia de mercado. Desta maneira,por não se distinguirem mais os procedimentos estilísticos formais com objetivossemelhantes àqueles utilizados no modernismo, não seria adequado falar em um“estilo pós-moderno”, mas sim em uma mudança contínua entre os mais diversosestilos anteriores, desligados de seus referenciais sócio-históricos. O pós-modernismoseria, por conseguinte, não um “estilo” mas um “dominante cultural” (JAMESON,1991).

Considerando-se a questão estilística na pós-modernidade, a perguntainicialmente posta, ou seja, “qual o (possível) poder que as obras pós-modernistastêm de revelar o conteúdo de verdade sócio-histórico de seu tempo?” (JAMESON,1991) ramifica-se e nos chama a atenção para um outro aspecto desta mesmaquestão, a saber, a relação entre a forma pós-modernista e sua possível capacidade deexpressar conteúdos de “verdade”. Posto de outra maneira, poderíamos nosperguntar: pode-se, de fato, através da análise dos códigos pós-modernos, merosdominantes culturais que obviamente servem a interesses mercadológicos, e portantofalsificados, identificar momentos de “verdade” dentro dos mais evidentes momentosde “mentira” expressos nas obras pós-modernistas?

A imagem pós-moderna

Retornando ao conceito de mapeamento cognitivo proposto por Jameson, a obrade arte no capitalismo teria, em maior ou menor grau, e apesar de colonizada por estesistema, um poder intrínseco de revelar algo sobre seu tempo3: por um lado ela seoferece como mercadoria num processo de reificação; entretanto também sinalizadeterminados vetores utópicos. Se no modernismo estes vetores utópicos eram maisperceptíveis (pensemos novamente na obra de Picasso), no pós-modernismo elesencontram-se mais camuflados do que nunca. O caráter a-histórico presente na obrade arte pós-moderna, ou seja, a história escondida atrás da aparente falta de históriaexpressa na obra é, na verdade, um índice da história de seu tempo: o material com

2 Embora existam controvérsias no que diz respeito ao surrealismo avant la lettre de Atget,alguns autores como Benjamin e Maillet afirmam que o fotógrafo prenuncia a chamadafotografia surrealista, na medida em que desinfeta a atmosfera sufocante difundida pelafotografia convencional, especializada em retratos, iniciando um processo que propicia alibertação do objeto de sua aura.

3 Esta ideia relaciona-se ao conceito hegeliano de que o procedimento formal é o próprioconteúdo sócio histórico decantado.

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que o artista trabalha é sempre e necessariamente as relações sócio-históricascontemporâneas à sua produção. Como observou Jameson, estas relações oferecemuma determinada “resistência” que se impõe na análise independentemente dasdiversas maneiras de tentar camuflá-las (JAMESON, 1995). Desta forma, os vetoresutópicos presentes na obra de arte têm poder de revelar as condições imaginárias dasrelações expressas com as reais condições de existência dos indivíduos em sua épocade produção, ou seja, o poder de expressar “o que não é”, “o que falta”, “o quepoderia ser”, através de uma lacuna no centro da representação. Até mesmo numnível mais primário, a própria insistência, por exemplo, do cinema comercial emconstruir narrativas que encontrem “solução” imaginária no final, já denuncia ummundo no qual as soluções já não parecem possíveis. Jameson esclarece:

Deste modo, já começamos a apresentar uma justificativa para abordar o cinemacomercial como um meio em que seria possível detectar uma eventual mudança nocaráter de classe da realidade social, uma vez que a realidade social e osestereótipos de nossa experiência da realidade social cotidiana constituem amatéria-prima com que os filmes comerciais e a televisão são inevitavelmenteforçados a trabalhar. É essa a minha resposta, por antecipação, aos críticos que, apriori, fazem objeção à presença de qualquer conteúdo genuinamente político, poisque os vultosos custos dos filmes comerciais, que inevitavelmente submetem suaprodução ao controle das corporações multinacionais, tornam improvável apresença de qualquer conteúdo político genuíno, ao mesmo tempo que assegurama vocação dos filmes comerciais para veículos de manipulação ideológica. Não hádúvida de que é isso o que ocorre, se nos ativermos apenas à intenção do cineasta,que tem que se limitar, consciente ou inconscientemente, às circunstânciasobjetivas. Mas esse argumento nega a identificação com o conteúdo político da vidacotidiana, com a lógica política que já é inerente à matéria-prima com que ocineasta precisa trabalhar: uma lógica política como essa não irá, portanto,manifestar-se como uma mensagem política explícita, tampouco transformará ofilme em uma declaração política livre de ambiguidades. Irá, contudo, contribuirpara o surgimento de profundas contradições formais, às quais o público não podedeixar de notar, tenha ou não os instrumentos conceituais para compreender o quetais contradições significam. (JAMESON, 1995, p. 39).

Jameson identifica uma ruptura entre o modernismo e o pós-modernismo noque diz respeito à figuração dos vetores utópicos acima mencionados. Até omodernismo, parecia ser possível produzir figurações nas quais a arte, oferecendo-secomo mercadoria, também se mantinha imersa na história, ou seja, o mundo dotrabalho não era (completamente) eliminado e uma ideia de vínculo com a totalidadeainda era possível. Já no pós-modernismo, os contextos sócio-históricos sãoeliminados da figuração através da fragmentação da forma para que o vetor utópicoseja mantido. Com a eliminação dos contextos sócio-históricos, tem-se a consequenteeliminação do conceito de totalidade, ratificando-se ainda mais o caráter reificado daobra. Agora os objetos figurados passam a ser meros simulacros, ou seja,representações desprovidas de contextos humanos e esvaziadas de conteúdos. Nestetipo de figuração o objeto é representado como oco, uma vez que seu conteúdo torna-se irrelevante (desde que o fluxo da arte como mercadoria esteja de alguma maneiraassegurado). Esta forma de figuração seria a tônica do pós-modernismo: a produçãode “imagens-cópias” de originais que jamais existiram. Vejamos como esta relaçãoentre “fragmento” e “compensação utópica” se equaciona e qual seu potencialcognitivo em dois momentos distintos sugeridos por Jameson: a produção artística deVincent Van Gogh e a de Andy Warhol.

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Em Um par de sapatos, de1887, Van Gogh representa as botas de um camponêsde modo a transformar um universo árduo em algo exuberante (STEIN, 1986). Omesmo é válido para outras obras como Semeador com Sol se Pondo, de 1888 ou AArlesiana, de 1888: o campo e o trabalhador explodem em uma superfície de cores eos estereótipos dos habitantes do vilarejo, criaturas exauridas pelo trabalho ecaricaturas de uma tipologia humana quase grotesca, são retratados com exuberanteprofusão de cores. Toda esta explosão cromática tenta, de certo modo, compensar asreais condições de existência do objeto retratado. Entretanto, as botas têm história:estão inscritas numa sucessão temporal, têm ontem, hoje e amanhã e estão imersasnum contexto humano que lhes dão seu caráter.

Já nos sapatos “pós-modernos” de Warhol, intitulados Diamond Dust Shoes(1980), percebe-se uma abordagem essencialmente distinta daquela utilizada por VanGogh: o trabalho de Warhol gira em torno da mercantilização. Posto de outra maneira,a relação entre arte e mercadoria, até então mascarada no campo das artes, éexplicitada por Warhol, inclusive quando retrata a própria mercadoria como assunto desuas obras: sopas Campbell, garrafas de Coca-Cola e embalagens de sabão em pó(sem falar nos retratos de figuras famosas como Marilyn Monroe ou Mao Tse-Tung,estes também transformados em imagens-simulacro). Assim, a “narrativa” desaparecebem como os contextos humanos.

Se no movimento modernista esta relação entre arte e mercadoria explicitadapor Warhol é posta como uma angústia das questões estéticas, no pós-modernismo aarte se põe explicitamente como mercadoria e a angústia moderna transforma-se empura euforia estética pós-moderna. Assim, o querer ir além da forma, como na obra deVan Gogh, não é mais uma questão, uma vez que no pós-modernismo existe totaldissociação entre forma e conteúdo: ao contrário da obra de Van Gogh, o mundo dotrabalho e a própria história só estão presentes na obra de Warhol – e da maioria dosartistas pós-modernos – através de suas ausências. Segundo Lyotard, as intensidadesestéticas vagam sobre o conteúdo: não há mais relação orgânica entre a formautilizada e o conteúdo expresso (novamente a presença do simulacro). Desta maneira,agora é a mercadoria quem passa a ser o astro da obra.

Na maior parte das imagens produzidas sob este regime, percebe-se uma novaforma de achatamento, um novo tipo de superficialidade – em sua forma mais literal.Este novo tipo de achatamento é outro procedimento formal pós-moderno porexcelência (JAMESON, 1991). Assim, se os sapatos de Van Gogh estão imersos naHistória, os sapatos de Warhol estão imersos em “nada”, atuando como personagensprincipais nesta nova falta de profundidade de campo.

Novamente pensando nas questões referentes ao pós-modernismo não somenteem termos estilísticos mas também em termos históricos, percebe-se que esta novaausência de profundidade é oriunda da crise do conceito de espaço, ligada por sua vezà crise do capital contemporâneo. A história do capital já viveu sua fase nacional dedesenvolvimento, com expansão dos mercados internos, sua fase internacional com aexpansão imperialista para conquista de novos mercados e agora esgota suas últimaspossibilidades em sua fase multinacional ou global, com a economia mundial demercado dominada econômica e culturalmente pelos Estados Unidos da América em

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cada canto recôndito do planeta, que pode agora ser alcançado num piscar de olhosatravés do emprego da tecnologia cibernética. Portanto, neste atual momento dahistória, os espaços já não podem ser ampliados uma vez que não existem maisespaços disponíveis para colonização/dominação: como resolver as atuais criseseconômicas do sistema global e para onde dirigir energias se todo o planeta estáintegrado no fluxo de capital internacional? Assim, esta crise do conceito de espaço érefletida nesta nova forma de achatamento: o espaço “encolhe”, “desaparece” e aprofundidade e a perspectiva são substituídas pela superficialidade4.

Esta maneira “a-histórica” de figuração presente na obra de arte pós-modernamerece consideração e deve, como todas as outras formas de figuração, serhistoricizada, pois tais procedimentos não são meros recursos autônomos que sedescolam da história como se fossem apenas mais uma solução artística de ordempuramente estilística. Ao contrário, eles estão inseridos e fazem parte de complexasredes de relações sócio-históricas e devem, portanto, ser considerados sob esta ótica(HARDT e WEEKS, 2000). Assim, esta figuração “a-histórica”, ou seja, a “ausência” dahistória na obra de arte pós-moderna, aquele “nada” no qual a obra parece estarimersa, revela a presença da história justamente através de sua aparente ausência.Aqui o conceito de mapeamento cognitivo proposto por Jameson revela-se umaferramenta útil para melhor compreendermos a questão da figuração “a-histórica”. Oentendimento do referente histórico é condição fundamental para o entendimento domomento presente. Na medida em que, como acontece na obra de arte pós-moderna,este referente histórico desaparece e o sentido de historicidade é dissipado, quando aideia de história como projeto coletivo é esvaziada ou “inviabilizada”, quando o fim demovimentos coletivos de natureza político-libertárias e de narrativas mestras queauxiliam a interpretar a vida do ponto de vista da coletividade e da totalidade são“decretados”, nasce a ideia do “fim da história”5.

No entanto, como num processo freudiano de repressão, o reprimido reaparecede outras formas, por outros meios (FREUD, 1986). Assim, a história, de modoinexorável, “entra pela porta dos fundos”, retornando na imagem de diferentesmaneiras através de “lacunas” na figuração: o “nada” na qual parece estar imersa, osimulacro de originais inexistentes, a dissociação entre forma e conteúdo, a euforiaestética pós-moderna. A história é, portanto, reinventada em um nível puramenteestetizado no pós-modernismo. Trata-se aqui de um processo de reinvenção dahistória sob a ótica da imagem reificada, ou seja, sob a ótica de uma nostalgia quetransforma a História em “pop-history”. Entretanto, todos estes indícios, osdominantes culturais pós-modernos, que em teoria nos deveriam levar a crer no fimda história são efetivamente parte da própria história.

4 Não nos esqueçamos que a perspectiva artificialis renascentista prenunciava o novo horizonteantropocêntrico e os espaços a serem conquistados e colonizados pela ação de um novo epoderoso grupo que surgia e se consolidava social e economicamente: a burguesia. É destamaneira que percebemos como a Mona Lisa renascentista de da Vinci, também imersa naHistória assim como os sapatos de Van Gogh, tornar-se-ia uma outra Mona Lisa, aquela pós-moderna de um Vik Muniz, a qual não tem qualquer profundidade: é uma figura “achatada”,representada num “não-espaço” “a-histórico” que revela sua própria crise.

5 Como proposto por Francis Fukuyama.

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Esta crise do conceito de história incentiva a perda do controle sobre aorganização da experiência humana como um todo, dificultando sua melhorcompreensão. A produção artística pós-moderna reflete esta crise e a figura, namedida em que se utiliza da representação do fragmento e não do todo para“expressar” seus “conteúdos”. Esta é outra característica da produção pós-moderna: aênfase na figuração dos fragmentos. Estes, por sua vez, com suas relaçõesobscurecidas com o todo ao qual se relacionam, parecem adquirir completa autonomia,tornando-se “independentes” uns dos outros - e portanto completamente aleatórios.Posto de outra maneira, ao perder-se a ideia de totalidade figura-se apenas ofragmento, decorrendo daí a impressão de que todas estas frações são instânciascompletamente autônomas, homogêneas e não mais passíveis de interpretaçãohistórica. Nenhum destes detalhes parecem passíveis de serem fixadoshistoricamente; eles mudam de significado a cada instante, atribuindo à obra de artepós-moderna um caráter altamente fragmentário e esquizofrênico.

Tomemos novamente o vídeo-clip, exemplo potencialmente esclarecedor para amelhor compreensão do caráter esquizofrênico e fragmentário da obra pós-moderna esuas relações com o cinema modernista. Um filme modernista pretende estabelecerrelações concretas entre o fragmento e o todo ao qual se relaciona: suas imagens esequência não são aleatórias e um projeto no qual o fragmento tem uma clara funçãoapresentado. Pensemos em Un Chien Andalou (1928), um filme com duração dedezessete minutos dirigido por Luis Buñuel e Salvador Dalí. Já na cena de abertura,um olho humano que é cortado ao meio por uma navalha, Buñuel e Dalí sugerem umaoutra maneira de “ver”: a fragmentação da narrativa proposta no filme ataca areificação da sociedade burguesa através de imagens que propõe um caráter“irracional” (baseado na fragmentação das imagens do sonho e do inconsciente) quevai contra uma forma de organização linear, baseada em relações de causa e efeito,ou seja, “lógica”, “administrável”. Un Chien Andalou propõe com sua escolha esequência de imagens um ataque direto a uma narrativa mestra (o sistema capitalistae sua organização quantificadora) em nome de outra (a visão utópica de uma formaoposta àquela). A narrativa do filme é, sim, fragmentada porém esta fragmentação(neste caso surrealista) tem como paradigma o sonho, a fantasia, o desejo nãoreificado e os impulsos primitivos anteriores ao capital. Um vídeo-clip feito no final doséculo XX ou início do século XXI é, ao contrário, frequentemente composto por umasérie de imagens completamente aleatórias e “equivalentes”, uma vez que nãoparecem ter por objetivo ilustrar a letra da música apresentada ou tecer um projetonarrativo. As imagens, normalmente belas, atraentes e tecnologicamente bemconstruídas e acabadas, apelam aos sentidos da visão apenas como meros adereços.Não têm ou pedem qualquer interpretação, já que seu objetivo é apenas o de falar alinguagem da mercadoria.

Esta fragmentação esquizofrênica, quando torna-se norma cultural, obscurecetodas as possíveis formas de efeito negativo (no sentido de negar e possivelmentereverter este processo de fragmentação) e disponibiliza-se somente para usosestritamente decorativos. Entretanto, dialeticamente está precisamente aí apontado opapel cognitivo da crítica à imagem pós-moderna: em sua função crítica de revelaçãoda negação do estado das coisas e do simulacro no qual a imagem se apresenta.

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A mesma questão exemplificada pelo vídeo-clip poderia ser também discutidacom exemplos da arte fotográfica e sua produção pós-moderna: o detalhe fotografadoestabelece de fato relações concretas com alguma ideia de totalidade? Nas imagens dofotógrafo brasileiro Pedro Martinelli sobre o Amazonas percebe-se a tentativa dofotógrafo de estabelecer conexões entre o fragmento e o todo no qual ele se insere.Em PanaPana, Rio Içana – setembro 1997 o detalhe fotografado, as mãos adornadas ecalejadas de um jovem trabalhador contextualiza o fragmento, relacionando-o comoutros fragmentos apresentados na mesma obra (como aquele apresentado na páginaao lado: Lagoa do Capeta – janeiro 1996) para assim tecer uma narrativa sobre omundo do trabalho no qual aquele homem está inserido. Em seu trabalho existe um“ontem”, “hoje” e “amanhã”, ou seja, uma linha narrativa ao longo da qual a Históriase desenvolve. Já no trabalho de Araquém Alcântara, fotógrafo que registrou aAmazônia bem como outros lugares “exóticos” do país, percebe-se como o fragmentose descola de seu todo, adquirindo “vida própria”. Em Queda d’água, uma cachoeira écompletamente distorcida de modo a transformar-se em um detalhe multicolorido etexturizado que não se refere a nada que não seja ele mesmo. Nas imagens deAlcântara a natureza apresenta-se reificada da mesma forma como o homem que comela “interage”: Casa de pedra ou Folião de Rei mostram fragmentos deste homemexótico, colorido, mercantilizado. Em outras palavras, suas imagens limitam-se aoferecer apenas uma experiência estética, completamente descontextualizada de seusreferentes sócio-históricos. Assim como um vídeo-clip pós-moderno, a obra deAlcântara não pretende estabelecer qualquer projeto narrativo: são imagens “auto-suficientes” que ratificam clichês e estereótipos exóticos tanto da população local comoda fauna e flora da região, utilizando-se de várias das características da imagem pós-moderna aqui mencionadas, tais como o simulacro, o achatamento do sujeito e oauxílio de recursos tecnológicos de ponta para a produção imagética, unicamente como intuito de facilitar o fluxo da arte e da imagem como mercadoria. Ao contrário deMartinelli, Alcântara procura utilizar-se de pontos de vistas tradicionais de observaçãona produção de suas imagens, ou seja, aquele da câmara frontal à altura dos olhos dofotógrafo (como em Tucano de bico preto ou Tocador de rabeca), comprometido com arepresentação mais que convencional (MACHADO, 1984) – esquivando-se dadesmistificação da autoridade do olho-sujeito burguês de privilegiar um determinadoponto de vista e estabelecer por si só uma hierarquia de valores. Este olho sujeitopresente nas fotografias de Alcântara impõe-se ao espectador dando-lhe a impressãoque suas imagens são sempre “naturais”, “realistas”, e portanto “imparciais”: é comose elas tivessem sido produzidas a despeito da ação humana BARRETT, 2000) e semnenhum interesse ideológico, mostrando que de fato o mundo “é” da forma como seapresenta na imagem.

Estas representações “fiéis” e “completas” da realidade não se restringemsomente ao campo das produções ditas artísticas. Tomemos as imagens foto-jornalísticas como exemplo. O fotojornalismo, ao contrário do que se pretende e decomo se apresenta, não é de fato uma representação realista e objetiva da realidade.Todas as escolhas feitas pelo fotógrafo, incluindo o equipamento (analógicos oudigitais, formatos, lentes, filtros, etc.) o enquadramento (composição da imagemutilizando-se diferentes retas, curvas, planos, ou regras de “boa composição”: a regra

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dos terços6 ou aquela dos pontos de ouro7, sem mencionar a decisão do que incluir ounão e de como – se é que será capaz – o fotógrafo fará ilusão ao assunto ou temaextra quadro), e o ponto de vista adotado (visão “realista” ou “distorcida” da“realidade”). Outras escolhas também influenciarão a representação da imagem,como: a escolha de diafragmas que permitirão maior ou menor profundidade decampo, velocidades que atribuirão maior ou menor movimento à imagem, a escolha defilmes mais ou menos sensíveis à luz, diferentes formas de revelação deste filme,diferentes maneiras de ampliação da imagem, valores tonais a serem atribuídos,possíveis alterações ou manipulações – analógicas ou digitais – para “correção” daimagem, etc. Tudo isto revela que a produção da imagem foto-jornalística não é senãotambém uma tomada de posição, e não uma representação “realista” e objetiva darealidade do mundo como ele “é”.

A imagem pós-moderna, além de imersa naquela “pop-history” e ter um caráterfragmentário e esquizofrênico, é também brilhante. Seu caráter brilhante auxilia oembelezamento da forma utilizada com o intuito de facilitar cada vez mais o consumode mercadorias (e da própria arte como mercadoria): esta forma, cada vez maisembelezada (e cada vez mais dissociada do conteúdo da obra), torna-se maisfacilmente consumível. Portanto, a principal função deste caráter brilhante na imagempós-moderna é a de adornar a forma para que esta se torne mais e mais “palatável”,“visualmente aprazível”, e portanto consumível. Este embelezamento da forma,através do caráter brilhante que a imagem pós-moderna adquiriu e do qual se servepara facilitar o fluxo da arte como mercadoria, não é outro mero procedimento denatureza puramente estilística. Ao contrário, é mais um recurso a ser utilizado em umabatalha ideológica travada no campo do olhar. Retomando a prática de mapeamentocognitivo, Jameson historiciza inclusive os modos de percepção humana. Segundo ele,o aparelho sensorial humano foi colonizado pelo capital e fragmentou-se de acordocom a lógica do capitalismo (JAMESON, 1991). Assim, as capacidades humanas dequantificar são privilegiadas enquanto que o locus do “desejo” se restringe ao “olhar”(numa relação que a psicanálise procurou explicar). Desta forma, há umacompensação utópica do desejo triunfando sobre as quantidades, fazendo com que over ganhe novas proporções, exageradamente enfáticas. Desta maneira, o olhartransforma-se no campo de batalha ideológica e o visual é dominado por formas dedomesticação: controla-se o que ver, ensina-se o que e como ver, e “onde colocar odesejo”. A indústria cinematográfica de Hollywood é o exemplo clássico desta forma dedominação do olhar. A obra de arte pós-moderna, não somente através do cinema,mas em maneiras diversas da representação artística como pintura ou fotografia,estimula tanto a domesticação do olhar bem como a colocação do desejo namercadoria a ser consumida (processo este que atinge seu auge na fotografiapublicitária).8

6 Regra que prescreve a divisão da imagem em partes iguais.7 Regra que sugere a disposição dos diferentes sujeitos na intersecção das linhas que dividem a

imagem em partes de igual tamanho ou proporção.8 Este processo se inicia no surgimento da pintura a óleo e se consolida a partir do século XVI

com o estabelecimento de normas próprias deste tipo de pintura, que pretende, justamente porcausa da ascensão da burguesia e de sua necessidade de expressar uma visão de mundo quecom a utilização de técnicas anteriores como a têmpera ou o afresco seria impossível, ratificarque a partir de então a mercadoria e o capital passam a ocupar papel central – até se imporempor completo na pós-modernidade.

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A valorização excessiva da forma, seja através da utilização de recursostecnológicos ou do caráter brilhante da imagem acima descrito, nos leva à outracaracterística das imagens pós-modernas: o que Jameson denominou dedesaparecimento do afeto (JAMESON, 1991). O afeto ao qual se refere são ossignificados e os contextos humanos em torno do conteúdo da obra (BENJAMIN,1993). Uma vez que a relação forma-conteúdo é inexistente, como anteriormentemencionado, desaparece o afeto. O que “vale” então é somente a forma pela forma,inserida em um processo artístico que se limita a canibalizar estilos anteriores. Não setrata aqui de uma canibalização paródica nos termos modernistas9, uma vez que nãose estabelecem quaisquer relações entre os estilos anteriores e a produção pós-moderna. Ao contrário, trata-se de uma “canibalização aleatória” de estilos passados,de um pastiche, outro dominante cultural pós-moderno (JAMESON, 1991): umesvaziamento – historicamente determinado – da forma artística e das relações entreestilos anteriores e a atual produção artística pós-moderna. O pastiche, estedominante cultural pós-moderno por excelência, seria assim uma purgação dosconteúdos político-históricos, um “jogo formal”, uma arte que “mira seu próprioumbigo”, em cópias de diversos estilos anteriores totalmente desconexos de seusreferentes sócio-históricos. O pastiche pós-moderno seria assim o Belo, a arte em si epara si, desprovido do Sublime modernista, uma experiência trans-estética quetranscende o Belo e tenta estabelecer relações entre a arte e a sociedade10.

A crítica à imagem na pós-modernidade

Sem perder de vista a questão inicialmente posta por Jameson e sua propostahistoricista de abordá-la, constatamos que a produção imagética pós-moderna, atravésde simulacros ocos cujo único conteúdo é somente sua forma, é possivelmente aprincipal característica de uma sociedade que reflete em sua produção artística umainversão de valores sem precedentes: o valor de troca dos objetos, ideias e conceitosfoi tão amplamente generalizado ao ponto de obscurecer a memória de seu valor deuso. Segundo Guy Debord, este tipo de imagem tornou-se “a forma final da reificaçãoda mercadoria” (DEBORD, 1997). Este caráter da imagem pós-moderna nos remetenovamente à questão do possível poder cognitivo destas imagens de relevar algo de“verdade” sobre seu tempo através de códigos que expressam tão evidentes“mentiras”. Parece de fato cada vez mais difícil que estas imagens-simulacro figuremrepresentações de nossa realidade cotidiana, uma vez que tais imagens primam cadavez mais pelo apego ao ponto de vista do individual, do fragmento com sua “vidaprópria”, e que este seja representado através da utilização desses códigos que, comoanteriormente mencionado, estão a serviço da lógica da mercadoria. Então comofigurar estes “momentos de verdade” nesta lógica, na qual o passado como referente égradualmente excluído, deixando-nos apenas com “textos” imersos naquele “nada” “a-histórico” que permeia a obra pós-moderna?

9 Alguns exemplos de paródias modernistas incluem “Ulisses”, de James Joyce e suas relaçõescom a obra de Homero e, na pintura, “As Meninas” de Picasso, que estabelece relações com “AsMeninas” de Velásquez.

10 Reflexões sobre o Belo e o Sublime encontram-se na filosofia clássica alemã em obras comoCrítica do Juízo, de Kant e Estética, de Hegel.

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Jameson parece oferecer uma resposta complexa, porém exequível: a utilizaçãodo mapeamento cognitivo como instrumento de análise crítica. A apreciação críticadeste procedimento leva em consideração o fato de que não existe um ponto de vistafora da ideologia. Portanto, a chamada “crítica objetiva”, imparcial e desinteressadaseria um embuste, já que toda ação crítica é também uma ação ideológica, que serveinteresses precisos (naturalmente os diferentes interesses em jogo variamenormemente; cabe ao crítico escolher com consciência sua abordagem) Assim,segundo Jameson, a ação política da crítica materialista se daria, dentro do panoramaaqui descrito, através do mapeamento cognitivo da organização e avaliação do mundodo ponto de vista de dentro da ideologia. A abordagem crítica seria, assim, umarelação entre história e forma artística, ou seja, entre o “como” os contextos externosà obra encontram-se presentes na fatura formal desta obra. Não me refiro aqui a umarelação unívoca e mecânica, entre uma história pré-conhecida e conteúdos explícitosna obra de arte (por exemplo, intuir que uma vez que o século XVIII viveu um períodode grande ascensão da burguesia, havia nas artes em geral uma especial predileçãopelo retrato como gênero artístico. Ou, no campo da fotografia, argumentar que aprodução de fotografias de cidade feitas por Eugène Atget, bem como a forma que ofotógrafo utilizava, derivavam única e exclusivamente do fato de que no final do séculoXIX e início do século XX houve um enorme crescimento dos núcleos urbanos naEuropa), mas a uma descrição da forma enquanto estrutura e, ao mesmo tempo, dosconteúdos sócio-históricos que nela encontram-se decantados. A desafiadora tarefacrítica reside na análise dos conteúdos “externos” e com papel estrutural na obra dearte.

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Title: Painting, photography, and art criticism in post-modernity

Abstract: This article intends to present and discuss some of the most typicalcharacteristics of images produced in what is conventionally described as “post-modernism”, attempting to establish some relations between the material constraintsfor their production, the historic basis on which they find themselves and theevaluation made by an influential part of the critic.

Keywords: Painting. Photography. Art criticism. Post-modernism.

Recebido em: 03/04/2013. Aceito em 17/06/2013.

Crítica Cultural (Critic), Palhoça, SC, v. 8, n. 1, p. 153-157, jan./jun. 2013

Utilitarismo em Arielde José Enrique Rodó

Maurício Silva∗

Resumo: O presente artigo tem como objetivo analisar a obra Ariel de José EnriqueRodó, em sua crítica ao espírito utilitarista – sobretudo de inspiração norte-americana– vigente na passagem do século XIX para o XX, na América Latina. O artigo destacatambém a intenção edificante da obra em questão, cujo principal intuito era formarética e moralmente a juventude latino-americana.

Palavras-chave: José Enrique Rodo. Ariel, utilitarismo. Estados Unidos. AméricaLatina.

O ano de 1900 foi, indubitavelmente, um marco histórico ocidental: com eleseria inaugurada uma série de transformações que já se vinha esboçando nos anosprecedentes e que surgiria com ímpeto e vigor a partir do descerrar do novo século. Enão apenas no âmbito da História, mas também no da Cultura em geral: uma novamentalidade começava a se afirmar; um mundo totalmente insólito surgia, marcadopor uma espécie de mística do progresso; inaugurava-se a era do infrenedesenvolvimento científico e tecnológico, da pluralidade artística e conceitual, doaprofundamento analítico e da produção industrial.

Nesse conturbado contexto, uma obra, dentre as inúmeras que então surgiram,merece atenção especial, justamente por ser, ao mesmo tempo, causa e efeito donovo ideário que se afirmava, principalmente na América Latina: trata-se de Ariel(1900), de José Enrique Rodó.

De concepção múltipla e abrangente, bem de acordo com a pluralidadeincipiente do novo século que surgia, Ariel destaca-se pela observação aguda eperspicaz que faz de sua época, mas, sobretudo, pela visão racionalmente crítica dasrelações estabelecidas entre a América Latina e os Estados Unidos. Devido àpreocupação estética que permeia toda a obra, ela pode ainda ser considerada, a umsó tempo, um texto sociológico e literário, inaugurando assim, sempre ao lado deoutras produções de igual importância, um espírito “moderno” que – nas artes, emgeral, como na literatura, em particular – vingaria nesta nova era. (SANCHEZ, 1941)

Obra de um saber maduro, já anunciava a figura do intelectual e político quemarcaria para sempre a imagem do escritor e pensador uruguaio. Poderia, assim, tersido sua derradeira produção, tamanha a coerência e a completude de idéias que ali semanifestam, motivo pelo qual se acredita não ter sido Ariel superado por nenhuma

∗ Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo. Professor da Universidade Nove de Julho.

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obra posterior do mesmo autor. A rigor, não deveria ser considerada mais do que umaespécie de panfleto militante a combater idéias que, para seu criador, mostravam-sede todo perniciosas, e contra as quais Rodó lutou toda sua vida. E o fato, a propósito,de se poder considerar esse livro em particular um autêntico panfleto, nada tem depreconceituoso – apenas busca abarcar a intenção essencial (ou uma das intençõesessenciais) do autor ao escrevê-lo: mais do que informar, formar a juventude de suaépoca, com base em alguns pressupostos considerados indispensáveis por Rodó paraqualquer espécie de constituição política e cultural, vale dizer, para qualquer formaçãosocialmente organizada.

De qualquer maneira, sua literatura toma um partido, e, fundamentado nessaatitude, busca vencer todas as idéias que lhe sejam contrárias, ainda que, ao seafastar do clássico realismo crítico-social, próprio da literatura militante, Rodó crie algoque poderíamos chamar de uma literatura engajada atípica, em que - entre outrascoisas - as idéias propostas e defendidas, ao invés de surgirem envoltas numalinguagem direta e realista, manifestam-se dissimuladamente, marcadas por umfloreio verborrágico e um preciosismo vocabular singulares.

A questão da moral é apenas uma das muitas tratadas na obra de Rodó, e talveza primeira a chamar a atenção de seus críticos e leitores: como qualquer obraedificante – dirigida deliberadamente aos jovens e caracterizada por um evidentecunho pedagógico – Ariel possui uma clara natureza moralizante. Tal fato, aliás, podeser observado já nas palavras iniciais de Próspero, mestre e narrador, para quem apersonalidad moral assume papel preponderante na obra.

A moral, curiosamente aliada à noção de bom-gosto, vai servir ainda deparadigma à relação estabelecida entre o individual e o coletivo, outro tema pertinenteà obra em questão: com efeito, Rodó busca constantemente extrapolar o âmbito doindivíduo para atingir o coletivo, a tão decantada generación humana, sempredefendendo o todo, em detrimento do isolamento de suas partes. Esta idéia, aliás, estáclaramente resumida nas próprias palavras de Rodó, ao afirmar que “ninguna fuerzaaislada puede satisfacer los fines racionales de la existencia individual, como no puedeproducir el ordenado concierto de la existencia coletiva”. (RODÓ, 1975, p. 30)

Indubitavelmente, Rodó sofreu variada influência. Autores e idéias foram por elereunidos de forma original, a fim de sustentar sua mundividência: não apenas Renan eGuyau, como fica evidente em qualquer leitura que se faça de sua obra, mas tambémuma série de outros nomes, de filósofos a escritores, são chamados a colaborar e aendossar seu ideário. No âmbito do pensamento religioso, porém, há que se destacar aforte influência que o Cristianismo exerceu sobre o seu pensamento.

Aliado ao classicismo greco-romano, o Cristianismo serve para Rodó como umavigorosa fonte de inspiração: sempre baseado em conceitos de natureza cristã, Arielprega, além da tradicional dicotomia fé/esperança, uma humanidade pacífica, quetenha como alicerce uma juventude enérgica e viril; veja-se, por exemplo, um dosseus períodos de feição mais manifestadamente religiosa, até pelo seu caráteredificante e admoestador: “sed [...] conscientes poseedores de la fuerza bendita quelleváis dentro de vosotros mismos”. (RODÓ, 1975, p. 30)

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Dirigidas à juventude, tais palavras parecem trazer consigo, além do que jáficou dito, todo um sentido simbólico, metafórico, próprio dos discursos de índolecristã, mesmo se considerarmos apenas o seu estilo enfaticamente imperativo e autilização de um vocabulário próprio do universo eclesiástico. Por isso, para Rodó oCristianismo é, segundo suas próprias palavras, uma “inspiración essencialmentejuvenil”. (RODÓ, 1975, p. 22)

E, de fato, a juventude desempenha um importante papel neste seu denso livro;via de regra associada às noções de virilidade e vigor, ela representa o necessárioempenho por um futuro próspero e justo. Esta concepção da juventude tem, semdúvida, sua raiz numa “visão romântica” da realidade – apesar de todo o pragmatismorodoniano (MONEGAL, 1967) –, seja pelo fato de o autor aliar a ela uma paixão ideal,já anteriormente tratada por autores do Romantismo literário, seja por ele aprofundaresta visão com base numa declarada fé na Natureza, uma espécie de recuperação dosentido rousseauniano da vida.

A análise do texto de Rodó não prescinde de abordar um de seus principaistemas: o combate à filosofia utilitarista, a qual está representada principalmente, noseu entender, pela democracia norte-americana.

Para Rodó, o utilitarismo seria um dos principais males da sociedade de seutempo, responsável pela formação de espíritus estrechos e caracterizado pelo purointeresse como finalidade da atividade humana; tal concepção de vida opõe-seradicalmente à de uma existência racional e harmônica, visão autenticamenterodoniana do ser:

a la concepción de la vida racional que se funda en el libre y armoniosodesenvolvimento de nuestra naturaleza, e incluye, por lo tanto, entre sus finesesenciales, el que se satisface con la contemplación sentida de lo hermoso, seopone - como norma de la coducta humana - la concepción utilitarista, por la cualnuestra actividad, toda entera, se orienta en relación a la inmediata finalidad delinterés. (RODÓ, 1975, p. 75)

Seguindo esta mesma linha de pensamento, o autor afirma ainda que o espíritoutilitarista assenta-se, basicamente, em duas causas principais: a) as revelações daciência da natureza (leia-se cientificismo), que acabam por destruir a idealidade; b) ademocracia, que torna medíocre a humanidade exatamente na medida em que aconduz ao utilitarismo. A partir desses pressupostos, dois conceitos importantes,relacionados a essa idéia, devem ser ressaltados: os de idealidade e democracia, osquais, diga-se de passagem, segundo Rodó, opõem-se francamente entre si: a faltadesmesurada do primeiro e a exagerada presença do segundo formariam, assim, ofundamento de toda a filosofia utilitarista.

Quanto à idealidade, pode-se dizer que ela se relaciona ao utilitarismocombatido por Rodó na medida em que, sob a forma de “preocupaciones puramenteideales”, manifesta-se como força contrária ao “sentido de la utilidad material”; emoutras palavras, a valorização do utilitarismo renega todo e qualquer valor ideal,donde a importância desse sentimento idealizado para o amor: é exatamente a“contemplación ideal” que Rodó irá propôr e aconselhar à juventude ao longo de todoo seu livro. (RODÓ, 1975, p. 66)

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Já no que tange à democracia, sua relação com o utilitarismo se dá por meio doapoio que aquela concede a este: visto que a democracia tem como um dospressupostos básicos o nivelamento de todos os integrantes de uma determinadasociedade, desfazendo hierarquias que, segundo o autor, deveriam sempre existir, ademocracia contribui profundamente para o despertar de um forte sentimentoutilitarista. Rastreando este raciocínio, dir-se-ia que, sem um direcionamento moral, ademocracia acabaria mesmo por extinguir a idéia de superioridade; e ainda: ela nãosubstituiria nenhuma hierarquia, eventualmente infundada, por outra que seassentasse num pressuposto moral.

Defendendo as “desigualdades legítimas” e o “heroismo” como fundamento paraum regime de governo, Rodó combate a democracia exatamente pela supressãodaquelas noções. E, por isso, suas diatribes não se resumem a ataques estéreis edespropositados ao regime que abomina, mas, ao contrário, Rodó chega mesmo apropor toda uma reforma educacional como modo de manter a autoridade moral, ossentimentos de superioridade e de subordinação e a hierarquia de natureza intelectual.Ainda na questão da educação, há que se considerar que, para ele, é necessário haverum respeito para com a igualdade natural de condições, na tentativa de todoschegarem a uma categoria elevada. Assim, uma vez estabelecida a superioridade,qualquer desigualdade seria, em princípio, justificável.

Contudo, o combate de Rodó à democracia e sua exacerbada defesa daaristocracia intelectual não devem ser entendidos de modo simplista e estritamentecom base naquilo que atualmente entendemos por tais noções, como aquela definiçãomínima proposta por Norberto Bobbio, segundo a qual a democracia seria “umconjunto de regras de procedimento para a formação de decisões coletivas, em queestá prevista e facilitada a participação mais ampla possível dos interessados.”(BOBBIO, 1986, p. 12) Há de se ter sempre em mente, antes de tudo, que, para Rodó,a noção de democracia - tal e qual ela se manifestava na sociedade norte-americanada época - aliava-se intrinsicamente à de um utilitarismo infrene e desmedido, o quenos revela uma coerência de sua parte. A compreensão desse fato poderá conduzir-nos inclusive à mesma linha de raciocínio percorrida pelo autor - uma espécie desofisma que fatalmente o levaria a renegar o sistema democrático de governo: paraele, se o utilitarismo (com tudo o que este lhe podia representar) era o fundamentofilosófico da sociedade norte-americana, e a democracia sua base ideológica e política,não havia como desvincular ambas as noções; logo, lutar contra a democraciasignificava, a seus olhos, combater o próprio utilitarismo; e, mais do que isso, sua lutasimbolizava um embate conscientemente travado em defesa de um idel libertário noespaço latino-americano, o que o levaria a aliar à sua militância um forte sentimentode xenofobia. Isso se dá, entre outras coisas, porque, para Rodó, ao contrário dosnorte-americanos, os latinos possuiriam “una herencia de raza, una gran tradiciónétnica que mantener, un vínculo sagrado que nos une a inmortales páginas de lahistoria, confiando a nuestro honor su continuación en lo futuro.” (RODÓ, 1975, p. 105)

Todas essas observações nos levam a concluir que Rodó possuía uma concepçãomuito particular de democracia: um sistema radicalmente aliado à noção deutilitarismo e entendido como o contraponto do desenvolvimento ideal para a AméricaLatina, conclusão, aliás, a que alguns críticos já tinham chegado anteriormente.(MONEGAL, 1967)

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Enfim, conclui-se que, se para Rodó a democracia, abordada sob uma óticaparticularmente tendenciosa, é vista como uma sistema desumano e padronizador, é outilitarismo que, em última instância, ele tenta atingir com suas críticas: da mesmaforma que o cientificismo, também a democracia é apenas mais um dos infinitoscomponentes do espírito utilitarista, este, sim, o verdadeiro mal a ser combatido eerradicado da sociedade.

Não há dúvida de que a obra de Rodó representa um avanço considerável noconjunto de idéias latino-americanas, e Ariel especialmente possui um inestimávelvalor neste sentido, contribuindo para o aprofundamento das discussões relativas àidentidade da América Latina e o posterior estabelecimento de teorias a seu respeito,como demonstra o embate travado entre Roberto Retamar e Emir Rodriguez Monegalem torno das idéias de Rodó, em que ambos os autores se posicionam favoravelmentee contrariamente às idéias expostas em seu célebre livro. (RETAMAR, 1988;MONEGAL, 1977)

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Title: Utilitarianism in Ariel

Abstract: The present article has as objective to analyze the José EnriqueRodo’s work, Ariel, as a criticism to the utilitarist spirit – specially of North Americaninspiration – effective in the turn of the XIX for the XX century, in Latin America. Thearticle also highlights the noble intention of the work, which had the formation of LatinAmerican youth an its main intention.

Keywords: José Enrique Rodo. Ariel. Utilitarianism. United States of America.Latin America.

Recebido em: 06/05/2013. Aceito em 17/06/2013.