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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS IFCH PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA RAFAEL PEREIRA DA SILVA A MORTE DO HOMEM CORDIAL: TRAJETÓRIA E MEMÓRIA NA INVENÇÃO DE UM PERSONAGEM (SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA, 1902-1982) CAMPINAS 2015

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS – IFCH

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

RAFAEL PEREIRA DA SILVA

“A MORTE DO HOMEM CORDIAL”: TRAJETÓRIA E MEMÓRIA NA INVENÇÃO DE UM PERSONAGEM (SÉRGIO

BUARQUE DE HOLANDA, 1902-1982)

CAMPINAS 2015

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado, compostapelos Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 29de Outubro de 2015, considerou o candidato Rafael Pereira da Silva aprovado.

Prof. Dr. Edgar Salvadori de Decca

Profa. Dra. Maria Stella Martins Bresciani

Prof. Dr. Carlos Eduardo Ornellas Berriel

Prof. Dr. Sérgio Ricardo da Mata

Profa. Dra. Luciana Quillet Heymann

A Ata de Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida acadêmica do aluno.

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À Lara, minha filha.

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Agradecimentos

Não sei se para todos, pelo menos para mim, essa é uma das partes mais

aguardadas da escrita de qualquer trabalho, por duas razões óbvias. A primeira,

porque indica que mais uma etapa foi concluída; a outra, porque é hora de

prestarmos contas àqueles que realmente estiveram conosco durante o processo.

Penso também que este é um espaço de celebração, de memória, deixando claro

que ausências foram por mero esquecimento, não por apagamento. Vejamos.

Do lado familiar, sou imensamente grato aos meus pais, Iuçá e Graça,

que ainda hoje não sabem exatamente do que trato em minhas pesquisas, mas

compreendem a sua importância para a formação humana e cidadã. Agradeço

também às minhas irmãs, Fernanda e Beatriz, pela preocupação constante e pela

amizade.

Ao meu primo Alexandre agradeço pelas conversas, viagens culturais,

aulas sobre rotas latino-americanas, museus e lugares de visitação mundo afora e

aos parentes distantes, Bezego, Neide, Isabel e Nivaldo (in memoriam).

Durante a última década a família cresceu e por isso mesmo agradeço

acima de tudo à Giselle, mãe da Lara, minha esposa e companheira, que com sua

amizade, carinho e excessiva paciência, compartilhou por dentro todo este processo.

Aos meus sogros, Silvio e Lea, o meu mais sincero obrigado, sobretudo por

cuidarem da nossa Larinha em momentos de ausência minha e da Giselle por

motivos de escrita e trabalho. Agradeço ainda ao bisavô da Lara, Seu Jaime, que

recém nos deixou, já centenário. Figura exemplar, que além de músico, poeta,

memorialista e escultor, foi um humanista em tempos de indiferença e presentismo

constante.

Ainda por esses lados, deixo minha gratidão à maravilhosa Profa. Dra.

Maria das Graças Dias (in memoriam) e aos seus filhos e queridos amigos, Túlio e

Michelle, bem como aos seus companheiros, Cristy e Edu; à Márcia, ao Gian, Lucas,

Júlia, Jana, Juliano, Renata e aos demais amigos desse grupo.

Na Unicamp, agradeço de forma muito especial ao professor Dr. Edgar de

Decca, que além de uma orientação precisa durante esses anos, me abriu

perspectivas de mundo a partir de sua experiência acadêmica, me instigando, a

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cada encontro ou troca de e-mails, a ter o protagonismo de um pensamento crítico e

livre de quaisquer amarras.

Na Itália, durante os meses em que lá estive, agradeço ao professor Dr.

Ettore Finazzi-Agrò pela recepção e aprendizado obtido na Universidade de Roma.

Por seu intermédio, estabeleci amizade, mesmo que a distância com o professor da

Universidade de Bologna, Dr. Luca Bacchini, a quem também agradeço pelas

profícuas conversas.

De volta à Unicamp, agradeço a todo o grupo da Olimpíada Nacional em

História do Brasil, coordenada pelas professoras Dra. Cristina Meneguello e

Alessandra Pedro (Leca); ao Bruno Terlizzi, que por inúmeras vezes me recebeu em

sua casa de Barão Geraldo, local agradável e de ótimos momentos; à Jussara

agradeço a amizade e as trocas acadêmicas constantes; à Clécia e ao Mauro pela

amizade e por também terem aberto a sua casa para me receberem inúmeras vezes

no último ano, tornando a vida em Barão Geraldo muito mais leve, bem como ao

Érito, pelas longas e agradáveis conversas nos bares do centrinho. Agradeço a

dedicação dos professores Dr. Carlos Berriel e Dra. Maria Stella Bresciani pela

leitura atenta da primeira versão desta tese, pelas valiosas críticas concedidas

durante o exame de qualificação e por aceitarem o convite para a defesa. Agradeço

ainda aos maravilhos profissionais do Arquivo Central da Unicamp, representados

por Telma Murari e Neire Rossio.

Ainda em Campinas, agradeço ao “acaso” por ter convivido o ano inteiro

de 2010 na inesquecível casa da Rua Plínio Aveniente, 88, ao lado dos amigos

Vinícius (Moscão), Carlos Alberto (Carlão), Deivison, Alisson, que era “agregado”,

Marcelo Mac Cord e Dani Pistorello, que volta e meia por lá batiam ponto. Esse

grupo quando pode ainda se encontra em bares, eventos, acadêmicos ou não,

mundo afora. Raro hoje é estarmos todos. Mas já pudemos matar a nostalgia em

Campinas, Belo Horizonte, Paris, São Paulo, Coimbra, Rio de Janeiro, Florianópolis,

Brasília. As lembranças dessa casa constituem um de nossos marcos biográficos.

Tempos em que se pedia gelo no vizinho e as "únicas" responsabilidades eram dar

vida à ideia abstrata de uma tese, escolher a cerveja mais barata no mercado para

regar as longas sessões “psicanalíticas" na cozinha de casa, enquanto alguém,

nunca eu, preparava a comida, ou pagar em dia o oneroso aluguel de Barão

Geraldo. Não poderia existir um grupo mais harmônico do que esse!

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Em Brasília, onde resido atualmente, não posso esquecer de agradecer

aos amigos para toda hora Alexandre e Luciana, agora na companhia do José, que

nasceu junto com o término da tese. Aqui também sou grato ao Deda e à Vanessa,

pela amizade, pelas peixadas, sem duplo sentido por estarmos na capital, e por

cuidar de nossa casa nos longos períodos em que estivemos ausentes; ao Rodrigo e

à Lili, amigos da UFSC, que anos atrás me receberam e me abriram as portas dessa

cidade tantas vezes fria.

Agradeço muito aos amigos de mais de três décadas, Juliano, Fábio,

Pablo, Cícero, Júnior, Thiago, Murilão, Silvinho e às suas respectivas famílias,

agregados, filhos, companheiras. Da UFSC, onde passei muitos anos, agradeço a

amizade sincera do Camilo, Marcão, Disma e Karlinha, Lagarto (Prof. Dr. Rafael da

Cunha Schaefer), Maíra, Marcelo, Juliana Vamerlati, responsável pela revisão do

texto, Juan (Bolívia), Karla, Juliana Sartori, todos muito presentes, uns mais, outros

menos, ao longo de mais de uma década.

Agradeço ainda aos meus “velhos" professores, Dr. Paulo Pinheiro

Machado, Dr. Adriano Luiz Duarte, Dr. João Klug e a Dra. Maria de Fátima Fontes

Piazza, interlocutora em tempo integral desta tese. Agradeço aos demais membros

da banca, professores Dr. Sérgio da Mata, Dra. Luciana Heymann, Dr. Jeferson

Cano e Dr. Rui Rodrigues por aceitarem, de prontidão, o convite.

Finalmente, agradeço ao CNPq pela bolsa de pesquisa no Brasil e à

Capes pela Bolsa-Sanduíche no exterior, sem as quais o trabalho investigativo e a

redação não seriam possíveis.

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“Parte substancial de nossos literatos, isto é,de nosso público escritor e leitor de livros,

satisfaz suas necessidades religiosas exclusivamente na forma de

culto ao gênio”.

(Edgar Zilsel, Die Geniereligion. Frankfurt am Main:Suhrkamp, 1990. p. 53-54)

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RESUMO

A partir da década de 1980, a trajetória intelectual e biográfica de Sérgio Buarque deHolanda passou a ser contada por um viés linear e memorialístico. De maneirageral, essa trama, que ligava o passado modernista de Sérgio ao maduro militantepetista e de esquerda do fim da vida, se constituiu por um viés de excepcionalidadeda personagem, ainda hoje vista em publicações e eventos acadêmicos que asustentam. Partindo dessa constatação, esta tese conta a história de SérgioBuarque de Holanda pela perspectiva da memória e dos lugares em que ela foiinscrita e propagada, segundo o entendimento de que nesses lugares podemosperceber suas dimensões material, simbólica e funcional. Assim é que encontramosSérgio Buarque inscrito em textos memoriais, discursos fúnebres, livros, eventos,ruas, biblioteca e arquivo, um conjunto de lugares de consagração arquitetados porum grupo específico de acadêmicos no intuito de moldá- l o à sua vontade dememória. Nessa operação foi intencional o apagamento de rastros políticos deSérgio Buarque, muito mais ligados aos campos educacional e pedagógico e muitomenos à esquerda combativa de outrora, como insistem ainda hoje alguns de seuscomentadores oficiais. Por fim, a tese ainda busca nas “tramas do arquivo”, suportematerial e funcional dessa memória, demonstrar que Sérgio Buarque de Holanda seconstituiu, na guarda de seu papelório, como personagem de si mesmo, alimentandoa mesma versão oficial e linear da vida exposta nesses diferentes lugares.

Palavras-chave: trajetória; memória; arquivo.

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ABSTRACT

The intellectual and biographical trajectory of Sérgio Buarque de Holanda has beenrecounted with a linear and memory-based bias from the 1980s onward. In general,this approach, which connected Sérgio’s modernist past with the mature militant ofthe Worker’s Party (Partido dos Trabalhadores) and of the left at the end of his lifewas constituted by a bias toward the exceptionality of the personage, still seen todayin academic publications and events which give it support. Based on this verification,this thesis recounts the history of Sérgio Buarque de Holanda through theperspective of memory and the sites at which it was registered and propagatedaccording to the understanding that at these sites we can perceive its material,symbolic and functional dimensions. This is how we find Sérgio Buarque registered inmemorial texts, funeral speeches, books, events, streets, libraries and archives, a setof sites of acclaim created by a specific group of scholars aiming to shape him to thewill of their memory. In this operation the erasing of political traces of Sérgio Buarquewas intentional, these being more connected to the educational and pedagogicalfields than to the old combating left as some of the official commentators currentlyinsist upon. Finally, this thesis also seeks through the “archive approach”, materialand functional support of this memory, to show that Sérgio Buarque de Holandaconstituted himself, in the keeping of his printed legacy, as a character of himself,feeding the official and linear version of life exposed at these different sites.

Keywords: trajectory; memory; archive.

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Sumário

Introdução.....................................................................................................................1

Capítulo 1: SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA: UM INTELECTUAL "ENTRE DOIS PROJETOS” 21

1.1 Militância errante no modernismo brasileiro......................................................22

1.2 Sérgio Buarque e os quadros intelectuais a partir dos anos 1930...................54

1.3 "Raízes do Brasil" à contrapelo.........................................................................63

1.5. Abrindo parênteses: a "História do Brasil" de 1944.........................................74

1.6. Fechando parênteses.......................................................................................79

Capítulo 2: O RETORNO A SÃO PAULO: DO MUSEU PAULISTA À APOSENTADORIA E DEPOIS… 91

2.1. Da Maria Antônia ao Butantã: a aposentadoria de Sérgio Buarque de Holanda..................................................................................................................113

2.2. A década de 1970: política e historiografia....................................................118

2.3. Os últimos anos de vida: Rua Buri 35, o Centro Brasil Democrático e um pouco do Partido dos Trabalhadores....................................................................125

Capítulo 3: UMA MEMÓRIA PARA AS NOVAS GERAÇÕES 144

3.1. Morre o “Homem Cordial"...............................................................................144

3.2. A constituição de espaços de recordação: a Biblioteca e o Arquivo (de) SérgioBuarque de Holanda na Unicamp.........................................................................162

3.2.1. Os labirintos burocráticos e a compra da Biblioteca...................................167

3.3. A várias mãos: a montagem de um Fundo Privado.......................................182

Considerações finais 204

Referências Bibliográficas 208

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Introdução

Milhares de pessoas transitam todos os dias pela Unicamp. De carro, de

bicicleta, de ônibus ou à pé, uma grande parte delas passa em frente à Biblioteca

Central, cujo endereço é a Rua Sérgio Buarque de Holanda, 421. Desse vasto

universo de transeuntes, é quase certo que a maioria deles não se pergunte sobre o

homem cuja placa da rua homenageia e muito menos que em um dos andares da

mesma biblioteca que lhes passa despercebida aos olhos, encontra-se um dos mais

importantes acervos culturais do país.

Supondo que dos milhares de passantes, um deles mais atento tivesse a

curiosidade de saber quem foi aquela pessoa, o que num primeiro momento ela

descobriria a seu respeito? Teria sido um professor, um político, um escritor?

Iniciaria seus questionamentos relacionando o sobrenome de seu objeto ao

conhecido dicionário ou então ao famoso compositor de Música Popular Brasileira?

Imaginemos que se dotado de ímpeto investigativo, o curioso pedestre resolvesse ir

um pouco mais à fundo em suas questões e buscasse respostas na biblioteca: o que

de imediato encontraria? Caso perguntado por alguém sobre suas descobertas, o

que ele responderia?

Continuamos a cena hipotética e eis a resposta do caminhante: o homem

da placa era paulista, escritor, pai de Chico Buarque e de mais seis filhos! Também

foi modernista, crítico literário, jornalista, sociólogo, historiador e professor da

Universidade de São Paulo-USP. Teve amigos importantes como Mário de Andrade,

Antonio Candido, Vinicius de Moraes, Tom Jobim, Paulo Vanzolini, Manuel Bandeira,

Paulo Duarte, Rubens Borba de Moraes, Afonso Arinos de Melo Franco e muitos

outros. Publicou livros seminais, como "Raízes do Brasil”, que discute nossa

identidade, “um clássico de nascença”, diriam! Foi sempre um homem de esquerda,

solidário aos companheiros perseguidos nas duas ditaduras e, no fim da vida, foi

membro fundador do "Partido dos Trabalhadores” - PT.1

1 O vínculo de Sérgio Buarque com o Partido dos Trabalhadores e consequentemente com a"memória das esquerdas” foi institucionalizado em 2001, com a criação do “Centro Sérgio Buarque deHolanda - Documentação e Memória Política”, fundado com o objetivo de se dedicar ao resgate,organização, disponibilização e pesquisa sobre a documentação histórica relativa ao "Partido dosTrabalhadores" e ao seu contexto histórico. Segundo o historiador Alexandre Fortes, que dirigiu oCentro por cinco anos, a escolha do nome de Sérgio se deu pelo fato de ele ter sido simultaneamenteum dos grandes historiadores do país e um dos fundadores do partido, num momento em que ogrosso da intelectualidade de esquerda ainda apostava em outras alternativas políticas, como o setor

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2

Os livros que pertenceram ao Dr. Sérgio, como lhe chamavam, estão no

setor de Coleções Especiais e Obras Raras dessa Biblioteca que sempre passamos

em frente, mas que nunca entramos. Lá há milhares deles, de história, literatura,

artes, sociologia, alguns muito raros, muitos em língua estrangeira e tantos outros

com dedicatória. O escritório no qual escreveu parte de seus livros encontra-se lá,

da mesma forma como ele o deixou antes de partir - me contou a bibliotecária,

quando visitei! Isso demonstra o quanto ele era dedicado, erudito, disciplinado, leitor

voraz, escritor perfeccionista, um verdadeiro “mestre”, concluí!

O interlocutor, impressionado com tamanha informação, interrompe a

narrativa e indaga: como você sabe de tudo isso? O que já foi escrito a respeito

desse homem, o senhor Buarque de Holanda? A que o narrador com toda a

segurança e pompa responde: há uma vasta fortuna crítica a seu respeito! De

cabeça lembro de alguns autores muito importantes e que sendo muito amigos dele

não lhes deixaram escapar nenhum momento da vida, nos brindando com seus

testemunhos. São estudiosos como Antonio Candido, Francisco de Assis Barbosa,

Maria Odila Leite da Silva Dias, Fernando Novaes, José Sebastião Witter, Laura de

Mello e Souza, Francisco Iglesias e outros que não me recordo agora.

Descobri também que existe um arquivo bem ao lado do restaurante

universitário, com milhares de documentos que lhe pertenceram, como cartas,

recortes de jornais sobre seus livros, cadernos com anotações das pesquisas que

fazia, textos inéditos datilografados, discursos proferidos, fotografias e muito mais

coisas. Há um inventário que as moças do arquivo levaram anos para terminar,

tamanha a quantidade de papéis guardados por ele e mais tarde levados até lá pela

sua esposa.

Foi com base nesse material que rodaram até um filme, “Raízes do Brasil:

uma cinebiografia de Sérgio Buarque de Holanda”, ideia de uma de suas filhas, Ana

de Hollanda, que foi ministra da Cultura, para homenagear não apenas o patriarca,

mas todo o clã. O filme conta com belos depoimentos da esposa, filhos, netos de

Sérgio e também de alguns daqueles autores de que lhe falei antes, como o Antonio

Candido. Para quem não leu "Raízes do Brasil” inteiro, o filme apresenta algumas

"autêntico" do MDB ou o PCB. Levou-se em conta ainda as relações muito próximas entre FundaçãoPerseu Abramo e a direção do PT com a família Buarque de Holanda, em especial a viúva, donaMaria Amélia, presente na inauguração do Centro. Essas informações me foram dadas pelo próprioAlexandre Fortes por e-mail em 31 de agosto de 2012. Para maiores detalhes sobre o acervo ver:FORTES, Alexandre. Construção de acervos e memória da esquerda: a experiência do CentroSérgio Buarque de Holanda. (Mimeo.).

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passagens do livro, como aquela que exprime a nossa identidade e ficou muito

famosa, que fala da alegria do brasileiro, de que a gente é cordial e tal!2

Grosso modo, para quem não é especialista na obra de Sérgio Buarque,

esta é a imagem corriqueira que passou para a memória histórica quando se trata de

falar do “maior dos nossos historiadores”. Foi a partir dela que, durante os tempos

de graduação (1999-2003) na Universidade Federal de Santa Catarina-UFSC, por

exemplo, imaginando a vida perfeita dessa personagem, redigi um trabalho de

conclusão de curso reproduzindo inocentemente pari passu, os ensinamentos

daqueles estudiosos citados. Como ousar questionar tamanha autoridade e lugar de

enunciação? Com exceção de uns poucos capítulos de “Raízes do Brasil”, quase

sempre "O semeador e o Ladrilhador" e o "Homem Cordial”, lidos em uma ou outra

disciplina, o que nos chegava das obras de Sérgio era uma edição de “Visão do

Paraíso” em capa dura, editada em 2000 pela “PubliFolha” que compunha a

"Coleção Grandes Nomes do Pensamento Brasileiro”.

Anos mais tarde, no intuito de preparar o projeto de doutorado, cursei

como aluno ouvinte no Programa de Pós-Graduação em História da UFSC, uma

disciplina chamada “História Intelectual e os Estudos de Epistolografia”. Ministrada

pela professora Maria de Fátima F. Piazza, as discussões giravam em torno de

temas como “escrita de si”, biografia/autobiografia, composição de arquivos pessoais

e a possibilidade de abordagem das cartas como objeto/fontes de pesquisa. Durante

as leituras, que envolviam ainda teses e dissertações sobre intérpretes “menos

famosos”, algumas em especial nos deram a deixa para a ideia central da tese que

agora apresentamos.

Destacamos desse conjunto duas delas. A primeira, de Rebeca Gontijo,

sobre o historiador Capistrano de Abreu, levanta a hipótese de que a construção

identitária da personagem envolve dois tipos de exercício de legitimação. O primeiro

coletivo, resultante da atuação dos pares, admiradores, discípulos, biógrafos e

intérpretes do historiador, no sentido de situá-lo em relação a uma tradição

2 Obviamente o personagem fictício se vale de uma leitura às avessas do conceito cunhado porSérgio Buarque em seu livro de estreia. A constituição desse documentário foi devidamenteproblematizada em um artigo que aponta o filme como sendo a materialização imagética de um textobiográfico de 1979, “Apontamentos para uma cronologia de Sérgio Buarque de Holanda”, escrito porMaria Amélia Buarque de Holanda para o lançamento da edição venezuelana de “Visão do Paraíso”.Sua conclusão é que, dotados, ambos, de um modo de narrar tradicional e cronológico, acabam pormonumentalizar o sujeito biografado com o intuito de impor um sentido unívoco ao devir da memóriade Sérgio Buarque. CARVALHO, Raphael Guilherme de. A biografia entre o cinema e a história:modos tradicionais de narrar na memória de Sérgio Buarque de Holanda. In: Revista Ágora (Vitória),v. 7, pp. 1-20, 2011.

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intelectual. O outro individual, correspondendo às investidas feitas pelo próprio

Capistrano a partir de determinadas circunstâncias, por meio das quais ele constitui

a si mesmo como indivíduo e como intelectual.3

A segunda, de Giselle Martins Venâncio, intitula-se "Na trama do arquivo:

a trajetória de Oliveira Vianna”. Para a autora, Vianna organizou, ao longo de sua

vida, um arquivo e uma biblioteca pessoal nos quais ordenou os acontecimentos que

balizaram a sua trajetória, estabelecendo coerências, construindo continuidades e

linearidades, visando, de certa forma, legar um “esboço” de sua própria biografia.

Nesse sentido, seu arquivo privado e sua biblioteca pessoal sugerem uma escrita

autobiográfica, apontando para a “fabricação” de uma memória postumamente

elaborada por seus herdeiros intelectuais.4

Frente a esses exemplos, a pergunta que nos surgiu à época era pensar

por que tantos intelectuais se tornaram objetos de estudo nessa perspectiva e

Sérgio Buarque de Holanda não, já que tinha organizado assim como os demais, um

arquivo pessoal e uma biblioteca privada?5 E mais, por que essa exposição linear de

sua vida jamais recebeu um outro tratamento?

Arriscamos dizer que há uma espécie de “obsessão comemorativa” em

torno da figura de Sérgio Buarque e de seus escritos, fenômeno iniciado ainda na

década de 1980 e sem prazo de validade. Apenas durante o tempo de nossa

passagem pelo curso de doutorado, iniciado em 2010, vieram à público mais de uma

dezena de títulos6, alguns relançamentos e outros sobre a obra do historiador, sem3 Essa tese encontra-se publicada com a seguinte referência: GONTIJO, Rebeca. O velho vaqueano.Capistrano de Abreu (1853-1927): memória, historiografia e escrita de si. Rio de Janeiro: 7 Letras,2013. 4 VENÂNCIO, Giselle Martins. Na trama do arquivo: a trajetória de Oliveira Vianna. Tese(Doutorado) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Rio deJaneiro, 2003. 5 Dentre alguns trabalhos podemos citar: PIOVESAN, Greyce Kely. Prezado doutor, querido amigo,caro memorialista: a sociabilidade intelectual nas cartas para Pedro Nava. Dissertação (Mestrado) -Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em História, Florianópolis, 2009; LEMOS, Clarice Caldini. Os bastiões da nacionalidade:nação e nacionalismo nas obras de Elysio de Carvalho. Dissertação (Mestrado) - UniversidadeFederal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduaçãoem História, Florianópolis, 2010. 6 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Capítulos de História do Império. São Paulo: Companhia dasLetras, 2010; ______. Visão do Paraíso: os motivos edênicos do descobrimento e colonização doBrasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2010; ______. Monções e Capítulos de ExpansãoPaulista. São Paulo: Companhia das Letras, 2014;______. O Homem Cordial (Coleção Grandesideias). São Paulo: Penguin, 2012; ______. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras,2015; MONTEIRO, Pedro Meira (org.). Mário de Andrade e Sérgio Buarque de Holanda:correspondência. São Paulo, SP: Companhia das Letras: USP/Instituto de Estudos Brasileiros:EDUSP, 2012; MARRAS, Stelio (org.). Atualidade de Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo, SP:EDUSP: Instituto de Estudos Brasileiros, 2012; EUGENIO, João Kennedy. Ritmo Espontâneo:organicismo em Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda. Terezina: EDUFPI, 2011; COSTA,

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5

contar artigos científicos, reportagens, matérias jornalísticas, etc. Uma delas, aliás,

aponta que “novas edições dos livros de Sérgio Buarque e mais obras sobre o crítico

literário e historiador estão previstas para sair em breve”, dentre elas uma biografia

assinada por Pedro Meira Monteiro, que ainda trabalha ao lado de Lilia Schwarcz, na

confecção de outra edição crítica e anotada de "Raízes do Brasil". Afinal, “se

Monções mereceu uma edição caprichada ao completar 70 anos, as oito décadas do

clássico mais clássico de um dos mais importantes pensadores brasileiros são um

bom pretexto para conhecer ou passar em revista sua vida e obra”.7

Em resumo, o bastão vai sendo passado de uma geração antiga para

uma nova de professores universitários, muitas vezes “altaneiros e impossíveis de

compreender, contratados por comissões, ansiosos por agradar a vários

patrocinadores e agências, eriçados com credenciais acadêmicas e com uma

autoridade social que não promove debate, mas estabelece reputações e intimida os

não especialistas”.8

Relevante na “versão oficial" é o fato de Sérgio Buarque ter se

transformado em um personagem atemporal, elevado sempre ao posto de “o maior

de todos os tempos” e descolado de outros intérpretes de sua geração, a exemplo

de Oliveira Vianna, Paulo Prado, Caio Prado Júnior e Gilberto Freyre, mas que como

eles imputava aos nossos pais colonizadores "o desacerto entre ideias e instituições

políticas e a condição do brasileiro (…) trazendo de Portugal para cá os resquícios

da organizarão feudal e, sobretudo, povo mestiço servindo de ponte entre a Europa

e a África. Pouco europeu”. Além da interpretação crítica ao liberalismo, Sérgio se

insere no rol daqueles, cujas obras se utilizavam de imagens de forte poder

persuasivo, construídos com metáforas e outras figuras de linguagem, "de fácil

assimilação e que ponteiam de forma abundante suas análises", dando título a livros

Marcos (org.). Sérgio Buarque de Holanda: escritos coligidos. São Paulo, SP: Editora da UNESP:Fundação Perseu Abramo, 2011. 2v; MARTINS, Renato (org). Sérgio Buarque de Holanda:encontros. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009; NICODEMO, Thiago Lima. Alegoria Moderna:crítica literária e história da literatura na obra de Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo: FAP-Unifesp, 2014; BUARQUE, Chico. O Irmão Alemão. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2014.7 PIVETTA, Marcus. Monções (quase reescrito), Pesquisa FAPESP, n. 230, abril 2015, p. 79.Enquanto revisamos o texto final da tese, acaba de ser lançado outro livro que tem Sérgio comopersonagem. Trata-se de uma abordagem voltada para a crítica e história literária, de autoria deAntônio Arnoni Prado, intitulada, “Dois letrados e o Brasil nação: a obra crítica de Oliveira Lima eSérgio Buarque de Holanda". São Paulo: Editora 34, 2015. 8 JACOBY, Russell. Os Últimos Intelectuais: a cultura americana na era da academia. Trad. MagdaLopes. São Paulo: Trajetória Cultural: Edusp, 1990. p. 9.

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como “Retrato do Brasil”, de Paulo Prado, ”Raízes do Brasil", "Evolução Política do

Brasil", de Caio Prado Júnior e "Casa Grande e Senzala”, de Gilberto Freyre.9

Visto assim, Sérgio Buarque passaria imune a quaisquer tipos de

divergências, pessoal, ideológica ou acadêmica, não raras nos meios intelectuais

dos quais fazia parte. Explicação de alguns autores, quando silenciam de sua

biografia uma participação mais efetiva nas esferas do estado varguista, como se

fosse demérito, mencionando apenas pelo alto sua passagem por órgãos de cultura,

destino de tantos modernistas de sua geração, e não economizando loas, por

exemplo, à sua imagem projetada a posteriori de "intelectual combativo e signatário

da Declaração de princípios contra a ditadura de Getúlio Vargas”.10

Além de contestador, Sérgio Buarque também passou para a memória

como um dos intérpretes ligados à nossa “moderna historiografia”, surgida com o

"sopro de radicalismo intelectual" que eclodiu logo após a chegada de Vargas ao

poder e que não teria, apesar de tudo, “sido abafada pela ditadura do Estado Novo”.

Em pesquisa sobre a história da historiografia no Brasil das décadas de 1940 a

1960, Rebeca Gontijo e Fábio Franzini problematizaram a memória que formou esse

ideal moderno. Para eles, não há dúvidas de que o famoso prefácio de Antonio

Candido à quinta edição de "Raízes do Brasil", escrito em 1969, é o marco inaugural

de uma nova visão a respeito desses intérpretes, na qual o livro de Sérgio assume

lugar de destaque justamente ao lado de Casa Grande & Senzala (1933), de

Gilberto Freyre e Formação do Brasil Contemporâneo (1942), de Caio Prado

Júnior”.11

9 BRESCIANI, Maria Stella Martins. O charme da ciência e a sedução da objetividade: OliveiraVianna entre os intérpretes do Brasil. 2. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2007. p. 10. Para a autora,intelectuais como Paulo Prado, Sérgio Buarque, Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior, em particular, ebem mais tarde Darcy Ribeiro, podiam ignorar ou até polemizar com as ideias e o projeto político deOliveira Vianna, visto como conservador, racista, autoritário, sem no entanto, deixarem de se nutrir namesma fonte e estruturarem suas análises, embora com ênfases e matrizes diversos, nas mesmashipóteses explicativas para a situação do Brasil nos anos 1920 e 1930”. pp. 10-11. 10 DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Sérgio Buarque de Holanda, historiador. ______. (org.). SérgioBuarque de Holanda: História. Coleção Grandes Cientistas Sociais. São Paulo: Ática, 1985. p. 8. 11 FRANZINI, Fábio; GONTIJO, Rebeca. Memória e história da historiografia no Brasil: a invenção deuma moderna tradição, anos 1940-1960. In: SOHIET, R. (et al. ) Mitos, Projetos e PráticasPolíticas: memória e historiografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. Não por acaso, aapresentação da última edição de Raízes do Brasil (2015) traz o seguinte texto: "Nunca serádemasiado reafirmar que 'Raízes do Brasil' inscreve-se como uma das verdadeiras obras fundadorasda moderna historiografia e ciências sociais brasileiras. (…) E as novas gerações de historiadorescontinuam encontrando, nela, uma fonte inspiradora de inesgotável vitalidade. Todas essasqualidades reunidas fizeram deste livro, com razão, no dizer de Antonio Candido, "um clássico denascença”. D isponíve l em: http://www.companhiadasletras.com.br/detalhe.php?codigo=13938.Acessado em 29 de abril de 2015.

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De testemunho de uma geração que sofreu os impactos desses autores

durante a formação secundária e universitária, o prefácio, que se tornou

independente do livro, foi apropriado em muitos casos de maneira acrítica, e o que

“nele era memória se cristalizou em história, do que decorreu uma canonização,

ainda que informal daqueles livros e autores que supostamente haviam marcado a

sua geração, ou ao menos, da qual ele fazia parte”.12

Não por acaso, na década de 1970 durante o auge da repressão militar,

encontrarmos intérpretes como Francisco de Oliveira Vianna, Alberto Torres,

Francisco Campos e Azevedo Amaral, todos eles contemporâneos da tríade, sendo

rotulados como conservadores, direitistas, autoritários, racistas - em suma,

merecedores de pouco crédito.13 Time ao qual veio se juntar Gilberto Freyre,

também mandado às favas por seus posicionamentos favoráveis aos militares

brasileiros e ao salazarismo português e após passar pelo tribunal dos sociólogos da

Universidade de São Paulo, liderados por Florestan Fernandes, que o acusaram de

ter amaciado demasiadamente as violentas relações entre senhores e escravos.

Imagem que restou, mesmo que hoje saibamos que todos esses

intérpretes, incluindo os “modernos”, se dobraram, por exemplo, ao determinismo

mesológico: “o espaço incerto ocupado por Portugal, pouco definido entre a Europa

e a África, teria moldado o físico e o caráter do colonizador, fazendo que, em terras

do novo continente, esse homem passasse a sofrer o peso das condições adversas

dos trópicos". Em suma, como ensinou Maria Stella Bresciani, o determinismo do

meio ambiente aparece com maior ou menor ênfase nas explicações dos fracassos

e sucessos do colonizador e forma um lugar-comum no qual os estudiosos se

encontram”.14

Sérgio não só escapou ileso a essas disputas ideológicas, como também

foi elevado ao grau máximo de toda uma geração e a modelo exemplar de

intelectual. Na época em que foi agraciado com o troféu Juca Pato, concedido pela

União Brasileira de Escritores por suas "Tentativas de Mitologia” (1979), por

exemplo, Antonio Candido escreveu uma resenha da obra deixando clara a imagem

que gostaria de deixar para o futuro: “Por tudo isso, quem votou este ano em Sérgio

Buarque de Holanda (…) acertou em cheio, pois consagrou um intelectual que

apresenta não apenas a eminência específica requerida, mas que possui também as

12 Idem, p. 157. 13 BRESCIANI, op.cit., p 9. 14 Idem, pp. 12-13.

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qualidades humanas que o tornam modelar como inspiração para os outros. Um

verdadeiro mestre, portanto”.15

Desde então, a partir da morte de Sérgio Buarque, essa versão passou

por constantes (re)atualizações, dado o momento político do país, “de ressaca

revolucionária” e os seus reflexos no campo historiográfico que expunham o ocaso

dos grandes modelos explicativos de base marxista, abrindo o campo disciplinar às

novas possibilidades de pesquisa, dentre as quais a retomada dos “clássicos" à luz

da chamada “nova história cultural”.16 Nesse sentido Françoise Waquet deixa claro

que “o mestre não existe em si (quaisquer que sejam sua ciência e seu talento), é

criação do discípulo e a posteriori”, numa fusão de rememoração e construção

intelectual para formar uma imagem que transcende os fatos sobre os quais se

funda”.17

Não é por acaso, portanto, que os anos 1980 marcaram definitivamente

uma tendência de consagração, compilação e de primeiros estudos da obra

buarqueana, continuada na década seguinte e animada de modo particular por

Antonio Candido, Francisco de Assis Barbosa, José Sebastião Witter e Maria Odila

L. da S. Dias, que como se percebe foram responsáveis por alguns textos que

ajudaram a traçar o perfil oficial do mestre-amigo.18

Apenas no final da década de 1990 é que as narrativas testemunhais e

celebrativas perdem força em detrimento de estudos mais críticos e sistemáticos,

mas não menos entusiasmados, resultantes de pesquisas desenvolvidas em

15 CANDIDO, Antonio. As Tentativas de Mitologia de Sérgio Buarque de Holanda. O Escritor. Jornalda UBE, n. 100, outubro de 2002, p. 24. 16 Refiro-me a influência que teve no país os volumes organizados por Pierre Nora e Jacque Le Goff,Faire de l'histoire. Paris: Gallimard, c1974. 3v. (Collection folio/histoire). Bons exemplos da influênciade Sérgio Buarque na historiografia dos anos 1980, sobretudo a produzida na USP são: SEVCENKO,Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. SãoPaulo: Brasiliense, 1983; DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo noséculo XIX. São Paulo: Brasiliense, 1984; SOUZA, Laura de Mello e. O Diabo e a Terra de SantaCruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.Por um outro viés, podemos afirmar ainda que “na historiografia dos anos 1980, a revolução passoupor uma profunda revisão e as questões pertinentes ao contexto dos anos 1960 perderam a sua forçade atração”. DECCA, Edgar S. de. A revolução acabou…Prefácio à 5ª edição. O Silêncio dosVencidos: história, memória e revolução. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 28. 17 WAQUET, Françoise. Os Filhos de Sócrates: filiação intelectual e transmissão do saber do séculoXVII ao XXI. Trad. Marcelo Rouanet. Rio de Janeiro: DIFEL, 2010. p. 28. 18 Dentre os principais trabalhos destacam-se: CANDIDO, Antonio. Sérgio em Berlin e depois. In:Novos Estudos CEBRAP. São Paulo, Vol.1 número 3, páginas 4 a 9, julho de 1982; DIAS, MariaOdila Leite da Silva (org.). Sérgio Buarque de Holanda: história. Coleção Grandes CientistasSociais. São Paulo: Ática, 1985; NOGUEIRA, Arlinda (org.). Sérgio Buarque de Holanda: vida eobra. São Paulo: Secretaria de Estado da Cultura: Arquivo do Estado: USP: IEB, 1988; CANDIDO,Antonio. (org). Sérgio Buarque de Holanda e o Brasil. São Paulo: Editora Fundação PerseuAbramo, 1998.

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diversos programas de pós-graduação ou a partir das publicações póstumas de

textos avulsos de Sérgio, entendidos como fontes, que visam ampliar a possibilidade

de outras leituras de seu percurso. Parte delas motivadas pela consulta a biblioteca

e ao arquivo pessoal19 do historiador, fazendo com que ele continuasse a ser objeto

de debates e tema de novas produções acadêmicas.20

O propósito desta tese, portanto, é expor em primeiro plano a história da

memória de Sérgio Buarque de Holanda, construída a partir de sua morte,

percebendo por meio do recorte cronológico instituído por essa memória, os

silenciamentos impostos à trajetória desse intelectual. Nesse sentido, o foco é

lançado sobre um grupo específico de professores e acadêmicos que ainda hoje

detém o que chamaremos aqui de “monopólio da memória”; em outras palavras, a

permissão que lhes foi concedida pela família do morto, com base em relações de

amizade, de forjarem, por meio de seus testemunhos e publicações, uma versão

biográfica oficial da personagem, transmitida por espaços de consagração, como a

Universidade de São Paulo-USP e inscrita em lugares de memória como a biblioteca

e o arquivo.

Dito de outra forma, a versão oficial que apreendemos a partir de nossa

pesquisa é a que canonizou definitivamente Sérgio Buarque de Holanda nos campos

disciplinares da história e da crítica literária, visto que não há em torno de seu nome

19 Utilizo aqui a noção de “arquivos pessoais” como conjuntos documentais resultantes de uma sériede gestos e práticas, conformados pelos titulares, mas também por seus colaboradores, familiares eherdeiros, e disponibilizados por meio de estruturas institucionais que os “produzem" como fontes.HEYMANN, Luciana Quillet. O lugar do arquivo: a construção do legado de Darcy Ribeiro. Rio deJaneiro: Contra Capa/FAPERJ, 2012. p. 74. 20 Como exemplos temos: CARVALHO, Marcus Vinicius Correa. Raízes do Brasil, 1936: tradição,cultura e vida. 1997. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto deFilosofia e Ciências Humanas, Campinas; CARVALHO, Marcus Vinicius Correa. Outros lados:Sérgio Buarque de Holanda: crítica literária, história e política (1920-1940). 2003. Tese (doutorado) -Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Campinas, SP;MONTEIRO, Pedro Meira. A queda do aventureiro: aventura, cordialidade e os novos temposem Raízes do Brasil. Campinas/SP: UNICAMP: FAPESP, 1999; ______. Mário de Andrade eSérgio Buarque de Holanda: correspondência. São Paulo: Companhia das Letras: USP/Institutode Estudos Brasileiros: EDUSP, 2012; WEGNER, Robert. A Conquista do Oeste: a fronteira na obrade Sérgio Buarque de Holanda. Belo Horizonte: UFMG, 2000; PESAVENTO, Sandra Jatahy (org.).Um historiador nas fronteiras: o Brasil de Sérgio Buarque de Holanda. Belo Horizonte: UFMG, 2005;NICODEMO, Thiago Lima. Urdidura do vivido: visão do Paraíso e a obra de Sérgio Buarque deHolanda nos anos 1950. São Paulo: EDUSP, 2008;______. Alegoria Moderna: A Crítica Literária deSérgio Buarque de Holanda. 1. ed. São Paulo: Unifesp; FAPESP, 2014; EUGENIO, João Kennedy.Ritmo Espontâneo: organicismo em Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda. Teresina:EDUFPI, 2011; MORAES, Ricardo Gaiotto de. Críticas Cruzadas: Mário de Andrade e SérgioBuarque de Holanda. 2014. 177 p. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas,Instituto de Estudos da Linguagem, Campinas, SP; HOLANDA, Sérgio Buarque de. Capítulos dehistória do império. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2010; _______. Monções e Capítulos deExpansão Paulista. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

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uma memória em disputa. Iniciada por ele próprio ao “arquivar a própria vida” e

desenvolvida por esse grupo de amigos a partir da década de 1980, essa narrativa

primou por um caráter excepcional da personagem, pela sua condição de mestre,

com viés político à esquerda e a partir de um recorte cronológico específico,

predominando nessa complexa operação, além dos atos de poder, o fatalismo

biográfico. Em suma, se deu a Sérgio uma vida modelar, vista a partir de

celebrações, homenagens póstumas, coletâneas e na publicação de inéditos, que

(re)atualizam no tempo a imagem consensual que querem postergada.

Isto posto, entendemos que houve por parte desse grupo e da família da

personagem uma ativação memorial visando, de alguma forma, ao controle do seu

passado biográfico (e, portanto, do presente, daquilo que pode ou não ser dito e

daquilo que deve ser silenciado). Por essa perspectiva, reformular o passado em

função do presente via gestão de memórias significa, antes de mais nada, controlar

a materialidade em que essa memória particular se expressa (do nome de rua às

comemorações, exposição de objetos, montagem de arquivo e biblioteca,

publicações póstumas…). Noção de que a memória torna poderoso(s) aquele(s) que

a gere(m) e controla(m).21

A memória histórica que se criou em torno de Sérgio Buarque de Holanda

pode também ser entendida a partir do que apontou o historiador português

Fernando Catroga. De acordo com ele, o conteúdo da memória é inseparável dos

seus campos de objetivação (linguagem, imagens, relíquias, lugares, escritas,

monumentos) e dos ritos que as produzem e transmitem, demonstrando que ela

nunca se desenvolverá no interior dos sujeitos, sem suportes materiais, sociais e

simbólicos de memórias.22 Partindo dessas constatações defendemos a ideia de que

é possível perceber quais foram os campos de materialidade/objetivação e quais

foram os ritos que produziram essa “memória oficial” acerca do cultuado historiador.

Desse modo, consideramos para essa análise os seguintes itens: 1) as publicações

que indicam traços biográficos, organizada por pares; em suma, aquilo que virou

historiografia/fortuna crítica; 2) os discursos, as homenagens póstumas e os eventos

comemorativos; 3) a compra de sua biblioteca e a montagem do Fundo Sérgio

Buarque de Holanda. 21 SEIXAS, Jacy Alves de. Percursos de memórias em terras de história: problemáticas atuais. In:BRESCIANI, Stella; NAXARA, Márcia (org.). Memória e (res)sentimento: indagações sobre umaquestão sensível. 2. ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2004. p. 42. 22 CATROGA, Fernando. Memória, História e Historiografia. 1. ed. Coimbra: Quarteto, 2001. p. 23.Col. Opúsculos.

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De modo geral, as discussões no campo da memória vêm avançado

bastante nas últimas décadas e têm trazido não apenas aos pesquisadores, mas

também ao conjunto da sociedade, reflexões cada vez mais instigantes sobre os

usos e apropriações do passado. Grosso modo, foi a partir de meados da década de

1970 que a noção de “memória coletiva” consagrada por Maurice Halbwachs23,

conheceu um novo surto. Na França, por exemplo, no trabalho coletivo iniciado por

Pierre Nora, "Os lugares de memória”24, aparece a noção de sociedades memoriais

para descrever as nossas sociedades contemporâneas invadidas por memórias

múltiplas.

Nora retoma e apropria-se das ideias básicas de Halbwachs - a oposição

que estabelece entre memória individual e memória coletiva e, sobretudo, entre

memória coletiva e história - as opondo ainda mais radicalmente. À memória

coletiva, Halbwachs confere o atributo de atividade natural, espontânea,

desinteressada e seletiva, que guarda do passado apenas o que lhe possa ser útil

para criar um elo entre o presente e o passado, ao contrário da história, que constitui

um processo interessado, político, portanto, manipulador. A memória coletiva, sendo

sobretudo oral e afetiva, pulveriza-se em uma multiplicidade de narrativas; a história

é uma atividade da escrita, organizando e unificando numa totalidade sistematizada

as diferentes lacunas.

Hoje é impossível operar uma distinção clara entre memória coletiva e

memória histórica pois, segundo Nora, a primeira passa necessariamente pela

história, é filtrada por ela; é impossível à memória escapar contemporaneamente

dos procedimentos históricos. Assistimos hoje, de acordo com o autor, ao fim das

“sociedades-memórias”, e o que evidenciamos como uma revalorização retórica da

memória esconde, na verdade, um vazio. “Fala-se tanto de memória precisamente

porque ela não existe mais”.25

Em seu famoso texto "Entre mémoire et histoire” Nora organiza uma

rígida dicotomia entre essas duas noções. A memória seria a tradição vivida e a sua

atualização no eterno presente seria espontânea e afetiva, múltipla e vulnerável; a

história, pelo contrário, uma operação profana, uma reconstrução intelectual sempre

problematizadora que demanda análise e explicação, uma representação23 HALBWACHS, Maurice. La mémoire collective. Paris, PUF, 1950.24 NORA, Pierre. Les lieux de Mémoire. Paris, Gallimard, Coll. Bibliothèque illustrée des histoires, 3tomes, 1984-1992. 25 SEIXAS, op.cit., p. 40; NORA, Pierre. Entre mémoire e histoire. La problemátique des lieux. In:______. (org.). Les lieux de mémoire. vol 1. La République. Paris: Gallimard, 1984.

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sistematizada e crítica do passado. A memória tece vínculos com a tradição e o

mundo pré-industrial, a história com a modernidade; neste sentido, a história-

memória é sobretudo conservadora; a história crítica, subversiva e iconoclasta. Tudo

aquilo a que chamamos hoje de memória, conclui, já não o é, já é história.26

A memória encontra-se assim, prisioneira da história, transformou-se em

seu objeto e trama, em memória historicizada. De acordo com Jacy Alves de Seixas,

esta contemporânea apropriação da memória pela história resultou em dois efeitos

importantes. O primeiro é a sua extrema operacionalidade e produtividade. É o

“frenesi de memória” das últimas décadas, fenômeno novo e salutar, que está na

raiz de importantes movimentos identitários (sociais e/ou políticos) e de afirmação de

novas subjetividades, de novas cidadanias. Responsável pelo “resgate" de

experiências marginais ou historicamente traumáticas, localizadas fora das fronteiras

ou na periferia da história oficial ou dominante e pelo aparecimento de novas noções

como as de “memórias subterrâneas", "lembranças dissidentes", "lembranças

proibidas", "memórias enquadradas", "memórias silenciadas”.27

O segundo efeito, que se entrelaça com o primeiro, diz respeito a

questionamentos até há pouco considerados pela historiografia, quais sejam: a

dimensão afetiva e descontínua das experiências humanas, sociais e políticas; a

função criativa inscrita na memória de atualização do passado lançando-se em

direção ao futuro, que se reinveste dessa forma de toda a carga afetiva atribuída

comumente às utopias e aos mitos. Dito de outro modo, a autora busca refletir sobre

as relações entre memória e história, atribuindo a necessidade de se iluminar a

memória também a partir de seu próprios refletores e prismas. Necessário, portanto,

segundo ela, incorporar tanto o papel desempenhado pela afetividade e

sensibilidade na história quanto na memória involuntária. Necessário, igualmente,

nos atentarmos para o movimento próprio à memória humana, ou seja, o tempo-

26 NORA, op.cit., p. xix-xx; RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Trad. AlainFrançois (et.al). Campinas: SP: Editora Unicamp, 2007. Em especial o sub-capítulo “Pierre Nora:insólitos lugares de memória. pp. 412-421. 27 SEIXAS, op.cit. p. 43; VIDAL, Laurent. Acervos pessoais e memória coletiva. Alguns elementos dereflexão. Patrimônio e Memória, vol. 3, n. 1, 2007, p. 8. Exemplo bastante conhecido é o texto deMichael Pollak, “Memória, esquecimento, silêncio” , Estudos históricos, Rio de janeiro, vol. 2, n°3,1989, pp. 3-15. Essas disputas pela memória, que incluem a historiografia, levou à formação em2013, de um grupo de discussão e pesquisa coordenado pelo professor Edgar de Decca, intitulado“Historiografia, conflito e memória”, no qual entre outros pontos, se propõe reavaliar as competênciasdo discurso histórico produzido na universidade e seus confrontos com o campo das memóriascoletivas desses novos sujeitos sociais emergentes. Segundo a autora, a expressão “frenesi dememória” é autoria de Arno Mayer e está contida no artigo “Les pièges du souvenier, Esprit, nº 7, jul.,1993. pp. 45-59.

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espaço no qual ela se move e o decorrente caráter de atualização inscrito em todo

percurso da memória.28

Partindo dessas reflexões, Seixas nos chama a atenção para duas

questões muito atuais, quais sejam, a relação entre memória e ética e a função

utópica e mítica desempenhada pela memória. A primeira questão foi colocada em

pauta nas últimas décadas e coincide com acontecimentos históricos como a

implosão da União Soviética, a queda do Muro de Berlim, a explosão da ex-

Iugoslávia, o fim do Apartheid na África do Sul e outros. Segundo a autora, é do

interior desse caldeirão, carregado de fortes sentimentos e emoções, que memórias

diversificadas irrompem e invadem a cena pública, buscam reconhecimento,

visibilidade e articulação, respondendo a uma necessidade que a racionalidade

histórica é impotente para exprimir, “atualizando no presente vivências remotas

(revisitadas, silenciadas, recalcadas ou esquecidas) que se projetam em direção ao

futuro.29

A segunda questão parte da hipótese de que esse “frenesi de memória”

assistido hoje, represente o contraponto à timidez, recuo ou crise das utopias

racionalistas, particularmente sensível nas três últimas décadas do século XX. Ou

seja, “não mais as utopias, mas a(s) memória(s) estaria(m) apontando os lugares de

realização histórica. Nesse sentido, os discursos e as manifestações poderosas da

memória se colocariam atualmente à história como uma “palavra de oráculo”,

cumprindo funções que até recentemente (a década de 1960, provavelmente) as

utopias históricas preenchiam. Assim, conclui a autora, "o sonhar coletivo e

28 SEIXAS, idem., pp. 44-45. A ideia de “memória involuntária” (aquela que existe fora de nós, inscritanos objetos, nos espaços, nas paisagens, nos odores, nas imagens, nos monumentos, nos arquivos,nas comemorações, nos artefatos e nos lugares mais variados) proposta pela autora se dá com basena leituras de Henri Bergson e Marcel Proust. Partindo deles, Seixas contrapõe essa noção à de“memória voluntária, que deixa escapar toda a dimensão afetiva e descontínua da vida e da ação doshomens. Para ela, a “observação proustiana é de tal modo instigante para o historiador que, deimediato impõem-se algumas considerações de ordem historiográfica. A primeira delas parte de umaconstatação: (…) a historiografia elegeu a memória voluntária, desqualificando a memória involuntáriatida como constitutiva de um terreno de irracionalismo(s) e, por essa razão, avessa à história”. Emseguida faz o seguinte questionamento: será esse procedimento ainda hoje pertinente e fecundo? Aresposta é negativa, porque é justamente essa dimensão afetiva e descontínua relegada pelamemória, a sua dimensão exilada, que parte das ciências humanas tem buscado precisamenteintegrar, com o estudo dos mitos, das sensibilidades e paixões políticas, da imaginação e doimaginário na história. Seixas conclui sua crítica afirmando que, “mesmo a noção de resgate ou derecuperação da memória dos excluídos e dos vencidos na história (…) na verdade, aplica-se apenasse referida à memória voluntária. (…) Desnecessário lembrar quanto a história contemporânea tempresenciado a manifestação dessa instável memória involuntária, carregada de emoções,frequentemente avessa às clivagens ideológicas e políticas tradicionais. Memórias que parecememergir, irromper de um passado mais-que-morto para assombrar o nosso presente concebido,contra todas as evidências, segundo os cânones da ideologia do progresso”. pp. 47-48. 29 Ibidem, p. 53.

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individual sem o qual não há ação possível, o lançar-se coletivamente em direção a

um futuro representado como melhor investir-se-iam não mais nas utopias históricas,

mas valer-se-iam da memória para projetar-se e atar passado e futuro”.30

Além da problemática da memória, essa tese também dialoga com a

chamada “História Intelectual" ou "História dos Intelectuais”31, como a designa a

historiografia de tradição francesa, um campo de possibilidades ainda em discussão,

situada nos limites das histórias política, social e cultural. Deste modo, não existe um

consenso entre os autores de como definí-la.

Em meados dos anos 1980, em particular na Europa, como apontou

Marie-Christin Granjon, a percepção sobre o papel dos intelectuais mudou de

direção, possibilitando uma inovação na historiografia dos intelectuais, quando, de

tradicionais juízes de seu próprio engajamento passaram a ser considerados como

um objeto histórico similar a outros, passíveis de serem investigados pelos

especialistas das ciências humanas.

Jean-François Sirinelli, por sua vez, chamou a atenção para o caráter

polissêmico da noção de intelectual e estudou como essa noção se transformou com

o passar do tempo, a partir de duas perspectivas entrelaçadas e ambas presentes

na famosa e polêmica petição "J’accuse!”, publicada em 1898, no diário "L’Aurore

littèraire, artistique, sociale", por Émile Zola em defesa do capitão Alfred Dreyfus.32

30 Idem, p. 55.31 Para elaborar essa pequena síntese sobre o assunto, utilizei as seguintes referências:ALTAMIRANO, Carlos. Ideias para um programa de história intelectual. In: Tempo Social Revista deSociologia da USP. São Paulo: USP, v.19, n. 1, jul. 2007. pp. 9-17; BEIRED, José Luis Bendicho.Vertentes da História Intelectual. In: BARBOSA, Carlos Alberto Sampaio; GARCIA, Tânia da Costa(orgs). Cadernos de Seminário de Pesquisa: Cultura e Política nas Américas. Assis: UNESP,2009. pp. 86-98; BOTTOMORE, Tom. Dicionário do Pensamento Marxista. Rio de Janeiro: JorgeZahar, 2001. pp. 194-195; CARVALHO, José Murilo de. História Intelectual no Brasil: a retórica comochave de leitura. In: Topoi: Revista de História do Programa de Pós-Graduação em História Social.Rio de Janeiro: UFRJ, n. 1, 2000. pp. 123-152; CHARTIER, Roger. História Intelectual e História dasMentalidades: In:_____. À beira da falésia: a história entre certezas e inquietudes. Porto Alegre:Editora da UFRGS, 2002. pp. 23-60; DOSSE, François. Biografia Intelectual. In: ____. O DesafioBiográfico: escrever uma vida. São Paulo: EDUSP, 2009. pp. 361-403; GRANJON, Marie-Christine.Une enquête compare sur l’histoire des Intellectuels: sinthèse et perspectives. In: TREBITSCH,Michel; GRANJON, Marie-Christine (Direc). Pour une histoire compare des intellectuels. Paris:Editions Complexe; IHTP/CNRS, 1998. pp. 19-36.32 Como se sabe, este oficial do exército francês de origem judia foi acusado injustamente de traição.Aqueles que assinaram a petição a seu favor e pediram a revisão do processo “em nome da justiça,da verdade e contra a razão do Estado” foram chamados de intelectuais. O aparecimento dessanoção estava vinculado com o posicionamento público dos intelectuais e sua intervenção para alteraro julgamento do capitão, que os configurava como “intelectuais de esquerda”, defensores de valorese causas universais. Intelectual, portanto, designa, originalmente, uma vanguarda cultural e políticaque ousava desafiar a razão do Estado. (...) Continuando a designar um grupo político, o substantivo“intelectual” qualifica sobretudo uma atitude e uma maneira de se posicionar no mundo”. Esse brevehistórico foi retirado do livro de Sílvia Cezar Miskulin, Os intelectuais cubanos e a política culturalda Revolução (1961-1975). São Paulo: Alameda, 2009, p. 18, mas a referência exata da passagem

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Uma mais ampla, em que os criadores e mediadores culturais eram os intelectuais, o

que englobava os escritores, jornalistas, professores. A outra, mais estreita, assenta-

se na noção de engajamento, onde o enfoque pode ser os intelectuais que

intervieram na vida das cidades, como por meio da assinatura de manifestos ou

ainda por meio de debates na imprensa.

Dentre as fontes para o estudo da história dos intelectuais, Sirinelli

destaca justamente a importância dos textos impressos, nos quais os intelectuais

têm papel fundamental, desde a gênese, circulação, até sua transmissão para

formar opiniões. Uma história social desses textos exigiria a análise sistemática de

elementos dispersos, conectados com a realidade em que estão inseridos,

possibilitando ao pesquisador reconstruir redes de sociabilidade, entendidas como

uma “ferramenta” explicativa para compreender a organização e a dinâmica do

campo intelectual, com suas amizades e inimizades, vínculos e tomadas de posição.

Mas é somente após a Segunda Guerra Mundial que o modelo do

"intelectual engajado” se torna mais concreto, já que era possível indentificá-lo, por

exemplo, na figura de Jean-Paul Sartre. Não apenas sua obra expressou seu

engajamento, mas sua trajetória também, notou Helenice Rodrigues da Silva, com a

participação de Sartre na luta de resistência aos nazistas, até seu posicionamento

público favorável à independência da Argélia, na guerra de libertação contra a

França (1954-1962)”.33

O escritor tornou-se porta-voz do chamado “terceiro-mundismo” ao pregar

o caráter revolucionário dos movimentos de libertação nacional e justificar, de certo

modo, a violência como meio válido para que o “colonizado” se afirmasse perante o

“colonizador”. O modelo de intelectual engajado personificado pelo filósofo

posicionava-se à esquerda, e, na maioria das vezes, subordinava a produção do

conhecimento e a elaboração de ideias ao político. Em suma, Jean-Paul Sartre

“encarnava a figura do ‘intelectual total’, ou seja, aquele que se posicionava sempre

sobre as mais diversas questões do tempo presente”.34

Mas se por um lado, o engajamento dos intelectuais europeus do pós-

guerra teve reflexos diretos nas lutas anticoloniais e nas utopias revolucionárias, em

especial após a Revolução Cubana de 1959, por outro, nos Estados Unidos, o que

pode ser lida também na pesquisa de Helenice Rodrigues da Silva, intitulada Fragmentos daHistória Intelectual. Entre questionamentos e perspectivas. Campinas: Papirus, 2002, pp. 15-16. 33 SILVA, Helenice Rodrigues da. Fragmentos da História Intelectual. Entre questionamentos eperspectivas. Campinas: Papirus, 2002. 34 Idem, p. 34.

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houve foi uma inversão e os intelectuais deixaram as ruas dos centros urbanos e as

páginas da imprensa para se institucionalizarem na academia e ocuparem espaços

produtivistas nas revistas especializadas.

Essa é a tese defendida por Russel Jacoby em seu livro "Os Últimos

Intelectuais, a cultura americana na era da academia”, uma crítica violenta ao

ambiente acadêmico departamentalizado dos dias de hoje, conforme o paradoxo

exposto no título. Para Jacoby, “os últimos” expõe o fim dos intelectuais públicos que

buscavam espaço na imprensa e em outros veículos de informação, cuja linguagem,

estilo e crítica radical pressupunha um leitor educado, amplo e sedento por debates,

ao mesmo tempo em que também seriam os “novos”, acadêmicos voltados para si

mesmos, para dentro dos muros universitários e que “escrevem uma prosa esotérica

e bizarra, dirigida principalmente para a promoção acadêmica e não para a mudança

social”.35

Por fim, a História Intelectual pode ainda ater-se à análise das ideias

políticas ou ampliar-se a um diálogo mais próximo no campo da história cultural. No

primeiro caso, por exemplo, J.G.A. Pocock preocupa-se com o contexto de

elaboração dos vocabulários políticos, ou seja, trata-se de situar os textos no seu

campo específico de ação ou de atividade intelectual, levando em consideração

quem os maneja e com quais objetivos. O autor, então, estabelece uma divisão da

linguagem política em dois níveis: língua (langue) e fala (parole), com o objetivo de

compreender como ambas interagem ao longo do tempo. Assim, por meio dos atos

de fala (speech acts) o sujeito se apropria da língua, seja para reafirmá-la ou então

para inová-la mediante a reelaboração dos conceitos do discurso.

No segundo, o historiador Roger Chartier concebe a história intelectual

como sinônimo de história cultural. Propõe um programa crítico tanto da oposição

entre a alta cultura e a cultura popular – que estariam unidas por fenômenos de

circulação e de apropriação – quanto entre criação e consumo, produção e

recepção, sustentando que o sentido da obra também é constituído por meio das

suas interpretações. Em suma, o pesquisador deve investigar a produção intelectual

na sua relação com as outras produções culturais que lhes são contemporâneas, e,

ao mesmo tempo, nas suas relações situadas em outras esferas da totalidade social

(socioeconômica ou política).

35 JACOBY, Russell. Os Últimos Intelectuais: a cultura americana na era da academia. Trad. MagdaLopes. São Paulo: Trajetória Cultural: Edusp, 1990. pp. 9-12.

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De modo geral, as pesquisas recentes no campo da História Intelectual

vislumbram certas inovações nas análises, nas quais aparecem um tratamento

explícito ao estilo ou a exploração e valores meta-históricos se pensarmos nas

polêmicas levantadas por Hayden White, que configuram os textos, ou a busca de

linguagens, no sentido de Pocock, historicamente construídas e transmitidas de

texto a texto ao longo de extensos períodos históricos. Não raro, hoje também são

as análises por meio das fontes epistolares, dos periódicos culturais, das biografias

intelectuais36 ou dos arquivos privados, portas de entrada bastante convidativas

nesse vasto campo.

Frente ao exposto, o resultado final de nossas reflexões pode ser

acompanhado ao longo de três capítulos. Os dois primeiros, intitulados “Sérgio

Buarque de Holanda: um intelectual entre dois projetos” e “O retorno a São Paulo:

do Museu Paulista à aposentadoria e depois…” visam acompanhar a trajetória

intelectual de Sérgio Buarque de Holanda desde a sua juventude modernista até sua

morte em 24 de abril de 1982.

Embora tenhamos optado pela cronologia imposta pela memória histórica,

nosso intento busca amenizar certas “construções" cristalizadas no tempo por

muitos biógrafos. Nesse sentido, nossa hipótese é a de que Sérgio tenha oscilado

entre “dois projetos” intelectuais não antagônicos: um, de interpretação do Brasil

derivado de sua experiência militante no modernismo e o outro, de divulgação da

História, sem um fim político utópico postulado pela esquerda, concretizado por meio

de algumas de suas publicações didáticas e pela sua atuação em instituições de

36 A biografia intelectual voltou a ter espaço a partir da década de 1980 quando da publicação dopolêmico "L’illusion biographique”, artigo no qual Pierre Bourdieu criticava a subjetividade debiografias históricas, segundo ele "capazes exclusivamente de reconstruir a vida de forma artificial,mesmo absurda: A história de vida é uma dessas noções do senso comum que entraram, decontrabando, no universo erudito”. In : Actes de la recherche en sciences sociales. Vol. 62-63, juin1986. O amplo debate que se estabeleceu desde então pode ser sintetizado da seguinte forma: “(…)é importante termos claro que as biografias praticadas por historiadores profissionais não visam afazer vir à tona segredos antes escondidos, mas sim compreender historicamente os percursos decertos personagens, de modo a entender, por exemplo, o funcionamento de determinadosmecanismos sociais e sistemas normativos, a pluralidade existente em grupos e instituições vistasnormalmente como homogêneas, a construção discursiva e não-discursiva dos indivíduos, asmargens de liberdade disponíveis às pessoas em diferentes épocas históricas, entre outrasquestões”. SCHMIDT, Benito Bisso. Quando o historiador espia pelo buraco da fechadura: biografia eética. História (São Paulo), v. 33, n. 1, jan./jun. 2014. p. 140. Outros trabalhos relevantes para essadiscussão são: BURKE, Peter. A invenção da biografia e o individualismo renascentista. EstudosHistóricos, Rio de Janeiro, n. 19, v. 10, pp. 83-97, 1997; LEVI, G. Usos da biografia. In: FERREIRA,M. de M.; AMADO, J. (orgs.). Usos & abusos da história oral. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1996;LORIGA, Sabina A biografia como problema. In: REVEL, J. (org.). Jogos de escalas. A experiênciada microanálise. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1998; DOSSE, François. O desafio biográfico: escreveruma vida. Tradução de Gilson Cesar Cardoso de Souza. São Paulo, SP: EDUSP, 2009; PRIORE,Mary Del. Biografia: quando o indivíduo encontra a história. Topoi, v. 10, n. 19, jul.-dez. 2009.

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ensino, pesquisa e memória, a dimensão pública da sua militância, silenciada, para

que fosse enquadrado como um intelectual das esquerdas.

No último capítulo, intitulado “Uma memória para as novas gerações”,

continuamos a descrever a trajetória de Sérgio Buarque de Holanda, só que agora

pela perspectiva da memória e dos lugares em que ela foi inscrita e propagada,

levando em conta o entendimento proposto por Pierre Nora, de que nesses lugares

podemos encontrar suas dimensões material, simbólica e funcional. Nesse sentido,

pudemos vê-lo inscrito em discursos fúnebres, textos memoriais, eventos

acadêmicos, livros, biblioteca e arquivo, um conjunto de lugares de consagração

arquitetados por um grupo específico de intelectuais no intuito de moldá-lo à sua

vontade de memória, atestando em diferentes níveis de intervenção, a versão oficial

forjada pelo próprio Sérgio Buarque.

Apreender a trajetória de um personagem a partir dos papéis que o

possibilitam existir como imagem, fruto da capacidade humana de criar, inventar,

construir, nos obriga a pensar que os arquivos são constituídos, que nascem tanto

das operações de acúmulo e guarda de documentos, de classificação, nomeação,

acondicionamento, de dados conjuntos de documentos, como também das

operações de seleção, separação, ordenamento, distribuição e até mesmo de

atividades de descarte, destruição e adulteração de documentos. O arquivo e o

documento se fabricam, tanto quanto as narrativas que deles se utilizam,

responsáveis por desenhar rostos, perfis, figuras de sujeito, delinear personagens.37

Por essa perspectiva também, pensar no que foi deixado por Sérgio

Buarque de Holanda nos remete a interrogar sobre a intencionalidade ou não dos

rastros ou traços que deixou o notável escritor. Necessário num debate como esse é

trazer à tona um texto de Durval Albuquerque, que como narrador deu, literalmente e

literariamente, voz aos documentos:

Não há gente que diz que nós documentos somos a garantia de que a alma,o espírito, o pensamento, as vontades, as aspirações, as esperanças, aspaixões e as ações das pessoas de antanho não venham a morrer? Mesmoaqueles pobres restos em que nos tornamos, até os simples rastros daexistência que deixamos, guardariam em seu interior pelo menos os rostosdaquele que nos criou e daquele para o qual fomos escritos, fora outrosrostos que mais fugazmente foram em nós figurados. Nós seríamos a suacara, teríamos mesmo nas cópias pálidas que nos tornamos o seu jeitão,

37 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Raros e rotos, restos, rastros e rostos: os arquivos edocumentos como condição de possibilidade do discurso historiográfico. ArtCultura, Uberlândia, v.15, n. 26, pp. 7-28, jan.-jun. 2013.

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permitiríamos vê-lo através de nós. Nós seríamos uma espécie de janelasobre a qual ao se debruçar se enxergariam os perfis destes homens que opassado levou. 38

Rastros que remetem ao “inquietante espetáculo que apresenta o

excesso de memória e de esquecimento”.39 Ao excesso diz respeito parte da fortuna

crítica, textos da década de 1980 que inscreveram na memória histórica uma mística

imagem de Sérgio, na qual a linha do tempo ligava o jovem modernista ao militante

de esquerda, membro fundador do Partido dos Trabalhadores. Quanto àquilo que foi

esquecido, silenciado, uma vez que é próprio desse tipo de memória apagar os

rastros de sua própria constituição, apenas uma leitura às avessas de seus restos e

rastros é capaz de contribuir para que surja no horizonte o vulto de uma personagem

mais humana e assim podermos sugerir de uma vez por todas, “a morte do homem

cordial”.

38 Idem, p. 25. 39 RICOEUR, op.cit.

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Capítulo 1

SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA: UM INTELECTUAL"ENTRE DOIS PROJETOS”

No dia 13 de setembro de 2011, por volta das 17 horas, o professor

Antonio Candido conferia a uma plateia atenta, formada por estudantes e docentes,

um testemunho sobre a trajetória de seu grande amigo, Sérgio Buarque de Holanda.

A palestra fazia parte das antecipadas comemorações do cinquentenário do

"Instituto de Estudos Brasileiros”-IEB, fundado em 1962, com a efetiva participação

de ambos. No pequeno espaço do hall de entrada do IEB, localizado na

Universidade de São Paulo-USP, improvisado com cadeiras de plástico e com

muitos ouvintes em pé, o crítico remeteu suas lembranças a um romance de Charles

Dickens, "Uma narrativa de Duas Cidades”. Queria com esse “plágio”, demarcar as

cartografias que teceram as tramas intelectuais do mestre-amigo, surgidas no

modernismo, entre a antiga capital do país e a Pauliceia.

Nascido em São Paulo no ano de 1902, Sérgio Buarque de Holanda se

transferiu com a família para o Rio de Janeiro em 1921, permanecendo na capital

por 35 anos até retornar à terra natal em 1946, restando lá até o fim da vida, em

1982. As lembranças de amigos o colocavam como "ferranhamente paulista", tal

como visto em "Sérgio: anti-cafajeste”, crônica em que Manuel Bandeira dizia ter os

paulistas muitos defeitos, mas nunca o “cafajestismo", típico de cariocas. No

entanto, segundo Antonio Candido, o Rio de Janeiro foi mais importante para a

formação cultural do amigo. Lá, ao lado de nomes importantes como Henri Tronchon

e Henri Hauser, aprimorara o ofício de crítico e desenvolvera o de historiador. Até

que Getúlio Vargas chegasse ao poder em 1930, Sérgio formou-se bacharel em

Direito e atuou como jornalista, constituindo sua rede inicial de relações a partir de

importantes figuras da elite cultural e política, que incluíam figuras do quilate de

Manuel Bandeira, Rodrigo Melo Franco Andrade, Afonso Arinos de Melo Franco,

Octávio Tarquínio de Sousa, Lúcia Miguel Pereira, Francisco de Assis Barbosa e,

segundo Candido, o mais chegado de todos eles, Prudente de Moraes, neto.

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Sem grandes novidades nos temas tratados, a exposição de Antonio

Candido constituiu-se muito mais na oportunidade de ver em atividade um dos

grandes nomes do pensamento social brasileiro. Entre idas e vindas, sua narrativa

sobre a trajetória de Sérgio Buarque de Holanda pôs em tela uma vida salutar e

singular, cuja juventude modernista o ligava ao "crítico e historiador de alto voo”. 40

Dito de outra maneira, Candido foi mais um escritor, entre outros, a produzir uma

“ilusão biográfica”41 da vida de Sérgio, oferecendo por meio de sua autoridade um

discurso coerente e ordenador da descontinuidade do real, um enredo de

causalidades, símile as hagiografias em que tudo se explicava pela origem, como

uma "vocação", como uma “eleição” ou ainda, como nas vidas da Antiguidade, com

um ethos inicial.

Seguindo uma trilha contrária à lógica de racionalização do passado e de

suas construções essencialistas, esse capítulo propõe uma leitura particular da

trajetória de Sérgio Buarque, diferente um pouco daquela inscrita na memória

histórica e construída pelo próprio personagem e por seus biógrafos após o seu

falecimento, em 1982. Nosso esforço sugere que Sérgio Buarque não oscilou entre

"duas cidades”, apenas, mas entre "dois projetos” intelectuais não antagônicos: um,

de interpretação do Brasil derivado de sua experiência militante no modernismo e o

outro, de divulgação da História, concretizado por meio de algumas de suas

publicações didáticas e pela sua atuação em instituições de ensino, pesquisa e

memória. Em certo sentido, as linhas que seguem visam (re)construir algumas redes

de sociabilidade42 tecidas por Sérgio Buarque, consideradas essenciais para que ele

pusesse, em prática e com êxito, os seus projetos no campo educacional.

1.1 Militância errante no modernismo brasileiro

Em 1990 foi lançado no Brasil um importante ensaio do professor

estadunidense Russell Jacoby (1945-), intitulado "Os últimos intelectuais: a cultura

americana na era da academia”.43 Nele, entre os instigantes temas tratados, Jacoby

tecia severas críticas ao modelo academicizante imposto aos intelectuais, que

40 CANDIDO, Antonio. Entre duas cidades. In: MARRAS, Stelio (org). Atualidade de Sérgio Buarquede Holanda. São Paulo: EdUSP; IEB, 2012. p. 17. 41 Refiro-me, obviamente, ao importante artigo de Pierre Bourdieu L’illusion biographique, publicadoem 1986 nas Actes de la Recherche en Sciences Sociales, vol. 62, número 62-63, pp. 69-72. 42 SIRINELLI, Jean-François. Os intelectuais. In: RÉMOND, René (org.). Por uma história política. 2.ed. Trad. Dora Rocha. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003.

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durante o pós-guerra começavam a migrar do espaço público das ruas, dos boêmios

bairros novaiorquinos, para institucionalizarem-se nos muitos campi abertos nos

subúrbios de diversas cidades. Nesse sentido, o título da obra é paradoxal:

"Últimos", na concepção do autor, expõe o fim dos intelectuais públicos ou

publicistas, que buscavam espaço na imprensa e em outros veículos de informação,

cuja linguagem, estilo e crítica radical pressupunham um leitor educado, amplo e

sedento por debates, ao mesmo tempo em que apresentava os "últimos" como os

“novos", voltados para si mesmos, para dentro dos muros universitários.

No livro, Jacoby passeia pelas ruas de Greenwich Village, boêmio bairro

de Nova Iorque das primeiras décadas do século XX, quiçá o que significou para a

Faculdade de Filosofia da USP, a região da rua Maria Antonia, “uma rua na

contramão”, como aponta o sugestivo título de um livro/documento organizado por

Maria Cecília L. dos Santos.44 Para os padrões franceses seria o mesmo que as ruas

d o Quartier Latin, em Paris. No auge de Village, raramente os intelectuais eram

professores universitários. No geral eram escritores, polemistas, artistas, críticos que

utilizavam os espaços dos jornais e periódicos como free-lancers e devido aos

aluguéis baratos, por lá mesmo se estabeleciam, gerando uma ampla rede de

sociabilidade e um profícuo espaço de debate público, tendo a rua como campo de

batalha, tanto de ideias como de sobrevivência.

A mudança radical do centro para os subúrbios não deixou de fora nem

mesmo a esquerda independente americana, que somada aos demais “retirantes"

transformaram-se em professores confinados com uma renda segura, sem nenhum

interesse em lidar com o mundo fora da sala de aula; em suma, indivíduos que

escrevem uma prosa esotérica e bizarra, dirigida principalmente para a promoção

acadêmica e não para a mudança social.

O posicionamento ríspido desse autor à sua própria geração não foi

uníssono e encontrou em Edward Said (1935-2003) certa ressonância. Em uma de

suas conferências de Reith, ministrada na rede BBC, em 1993, o palestino afirmava

serem injustas essas críticas em relação à universidade ou mesmo aos Estados

43 JACOBY, Russell. Os ultimos intelectuais: a cultura americana na era da academia. Trad. MagdaLopes. São Paulo: Trajetória Cultural: Edusp, 1990. Ainda muito atual, o livro foi apresentado em umaresenha publicada por mim no número 6, ano III da Revista Crítica História, em dezembro de 2012.http://www.revista.ufal.br/criticahistorica/attachments/article/142/Os%20últimos%20intelectuais.pdf,acessado em 10 de outubro de 2014. 44 SANTOS, Maria Cecília Loschiavo dos. Maria Antonia: uma rua na contramão. São Paulo: Nobel,1988.

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Unidos, já que na sua opinião o trabalho do intelectual não era incompatível com o

do acadêmico. Para Said, o intelectual não representa um ícone de tipo estátua, mas

uma vocação individual, uma energia, uma força obstinada, abordando com uma voz

empenhada e reconhecível na linguagem e na sociedade uma porção de questões,

todas elas relacionadas, ao fim das contas, com uma combinação de esclarecimento

e emancipação ou liberdade. Concluía afirmando: "A ameaça específica ao

intelectual hoje não é a academia nem os subúrbios, nem o comercialismo

estarrecedor do jornalismo e das editoras, mas antes uma atitude que chama de

profissionalismo”.45 Dito de outro modo, o trabalho intelectual como alguma coisa

que se faz para ganhar a vida entre nove da manhã e cinco da tarde, "com um olho

no relógio e o outro no que é considerado um comportamento apropriado,

profissional – não entornar o caldo, não sair dos paradigmas, tornando-se assim,

comercializável e, acima de tudo, apresentável, não controverso, apolítico e

objetivo”.46

Trazidas para o contexto cultural brasileiro, tanto a perspectiva crítica de

Jacoby, quanto a ressonância exposta por Said nos parecem válidas para

pensarmos a trajetória de Sérgio Buarque de Holanda. Primeiro, porque ele

atravessou grande parte do século XX e viveu experiências símiles. Boêmio

confesso, Sérgio não abriu mão do uísque e nem dos cigarros até os últimos dias de

vida, militou no modernismo e deixou marcada nas páginas da imprensa “aquela

mudança dos ventos" vivida na juventude em pelo menos três aspectos: a

necessidade do contato dos nossos escritores com outras tradições de cultura que

nos livrassem do peso da matriz portuguesa, a urgência em pesquisar a nossa

originalidade artístico-literária e a abertura para a renovação das formas que

chegavam com a modernidade.47

Em segundo lugar, Sérgio foi crítico ferrenho dos rumos tomados pelos

modernismos, paulista e carioca, posição que deixou clara no seu famoso texto de

1926, "O lado oposto e outros lados”. Pouco depois viajou para a Alemanha como

jornalista e quando retornou ao Rio de Janeiro em 1931, institucionalizou-se em

diferentes órgãos de cultura durante o governo Vargas. Retornando a São Paulo

45 SAID, Edward. Representações do Intelectual: as Conferências Reith de 1993. Sa o Paulo:Companhia das Letras, 2005. p. 75. 46 Idem. 47 PRADO, Antônio Arnoni. Sérgio e Mário: um diálogo entre críticos. In: MARRAS, Stelio (org.).Atualidade de Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo: EdUSP; IEB, 2012. p. 79.

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após a queda do ditador, dirigiu o Museu Paulista e se efetivou na Universidade de

São Paulo, vindo a se aposentar em 1969.

Como apontou Said, o trabalho intelectual poderia conviver muito bem

com o acadêmico. No caso de Sérgio isso nos parece concreto. A institucionalização

serviu para ele consolidar a sua rede de sociabilidade e colocar em prática os seus

projetos no campo de expansão do conhecimento histórico, que passavam por uma

compreensão do Brasil e pela sua divulgação em todos os níveis. Sua aposentadoria

é lembrada sobretudo como um ato político, uma resposta ao AI-5, o que não

devemos negar. Em entrevistas Sérgio falou ainda em tempo de serviço com

vencimentos integrais. Todavia, pensando pelas lentes de Jacoby, nos parece

plausível que sua decisão final também tenha passado pela mudança da Faculdade

de Filosofia, Ciências e Letras, da rua Maria Antonia para o isolamento do subúrbio,

o Butantã, local em que o regime civil-militar pôde atuar de forma mais centralizada,

retirando do espaço público as disputas políticas daquela universidade.

Nesse contexto, Sérgio teria ficado “órfão" dos colegas e amigos

cassados, e, sem o convívio com eles e com a rua, lugar por excelência dos "últimos

intelectuais”, transferiu a boemia para o espaço privado de sua casa no Bairro do

Pacaembú, famoso reduto de festas e encontros políticos, no qual circularam muitas

personalidades do campo cultural brasileiro. Certa vez, comentando o mesmo

período numa entrevista, o historiador Boris Fausto afirmou que durante o AI-5,

enquanto alguns professores foram cassados e tiveram de deixar o país, "Sérgio

Buarque também resolveu se aposentar. Ele não tinha mais nenhum estímulo para

ficar naquele departamento” de História.48

O sentido linear dado à vida de Sérgio Buarque como hoje conhecemos,

foi construído por ele próprio nas suas "Tentativas de Mitologia”, onde também

expõe pistas de seu baú de memórias, nos trabalhos que publicou, nas entrevistas

que concedeu, etc., e assegurados pela família e pelos amigos mais próximos após

sua morte, por meio de uma série de estratégias institucionais e editoriais – comuns

no universo intelectual e dos homens públicos – vistas, por exemplo, nas

homenagens póstumas, na organização de Seminários, nas publicações de

coletâneas e de textos inéditos, na montagem de arquivos, etc., e que no contexto

48 Entrevista com Boris Fausto. In: MORAES, José Geraldo Vinci; REGO, José Márcio. Conversascom historiadores brasileiros. São Paulo: Editora 34, 2002. p. 97.

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das décadas de 1980 e 1990, sustentaram as (re)atualizações de sua memória

histórica.49

Parte dessa narrativa nos permite pensar em um jovem que desde muito

cedo soube captar os “ventos do novo tempo”. Avant la lettre, o prodígio Sérgio

compôs e publicou, com apenas nove anos, na Revista "Tico-Tico" a valsa "Vitória-

Régia", creditada por alguns estudiosos como parte de sua obra. Pouco tempo

depois, o mesmo rótulo valeria para sua participação na militância modernista, como

bem nos lembra uma estudiosa do período: "O fato de não haver participado da

Semana de Arte Moderna, em São Paulo, não tira de Sérgio Buarque de Holanda a

condição de haver sido um modernista avant la lettre".50 Exageros à parte, Sérgio foi

partícipe indelével desse plural movimento, que ultrapassou as fronteiras do eixo

Rio-São Paulo e o marco cívico da "Semana de 22”, como demonstrou Helena

Bonemy ao tratar do modernismo mineiro.51

A intimidade que Sérgio Buarque tinha com as letras já se transformou em

lugar-comum entre aqueles que se debruçaram sobre os significados de sua obra,

tanto crítica, quanto histórica. Todavia, nem só de talento viviam os homens e

mulheres de sua geração. Por esse motivo, tanto as redes de sociabilidade que

estabeleceu, desde o universo familiar, quanto os lugares de onde falou, escreveu e

se instituiu, foram essenciais para a inserção, manutenção e longevidade que teve

no campo intelectual ao longo de toda a vida. A esse respeito, Angela de Castro

49 A ideia de memória histórica é aqui entendida como o produto do pensamento crítico, com umalinguagem conceitual, abstrata e laica, e com uma função ensinável e utilitária. Diferente, portanto, damemória coletiva, caracterizada por uma origem anônima e espontânea por ser viva, concreta,múltipla, imagética e sacral, e por possuir um cariz normativo. Pierre Nora também estabeleceu essasdiferenças. Para esse autor, a memória, vivida e suportada por grupos sociais, é representaçãoafetiva, em evolução permanente, aberta à dialética entre recordação e esquecimento, insconscientede suas deformações e vulnerável a todas as manipulações, sendo ainda suscetível de grandes elongas latências e de repentinas revitalizações. Ao contrário, a historiografia será uma reconstituiçãosempre problemática e incompleta do que já não existe; por isso, constitui uma laicizadora operaçãointelectual, assente na análise e na atitude crítica. Para mais detalhes ver: CATROGA, Fernando.Memória e História. In: PESAVENTO, Sandra Jatahy (org). Fronteiras do milênio. Porto Alegre:EdUFRGS, 2001. pp. 43-69. Vale ressaltar ainda que Catroga opera suas reflexões a partir deautores clássicos desse campo de debates, dentre os quais podemos citar Maurice Halbwachs, PierreNora, Paul Ricoeur, Paul Connerton, Joël Candau, Jacques Le Goff, Krzystof Pomian, ReinhartKoselleck, Tzvetan Todorov, Paul Vayne, entre outros. No conjunto de (re)atualizações da memóriahistórica de Sérgio ressaltam-se a elaboração de um lugar de memória a partir da compra de suabiblioteca, a montagem de um arquivo pessoal, a realização das "Semanas Sérgio Buarque deHolanda”, organizadas pela Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, USP e Unicamp, pelapublicação de livros póstumos como "O Extremo Oeste", "Capítulos de Literatura Colonial", "O espíritoe a letra (2 volumes)", "Raízes de Sérgio Buarque de Holanda" ou coletâneas como "Sérgio Buarquede Holanda: vida e obra", "Sérgio Buarque de Holanda”, coleção Grandes Cientistas Sociais, etc.50 PRADO, Antônio Arnoni, op.cit., p. 79. 51 BONEMY, Helena. Guardiães da Razão: os modernistas mineiros. Rio de Janeiro: EditoraUFRJ/Tempo Brasileiro, 1994.

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Gomes nos chama atenção para o fato de que "não é tanto a condição de intelectual

que desencadeia uma estratégia de sociabilidade, mas ao contrário, é a participação

numa rede de contatos que demarca a específica inserção de um intelectual no

mundo cultural”.52

E assim foi. Sérgio não teve de viver em quartos baratos de hotéis ou

pensões, não precisou declamar, escrever poemas e nem desenhar caricaturas à

estranhos nas ruas em troca de comida, bebida e alguns tostões. Não precisou

brigar a cada dia pela sobrevivência e, tampouco, foi um intelectual maldito,

daqueles heroificados por um conjunto de características que podiam incluir a

pobreza, a angústia do tempo e a vivência à margem, regadas pelas mais variadas

experiências mundanas, sobretudo as que envolviam drogas e a contestação de

uma certa ordem burguesa. Pelo contrário, de família estruturada, Sérgio estudou

em ótimas escolas paulistanas, vindo a se formar em Direito no Rio de Janeiro, em

1924. Quem lhe abriu as portas da imprensa foi, nada menos, do que Afonso

d’Escragnolle Taunay, amigo de seu pai e seu professor de História no ginásio São

Bento.

"Originalidade Literária", seu primeiro artigo, foi publicado por indicação

de Taunay no jornal "Correio Paulistano", em 22 de abril de 1920, quando contava

apenas dezoito anos. Pouco depois, no mesmo veículo apareceu "Vargas Villa", em

4 de junho, mesmo mês em que registrou nas páginas d’ "A Cigarra" suas

impressões de "Santos Chocano”. Em conjunto, esses escritos de estreia

demonstravam que Sérgio não apenas se interessava pela inserção latino-

americana na cultura brasileira, como também se recusava a aceitar o velho

impasse gerado na Colônia, segundo o qual a emancipação da nossa vida

intelectual só viria com a nossa emancipação política. Por essa lente, Sérgio estava

convencido de que um compromisso prolongado com as bases materiais da vida na

extensão de seus domínios fez brotar na América hispânica um primeiro sintoma de

"originalidade literária” voltado para a integração espiritual com a natureza e a gente

nativa. Coisa muito diferente do que ocorreu ao colonizador português, que, mais

prático que o espanhol, não teve, segundo o crítico, uma "impressão tão sutil da

natureza do Novo Mundo", fato agravado pela circunstância de que as tribos

52 GOMES, Angela de Castro. Em família: a correspondência de Oliveira Lima e Gilberto Freyre.Campinas/SP: Mercado das Letras, 2005. p. 13.

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selvagens que habitavam o nosso território "não podiam inspirar aos dominadores,

em geral incultos e rudes, senão desprezo e ódio”.53

De acordo com Antonio Arnoni Prado, o que tem de mais sugestivo na

abordagem de Sérgio Buarque são as consequências que o autor tira delas, em

especial a ideia de que, se não tivemos no Brasil nenhum poema propriamente

épico, isso se deve ao fato de que a nossa concepção da matéria épica derivava de

fatores muito diversos daqueles então existentes na América espanhola. Avaliação

fundamental para a compreensão posterior de "Raízes do Brasil”. O artigo de estreia

nos mostra como o estilo “gongórico" de Rocha Pita transforma, em 1730 a

produção literária da América portuguesa, num equivalente tropical dos melhores

talentos de Roma e da Grécia clássicas.

Isso, de um lado, nos remete ao "bovarismo" como um dos conceitos-

chave com que Sérgio, mais tarde em "Raízes", vai desenvolver a ambiguidade das

relações do brasileiro com sua própria terra (a sua repulsa à realidade). E, de outro

lado, lança os primeiros germes da interpretação da cultura que, igualmente no livro

de 1936, atribui um valor excessivo ao prestígio universal do talento que, para nós,

não significa, a seu ver, propriamente amor ao pensamento especulativo; antes "à

frase sonora, ao verbo espontâneo e abundante, à erudição ostentosa".54

Arnoni Prado fala mesmo em sintomas de "consciência da modernidade

anteriores ao modernismo" para se referir à abertura que Sérgio Buarque dava a

integração com o continente americano. É o momento em que Sérgio vai buscar na

colonização urbana da América hispânica um contraponto para o predomínio, no

Brasil, da moral da senzala, "velho apanágio do patriciado rural responsável pela

53 PRADO, Antonio Arnoni. Raízes do Brasil e o modernismo. In: CANDIDO, Antonio. SérgioBuarque de Holanda e o Brasil. São Paulo: Perseu Abramo, 1998. Na ocasião Sérgio articulavaessa constatação a um sentimento de americanismo integrador, identificado por ele na épica dopoema "Araucana", do espanhol Ercilla y Zuniga, nas páginas do "Rusticatio Mexicana” (1817) dopadre Rafael Landívar, que ele desdobra na leitura da obra igualmente integradora de um FranciscoGarcia Calderon, de um Santos Chocano ou mesmo de um Vargas Villa. pp. 72-73. 54 Idem, p. 73; HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 13. ed. Rio de Janeiro: José OlympioEditora, 1979. pp. 118-119. Apenas como curiosidade, o historiador português Oliveira Martins (1845-1894) ao se referir à sua “Biblioteca de Ciências Sociais”, onde publicou a sua "História de Portugal"(a qual encontramos dois volumes de 1886 na biblioteca de Sérgio Buarque), já afirmava com omesmo sentido, nas últimas linhas abaixo, o seguinte: “Tampouco as investigações eruditas secoadunam à natureza de nossa publicação, destinada a compendiar as conquistas feitas no domínioda ciência, e não a embarcar-se em empresas de exploração no campo da arqueologia. Por isso oleitor achará coordenadas e sistematizadas as investigações dos sábios e as doutrinas dos filósofos,sem ociosas indicações de origens, nem aparato de uma erudição, aliás fácil de exibir, mas que nãoconvém à índole da publicação, além de que apenas valeria para iludir incautos ou encher de pasmoos ignorantes”. PONTE, Carmo Salazar. Oliveira Martins: a história como tragédia. Coleção TemasPortugueses. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1998. p. 18. (Grifo nosso).

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submissão das cidades aos privilégios dos domínios agrários". Nessa fase pré-

Semana de 22, o jovem crítico vai contrapor o cosmopolitismo afetado de um Rubén

Darío ao nosso espírito de imitação e vai rebater o gosto pela alusão livre ao papel

dos caudilhos e das oligarquias da América Latina. E nisso, o artigo sobre Vargas

Villa, é exemplar como sintoma de um esforço ideológico interessado em definir um

papel literário para a Literatura e a arte de um modo geral. Tudo, segundo Prado,

para encorpar a convicção de que já não era mais possível naquela altura olhar para

esse passado sem a decisão de "estudá-lo com um espírito inteiramente novo,

ousado, irreverente, sem a menor preocupação com o que escreveram homens

como Rocha Pombo e Sílvio Romero".55

Em suma, Sérgio foi um jovem preocupado com os problemas de sua

época, dentre eles a emancipação intelectual do país e a emancipação política do

continente, associando a isso a busca de nossa identidade, como forma capaz de

vencer a nossa dependência externa. Sua crítica também funcionou como uma

espécie de radar da consciência estética que mudava, constituindo-se, aos olhos de

hoje, numa síntese indispensável para a compreensão das relações entre

modernização da linguagem e as transformações radicais que marcaram a

fisionomia de sua época.56

Tratar com maiores detalhes da fase crítica de Sérgio Buarque seria aqui

desvio de rota. Mesmo porque o assunto já foi devidamente esmiuçado por outros

estudiosos e os seus artigos de crítica já estão publicados em alguns livros.57 Vale

registrar, todavia, que essa faceta do historiador, pensada em um aspecto mais

amplo e aprofundado, só viria a se concretizar a partir da publicação de "O espírito e

a Letra", em 1996, que com seus dois volumes reunia os textos inéditos de crítica

55 PRADO, Antonio Arnoni. Raízes do Brasil e o modernismo, op.cit., p. 74. 56 PRADO, Antonio Arnoni (org). Nota sobre a edição. O espírito e a Letra: estudos de críticaliterária. vol. I (1920-1947). São Paulo: Cia. das Letras, 1996. p. 23. 57 PRADO, Antonio Arnoni (org). O espírito e a Letra: estudos de crítica literária I-II (1920-1959). SãoPaulo: Cia. das Letras, 1996; COSTA, Marcos (org.). Sérgio Buarque de Holanda: escritos coligidos(2. vol.). São Paulo: Fundação Perseu Abramo / UNESP, 2011; NICODEMO, Thiago Lima. AlegoriaModerna: a crítica literária de Sérgio Buarque de Holanda. 2010. Tese de Doutorado. Universidadede São Paulo-USP. Programa de Pós-Graduação em História Social. Há também os estudos do"Grupo Clíope”, formado em 1994 por ocasião do 46º Congresso Internacional de Americanistasrealizado em Estocolmo e que conta com pesquisadores brasileiros e estrangeiros, como EttoreFinazzi-Agrò, Roberto Vecchi, Chiara Vangelista, entre outros, nos campos de história e literatura.Uma das publicações desse grupo, organizada por Sandra Pesavento intitula-se: Um historiador nasfronteiras: o Brasil de Sérgio Buarque de Holanda. Belo Horizonte: edUFMG, 2005; e por fim, ainédita tese de Marcus Vinícius Corrêa Carvalho, defendida em 2003, na Pós-Graduação em Históriada Unicamp e intitulada Outros lados: Sérgio Buarque de Holanda, crítica literária, história e política(1920-1940).

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publicados por Sérgio na imprensa, entre 1920 e 1959, abrindo as portas para

diversas dissertações e teses em muitas pós-graduações Brasil afora. Até então,

cabia aos pesquisadores vasculharem esse material em bibliotecas públicas, no

arquivo pessoal de Sérgio localizado na Unicamp ou se contentarem com uma parte

deles dispostos nas duas coletâneas publicadas pelo próprio enquanto vivo,

nomeadas "Cobra de Vidro" (1944) e "Tentativas de Mitologia" (1979).

Todavia, é impossível deixar de comentar o conhecimento que o jovem

crítico demonstrava dos autores latino-americanos e das propostas destes, de

emancipação cultural perante a Espanha. Numa passada de olhos rápida por suas

críticas, vislumbramos escritores da virada do século, como o político peruano

Francisco Garcia Calderón (1834-1905), os uruguaios José Henrique Rodó (1872-

1917), autor do clássico "Ariel", Alberto Nin Frias (1878-1937) e o nicaraguense

Rubén Darío (1867-1916). Aliás, sobre este último teceu considerações Perry

Anderson em seu livro sobre "As origens da Pós-Modernidade", confirmando bem

mais tarde o que o jovem crítico já havia registrado. Para Anderson, a criação do

termo "modernismo" para designar um movimento estético se deve ao poeta

nicaraguense que escrevia em um periódico guatemalteco sobre um embate literário

peruano. O início, por Rubén Darío, em 1890, de uma tímida corrente que levou o

nome de "modernismo" inspirou-se em várias escolas francesas (conhecidas

também de Sérgio) – romântica, parnasiana, simbolista – para fazer uma declaração

de independência cultural que desencadeou, naquela década, um movimento de

emancipação das próprias letras espanholas em relação ao passado.58

Em paralelo ao gosto literário, o jovem Sérgio viveu em uma São Paulo

ainda provinciana, mas em vias de modernização. Seu relato à Maria Amélia, com

quem se casou apenas em 1936, revela em certa medida alguns indícios bem

característicos dessa fase. Suas diversões de garoto se davam, por exemplo, no

andar de bondes, em matinês de cinema, como o Central no Anhangabaú, o Royal

na rua Sebastião Pereira, o High Life no Largo do Arouche ou em caminhadas do

Centro até Perdizes, que cruzavam os brejos do Vale do Pacaembú. No Clube Tiro

35 fez amizade com Fausto de Almeida Prado Penteado, vindo a conhecer seu

primo, Yan de Almeida Prado, de quem guardou por toda a vida uma carta recebida

após a publicação de "Raízes do Brasil". Ainda segundo o seu relato, aprendeu a

dançar no curso de Yvone Daumérie, peregrinando pelos clubes a bailar: no

58 ANDERSON, Perry. As origens da Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. p. 9.

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Paulistano, no Trianon ou nas “campinadas", maratonas de dança que varavam a

noite em clubes de Campinas.59

Note-se no relato as referências ao moderno por meio do cinema, dos

clubes, do bonde, das danças e ritmos da moda. Por outro lado, podemos vislumbrar

o provincianismo das tranquilas caminhadas, na presença dos brejos do Pacaembú

ou nas idas para o interior em busca de diversão. A esse respeito, é possível afirmar

que o período que compreende as últimas décadas do século XIX até os primeiros

anos do século XX foi tomado por uma série de novas manifestações culturais e

musicais em quase todo o mundo ocidental. Próprias do universo urbano moderno,

elas despontaram fundamentalmente no cotidiano das grandes e médias cidades em

formação.60

Os últimos tempos em que Sérgio Buarque passou em São Paulo foram

fundamentais para que ele estabelecesse parte de suas redes de sociabilidade,

antes de se mudar, por um longo período, para a capital federal. Na Paulicéia

transitou ao lado de Guilherme de Almeida, Tácito de Almeida, Antônio Carlos Couto

de Barros, Rubens Borba de Moraes, Menotti del Picchia, Sérgio Milliet, Oswald de

Andrade e Mário de Andrade. No ambiente urbano era comum que muitos deles se

encontrassem com certa frequência na Confeitaria Fasoli, mas às vezes também na

Pinoni ou na Vienense.61 Havia ainda o escritório de advocacia do Dr. Estevam de

Almeida, pai dos irmãos Guilherme e Tácito.

Um dos citados, Sérgio Milliet, conta ter conhecido seu homônimo nos

remotos anos de 1920 a 1922. Daquele momento em diante, segundo ele, passaram

a formar um grupo "endiabrado", constituído por uma espécie de "jeunesse dorée"

que juntava boemia e letras naquela cidade ainda provinciana. A respeito dos

amigos relembrou o seguinte "causo": "Ele (Sérgio Buarque) era, já nessa época, um

erudito. Essa erudição, que nos humilhava um pouco, ele a disfarçava, entretanto,

com boa dose de humor e foi como humorista que fingiu de uma feita acreditar na

existência de S.O. Grant, autor da “Cidade dificílima…”. Dizia que o andava

59 HOLANDA, Maria Amélia Buarque de. Apontamentos para uma cronologia de Sérgio Buarquede Holanda. Disponível em: http://www.siarq.unicamp.br/sbh/biografia.html. Acessado em 23 deoutubro de 2014. 60 O boom de crescimento e urbanização que transformaria São Paulo numa metrópole moderna foiestudado por Nicolau Sevcenko em Orfeu extático na metrópole: São Paulo, sociedade e culturanos frementes anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. 61 No depoimento de Maria Amélia, a Confeitaria Fasoli aparece localizada na Rua São Bento.Todavia, quem localizava-se nesse endereço, no número 47, era a Pinoni. Ambas, entretanto, alémde oferecer comida e bebida, projetavam filmes. SOUZA, José Inacio de Melo. Imagens do passado:São Paulo e Rio de Janeiro nos primórdios do cinema. São Paulo: Editora SENAC, 2004.

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procurando nos sebos britânicos, quando sabia muito bem que a brincadeira

nascera no apartamento de Guilherme de Almeida em noitada divertida, na

companhia de Oswald de Andrade, Rubens Borba e Tácito de Almeida”.62

Em 1921 a família Buarque de Holanda se muda para o Rio de Janeiro.

Dentre os endereços que moraram, Sérgio se lembra de um na Gávea, na rua

Marquês de São Vicente, uma "casa simpática, antiga, com árvores de fruta e um

riacho no fundo do quintal”. A família ainda morou nas ruas São Salvador, Oitis,

Visconde da Silva, Ipiranga e Maria Angélica. No mesmo ano Sérgio se matriculou

na Faculdade de Direito.

Não foi, o modernista, um estudante assíduo. Preferiu, ao invés de se

dedicar à carreira jurídica, fazer amizades que durariam a eternidade e que foram

muito importantes para a sua consolidação no campo intelectual. O universo urbano

carioca também fez parte de sua formação humanista e autodidata. Ao lado de

Prudente de Moraes, neto, por exemplo, Sérgio Buarque costumava frequentar a

livraria Garnier e as mesas do Café Lamas Restaurante, no Largo do Machado. Na

livraria era comum que se encontrassem com Alberto de Oliveira, Américo Facó,

Jorge Jobim, pai de Tom, mais tarde também seu amigo, ou o poeta Raul de Leoni.63

No Lamas, apontavam também Afonso Arinos, Gilberto Amado, André Dreyfus e

Renato Palmeira, que em certa ocasião lhe apresentou Candido Portinari, naquela

altura estudante de Belas Artes. Nas tardes, era comum irem ao Bar Nacional, às

vezes ao Brahma. Essa fase boêmia foi recordada com nostalgia por Gilberto

Freyre, logo após a morte de Sérgio, em 1982:

Sérgio, mestre dos mestres. Mas também meu amigo de dias boêmios denossa mocidade no Rio de Janeiro. Três amigos desses dias, sempre muitojuntos, fomos ele, Prudente de Moraes, neto, e eu. Boêmios pelo gosto damúsica popular brasileira. Da afro-brasileira. Da carioca. Daí, mais de umavez amanhecermos, bebendo chope, em bares tradicionalmente cariocas,ouvindo os para nós brasileiríssimos e como que nossos mestres, além deamigos, de cultura brasileira, Donga, Patrício e Pixinguinha.64

62 MILLIET, Sérgio. À margem da obra de Sérgio Buarque de Holanda. Revista do Brasil. In:BARBOSA, Francisco de Assis (org.). Ano 3, n. 6/87, s/d. Número especial dedicado a SérgioBuarque de Holanda. Artigos e depoimentos sobre o autor e sua obra. p. 96. É bem possível que umdesses sebos britânicos tenha sido a Livraria Craschley, localizada na Rua Ouvidor, 68. 63 HOLANDA, Maria Amélia Buarque de, Apontamentos… op.cit.64 FREYRE, Gilberto. Sérgio, Mestre dos Mestres. Revista do Brasil. In: BARBOSA, Francisco deAssis (org.). Ano 3, n. 6/87, s/d. Número especial dedicado a Sérgio Buarque de Holanda. Artigos edepoimentos sobre o autor e sua obra. p. 117.

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O próprio Sérgio Buarque, numa entrevista que concedeu à Richard

Graham, legitima as informações. Perguntado sobre a vida carioca, o intelectual

dispara: "Eu entrei para a escola de Direito, mas pouco estudei. Levei uma vida

boêmia, cheia de conversas animadas nas calçadas de cafés, bares, livrarias e

redações de jornal. Conversávamos sobre política, arte, literatura, eventos

internacionais, e nossa vida privada".65

O estilo de vida que os jovens letrados levavam em São Paulo ou na

capital da República não era nenhuma novidade em outros lugares e tempos. Os

cafés, por exemplo, já desempenhavam papel importante na vida intelectual italiana,

francesa e britânica a partir do século XVII. Palestras sobre matemática eram

oferecidas no "Dougla’s" e no "Marine Cofee-House" em Londres, enquanto o

"Child’s" era para livreiros e escritores, o "Will’s" para o poeta John Dryden e seus

amigos, no “Rainbow" se reuniam refugiados e protestantes. Em Paris, o “Procope",

fundado em 1689, servia como ponto de encontro para Diderot e seus amigos. Eram

locais em que circulavam ideias e notícias, novidades literárias, etc., possibilitando,

além dos debates, o surgimento de redes de sociabilidade.66

Nos primeiros anos no Rio, Sérgio encontrava-se sempre com Ribeiro

Couto que, um dia lhe apresentou Manuel Bandeira, na esquina da avenida Atlântica

com São José. Amizade duradoura. Sobre ele teceu maduras considerações a

respeito de suas poesias, publicadas nos livros "A cinza das horas" (1917) e

"Carnaval" (1919). Segundo Sérgio, em artigo que saiu na revista "Fon-Fon", logo

depois da Semana, em 18 de fevereiro de 1922, foi com Bandeira que pela primeira

vez surgiu uma poesia compreendida como simples capricho, como mera efusão de

um estado lírico, qualquer que ele seja, de modo a definir, entre nós, o aparecimento

de um verbo poético desligado de qualquer plataforma que não fossem

simplesmente a emoção e as palavras.67

Como já assinalamos, os embates intelectuais não se davam apenas no

espaço das ruas, dos bares e cafés. Assim, antes que fundasse com o amigo de

faculdade a Revista "Estética", em 1924, Sérgio, que já havia passado de entusiasta

65 GRAHAM, Richard. An Interview with Sérgio Buarque de Holanda. Hispanic American HistoricalReview (HAHR), Austin, vol. 62, n. 1, fev. 1982. 66 BURKE, Peter. Uma história social do conhecimento: de Gutenberg a Diderot. Rio de Janeiro:Jorge Zahar, 2003. pp. 50-51. 67 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Manuel Bandeira. In: PRADO, Antonio Arnoni (org). O espírito e aLetra: estudos de crítica literária. vol. I (1920-1947). São Paulo: Cia. das Letras, 1996. Publicadooriginalmente na revista Fon-Fon, em 18 de fevereiro de 1922.

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a militante de causa, resolveu se responsabilizar pela distribuição do periódico

"Klaxon" no Rio de Janeiro. Era a chave que faltava para que o jovem se firmasse

definitivamente nesse “pequeno mundo” intelectual. Seu principal interlocutor nessa

jornada foi Mário de Andrade.

Recentemente, Pedro Meira Monteiro publicou um livro em que trata das

relações estabelecidas entre os dois modernistas, localizando nos arquivos do

"Instituto de Estudos Brasileiros” da USP e no Arquivo Central da Unicamp, um

conjunto de 31 cartas trocadas por ambos, num recorte que vai de 1922 a 1944. Ou

seja, o material levantado cobria, desde os tempos “heróicos" do modernismo,

quando o jovem Sérgio era um preposto de Klaxon, até o momento em que Mário de

Andrade, já de volta a São Paulo, após uma passagem pelo Rio de Janeiro, entre

1938 e 1941, embrenhou-se pela pesquisa histórica, elegendo o amigo como uma

espécie de consultor nesses assuntos.

As anedotas sobre Graça Aranha e seu iminente rompimento com a

"Academia Brasileira de Letras”, as primeiras reações “conservadoras" dos jornais

cariocas à literatura dos modernos de São Paulo, assim como a proximidade de

Sérgio com Ronald de Carvalho e Ribeiro Couto, são alguns dos tópicos desse

conjunto.68 Para documentar o que foi dito, vale a pena reproduzir alguns trechos

dessas cartas. Em 8 de maio de 1922, Mário de Andrade escrevia o seguinte:

(…) Sei que Klaxon sairá no dia 15 sem falta. É preciso que não teesqueças de que fazes parte dela. Trabalha pela nossa ideia, que é umacausa universal e bela, muito alta. Estou à espera dos artigos e dos poemasque prometeste. E não te esqueças do teu conto. Desejo conhecer-te naficção. Espero saída do primeiro número da revista para escrever aoRonald, ao Elísio aos amigos todos enfim. É preciso que digas ao ManuelBandeira que me lembro sempre muito dele. Recordo-me do Ribeiro Couto.E, mais uma vez, obrigado.69

Em relação ao documento valem algumas considerações. Além da

precisão da data de lançamento da revista e dos pedidos de lembranças para os

amigos distantes, Mário mostrava-se curioso também com o lado ficcional de Sérgio.

68 MONTEIRO, Pedro Meira. A correspondência entre Mário de Andrade e Sérgio Buarque deHolanda (1922-1944). In: MARRAS, Stelio (org.). Atualidade de Sérgio Buarque de Holanda. SãoPaulo: EdUSP; IEB, 2012. p. 94; MONTEIRO, Pedro Meira (org.). Mário de Andrade e SérgioBuarque de Holanda: correspondência. São Paulo: Companhia das Letras: IEB: EdUSP, 2012.Klaxon, um dos principais testemunhos do modernismo, surgiu de fato em 15 de maio de 1922 e seestendeu até dezembro/janeiro de 1922-23. 69 Carta enviada por Mário de Andrade à Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo, maio de 1922.Arquivo Central Unicamp, Fundo Sérgio Buarque de Holanda, Série Correspondências Passivas,Cp. 20.

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O conto a que Mário se referia, "Antinous", sairia apenas no número 4 de Klaxon. O

texto é um fragmento narrativo em tom fantasioso e experimental, que satiriza a

reverência pelo grande "Imperador constructor, architecto e artista", Adriano. No

mais, as imagens nele contidas fazem referências a símbolos da modernidade

urbana, como os automóveis, a velocidade, o cinema, a cidade-monstro com seus

edifícios e arranha-céus, as ruas asfaltadas, os boulevards, etc. Olhar anterior,

portanto, daquele que não tarde colocaria o interior do Brasil, seus costumes e sua

gente mestiça no cerne de nossa discussão identitária.

Discussão que, entre as décadas de 1920 e 1950 foi lugar-comum entre

intérpretes dos mais variados segmentos70, mesmo que a memória histórica

insistisse em separá-los por capricho ou rearranjos ideológicos, como bem

demonstra Maria Stella Bresciani em seu estudo sobre Oliveira Vianna, alocado, a

posteriori n o hall dos pensadores autoritários, em detrimento da moderna tríade

formada por Gilberto Freyre, Sérgio Buarque e Caio Prado Júnior. Nele, a autora nos

possibilita pensar em outra chave, sugerindo que por mais que esses autores se

posicionassem em vertentes diferentes, divergentes até, duas conclusões,

colocadas na maioria das vezes como ponto de partida, definiam o diagnóstico do

Brasil e da condição de ser brasileiro naquela primeira parte do século XX; análises

que, segundo Bresciani, desembocavam em um projeto político mais ou menos bem

delineado.

A primeira conclusão partia da certeza de que as instituições de cunho

liberal, "base da república que se instalara com a Constituição de 1891, pouco

tinham a ver com as condições sociais e o preparo político do povo brasileiro, que se

movimentava mal em meio a elas”.71 Mais de um autor buscou provar o disparate de

o país se reger por formas políticas avançadas, pensadas e elaboradas por

pensadores de nações mais à frente na escala da civilização, “e transpostas para

uma nação regida por formas arcaicas de organização social e econômica, onde a

política e seu arremedo via-se refém das redes de poder local dominadas por

grandes latifundiários”.72

A segunda posição, como já mencionado na introdução, conferia aos

nossos pais colonizadores o desacerto entre ideias e instituições políticas e a70 Nos referimos aqui a Paulo Prado, Alberto Torres, Oliveira Vianna, Gilberto Freyre, Caio PradoJúnior e Sérgio Buarque de Holanda e, um pouco mais tarde, Darcy Ribeiro. 71 BRESCIANI, Maria Stella Martins. O charme da ciência e a sedução da objetividade: OliveiraVianna entre os intérpretes do Brasil. 2.ed. São Paulo: Editora Unesp, 2007. p. 10. 72 Idem.

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condição do brasileiro, perspectiva que mais tarde, sobretudo na década de 1970,

irrigou os debates de outras disciplinas, como os estudos literários, em que “nossos

poetas, romancistas, escritores em geral passaram a ser analisados na mesma

chave do desencontro entre instituições e sociedade” até alcançar o lugar em que,

pela teoria marxista, se consolidou nas chamadas “ideias fora do lugar”.73

Mais tarde ainda, já na década de 1990, Darcy Ribeiro, em "O Povo

Brasileiro”, reiterava novamente a imagem de um povo por vir a ser, sempre

colocado no futuro, sempre em projeção, um projeto. Desse modo, o autor

completava e confirmava essa figura de uma população aprisionada ao passado,

refém da imagem de homens e mulheres inacabados, malformados em sua

condição de cidadãos, fruto desses desacertos institucionais, incapazes, portanto,

de manter as rédeas de seu próprio destino.74

De volta a Mário e Sérgio, a lembrança do primeiro na carta, para que o

amigo não esquecesse do seu conto, motivava o destinatário a uma atividade que

ele nunca chegou a desenvolver a fundo. O campo da imaginação dimensionado por

Sérgio Buarque, como sabemos, ficaria reservado para a atividade crítica e para

uma narrativa em outro campo, quando mais tarde se notabilizaria como

historiador.75

Em outra carta, logo após o lançamento do primeiro número, Mário

“cobrava" do amigo o empenho necessário para o bom andamento da causa:

"Klaxon segue a via muito bem. Mas precisamos de dinheiro. Recolhe o que

arranjastes por aí e o resultado da venda. Envia-o ao Tácito, tesoureiro". Na

sequência pergunta novamente pelos amigos e lamenta pequenos erros tipográficos

da edição número 3 da revista: "Os amigos como vão? Renato, Manuel Bandeira,

Couto, Ronald, Di? A poesia do Ribeiro Couto saiu lamentavelmente disposta.

Coisas de tipografia, que apesar do cuidado dos rapazes foi impossível consertar" .76

73 Ibidem, p. 11. Para uma discussão mais apurada sobre as “ideias fora do lugar” ver: SCHWARZ,Roberto. As ideias fora do lugar. In: Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nosinícios do romance brasileiro. 6. ed. São Paulo, SP: Duas Cidades: Editora 34, 2012; FRANCO, MariaSylvia Carvalho. As ideias estão no lugar. In: Caderno de Debates, n. 1. São Paulo: Brasiliense,1976; PALTI, Elías José. Apêndice. Lugares y no lugares de las ideas en America Latina. In: Eltiempo de la política. El siglo XIX reconsiderado. 1.ed. Buenos Aires: Siglo XXI Editores, Argentina,2007. 74 BRESCIANI, op.cit., p. 12. 75 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Antinous (Fragmento). In: Klaxon. Mensário de Arte Moderna, SãoPaulo, n. 4, 15 de agosto de 1922. pp. 1-2. 76 Carta enviada por Mário de Andrade a Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo, 20 de julho de1922. Arquivo Central Unicamp, Fundo Sérgio Buarque de Holanda, Série CorrespondênciasPassivas, Cp. 19.

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Depois de nove números e da última publicação, em janeiro de 1923, Klaxon

deixou de circular. Os motivos, claro, eram financeiros, já que a revista dependia

exclusivamente das vendas e anuidades e não contava com financiadores. Sérgio,

concomitante às noitadas cariocas e ao trabalho em Klaxon, continuava a sua

atividade de crítico e militante modernista na imprensa, escrevendo semanalmente

para diversos veículos, como "Mundo Literário", "América Brasileira", "Arte Nova",

"Rio Jornal", "Fon-Fon", até que finalmente, em 1924, fundasse a trimestral

“Estética", ao lado do parceiro Prudente de Moraes, neto. A revista seria inspirada

em "The Criterion” (1922-1939), de T. S. Elliot (1888-1965). Menos duradoura que a

anterior, "Estética" veio à público apenas três vezes.

A fase de Sérgio Buarque nessa revista convergiu também com o seu

amadurecimento como crítico e após encerrada mais essa experiência modernista,

ele passa a viver uma espécie de desencanto com os rumos tomados pelo

movimento. Décadas mais tarde ele afirmava que, "eu próprio já me desinteressara

bastante das questões de literatura, e pensava em escrever um livro para o qual

tinha até nome pronto: deveria chamar-se ‘Teoria da América’”.77 A publicação, em

1926, do texto "O lado oposto e outros lados" na "Revista do Brasil", então dirigida

pelo amigo Rodrigo M. Franco de Andrade, aparece para alguns estudiosos de sua

obra crítica como um momento decisivo. É possível, depois de tanto tempo,

perceber naquelas linhas deixadas por Sérgio, esboços de ideias que mais tarde

apareceriam, já mediadas pelas suas leituras alemãs, em "Raízes do Brasil".

Naquele artigo, o autor não poupa “elogios” e manda ao diabo qualquer

diplomacia ao criticar duramente os modernistas academizantes que, juntando

dominar a expressão nacional, nada mais fariam do que impor a sua hierarquia ao

universo das artes, atualizando uma atitute ilustrada que o modernismo pretendera

justamente combater. Por trás do alvo aparente, formado por Ronald de Carvalho e

Guilherme de Almeida, estavam Alceu Amoroso Lima e Graça Aranha. Sérgio

Buarque conclamava seus fantasmas para depois exorcizá-los. "O Lado oposto e

outros lados” traz uma contundente discussão sobre os partidários da ordem, "de um

lado", e os que, desde os "outros lados”, desconfiavam de toda ordenação e

apostavam fundo na espontaneidade, vista como liberdade que os resguardaria de

77 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Apresentação. In: Tentativas de Mitologia. São Paulo:Perspectiva, 1979, p. 29.

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quaisquer tentações autoritárias.78 Eis o ponto que mais tarde aparecerá de forma

símile no livro de estreia do autor. Em suas palavras:

(…) gente bem-intencionada e que esteja de qualquer modo à altura de nosimpor uma hierarquia, uma ordem, uma experiência que estrangulem de vezesse nosso maldito estouvamento de povo moço e sem juízo. Carecemosde uma arte, de uma literatura, de um pensamento enfim, que traduzam umanseio qualquer de construção, dizem. E insistem sobretudo nessapanaceia abominável da construção. Porque para eles, por enquanto, nósnos agitamos no caos e nos comprazemos na desordem. Desordem doquê? É indispensável essa pergunta, porquanto a ordem perturbada entrenós não é decerto, não pode ser a nossa ordem; há de ser uma coisa fictíciae estranha a nós, uma lei morta, que importamos, senão do outro mundo,pelo menos do Velho Mundo. É preciso mandar buscar esses espartilhospra que a gente aprenda a se fazer apresentável e bonito à vista dos outros.O erro deles está nisso de quererem escamotear a nossa liberdade que é,por enquanto pelo menos, o que temos de mais considerável, em proveitode uma detestável abstração inteiramente inoportuna e vazia de sentido.79

De acordo com Pedro Meira Monteiro, é interessante comparar o

"estouvamento de povo moço e sem juízo, ao natural, inquieto e desordenado" de

seu livro de estreia. Em ambos os casos, trata-se de reclamar e defender um ritmo

que resistisse aos impulsos idealizantes dos arquitetos políticos (em "Raízes do

Brasil") ou dos construtores da arte nacional (no artigo de 1926). Em ambos, a

"reforma" que propõem os partidários da ordem é, no fundo, nada mais que uma

reação ou uma leve "contrarreforma", como ironicamente sugere Sérgio Buarque, ao

referir-se à possibilidade de que o fascismo encontrasse guarida entre os

brasileiros.80

O rompimento com os "modernistas da ordem" levou Sérgio Buarque a

uma espécie de auto-exílio ou, como diriam alguns, a uma temporada na estação de

cura. Após distribuir seus livros entre os amigos mais próximos, ele partiu em 1927,

para a “moderna" cidade de Cachoeiro do Itapemirim, no Espírito Santo, para dirigir

o jornal "O Progresso”, a convite de um amigo, Vieira da Cunha. Há poucos registros

sobre os motivos que o teriam levado a essa “aventura”. Uma das fontes é a própria

memória de Sérgio, que de forma anedótica, tenta justificar a ousadia juvenil.

78 MONTEIRO, Pedro Meira. As raízes do Brasil no espelho de Próspero. Novos Estudos CEBRAP,n. 83, São Paulo, mar. 2009. A respeito de Graça Aranha, Sérgio Buarque tece algumas memóriasem seu texto de apresentação para a coletânea Tentativas de Mitologia. São Paulo: Perspectiva,1979. p. 22 e seguintes. 79 HOLANDA, Sérgio Buarque de. O lado oposto e outros lados. In: O Espírito e a Letra, op.cit. p.226. 80 MONTEIRO, As raízes…op.cit.

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Perguntado por Richard Graham por quanto tempo havia ficado no Rio de Janeiro, o

historiador responde:

Até 1929, salvo uma experiência extravagante de seis meses, como redatorde um jornal numa pequena cidade do Espírito Santo. Minha melhorlembrança desses meses foi quando substituí um promotor numa cidadeainda menor, que alcancei depois de seis horas de viagem a cavalo.Precisavam de alguém com curso de direito, e eu era o único disponível.Cheguei cansado de morrer, mas ainda fui a um baile. Desnecessário dizerque meu caso foi tão fracamente apresentado no dia seguinte que o júriabsolveu o acusado.81

Organizador de uma coletânea com os textos de juventude de Sérgio,

Francisco de Assis Barbosa relembra a mesma passagem descrita pelo amigo,

porém, com um pouco mais de detalhes:

Lá passou a ser conhecido como Dr. Progresso. Pouco importa, fez-lhe bema estadia no interior. (…) Certa vez, nomeado promotor ad hoc na cidade deMuniz Freire, para participar de um júri, viajou seis horas em lembro deburro, e chegou ao destino mais morto do que vivo, esfolado de tal sorteque se viu obrigado a tomar um banho tépido de salmoura para podercomparecer ao tribunal no dia seguinte. O réu foi absolvido, mas havia aviagem de volta a Cachoeiro do Itapemirim, mais penosa ainda que avinda.82

Mesmo afastado do grande centro, Sérgio Buarque teceu uma rede de

relações que lhe garantiu sobrevivência num ambiente nem tão inóspito assim. Nos

conta Maria Amélia que o marido havia morado em uma pensão e que foi vizinho de

José de Magalhães Bravo, genro da proprietária e diretor do Banco Pelotense;

amigou-se igualmente a Mauro Monjardim, diretor do Banco Espírito Santo e ao

coronel local e presidente da Câmara de vereadores, Ricardo Gonçalves; além de

transitar, também, junto às duas facções políticas da região, ambas de sobrenome

Monteiro, uma de Bernardo, a outra de Jerônimo.

As memórias expostas por Maria Amélia são muito próximas daquelas

escritas em uma crônica por um outro amigo de Sérgio e nativo de Cachoeiro do

Itapemirim, o escritor Rubem Braga. Pouco depois de Sérgio conceder a entrevista

citada, Braga assinava uma crônica intitulada "O Dr. Progresso acendeu um cigarro

na lua", homenagem póstuma ao amigo que falecera havia dois anos. A crônica

brinca com a modéstia de orador de Sérgio, "apenas o pai de Chico", porém, notável

81 GRAHAM, Richard. An Interview with Sérgio Buarque de Holanda, op.cit.82 BARBOSA, Francisco de Assis (org.). Introdução. Raízes de Sérgio Buarque de Holanda. Rio deJaneiro: Rocco, 1988. p. 27.

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historiador que ocupava um "lugar todo especial em nossa cultura pela penetração e

equilíbrio de seus ensaios". O texto menciona um amigo em comum, o escritor e

político Afonso Arinos, que protestava "contra o relativo esquecimento em que caiu o

livro ‘Do Império à República’". A proximidade da crônica de Rubem Braga com o

relato de Maria Amélia está justamente na rede de amizades que Sérgio construiu

na cidade. Um dos amigos de "porre" aparece em ambos. Trata-se no Coronel

Ricardo Gonçalves. Braga, que era menino naquela época recorda:

Sim, eu me lembro do Dr. Progresso; seus porres, afinal não eram tãograndes, e ele nunca ofendia ninguém. Costumava tomar umas e outrascom o saudoso Cel. Ricardo Gonçalves e outros bons homens da terra, queformavam o Clube do Alcatrão de São João da Barra, que todos bebiam debrincadeira.83

De volta ao Rio de Janeiro, ainda em 1927, e aparentemente curado da

crise existencial, Sérgio retomou a labuta cotidiana como tradutor de telegramas, na

United Press, trabalhando ao lado de Múcio Leão, Austregésilo de Athayde e Barreto

Leite Filho. A amizade com Múcio o levou ao "Jornal do Brasil", onde passou a

redigir uma crônica diária sem assinatura, intitulada "O dia dos senadores". Lá

estendeu ainda mais a sua rede de relações, somando as amizades de Barbosa

Lima Sobrinho, Aníbal Freire e João Ribeiro.

Em 17 de julho do mesmo ano, Sérgio Buarque publica em "O Jornal", de

Assis Chateaubriand, um texto intitulado "Notas do Espírito Santo". Nele são visíveis

os problemas que trazem a determinados enredos, as narrativas de memória. Se ao

fim da vida, o evento da passagem pelo estado capixaba narrado a Richard Graham

foi tratado de maneira anedótica, servindo de matriz para quem passou a contar a

vida de Sérgio, na época mesma do ocorrido, as impressões do historiador eram

exatamente contrárias. O relato, além de conferir um histórico da recente imigração

europeia ao estado, "a quase totalidade imigrou precisamente nestes últimos 30 ou

40 anos", informava o leitor sobre o seu amplo "desenvolvimento e modernização",

porém, nos mais dignos padrões dos "bota abaixo" cariocas.

A investida de Sérgio Buarque à paisagem capixaba tinha um objetivo

aparente: enaltecer a “índole ativa da gente que povoa o Espírito Santo”. Conforme

descreveu o visitante ilustre, o Estado do Espírito Santo condensava, à época de

sua estadia, uma paisagem que confirmava como nenhuma outra - dada “a rudeza

83 BRAGA, Rubem. Recado de primavera. 8. ed. Rio de Janeiro: Record, 2008, pp. 154-157.

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magnífica do ambiente” - se tratar de “terras brasileiras”. Entretanto, a “significação

do trabalho humano” ali investido, “singularmente merecedora de sua consideração”,

resultara na emergência de uma “capital moderna e confortável”. Segundo o

jornalista, por exemplo,

(…) em Vitória levantam-se andaimes, constrói-se a ponte que deverá unir ailha ao continente, desenvolvem-se obras do porto, erguem-se teatros,abrem-se avenidas e sobre os escombros da velha cidadezinha colonial,cheia de becos e de bibocas, de casebres amontoados pelos morros e develhos que discutem política nas farmácias e nos cafés, começa a surgiruma capital moderna e de aspecto confortável. Essa atividade éimpressionante em todos os pontos da cidade. As construções contínuas,os melhoramentos, os aterros, as demolições atestam bem que no EspíritoSanto a febre de progresso não fica apenas nas palavras e nas promessasde plataformas de governo.84

Prosseguindo a sua descrição da modernização do estado, Sérgio chega,

enfim, ao que deveria ser, há seu tempo, a “saudosa” Cachoeiro do Itapemirim:

Seria preciso acrescentar (…) que o progresso não se manifesta de maneiratão assombrosa somente na capital. (…) Em Cachoeiro do Itapemirim, umacidade moderna e com melhoramentos que proporcionam o melhor confortoaos seus habitantes, com esgotos, calçamento, iluminação elétrica e atéuma linha de bondes elétricos, com um centro social bastante adiantado(…) Refiro-me a Cachoeiro do Itapemirim porque residi ali durante algunsmeses e pude observar com mais frequência esse fato, mas quero crer queno resto do Estado a situação não seja muito diferente.85

As duas passagens merecem considerações. Em relação à primeira, o

processo de modernização do Estado do Espírito Santo descrito por Sérgio Buarque

atendia ao sentido do progresso ambicionado por parte das elites urbanas do país

nos anos iniciais do século XX. Entretanto, ele enaltecia antes a “ação

administrativa” que fazia ali “cooperar todas as forças que a riqueza natural do

Estado, o trabalho do povo e o esforço dos últimos governos souberam criar em

benefício deste progresso”.

Ao que nos parece, o sentido maior de seu enaltecimento se dava na

demonstração de que o progresso verificado era consequência do “produto mental”

capixaba, ou em suas palavras, da “índole ativa da gente que povoa (...) o Espírito

Santo, no muito que tal atividade é criadora da invejável prosperidade que o Estado

começa a desfrutar”. Ao enaltecer as intervenções urbanas implementadas no

84 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Notas do Espírito Santo. In: BARBOSA, Francisco de Assis (org.).Raízes de Sérgio Buarque de Holanda, op.cit, 91. 85 Idem, p. 92.

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Espírito Santo, Buarque destacava antes o “esforço do trabalho humano para

integrar essa natureza na sua ordem e nos seus sistemas”, algo que produzia na

região um “contraste formidável” e, portanto, digno de suas notas.86

Diante do trabalho magnífico que o esforço dos homens começa a realizarem todo o Estado, a nitidez com que me pareceu tal constatação trouxe-memuitas vezes a ideia de que provavelmente essa natureza tão peculiardesaprova o estilo de civilização que o mundo europeu nos transmitiu e pus-me a imaginar de mil jeitos a nova síntese por hora imprevisível, mas queocorrerá por força, entre esses dois elementos que hoje já começam a nosparecer antagônicos: de um lado a herança cultural europeia ainda tãoacentuada, e do outro esse “espírito da terra” que os mais aptos ainda nãoprincipiaram a compreender.87

Em relação à segunda, o que mais chama a atenção é o contraste da

descrição frente a memória que ficou registrada no fim da vida pelo próprio Sérgio

Buarque e pelos outros depoimentos citados. Ao recuperarmos esse registro de

época, escrito no calor da hora, o que parece claro é que a sua passagem pela

86 A discussão proposta por Sérgio Buarque a partir de suas "Notas do Espírito Santo” encontraressonância na seguinte síntese: “Os ideais de progresso e modernização, legitimados e reforçadoscom a República, exerceram grande influência nos circuitos intelectuais brasileiros ao longo do séculoXIX, e seus conceitos correspondiam a valores de mudança, de renovação social e cultural, depulverização de normas e comportamentos tradicionais. Essa ‘nova moral’ da modernidade dirigia-sea uma superação ou mesmo destruição de padrões sociais amparados por uma dada tradição, e ofazia em nome de um suposto progresso social, moral, científico, e cultural que implicava em umaideia de civilidade; era a partir das prédicas de modernização que o homem deveria superar seupassado atrasado, necessariamente inferior ao seu presente, e se lançar ao progresso, à evolução e àcivilização. Assim, a modernização visava uma reforma total da sociedade. Modernizar significava, demodo geral, promover o novo, que por excelência era o melhor, o positivo. À ideia de progresso emodernização corresponde a noção de civilização. Promover o progresso representava, sobretudo,civilizar-se, o que pressupunha uma concepção de temporalidade teleológica. Era como se as naçõesditas civilizadas estivessem à frente na escala de um suposto desenvolvimento social, cultural emoral. Assim, o tempo linear do progresso impunha uma série de valores em escala universal. Acivilização era o objetivo supremo a ser buscado, um fim cujo meio seria a modernização constanteda sociedade pautada nos princípios progressistas. A detração do legado colonial brasileiro, portantode um passado arcaico e incivilizado, se tornou mais presente no imaginário social conforme aRepública se aproximava, acabando por se consolidar com a proclamação do novo regime. ARepública deveria tomar o lugar do Império por representar o caminho da civilização e a porta para asociedade positiva do futuro. Por conseguinte, a nação brasileira deveria se ‘atualizar’ frente àsnações europeias modernas, e para que isso acontecesse era preciso promover a sofisticação dosmeios de produção, reformar substancialmente as cidades construídas sobre os padrões coloniais,além de erigir novos centros urbanos, bem como investir na ciência e na indústria. A Repúblicadesencadeava a crença no futuro, no progresso, já que este regime sintetizaria o modelo político idealpara se gerir uma nação. No Brasil, o regime republicano representou a via do progresso à maneiradas nações europeias ocidentais; a República era o início de um futuro desejado, idealizado. O Brasildeveria galgar os estágios do desenvolvimento, fugindo de seu atraso, e acertar o seu relógio por viade remodelações institucionais, estruturais, legislativas, comportamentais. A ciência e a racionalidadetecnicista seriam os fatores responsáveis pelo avanço da sociedade brasileira”. In: MENEGUELLO,Caion Natal. Ouro Preto: a construção de uma cidade histórica. 2007. Dissertação de Mestrado.Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Programa de Pós-Graduação em História pp.16-18;HOLANDA, Sérgio Buarque de. Do Império à Republica. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.(História Geral da Civilização Brasileira, t.II, v.5). 87 HOLANDA, Notas…op.cit., p. 90.

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"cidade moderna" do interior não foi apenas uma experiência extravagante, resumida

a porres e a uma viagem em lombo de mula para uma audiência judiciária

“fracassada”. Suas impressões dizem muito mais. Elas, além de advogarem uma

visão favorável às reformas urbanas em curso no Brasil da época, dentro de uma

concepção imposta de modernização com todas as suas consequências, também

nos coloca um problema recente nas sociedades contemporâneas, qual seja, o

inquietante espetáculo que apresenta o excesso de memória e de esquecimento,

tema profundamente abordado por Paul Ricoeur que propunha como solução a ideia

de uma "política da justa memória", um de seus temas cívicos confessos.88

Em relação a um excesso de memória, a passagem de Sérgio Buarque

pela Alemanha, próxima parada desse modernista errante, é cercada de exageros e

versões oficiais, mas que se transformaram em mantra toda vez que aparecem

questões que envolvam a sua fase de vida anterior à publicação de "Raízes do

Brasil". Sérgio Buarque não deixou quase nenhum registro sobre a sua passagem

por Berlim, entre junho 1929 e dezembro de 1930, exceto algumas entrevistas, uma

ou outra carta guardada em seu papelório, algumas linhas em "Tentativas de

Mitologia" e um caderno organizado por sua irmã, Cecília, com os recortes dos

textos que enviava de lá ao Brasil. Esse material, aliás, serviu de inspiração para

uma publicação póstuma e comemorativa, organizada por Francisco de Assis

Barbosa e sugestivamente intitulada "Raízes de Sérgio Buarque de Holanda".

De resto, muito do que sabemos é atestado por textos que detalham um

pouco mais a versão contada pelo próprio protagonista. Em linhas gerais, a história

de Sérgio na Alemanha começa com o convite feito por Assis Chateaubriand para

que o jovem partisse como correspondente de "O Jornal”, com o encargo de fazer

reportagens sobre a situação política em três países: Alemanha, Polônia e União

Soviética. O resultado do intento foi o seguinte: restou no primeiro, visitou

rapidamente o segundo e não conseguiu passar as fronteiras do terceiro.

Sérgio partiu a bordo do navio Cap Arcona no dia 17 de junho de 1929.

Seu embarque foi festivo e acompanhado por amigos como Manuel Bandeira,

Prudente de Moraes, neto, Rodrigo Melo Franco, pelos pais, Dr. Cristóvão e Dona

Heloísa e pelos irmãos, Cecília e Jaime. Na véspera, Sérgio e Josias Leão, que

embarcou junto, foram homenageados com um jantar de despedida no restaurante

88 RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Trad. Alain François et.al.Campinas/SP: EdUNICAMP, 2007. p. 17.

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português "Garota do Mercado”. Estiveram presentes amigos do jornalismo, como

Barbosa Lima Sobrinho, Múcio Leão, Austregésilo de Athayde, Osório Borba e os já

mencionados Rodrigo Melo Franco e Manuel Bandeira, entre outros.

Chegando a Berlim, Sérgio passou a residir em um dos mais agradáveis

pontos da cidade, numa esquina de Uhlandstrasse com a Kurfürstendamm, avenida

bonita e espaçosa chamada de Champs Elysées berlinense. Pouco depois se

mudou para outro apartamento na mesma rua, mais adiante, em cima do Uhlandeck,

que era o que se chamava um cabaré. Virando a esquina, ia facilmente ao

consulado do Brasil, na Kurfürstendamm, não sem antes passar pelo da Guatemala,

pelo teatro de Erwin Piscator e o café Illibrich, cuja orquestra americanizada tocava a

miúdo, entre outros sons, tangos argentinos em ritmo mais enérgico do que o

normal.89 Além desses detalhes, que foram anotados por Antonio Candido, são

significativos de sua passagem pelo Velho Continente, uma entrevista que realizou

em Berlim com o vencedor, em 1929, do Nobel de Literatura, o escritor Thomas

Mann, registrada em "O Jornal” de 16 de fevereiro de 193090; a tradução para o

português das legendas de "O Anjo Azul", filme com Marlene Dietrich, estrela da

época, o seu trabalho na revista bilíngue, DUCO91, e mais do que qualquer outro, e

só recentemente revelado, o filho que teve com Anne Ernst.92

Dentre as poucas fontes e relatos que tratam desse período de vida de

Sérgio, talvez um deles ainda seja pouco conhecido entre os estudiosos. Trata-se de

89 CANDIDO, Antonio. Sérgio em Berlim e depois. In: BARBOSA, Francisco de Assis (org.), op.cit.,pp. 119-120. 90 Sérgio relata o encontro e a descoberta de que o escritor era filho de uma brasileira no texto,Thomas Mann e o Brasil. A esse respeito registrou: "Não me bastava a confirmação. Desejavaconhecer novos detalhes. E Thomas Mann prestou-se amavelmente a satisfazer minha curiosidade. Amãe dos irmãos Mann, d. Júlia Bruhn da Silva, era filha de um alemão que possuía no Brasil umafazenda e que se casara com uma crioula, provavelmente de sangue português e indígena. Aos seisou sete anos foi trazida por seu pai a Lübeck, onde teria melhores possibilidades de uma educação ede uma instrução exemplares. A futura Frau Júlia Mann nunca se esqueceu de sua infância no Brasile muito mais tarde ainda se recordava de que fora salva por um negro, escravo de seu pai, de umaserpente venenosa. Era um tipo caracteristicamente latino (“uma perfeita espanhola", disse-meThomas Mann), dotada de um temperamento exaltado, que se deveria adequar com bastante êxito àsua paixão pela música. Apreciava sobretudo Chopin e acompanhava com sua voz suave asmelodias de Schubert, Schumann e Lassen. A essa mistura de sangues, que influiu acentuadamenteem seu aspecto físico, deve Thomas Mann, provavelmente, algumas das suas qualidades mais rarasde escritor, certa feição característica, que o distingue bastante no conjunto da moderna literaturaalemã".91 Sérgio Buarque prestou serviços à revista entre 5 de fevereiro de 1930 até 30 de setembro domesmo ano. No atestado de dispensa, escrito em alemão, que recebeu da editora Latein-Amerikanischer Verlag, assinado em 30 de setembro de 1930, consta que o intelectual cumpriu a suafunção na seção de português da Revista DUCO com perfeita autonomia. Arquivo Central Unicamp,Fundo Sérgio Buarque de Holanda, Série Vida Pessoal, VP 11. Tradução de Luciano CavineMartorano.92 BUARQUE, Chico. O irmão alemão. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

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uma carta que ele próprio enviou de Berlim à Rui Ribeiro Couto, alguns meses após

sua chegada em 1929. O documento foi encontrado nos arquivos de Couto,

localizados na Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro. A partir desse

escrito é possível acompanhar a visita que Sérgio realizou "por uma porção de

cidades" na Polônia, a recusa de sua entrada em Moscou; o emprego que, com

orgulho arrumou na Revista DUCO; informações sobre um artigo que escreveu em

alemão sobre a "moderna literatura brasileira"; um pedido de fotografias de alguns

modernistas para a ilustração desse texto, etc. A carta também informa o endereço

em que Sérgio residia, que de fato era o mesmo descrito por Antonio Candido,

porém com detalhes: Kurfürstendamm 31-1, Pension Marie Fisher, Berlim W. Em se

tratando de documento pouco conhecido, trazemos à íntegra sua transcrição:

Berlin, 7 de novembro de 1929. Couto amigo, Depois de meu último cartão andei pela Polônia, passeando por uma

porção de cidades o meu ar de "estudante de teologia de Varsóvia’’. Depoisde obter um convite para viagem a Moscou, recebi uma inesperada recusa-minha viagem foi abgelehnt pelo Comissariado do Povo de NegóciosEstrangeiros. Só agora recebi uma erlaubnis, mas deverei esperar aprimavera, pois desejo invadir a Russia em condições mais confortáveis queas de meu antecessor Bonaparte.

Arranjei uma colocação na revista teuto-brasileira “DUCO”, de que v.receberá os 3 primeiros números. Escrevo, traduzo, corrijo traduções, etc.Nos números já publicados v. encontrará muitos erros de linguagem, mas oadmirável é que até agora não existia nenhum brasileiro no corpo deredação da Revista. Eu sou o primeiro.

Escrevi ultimamente um artigo sobre a moderna literatura brasileira,que deverá aparecer em alemão. Desejaria, porém, obter algumasfotografias para ilustrar o artigo e lembrei-me de que v. poderia, talvez,auxiliar-me nesse ponto. Mande, por exemplo, um retrato seu e, si tiver, umdo Manuel Bandeira, do Mário de Andrade, do Oswald, do Ronald…Não hátempo para escrever e receber resposta do Brasil.

Outra coisa que desejaria de v. - e isso é indispensável- é que meenvie colaborações suas. Não pedirei poesias porque em traduçãoperderiam muito, mas envie o que puder. Por enquanto peço que merecomende a sua senhora e aceite muitas saudades do seu, Sérgio.Ps: Desta vez não dá tanto trabalho ao correio berlinense como da outra.Meu endereço é este: Kurfürstendamm 31-1, Pension Marie Fisher, BerlimW. Pode escrever também para DUCO. Aquele “von Jornal do Brasil” estáerrado.93

Além das informações mencionadas, o tom da carta parece revelar ainda

que Sérgio buscava na Alemanha, além do cumprimento de suas obrigações

jornalísticas, a divulgação do modernismo brasileiro. Naquilo que foi percebido por

Pedro Meira Monteiro, de que Sérgio tinha certa preguiça em escrever cartas, ao

93 Carta de Sérgio Buarque de Holanda à Rui Ribeiro Couto. Berlim, 7 de novembro de 1929.Fundação Casa de Rui Barbosa. Acervo Rui Ribeiro Couto.

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que parece, nessa jornada europeia os seus esforços em nome da causa como lhe

escrevera Mário de Andrade nos tempos de Klaxon, pareciam bastante honestos

como visto nas indicações de um cartão anterior ou no pedido de cuidados ao

correio para que os escritos chegassem com precisão. É como se o rompimento,

após a fase em Cachoeiro do Itapemirim, tivesse terminado e a saudade dos amigos

batesse mais forte por conta do “Desterro”.94

Depois de ler variados relatos e análises sobre esse período da vida de

Sérgio Buarque, o que mais nos chamou a atenção é a forma como esse conjunto

de textos buscou definir uma cronologia à vida da personagem, delimitando uma

fase marcada pelo antes e pelo depois de sua passagem por Berlim. Essa limitação

temporal é importante porque define a passagem no tempo histórico do jovem

modernista ao intelectual consagrado de "Raízes do Brasil". O próprio Sérgio, ao

ordenar a trama de sua trajetória, alimentou essa versão. Recordando, no fim dos

anos 1970, os seus anos berlinenses ele nos conta que,

Depois segui para o estrangeiro, lamentando apenas o separar-me porlongo tempo de amigos diletos, embora contente com o poder apagar daminha lembrança pessoas menos estimáveis a meu ver e ideias que me iamimportunando. Do que não me livraria depressa era do projeto de Teoria daAmérica, pois justamente durante a estada no estrangeiro naqueles meusWanderjahre alemães, ela principiará a ganhar forma definitiva. O contatode terras, gentes, costumes em tudo diferentes dos que até então conhecia,pareceu favorável à revisão de ideias velhas e à busca de novosconhecimentos que me ajudassem a abandoná-las, ou depurá-las.Recomecei a ler, e recomecei mal, enfronhando-me agora em filosofiasmísticas e irracionalistas (Klages, etc.), que iam pululando naqueles últimosanos da República de Weimar e já às vésperas da ascensão de Hitler. (…)Foi só depois de conhecer as obras de críticos ligados ao “círculo" de StefanGeorge, especialmente de um deles Ernst Kantorowicz, autor de um livrosobre Frederico II (Hohenstaufen) que, através de Sombart, pude afinal“descobrir" Max Weber, de quem ainda guardo as obras então adquiridas.(…) Os livros de Weber e um pouco as lições de Meinecke, em Berlim,indicando-me novos caminhos, deixarão sua marca na minha Teoria daAmérica.95

94 DECCA, Edgar S. de. Ensaios de nacionalidade: cordialidade, cidadania e desterro na obra deSérgio Buarque de Holanda. Locus: Revista de História, Juiz de Fora, v. 12, n. 1 pp. 145-159. Nessetexto, o autor defende a ideia de que Raízes do Brasil é uma obra constituída a partir de umaexperiência de desterro, que Sérgio vivenciou em Berlim. Nas palavras do autor: "Sérgio Buarqueprovavelmente idealizou a obra de Raízes do Brasil, originalmente, num tema maior que seria umaTeoria da América. Essa teoria da América, portanto, em 1936 iria se transformar na obra Raízes doBrasil. Uma obra de desterro eu diria. Uma obra de Sérgio desterrado na Alemanha e que, emseguida, se nós formos observar a trajetória historiográfica do autor, veremos que há uma sequênciade trabalhos quase de caráter etnográfico, em que Sérgio mergulha para dentro desse território dedesterros que é o Brasil. Livros que são significativos nesse sentido são: Raízes do Brasil, Monções,caminhos e Fronteiras e o Extremo Oeste." p. 147. 95 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Tentativas de Mitologia. São Paulo: Perspectiva, 1979. pp. 29-30.Importante trabalho para a compreensão do período em que o historiador esteve em Berlim é oensaio de Peter Gay, A cultura de Weimar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

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De volta ao Brasil em 1931, Sérgio trouxe cerca de 400 páginas escritas

de sua "Teoria", texto esse jamais localizado. Foram dessas anotações que o

intelectual retirou o substancial para a publicação de um esboço do que mais tarde

seria "Raízes". A gênese de seu mais ilustre livro chamaria-se "Corpo e Alma do

Brasil: ensaio de psicologia social", e viria à público na "Revista Espelho", no ano de

1935.

Assim como no relato sobre o Espírito Santo, este também foi anotado em

fase final da vida, daí o contraste entre as certezas do presente, de um intelectual já

consagrado, em relação à carta enviada de Berlim à Ribeiro Couto, quando ainda se

firmava no mundo das letras. Se no texto de 1979 Sérgio versava com toda a

certeza a trama de "Teoria da América", ligando-a a “Raízes", o núcleo de sua fase

alemã, se ele se demonstrava sedento por novos conhecimentos e aparentava um

certo desencanto com o modernismo brasileiro - o documento exposto acima nos dá

uma impressão inversa. Nele, aparece um intelectual jovem, orgulhoso pela nova

colocação que conseguira, "o primeiro" brasileiro no corpo de redação de DUCO, um

modernista militante, mas um tanto inseguro por estar em ambiente “hostil",

preocupado em divulgar no exterior a literatura moderna do seu país e sem muitas

certezas do que viria pela frente.

A adoção dessa terminologia “fase alemã” foi sistematicamente inscrita ao

longo dos anos por autores muito próximos a Sérgio, como Francisco de Assis

Barbosa, Antonio Candido, Maria Odila L. da S. Dias e Francisco Iglésias, para

ficarmos em alguns. O primeiro escreveu em 1988, que "com a viagem à Alemanha,

encerra-se para Sérgio uma etapa da mocidade, a de seu aprendizado”. Antonio

Candido por sua vez, publicou logo após o falecimento do amigo, em 1982, um texto

intitulado "Sérgio em Berlim e depois", onde afirmava que "de todos os livros de

Sérgio, ‘Raízes do Brasil’ é o único do qual se pode dizer que é meio alemão". Já

Maria Odila, em 1985, dividiu a biografia do mestre e amigo em cinco partes, sendo

uma delas dedicada a "Raízes do Brasil", que obviamente reconstrói sua estada na

Alemanha. Por fim, Francisco Iglésias, em 1992, ao tratar dos anos de formação de

Sérgio, afirmava que ele, depois daquela experiência e ao voltar para o Rio de

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Janeiro em 1931, "já está formado e entrega-se a outros trabalhos. Continua

jornalista, mas já picado pelo desejo de ser historiador”.96

No que diz respeito a essa fase de formação, é comum encontrarmos

nesses relatos a ideia de que Sérgio tenha levado em Berlim uma vida

exclusivamente voltada aos estudos, quando o mais provável é que tenha se

envolvido muito mais com a boemia modernista de lá, ligada ao famoso “círculo de

Stefan George (1868-1933), com os bicos, o jornalismo, do que com a universidade.

À historiografia, coube então, o papel transformador dessas versões em

memória histórica, desconsiderando o horizonte de total carência de fontes que

comprovem ou questionem tais fatos. Um bom exemplo foram os cursos de Friedrich

Meinecke, que Sérgio teria frequentado na universidade de Berlim, ou então a ideia

de que "Raízes do Brasil" tenha nascido como um sopro de radicalismo democrático.

Essas "tentativas de mitologia”, endossadas pelo próprio Sérgio Buarque, de acordo

com o professor Sérgio da Mata, seriam suficientemente frágeis se levarmos em

conta um estudo mais aprofundado do contexto alemão da época.

Em pesquisa que trata da recepção de Max Weber no Brasil97, da Mata

acabou chegando na rede de autores alemães lidos por Sérgio Buarque de Holanda

e contidos em sua biblioteca até a publicação de “Raízes", buscando nessas fontes

as anotações e os grifos que Sérgio havia feito e referenciado em seu livro de

estreia. A conclusão a que chegou é de que, dentre as principais influências

encontradas na edição de 1936, estão autores do chamado vitalismo ou

irracionalismo alemão, cujas ideias, de certa forma, foram aceitas pelo Partido

Nazista, como Oswald Spengler, Ludwig Klages e Carl Schmitt. De modo que, pode-

se dizer, "Raízes do Brasil" continha em sua primeira edição, além de um

alinhamento menos weberiano, uma conotação de viés muito mais conservador do

que progressista ou radical, como quis a memória histórica posterior.98

96 Na sequência: BARBOSA, Francisco de Assis. Raízes de Sérgio Buarque de Holanda. Rio deJaneiro: Rocco, 1988; CÂNDIDO, Antonio. Sérgio em Berlim e depois. Novos Estudos Cebrap, SãoPaulo. 1(3), julho de 1982; DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Sérgio Buarque de Holanda, historiador.In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo: Ática, 1985. (ColeçãoGrandes Cientistas Sociais, n. 51); IGLÉSIAS, Francisco. Exposição: Sérgio Buarque de Holanda,historiador. In: Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Sérgio Buarque de Holanda: 3º ColóquioUERJ. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1992.97 Essa pesquisa foi publicada recentemente no livro: MATA, Sérgio da. A fascinação weberiana. Asorigens da obra de Max Weber. 1.ed. Belo Horizonte: Fino Traço, 2013. Em especial o capítulo,“Weberianismo tropical: caminhos e fronteiras recepção da obra de Max Weber no Brasil, pp. 189-208, onde o autor conclui em relação a Raízes do Brasil, que “se viu ali mais Weber do que foiefetivamente o caso”. 98 MATA, Sérgio da. II Jornada da História da Historiografia. Mesa II- “Espaços da nação, temposda história. A palestra pode ser conferida em: https://www.youtube.com/watch?v=xuCGGE9buSM.

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Já em relação as preleções de Friedrich Meinecke, a pesquisa revela

pontos muito importantes. Primeiramente, o único livro desse historiador que Sérgio

Buarque teria lido até 1935 foi "Burguesia cosmopolita e estado nacional", de 1908,

sequer foi citado em "Raízes". Na obra, aparece um único parágrafo grifado, algo

pouco comum, se comparado aos outros livros pesquisados, que trazem uma

grande quantidade de sublinhados. Quanto aos cursos mesmo assistidos, do que

tratavam? O que neles pode ter atraído Sérgio Buarque, para além do grande

renome de que gozava esse historiador? Para resolver a questão, da Mata foi até a

Biblioteca Estatal de Berlim e pesquisou os "cadernos de cursos” oferecidos entre

1929 e 1931, que eram elaborados pelos professores de todas as universidades do

país. Essa documentação continha os horários das aulas e atendimento dos

professores, referências bibliográficas, o conteúdo programático, etc., expostos

minuciosamente - prática comum nos meios acadêmicos alemães, porque

auxiliavam os alunos na preparação de cada semestre.

Partindo dessas fontes, ele concluiu que as temáticas dos cursos

ministrados por Meinecke pouco coadunavam com aquelas desenvolvidas em

"Raízes do Brasil". No espaço de três semestres os cursos oferecidos foram os

seguintes: 1) A Era da Contra-Reforma; 2) Exercícios históricos; 3) A vida política

das grandes potências na era do Absolutismo; 4) A história da Alemanha na era da

Restauração e da Revolução de Março até 1850. Soma-se a tudo, o fato de

Meinecke estar às vésperas da aposentadoria, que se daria em 1932, motivo pelo

qual suas preleções eram conferidas em sua casa, com um número limitado de

participantes regularmente matriculados. O que pode ter acontecido eram eventos

isolados, uma ou outra conferência desse professor, por exemplo, mas os famosos

seminários mesmo, que indicaram a Sérgio Buarque "novos caminhos", como ele

próprio registrou muito mais tarde, parecem ter sido quase impossíveis.99

Acessado em 12 de novembro de 2014. Apenas para citar como exemplo, Antonio Candido afirmavaem 1982 a esse respeito que "Sérgio respirou nesse ambiente e conheceu alguns de seus aspectosnegativos, inclusive a duvidosa caracteriologia de Ludwig Klages. Mas a retidão do seu espírito, ajovem cultura já sólida e os instintos políticos corretamente orientados levaram-no a algosurpreendente: desse caldo cultural que podia ir de conservador a reacionário, e de místico aapocalíptico, tirou elementos para uma fórmula pessoal de interpretação progressista do seu país,combinando de maneira exemplar a interpretação desmistificadora do passado com o sensodemocrático do presente”. CANDIDO, Antonio. Sérgio em Berlim e depois. In: BARBOSA, Franciscode Assis. op.cit, p. 124. Já o próprio Sérgio Buarque admitia, décadas mais tarde, que durante suaestadia na Alemanha, "recomecei a ler e recomecei mal, enfronhando-me agora em filosofias místicase irracionalistas (Klages, etc .), que iam pululando naqueles últimos anos da República de Weimar ejá às vésperas da ascensão de Hitler”. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Tentativas de Mitologia,op.cit. p. 30. 99 MATA, Sérgio da, II Jornada…op.cit.

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Por outro lado, a primeira edição de "Raízes do Brasil" faz referência a

apenas um único historiador da universidade de Berlim, Kurt Breysig e ao seu livro,

publicado em 1931, chamado "A história da Alma e a Formação da Humanidade"

(Die Geschichte der Seele. Berlin, Walter de Gruyter, 1931). Note-se que na edição

seguinte de "Raízes", de 1948, essas referências, bem como outras vistas acima,

desaparecem. Breysig era uma figura controversa no meio universitário alemão da

época e diferentemente de Meinecke, seus cursos eram abertos e Sérgio pode tê-los

assistido, embora não o mencione em suas memórias. O alemão esteve ligado ainda

ao fechado círculo do poeta Stefan Georg, citado por Sérgio Buarque quando lembra

sua fase alemã, já que foi por meio de Ernst Kantorowicz, um de seus integrantes e

de sua biografia sobre Frederico II, que Sérgio teria trilhado o caminho que o levou a

conhecer a obra de Weber.100

No que foi levantando em relação aos títulos dos cursos oferecidos por

Breysig no mesmo recorte temporal, pode ser constatado que eles eram muito mais

próximos a "Raízes", sobretudo naqueles que tratavam de história comparada.

Vejamos: 1) Exercícios de introdução à história social comparada e à teoria da

sociedade, todos os semestres; 2) Teoria do desenvolvimento da construção da

trajetória da humanidade e o desenvolvimento do espírito alemão desde 1871

comparado com o de outros destacados povos europeus; 3) Teoria social e

psicologia da história universal; 4) O desenvolvimento e história da teoria da história

e da filosofia da história. Frente às informações levantadas, da Mata sugere que

"Raízes do Brasil” foi, em sua construção e em sua concepção, o exato oposto da

historiografia historicista, de que Meinecke seria talvez, o último grande

representante e defensor.

Independente desses contrapontos sobre a evocação alemã de Sérgio, o

certo é que o intelectual estava envolvido com discussões muito específicas de seu

tempo. Se saiu do Brasil com elas ou se as construiu a partir do espectro de leituras,

"radicais" ou “conservadoras", a que lá teve acesso, é fato que o seu projeto de

interpretação de país ficou marcado pelo viés de abordagem sociológica, pelo grau

100 Uma discussão importante e recente sobre esse período alemão da República de Weimar e docírculo pode ser acompanhada na dissertação de mestrado de Walquiria Oliveira da Silva, intitulada:Alemanha Secreta: biografia e história no círculo de Stefan George. Programa de Pós-Graduaçãoem História, Universidade de Brasilia, 2013. Da mesma autora, vale mencionar o artigo, “A históriacomo Bildung: o Círculo de Stefan George e a função formativa da História. Tempos Históricos, vol.19, jan/jun 2015, pp. 120-137.

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comparativo em relação às Américas Hispânica e Anglo-Saxã101 e mais do que as

outras duas, talvez, pelo conceito de “homem cordial” que passou insistentemente a

contornar a nossa identidade. A questão “quem somos" já estava em pauta desde o

século XIX com a consolidação do Estado Nacional no Brasil, permanecendo como

indagação por boa parte do século XX, se tornando a “pedra de toque” de toda uma

geração de intelectuais, sobretudo, aquela da primeira parte do século XX.

Em comum, esse conjunto de autores que incluía, além de Sérgio

Buarque, nomes como Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior, Francisco de Oliveira

Vianna, Paulo Prado, Alberto Torres, Francisco Campos, etc., possuía projetos

políticos mais ou menos bem definidos, mas com soluções “diametralmente

opostas”. Havia nesses autores, como visto acima, o que Maria Stella Bresciani

denominou de “lugar-comum” de seus pressupostos, residentes na afirmação da

“incompatibilidade entre instituições, pensamentos e ideias liberais” – proposições

consideradas avançadas por terem sido formuladas em países “mais civilizados” – e

a situação ou a realidade brasileira, sinônimo de “atrasada, patriarcal, patrimonial,

semifeudal, por nela inexistir a figura política do cidadão, imprescindível para a

vigência efetiva de instituições, tal como preconizava a Constituição de 1891”.

Assim, forma-se nos textos desses autores a figura do brasileiro como um homem

descontente consigo mesmo, ressentido com seus pais colonizadores devido à

herança maldita aqui deixada, imagem negativa que situou a questão da cidadania

no núcleo do debate.102

101 Sérgio Buarque aprofunda esse grau comparativo duas décadas mais tarde, quando escreve suatese de cátedra, "Visão do Paraíso”, defendida na USP em 1958 e publicada pela primeira vez no anoseguinte. 102 BRESCIANI, Maria Stella Martins. Um diálogo possível entre (e com) os intérpretes do Brasil. In:SOIHET, Raquel; GONTIJO, Rebeca; AZEVEDO, Cecilia; ALMEIDA, Maria Celestino de (orgs.).Mitos, projetos e práticas políticas: memória e historiografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,2009. p. 167. Vale mencionar que a ideia de “lugar-comum”, à qual a Professora Maria StellaBresciani recorre, para além de sua acepção usual de clichê, contém em si a noção de “fundo-comum”, ou seja, um conjunto de asserções que permitem a troca de crenças, de palavras, depreconceitos, argumentos e opiniões sobre um tema. Deste modo, o “lugar-comum” se estrutura naconvergência de opiniões formadas na experiência do dia a dia, estreitamente vinculadas aexpectativas formuladas e fixadas no imaginário e nas representações coletivas, mas que, todavia, sealimentam de uma tradição filosófica e uma concepção de política. A autora se vale das reflexões deMyriam Renault d’Allones, no livro Le dépérissement de la politique. Généalogie d’un lieu commun.Paris: Flammarion, 1999. Stella Bresciani identifica os "fundos comuns" de onde esses autoreselaboraram as suas ideias com base na incompatibilidade entre Estado e sociedade. Seriam eles: 1)O pressuposto mesológico; 2) As noções de raça e de etnia como um pecado de origem; 3) Aavaliação da capacidade intelectual dos pais colonizadores; 4) A ausência do cidadão; 5) Aprecariedade dos hábitos de solidariedade e cooperação, fazendo do liberalismo da Constituiçãofederativa de 1891 uma ideia exótica; e, 6) A volta ao pressuposto inicial quanto ao desencontro entreinstituições políticas e sociedade.

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Nesse sentido, o projeto político de Sérgio Buarque, anunciado em

"Raízes do Brasil” e assinalado em alguns de seus textos anteriores, expunha em

primeiro plano o vínculo perverso entre “agrarismo e iberismo”. O predomínio dos

costumes rurais seria inseparável do "iberismo", herança do colonizador, e consistia

em obstáculo à formação de "centros urbanos", "centro de gravidade" da "revolução

lenta, mas segura e concertada" – iniciada pela “abolição” – em movimento cujo

objetivo era o fim do predomínio agrário, anunciando “o lento cataclismo, cujo

sentido parece ser o da superação das raízes ibéricas de nossa cultura para a

inauguração de um estilo novo, que crismamos talvez ilusoriamente de

americano”.103

A aposta de Sérgio Buarque recaía em uma “boa e honesta revolução

vertical” capaz de pôr fim à situação que fazia com que os brasileiros “expiassem

ainda os erros dos seus pais, tanto quanto os próprios erros, já que “a sociedade

brasileira foi malformada nesta terra, desde as suas raízes”. Não havia, então,

segundo Stella Bresciani, no projeto de Sérgio Buarque a recusa aos "ideais

democráticos” como algo incompatível com a população, mas a aposta na

transformação do “homem cordial” por meio da articulação de seus “sentimentos e

as construções dogmáticas da democracia liberal”, próxima às ideias da Revolução

Francesa. Processo que exigia a “urbanização contínua, progressiva,

avassaladora”.104 Não estariam esses preceitos já contidos anteriormente em suas

"Notas sobre o Espírito Santo”, quando, ao descrever o Estado, expunha em

primeiro plano o processo de reformas urbanas em curso, sintetizadas na expressão

“febre de progresso”?

Mas Sérgio Buarque parece oscilar em sua avaliação positiva dos ideais

liberais: seria, segundo Bresciani, a brecha pela qual se daria a transformação do

“cordialismo" em convicção cidadã, embora considerasse esses ideais parte de uma

teoria essencialmente neutra, despida de emotividade e que se enquadra facilmente

em fórmulas. Sérgio não definia, assim, de modo claro as instituições mais

condizentes ao Brasil, sugerindo que, tal como os princípios do liberalismo, “essas

outras elaborações engenhosas, o fascismo, integralismo, comunismo, não

mostravam o modo como nos encontramos um dia com nossa realidade”.105 Parecia

antever o que viria no ano seguinte ao seu livro de estreia.

103 Idem; p. 178; HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil, op.cit. pp. 135-137.104 BRESCIANI, ibidem, p. 179. 105 Idem, pp. 179-180.

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1.2 Sérgio Buarque e os quadros intelectuais a partir dos anos 1930

Até que surgissem no Brasil as primeiras universidades na década de

1930 e as gerações de intelectuais delas advindas no decênio seguinte, os quadros

que compunham essa categoria social eram formados normalmente no seio das

classes dirigentes agrárias ou então emergiam de camadas altas e médias do setor

urbano, cujos pais ligavam-se às profissões liberais, como a advocacia, a

engenharia, a medicina, os negócios ou aos meios políticos. Esses bacharéis,

formados na Europa ou no Brasil, em centros como São Paulo, Rio de Janeiro,

Recife ou Salvador, quando não herdavam apenas o prestígio político da família,

atuavam no campo das letras, das artes e do jornalismo. E, não raras vezes,

exerciam essas labutas de modo concomitante. Podiam ter como locais de

sociabilidade os Institutos Históricos, a Academia Brasileira de Letras-ABL ou o

Colégio Pedro II, na capital federal, sem contar os gabinetes políticos, as pastas

ministeriais e as cadeiras legislativas.

Na década de 1930, com os rearranjos políticos que levaram ao poder

Getúlio Vargas, alguns fatores foram proeminentes na ampliação da formação de

quadros intelectuais. Dentre esses fatores, podemos mencionar a ampliação das

funções do Estado com a criação de novos órgãos públicos. Em contraposição às

matrizes do governo central no campo da cultura, verifica-se a fundação da Escola

Livre de Sociologia e Política-ELSP, em 1933, da Universidade de São Paulo-USP

no ano seguinte e da Secretaria Municipal de Cultura, de São Paulo. Tudo somado a

um maior investimento do mercado editorial privado, com destaque a importantes

coleções sobre história do Brasil. Dentre elas, a "Documentos Brasileiros", da editora

José Olympio e a "Biblioteca Histórica Brasileira”, da Livraria Martins Editora. Ambas

buscaram pôr em prática importantes projetos, cuja gênese podemos encontrar no

movimento modernista.106

106 Boas referências para essa discussão específica são: HALLEWELL, Laurence. O livro no Brasil:sua história. 2. ed. EdUSP, 2005; FRANZINI, Fábio. À sombra das palmeiras: a coleçãoDocumentos Brasileiros e as transformações da historiografia nacional (1936-1959). 2006. TeseDoutorado em História Social. Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosofia, Ciências Humanase Letras; FREYRE, G. Prefácio. In: HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro:José Olympio, 1936; MORAES, Rubens Borba de. Apresentação. In: DAVATZ, Thomas. Memóriasde um colono no Brasil. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1941; e, SILVA, Rafael Pereira da.Modernismo, historiografia e sociabilidade intelectual: apontamentos sobre o quinto volume dacoleção Biblioteca História Brasileira (1931-1940). História (São Paulo), vol. 31, n. 2, dezembro de

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Ao pensarmos a ideia de uma atuação de intelectuais modernistas nos

quadros do governo Vargas, sobretudo após a instauração do Estado Novo, em

1937, algumas questões devem ser ponderadas. Primeiro, devemos lembrar que

Sérgio Buarque de Holanda, então com uma grande experiência no campo

modernista e no jornalismo e já autor de "Raízes do Brasil”107, foi um desses

intelectuais e como tal atuou em órgãos como a "Universidade do Distrito Federal"-

UDF, o "Instituto Nacional do Livro" - INL e a "Biblioteca Nacional – BN”. Muito antes,

portanto, de clamar por democracia e tecer duras críticas ao ditador Getúlio Vargas

nos idos de 1945, quando este já se encontrava no limbo, durante o "I Congresso

Brasileiro de Escritores”.

O segundo ponto é que, de maneira alguma, o "modernismo" deve ser

visto de forma homogênea ou simplesmente idealizado como um movimento de

contestação no campo das artes. Já nos chamou a atenção o relançamento do livro

de Carlos Berriel, “Tietê, Tejo, Sena”, onde o autor identifica os nada sutis tentáculos

ideológicos da oligarquia cafeicultora paulista nos campos da arte e da cultura. Por

via da atuação do principal mecenas da Semana de 22, Paulo Prado, é que se criou

uma memória oficiosa e acima de qualquer suspeita desse movimento108. Nas linhas

abaixo, Berriel expõe que essas elites agrárias

(…) atingiram uma espécie de perfeição da ação ideológica: foram críticasde si mesmas, e como historiadores estabeleceram o lugar que lhespareceu adequado no cenário das ideias nacionais. Condenaram práticasculturais que não lhes serviam e as julgaram supérfluas, e edificaram emseu lugar estruturas ideológicas eficientes e atualizadas, aptas à sua nova

2012. pp. 310-337. CANDIDO, Antonio. A revolução de 1930 e a cultura. In: _____. A educação pelanoite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1989. pp. 181-198. 107 Nunca é demais lembrar que a primeira edição de Raízes do Brasil foi publicada pela editora JoséOlympio em 1936, abrindo a Coleção Documentos Brasileiros. A obra foi então prefaciada porGilberto Freyre, que além de dirigir essa primeira fase da coleção já havia publicado Casa Grande &Senzala em 1933. 108 BERRIEL, Carlos. Tiête, Tejo, Sena: a obra de Paulo Prado. 2. ed. Campinas/SP: EditoraUnicamp, 2013. O autor nos informa que Paulo Prado foi o principal braço intelectual entre a geraçãoliterária portuguesa de 1870, que incluía nomes do peso de Eça de Queiróz ou dos historiadoresOliveira Martins e Alexandre Herculano, com o modernismo paulista. Dentre as idas e vindas à casade seu tio Eduardo Prado, em Paris, absorveu dos intelectuais portugueses, amigos de seu tio, asteses raciais da época, sobre a história portuguesa e as adaptou à realidade brasileira, buscandojustificar uma suposta superioridade de São Paulo frente aos demais estados. Isso porque, o paulistadescendia do português heróico dos descobrimentos, enquanto os demais brasileiros descendiam deuma segunda geração, de portugueses misturados com índios lascivos e com os negros corrompidospela escravidão. A respeito de Oliveiras Martins, dois trabalhos que tive a oportunidade de conhecerquando estive em Coimbra, em 2013, para um Colóquio de doutorandos, devem ser mencionados.São eles: PONTE, Carlos Salazar. Oliveira Martins: a história como tragédia. Coleção TemasPortugueses. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1998; MAURÍCIO, Carlos. A invenção deOliveira Martins: política, historiografia e identidade nacional no Portugal contemporâneo. ColeçãoTemas Portugueses. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005.

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face. Foram impiedosos com parnasianos e simbolistas. Ao se tornaremcríticas de si mesmas, essas elites tornaram homólogas sua trajetória e a dopaís, seus projetos de classe e o projeto de nação. Como parte desseprocesso, desautorizaram todas as formas de pensamento artístico eliterário estranho ao seu discurso de hegemonia.109

Ao definirem, portanto, uma nova cronologia para a história cultural do

país, essas elites intelectuais ligadas ao poder econômico da família Prado,

buscavam uma memória histórica de si mesmas. É o que constatamos, por exemplo,

em um estudo de Monica Pimenta Velloso: "Criou-se uma memória em que a

Semana de 22 se estabeleceu como um divisor de águas, e tudo o que aconteceu

de moderno no Brasil nas primeiras décadas do século XX passou a ser considerado

uma espécie de premonição dos temas de 22”.110

Partindo de si mesma, a narrativa hegemônica do Modernismo foi

constantemente reelaborada ao longo das décadas de 1930, 40 e 50, contando com

a posição privilegiada de seus atualizadores, escritores e professores, no sistema

local de produção de cultura. Sistema este, que englobava uma ampla e sofisticada

rede de instituições que incluía, por exemplo, a Faculdade de Filosofia e Letras da

USP (local de formação e de trabalho de Telê Ancona Lopez, estudiosa de Mário de

Andrade e de Antonio Candido, muito próximo de Sérgio e um de seus principais

memorialistas), os jornais "Folha de S. Paulo" e "O Estado de S. Paulo", as revistas

"Anhembi" e “Clima", além das editoras Nacional e Martins.111

Mais recentemente é que a memória historiográfica do mito fundador do

Modernismo foi revista. Hoje devemos nos referir à ideia plural de “modernismos"112,

para além do eixo Rio-São Paulo. Adepto dessa concepção, o historiador alemão

Peter Gay não se admirava de que os comentaristas, os entusiastas e os

comerciantes mais venais da indústria cultural costumassem mistificar as tentativas

de uma avaliação geral do modernismo. Para ele:

109 Idem, p. 14. 110 VELLOSO, Monica Pimenta. História e Modernismo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010. p.22. 111 PONTES, Heloísa. Destinos mistos: os cri ticos do grupo Clima em São Paulo (1940-1968). SãoPaulo: Cia. Das Letras, 1998. 112 VELLOSO, op.cit, p. 26. A autora lembra que estudiosos como Luis Costa Lima, Alfredo Bosi eSilviano Santiago foram fundamentais no processo de releitura do modernismo brasileiro. Enfatizandoa diversidade da cultura brasileira, esses autores contribuíram para o entendimento da temporalidademúltipla que marcava a brasilidade. Ao longo dos anos 1980, foi importante rever criticamente asideias que reforçavam uma visão do modernismo baseada na estética da ruptura. O trabalho deCarlos Berriel, resultante de sua tese de doutorado, também pode ser lido nesse contexto de umarevisão memorialística.

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A mesma vagueza cerca o rótulo pespegado a obras artísticas e literárias:na verdade, desde a metade do século XIX utilizou-se o termo ‘modernismo’para todo e qualquer tipo de inovação, todo e qualquer objeto quemostrasse alguma dose de originalidade. Assim, não surpreende que oshistoriadores culturais, intimidados com o programa caótico e semprevariável a que tentam dar uma ordem retrospectiva, tenham recorrido àprudência do plural: ‘modernismos’.113

A ideia da pluralidade pode ser explicada também pela metáfora familiar,

a qual podemos imaginar uma grande família muito interessante e variada com

todas as suas expressões individuais diferentes, mas unidas por alguns laços

fundamentais, como necessariamente são as famílias. Tais laços são chamados por

Peter Gay de "estilo modernista”. Em suma, "um clima de ideias, sentimentos e

opiniões”.114 Por essa perspectiva, por exemplo, é possível pensar o Modernismo

brasileiro como o desencadeamento de vários movimentos que, ocorrendo em

diferentes temporalidades e espaços, alcançaram de forma distinta grande parte do

país115, e porque não, as esferas estatais.

Mais recentemente Daniel Faria teceu críticas importantes acerca do que

chamou de “mito modernista”. Para esse autor, a cronologia imposta a partir da

Semana de 1922, pelas redes de poder que a constituíram, foi também legitimada

ou propositadamente pouco questionada pela história literária no Brasil, balizada por

esse mesmo recorte temporal, a ponto de “hoje ser impossível qualquer texto sobre

literatura brasileira moderna sem a presença do subtexto ‘modernismo’”. Faria

percebeu que, assim como ele, muitos pesquisadores tinham a mesma sensação ao

indagar o seguinte:

Ora, se um assunto parece assim tão carregado de verdades, pleno edefinitivamente constituído, não é isto razão para a nossa desconfiança?Um evento comemorado por intelectuais os mais refinados, rememorado emfestas e festivais promovidos pelo estado, sobretudo nas fases maisautoritárias da história política do Brasil contemporâneo, televisionado,musicado, reivindicado por poetas marginais e concretistas, ensinado nassalas de aulas para crianças, adolescentes, jovens e adultos - um eventodeste tipo não merece ao menos uma pulga atrás da orelha?116

Exemplo concreto dessa constatação é o fato de que autores como Mário

de Andrade e Menotti del Picchia terem adotado em suas vidas outros rótulos de

113 GAY, Peter. Modernismo: o fascínio da heresia. De Baudelaire a Beckett e mais um pouco. trad.Denise Bottmam. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p, 17. 114 Idem, pp. 18-19. 115 VELLOSO, op.cit, p. 29. 116 FARIA, Daniel. O mito modernista. Uberlândia: Editora da UFU, 2006. p. 14.

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identificação, como por exemplo, o de “futuristas", entre os anos de 1921 e 1922. Ao

que tudo indica, o título de “modernista" foi instituído por Mário alguns anos depois

como uma tática de legitimação de agrupamento literário e político específico, se

tornando canônico e mais abrangente a partir da década de 1930, ganhando

estatuto acadêmico na década de 1950 a partir da obra de Antonio Candido e

alcançando expressão editorial somente na década de 1970, então promovida pelo

Estado, observado a partir de livros publicados em co-edições com o Conselho

Federal de Cultura e o Conselho Estadual de Cultura de São Paulo.117

A partir da década de 1930, a atuação de intelectuais na esfera do estado

autoritário gerou debates ainda hoje controversos. A tese mais conhecida a esse

respeito parte justamente da ideia de “cooptação" por parte do Estado, de um

grande número de intelectuais para ocuparem altos cargos de direção em diversas

repartições. Desse modo, vivendo às expensas do Estado vieram a produzir uma

cultura sintonizada com os desígnios autoritários governamentais, ao mesmo tempo

em que se autodenominavam intérpretes dos anseios da nação.118

Antonio Candido ao analisar o "espírito dos anos 30", diz ter faltado à tese

de Sérgio Miceli o fato de que "o serviço público não significou e não significa

necessariamente identificação com as ideologias e interesses dominantes". Para

Candido, a margem de atuação opositora de intelectuais no período vinha de uma

elasticidade maior ou menor do sistema dominante, que os pôde abrigar e tolerar,

sem que esse sistema deixasse de exercer sua função corrosiva.119 Assim é que,

durante o Estado Novo, por exemplo, Candido Portinari, cumprindo encomenda

oficial, pintou no moderno prédio do Ministério da Educação, no Rio de Janeiro, os

"famosos murais que, pela concepção, temário e técnica, eram a negação do regime

opressor, ao mostrarem como representante da produção o trabalhador, não o

117 Idem, p. 15. Segundo Faria e na mesma direção de Peter Gay, o termo “modernismo” já existia,mas numa outra acepção mais abrangente, que incluía movimentos intelectuais e estéticos, conjuntosde ideias e de propostas poéticas, existentes desde o fim do século XIX. Este sentido ainda é válidoem outras línguas, como o castelhano, onde “modernismo" e “vanguardas" não são termosequivalentes. 118 Sobre esse debate ver: Miceli, Sérgio. Intelectuais e classes dirigentes no Brasil (1920-1945).São Paulo: Rio de Janeiro: DIFEL, 1979 e DECCA, Edgar S. de. Os intelectuais e a redemocratizaçãono Brasil. In: KOHUT, Karl. Palavra e poder: os intelectuais na sociedade brasileira. Frankfurt amMain: Vervuert, 1991. pp. 29-42. 119 CANDIDO, Antonio. A revolução de 1930 e a cultura. In: _____. A educação pela noite e outrosensaios. São Paulo: Ática, 1989. p. 194.

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patrão branco, e ao fazê-lo conforme uma fatura que afirmava a inovação criadora

contra as normas tradicionais, de agrado dos poderes”.120

Se antes, a abertura criativa concedida a Portinari pôde ser interpretada

numa chave de resistência à opressão, hoje sabemos que Vargas tinha muito clara a

intenção de “elevação do homem brasileiro”. Numa explícita parceria entre governo

e artistas e contando ainda com cientistas sociais, o governo impôs critérios

importantes para fixar a figura ideal que “nos seja lícito imaginar como representativa

do futuro homem brasileiro”, não se furtando de análises embasadas na frenologia,

na somatologia, na antropometria e sustentadas em dados sobre a formação,

evolução e unidade racial da população brasileira.

Em outras palavras, como demonstrou em sua pesquisa Maria Bernadete

Ramos Flores, “se não se pode afirmar que Vargas tivesse criado ‘uma imagem

unívoca e definida' para seu governo, pelos editais de concursos e pelos termos das

encomendas, mostra-se clara uma escolha estética paralela àquelas utilizadas nos

diversos programas imagéticos oficiais, no entre-guerras”.121 O chamado "retorno à

ordem”, ao re-figurar o corpo fragmentado pelas vanguardas artísticas do início do

século, conclui, serviu aos programas de crença no advento do “homem novo”. O

trabalhador, a juventude e a mãe foram, em todos os governos, as figuras exaltadas,

esculpidas na sua integridade corpórea, transformadas em simióforos que

carregariam o ideal de nação.122

Assim é que vemos, por exemplo, o berço da civilização ocidental, no

caso da Itália; a raça pura, no caso da Alemanha; a nação próspera, nos casos da

União Soviética e dos Estados Unidos ou o expansionismo civilizado de mundos, no

caso português. No Brasil, a apropriação getulista da estética, em circulação na

Europa e nos Estados Unidos, projetava o “futuro homem brasileiro” de modo que o

conjunto escultório do Edifício do Ministério da Educação voltava-se para o futuro da

120 Idem, pp. 194-195. Nesse passagem, Antonio Candido vale-se do trabalho de Annateresa Fabris,Portinari pintor social. 1977. Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo (USP). Escolade Comunicação e Artes. Nas palavras de Antonio Candido, a autora focaliza a pintura social dePortinari à luz da teoria marxista da alienação, analisando o tratamento revolucionário do negro, cujafunção em telas e painéis dos anos 30 é uma afirmação racial, é um reconhecimento do seu papelhistórico, é símbolo do proletariado (FABRIS, op.cit. p. 176). 121 FLORES, Maria Bernadete Ramos. O nu e o vestido, o futuro e o passado, a pedra e a carne: aestética da representação no Brasil e em Portugal. In: Tecnologia e estética do racismo. Ciência earte na política da beleza. Chapecó/SC: Argos, 2007. pp. 139-177. 122 Idem.

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raça, ideal debatido intensamente pela geração de intelectuais que, de alguma

forma, concederam estilo ao governo estadonovista.123

O Ministério da Educação e Saúde Pública - MES era comandado por

Gustavo Capanema e se transformou num dos principais pilares do regime ditatorial.

Esse microcosmo político, também chamado de "Constelação Capanema”, se tornou

um espaço profícuo para diferentes vertentes modernistas. É o que conclui a

historiadora Maria de Fátima Piazza, quando contrapõe a tese da "cooptação":

Sob a égide do mecenato Capanema foi que o dilema da participação dosintelectuais e artistas na política teve seu ponto nevrálgico. Aqui vislumbra-se o encontro de uma geração de intelectuais e artistas modernos, oriundosde diversos estados da federação, cujo destino foi uma repartição pública, oMinistério da Educação e Saúde Pública (MES). Foi desse órgão daadministração pública federal, conduzido por dois mineiros, o ministroCapanema e seu chefe de gabinete, o poeta e escritor Carlos Drummond deAndrade, que surgiu a “constelação Capanema”.124

A “constelação” nada tinha a ver com a censura imposta pelo

Departamento de Imprensa e Propaganda - DIP, muito menos com a repressão e

violência impostas por outros aparelhos do estado varguista. Gozava, antes, de

alguma autonomia para que seus projetos pudessem ser colocados em prática. No

MES, transformaram o “fardo-burocrático" em instituições que revelaram o Brasil

moderno - como o "Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional" (hoje,

123 Ibidem, p. 148. Na abertura do capítulo a autora descreve um bom exemplo dessas discussões:Em junho de 1937, o ministro Capanema apresentara a Getúlio a proposta da estátua do homembrasileiro a ser erigida no pátio do Edifício do Ministério da Educação e Saúde Pública - MES: umbloco de de granito, aproximadamente 11 metros de altura, sentado num soco, nu, como o Penseur,de Rodin, mas de aspecto que denotasse calma, domínio, afirmação. (…) Porém, Censo Antônio, querecebera a encomenda, apresentara um projeto que não correspondia ao desejado por Capanema: ohomem era de feições sertanejas, barrigudo e pouco atlético. Pouco depois a encomenda lhe foiretirada e foi aberto um concurso público em janeiro de 1938 com as seguintes prescrições: a estátuaserá constituída simplesmente com um homem que estará sentado; representativo do melhor tiporacial brasileiro; o homem estará nu, respeitadas porém as conveniências da praça pública; será de12 metros de altura e em granito; o pedestal terá apenas 30 ou 40 cm. Seria uma monumentalidadeem frente ao edifício do Ministério da Educação. A encomenda foi entregue a Brecheret, com arecomendação expressa de Capanema, para que não fizesse trabalho estilizado e nem decorativo,(…) o homem deveria ser figura sólida, forte. Nada de rapaz bonito. Um tipo moreno, de boaqualidade, com semblante denunciando a inteligência, a elevação, a coragem, a capacidade de criare realizar. A estátua não fora concluída. Conta-se que a maquete de 3 metros de altura teriadesabado, sem deixar vestígios. Pelo exposto, o Homem Brasileiro seria de matriz clássica, aquele"homem novo” que estava no centro dos interesses de todos os regimes políticos da década de 30.FLORES, op.cit, pp. 141-142. 124 PIAZZA, Maria de Fátima Fontes. Os Afrescos nos trópicos: Portinari e o mecenato Capanema.2003. Tese de Doutorado em História Cultural. Universidade Federal de Santa Catarina. Centro deFilosofia e Ciências Humanas. p. 24. Um outro estudo importante dessa temática é a coletâneaorganizada por Helena Bonemy, Constelação Capanema: intelectuais e políticas. Rio de Janeiro:Editora FGV; Bragança Paulista (SP): Editora Univ. de São Francisco, 2001.

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IPHAN), o "Instituto Nacional do Livro", o "Serviço de Radiodifusão Educativa", o

"Serviço Nacional de Teatro", entre outros.125

Um bom exemplo pode ser visto na montagem da "Coleção Biblioteca

Histórica Brasileira", que envolveu agentes públicos e a Livraria Martins Editora.126

Na época em que chefiava a seção de publicações do Instituto Nacional do Livro,

cargo ocupado a convite de um amigo, o poeta e ensaísta gaúcho Augusto Meyer,

muito próximo de Vargas, Sérgio Buarque de Holanda foi convidado por um outro

amigo, o paulista Rubens Borba de Moraes a traduzir o quinto volume da coleção.

"Memórias de um colono no Brasil”, do imigrante teuto-suíço Thomas Davatz foi

lançado pela Martins Editora em 1941. O livro, assim como os demais que

compunham essa coleção, interessava muito mais pelo seu valor documental do que

literário. A volta às origens era uma das facetas modernistas no campo da

historiografia, o que se fazia a partir do estudo sistematizado de fontes documentais,

manuscritas e de preferência que versassem sobre o período colonial.

Em uma entrevista concedida nos idos de 1982, Rubens Borba de

Moraes, que à época da “Coleção", era diretor da Biblioteca Pública Municipal de

São Paulo, remonta essa perspectiva de um estudo “moderno" da História do Brasil:

Agora, o que aconteceu comigo, aconteceu com os outros também.Aconteceu com o Mário, com o Oswald e com o Sérgio Milliet. Eu chegueiaqui sem conhecer a cultura brasileira porque tinha ido para a Europa com 9anos; voltei com 20. De maneira que eu não conhecia a cultura brasileira.Comecei a ler. Passei três meses na fazenda com um monte de livros dabiblioteca da fazenda. Os livros que havia na fazenda eram ruins. Tinhamuito José de Alencar, tinha Taunay, tinha aqueles autores que meu avô emeu pai liam e gostavam. De maneira que eu me atualizei. Depois, como eutinha uma inclinação por história, fui estudar história. Eu já via história apartir de umas teorias mais modernas, que eu tinha aprendido naUniversidade de Paris. Já não era uma história de fatos, das grandespessoas e tal. Falei: "-Mas está tudo errado! está tudo errado! Precisa-se

125 Idem, p. 29. Especificamente sobre o SPHAN, ver: RUBINO, Silvana. As fachadas da história: osantecedentes, a criação e os trabalhos do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (1937-1968). 1992. Dissertação de Mestrado. Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Programa dePós-Graduação em Antropologia Social. 126 A coleção publicou ainda os seguintes títulos: Viagem pitoresca através do Brasil, de Rugendas;Viagem à Província de Sa o Paulo, de Auguste de Saint-Hilaire; Reminiscências de viagem, de DanilKidder; Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, de Jean-Baptiste Debret; Memórias de um colono noBrasil, de Thomas Davatz; Brasil Pitoresco de Charles Ribeyrolles; Viagem à terra do Brasil de Jeande Léry; Dez anos de Brasil de Carl Sedler; Memorável viagem marítima, de Joan Nieuhof; Notassobre o Rio de Janeiro de John Luccock; Viagem às missões jesuíticas do Padre Antônio Sepp vonRechegg; Imagem do Brasil de Frans Post; Os caduveos de Guido Boggiani; História das missõesdos padres capuchinos, de Claude d’Abbeville; Noti cia do Brasil de Gabriel Soares de Souza; Históriada guerra Rio e Buenos Aires e Galeria dos Brasileiros Ilustres de S. A. Sisson.

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estudar o Brasil. (...) Precisamos voltar às fontes, precisamos estudar asfontes para ver como é que se evoluiu.127

Os órgãos públicos, se por um lado garantiam a muitos intelectuais certa

estabilidade financeira e campo de atuação em suas empreitadas, por outro, os

distanciava cada vez mais das camadas populares, ou dito de outra forma, do

cotidiano de pessoas comuns que buscavam interpretar. Assim é que vivendo a

ilusão de estarem em posição privilegiada, de fora e acima do social, os intelectuais

produziram teorias explicativas da história e da sociedade brasileira pautadas pelo

nacionalismo, superdimensionaram o papel do Estado frente à sociedade e em

nome da modernização e da industrialização justificaram sem constrangimento a

necessidade do autoritarismo estatal. Como demiurgos, "imputaram ao conjunto da

sociedade uma insuficiência e uma incapacidade nabusca de seu próprio destino e,

por fim, atribuíram ao estado o papel de condutor e sujeito da própria história”.128

Vale lembrar que esse é um período marcado por reações antiliberais em

todo o mundo ocidental, advindas da crise de 1929. Tais reações incluíram o

nazismo, na Alemanha e na Áustria, o fascismo na Itália, o "New Deal” nos Estados

Unidos e várias outras formas de autoritarismo e de nacionalismo. A tomada de

poder por Getúlio Vargas em 1930, e seus desdobramentos, foram a reação

antiliberal brasileira. Esta reação, porém, não foi homogênea e incluía movimentos

sociais, políticos e intelectuais muito diversos, que iam desde o integralismo até o

comunismo. O resultado do entrechoque de forças do período culminou em 1937

com um golpe que instaurou o Estado Novo.129

127 Entrevista concedida a Marco Aurélio Andrade de Filgueiras Gomes em 15 de agosto de 1982, nacidade de Bragança Paulista (SP). 128 DECCA, Edgar S. Os intelectuais e a redemocratização no Brasil. In: KOHUT, Karl. Palavra epoder: os intelectuais na sociedade brasileira. Frankfurt am Main: Vervuert, 1991. p. 46. Aabordagem dessa história intelectual feita por Edgar de Decca, é ao meu ver um desdobramento deseu livro O silêncio dos vencidos: memória, história e revolução. 6. ed. São Paulo: Brasiliense,1994. Nele, “a revolucão de 30 como memó ria histórica do vencedor da luta, fazendo parte doexercício de dominac ão, edifica o futuro, ao mesmo tempo que refaz o passado, qualificando tanto osagentes como seu próprio sentido. Toda a história transcorrida até 30 é memorizada pelo vencedorcomo uma luta entre dois agentes sociais, os revolucionários e a oligarquia”. No que diz respeito àconstrução de uma memória histórica pelo vencedor, o autor também chama a atenção para acronologia criada após esse “fato”. Nesse sentido, tudo o que viria antes dele seria denominado“República Velha”, já que “tal revoluc ão inaugura o novo” (e nisso pode-se inserir as interpretaçõesdo Brasil). A historiografia realizaria ainda sobre este “fato” outras polarizações, entre as quais a maiscorrente é a da economia agroexportadora x industrializac ão, aspectos que marcaram profundamentea produção acadêmica ao longo do século XX. DECCA, O silêncio…. pp. 108-110. 129 SALLUM JR, Basílio. Sobre a noção de democracia em Raízes do Brasil. In: MARRAS, Stelio(org). Atualidade de Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo: EdUSP; IEB, 2012. p. 52.

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1.3 "Raízes do Brasil" à contrapelo

O livro de estreia de Sérgio Buarque de Holanda, "Raízes do Brasil”, de

1936, passou, conforme a memória histórica, ilesa a qualquer forma de pensamento

autoritário vinculado ao período. Ao prefaciar a obra em 1967, num outro momento

de tensão política, no qual a ditadura civil-militar se consolidava institucionalmente,

Antonio Candido conferiu ao ensaio uma leitura às avessas, do que originalmente as

referências de Sérgio indicavam. Argumentando que ao "encontramos, em Raízes

do Brasil, um radicalismo potencial das classes médias comprometido com o povo",

o crítico, além de atestar o livro como pioneiro do radicalismo democrático, também

influenciava, pelo discurso de autoridade e pelo lugar de fala, uma geração inteira de

leitores que o interpretaram nessa chave.130

Hoje, graças a pesquisas minuciosas de historiadores, sociólogos e

críticos literários, que buscaram se debruçar na obra, é possível lê-la com outras

lentes.131 Em alguns estudos, por exemplo, o foco concentra-se especialmente na

primeira edição do livro. Num ínterim de paciência arqueológica, se comparada às

demais edições, a primeira apresenta ao leitor um escritor alinhado às discussões de

sua época, doravante, tendente ao pensamento conservador alemão em voga nas

primeiras décadas do século XX, simpático à tirania como forma de governo e

saudosista do império.132 Marcas do tempo que o próprio Sérgio, assim como seus

intérpretes posteriores, buscou apagar de sua biografia.

Na segunda edição, publicada em 1948, houve de fato um apagamento

dos rastros, uma reescrita da memória do livro e do autor, na qual Sérgio Buarque

130 WAIZBORT, Leopoldo. O mal entendido da democracia: Sérgio Buarque de Holanda, Raízes doBrasil, 1936. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais. Vol. 26, número 76, junho de 2011. p. 40;CANDIDO, Antonio. O significado de Raízes do Brasil. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes doBrasil. 26.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 131 Destaque para os seguintes trabalhos: os já publicados WAIZBORT, Leopoldo. O mal entendidoda democracia: Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, 1936. In: Revista Brasileira deCiências Sociais. Vol. 26, número 76, junho de 2011. p. 40. EUGENIO, João Kennedy. Ritmoespontâneo: organicismo em Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda. Teresina: EDUFPI,2011; ROCHA, João Cezar de Castro. Raízes do Brasil: biografia de um livro problema. In: MARRAS,Stelio (org). Atualidade de Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo: EdUSP; IEB, 2012 e o inéditoCARVALHO, Marcos Vinícius Corrêa. Raízes do Brasil, 1936. Campinas: Unicamp, 1997(Dissertação de Mestrado), onde o autor procura afinar as atitudes teóricas de Sérgio Buarque com ahermenêutica de W. Dilthey.132 WAIZBORT, op.cit., p. 44. A simpatia monarquista de Sérgio Buarque também é apontada porJoão Kennedy Eugênio, no artigo ‘Um horizonte de autenticidade: Sérgio Buarque de Holanda,monarquista, modernista, romântico (1920-1935), que compõe parte da coletânea, Sérgio Buarquede Holanda: perspectivas. Campinas/SP: Editora da Unicamp; Rio de Janeiro: EdUERJ, 2008.

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buscou sanear os córregos que o ligavam às nascentes alemãs de pensamento

autoritário. E isso por uma razão muito clara: o país já estava livre da ditadura

varguista. Nisso é que ideias de teóricos alemães ligados à cultura nazista como

Carl Schmidt, Friedrich Nietzsche, Oswald Spengler ou Ludwig Klages foram

expurgadas, ao mesmo tempo em que Sérgio também redefinia sua posição e seus

valores políticos, de modo que relido em outro momento o livro se tornou referência

para o debate político-intelectual da época, se afirmando como parte do movimento

pela redemocratização do país em curso desde 1945. Período, portanto, em que

Sérgio já tinha consolidado seu nome e o seu papel como historiador.

Numa leitura mais condizente com as matrizes da edição de 1936 é que,

por exemplo, o “mal-entendido da democracia” não seria como no geral se

interpretou, ou seja, uma crítica à retórica democrática de elites que exerciam o

poder político de modo oligárquico. Seria, ao contrário, uma defesa da oligarquia

contra a imposição de formas políticas estranhas às nossas raízes, encaradas na

cordialidade do homem brasileiro. O autor, inspirado no conservadorismo europeu,

criticaria ao modo de Nietzsche (citado em alemão como epígrafe no último capítulo

do livro) o artificialismo das formas trazidas de fora em nome da verdadeira

natureza, orgânica, da vida social. Criticaria, conforme aponta Basílio Sallum, "o

artificialismo da democracia em nome de nossa psique coletiva cordial, que se

ajustaria melhor à oligarquia, cuja melhor realização teria sido o segundo Império

Brasileiro”.133

Outro exemplo dos aportes teóricos conservadores, lidos e apropriados

por Holanda na primeira edição de "Raízes do Brasil”, mas suprimidas das demais, é

o do professor de Direito Público da Universidade de Bonn, Carl Schmitt. Embora

pontual, a referência é relevante na medida em que, no ano de 1935, Sérgio

publicava uma resenha da obra "O conceito de político"(1927)134, de Schmitt, a

133 SALLUM JR, op.cit., pp. 53-54. Não cabe neste espaço adentrar essa discussão de modosistemático, o que inclusive já foi feito de maneira competente por outros autores, citados em notaanterior. Todavia, é importante mencionar que a gênese do pensamento de Sérgio Buarque aoelaborar o texto final da edição de Raízes de Brasil de 1936, encontra-se num debate do pensamentoalemão em torno das ideias de psicogênese e sociogênese. Para Leopoldo Waizbort, no período quevai da virada do século XX até o início do período nacional-socialista na Alemanha, a discussãoacerca dos nexos de pisco e sociogênese é um dos núcleos fortes em torno do qual gravitavam osdebates acerca da interpretação histórico-cultural-social, debate esse difuso por toda a plêiade dashumanidades. Para Waizbort, a sociologia de então, procurou desenvolver esse problema, que podeser rasteado em autores como Georg Simmel, Max Weber, Ernst Troeltsch, Werner Sombart, HansFreyer, Karl Mannheim e Norbert Elias, todos conhecidos de Sérgio. WAIZBORT, op.cit., p. 41. 134 A resenha em questão, intitulada O Estado totalitário, encontra-se em: BARBOSA, Francisco deAssis. Raízes de Sérgio Buarque de Holanda. Rio de Janeiro: Rocco, 1988. pp. 298-301.

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mesma citada em “Raízes". Portanto, uma emissão de juízo escrita quando Sérgio

finalizava o livro e na qual "glosa Schmitt em perspectiva favorável". Observando a

resenha, notamos que a problemática da democracia sequer é mencionada. Não se

tratava de um tópico de discussão na obra de Schmitt mas, ao inserí-la em "Raízes

do Brasil”, a democracia passava a ser um "mal-entendido a ser esclarecido”.135

Desse modo é que no capítulo final de “Raízes do Brasil", "Nossa

revolução”, página 155, a complexa discussão acerca das condições do totalitarismo

na iminência do colapso do modelo de democracia liberal apresenta uma frase de

impacto: "É um fato instrutivo o das doutrinas que exaltam o princípio de autoridade

pressuporem fatalmente a ideia de que os homens são maus por natureza”. Trata-se

justamente de uma citação extraída de "O conceito de político" , de Carl Schmitt.

Nesse contexto, Leopold Waizbort questiona se valeria a pena indagar se o Estado

forte, mesmo imposto, não seria no entender de Sérgio Buarque uma assertiva

compatível com a situação brasileira da época, justamente porque ela se

caracterizava por uma condição na qual o Estado impessoal, democrático, não se

positivava, tolhido pelo poder privado. Em outras palavras, não restava dúvida de

que a alternativa mais viável para essa disfunção, essa incapacidade de

organização da vida nacional era a de um Estado antiliberal forte e focado na figura

do tirano, ou seja, um presságio à própria imagem personalista de Vargas que se

constituía às vésperas de um golpe.136

Outra chave para a compreensão de "Raízes do Brasil” se dá a partir do

estudo de suas metáforas.137 Embora Leopold Waizbort objete que considerações ao

livro nessa perspectiva diluam seu sentido histórico e político, já foi comprovado pelo

contrário, que elas receberam de Sérgio um lugar central na formulação de seus

argumentos e no estilo de sua narrativa. Isso sem especular as metáforas que,

ressignificadas pelo autor, desdobraram-se e ganharam novos contornos em suas

interpretações posteriores. É o que sugere Edgar de Decca, nos lembrando que:

(…) a principal chave de entendimento da obra de Sérgio Buarque está narelação metafórica que ele estabelece entre história e vida, sendo a últimaum processo gradual de conhecimento através da experiência, a

135 WAIZBORT, op.cit., p. 53. 136 Idem. 137 Para uma discussão mais aprofundada sobre o tema da metáfora, ver: RICOEUR, Paul; MACEDO,Dion Davi (Coaut. de). A metáfora viva. São Paulo, SP: Loyola, 2000; BRESCIANI, Maria StellaMartins. Uma questão de estilo. In: O charme da ciência e a sedução da objetividade. OliveiraVianna entre os intérpretes do Brasil. 2. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2007. pp. 455-486.

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experiência pessoal, imediata e a história, que teria uma certa afinidadecom a arte, ‘como conhecimento que incorpora a nova verdade daexperiência imediata, alterando e estabelecendo o mundo conhecido dopassado, e, alternativamente, exibe a verdade estabelecida, o padrão idealou externo ao qual a experiência de vida que está ocorrendo no momentodeve ser associada’.138

É com base nessa relação, entre história e vida, que encontramos a

concepção histórica de Sérgio. Para ele, a própria história é entendida como uma

metáfora. É a história que liga o mundo do presente ao mundo do passado,

permitindo o transporte do mundo da experiência imediata para o das verdades

estabelecidas e da tradição. Assim, para evitar vertigens nessas cessões é que nos

valemos da metáfora, ponte que permite a passagem entre os dois mundos. Só

assim é que podemos falar de uma história redentora, viva, escrita a partir das

perturbações do agora, na qual o peso morto de um passado estático deve ser

exorcizado para que um novo tempo se estabeleça. Nas palavras de Sérgio

Buarque,

(…) uma das missões do historiador, desde que se interesse nas coisas deseu tempo – mas em caso contrário ainda pode se chamar historiador –consiste em procurar afugentar do presente os demônios da história. Queristo dizer, em outras palavras, que a lúcida inteligência das coisas idasensina que não podemos voltar atrás e nem há como pretender ir buscar nopassado o bom remédio para as misérias do momento que corre.139

Ou seja, o passado não nos serve para explicar o presente. Ao contrário,

do "momento que corre" é que devemos buscar “afugentar" as coisas idas, os

nossos fantasmas, assombrações, os nossos problemas. Por esse motivo é que

podemos afirmar que a obra de Sérgio Buarque é movediça, um permanente

atravessar de fronteiras, de percursos, de caminhos e de estradas móveis, uma

ponte entre a tradição e a vontade do devir e de mudanças. A história, dessa forma,

jamais é fixa, sendo uma operação dos anseios de cada época. A partir do

entendimento da história como metáfora, De Decca propõe uma investigação de

"Raízes do Brasil”, buscando ao final de sua análise não apenas uma apreensão dos

138 DECCA, Edgar S. As metáforas da identidade em Raízes do Brasil: decifra-me ou te devoro. VáriaHistória, Belo Horizonte, vol. 22, n. 36, Jul/Dez., 2006. p. 427. 139 HOLANDA, Sérgio Buarque. Visão do Paraíso. Rio de Janeiro: Cia Editora Nacional, 1977. p.XVIII.

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sentidos figurados da obra, mas também das acepções políticas e sociais que ela

destinava aos leitores do tempo.140

Das metáforas consagradas por Sérgio Buarque, "fronteira e semeadura”

são imagens importantes do enredo que esse historiador atribuiu à sua explicação

do Brasil. Não por acaso, o capítulo que abre o livro trata das "Fronteiras da Europa",

uma homenagem, mas também continuidade à obra do historiador alemão Leopold

Von Ranke141, na qual Sérgio explora a metáfora da viagem da Europa a partir de

suas zonas de fronteira. Assim, através de Portugal e da Espanha, a Europa faria a

expansão do seu sentido e a partir de então, seriam apreendidas por outros povos

como metáforas civilizatórias. Ou nas palavras do próprio Sérgio Buarque:

A Espanha e Portugal são, como a Rússia e os países balcânicos (…) umdos territórios-ponte pelos quais a Europa se comunica com os outrosmundos. Assim, eles constituem uma zona fronteiriça, de transição menoscarregada, por si mesmo, desse europeismo que, não obstante, mantémcomo um patrimônio.142

Vale lembrar que esse sentido metafórico de Portugal como fronteira

europeia foi tema da inédita tese de mestrado do autor, defendida em 1958, na

Escola Livre de Sociologia e Política. Intitulada "Elementos formadores da sociedade

portuguesa na época dos descobrimentos", a pesquisa buscou entre outros

assuntos, tratar das fronteiras étnicas, espaço de formação da sociedade

portuguesa no cruzamento das culturas muçulmana, hebraica e ibérica, descontando

a forte presença do negro africano. Nesse estudo, o jogo polissêmico do termo

fronteira possibilitou a Sérgio inferir que o multiculturalismo étnico fez Portugal voltar-

140 Não nos cabe nesse capítulo e nem é nossa intenção fazer uma leitura pormenorizada dossignificados possíveis atribuídos ao livro de estreia de Sérgio Buarque. Tampouco é objetivo fazeruma leitura através da vasta fortuna crítica, lembrando que nosso foco principal é o autor como umpersonagem. Nessa parte do capítulo, "Raízes do Brasil” é visto como um produto do seu tempo eserviu como exemplo de análise social feita a partir dos anos 1930, momento de amplasinterpretações sobre o país.141 Vale lembrar que, já no fim da vida, Sérgio escreve um longo ensaio sobre esse historiador.Ranke, no momento político de nacionalismos europeus do século XIX, buscou estabelecer atravésda análise histórica as fronteiras políticas e culturais europeias, percebendo essa unidade a partir detrês momentos: o primeiro momento foi a intensa migração dos povos romanos e germânicos,propiciando a formação do interior da Europa; com as Cruzadas, segundo momento, os europeuscriaram o espírito de expansão para o exterior e de luta contra o infiel, criando uma profunda divisãoentre a cristandade de Roma e a cristandade oriental; por último, como observou Sérgio Buarque, asfronteiras europeias se expandem para além dos oceanos, com a expansão ultramarina. HOLANDA,Sérgio Buarque. Ranke. Coleção Grandes Cientistas Sociais. São Paulo: Ática, 1979. 142 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1936. p. 4.

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se para fora, sem muito apelo à sua própria internalização, daí a empresa colonial

ter sido sucedânea de uma disposição já existente.143

O complexo jogo de referências que envolvem a metáfora da

"semeadura", que parte da carta de Pero Vaz de Caminha, passando pelos sermões

do Padre Antônio Vieira e por obras como "Retrato do Brasil" (1928), de Paulo Prado

e "Casa Grande & Senzala" (1933), de Gilberto Freyre são importantes para a

compreensão do conceito de "homem cordial”. Em linhas gerais, a metáfora da

semeadura é relevante porque ajuda a explicar a passagem no Brasil de um mundo

agrário, exportador e tradicional para um mundo urbano e no seu horizonte,

moderno.

Nessa dinâmica, a fronteira reaparece como um lugar de contato entre

esses dois mundos. Diferente, portanto, de autores como Prado ou Freyre, para

quem semeadura tinha conotação sexual, de melancolia ou de adaptabilidade, para

Sérgio Buarque há uma dessexualização dessa metáfora e ela torna-se a forma de

constituição da colônia e do seu desdobramento do agrário para o urbano. Distancia-

se também de Vieira e de suas alusões ao sentido agrícola, para explicar a forma de

criação das cidades portuguesas na sua contraposição às espanholas.144

A grande pergunta para Sérgio era de que modo a semeadura realizada

pelos nossos pais colonizadores foi capaz de dar forma a esta "original contribuição

brasileira para a civilização”, o homem cordial, em cujos traços permanece ativa e

fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio transpostos do meio rural e

patriarcal. Desse modo, podemos afirmar que há na interpretação de Sérgio

Buarque todo um ciclo de reprodução que se estende desde a semeadura da terra à

criação das raízes, chegando ao desenvolvimento do fruto na sua forma definitiva, o

homem cordial brasileiro.

Muito já se especulou a respeito dessa herança brasileira ao mundo.

Grosso modo, a expressão foi pela primeira vez utilizada em 1931 por Rui Ribeiro

Couto. Valendo-se também da metáfora da semeadura, todavia para um contexto

americano, afirmava esse autor que o egoísmo europeu, tocado pela intolerância e

pela fome, fundou no "leito das mulheres primitivas e em toda a vastidão generosa

143 DECCA, Edgar S. As metáforas…op.cit., p. 432. Uma cópia dessa tese encontra-se no ArquivoCentral da Unicamp. Nos arquivos da Escola Livre de Sociologia e Política-ELSP há um dossiê sobrea vida universitária de Sérgio Buarque. Dentre os documentos encontram-se seus boletins, a ata dedefesa dessa tese, a cópia de seus trabalhos para as disciplinas cursadas, sua prova de proficiênciaem língua alemã, entre outros. 144 Idem, p. 435.

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daquela terra, a família dos homens cordiais", que se distinguiam do resto da

humanidade por duas características americanas: a hospitalidade e a credulidade.145

É justamente nesse ponto, a partir do homem cordial e do seu jogo

metafórico, que o pensamento conservador de Sérgio se cruza, tal como

demonstrado acima, com o dos pensadores alemães. No seio das transformações

em curso na sociedade brasileira, rumo à urbanização e à industrialização, não por

acaso é que o homem cordial dissolve as distâncias e as diferenças de uma maneira

tão astuciosa que ao final do livro "ele disfarçadamente toma conta do próprio

historiador", quando Sérgio Buarque desagrega ao mesmo tempo a esquerda e a

direita brasileiras, num prenúncio de um tempo futuro que estaria ainda por

chegar.146

Dando cores ao desenho e alinhando as formas, o autor condenava o

verde do fascismo à brasileira, de um lado, o vermelho do comunismo, de outro, ao

mesmo tempo em que esquadrinhava, ao centro, críticas ao liberalismo. Em suma,

não compactuava com nenhum desses sistemas de ideias e valores, que no Brasil

não deitaram raízes e seriam, portanto, ideias importadas e fora de lugar. Daí a

dificuldade de nós lidarmos com as instituições impessoais, com as normas sociais e

com as leis abstratas como previa o Estado democrático burguês. Disso derivaria

nossa tendência à anarquia e nosso apego aos líderes autoritários que nos imporiam

a ordem e o constrangimento de nossos excessos. À luz do tempo histórico vivido

pelo autor, o capítulo final de "Raízes do Brasil” se tornava profético, pois não

bastava a implementação do Estado para a superação da ordem familiar, "eis que o

novo governante se auto intitularia o pai dos pobres”.147 Em suma, "Raízes do Brasil”

se torna um instigante exemplo para pensarmos a ideia de explicação do país feita

de cima, num momento em que se buscava a modernização. Embora advindo do

modernismo, o enigmático ensaio de Sérgio Buarque, diferentemente do que

sustentou durante muito tempo sua fortuna crítica, serviu muito mais aos anseios do

“novo” que se buscava a partir de 1930, do que propriamente como um grito

democrático radical como propôs o memorialismo de Antonio Candido. O livro não

145 COUTO, Rui Ribeiro. El hombre cordial, producto americano. Revista do Brasil, Rio de Janeiro,1985. Para de Decca, é bem possível que expressão tomada emprestada de Ribeiro Couto seja umaalusão reatualizada e crítica de outro texto caro ao pensamento latino americano, Ariel, de JoséEnrique Rodó. 146 DECCA, As metáforas…op.cit., p. 437. 147 Idem, pp. 437-8 e também GNERRE, Maria Lúcia. A tragédia da cordialidade: Antígona, oestado e família no homem cordial de Raízes do Brasil. (texto inédito, doutorado Unicamp).

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ficou isolado nessa ótica e nem foi calado pelo Estado Novo, formando ao lado de

outras explicações, como as de Gilberto Freyre e de Caio Prado Júnior, o que a

posteriori se rotulou de moderna historiografia brasileira.148

E o rótulo “novo/moderno", tal como visto acima entre os modernistas de

São Paulo, também serviu de demarcação para uma nova cronologia da história da

história no Brasil. De modo que, toda a produção historiográfica anterior a 1930

passou a ser vista como um conjunto homogêneo e monolítico, salvo Capistrano de

Abreu, "homem ponte" entre gerações149 marcado por leituras oficiosas, autorizadas,

positivistas, raciais, advindas da tradição criada pela fundação do "Instituto Histórico

e Geográfico Brasileiro” - IHGB, ainda no século XIX. Assim, o novo tempo histórico

forjado pela “revolução” de 30 permitiu um (re)descobrimento do Brasil moderno,

exemplificado pelos diferentes diagnósticos produzidos da nação.

1.4. Sérgio Buarque nas engrenagens do serviço publico

Na época em que publicou “Raízes", Sérgio havia sido convidado a

trabalhar como professor na recém-inaugurada e efêmera Universidade do Distrito

Federal-UDF, idealizada pelo Secretário de Educação do Distrito Federal, Anísio

148 FRANZINI, Fábio; GONTIJO, Rebeca. Memória e história da historiografia no Brasil: a invenção deuma moderna tradição, anos 1940-1960. In: SOHIET, R. (et al.) Mitos, projetos e práticas políticas:memória e historiografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. Vele destacar aqui a recenteobra organizada por Lincoln Secco e Luiz Bernardo Pericás, Intérpretes do Brasil: clássicos,rebeldes e renegados. São Paulo: Boitempo, 2014. Mesmo propondo trazer à luz autores poucoestudados hoje ou relegados/esquecidos propositalmente pelos meios acadêmicos, a obra não deixade atestar a ideia de clássico, atribuída a Sérgio Buarque, Caio Prado Júnior e Gilberto Freyre,reforçando o memorialismo de Antonio Candido, também personagem da obra. Na crítica quepublicou ao livro, no jornal O Globo do dia 9 de março de 2014, o professor da IUPERJ, FranciscoCarlos Teixeira da Silva levanta questionamentos importantes: "por que os clássicos fazemcompanhia aos “rebeldes” e aos “renegados”? Talvez um livro só sobre os “esquecidos” fosse, em simesmo, mais contundente, e abrisse espaço para outros tantos “esquecidos”, “rebeldes” e“renegados”. Assim, nomes como Anísio Teixeira faltam nesta lista de “esquecidos” — ao lado deoutros, ainda uma vez, esquecidos. O homem que permitiu a emergência de Darcy Ribeiro e PauloFreire, perseguido pelo Estado Novo e pela ditadura civil-militar, exilado e morto de forma vergonhosapara o Brasil, deveria constar desta lista de “rebeldes” e de “esquecidos”. Indo além, temos aindadívidas com Guerreiro Ramos e Josué de Castro, homens que “explicaram” o Brasil e que, por issomesmo, tiveram sua “morte intelectual” decretada pelas elites. Guerreiro Ramos e Josué morreram detristeza, a tristeza dos tempos de chumbo. Mas, insisto, poderíamos, com certeza, sem nenhumainjustiça com os mestres já consagrados (…) abrir algumas páginas, mais espaço, para estes outrosnomes, nomes daqueles que explicaram e sofreram o Brasil, e continuam no silêncio. Teríamos,então, um livro com sabor de resposta e de desafio. Em vez de repetir aqueles que frequentam comassiduidade as nossas bibliografias, talvez valeria dar voz a homens que morreram de “tiro, bala oususto” (…) para construir um país mais justo, tais como Teixeira, Castro, Pinto, Ramos". 149 Para uma análise detalhada de Capistrano de Abreu ver: GONTIJO, Rebeca. O velho vaqueano:Capistrano de Abreu (1853-1927), memória, historiografia, escrita de si. Rio de Janeiro: 7 Letras,2013.

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Teixeira. O convite foi concretizado por seu amigo e padrinho de casamento, ao lado

de Rodrigo Mello Franco Andrade, Prudente de Moraes, neto, então diretor da

Faculdade de Filosofia e Letras. Mello Franco, na mesma época, em 1937, assumiu

a direção do recém-criado Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional-

SPHAN, concebido por Mário de Andrade. Na UDF, Sérgio teria como companheiros

de prática docente o mineiro Afonso Arinos de Melo Franco, amigo de Sérgio desde

os tempos da Faculdade de Direito, Manuel Bandeira, Mário de Andrade, Gilberto

Freyre, entre outros.

Conduzida pela prefeitura da cidade do Rio de Janeiro desde 1935, a

UDF se distanciou do projeto educativo construído pelo Estado Novo nos anos

subsequentes ao golpe. A esse fato soma-se uma intensa campanha pública

difamatória de denúncia ao comunismo, feita pelo paladino do catolicismo à época,

Alceu Amoroso Lima, então reitor da UDF, levando ao fechamento da universidade

em 1939. De lá Sérgio partiu para o Instituto Nacional do Livro-INL, dirigido como já

dito, pelo gaúcho Augusto Meyer, amigo de Vargas. Antes, porém, o intelectual teve

uma breve passagem pelo Departamento de Teatro, ligado ao Ministério da

Educação.

Sua já mencionada fase no INL foi marcada pelo relacionamento com

Rubens Borba de Moraes. Dentre os diversos temas tratados pelos intelectuais, em

suas trocas epistolares, podemos destacar dois: a já citada organização da "Coleção

Biblioteca Histórica Brasileira” e a elaboração do "Handbook of Brazilian Studies”,

obra que seria realizada em coautoria entre Moraes e o estadunidense William

Berrien.150 Foi nessa época que Sérgio se aproximou do historiador Lewis Hanke,

diretor da "Hispanic Foundation" e ligada à "Library of Congress”. Segundo aponta

Thiago Nicodemo, foi por meio dessa ligação e em nome do próprio Instituto que

Sérgio Buarque viajou ao Estados Unidos em 1941, conferindo palestras no estado

de Wyoming e debatendo na Universidade de Chicago. Também aproveitou a

oportunidade para pesquisar na "Library of Congress" e esticar uns dias em Nova

Iorque.151

150 Essas correspondências encontram-se no Arquivo Central/SIARQ, da Universidade Estadual deCampinas/Unicamp. 151 NICODEMO, Thiago L. Sérgio Buarque de Holanda e a dinâmica das Instituições Culturais noBrasil (1930-1960). In: MARRAS, Stelio. (org). Atualidades de Sérgio Buarque de Holanda, op.cit.p. 113. Ao relatar essa passagem de Sérgio pelos Estados Unidos, Nicodemo nos informa que: “(…)enquanto esteve em Nova Iorque, horas antes de embarcar para o Brasil, em 18 de julho de 1941,Sérgio entrou em contato com Paulo Duarte e lhe passou informações sobre como deveria procederpara obter cópias de manuscritos do século XVIII e XIX para a Biblioteca Municipal de São Paulo, e

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No que pese a passagem de Sérgio Buarque pelos Estados Unidos,

estudos apontam que ela foi importante não apenas pelos laços estabelecidos com

pesquisadores estrangeiros, mas também pelo contato com outras formas de

abordagem histórica, que pouco depois apareceriam em obras como, "Monções"

(1945) e "Caminhos e Fronteiras” (1957). Especialmente no que se refere à tese da

"fronteira", lida a partir do livro "The Frontier in American History", publicado em 1920

e apropriada do historiador norte-americano Frederick Jackson Turner.152

Na sequência de seu itinerário pelos órgãos públicos, Sérgio assume, em

1944, a Divisão de Consultas da Biblioteca Nacional, ao lado do amigo Rubens

Borba, possível responsável por sua transferência. Este se estabeleceu na Divisão

de Preparação, a convite de Gustavo Capanema e do Ministro do Trabalho,

Marcondes Filho, na promessa de chegar à direção tão logo seu desafeto, Rodolfo

Garcia, se aposentasse.153 Em termos mais exatos, Sérgio Buarque foi "nomeado

sugerindo que entrasse em contato com Berrien e Hanke. Nicodemo se baseia em uma cartalocalizada no CEDAE/Unicamp, Arquivo Paulo Duarte, vol. 8. De fato esse contato foi realizado. UmMemorandum, de 18 de agosto de 1941, enviado por Geoge Sioussat, chefe da Divisão deManuscritos, a Paulo Duarte, aponta a lista de documentos consultados por Sérgio Buarque antes deseu embarque de volta ao Brasil. Essa fonte afirma, ainda, que a seção de manuscritos estavacalculando os custos estimados para a microfilmagem dos seguintes documentos: Cleary, BrazilChronicas Lageanas. Or a record of facts and observations on manners and custons in South Brazil,extracted from notes taken on the spot, during a period of more than 20 years. Lages, 1886. 415 pp.8-3/4 x 13 in; Cleary, Brazil under the Monarchy. A record of facts and observations. From notes takenin Brazil during a period of more than 20 years. n. d. 189 pp. 8 x 12-1/2in; Resolutien raeckend Brazil.1649. 1 vol., 501 pp., 8-1/2 x 13 in; Rapports van Brazil (West India and East India companies, etc.)16 items. 1636 - 1644. 235 pp., 8-3/4 x 13 in; Miscellaneous Papers relating to the West IndiaCompany, Portugal and Brazil (In Dutch). 40 items. 1568, 1635-1695. 205 pp., 8-1/2 x 13. Essainformação vai ao encontro do que já apontamos, ou seja, a ideia de uma moderna interpretação doBrasil deveria passar pela devassa e pela leitura de documentos, sobretudo, manuscritos, depreferência inéditos e localizados em arquivos fora do país. Na época em que localizei essedocumento, ainda em 2011, o CEDAE/Unicamp encontrava-se em fase de mudança para a atualsede, no Instituto de Estudos da Linguagem. Dessa forma, o Memorandum estava em meio a umgrande volume de documentos avulsos, mas identificados como sendo as correspondênciasrecebidas por Paulo Duarte. Sobre a passagem de Sérgio Buarque pelo INL ver de maneira maisdetalhada: CARVALHO, Marcus Vinicius C. O Instituto Nacional do Livro e os modernistas: questõespara a história da educação brasileira. In: Cadernos de História da Educação, vol. 11, nº 2, jul/dez,2012. pp. 543-557. 152 NICODEMO, op.cit., 113. Sobre essa "fase americana” de Sérgio Buarque vale consultar ainda:WEGNER, Robert. A conquista do oeste: a Fronteira na obra de Sérgio Buarque de Holanda. BeloHorizonte: EdUFMG, 2000 e o artigo cunhado pelo próprio autor na época, publicado no "Diário deNotícias" do Rio de Janeiro e em livro na coletânea "Cobra de Vidro", de 1945, "Considerações sobreo americanismo”. Vale mencionar ainda, que na Biblioteca que pertenceu a Sérgio Buarque há umexemplar do livro de Turner, publicado em Nova Iorque em 1920 pela editora H. Holt. É bem possível,portanto, que o historiador o tenha obtido durante a viagem aos Estados Unidos. A tese de Turner foiapresentada pela primeira vez em formato de paper com o título "The significance of the Frontier inAmerican History", em 1893, durante um encontro da American Historical Association, em Chicago. 153 Nas correspondências trocadas entre Rubens Borba e Sérgio Buarque, Rodolfo Garcia é tratadopelo primeiro várias vezes em tom de galhofa. Essa desavença também pode ser conferida em:BANDEIRA, Suelena P. O mestre dos livros: Rubens Borba de Moraes. Brasília: Briquet deLemos/Livros, 2007. A chegada à diretoria da Biblioteca de fato ocorreu. Rubens Borba assumiu oposto em 17 de dezembro de 1945, já sem a figura de Getúlio Vargas na presidência. Sua gestão à

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diretor Padrão N, em comissão, por Decreto de 15 de agosto, com exercício a contar

a partir de 2 de setembro", conforme aponta o Relatório enviado pelo Diretor da BN

ao ministro Gustavo Capanema, em fevereiro de 1945.154 Ao iniciarem os trabalhos,

os amigos constataram a precariedade em que o acervo se encontrava,

concentrando esforços na reforma e reestruturação de obras raras, periódicos e

manuscritos, atribuições de suas divisões.

1.5. Abrindo parênteses: a "História do Brasil" de 1944

Antes, porém, de descrevermos o estado interno deplorável em que se

encontrava a suntuosa Biblioteca, vale lembrar que 1944 é também o ano em que

Sérgio Buarque lançou, em coautoria com Octávio Tarquínio de Sousa, um manual

escolar, "História do Brasil". Pouco mencionado entre os estudiosos de sua obra, o

material era destinado à 3ª série do curso secundário, ciclo ginasial, e foi publicado

em edição única pela José Olympio. O livro, no entanto, não seria apenas outra

aposta do inteligente editor no mercado de manuais escolares. Na avaliação de

Márcia Gonçalves, o que mais pesava no jogo de interesses e motivações que

envolvia editores, autores e leitores, era a circulação de "novas interpretações” sobre

a formação histórica do Brasil155, acentuada ainda mais após a reforma Capanema.

O manual, dessa forma, enquadrava-se na reforma do ensino secundário

promovida pelo Ministro da Educação e Saúde, Gustavo Capanema, em 1942. Nela

instituiu-se a divisão do curso secundário em duas partes: o ciclo ginasial, composto

de quatro séries e o ciclo colegial, com três. Dentre as mudanças curriculares,

destaca-se a divisão entre "História do Brasil" e "História da Civilização”. Em âmbito

geral, a reforma estabeleceu um lugar privilegiado para o ensino de História do

Brasil e uma rígida determinação do seu currículo, obedecido à risca por Octávio

frente da BN se estendeu até agosto de 1947, quando foi retirado do cargo pelo presidente EuricoGaspar Dutra, que deu lugar a outro indicado, o escritor maranhense Josué Montello. BANDEIRA,Suelena, op.cit., pp. 62-67. 154 A Biblioteca Nacional em 1944. Relatório que o Exmo. Sr. Dr. Gustavo Capanema, Ministro daEducação e Saúde apresentou em fevereiro de 1945, ao Diretor Rodolfo Augusto de Amorim Garcia.Setor de manuscritos da Biblioteca Nacional, RJ. 155 GONÇALVES, Márcia de A. Uma história de cruzamentos providenciais: o manual didático deOctávio Tarquínio de Souza e Sérgio Buarque de Holanda. In: ROCHA, Helenice A. B.; REZNIK, Luís;MAGALHÃES, Marcelo de S. (orgs). A história na escola: autores, livros e leituras. Rio de Janeiro:Editora FGV, 2009. p. 116.

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Tarquínio e Sérgio Buarque e controlado pela Comissão Nacional do Livro Didático

que velava pelo cumprimento dos programas oficiais.156

No que tange ao conteúdo da obra é possível perceber partes

ensaísticas, entre outras de cunho épico, vistas, por exemplo, na ideia de “fronteira"

retomada de "Raízes do Brasil” ou na descrição das lutas de expulsão dos

holandeses do Nordeste, episódio transformado em uma "saga sangrenta e vitoriosa

dos que pugnaram pela defesa do território brasileiro”.157 Mas em linhas gerais os

autores construíram uma abordagem culturalista na maneira de narrar a "formação"

da sociedade e da nação brasileira.

Vale lembrar que o tema da "formação" foi constante na historiografia

brasileira desde o século XIX, visto em autores como Von Martius, Francisco Adolfo

de Varnhagen, Capistrano de Abreu, João Ribeiro, Oliveira Lima, Manuel Bonfim,

Pandiá Calógeras, etc. Assim, era comum que em meio à busca de explicações

sobre a "brasilidade", se exaltassem aspectos selvagens e naturais de nossa terra,

de modo a caracterizar uma nação em marcha rumo à civilização.158 Tão relevantes

foram essas temáticas, que mitos foram elaborados. O das três raças formadoras

(brancos, índios, negros), por exemplo, legou à literatura e à história a imagem de

um passado ancestral representado pela figura idealizada do índio inserido em

natureza idílica. Ao longo do século XIX, os debates sobre o seu lugar na construção

da nacionalidade foram marcados por dois tipos de representação: uma construída

pelo romantismo, inspirada pelo modelo do "bom selvagem”, e outra, de viés

evolucionista, que situava os naturais da terra, portadores do atraso e da desordem,

no início de uma escala que ia da barbárie à civilização.159

156 Idem, p. 117. No sumário da obra podemos ler as seguintes temáticas: I- O descobrimento; II- Osprimórdios da colonização; III- A formação étnica; IV- A expansão geográfica; V- Defesa do território;VI- Desenvolvimento econômico; VII- Desenvolvimento espiritual; VIII- O sentimento nacional; IX- Aindependência. 157 Ibidem, p. 118. Em relação ao que foi descrito ver: SOUSA, Octávio T.; HOLANDA, Sérgio B.História do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1944. pp. 11-30 e 125-138. 158 Dentre os aspectos naturais, até o clima tropical foi considerado, no século XIX, como um fator decriação de um sentimento nacional. Sobre este assunto ver: BARBATO, Luis Fernando Tosta. Brasil,um país tropical: o clima na construção da identidade nacional brasileira (1839-1889). 2011.Dissertação de Mestrado, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Instituto de Filosofia eCiências Humanas. 159 A ideia de brasilidade foi bastante divulgada a partir da publicação do livro do conde Afonso Celso,Por que me ufano do meu país (1900), "servindo para indicar uma espécie de essência dos seres edas coisas do Brasil, capaz de inspirar o sentimento de amor à pátria”. GONTIJO, Rebeca. O velhovaqueano. Capistrano de Abreu: memória, historiografia e escrita de si. Rio de Janeiro: 7 Letras,2013. p. 69. As informações do parágrafo devem-se, além do citado livro, aos trabalhos de: ZILLY,Berthold. Minha formação (1898), de Joaquim Nabuco - a estilização do brasileiro ideal. In: DECCA,Edgar S; LAMARIE, Ria (orgs). Pelas margens: outros caminhos da história e da literatura.Campinas: Unicamp, 2000; NAXARA, Márcia R. C. Cientificismo e sensibilidade romântica: em

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Do mesmo modo o tema da ocupação territorial surgia na mesma época.

Segundo Janaína Amado, as referências ao “sertão” e seus habitantes datam do

período colonial. Inicialmente, o sertão era definido por sua distância em relação ao

litoral, indicando um território imenso e desabitado longe da costa. Sertão e litoral

tornaram-se categorias complementares. Nas letras da autora, (…) "como em um

jogo de espelhos, uma foi sendo construída em relação à outra, refletindo a outra de

forma invertida, a tal ponto que, sem seu principal referente (litoral, costa), sertão

esvazia-se de sentido, tornando-se ininteligível, e vice-versa”. Com o tempo, o

sertão passou a ser visto como uma região inóspita e inabitada, por oposição ao

mundo urbanizado das cidades litorâneas.160

Dessa maneira, tal como as representações indígenas que assolavam as

mentes dos "homens de letras” de outrora, o sertão, região à margem do mundo

histórico, também foi transformado em matéria central nos campos da literatura e da

cientificidade. Duas vertentes somaram ao imaginário constituído a partir de fins do

século XIX: uma ligada à literatura de ficção, que incluía novelas, contos, romances

e peças de teatro e, outra, às expedições científicas, que abrangiam memórias e

relatos de viagens anotados por estrangeiros, bem como por militares e funcionários

do governo que percorriam o interior. O Brasil profundo se tornava, por

consequência, a inspiração de um plano de escrita da história, “dedicado a recuperar

ou inventar peculiaridades geográficas, humanas e culturais”.161O que pode ser

observado, por exemplo, na associação do sertanejo à "pureza" e à "honestidade" e

do interior como um lugar de "tradições genuínas” e em vias de desaparecimento.162

Advindo dessa conjuntura, Capistrano de Abreu, a exemplo de Sérgio

Buarque de Holanda, nos ensinava que "a história dos caminhos antigos era a porta

de acesso para a compreensão da ocupação territorial. Eram as vias que ligavam o

sertão ao litoral, podendo ser terrestres ou fluviais”. Também podiam ser uma forma

de compreensão do processo histórico de formação do Brasil, vista pelas lentes de

busca de um sentido explicativo para o Brasil. Brasília: UnB, 2004. 160 AMADO, Janaína. Construindo mitos: a conquista do Oeste no Brasil e nos EUA. In:_____ ePIMENTEL, Sidney Valadares (orgs). Passando dos limites. Goiânia: UFG, pp. 51-78,especialmente pp. 63-67; idem. Região, sertão, nação, Estudos Históricos - Dossiê História eNatureza, Rio de Janeiro, n. 8, pp. 145-151. Apud: GONTIJO, O velho…op.cit. p. 71. 161 GONTIJO, Rebeca, op.cit, pp. 71-72. 162 Idem.

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um historiador-viajante, que conhece os espaços mediante o estudo de sua

ocupação ao longo do tempo.163

Não seria, portanto, mera especulação deduzir que leituras de uma dada

tradição historiográfica somadas às pesquisas desenvolvidas por Sérgio Buarque a

partir de sua experiência nos Estados Unidos, em 1941 e cujos resultados estão em

"Caminhos e Fronteiras"(1957), tenham sido antes, incorporadas em "História do

Brasil”, mesmo que de forma parca. Ao discorrerem sobre o elemento indígena, por

exemplo, os autores identificaram e diferenciaram os principais grupos encontrados

e contatados pelos elementos brancos no decorrer da conquista e da colonização.

Para eles, as migrações tupis foram favoráveis à conquista portuguesa em áreas

litorâneas.

A importância singular dos povos tupis no estudo da história do Brasil estáem que, de todos os grupos indígenas, foi esse o que verdadeiramente seincorporou à população de origem europeia, transmitindo-lhe muitos deseus costumes e de seu temperamento e caráter. (…) Pode-se quase dizerque as migrações tupis prepararam terreno para a conquista do Brasil pelosportugueses. Onde surgiram claros na dispersão dos tupis, também seinterrompia, não raro, a obra colonizadora.164

Em outra passagem, os autores explicam não apenas a dinâmica da

expansão territorial na colônia, como também os motivos da singularidade paulista,

povo que, mesclado aos índios, se tornou vitorioso na ousada tarefa de levar aos

inóspitos sertões a colonização.

A mistura com os índios, o isolamento no planalto, separado do litoral poralcantiladas serras, o influxo do sangue estrangeiro, sobretudo espanhol,tinham desenvolvido no paulista uma turbulenta ousadia, uma tenacidadeindomável e um espírito independente de que deu constantes provas. Aexpulsão dos jesuítas, o episódio de Amador Bueno, aclamado rei de SãoPaulo contra a própria vontade, as lutas entre as famílias rivais dos Pires eCamargos, os desafios insistentes à autoridade dos delegados daadministração régia, constituem exemplos do ânimo irrequieto e impávidode tais homens. Mas, é precisamente esse traço de caráter o que os fazaptos a enfrentar os perigos e incômodos das ásperas jornadas ao sertãoremoto, desprezando fomes, feras, frechas e febres.165

Quando o processo da marcha para o oeste é deflagrado na trama,

surgem com ele os relatos das dificuldades enfrentadas pela "raça de gigantes”.

163 Aqui faz-se referência ao livro de Capistrano de Abreu, Caminhos antigos e povoamento doBrasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1988. 164 SOUSA; HOLANDA, op.cit., pp. 84-85. 165 Idem, p. 108.

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Fossem nas trilhas mata adentro ou nos rios caudalosos, o triunfo da conquista e da

sobrevivência só foi possível graças à incorporação de técnicas e práticas

autóctones, que atenuavam as intempéries do meio natural.

Nessas jornadas, em lugar de marchar de sol a sol, caminhavam apenas damadrugada ao meio-dia, quando muito até às duas horas da tarde. Emseguida, arrachavam-se, pescado, mel de pau ou frutos e raízes agrestes.Graças a esse sistema que passou a ser conhecido pelo nome de "marchaà paulista", conseguiram aturar grandes fadigas e trabalhos, sem precisartransportar muitos víveres. Conhecendo todos os segredos da florestafaziam suas viagens ordinariamente à pé. Quando muito construíam balsasou canoas de casca para transpor rios mais caudalosos. Nas longasviagens fluviais utilizavam-se também de embarcações de madeira inteiriça,semelhantes em tudo às do gentio.166

Expostos esses exemplos, indicam com alguma clareza que de fato

"História do Brasil” apresentava, em algumas de suas páginas, conteúdos

pormenorizados por Sérgio Buarque nos seus livros seguintes. Todavia, nos chama

atenção o silêncio de Sérgio em relação à sua obra didática, quando expõe em

setembro de 1956 no prefácio de "Caminhos e Fronteiras”, o seu universo de

pesquisas e publicações anteriores. De modo que, temas expostos no manual

escolar - os perigos dos sertões remotos, as viagens fluviais, as técnicas de

construção de embarcações, a extração do mel de pau, as andanças nas matas, etc.

- que tratavam da cultura material e da dinâmica colonial paulista, resultantes da

adaptabilidade dos adventícios ao universo indígena, só foram enumerados pelo

autor a partir de "Monções".

Nas primeiras páginas de “Monções" (1945), portanto, os argumentos

utilizados por Sérgio, sobretudo às questões de adaptabilidade e legado indígena

aos propósitos adventícios e à especificidade paulista, serão quase idênticos aos do

seu compêndio escolar. Vejamos:

A sociedade constituída no planalto da capitania de Martim Afonso mantém-se, por longo tempo ainda, numa situação de instabilidade ou imaturidade,que deixa margem ao maior intercurso dos adventícios com a populaçãonativa. Sua vocação estaria no caminho, que convida ao movimento; não nagrande propriedade rural que forma indivíduos sedentários. (…) Mas alentidão com que no planalto paulista vão se impor costumes, técnicas outradições vindos da metrópole (…) terá profundas consequências.Desenvolvendo-se com mais liberdade e abandono do que em outrascapitanias, a ação colonizadora realiza-se, aqui, por uma contínuaadaptação a condições específicas do meio americano. Por isso mesmo

166 Ibidem. O termo “raça de gigantes” é atribuído por Sérgio Buarque e Octávio Tarquínio ao viajantefrancês Auguste de Saint-Hilaire. p. 109.

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não se enrija logo em formas inflexíveis. Retrocede, ao contrário, a padrõesprimitivos e rudes: espécie de tributo pago para um melhor conhecimento epara a posse final da terra. Só aos poucos, (…) consegue o europeuimplantar num país estranho algumas formas de vida que trazia do VelhoMundo. Com a consistência do couro, não a do ferro ou do bronze,dobrando-se, ajustando-se, amoldando-se a todas as asperezas do meio.167

Para concluir esse breve parêntese, o que tentamos demonstrar foi o fato

de que, pouco lembrado tanto pelo autor quanto pela fortuna crítica, "História do

Brasil", além de um meio didático de divulgação da moderna historiografia, já

continha em algumas páginas de seu conjunto, um indicativo do que Sérgio Buarque

definiu como “fronteira". Resultante de sua estadia americana em 1941, de suas

pesquisas documentais em curso e da leitura das teses de Frederick Turner, esse

conceito-chave se tornou, pouco depois, síntese de uma tradição historiográfica que

examinava a especificidade do paulista, bem como a expansão dessa população ao

extremo oeste do território colonial, contrapondo-se, portanto, ao modelo explicativo

estático da colonização litorânea. Nesse caso,

Fronteira, bem entendido, entre paisagens, populações, hábitos,instituições, técnicas, até idiomas heterogêneos que aqui se defrontavam,ora a esbater-se para deixar lugar à formação de produtos mistos ousimbióticos, ora a afirma-ser ao menos enquanto não a superasse a vitóriafinal dos elementos que se tivessem revelado mais ativos, mais robustos oumelhor equipados.168

1.6. Fechando parênteses

De volta aos corredores e prateleiras poeirentas da Biblioteca Nacional,

Rubens Borba de Moraes, ao assumir seu posto, tomou a iniciativa de preparar um

relatório detalhado descrevendo a calamidade em que se encontrava o acervo.

Dividido em quatro itens – conservação das coleções, serviços, conservação do

prédio e pessoal –, o relatório apontava, por exemplo, que a Biblioteca Real, trazida

pela corte de D. João VI, estava praticamente perdida. "Os volumes, sujeitos à

intempéries – chuva e sol – haviam se transformado em ‘tijolos’ ".169

167 HOLANDA, Sérgio Buarque. Monções. Rio de Janeiro, 1945. pp. 11-14. 168 HOLANDA, Sérgio B. Caminhos e Fronteiras. 3.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. pp.12-13. Importante mencionar que quando Sérgio Buarque começou a estudar esses assuntos, nolimiar da década de 1940, já se podia falar de uma tradição historiográfica, que lidava com asentradas e bandeiras, à qual é lícito dizer, remonta à obra de Capistrano de Abreu. 169 BANDEIRA, Suelene, op.cit., p. 56.

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As ricas encadernações estavam irremediavelmente perdidas e apenas

poucos volumes poderiam ser restaurados. A poeira acumulada era tanta que mal

dava para ler as lombadas. "Não há praticamente uma obra que não esteja bichada

e cinquenta por cento se transformaram em verdadeiros rendados”170. A coleção de

folhetos, formada por Diogo Barbosa Machado171, embrião da Biblioteca Real, estava

em péssimo estado de conservação. A maioria sem condições de reparo, com danos

irreversíveis. Amontoados pelos corredores da BN, muitos periódicos eram depósitos

de lixo e sujeira. A coleção de gravuras e mapas, comparadas em seu valor às das

melhores bibliotecas europeias, precisava ser urgentemente lavada ou restaurada.

No que tange ao conjunto bibliográfico, o relatório aponta que "as

coleções se formavam a esmo", sem nenhum critério de seleção, sem métodos, nem

planos, aleatoriamente. As coleções de periódicos, com assinaturas suspensas há

três anos, estavam incompletas, as obras de referência desatualizadas e não se

comprava nada do que era publicado desde 1900. A atualização de cada área não

era, portanto, acompanhada pela biblioteca, prestando um desserviço aos usuários.

Na conclusão do relatório, Rubens Borba recomendava a completa

reforma da instituição, no sentido de torná-la uma "verdadeira biblioteca nacional”,

indicada ao aprofundamento de estudos e pesquisas. Ele sugeria a execução de um

plano com três pontos principais: a mudança radical do pessoal existente; a

construção de um novo prédio, e, a restauração em larga escala do acervo. Com o

relatório em mãos, o ministro Gustavo Capanema resolveu acatar boa parte dos

problemas elencados pelo relator, que contava com a experiência de ter posto de pé

a Biblioteca Pública Municipal de São Paulo.172 Embora se diga que nessa época

que Sérgio Buarque intensificou muito "seus estudos e pesquisas”173, restam

dúvidas: em primeiro lugar, não seria um contra-senso, já que o relatório apontava

para as péssimas condições de organização e conservação de parte do acervo? E

ainda, com tanto trabalho e problemas para resolver, que tempo restaria a Sérgio

170 MORAES, Rubens Borba. Relatório do Diretor da Divisão de Preparação da Biblioteca Nacional aoMinistro da Educação e Saúde, março de 1945. Revista de Biblioteconomia de Brasília, Brasília,vol. 2, n.1, jan/jun., 1974. pp. 91-106.171 Além de presbítero secular católico, Diogo B. Machado (1682-1772) foi escritor e bibliógrafo, autorda obra "Bibliotheca Lusitana", a primeira grande obra de referência editada em Portugal. Ao longodos anos, reuniu uma impressionante coleção de livros, opúsculos e gravuras que ofereceu ao rei D.José I de Portugal, após a biblioteca real ter sido consumida pelo fogo durante o terramoto de 1755.Levada para o Brasil, quando a família real portuguesa ali se refugiou em 1808, a colecção deBarbosa Machado constitui hoje um dos mais preciosos fundos da Biblioteca Nacional do Rio deJaneiro. 172 BANDEIRA, Suelene, op.cit., p. 58. 173 NICODEMO, Thiago Lima, op.cit., p. 114.

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Buarque, na rotina de seu expediente na BN, para se dedicar a estudos mais

sistemáticos?

O próprio historiador deixou um registro de sua passagem pela BN e a

partir de suas impressões é possível deduzir que não lhe sobrava muito tempo para

tratar de “assuntos pessoais”. Como chefe de divisão, Sérgio Buarque elaborou um

relatório de área, que compunha com as demais, o relatório final de atividades para

o ano de 1944, enviado pelo diretor Rodolfo Garcia ao Ministro da Educação e

Saúde, Gustavo Capanema, em fevereiro de 1945. A Divisão de Consultas era

dividida em sete seções, cada qual contando com um servidor técnico responsável.

Eram elas: 1) seção de leitura geral e referência; 2) seção de periódicos; 3) seção de

manuscritos; 4) seção de belas artes; 5) seção de cartas geográficas; 6) seção de

obras para cegos; e, 7) seção de conservação.

Sérgio Buarque nos informa que devido à reforma em curso na Biblioteca,

a sua Divisão ficou mais “aliviada” de certas atribuições. As que envolviam, por

exemplo, classificação e catalogação, passaram a cargo da Divisão de Preparação,

dirigida por Rubens Borba. Em contrapartida, "houve a ampliação de atribuições já

existentes, além da criação de três seções novas”. No balanço dos quatro primeiros

meses de sua gestão e com vistas ao próximo ano, Sérgio Buarque afirmava que o

programa de reforma em curso "só poderá ser executado inteiramente com novos

recursos, inclusive de pessoal, material e instalações, que a Divisão de Consultas

espera poder utilizar no correr do ano de 1945”.174

Em relação à seção de Leitura Geral e Referência o diretor assinalou que

houve um "aumento apreciável” da consulta pública ao acervo, já que “a partir de 16

de outubro, o mesmo salão de referências que era franqueado ao público

consultante, das 10 às 16 horas, passou a funcionar até às 22 horas” .175 Essas

pequenas atitudes que previam o aumento e um maior contato do público com esses

órgãos de divulgação cultural, também foram tomadas por Sérgio à época em que

passou a dirigir o Museu Paulista, a partir de 1946, como veremos mais à frente.

Em relação às obras raras, Sérgio Buarque informou que as mesmas "não

dispunham de um lugar adequado para consulta e manuseio" e que o salão de

leitura de microfilmes dependia, para que entrasse em funcionamento, da montagem

de serviços de fotoduplicação, responsabilidade da Divisão de Preparação. A guerra

174 Biblioteca Nacional em 1944, op.cit. 175 Idem.

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em curso na Europa não passou despercebida aos olhos do diretor, que atribuía

parte da carência de servidores e a dificuldade em adquirir novas obras à

beligerância. Mesmo assim,

A S.L.R continuou a organização e atualização de suas coleções dereferências bibliográficas, bem como a relação do material bibliográficopróprio da Seção, a ser adquirido pela B.N. dentro das possibilidades dapresente situação mundial. Serviços internos indispensáveis foram, de certomodo, afetados pela carência de funcionários, agravada, no mês dedezembro, com a convocação para as forças expedicionárias dobibliotecário Manuel Adolfo Wandeley, sub-chefe da S.R.L.176

Naquilo que interessava aos periódicos, a impressão de Sérgio

corrobora o que foi apontado por Rubens Borba, já que o historiador também

denunciava a defasagem na compra de exemplares, sobretudo estrangeiros: "a

atualização das coleções que constituem o acervo da seção oferece algumas

dificuldades, mormente no que se refere a publicações estrangeiras, muitas das

quais deixaram de ser assinadas desde 1924 por falta de verba adequada". Outro

ponto de convergência entre os relatórios refere-se à conservação das obras do

acervo. Ao pontuar o trabalho realizado na seção de conservação, Sérgio destaca

que graças ao empenho de funcionários, todos vêm desenvolvendo um grande

esforço no sentido da limpeza, desinfeção e expurgo dos livros pertencentes ao

acervo da BN. Trabalhos que, sobretudo o expurgo, "serão grandemente

incentivados logo que esta divisão disponha de dois autoclaves e do pessoal

necessário".177

A Biblioteca Nacional foi o último órgão em que Sérgio Buarque ocupou

cargo enquanto esteve na capital federal. Antes, contudo, de voltar definitivamente

para a Pauliceia e dirigir o Museu Paulista, a partir de 1946, o historiador participou

ativamente do "I Congresso Brasileiro de Escritores”, promovido pela Associação

Brasileira de Escritores-ABDE, no início de 1945. Esse evento, entretanto, não deve

ser enaltecido como um marco único na luta contra o fim do Estado Novo. Embora

tenha lugar importante na história intelectual do país, o manifesto dos escritores

ecoou ao lado de outros movimentos políticos com o mesmo apelo sonoro. Ou seja,

todos buscavam liberdade de expressão e a volta de eleições diretas.178

176 Ibidem. 177 Idem. 178 SKIDMORE, Thomas E. Brasil: de Getulio a Castello. Trad. Berilo Vargas. São Paulo:Companhia das Letras, 2010. pp. 82-83. Quem tratou com detalhes do I Congresso Brasileiro deEscritores foi Carlos Guilherme Mota no capítulo 3 de seu livro, Ideologia da Cultura Brasileira

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Ao tratar apenas do caráter combativo da ABDE, corremos o risco de

deixar de lado sua heterogeneidade nas articulações políticas e dinâmicas internas.

O que estava em jogo não era apenas a tomada de consciência social de

intelectuais e do seu papel de luta no caso do Estado Novo; antes, se debatia

também os interesses dessa categoria como classe. A fundação da ABDE se daria

em 1942, nos escritórios do jornal "A Manhã”, órgão oficial do governo, dirigido por

Cassiano Ricardo, um de seus signatários e defensores de que a Associação não

deveria ter caráter político. É momento também de entrada do Brasil na Segunda

Guerra, portanto, numa esquizofrenia ideológica, como tão bem revelou Antônio

Pedro Tota. Ou seja, em plena ditadura o governo enviava tropas à Itália para lutar

ao lado dos aliados, ao mesmo tempo em que aderia à doutrina liberal norte-

americana, sustentada pela política da boa vizinhança.179 Havia, portanto, um clima

no ar para discursos em torno da ampliação democrática, mas que, do lado

institucional, não se concretizou.

Podemos acompanhar a dinâmica desse processo por meio do

surgimento de diversas organizações e manifestos pedindo maior liberdade política.

Em São Paulo, por exemplo, surge o "Grupo Radical de Ação Popular”, em 1942,

depois chamado "Grupo Resistência”, do qual participaram intelectuais e estudantes,

dentre eles Antonio Candido. Esse grupo foi o embrião da "Esquerda Democrática”,

que depois deu origem ao Partido Socialista Brasileiro-PSB, em 1947, do qual

Sérgio Buarque foi partícipe. Pelos lados cariocas, era fundada a "Sociedade

Amigos da América", com a presença dos generais Manuel Rabelo, Horta Barbosa e

Cândido Rondon e de líderes da futura União Democrática Nacional-UDN, como

Afonso Arinos e Virgílio de Melo e Franco. Entre os estudantes, a UNE organizou em

1942, na capital federal, uma passeata a favor da entrada do Brasil na Guerra e no

ano seguinte, o seu VI Congresso e a Semana Anti-Fascista.180

(1933-1974): pontos de partida para uma revisão histórica. 5.ed. São Paulo: Ática, 1985. 179 Livro importante de Antônio Pedro Tota que trata dessa aproximação no campo da cultura, entreBrasil e Estados Unidos, sob a égide da política da boa vizinhança é O imperialismo sedutor: aamericanizarão do Brasil na época da Segunda Guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. Emcerta passagem o autor afirma: "O estado liberal, exigência mínima para a ‘americanização’ (…)estava longe da realidade do Brasil nos anos 1940. Apocalípticos ou integrados não chegam a levarem conta que a 'americanização' do Brasil tem sua gênese no estado não liberal de Vargas, dasdécadas de 1930 e 40. Uma ‘americanização paradoxal’”. p. 16. 180 MELO, Ana Amélia de Moura C. de. Associação Brasileira de Escritores: dinâmica de uma disputa.In: Vária História, Belo Horizonte, vol. 27, nº 46, pp. 711-732, jul/dez. 2011. Para uma leitura maisdetalhada da Esquerda Democrática ver: HECKER, Alexandre. Socialismo sociável: história daesquerda democrática em São Paulo (1945-1965). São Paulo: Unesp, 1998. Nesse livro, valedestacar, Sérgio Buarque de Holanda é personagem secundário. Referências a ele aparecem apenasem duas breves notas de rodapé: uma, na página 93, nota 11, que atesta sua participação no PSB

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Desse modo, receptora que foi das demandas do tempo, a ABDE abraçou

em seus quadros uma variedade de tendências políticas, que incluía desde liberais

conservadores até comunistas ligados ao PCB. Fora esse aspecto mais geral, ela

também deve ser pensada em consonância com a ampliação do mercado editorial e

com a prática de algumas editoras que antecipavam o pagamento de direitos

autorais, possibilitando a alguns escritores dedicarem-se somente à literatura,

mesmo que o Estado continuasse a ser o principal empregador dessa categoria

social. Casos, por exemplo, de José Lins do Rego, Jorge Amado e Érico

Veríssimo.181

Mas até que se consolidasse definitivamente como "figura heróica”, o

escritor não teve vida fácil. Desde a década de 1880 eram frequentes as opiniões

acerca do baixo status de seu ofício. A vida intelectual daquela época tinha que lidar

com a falta de um público leitor, com baixas remunerações e com as dificuldades de

publicação, já que em um país de analfabetos as principais editoras preferiam

investir nas traduções de romances franceses, mais aceitos, do que arriscar com

autores desconhecidos. Mas por outro lado, foi esse quadro que estimulou a

construção da imagem sublime dos escritores que, "apresentados como honestos e

abnegados, procuravam superar todos os infortúnios, (…) em defesa de uma arte

mais ‘sincera’, ‘genuína’ e, portanto, ‘verdadeira’".182

Contudo, mais do que talento, o que garantia aos escritores prestígio

junto ao público, ascensão social ou memória póstuma, eram as redes de

sociabilidade em que estavam envoltos. Detentores ou não de diploma ou de

recursos financeiros, era "importante que obtivessem o apoio de ‘padrinhos’ com

prestígio suficiente para arrumar-lhes alguma colocação". Ambicionavam, assim,

empregos públicos na burocracia estatal, vislumbrando a possibilidade de ganho fixo

que lhes garantisse tempo para escrever.183

Como bem nos lembra Rebeca Gontijo, uma vez no local certo, no

momento certo, o próximo passo era integrar ou reunir os grupos certos. Assim, a

paulista ao lado de Sérgio Milliet, Paulo Emílio Salles Gomes, Paul Singer, Oliveiros Ferreira,Maurício Tragtember, Perseu Abramo, entre outros; e outra, na página 187, nota 182, como indicaçãode leitura (imagina-se que "Raízes do Brasil") aos militantes do partido, que, além dos estrangeiros,como Rosa Luxemburgo, Kautsky, Plekanof, Weber, deveriam estudar os brasileiros Caio PradoJúnior, Sérgio Buarque de Hollanda, entremeados de Oliveira Vianna, João Ribeiro, entre outros. 181 MELO, ibidem. p. 717. 182 GONTIJO, Rebeca. O velho vaqueano. Capistrano de Abreu (1853-1927): memória,historiografia e escrita de si. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2013. pp. 46-7.183 Idem, p. 48.

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tecitura de relações em torno de figuras-chave ou de locais referenciais, como

redações de jornais ou revistas, salões, clubes literários, partidos políticos,

universidades, livrarias, etc., constituíam grupos de apoio mútuo chamados à época

de "igrejinha, panelinha ou coterie". O convívio em meio a essas redes estimulava o

hábito da conversa, das discussões, estreitava laços e demarcava diferenças,

quando não desenvolviam o culto a determinados escritores, que ainda em vida,

podiam ser transformados em referência e venerados como autoridades. É em

suma, o que Afrânio Coutinho já chamava de um "sistema bem montado de permuta

e fogo cruzado de elogios, às vezes de auto-elogio, que construiu a fama de muitos

nomes e obras".184

Isso posto, as palavras de ordem contra a ditadura da época não devem

fugir dessa complexa relação. Assim, afirmar um papel decisivo de "Sérgio Buarque

de Holanda na resistência ao Estado Novo", sobretudo na sua fase final, como é

atestado, pode soar pouco exagerado. É atribuir a ele uma supervalorização dentro

de um movimento coletivo e heterogêneo. É ainda, desvencilhar sua trajetória

intelectual do aparelho do estado, o qual sempre serviu até então, por meio de redes

de sociabilidade e apadrinhamentos que lhe garantiram postos de trabalho, viagens

oficiais ao exterior e tempo de pesquisa, sem que tivesse preocupação com

perseguições políticas ou mesmo com o exílio, tal como ocorreu a Graciliano Ramos,

Paulo Duarte, Caio Prado Júnior, entre outros.185

Exemplar nesse sentido, a exaltação panegírica de Antonio Candido, até

hoje sustenta a imagem de que Sérgio Buarque de Holanda foi sempre um

intelectual de esquerda. Versa a esse respeito como testemunha de uma geração,

projetando a figura do amigo a tempos imemoriais de um passado mitologizado.

Para ele,

Sérgio Buarque de Holanda nunca foi militante político propriamente dito,mas teve desde moço consciência política e posições ideológicas definidaspara o lado da esquerda, e como tal sempre foi tido. (…) De volta ao Brasilno final de 1930, posicionou-se contra a ditadura de Getúlio Vargas (…).Mais tarde, em 1942, participou da fundação da Associação Brasileira deEscritores, a famosa ABDE, que visava ostensivamente a defender os

184 Ibidem, pp. 48-49. COUTINHO, Afrânio. No hospital das letras. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,1962. pp. 21-22. 185 Graciliano Ramos ficou preso entre 1936 e 1937, período mais tarde retratado em Memórias doCárcere (2 volumes), postumamente publicado, em 1953; Caio Prado Júnior ficou preso entre 1935 e1937, partindo em seguida para o exílio e regressando ao país em 1939; o jornalista Paulo Duarte foiexilado por duas vezes: a primeira em 1932, após o levante paulista e a segunda em 1938, durante oEstado Novo.

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interesses profissionais, (…) mas se dispunha também a lutar (…) pela voltadas liberdades democráticas.186

Percebe-se nesse trecho o apagamento necessário da trajetória de Sérgio

Buarque no serviço público, sobretudo durante o Estado Novo, assim como das suas

posições conservadoras da juventude vistas em análises críticas a respeito de seu

livro de estreia. O salto temporal de 1930 para 1942 projeta ao leitor uma imagem

alva, de um intelectual pronto desde a juventude para tecer a crítica a qualquer

forma de autoritarismo que se impunha à sociedade, fosse ela de esquerda ou de

direita. Essa é a moldura anacrônica que enquadra Sérgio como o primeiro

historiador que aludiu à necessidade de despertar a iniciativa das massas,

manifestando, assim, um radicalismo democrático raro naquela altura fora dos

pequenos agrupamentos de esquerda.187

Outro exemplo nessa linha é o prefácio de Laura de Mello e Souza ao

livro "Urdidura do vivido: Visão do Paraíso e a obra de Sérgio Buarque de Holanda

nos anos 1950”, publicado por Thiago Nicodemo, em 2008. Nele, a historiadora

reporta-se à vida de Sérgio como um homem exemplar:

É sabido que Sérgio Buarque de Holanda foi homem de seu tempo: nadécada de 1920, ainda muito jovem, aderiu ao modernismo; comocorrespondente jornalístico na Alemanha, assistiu à ascensão do TerceiroReich; foi socialista durante toda a vida, tendo lutado contra o Estado Novo,se aposentando da Universidade de São Paulo em protesto ao AI-5 econtando entre os fundadores do Partido dos Trabalhadores.188

Não resta dúvida de que Sérgio Buarque foi um "homem de seu tempo” ,

como foram tantos outros, intelectuais ou não, de sua geração. O que talvez

diferisse Holanda dos demais fosse o fato de que, como "grande homem”, dotado de

livre arbítrio para pensar, se posicionar e escrever, escapasse do reino da

necessidade, onde vivia a maioria dos mortais.189

Desse modo, ao enaltecer de forma sublime a vida do historiador,

escolhendo apenas cores de combate para pintar sua biografia, Laura de Mello e

Souza reforça uma mística oficiosa, monumentalizada por textos celebrativos a

exemplo das práticas do século XIX, onde se buscavam nos campos da política ou

186 CANDIDO, Antonio. A visão política de Sérgio Buarque de Holanda. In: _____. (org.) SérgioBuarque de Holanda e o Brasil. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 1998. pp. 81-82. 187 Idem, p. 86. 188 SOUZA, Laura de M. Prefácio. In: NICODEMO, Thiago L. Urdidura do vivido: Visão do Paraíso ea obra de Sérgio Buarque de Holanda nos anos 1950. São Paulo: EdUSP, 2008. pp. 17-18. 189 GONTIJO, op.cit., p. 40.

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das letras os vultos exemplares da nação. Assim, a etiqueta de "socialista a vida

toda", encobre um personagem muito mais complexo e propenso, pelo menos em

parte da juventude, a modelos sociais nem tão progressistas, como sugere a autora.

A famosa aposentadoria, de 1969, por exemplo, é atenuada pelo próprio

Sérgio. Numa conversa entre amigos, na casa do historiador, em 26 de junho de

1977, Paulo Duarte relembrava o episódio: "Quando nós fomos expulsos da

universidade em 1969, o Sérgio não foi". Na sequência, Sérgio toma a palavra: "Mas

no dia seguinte eu pedi demissão!" Paulo Duarte completa: "Dá licença, deixa eu

falar (…). No dia seguinte, ele pediu a sua aposentadoria em sinal de protesto pela

nossa cassação". E, Sérgio encerra o assunto: "Em protesto e solidariedade. Agora,

eu não acho que foi heroísmo nenhum, pois eu tinha tempo garantido e me

aposentei com meus vencimentos”.190

Em 1978, a Associação dos Docentes da USP publicou um importante

relato que revelava a particular relação do poder universitário com o governo

golpista. As perseguições "macartistas" que se perpetravam tinham por objetivo

tanto colaborar com a aniquilação dos opositores da ditadura, quanto desmontar um

movimento interno de democratização e restruturação progressiva da

universidade.191 Chegou-se ao cúmulo de montar dentro do gabinete da reitoria uma

"representação" do DOPS, responsável por vetar contratações, alertar diretores a

tomar certos cuidados e acompanhar os debates que envolviam a participação de

intelectuais que "incomodavam o regime”.192

Pouco antes, portanto, da aposentadoria de Sérgio, uma série de

problemas ocorreram. Em um deles, o vice-reitor, Hélio Lourenço de Oliveira,

encaminhava ao Conselho Universitário uma proposta de reforma universitária, que

incorporava um projeto de estatuto para a USP construído ao longo de 1968 pelas

Comissões Paritárias, particularmente da antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e190 Os velhos mestres, por Tarso de Castro, Paulo Duarte, Moacir Amâncio, Maria José, MiguelFontoura e Sérgio Gomes, Entrevista publicada no Folhetim da Folha de S. Paulo, em 26 de junho de1977. In: MARTINS, Renato (org). Sérgio Buarque de Holanda: encontros. Rio de Janeiro: Beco doAzougue, 2009. p. 101. Essa mesma entrevista fez parte das investigações da extinta Divisão deSegurança e Informações, ligada ao Ministério da Justiça, durante a ditadura, como veremos nocapítulo 2. 191 ASSOCIAÇÃO DOS DOCENTES DA USP. O controle ideológico na USP. São Paulo: Adusp,2004. Esse documento foi originalmente publicado pela Brasiliense, em 1978, sob o título O livronegro da USP: o controle ideológico na universidade. Segundo o prefácio da edição de 2004, houvealteração no título para não "incorrer na conotação certamente involuntária e discriminação racial,atentos aos alertas do movimento negro quanto à recorrente associação do adjetivo ‘negro' a algonegativo". Associação…op.cit., p. 6. 192 ELIAS, Beatriz. Documento comprova existência de representação do DOPS na Reitoria da USP.In: ASSOCIAÇÃO…op.cit., p. 103.

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Letras. Lourenço foi cassado logo em seguida, por decreto assinado por Gama e

Silva, que permanecia reitor enquanto servia como Ministro da Justiça.193 A "solução

final” veio de cima com uma Reforma (Lei 5540/68) que estabelecia a destituição da

Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, desmembrada em vários Institutos e

Faculdades, disso resultando o gradual processo de "mercantilização" do saber com

foco tecnicista e a adaptação da universidade aos moldes capitalistas de produção e

resultado.194

Todavia, nos parece relevante o fato de Sérgio Buarque, como intelectual

importante que era, não ter sido sequer citado uma única vez no documento. Isso

nos faz pensar que assim como no período Vargas, Sérgio não tivesse sofrido

grandes sanções em seus afazeres até 1969 e mesmo depois, como atesta um

artigo-depoimento de uma de suas orientandas, a professora Maria Odila L. da S.

Dias: "Não deixou porém todos os seus vínculos, continuando a orientação de

algumas teses. (…) Em 1972, publicou (…) "Do Império à República”, sexto volume

da série por ele coordenada”. Nessa época ainda se envolveu com a Justiça Militar

não como “suspeito" de qualquer subversão, mas pelo contrário, como testemunha,

na tentativa de livrar colegas de tais acusações. Segundo Dias, "acompanhou (…)

os processos de perseguição política, as prisões de colegas e alunos,

comparecendo, às vezes pessoalmente, às auditorias para dar apoio pessoal,

visitando-os na prisão, escrevendo, quando possível, manifestos de protesto".195

Exemplo disso são duas cartas envidas de Santiago do Chile, em 1969.

Nelas, Caio Prado Júnior demostrava gratidão pelos depoimentos dados pelo amigo

a seu favor perante os militares. Em 19 de março eram esses os dizeres:

Meu caro Sérgio, estou a tempo para lhe escrever afim de agradecer o seudepoimento na Justiça Militar em meu processo. (…) pode estar certo quegrande é o meu conhecimento pelo seu gesto em especial pelos tons dodepoimento que foram comunicados pelo meu advogado. Espero poderretribuir-lhe que fico devendo, em todo o caso pode estar certo que nãoesquecerei do fato. (…) Abraço-o cordialmente o amigo de sempre, Caio.196

193 ASSOCIAÇÃO…op.cit., p. 7. 194 SANCHES, Rodrigo Ruiz. Sérgio Buarque de Holanda na USP. In: Sociedade e Estado, vol. 26,nº 1, Brasília, jan/abr, 2011. Uma leitura detalhada da reforma Universitária realizada na USP durantea década de 1960 foi feita por Macioniro Celeste Filho em seu livro, A constituição da Universidadede São Paulo e a reforma universitária da década de 1960. São Paulo: Editora Unesp, 2013. 195 DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Sérgio Buarque de Holanda na USP. Estudos Avançados [on-line]. 1994, vol. 8, n º 22. São Paulo, set/dez. p. 273. 196 Caio Prado Júnior. Fundo SBH. Correspondências passivas. Cp 296, Arquivo Central-SIARQ,Unicamp.

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É bem provável que Sérgio não tenha respondido de prontidão a carta do

exílio. Tanto é assim, que meses depois, em 27 de maio, Caio Prado, além de tratar

de outros expedientes, como as notícias sobre Chico Buarque no Chile ou as

disputas internas na universidade, lembrava:

Meu caro Sérgio, estou lhe remetendo com esta uma reportagem acerca doseu filho e que naturalmente interessará você, (…) Você deve ter recebidocarta minha, já há tempos, agradecendo seu depoimento a meu favor naJustiça Militar. Reitero aqui os meus agradecimentos. Tive notícias de seupedido de aposentadoria (…). Mas seja como for, (…) você pode estarseguro, de minha grande amizade e admiração que espero poder reiterarpessoalmente logo que atravessarmos as tão desfavoráveis circunstânciasdo momento que atravessa o Brasil e de que todos somos vítimas. Aceitacom Maria Amélia expressão de meus mais cordiais e afetivos sentimentos,(…) abraço muito amigo do Caio.197

***

Nesse capítulo buscamos apreender a trajetória de Sérgio Buarque de

Holanda entre os seus anos de formação inicial no modernismo até sua fase

institucional no Rio de Janeiro, durante o período Vargas. Foi nessa sua “primeira

fase”, antes do retorno definitivo a São Paulo, em 1946, que Sérgio elaborou um

modelo original de interpretação do país a partir de "Raízes do Brasil”, o primeiro dos

seus dois projetos, consolidando-se definitivamente no campo intelectual, por meio

de suas redes de sociabilidade criadas nos espaços institucionais e da boemia.

Obviamente, a documentação levantada e a leitura que propusemos, possibilitou

relativizar certa memória histórica “excepcional" construída pelo próprio Sérgio

Buarque e vistas em seu papelório, como cartas, cartões-postais, bilhetes,

fotografias, certidões, diplomas, cadernos de pesquisa, recortes de jornal,

rascunhos, textos inéditos, etc., e sustentada por seus pares ao longo de toda sua

trajetória e depois.

Durante os seus anos cariocas o intelectual também buscou divulgar esse

conhecimento em diferentes instâncias de ensino, pesquisa e memória. Deu início

ao seu segundo projeto, não se furtando, inclusive, de ampliá-lo para um público

muito mais heterogêneo, fosse por meio da divulgação de textos históricos em

coleções para uma leitura moderna do Brasil, como a tradução que fez de Davatz ou

197 Caio Prado Júnior. Fundo SBH. Correspondências passivas. Cp 298, Arquivo Central-SIARQ,Unicamp.

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na divulgação dessa mesma abordagem, a partir de um manual didático, escrito em

parceria com Octavio Tarquinio de Sousa, para alunos do ensino médio.

O capítulo a seguir dará continuidade a essa leitura crítica de sua

trajetória, começando pela sua estada na direção do Museu Paulista, passando pela

experiência universitária, que lhe retirou o espaço das ruas e lhe concedeu a

aposentadoria, terminando com o seu falecimento em 24 de abril de 1982. Durante o

percurso, o nosso intento é a percepção dos espaços de atuação prática do seu

segundo projeto.

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Capítulo 2

O RETORNO A SÃO PAULO: DO MUSEU PAULISTA ÀAPOSENTADORIA E DEPOIS…

A volta de Sérgio Buarque de Holanda à cidade em que nasceu coincide

com a reconstrução da Europa após o término da Segunda Guerra e com o início da

Guerra Fria. No país, o general Eurico Gaspar Dutra é eleito presidente pelo PSD

nas eleições de dezembro de 1945, apoiado pelo deposto Getúlio Vargas.

Recomposta a ordem democrática, certos resquícios de instabilidade política

insistiam em permanecer.

A UDN, que no início do governo cooperou com Dutra, resolveu voltar à

oposição após sentir-se pouco contemplada. Em seguida, é a vez de Getúlio Vargas

romper com o presidente. Eleito senador pelo mesmo partido, o ex-ditador

articulava, naquele momento, novas e velhas alianças em torno de um novo partido,

o PTB, prevendo retorno em breve. Na outra ponta havia um crescimento

considerável do PCB, que no pleito de 1945 elegera 14 deputados e 1 senador.

Nesse quadro, consolidado sob as bases liberais de uma nova Constituição,

promulgada em 1946, seguiu-se novo período de perseguições marcado, sobretudo,

pela declaração de ilegalidade do Partido Comunista no ano seguinte.

No geral, a tônica desse período de redemocratização pós-estado-novista

e de desenvolvimento econômico sustentado pela entrada de capitais estrangeiros,

foi a da exclusão de parcela significativa da população, tanto das decisões políticas

quanto dos benefícios advindos da industrialização. Muito visível no período foi o

crescimento das classes médias urbanas, ao lado de uma insipiente integração da

população mais pobre ao mercado de trabalho. No plano das decisões políticas os

compromissos pelo alto e o desenraizamento dos intelectuais com relação à

sociedade repetiram as experiências da ditadura anterior e as camadas pobres da

população continuaram vivendo sob o signo da exclusão política e econômica.198

198 DECCA, Edgar S. Os intelectuais e a redemocratização no Brasil. In: KOHUT, Karl. Palavra epoder: os intelectuais na sociedade brasileira. Frankfurt am Main: Vervuert, 1991. p. 47.

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Por outro lado, a maior procura de parcelas médias urbanas à cultura e ao

ensino superior público ou privado levou, a partir dos anos 1950, o Estado a

dispensar maiores recursos às universidades, aumentando sua estrutura, atendendo

a demanda por novas profissões e criando organismos voltados ao desenvolvimento

científico e cultural. Nessa época, foram criadas a CAPES (Coordenadoria de

Aperfeiçoamento e Pesquisa no Ensino Superior), o CNPq (Conselho Nacional de

Pesquisa) em âmbito federal e no Estado de São Paulo, por exemplo, o governo

criou a FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), todos

órgãos de apoio à pesquisa e ao ensino universitário. Essa dinâmica gerou uma

alteração na formação de novos quadros intelectuais, isso porque, embora as

universidades brasileiras tenham tido tal desenvolvimento a partir da atuação estatal,

pela primeira vez os intelectuais começaram a exigir autonomia e independência do

saber e da cultura. Uma comunidade propriamente universitária começou a se

estruturar e os intelectuais passaram a se distanciar progressivamente da tutela

política do Estado.199

É em meio a essas transformações em curso que Sérgio Buarque

assumirá o cargo de diretor do Museu Paulista, a cadeira de História Econômica na

Escola Livre de Sociologia e Política, entre 1947 e 1955 e mais tarde a cadeira de

História do Brasil na Universidade de São Paulo, a partir de 1956 até se aposentar

em 1969. Por essas lentes é que o historiador viu na universidade uma instituição

suficientemente autônoma e menos suscetível a instabilidades políticas - por isso

mesmo um lugar capaz de dar continuidade a projetos culturais esboçados desde os

anos 1930 no Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo.200

Mas até que a autonomia viesse, sua indicação ao cargo de diretor do

Museu Paulista não se deu apenas por vias curriculares. Assim como nos trabalhos

anteriores, o retorno de Sérgio Buarque a São Paulo esteve cercado de conjunturas

políticas e foi determinado por uma rede pessoal bastante sólida. Sua investidura no

cargo, dessa forma, coincidiu com a intervenção estatal de José Carlos Macedo

Soares e com a aposentadoria por idade do antigo diretor do museu, Afonso

d’Escragnolle Taunay, em dezembro de 1945. Taunay, que no passado havia aberto

199 Idem, pp. 47-48.200 NICODEMO, Thiago Lima. Sergio Buarque de Holanda e a dinâmica das instituições culturais noBrasil 1930-1960. In: MARRAS, Stelio (org). Atualidade de Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo:EdUSP; IEB, 2012. pp.126-127.

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as portas da crítica literária ao jovem Sérgio, agora lhe deixava às voltas nos

inúmeros corredores do palacete do Ipiranga.201

A respeito desse episódio há um importante registro. Trata-se de um texto

datilografado em quatro laudas, sem indicações de local ou data, de folhas

amareladas e com breves rabiscos à caneta nas cores vermelha, preta e azul, que

corrigiam concordâncias de uma ou outra frase. Anexado a ele um pequeno pedaço

de papel branco, recortado em forma quadrada, datilografado e assinado em azul:

"Rio, abril, 1988". A leitura desse documento leva a crer que se tratava de

homenagem feita por colegas da Faculdade de Filosofia da USP, quando do

ingresso de Sérgio Buarque como docente, em 1958 e, se a memória de sua viúva

estiver mesmo correta, ele foi redigido pelo professor Cruz Costa. Tal como exposto

por Maria Amélia: "Tenho a impressão que estas palavras foram do professor Cruz

Costa, catedrático de filosofia e grande amigo”.202

Revelando por meio de lembranças, imagens de uma longeva relação de

amizade, Cruz Costa nos oferece algumas pistas das redes que trouxeram de volta

o amigo às terras que tão bem conhecia e à direção do Museu, símbolo de sua

gente:

(…) Sérgio vivia na Corte, onde se passam grandes cousas e não desejaria,por certo, transferir-se para a província, para uma faculdade tão estranhaaos hábitos nacionais. Nossa escola, àquela altura já contasse com nomesilustres no seu corpo docente, só produzira os famosos “chato-boys” de quefalava o saudoso Oswald as já referidas “relíquias"…Por isso, não lhe faleiuma vez sequer (…) sobre a Faculdade de Filosofia. Mas a ideia de contarcom ele, um dia, para honra nossa, como professor em São Paulo, não melargava. Lembro-me de o haver acompanhado, no intervalo de uma dassessões do Congresso, realizada no Centro do Professorado Paulista, navisita em que ele fez à casa em que nasceu, à rua de S. Joaquim. E,enquanto Sérgio Buarque examinava o casarão, eu cá com os meus botõesdizia: “este Hollanda paulista ainda para cá há de vir!”. Não sei ao certo,quem o trouxe de volta, a essas terras cuja história ele tão bem conhece.Creio que foram os Drs. Afonso de Taunay e Macedo Soares e que tambémnisso andou o dedo do nosso amigo Dr. Fernando de Azevedo. Pois bemhajam por isso.203

201 O primeiro artigo de Sérgio Buarque, "Originalidade Literária” foi publicado no jornal "CorreioPaulistano", quando o autor tinha 18 anos. Afonso Taunay, amigo de seu pai, foi responsável porindicar o texto à publicação. 202 Fundo Sérgio Buarque de Holanda. SIARQ/UNICAMP. Série Vida Pessoal. Documento VP 180.Esse documento também foi usado por Gisele Languardia Valente em sua tese de doutoradointitulada As missões culturais de Sérgio Buarque de Holanda, defendida em 2009, na Unirio, áreade Memória Social. Todavia, a autora atribui a esse documento o caráter de epístola, o que discordo.Ele é na verdade um texto escrito para ser lido em cerimônia específica. Tanto é, que no catálogo doFundo Sérgio Buarque, ele não consta na série Correspondências. 203 Idem.

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Todavia, a versão que consta no bilhete anexo é um pouco diferente. Em

vez de Afonso Taunay e Fernando Azevedo, ele nos informa que quem intercedeu

com o governo do estado, pelo cargo, teria sido Paulo Duarte. Desdizendo o titular

do texto, rememorava a viúva: “Um esclarecimento: quando Sérgio soube que a

direção do Museu Paulista estava vaga, foi ao Paulo Duarte que ele telefonou,

sugerindo que lembrasse seu nome ao governador Macedo Soares".204

Independentemente de quem tenha sido o homem-ponte, o fato é que o

nome de Sérgio circulou nas altas esferas do poder, responsáveis pelas nomeações

de cargos públicos. Ao telefonar ao amigo Paulo Duarte para que intercedesse por

ele junto ao interventor, Sérgio demostrava sua ambição em assumir o Museu num

contexto de rearranjos intelectuais, favorecendo-se de sua sólida rede de relações

constituídas há muito, desde os tempos modernistas.

É provável que a nomeação de Sérgio Buarque como diretor do MP se

insira dentro de uma rearticulação da rede intelectual paulista propiciada pelo fim do

Estado Novo. Ligada ao antigo Departamento Municipal de Cultura, sob os auspícios

do prefeito Fábio Prado, a rede fora desmembrada por pelo menos dois motivos: a

instauração da ditadura, a partir de novembro de 1937, e pela ascensão de Prestes

Maia à prefeitura no ano seguinte. Com isso, intelectuais como Mário de Andrade e

Rubens Borba de Moraes foram obrigados a deixar a cidade, se dirigindo à capital

do país. Nessa rota de fuga Rubens formou ao lado de Sérgio algumas parcerias de

trabalho institucional, enquanto Mário de Andrade foi, como revela Eduardo Jardim

em estudo sobre seus últimos anos de vida, morrendo aos poucos.205

Além deles, não se poderia deixar de mencionar a figura do jornalista

Paulo Duarte como um dos articuladores da política cultural em São Paulo. Duarte

circulava com desenvoltura entre a elite dirigente e teve papel definitivo desde a

204 Ibidem. José Carlos de Macedo Soares era um político influente, não apenas em São Paulo.Presidiu a Academia Brasileira de Letras, entre 1942 e 1944 e foi partidário de Getúlio Vargas desdea “revolução” de 1930. Em 1932 desempenhou missões diplomáticas na Europa e no ano seguinteelegeu-se deputado federal constituinte por seu estado. Em 1934, participou da articulação queconduziu o civil Armando Salles de Oliveira ao cargo de interventor do Estado, serenando um poucoos ânimos da resistência paulista. Com a queda de Vargas e a posse do presidente do SupremoTribunal Federal, José Linhares, em outubro de 1945, Soares é indicado interventor federal em SãoPaulo, permanecendo no cargo até março de 1948, quando assume Adhemar de Barros, eleitomeses antes. Encerrou sua trajetória política novamente no Ministério das Relações Exteriores,convidado pelo interino Nereu Ramos, permanecendo até 1958, dessa vez sob a égide de JuscelinoKubitscheck. Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro pós 1930. 2ª ed. Rio de Jeneiro: EditoraFGV, 2001. 205 JARDIM, Eduardo. Mário de Andrade: a morte do poeta. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,2005. Vale lembrar que Mário de Andrade morre em 25 de fevereiro de 1945, logo após aconcretização do I Congresso Brasileiro de Escritores, organizado pela ABDE.

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materialização da Universidade de São Paulo e da Escola Livre de Sociologia e

Política, antes de ter sido exilado com o golpe de 1937. Desse modo, não restaria

surpresa alguma se fosse de fato o jornalista, após o seu retorno ao Brasil em fins

de 1945, o responsável pela indicação de Sérgio Buarque, já que conhecia Macedo

Soares pelo menos desde a Revolução de 1924206, deixando, assim, as lembranças

de Maria Amélia bastante plausíveis.

Sérgio Buarque de Holanda foi nomeado por decreto em 25 de janeiro de

1946, mas somente assumiu a direção do Museu em 7 de março. A sua

administração tinha como foco a construção de um museu histórico, criando

condições para a consolidação do campo intelectual caracterizado pela

especialização acadêmica nas suas áreas de atuação; o que fez, por meio da

criação e circulação de periódicos acadêmicos, com a constituição e o

enriquecimento de acervos, com a realização de viagens e expedições e com o

intercâmbio no plano nacional e internacional. Mas não só. O novo diretor também

teve a preocupação de qualificar e aumentar a quantidade de visitantes do museu,

direcionando parte de suas ações no campo de instrução educacional, como

podemos ver, por exemplo, na contratação de guias especializados, na elaboração

de “folheto ou folhas avulsas, resenhas explicativas do material mais importante" e

no aumento dos dias da semana em que o museu deveria ficar aberto. Para tanto,

promoveu uma ampla reforma estrutural na instituição, tão logo a assumiu.207

Antes, contudo, Sérgio salientou os aspectos positivos dos tempos de

Afonso Taunay e a sua virtude em concentrar esforços para o fortalecimento do

campo histórico. Sob “a administração deste ilustre administrador e em particular

durante a presidência de Washington Luís (1920-1924), em que se celebrou o

centenário da Independência", firmou-se positivamente uma orientação visando "ao

maior desenvolvimento da seção de história". Ainda nesse período presidencial

criou-se o "Museu Republicano, Convenção de Itu”, anexado à referida seção. O

Museu Paulista encerrava definitivamente a sua fase inicial quando era

exclusivamente voltado ao acervo de história natural, sobretudo zoológico, na qual

esteve "à testa o naturalista Hermann Von Inhering".208

206 NICODEMO, op.cit, pp. 114-115. 207 Idem, p. 116; VALENTE, Gisele Laguardia. As missões culturais de Sérgio Buarque deHolanda. 2009. Tese de doutorado em Memória Social, Universidade Federal do Estado do Rio deJaneiro; Relatórios de Direção do Museu Paulista 1946 - 1956. 208 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Museu Paulista. In: COSTA, Marcos (org). Escritos coligidos:Livro II, 1950-1979. São Paulo. Unesp; Perseu Abramo, 2011. p. 165. Artigo originalmente publicado

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Segundo Sérgio Buarque, o projeto de reforma que “elaboramos em

esboço ao sr. interventor Macedo Soares e por ele aprovado", previa não apenas a

criação de quatro seções técnico-científicas – a) História do Brasil, especialmente de

São Paulo, tendo como anexo o Museu de Itu; b) de Etnologia; c) de Numismática e

Medalhística; d) de Documentação Linguística –, como ainda as seções de

Biblioteca, Arquivo e Publicações. Previa-se do mesmo modo, segundo o diretor, o

ingresso no estabelecimento de técnicos especializados em cada disciplina

representada na instituição. E expunha que o problema com a falta de técnicos

especializados já vinha de há muito tempo: "Da ausência desses técnicos ressentia-

se, sem dúvida, a administração anterior, e só em parte poderia ser suprida pela

exemplar competência, no domínio da História do Brasil, de meu antecessor na

direção dessa casa".209

Como consequência da reforma aprovada pelo Decreto-Lei n. 16.565, de

27 de dezembro de 1946, efetivou-se a contratação de docentes advindos da Escola

Livre de Sociologia e Política-ELSP para o setor de Etnologia, que passou à

responsabilidade do professor Herbert Baldus e de seu assistente Harold Schultz,

além da retomada da "Revista do Museu Paulista", extinta desde 1939, dos "Anais

do Museu Paulista" e dos "Boletins do Museu Paulista", nova publicação que se veio

juntar aos “Anais”.210 A primeira, passou a concentrar as áreas de etnologia e

antropologia, tendo papel de destaque na consolidação desses campos de pesquisa

no país, enquanto que a segunda, ao lado do "Boletim", se concentrou nos estudos

históricos.211

Assim que voltaram a circular, os periódicos passaram a ser elogiados por

uma série de especialistas, sobretudo do exterior. Ao expor em balanço de gestão,

publicado em 1952, os pareceres favoráveis a essas publicações, Sérgio Buarque

de Holanda não apenas enaltecia a qualidade da equipe de pesquisadores por ele

formada, mas também fortalecia a sua própria imagem como intelectual à frente de

tão importante órgão. Segundo os seus registros:

Da importância da nova série da revista do Museu Paulista de que jáexistem publicados quatro números, falam com eloquência algumas

na Revista do IHGB, Rio de Janeiro, 1952. 209 Idem, p. 166.210 Idem, p. 169. 211 NICODEMO, op.cit., p. 116. A esse respeito consultar: RUBINO, Silvana. Clube de Pesquisadores.A sociedade de Etnologia e Folclore e a Sociedade de Sociologia. In: MICELI, Sérgio. História dasCiências Sociais no Brasil. vol. 2. São Paulo: Editora Sumará; Fapesp, 1995.

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resenhas insertas em publicações estrangeiras. Em longo comentárioimpresso no número 8, de 1950, dos “Studies of Linguistics", o professorGeorg L. Trager, do Instituto do Serviço Exterior do Departamento deEstado norte-americano, diz, por exemplo, que, se for mantido o presentenível, a nova revista há de figurar entre “as melhores existentes atualmente”sobre Etnologia. O professor Martin Gusinde, conhecido antropólogo eatualmente professor da Universidade Católica de Washington, escreve:“Extraordinariamente valiosa pelo conteúdo, bela impressão e claraapresentação, coisas que em geral não se encontram em revistas sul-americanas. (…) E na "Revista de Etnologiae Arqueologia” de Tucumán,Argentina, volume 1, número 2, escreve-se “Creemos que esta nueva serieda la Revista del Museo Paulista se coloca a la cabeza da las publicacionessobre las Ciencias del Hombre que pueden comparárselas”.212

Embora não tivesse deixado marcas tão profundas como a de seu

antecessor Afonso Taunay, que elevou o Museu Paulista a símbolo da

Independência do Brasil213, criando uma narrativa histórica nacional a partir de São

Paulo, Sérgio Buarque foi responsável por muitas das aquisições que nutriram

consideravelmente o acervo da instituição. Pouco antes de partir a Roma, a convite

do Ministério das Relações Exteriores, Sérgio registrou a memória de seus primeiros

anos à frente do Ipiranga. Originalmente publicado na "Revista do Instituto Histórico

e Geográfico Brasileiro", em janeiro de 1952, o texto, além de nos trazer um histórico

do Museu, revelava as intenções e os feitos de seu diretor. Em tom autobiográfico, o

autor nos intera, por exemplo, de uma viagem que procedeu,

(…) afim de adquirir novas e valiosas peças evocativas do nosso passado.Em resultado de viagem que tive a oportunidade de realizar em Cuiabá em1946, foi possível a aquisição, para o estabelecimento, do acervo do antigoMuseu D. José, da capital mato-grossense, especialmente rico em peças daarte religiosa colonial.214

Somados ao depoimento, alguns ofícios encontrados nos arquivos do

Museu Paulista indicam exatamente de que peças se tratavam. No geral, objetos da

cultura material do tempo da colonização do local que incluíam: tear e instrumentos

de fiação e tecelagem doméstica, lampadário, peças sacras, cadeiras, sofás,

castiçais, armas, granadas, sino de bronze, bandeja de prata, peças que

pertenceram a homens públicos do século XIX. Junto havia outras peças, “gratuitas",

212 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Museu Paulista. op.cit, p. 168. 213 Estudo obrigatório sobre essa fase é o de Ana Cláudia Fonseca Brefe, O Museu Paulista: Afonsode Taunay e a memória nacional 1917-1945. São Paulo: Museu Paulista; Unesp, 2005. 214 Idem, p. 167.

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a serem doadas no pacote como instrumentos de suplício de escravos, como

troncos de ferro.215

Outros documentos também indicam que Sérgio Buarque pediu a compra

de livros, pinturas, painéis em azulejos, tapete. Em relação aos livros, admitia que o

"foco da biblioteca do museu era também atender a um público especializado e

divulgar seus estudos", daí constar no relatório assinado em 1947 a compra de mais

de 1150 obras. Solicitou igualmente o aumento de seus vencimentos e das verbas

para o Museu, bem como o rearranjo de servidores.

Em diversos ofícios podemos ler a demanda de: 11 volumes de Émile

Baylard, no valor de Cr$ 700,00 pagos à livraria Freitas e Bastos; 3 painéis de

azulejos de Antônio Luis Gagni, "Visita do Padre Guilherme Pompeu aos seus

grandes currais de Otuguaçu, 1702”, a um custo de Cr$ 3.200,00 e mais 2 painéis

cujos temas são a batalha de dois ituanos bandeirantes e a luta entre bandeirantes

ituanos e índios matogrossenses, por Cr$ 7.000,00; um tapete para a sala da

diretoria no valor de Cr$ 1.535,00 a ser encomendado na casa de móveis Paschoal

Bianch; 3 quadros à óleo do artista Henrique Manzo, representando aspectos da

Igreja e do antigo colégio dos jesuítas em São Paulo, no valor de Cr$ 7.000,00; o

aumento de seus vencimentos e o pagamento de abono de Cr$ 500,00 a que diz ter

direito e solicita elevação do cargo de diretor do padrão N para padrão P; por fim,

pede o aumento de verbas para o MP para investimentos na biblioteca, mostruários

com vidros inquebráveis para exposição de peças valiosas e telefones, tudo com

base no aumento da visitação pública ao Museu.216

Sobre o item relativo aos mostruários, Sérgio é enfático quanto aos

progressos:

Não menos sensíveis foram nesse período os progressos alcançados pelaseção de Numismática. Abrangendo antes da reorganização do Museu,apenas uma sala incompleta, o acervo exposto de moedas e medalhasdistribui-se hoje por cinco salas. Pode-se ter uma base para a avaliaçãodesses progressos considerando que, em princípio de 1947, havia apenas9,90 m2 de mostruários envidraçados e destinados à exposição dessaspeças. Em fins do mesmo ano esse total passava a 34,10 m2, em fins de

215 Ofício de 23 de abril de 1946, enviado por Ernani Lins da Cunha à Sérgio Buarque de Holanda.Fundo Museu Paulista. Arquivo Permanente, Grupo Direção e Administração Série Correspondências(jan-abr). 216 Fundo Museu Paulista, Arquivo Permanente, Grupo Direção e Administração SérieCorrespondências, abril a agosto de 1946. Sobre os painéis de Luiz Gagni, ver o livro de JonasSoares de Souza, Painéis de azulejos do Museu Republicano “Convenção de Itu”. São Paulo:Edusp; Museu Paulista, 2013; Relatório 1947 (MU 6137) Fundo Museu Paulista.

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1948 a 45,10 m2, e em fins de 1949 a 62,76 m2. Assim, num período detrês anos, sextuplicou-se o material exposto.217

Além dos citados objetos, a diretoria também concretizou a vinda do

acervo do Museu da Força Pública do Estado de São Paulo, que resultou em "uma

das mais ricas coleções de armaria do país" e de outras coleções, cujas peças

tratavam-se de porcelanas antigas e cristais brasonados ou monogramados

pertencentes a personalidades históricas.218

O interesse de Sérgio Buarque por aspectos da etnografia, antropologia e

da cultura material coincidem com um período de pesquisas do autor que suscitaram

na publicação de "Monções" (1945) e de diversos estudos publicados em periódicos

especializados, mas praticamente inacessíveis a um grande público, a exemplo de

"Índios e Mamelucos na expansão paulista", anunciado em separata dos "Anais do

Museu Paulista", em 1949. "Caminhos e Fronteiras”, livro que reúne esses textos,

nasceu não apenas da qualidade de seus escritos e interpretações sobre a cultura

material e as suas relações com a expansão paulista a oeste, mas sobretudo pelas

redes de sociabilidade das quais seu autor fazia parte. Coube a Antonio Candido e a

Octávio Tarquínio de Sousa a tarefa de articularem em volume único os estudos que

seriam publicados apenas em 1956. O primeiro deles, numa sessão em homenagem

ao amigo que "acabava de desaparecer", realizada no salão nobre da Faculdade de

Filosofia da Universidade de São Paulo, lembrava a este propósito que,

Nos anos 50, lamentando que (…) notáveis estudos de Sérgio ficassempouco acessíveis, (…) sugeri a um grande amigo dele e meu, OctávioTarquínio de Sousa, que o estimulasse a compor com alguns deles umvolume para a famosa coleção Documentos Brasileiros, que Octávio dirigia.Este falou com José Olympio, que convidou Sérgio, e assim nasceu"Caminhos e Fronteiras" , que forma com “Monções" um par admirável (…)de estudos históricos vinculados pela cultura material e a ocupação doespaço.219

As reformas postas em prática no Museu não eram novidade, tampouco

representavam concepções genuínas de seu diretor, já que antes dele haviam sido

esboçadas por Paulo Duarte e Mário de Andrade nos tempos do Departamento de

Cultura de São Paulo. De modo que a ideia era que ocorresse uma "divisão entre o

217 HOLANDA, O museu…op.cit., 168. 218 Idem, p. 167. 219 CANDIDO, Antonio. Amizade com Sérgio. In: Revista do Brasil. In: BARBOSA, Francisco deAssis (org.). Ano 3, n. 6/87, s/d. Número especial dedicado a Sérgio Buarque de Holanda. Artigos edepoimentos sobre o autor e sua obra. p. 133.

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museu histórico e um museu arqueológico e etnológico". Tanto foi assim, que em

seu último relatório à frente da instituição datado de 14 de janeiro de 1956 e

entregue ao Secretário de Estado dos Negócios da Educação, o historiador defendia

que seria uma evolução no caráter científico do Museu, justamente se houvesse

uma divisão em termos semelhantes, entre museu histórico e museu arqueológico e

etnológico.220

Reproduzindo, "com poucas diferenças", as considerações contidas no

relatório referente ao ano de 1954 e que, "me parecem ainda oportunas, (…) o

museu impõe o seu agrupamento em duas divisões, para facilitar a sua

administração e aumentar sua eficiência”. Conforme o documento:

A divisão de História, que compreenderá as secções de História Paulista,História Brasileira, Numismática, Documentação Histórica e Coleta dematerial, Conservação e Museu Republicano “Convenção de Itu” deverádedicar-se, principalmente, ao estudo da cultura luso-brasileira, mediantepesquisas bibliográficas, ao passo que a divisão de Antropologia, com asseções de Etnologia, Arqueologia, Documentação Linguística, AntropologiaFísica, Folclore e Coleta de Material, procurará elucidar os problemas doÍndio e do caboclo de todo o nosso continente, no passado e no presente,mediante investigações não só em bibliotecas, mas também in loco.221

O relatório referente ao ano de 1954, citado por Sérgio Buarque, havia

sido escrito pelo professor Herbert Baldus que passou a dirigir o Museu tão logo o

chefe ausentou-se para cumprir missão cultural em Roma, a partir de 1953. No

âmbito internacional esse período foi marcado pela ampliação de intercâmbios de

intelectuais brasileiros no pós-guerra e pelo início das operações da Unesco, que

culminaram com um considerável aumento internacional das redes de sociabilidade

criadas por Sérgio Buarque.

Em 1949, por exemplo, segundo alguns registros deixados pelo

historiador, podemos observar que ele viajou por duas vezes à Europa, uma para

participar de missões organizadas pela Unesco e outra, a convite de Fernand

Braudel e Lucien Febvre, para uma conferência na Sorbonne que resultou na

publicação de um artigo na famosa revista "Annales" . Intitulado "Au Brésil colonial:

les civilisations du miel", o texto apareceria reescrito e publicado anos depois como o

capítulo 3 de "Caminhos e Fronteiras", renomeado "A cera e o mel".222 Em 1950220 NICODEMO, op.cit., 117.221 Relatório Anual do ano de 1955 apresentado ao Secretário de Estado dos Negócios daEducação, Vicente de Paula Lima, 14 de jan. 1956. APMP/FMPL 39, p. 26222 NICODEMO, op.cit, p. 118; são desse período as seguintes cartas guardadas por Sérgio Buarque:Cp 94 (Lucien Febvre, enviada de Paris e assinada em 15 de dezembro de 1948); Cp 96 (R. Ricart,

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embarcou para os Estados Unidos, participando em Washington, a convite de Lewis

Hanke, do "I Colóquio Internacional de Estudos Brasileiros”.

Além de poucas cartas que guardou de importantes intelectuais da época,

Sérgio Buarque também deixou algumas lembranças sobre sua segunda viagem aos

Estados Unidos e "Sobre o Colloquium". Antes, contudo, expõe que da primeira vez

em que esteve por lá, em 1941, a capital americana associava-se em sua memória a

um clima de paz: "a paz soberana daquelas extensas alamedas à sombra do

capitólio, que vão buscar na distância das águas do Potomac, em face do Mont

Vermont".223 Dez anos mais tarde, as mesmas imagens emergem em suas

lembranças, agora com certa nostalgia, visto que para Sérgio "nesta nova e breve

visita não vi a necessidade de retificar a antiga impressão”.224

A recordação de Washington que mais lhe marcou, segundo ele próprio

escreveu, foi a de sua suntuosa biblioteca,

… a maior do mundo, diga-se de passagem, para não faltar a nota doamericanismo; Novo Sarapeum, basílica de livros, como já disse um dosgrandes poetas do nosso tempo. A verdade, porém, é que a Library ofCongress, ao lado do Capitólio e a poucos passos da National Gallery, éelemento inseparável da paisagem de Washington e inscreve-seharmoniosamente em seu conjunto urbano. É certo que o silencio estudiosode seus amplos salões e das suas galerias apresenta-nos uma face apenasdessa complexa fisionomia.225

Em seguida justifica que a reunião ocorrida entre 4 e 7 de outubro, a que

foram convidados brasileiros, portugueses, franceses, ingleses, argentinos, norte-

americanos, "todos igualmente interessados em bem conhecer as raízes lusitanas

de nossa cultura e as transformações que sofreram nesse continente", fazia parte

dos festejos comemorativos dos 150 anos da "livraria" (Library of Congress) e

recebeu significativamente o nome de "Colloquium".226

datada de Bourg-La Reine em 6 de março de 1949) e Cp 100 (Ministério das Relações Exteriores doBrasil, enviada do Rio de Janeiro em 31 de janeiro de 1950 e agradecendo a Sérgio pelo trabalhorealizado em missão na Unesco). Fundo SBH, Siarq-Unicamp; HOLANDA, Sérgio Buarque de. Lescivilisations du miel. In: Annales. Économies, Sociétés, Civilisations. 5e année, n. 1, 1950. pp. 78-81;223 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Sobre o Colloquium. In: COSTA, Marcos. Escritos coligidos,op.cit., p. 52. 224 Idem, p. 53. 225 Ibidem.226 Idem. p. 54. Pedro Calmon além de ter sido deputado estadual pela Bahia, entre 1927 e 1937, foiconservador do Museu Histórico Nacional, membro da ABL e do IHGB e catedrático de DireitoPúblico na Universidade do Brasil (atual UFRJ) durante o Estado Novo. No governo Dutra, tornou-sediretor do Instituto de Estudos Portugueses Afrânio Peixoto, no Liceu Literário Português, e foinomeado vice-reitor da Universidade do Brasil. No ano seguinte assumiu a reitoria da instituição,deixando a direção da Faculdade de Direito. Em 1950 assumiu a pasta da Educação e Saúde e

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Os debates que se iniciavam no suntuoso prédio da biblioteca

continuavam, não raramente, nos saguões e bares do hotel Stratford, localizado na

Rua E, reservado especialmente aos partícipes, demonstrando que Sérgio não

largara a sua alma boêmia dos tempos da juventude modernista. Foi em uma

dessas conversas que surgiu a proposta de Pedro Calmon, chefe da delegação

brasileira, que contava ainda com Rodrigo Melo Franco de Andrade, Serafim Silva

Neto, Alice Canabrava e Arthur Cesar Ferreira dos Reis, de se criar um Instituto de

Estudos Luso-Brasileiros, com ênfase nos estudos históricos. Tão logo expôs a

ideia, Pedro Calmon foi advertido pelo português Mendes Correa, que "respondia de

algum modo com outra limitação, acentuando o valor dos trabalhos antropológicos" .

Para além das rivalidades disciplinares, Sérgio explorou uma vertente que lhe foi

característica por toda a vida. A solução para ele deveria abranger, além desses,

outros campos tratados no Colloquium, como Belas-Artes, Linguística, Literatura e

especificamente para o historiador sugeriu que se deveria criar "facilidades maiores

de acesso às fontes de pesquisa", o que proporcionaria resultados "mais

apreciáveis".227

O trabalho apresentado por Sérgio Buarque no evento, "As técnicas rurais

no Brasil durante o século XVIII" imprime bem a marca que lhe foi característica

durante os seus primeiros anos no Museu Paulista. Dessa base surgiram outros

estudos, focados nas relações entre cultura material e expansão geográfica,

publicados na revista "Anhembi" entre 1951 e 1952, sob os títulos de "Algumas

Técnicas Rurais no Brasil Colonial I, II, III" e que corresponde à segunda parte de

"Caminhos e Fronteiras".228

Lembrada com pouca ênfase por seus biógrafos, só recentemente a "fase

italiana” de Sérgio Buarque vem recebendo de alguns pesquisadores certa atenção.

Assim, alguns estudos apontam que essa passagem deve ser vista, antes de tudo,

como parte de um plano maior do estado brasileiro, constituído durante o segundo

governo Vargas (1951-1954) e que visava a difusão da cultura brasileira no exterior,

sobretudo na Europa em reconstrução após a guerra. A ida de Sérgio à Roma, entre

permaneceu no cargo até janeiro de 1951, quando Getúlio Vargas tomou posse na presidência daRepública. Fonte: Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro pós 1930. 2ª ed. Rio de Janeiro: Ed.FGV, 2001. Sobre a específica atuação de Pedro Calmon frente ao Museu Histórico Nacional ver:ABREU, Regina. A Fabricação do imortal: memória, história e estratégias de consagração no Brasil.Rio de Janeiro: Rocco: Lapa, 1996. 227 Ibidem. 228 NICODEMO, op.cit., 118.

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1952 e 1954, se enquadrava, portanto, em um projeto de criação de mais de 15

cátedras de "estudos brasileiros" em universidades de renome na América Latina e

na Europa e se concretizou mediante uma influente rede de sociabilidade, ampliada

ainda mais por ele durante os anos que passou à frente do Museu Paulista.229

Como diretor e ao estabelecer definitivamente sua carreira de historiador,

Sérgio Buarque se aproximou de diversas universidades estrangeiras, disso

resultando os convites que recebeu para participar de congressos e comissões

científicas, muitas delas ligadas à Unesco. Dentre as figuras importantes com quem

se relacionou nessa época está Mário Guimarães, que era o chefe da Divisão

Cultural do Itamaraty e que, em julho de 1951 havia convidado Sérgio Buarque a

integrar uma comissão da Unesco encarregada de elaborar uma "História Científica

e Cultural da Humanidade", dirigida por ninguém menos, que Lucien Febvre. Além

de Sérgio, foram indicados Fernando Azevedo, Miguel Osório de Almeida e Gilberto

Freyre.

Memorialista de si mesmo, Sérgio Buarque não tinha o hábito de

organizar os próprios arquivos como apontam os seus biógrafos, mas fez questão de

deixar à posteridade uma carta, enviada justamente por Lucien Febvre, datada de 15

de dezembro de 1948. É com base nesse documento/monumento que podemos

reconstruir a teia de relações que culminou com o convite que Sérgio recebeu para

se estabelecer na Itália. A carta, datilografada em uma página, continha no alto do

canto esquerdo o timbre da "École Pratique des Hautes Etudes, 6ª sections,

Sciences Economiques et Sociales, Sorbonne", e dirigia-se ao "Monsieur Sérgio

Buarque de Holanda, directeur du Musée di Ipyranga".230

229 Entre os textos estão, HOLANDA, Maria Amélia Buarque Alvim. Apontamentos para aCronologia de Sérgio Buarque de Holanda. s/d, Fundo Sérgio Buarque de Holanda BibliotecaCentral da Unicamp; e o prefácio de Aniello Avella à recente tradução de um artigo do historiadorpublicado na revista italiana "Ausonia", durante o período em que esteve na Itália. A ContribuiçãoItaliana para a Formação do Brasil. Trad. Andréa Guerini; pref. Aniello A. Avella. Florianópolis:NUT/NEIITA/UFSC, 2002. Do mesmo autor encontramos a introdução a uma edição italiana deRaízes do Brasil, publicada em 2000 com apoio da Embaixada Brasileira em Roma, intitulada, “Ilretorno del maestro cordiale” a qual contém uma parte chamada “Il período romano: la riscoperta diun momento decisivo”. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. Radici del Brasile. Firenze: Giunti, 2000.Agradeço ao professor Ettore Finazzi-Agrò a versão desta edição que me foi cedida durante o tempoem que passei em Roma, no primeiro semestre de 2013. Cerca de 40 páginas detalhadas tambémpodem ser lidas na tese de Thiago Lima Nicodemo, Alegoria Moderna: consciência histórica efiguração do passado na crítica literária de Sérgio Buarque de Holanda. 2010. Doutorado em HistóriaSocial, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP. A mesma parte foi publicada nosAnais da ANPUH, sob o título de O itinerários de Sérgio Buarque de Holanda na Itália. Anais doXXVI Simpósio Nacional de História, ANPUH, São Paulo, 2011. 230 Carta enviada por Lucien Febvre. Fundo Sérgio Buarque de Holanda, Siarq-Unicamp, Cp 94 P7.

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Escrita para ser um veículo de comunicação entre duas instituições, a

epístola convidava o diretor a ministrar na Sorbonne, ao longo de um trimestre,

algumas conferências sobre pesquisas "históricas e etnográficas relativas ao Brasil",

matérias nas quais Sérgio era um dos "grandes artesãos". Nas letras de Lucien

Febvre podemos ler:

Nous vous serions reconnaissants de réserver à notre École un trimestred’enseignement. Nous vous prions de bien vouloir nous faire parvenir votreréponse le plus rapidement possible, nous indiquent quand cetenseignement pourraît commencer, avec l’intitule des conférences que vousseriez amené à faire à nos étudiants sur les enquêtes historiques etethnographiques relatives au Brésil, - dont vous avez été l’un des grandsartisans.231

Sabe-se que Sérgio jamais completou a chamada. Contudo, com base

nesse mesmo convite ele pode ausentar-se do país e proferir a palestra já

mencionada, sobre “les civilisations du miel", que mais tarde acabou publicada na

revista “Annales". Ainda segundo o documento, o convite foi feito por indicação de

Fernand Braudel, que já vinha se comunicando com o historiador nos meses

anteriores “e que conhecera durante o período que havia lecionado na recém-

fundada Universidade de São Paulo". Braudel reagia a uma tentativa de

aproximação, pois, em outra carta guardada por Sérgio, o francês agradecia pelo

envio da segunda edição de "Raízes do Brasil", publicada no início de 1948,

comentava uma indicação de pesquisa e o convidava para o congresso de história

da colonização.232

Essas duas cartas são hoje muito mais do que pistas para recompor a

trajetória intelectual de nosso personagem. Sérgio Buarque sabia que tinha em

mãos duas raridades recebidas por ele de dois dos mais importantes intelectuais do

século XX. Não por acaso, essas cartas encontram-se em sequência no catálogo

organizado com os documentos que lhe pertenceram, de modo que não seria

exagero afirmar que, num gesto autobiográfico, Sérgio Buarque decidisse que essa

passagem de sua vida deveria restar para o futuro. Tanto que, na entrevista que

231 Idem. "Nós lhe seremos gratos de reservar à nossa instituição um trimestre de aula. Pedimos aosenhor que nos informe sua resposta o mais rapidamente possível, nos indicando quando o cursopoderia começar, com o título das conferências que o senhor oferecerá aos nossos estudantes sobreos questionamentos históricos e etnográficos relativos ao Brasil – dos quais o senhor é um dosgrandes especialistas”. (Tradução livre do autor). 232 NICODEMO, Thiago Lima. O itinerários de Sérgio Buarque de Holanda na Itália. Anais do XXVISimpósio Nacional de História, ANPUH, São Paulo, 2011. p. 2; Carta manuscrita de Fernand Braudel,Paris, 25 de julho de 1948. Fundo Sérgio Buarque de Holanda, Siarq-Unicamp, Cp 95 P7.

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concedeu ao historiador Richard Graham, a última antes de morrer, se lembrava

assim do episódio: "Oh, Braudel. Encontrei-o várias vezes. Aqui em São Paulo, onde

lecionou por um tempo, e em Paris. De fato, foi graças a uma carta dele e outra de

Lucien Febvre que tive sucesso em conseguir uma licença aqui. Ele é muito

simpático”.233

Por isso, antes de se tornarem publicáveis ou virem a compor arquivos

institucionais abertos à consulta pública, as cartas, documentos/objetos que podem

indicar os atalhos para o pequeno mundo privado, passam por um criterioso

processo de escolha, de seleção, muitas vezes por intermédio de familiares, no caso

dos titulares que já partiram; pelos próprios envolvidos quando vivos ou ainda por

regras arquivísticas específicas provenientes de cada instituição acolhedora. Numa

dinâmica de triagem daquilo que vai ser preservado e do que será apagado,

descartado, conduzindo, assim, à escrita de uma memória que restará para a

posteridade, ato político de construção de si ou do outro, que cabe ao pesquisador

atento decifrar.

Além dessas cartas e de suas memórias, Sérgio Buarque também deixou

registrado em relatório redigido no Museu Paulista os motivos que o levaram a sair

do país por alguns meses. Referente ao ano de 1949, o documento, entregue ao

Secretário da Educação do Estado de São Paulo, Dr. José Moura Rezende, em 30

de janeiro de 1950, continha em um de seus itens as "Viagens ao estrangeiro". Ali é

possível saber que Sérgio Buarque esteve afastado de suas funções entre 15 de

março e 15 de junho de 1949, "em virtude de ato expedido” pelo secretário e

aprovado pelo governador do estado, ficando em seu lugar o chefe da Seção de

História do Museu, o professor Tito Lívio Ferreira. O motivo desse afastamento,

segundo o relatório, foi o convite que recebera do "Diretor da École Pratique des

Hautes Études, de Paris, para dar um curso acerca da história da civilização

brasileira".234

Como sabemos, Sérgio Buarque não aceitou o convite, que segundo ele,

"exigiria maior tempo de preparo e de estada no estrangeiro, mas realizou, contudo,

conferências na Sorbonne, durante o mês de maio, sobre temas relacionados à

233 GRAHAM, Richard. An interview with Sérgio Buarque de Holanda. Hispanic American HistoricalReview (HAHR), Austin, vol. 62, n. 1, fev. 1982. In: MARTINS, Renato (org). Encontros: SérgioBuarque de Holanda. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009. p. 205. 234 Relatório Anual do ano de 1950, apresentado ao Secretário de Estado dos Negócios daEducação, José Moura Resende, 30 de jan. 1950. APMP/FMPL. pp. 1-2.

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história do Brasil".235 Ainda nessa viagem aproveitou para estabelecer "relações

efetivas" de permuta de publicações, de informações e eventualmente de material de

estudo e exposição, com organizações tais como o "Musée des Antiguités

Françaises” e o “Musée de l’ Homme de Paris”, por meio de seus diretores,

respectivamente o Sr. Varagnac e o Sr. Paul Rivet".236 Os contatos serviram,

segundo Sérgio mesmo diz, para apreciar os progressos realizados "nesses

estabelecimentos, especialmente no segundo, com relação à técnica de

conservação e aproveitamento do acervo".237

O relatório também aponta que entre 14 de novembro e 3 de dezembro,

durante suas férias, Sérgio esteve novamente em Paris. Dessa vez a convite da

Unesco para participar da reunião de dois Comitês, um para o Estudo de Contatos

de Civilizações e outro para Traduções de Obras Representativas. As reuniões

ocorreram entre os dias 17 e 28 de novembro, na sede da entidade, na capital

francesa. Além das reuniões, o relatório nos informa que Sérgio Buarque aproveitou

o pouco tempo que tinha para renovar os contatos estabelecidos meses antes entre

o Museu Paulista e instituições correspondentes, "especialmente a ICOM, que se

destina, de modo expresso, a manter o intercâmbio e a colaboração entre os

museus do mundo inteiro sob a direção da organização das Nações Unidas".238

Quem muito provavelmente abriu as portas da Unesco para Sérgio

Buarque foi Lucien Febvre, já que o francês havia participado ativamente das

discussões que efetivaram a entidade desde o seu início, se tornando protagonista

importante da política de desenvolvimento das ciências humanas na Europa, ainda

mais depois da fundação da "VI Seção da École Pratique des Hautes Études", em

1947. A obra de Febvre foi importante, sobretudo, após o término da Segunda

Guerra, marcada pelos totalitarismos, já que seu grupo vinculado à revista

"Annales", procurava seguir uma história relativamente descolada dos paradigmas

235 Idem, p. 2236 Ibidem. 237 Idem.238 Ibidem. O International Council of Museums-ICOM é a maior organização internacional de museuse profissionais de museus dedicada à preservação e divulgação da patrimônio natural e culturalmundial, do presente e do futuro, tangível e intangível. Criado em 1946, o ICOM é uma organizaçãonão-governamental (ONG) que mantém relações formais com a UNESCO e tem estatuto consultivono Conselho Econômico e Social das Nações Unidas. Sendo uma organização sem fins lucrativos, oICOM é sobretudo financiado pelas quotas pagas anualmente pelos seus membros. É igualmenteapoiado por vários organismos governamentais e outros. Uma parte significativa do programa daUNESCO para os museus é implementada pelo ICOM. O ICOM tem sede em Paris, onde se encontraigualmente sediado o Centro de Documentação UNESCO-ICOM. Mais informações no site:http://icom.museum, acessado em 5 de junho de 2014.

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de identidade nacional, valorizando as interações entre blocos civilizacionais em

seus múltiplos aspectos, como o mental e o material, articulando diversas disciplinas

ligadas às humanidades.239

Não seria por acaso, portanto, que uma “nova história mundial” estivesse

nos horizontes da Unesco desde o princípio, projeto que ganhou materialidade com

a sexta Conferência Geral de 1951 e com a elaboração de uma "História Científica e

Cultural da Humanidade" que dela resultou. No ano seguinte, a Conferência

realizada em dezembro confirmou as expectativas, expandindo-as mais tarde com o

"Rencontres Internationales de Gèneve", organizado para o mesmo fim e que contou

com a participação de Sérgio Buarque, já na Itália e com a organização de Lucien

Febvre. Paralelo a esse último, ocorreu em São Paulo, inserido nas comemorações

do IV Centenário da cidade, outra reunião, cujas temáticas eram as relações entre o

Novo Mundo e a Europa.240

O projeto de divulgação cultural brasileiro no exterior proposto por Vargas

e visto nos diversos intercâmbios e participações de intelectuais da casa em projetos

como os mencionados, em suma, a inserção do Brasil como potência internacional,

dependia naquele momento, do desenvolvimento e da industrialização capitaneados

por São Paulo. Nos anos 1950, a cidade passou por um intenso processo de

crescimento industrial e também populacional, disso resultando um

redimensionamento do campo da cultura à nova burguesia resultante desse

crescimento. A essa altura o Museu do Ipiranga já havia se transformado, por

iniciativa de Taunay, em instituição detentora da história pátria, em outros termos, de

uma narrativa do Brasil Nação construída a partir dos elementos de uma história

paulista.

Nesse movimento, a cultura também deveria se modificar em sua

essência, passando a representar e estimular a nova dinâmica social e os novos

padrões de consumo. Daí as comemorações de seu “IV Centenário” encarnarem o

desejo de externar a potência econômica e a capacidade de organização da cidade

e de seus cidadãos. Esse ímpeto foi visto como o momento em que projetos

239 NICODEMO, O itinerário…op.cit., p. 3. 240 Idem. Vale ressaltar, segundo publicação da Unesco, que os encontros foram organizados eidealizados por uma comissão ligada à Conferência Geral da entidade, de 1952, constituída pelosprofessores Lucien Febvre, Gilberto Freyre, Lewis Hanke e Silvio Zavala. Em São Paulo, as reuniõesocorreram entre 16 e 21 de agosto de 1954 e foram organizadas em colaboração com a SociedadePaulista de Escritores e enquadradas nas comemorações do IV Centenário da cidade de São Paulo.El Viejo y el Nuevo Mundo. Sus Relaciones Culturales e Espirituales. Reuniones Inteletuales de SãoPaulo y Rencontres Internationals de Genève, 1954. Paris: Unesco, 1956.

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culturais idealizados nos anos 1920 e 1930 foram encampados por uma nova

agenda ideológica de promoção da hegemonia paulista, viabilizada por meio de

alianças entre o poder público e a indústria emergente241, a exemplo do industrial e

mecenas, Francisco Matarazzo Sobrinho (Cicillo), presidente da Comissão

Organizadora do evento desde 1951.

Durante os preparativos e as efetivas festividades, Sérgio Buarque

encontrava-se em Roma. Contudo, o historiador participou como colaborador da

Exposição Histórica de São Paulo, coordenada por Jaime Cortesão, enviando

documentos sobre a história de São Paulo encontrados nos arquivos italianos, como

consultor da Comissão organizadora, nomeado por Cicillo, desde o início de 1952,

além de ter estreitado laços entre a Embaixada do Brasil na Itália e a Comissão do

IV Centenário. Mas, se por um lado sua participação não foi tão intensa, por outro,

ela serviu para estreitar ainda mais as suas "redes sociais de colaboração

intelectual” ligadas a esse novo contexto de uma cidade em transformação. Em

Roma, por exemplo, temos a informação de que Sérgio Buarque recebeu as visitas

de Yolanda Penteado, esposa de Matarazzo e Paulo Mendes de Almeida, que

estavam a serviço da Comissão.242 Em especial sobre a amiga, Sérgio Buarque

relembra que:

Vi-a poucas vezes em Roma, e em uma das vezes, quando almoçamos noseu hotel, o outro comensal era diretor-geral das Belas Artes, um senhormagro e alourado, com quem me aconselhei sobre a identificação de certodesenho de Morandi, que um amigo comprou na via del Bambino.243

O resultado dessas afinidades eletivas foi que, de volta ao Brasil, Sérgio

Buarque foi nomeado vice-diretor do Museu de Arte Moderna de São Paulo-MAM,

criado por Francisco Matarazzo, em 1948, e responsável pela organização das

Bienais até o início dos anos 1960. 241 NICODEMO, Sérgio Buarque de Holanda…op.cit., pp. 119-120. 242 Idem, p. 120. 243 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Tudo em cor-de-rosa. In: _____. Livro dos prefácios. São Paulo:Companhia das Letras, 1996. p. 423. Ao se referir a "via Del Bambino", na verdade queria dizer "viaDel Babuino", local onde se encontrava a galeria de arte em que Paulo Mendes de Almeida, o amigocitado, havia comprado um desenho do artista italiano Giorgio Morandi (1890-1964). A via delBabuino, forma juntamente com a via del Corso e a via di Ripetta a chamada L’area del Tridente eambas dão acesso à famosa Piazza del Poppolo, local próximo aos jardins e à galeria de arte da VillaBorghese, um dos mais importantes lugares de visitação da capital italiana. Sobre esse assuntopodemos achar informações na carta enviada por Paulo Mendes a Sérgio Buarque em 27 de abril de1953, na qual ele faz um pedido para que Sérgio passasse na Fonderia d’arte Chiurazzi, na via delBabuino, afim de conseguir a declaração de autenticidade de um desenho de Morandi ali comprado.Carta de Paulo Mendes de Almeida a Sérgio Buarque de Holanda, Fundo SBH, Siarq-Unicamp, Cp119.

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Uma vez restabelecido no Brasil, em 1955, Sérgio Buarque retoma suas

atividades no Museu Paulista. No ano seguinte é contratado como professor na

Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Sorocaba, para lecionar História do

Brasil e no fim do mesmo ano transfere seu cargo de diretor de museu para a USP,

assumindo temporariamente no lugar de Alfredo Ellis, que se aposentara devido a

um enfarto, a cadeira de História do Brasil. Essa aproximação do historiador com a

USP não foi eventual, pois, como diretor do MP, considerado "instituição

complementar”, Sérgio Buarque havia estreitado a colaboração com a "instituição

principal”. Nessa política foi nomeado para o Conselho Universitário em 1948, não

sem antes ter participado de bancas examinadoras de concurso de cátedra, como as

de Astrogildo Rodrigues de Mello, em 1946, e de Eduardo d’Oliveira França, em

1951 e das bancas de livre-docência de Alice P. Canabrava e de Odilon Araújo

Grellet, ambas em 1946.244

Sabemos, segundo o relato de Antonio Candido, que Sérgio Buarque foi

convidado para o posto de professor-substituto a convite do amigo e docente de

Política na USP, Lourival Gomes Machado.245 Aceito, o convite foi oficialmente

formalizado pelo professor Eurípides Simões de Paula em 29 de agosto, prevendo o

início das atividades para primeiro de setembro de 1956. Todavia, antes que

assumisse as aulas, Sérgio Buarque teve de resolver problemas burocráticos, que

indicavam a ele “acúmulo de cargos".

Uma série de documentos oficiais da universidade analisados por Rodrigo

Ruiz Sanches revelam a forma como se desenrolou esse imbróglio. Primeiramente,

o pedido de acúmulo de funções foi negado pelo governador do estado, cujo parecer

final indicava a "incompatibilidade de horários". A negativa se deu porque não ficou

claro quais seriam os horários em que Sérgio Buarque lecionaria suas aulas. A fim

de resolver tamanho mal-entendido, o diretor da Faculdade de Filosofia, Ciências e

Letras, professor Eurípides Simões de Paula, encaminha um novo ofício para o

Presidente da Comissão de Acumulações, com os devidos horários do contratado:

Segunda, das 15h às 16h, no 4º ano, curso regular, das 16h às 17h, no 4ºano, Especialização-Orientação/Trabalhos-Seminários; terça, das 16h às19h, no 2º ano diurno, duas aulas e um Seminário, das 19h às 20h30, no 2ºano noturno, duas aulas e um Seminário; sexta, das 14h às 17h, 3º diurno,duas aulas e um Seminário, 20h às 23h, no 3º noturno, duas aulas e um

244 NICODEMO, Sérgio Buarque de Holanda…op.cit., pp. 122-123. 245 CANDIDO, Antonio. Inéditos sobre Literatura Colonial. In: COLÓQUIO DA UERJ, Rio de Janeiro:Imago, 1992.

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Seminário. O Diretor faz lembrar que o horário do interessado no MuseuPaulista é pela manhã.246

Com isso, o parecer final foi revisto e a Comissão responsável pelo caso

decidiu pela legalidade da acumulação. Contudo, considerando que o cargo de

professor-substituto era de tempo integral, Sérgio Buarque teve de pedir

afastamentos do Museu Paulista durante o tempo em que ministrou aquela cadeira

interinamente247.

Essas duas perspectivas, a de uma aproximação não fortuita de Sérgio

com a USP e a outra, de uma personagem às voltas com problemas administrativos

como qualquer outro servidor público, como atentam os autores, atenuam em certa

medida o tom celebrativo com que normalmente essa passagem foi vista por

intelectuais próximos ao historiador. A exemplo da professora Maria Odila Leite da

S. Dias, que foi sua assistente e orientanda, o mesmo episódio é narrado da

seguinte forma:

Em 1956, aos cinquenta e quatro anos e já autor consagrado, SergioBuarque de Holanda deixou a direção do Museu Paulista para assumir acátedra de História do Brasil no Departamento de História da FFLCH. Noapogeu de sua criatividade, trouxe para o meio acadêmico a vibraçãointelectual que acompanhava o seu temperamento alegre e expansivo. Asua chegada coincidiu com os últimos anos antes da ditadura militar,quando a Universidade florescia e as possibilidades se revelavam maistangíveis. Pode-se afirmar que sua passagem pela USP foi um sintoma deamadurecimento da instituição e de abertura nas relações do meiouniversitário com a sociedade. A Universidade estava atenta à vidaintelectual que pulsava fora, interessada em absorver qualidade e capaz depropiciar, acolher e aproveitar o alto nível de um intelectual brasileiro derenome internacional.248

Essa fase de docente na USP foi decisiva na vida acadêmica de Sérgio

Buarque, pois, caso não prestasse o concurso para se efetivar no cargo, seria

demitido. O problema é que o historiador não possuía o título de mestre para que

pudesse concorrer à cátedra. A ideia então foi matricular-se como aluno de

mestrado na Escola Livre de Sociologia e Política, sob orientação do colega Herbert

246 Ofício nº 2638 de 5 de setembro de 1956, Processo 11787/56 folha 6. apud: SANCHES, RodrigoRuiz. Sérgio Buarque de Holanda na USP. In: Revista Sociedade e Estado, volume 26, número 1,Janeiro/Abril, 2011. p. 242. 247 SANCHES, op.cit., p. 243. 248 DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Sérgio Buarque de Holanda na USP. Estudos avançados[online]. 1994, vol. 8, n. 22, p. 269.

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Baldus.249 Vale lembrar que essa escola, a partir de 1933, tinha como projeto

educacional a criação de uma liderança moderna em São Paulo voltada para as

novas responsabilidades do empresariado perante a modernização do Brasil, com o

intuito de substituir as elites tradicionais, formadas no bacharelismo.250

Na própria instituição há um dossiê dos tempos em que Sérgio Buarque

foi aluno. Nele encontramos requerimentos de matrícula, relação das notas por ele

obtidas nas disciplinas em que se inscreveu, ata da sessão de defesa de tese e os

trabalhos por ele entregues. De acordo com essas fontes, Sérgio Buarque teria

efetuado matrículas em agosto de 1956 e em fevereiro de 1957.251

Também constam nesse pequeno acervo os dois exames de língua

estrangeira a que foi submetido, ambos realizados em novembro de 1957. No

primeiro deles, o historiador traduziu um texto em alemão extraído do livro

"Weltgeschichte des Mittelmeerraumes", de Ernest Kornemann. Na ocasião foi

avaliado pelo seu orientador e por Lolita E. Almeida, obtendo a nota A. Na prova de

língua inglesa versou para o português um trecho do artigo "Plural and differencial

acculturation in Trinidad”, de Daniel J. Crowley e obteve nota nove. No que pese a

pequena diferença nos resultados, vale lembrar que Sérgio teve uma maior vivência

com a primeira língua desde jovem, quando morou em Berlim e trabalhou como

jornalista entre 1929 e 1931.

Quanto às demais avaliações, o acadêmico entregou para cada uma das

disciplinas um trabalho escrito, à exceção de História Social do Brasil, a que dedicou

dois textos. Tratava-se de pequenos ensaios, com média de cinco a seis páginas

datilografadas, alguns com a sua assinatura e que versavam sobre temas dos quais

já havia inclusive publicado - caso de “Monções", fruto de anos acumulados de

pesquisas e da parceria que construiu no Museu Paulista com o professor Herbert

Baldus. Em linhas gerais eram estes os assuntos: a) análise da obra "Viagem no

interior do Brasil", do médico, mineralogista e botânico Johann Emanuel Pohl, que

esteve no Brasil no século XIX; b) estudos sobre sociedades indígenas do período

colonial, dentre os quais os Caiapó e os Paiaguá; c) estudos acerca do papel das

249 Para uma história mais detalhada dessa instituição ver: KANTOR, Íris; MACIEL, Débora; SIMÕES,Júlio Assis (org.). A Escola Livre de Sociologia e Política, anos de formação, 1933-1953 :depoimentos. 2. ed. São Paulo: Sociologia e Política, 2009. 250 DECCA, Edgar S. de. Ensaios de nacionalidade: cordialidade, cidadania e desterro na obra deSérgio Buarque de Holanda. Locus: Revista de História, Juiz de Fora, v. 12, n. 1 p. 147. 251 CALDEIRA, João Ricardo de Castro. Sérgio Buarque de Holanda, Mestre em Ciências Sociais. In:Notícia Bibliográfica e História, Campinas, nº 170, jul/set, 1998. p. 228.

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embarcações fluviais empregadas na exploração do sertão brasileiro; d)

considerações sobre a arte pré-histórica; e) história dos contatos entre luso-

brasileiros de São Vicente e os colonos da América Espanhola entre os séculos XVI

e XVIII; f) análise do processo de formação da Vila do Senhor Bom Jesus do Cuiabá

no século XVIII. Segundo Ricardo Caldeira, e com ele concordamos, já que tivemos

acesso a esse material, "são estudos que podem ser qualificados como etno-

históricos" fundamentados, sobretudo, em relatos de viajantes e documentos

escritos diversos.252

Em 4 de julho de 1958 Sérgio Buarque de Holanda obteve o título de

mestre defendendo, o até hoje inédito, "Elementos Formadores da Sociedade

Portuguesa na Época dos Descobrimentos". Meses depois o historiador iniciou o

processo seletivo para a cátedra de História da Civilização Brasileira, que contou

com a apresentação dos documentos e da tese, "Visão do Paraíso", com uma prova

escrita sobre o tema sorteado, "A conquista da paz interna e a conciliação política” e

com a sessão pública de defesa de tese no salão nobre da Faculdade, na rua Maria

Antônia. Por fim, em 14 de novembro de 1958 era decretado o seguinte resultado: "A

vista desses resultados foi o candidato aprovado com distinção e a comissão

julgadora indica-o para a regência efetiva, em regime de tempo integral, da Cadeira

de História da Civilização Brasileira, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da

Universidade de São Paulo".253

Há um certo consenso em afirmar que o ingresso de Sérgio Buarque na

USP coincidiu com o ápice de sua maturidade intelectual e com o início dos anos

1960, era do romantismo revolucionário, período de grandes mudanças nos campos

político, cultural, sexual, dos costumes, juntamente com a emergência da mídia. O

momento também não poderia ser mais propício porque "pela primeira vez os

intelectuais começam a exigir autonomia e independência do saber e da cultura".

Uma comunidade propriamente universitária começa a se estruturar e os intelectuais

passam a se distanciar progressivamente da tutela política do estado.

Assim, até o final dos anos 1960, os intelectuais viriam a se encontrar

com o movimento estudantil e juntos no plano da política se autonomearam porta-

vozes das classes populares, numa dinâmica de crescente esquerdização da

252 Idem, p. 229. Vale ressaltar que todos esses textos apresentados encontram-se ainda inéditos. 253 Ibidem, p. 244.

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universidade e da institucionalização das obras do marxismo no âmbito das ciências

humanas.254

2.1. Da Maria Antônia ao Butantã: a aposentadoria de Sérgio Buarque de Holanda

Institucionalizado através da nomeação assinada por Maria José Villaça

Vessoni, reitora da USP, no dia 3 de dezembro de 1958, e pelo então governador do

estado, Jânio Quadros, em 18 de dezembro do corrente, tendo o nome divulgado no

"Diário Oficial” de 20 de dezembro, Sérgio Buarque deixou, após treze anos de

docência, duas importante contribuições: a coordenação do projeto editorial da

"História Geral da Civilização Brasileira"-HGCB, criado nos mesmos moldes das

coleções "História Geral das Civilizações (1960-1972), dirigida por Maurice Crouzet

e "História Geral das Ciências", de René Taton e a efetivação do Instituto de Estudos

Brasileiros-IEB, em 1962. Ambas as iniciativas podemos inserir dentro do seu

projeto mais amplo de divulgação do conhecimento histórico e que englobava, de

um lado, um público consumidor de história e, de outro, a formação de quadros

docentes para atuar no ensino básico e de pesquisadores.255

Em relação à primeira contribuição, pode-se afirmar que talvez tenha sido

um dos últimos esforços de síntese da história do Brasil, além de ter contribuído

para a consolidação da pesquisa histórica no país, seja na forma como a obra foi

estruturada, na aparição ampla e diversificada dos colaboradores, seja no conteúdo

dessas próprias contribuições. A coleção, lançada ao longo dos 1960, contou com

dois momentos distintos: um primeiro, sob direção de Sérgio Buarque de Holanda

que se estendeu até 1972, quando o autor publica sozinho o volume “Do Império à

República" e um segundo, sob coordenação de Boris Fausto que vai até 1984,

totalizando 11 volumes.

A sua primeira fase foi concomitante ao surgimento dos programas de

pós-graduação e a proliferação de novas universidades públicas, contando com a

atuação sistemática de instituições de fomento à pesquisa na área de humanidades.

No mesmo período da elaboração da HGCB, Sérgio Buarque ampliou ainda mais o

seu campo de estudos, lançando vistas à compreensão dos desdobramentos do

254 DECCA, Os intelectuais…op.cit., p. 48. 255 SANCHES, op.cit., p. 244; NICODEMO, op.cit., pp. 125-126.

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processo de emancipação e formação do estado brasileiro, continuado pelas

pesquisas que orientou na pós-graduação da USP, tais como “O fardo do homem

branco", de Maria Odila Leite da Silva Dias, "Ibicaba, uma experiência pioneira", de

José Sebastião Witter, "Escravidão negra em São Paulo", de Suely Robles Reis de

Queiroz e "A lavoura canavieira em São Paulo", de Maria Teresa Petrone.256

Há duas versões para o envolvimento de Sérgio Buarque de Holanda

com a coleção. A primeira nos mostra que ela se deu a partir do convite de Jean-

Paul Monteil, então diretor da Difusão Europeia do Livro, no ano seguinte a defesa

de "Visão do Paraíso", quando o historiador já era catedrático. Contudo, essa

hipótese foi contestada por dois historiadores em um artigo onde comparam a

"Coleção Brasiliana"257, dirigida por Américo Jacobina Lacombe, com a coleção

dirigida por Sérgio Buarque. A pesquisa no arquivo privado de Lacombe levou

ambos a encontrarem uma carta datada de 28 de outubro de 1957, endereçada a

ele por Rubem Lima, então diretor de produção da Companhia Editora Nacional, na

qual referia-se a uma "nova coleção" de que ele tinha ouvido falar e, ao que tudo

indicava, seria aquela dirigida por Sérgio Buarque. Segundo o documento:

Aproveito a oportunidade para perguntar-lhe se teve ou tem conhecimentode uma História da Civilização Brasileira a ser editada pela DifusãoEuropeia do Livro, sob orientação de Sérgio Buarque de Holanda. Vi com oDr. Aroldo de Azevedo uma carta circular da editora, dando o plano geral daobra e a relação dos colaboradores. Ao que parece trata-se trabalhorelativamente sucinto (…) e de remuneração desvantajosa para os autores($ 225,00 por página datilografada e cessão definitiva de direitos autorais).Em todo o caso gostaria que o senhor nos informasse se teve oportunidadede ler essa carta-circular e nos desse sua opinião a respeito. Talvez fosseinteressante tratarmos de divulgar imediatamente o plano e relação decolaboradores da Grande História do Brasil que o senhor estápreparando.258

256 Sobre a História Geral da Civilização Brasileira ver os seguintes trabalhos: FURTADO, AndréCarlos. As edições do cânone. Da fase Buarqueana na Coleção História Geral da CivilizaçãoBrasileira. 2014. Mestrado em História, Programa de Pós-Graduação em História, UFF, Niterói;VENÂNCIO, Gilselle Martins; FURTADO, André Carlos. Brasiliana e História Geral da CivilizaçãoBrasileira: escrita da história, disputas editoriais e processos de especialização acadêmica (1956-1972). In: Tempo de Argumento. Florianópolis, volume 5, nº 9, a. 2013; NICODEMO, Thiago Lima. Aherança colonial: Sérgio Buarque de Holanda e a História Geral da Civilização Brasileira. I SeminárioBrasileiro sobre Livro e História Editorial. 2004. Rio de Janeiro. Anais. 257 A Brasiliana foi criada em 1931 pela Companhia Editora Nacional, então propriedade de OctallesMarcondes Ferreira, estendendo-se até 1993. Ela se constituiu, segundo Gustavo Sorá, numimportante espaço de difusão da produção intelectual sobre o Brasil. O conjunto de livros organizou-se em duas fases: uma primeira, dirigida por Fernando Azevedo e uma segunda, a partir de 1956,dirigida por Américo J. Lacombe. Maiores detalhes ver: SORÁ, Gustavo. Brasilianas: José Olympio ea gênese do mercado editorial brasileiro. São Paulo: Ed.USP/ Com-Arte, 2010.258 Arquivo Américo Jacobina Lacombe. Fundação Casa de Rui Barbosa. Pasta Correspondência.Direção da Brasiliana. Apud: VENÂNCIO, Gilselle Martins; FURTADO, André Carlos. Brasiliana eHistória Geral da Civilização Brasileira: escrita da história, disputas editoriais e processos de

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Para além de compreender as contingências do debate intelectual em

curso na sociedade brasileira da época ou atentar para a "obscuridade que envolve

a história dos livros", o artigo nos induz a pensar sobre a importância da reescrita da

história. Sem acesso à fonte citada, Nicodemo foi traído por uma interpretação

parcial dessa fase da vida de Sérgio Buarque. Contudo, concluem os autores, como

a missiva de Lima a Lacombe data de 28 de outubro de 1957 e o concurso para o

provimento da cátedra da USP ocorreu em novembro de 1958, se o convite de

Monteil a Buarque se concretizou apenas no ano seguinte à sua defesa de tese,

como expressa a primeira versão, este contato editorial já estava estabelecido antes

da aprovação do autor de "Visão do Paraíso" no concurso. Assim, ele não poderia se

dar no ano seguinte à defesa, ou seja, em 1959, mas no mínimo, um ano antes, em

1957.259

Grosso modo, a série de livros objetivava dar acesso a um público leigo e

a estudantes as recentes pesquisas e análises que se produziam nas universidades

sobre a história do Brasil, seguindo os princípios das duas outras que lhe serviram

de modelo: o da heterogeneidade das áreas dos quais viriam os colaboradores e o

da liberdade de pontos de vista e divergência de interpretação entre os autores

responsáveis, o que garantiria a grandiosidade do conjunto e a pluralidade de

abordagem dos temas.

O assistente de Sérgio Buarque na empreitada foi o colega de

departamento, professor Pedro Moacyr Campos, experiente nessa seara por ter

traduzido do francês a coleção "História Geral das Civilizações". Para Thiago

Nicodemo, isso indicaria qual papel na concepção inicial da coleção que teria um

professor de História Antiga e Medieval como assistente de direção de um texto de

História do Brasil. Em outras palavras, Campos garantiria a legitimidade e a

sensação de continuidade entre o conjunto francês e o brasileiro quanto ao respeito

e às diretrizes gerais, o que explicaria o uso do termo “civilização" na coleção

brasileira.260

especialização acadêmica (1956-1972). In: Tempo de Argumento. Florianópolis, volume 5, nº 9, a.2013. p. 19. 259 Idem, p. 20. Nota 26. 260 NICODEMO, Thiago Lima. A herança colonial: Sérgio Buarque de Holanda e a História Geral daCivilização Brasileira. I Seminário Brasileiro sobre Livro e História Editorial, 2004. Rio de Janeiro.Anais. p. 5.

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A segunda marca deixada por Sérgio Buarque na Universidade de São

Paulo se deu por meio de seu envolvimento direto com a criação do Instituto de

Estudos Brasileiros-IEB, em 1962, cuja pedra fundamental foi a compra da brasiliana

de Yan de Almeida Prado, contabilizada com cerca de 10 mil volumes e através da

qual se organizou um conselho de administração composto por representantes das

áreas de: História da Civilização Brasileira, Geografia do Brasil, Literatura Brasileira,

Antropologia e Etnologia do Brasil, História Econômica Geral e do Brasil, Economia

IV, História da Arquitetura do Brasil e pouco depois, Língua Indígenas. Acerca do

IEB há consenso em afirmar que ele foi idealizado nos moldes dos "area studies

center" , no sentido da busca pela integração de disciplinas em torno do mesmo

objeto - no caso específico, a realidade brasileira. Assim, a organização desse

Instituto fazia parte de uma experiência de colaboração internacional que Sérgio

Buarque adquirira pelo menos desde o início da década de 1940, quando foi pela

primeira vez aos Estados Unidos.261

A criação do IEB se insere em um projeto político institucional de

estreitamento entre as unidades que compunham a USP, pensado a partir de um

espaço físico comum. Os atores políticos diretamente envolvidos na aceleração da

construção do campus universitário foram o governador do estado, Carvalho Pinto, o

reitor da USP, Ulhoa Cintra, e o industrial Cicillo Matarazzo, que já havia inclusive

intermediado, com o governador, o financiamento do estado na compra para o IEB,

da coleção de cerca de 800 documentos de Dom Luís Antônio de Souza Botelho

Mourão e Morgado de Mateus, pertencentes ao Conde de Mongualde.262

Outra preocupação de Sérgio Buarque ao participar da criação do IEB foi

a de abrir espaços, além do magistério, para que jovens universitários, sobretudo os

do curso de história, dispusessem de uma formação voltada também à pesquisa

acadêmica, tanto que o IEB ao longo dos anos adquiriu acervos como os de Mário

de Andrade, Fernando Azevedo, Caio Prado Júnior, entre outros, favorecendo,

assim, um conjunto amplo de pesquisas voltadas à realidade do país nos mais

diferentes campos.

Após 13 anos de atividades ininterruptas na USP, entre aulas,

orientações, publicações e a continuação de suas pesquisas, Sérgio Buarque se

261 NICODEMO, Sérgio Buarque de Holanda…, op.cit., pp. 123-124; CALDEIRA, João Ricardo deCastro. IEB: Origem e Significados. São Paulo: Oficina do Livro Rubens Borba de Moraes/ImprensaOficial do Estado. 2002. 262 Idem; SANCHES, op.cit., p. 252.

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aposenta em 1969, obtendo mais tempo livre para se dedicar a novas pesquisas, a

escrita de alguns prefácios e sobretudo às suas viagens. Em 1973, por exemplo, foi

à Grécia, Turquia, Hungria, Áustria, Alemanha, Holanda, Inglaterra e França. No ano

seguinte parte a Caracas a convite do governo venezuelano para a instalação da

Biblioteca Ayacucho. Em 1976 retorna novamente à Europa. E em 1979 publica seu

último livro, "Tentativas de Mitologia", cuja introdução é um testemunho

autobiográfico de parte de sua trajetória intelectual.

Nessa época também concedeu diversas entrevistas, para falar não

apenas de sua vida, como também da realidade do país. Uma delas, concedida à

"Folha de S. Paulo" em 1977, ao lado de Tarso de Castro e Paulo Duarte, quase lhe

rendeu o enquadramento na Lei de Segurança Nacional. Houve tempo ainda para

participar da vida política, no Centro Brasil Democrático, fundado em 1978 e assinar

o livro de fundação do Partido dos Trabalhadores, em 1980. Em 24 de abril de 1982

deixa a vida para entrar na memória.

2.2. A década de 1970: política e historiografia

Na década de 1970 Sérgio Buarque de Holanda estava aposentado, mas

seu trabalho continuava em andamento; claro que num ritmo menos intenso. Mesmo

com crescentes problemas de saúde, elaborava livros, orientava pesquisas,

participava de bancas, prefaciava publicações de ex-orientandos e colegas, viajava

ao exterior, concedia entrevistas, recebia prêmios e envolvia-se com a vida política

do país.

"Do Império à República" (1972), o segundo tomo da História Geral da

Civilização, "Vale do Paraíba – Velhas Fazendas" (1974), a coletânea "Tentativas de

Mitologia" (1979) e o ensaio "O Atual e o Inatual em Leopold von Ranke" (1979)

compõem alguns dos seus trabalhos publicados nessa fase. Em relação ao livro de

1972, o estava reescrevendo com o intuito de relançá-lo em dois volumes,

denominados "O pássaro e a sombra" e "A fronda pretoriana”. Esses manuscritos,

que continham cerca de 150 páginas datilografadas, compõe "Capítulos de História

do Império”, lançado apenas em 2010.263

263 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Capítulos de História do Império. São Paulo: Companhia dasLetras, 2010. A organização dos manuscritos coube a Fernando Novaes, que é quem escreve a notaintrodutória do livro. Caso semelhante já havia ocorrido com os inéditos de "Capítulos de LiteraturaColonial", publicados em 1992 sob direção do amigo Antonio Candido. Escritos na década de 1950 e

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No Brasil da época, os debates envolvendo diferentes projetos políticos

em oposição à ditadura deixavam de lado modelos revolucionários de outrora,

influenciados pela Revolução Cubana, para restabelecerem o diálogo a partir de

novos referenciais nos campos do discurso democrático, da cidadania e da luta por

direitos. Não obstante, percebermos em vasta produção sociológica do período a

emergência dos chamados “novos atores políticos” ou dos “novos movimentos

sociais”, que faziam da luta cotidiana pela sobrevivência nos cantões do país uma

bandeira muito mais plausível do que aquela dos abstratos modelos utópicos de

sociedade até então em voga.

Com o auxílio de setores progressistas e da Igreja Católica, a dita

sociedade civil se organizou em torno de movimentos de bairro, em oposições

sindicais, em partidos políticos de massa, em movimentos de mulheres, de negros,

de homossexuais e reivindicou tudo o que lhes fosse de direito, a exemplo da

construção de creches e da melhoria do transporte público nas periferias dos centros

urbanos, até mesmo os direitos ao lazer, à liberdade de expressão e às melhores

condições de trabalho pela via das grandes greves.264

com base em pesquisas feitas pelo autor em arquivos italianos, deveriam compor uma publicação daJosé Olympio, chamada "Era do Barroco no Brasil". Há, entretanto, outros manuscritos de Sérgio quepermanecem no "esquecimento". O mais emblemático talvez seja a sua tese de mestrado defendidaem 1958 na Escola de Sociologia e Política, intitulada "Os Elementos Formadores da SociedadePortuguesa na Época dos Descobrimentos", descoberta pelo professor Edgar de Decca no acervoque a família de Sérgio Buarque confiou à Unicamp. Esse documento é muito mais do que um relatoda atmosfera cosmopolita que impulsionou a aventura levada a cabo pelos colonizadoresportugueses. Na avaliação do próprio De Decca, o texto aprofunda, duas décadas depois, temas queSérgio já esboçara em "Raízes de Brasil" pressupondo uma linha de continuidade entre as duasobras, também visível em Visão do Paraíso. KASSAB, Álvaro. Edgar de Decca leva a Lisboa o Brasilque descobriu Portugal. Jornal da Unicamp, edição 232 de 5 a 12 de outubro de 2003. p. 5;NICODEMO, Thiago Lima. Urdidura do vivido: Visão do Paraíso e a obra de Sérgio Buarque deHolanda na década de 1950. São Paulo: EdUSP, 2008. 264 Uma das melhores análises do período foi feita por Eder Sader no livro Quando novospersonagens entraram em cena: experiências, falas e lutas dos trabalhadores da grande São Paulo(1970-1980). 4. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2001. O conceito de “sociedade civil”, cunhado nos anos1970 é problemático, pois sob seu leque encontram-se grupos heterogêneos, divididos em classes,grupos corporativos, associações profissionais, frações ideológicas, instituições e movimentos sociaisque dificilmente convergem para um mesmo programa político. Essa visão obscureceu as íntimasconexões do autoritarismo do regime no tecido social, ao mesmo tempo em que serviu de álibi paramuitos aliados civis do regime serem absolvidos diante da história, pois se colocavam sob o epítetovago de membros da “sociedade civil”. (Marcos Napolitano, 1964: História do Regime MilitarBrasileiro. São Paulo: Contexto, 2014. p. 249). O conceito também foi abordado no calor da hora,exatamente em 1980, por Carlos Nelson Coutinho, que valendo-se de seu vasto conhecimento dosescritos de Antônio Gramsci expõe que, "entre o estado que visa representar o interesse público e osindivíduos atomizados no mundo da produção, surge uma esfera pluralista de organizações, desujeitos coletivos, em luta ou em aliança entre si. Essa esfera intermediária é precisamente a“sociedade civil”, o campo dos aparelhos privados de hegemonia, o espaço da luta pelo consenso,pela direção político-ideológica. (…) Quando surge esse mundo intermediário da “sociedade civil”, equando ele não está totalitariamente subordinado a um estado despótico, podemos dizer que asociedade passou de seu período meramente liberal para um período liberal-democrático".COUTINHO, Carlos Nelson. Os intelectuais e a organização da cultura. In: ______. Cultura e

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Sabemos também que essa década foi marcada pelo processo de

transição entre os "anos de chumbo”, institucionalizados por Emílio Garrastazu

Médici e os de "distensão política", lenta, gradual, iniciada no governo Ernesto

Geisel. Percepção construída durante o mandato do general e consagrada na

memória histórica liberal, em parte com a ajuda da grande imprensa que não cansou

de repetir o quadro explicativo "que colocou o presidente sob a perspectiva de uma

contradição suspensa pelo balanço positivo do saldo final do seu governo para o

processo democrático".265 Em linhas gerais, a agenda de abertura é iniciada apenas

em 1977, seguida da indicação oficial do general João Baptista Figueiredo para a

presidência. Nesse contexto, como afirma Marcos Napolitano,

… a partir de então já com pressão das ruas e do próprio sistema político(nesta ordem), é que a abertura se transforma em um projeto de transiçãodemocrática, ainda que de longo prazo. Havia uma pressão cada vez maiordos movimentos sociais unidos, ocupando de forma crescente a praçapública em torno da democracia, o que sem dúvida era um fator de pressãoa mais sobre as políticas de distensão e abertura no caso brasileiro. Eramfatos novos, imprevistos, que colocavam novas demandas políticas, sociaise econômicas, para as quais a estratégia do governo oferecia poucaresposta além da repressão. A pressão das ruas talvez tenha sido o eloperdido e esquecido entre a tímida distensão de 1974 e a efetiva agenda deabertura em 1978.266

O processo final dessa etapa, a partir de 1982, foi "hegemonizado" pelos

liberais em negociação com os militares. Vantajosa para ambos, ela garantia uma

retirada sem punições às violações dos direitos humanos, via Lei de Anistia e sem

mudanças abruptas do modelo econômico fundamental, sancionado pelas elites, ao

mesmo tempo em que retomavam de maneira gradual as liberdades civis e o jogo

eleitoral, não sem antes colocarem à mesa o tema da “questão democrática”.

Absorvido por diferentes tendências, o conceito de democracia passou a fazer parte

do cardápio de empresários, partidos, imprensa, movimentos sociais e intelectuais.

No caso desses últimos, grupo no qual Sérgio Buarque se encontrava, não havia

consenso.

Alguns aceitavam o status quo imposto pelo governo, "afirmando que a

única opção para a construção da democracia era aceitar os limites e incrementos

da distensão oficial". Outros denunciavam a questão democrática como estratégia

Sociedade no Brasil: ensaios sobre ideias e formas. São Paulo: Expressão Popular, 2011. p. 16. 265 NAPOLITANO, Marcos. 1964: História do Regime Militar Brasileiro. São Paulo: Contexto, 2014. p.229. 266 Idem, p. 234.

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de renovação da hegemonia burguesa. Ou ainda, entendiam que a partir da nova

situação de distensão era preciso conquistar mais espaços e abrir mão da visão

instrumental de democracia, que afligia a esquerda e a direita. Para o bloco das

oposições, começava a se desenhar uma concepção de democracia “participativa”,

que tentava criar uma zona de convergência entre os conceitos elitistas e formais da

democracia liberal e a democratização da sociedade com base na afirmação dos

direitos sociais e da participação efetiva.267

É sensato afirmar que todo esse cenário teve reflexos diretos nas ciências

humanas. O boom de renovação que se efetivou na segunda metade da década de

1970 se deu num momento em que já eram claros os indícios de esgotamento de

algumas análises marxistas e de modelos de revolução como formas privilegiadas

de interpretação do passado. Enquanto a filosofia e a sociologia teciam sérias

críticas ao pensamento estruturalista de Louis Althusser268, sobretudo a partir de São

Paulo e Rio de Janeiro, o campo historiográfico se voltava à discussão do universo

mental e das ideologias presentes nas análises históricas da "realidade brasileira”

produzidas até aquele momento.269

José Roberto do Amaral Lapa, por exemplo, constatava como um dos

traços essenciais dos trabalhos recentes “a ideologia como objeto e não motor do

conhecimento histórico”.270 Outra característica significativa do período trata, no

movimento de expansão dos cursos de Pós-Graduação e especialização em

História, da inserção da disciplina de teoria da história e da própria historiografia

brasileira.271 Nesse sentido, diversos historiadores no período se dedicaram à crítica

historiográfica da chamada geração de 1930, sintetizada pela acusação de uma

“perspectiva aristocratizante de cultura” da parte dos ensaístas intérpretes do Brasil,

como visto em “Ideologia da Cultura Brasileira” de Carlos Guilherme Mota.

267 Ibidem, pp. 234-42. Para uma definição mais precisa desses conceitos no âmbito histórico ver:BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. Trad. Marco Aurélio Nogueira. São Paulo:Brasiliense, 2005. 268 LÖWY, Michel. Notas sobre a recepção crítica ao althusserianismo no Brasil (anos 1960 e 1970).In: BASTOS, Elide Rugai; RIDENTI, Marcelo; ROLLAND, Denis (org.). Intelectuais: sociedade epolítica, Brasil-França. São Paulo: Cortez, 2003. pp. 213-223. 269 Um bom balanço historiográfico pode ser encontrado em: FREITAS, Marcos Cezar de (org.).Historiografia Brasileira em perspectiva. 6. ed. São Paulo: Contexto, 2010. 270 LAPA, José Roberto Amaral A história em questão: historiografia brasileira contemporânea.Petrópolis: Vozes, 1976. p. 191. A importância de Amaral Lapa nesse período foi destacada porRaphael Guilherme Carvalho em artigo recente, intitulado, “A escrita de si de Sérgio Buarque deHolanda nos anos 1970 (Notas para estudo). Tempos Históricos, vol. 19, jan/jun 2015, pp. 80-102. 271 Idem, p. 9.

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A abordagem deste autor deslocava o foco de atenção do campo

econômico para a dimensão ideológica do universo cultural brasileiro, mantendo o

eixo explicativo na definição da estrutura socioeconômica, tal como fora definida

pelos trabalhos da famosa Escola Paulista de Sociologia, na qual atuaram Florestan

Fernandes, Octavio Ianni, Aziz Simão e Fernando Henrique Cardoso.272

A partir de então, várias pesquisas se orientaram nessa direção

"privilegiando o estudo das ideologias constitutivas" tanto dos movimentos sociais do

século XIX, a exemplo da Revolução Praieira, examinada por Isabel Andrade

Marson, quanto do "pensamento social autoritário”, como o de Alberto Torres,

esboçado por Adalberto Marson e "ainda vinculada pelos jornais de grande

circulação", como no caso dos trabalhos de Arnaldo Contier e Maria Helena

Capelato.

No mesmo espírito do tempo, os debates sobre a questão do “lugar das

ideias”, desenrolados a partir do ensaio de Roberto Schwarz sobre a adaptação do

modelo liberal europeu por uma sociedade escravocrata e atrasada como a

brasileira do século XIX, também causaram querelas nos meios acadêmicos. Numa

perspectiva marxista bastante sofisticada, esses trabalhos detiveram-se na

complexidade da análise da ideologia, apontando para sua dimensão instituinte,

mais do que reflexiva.273

O tema "Revolução de Trinta” não passou em branco nessas abordagens

e, na virada para a década de 1980, "O silêncio dos vencidos", de Edgar de Decca,

já apontava para os posteriores desdobramentos conceituais realizados em nossa

historiografia, a partir da incorporação das análises do discurso propostas por Michel

272 De modo geral, a ideia de uma Escola de Sociologia de São Paulo corresponde ao grupo deinvestigadores que trabalhou ligado à cadeira do Professor Florestan Fernandes, na Faculdade deFilosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, desde aproximadamente 1955 até 1969. Vale ressaltarque seu líder negava a existência de tal Escola. EUFRÁSIO, Mário. A Escola de Sociologia e Políticade São Paulo e a Escola Paulista de Sociologia: um curto comentário e um breve depoimento. In:KANTOR, op. cit, p. 118. 273 Desse conjunto podemos citar: MARSON, Isabel. O império do progresso: a revolução Praieiraem Pernambuco. São Paulo: Brasiliense, 1987; Movimento Praieiro - imprensa, ideologia e poderpolítico. São Paulo: Editora Moderna, 1980; MARSON, Adalberto. A ideologia nacionalista emAlberto Torres. São Paulo: Duas Cidades, 1979; CONTIER, Arnaldo. Ideologia e Imprensa em SãoPaulo, 1822-1842: matrizes do vocabulário político e colonial. Petrópolis: Vozez; Campinas/SP:Unicamp, 1979; CAPELATO, Maria Helena. Os arautos do liberalismo. São Paulo: Brasiliense,1989. Sobre debate do “lugar das ideias” ver: Schwarz, Roberto. As ideias fora do lugar. In: Aovencedor as batatas: formas literárias e processo social nos inícios do romance brasileiro. SãoPaulo: Duas Cidades, 1992; FRANCO, Maria Sylvia Carvalho. As ideias estão no lugar. In: Cadernosde Debates, nº 1. São Paulo: Brasiliense, 1976; BRESCIANI, Maria Stella. Liberalismo, ideologia econtrole social: São Paulo (1850-1910) 1976. Tese Doutorado, Programa de Pós-Graduação emHistória Social, USP.

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Foucault e das discussões levantadas por Walter Benjamin em suas teses sobre a

filosofia da história. Questionando a temporalidade que localiza uma profunda

ruptura na história brasileira a partir do fato “Revolução de 30”, o autor procurou

evidenciar como se constituiu o imaginário dessa revolução por meio do

silenciamento do conflito capital/trabalho e da produção do silêncio da classe

operária, no final dos anos 1920, por uma violenta repressão política. Em outras

palavras, o livro analisou a produção do campo discursivo a partir do qual se

estruturou a memória e a historiografia desse evento, possibilitada pela vitória do

discurso do vencedor e da constituição de sua memória particular e excludente

como memória oficiosa e objetiva, ambas, sofisticadas estratégias de dominação

burguesa.274

No decorrer da década de 1980, a escrita da história no Brasil foi marcada

pelo surgimento de novas tendências e por um olhar mais acurado em relação às

fontes. Assim, processos judiciais, imagens, símbolos nacionais, memória, cinema,

diários íntimos, correspondências, cultura material, literatura, etc., em suma, tudo

aquilo produzido ou deixado como rastro, por anônimos ou não, homens e mulheres,

tornaram-se matéria-prima para inéditos estudos, cujo saldo foi bastante positivo.

Influenciadas pela história social inglesa, pela "Nouvelle Histoire", pela micro-história

italiana e pelos seus principais expoentes, como E. P. Thompson, Jacques Le Goff,

Pierre Nora e Carlo Ginzburg, mas também por pensadores como Michel Foucault,

Walter Benjamin, Hannah Arendt e Cornelius Castoriadis, a nossa produção

acadêmica produziu de maneira inovadora um conjunto de pesquisas que versavam

sobre temas como: mentalidades, religiosidade, cotidiano e lazer, mulheres, cultura

urbana e cidades, loucura e instituições de controle, correntes políticas, resistência

escrava, trajetórias individuais e questões raciais.275

274 DECCA, Edgar S. de. O silêncio dos vencidos: memória, história e revolução. 6. ed. São Paulo:Brasiliense, 1994. Para o autor, “a revolucão de 30 como memo ria histórica do vencedor da luta,fazendo parte do exercício de dominac ão, edifica o futuro, ao mesmo tempo que refaz o passado,qualificando tanto os agentes como seu próprio sentido. Toda a história transcorrida até 30 émemorizada pelo vencedor como uma luta entre dois agentes sociais, os revolucionários e aoligarquia”. Decca também chama a atenção para a cronologia criada após esse “fato”. Nessesentido, tudo o que viria antes dele seria denominado “República Velha”, já que “tal revolucãoinaugura o novo”. A historiografia realizaria ainda sobre este “fato” outras polarizações, entre as quaisa mais corrente é a da economia agroexportadora x industrializac ão, aspectos que marcaramprofundamente a produção historiogra fica ao longo do século XX. pp. 108-110.275 Dentre importantes estudos dessa fase podemos citar: "Nem pátria, nem patrão", de FranciscoFoot Hardman (Brasiliense, 1983), "Trem fantasma", também de Hardman (Companhia das Letras,1988), "Do cabaré ao lar. A utopia da cidade disciplinar", de Margareth Rago (Paz e Terra, 1985),"Trabalho, lar e botequim", de Sidney Chalhoub (Brasiliense, 1986), "A vida fora das fábricas", deMaria Auxiliadora Guzzo Decca (Paz e Terra, 1987), "O espelho do mundo – Juquery, a história de

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Com exceção de "Raízes do Brasil", transformado em clássico pela

memória de Antonio Candido que o prefaciou em 1967 e, talvez, "Do Império à

República" de 1972, o restante e volumoso conjunto da obra de Sérgio Buarque

teve, ao que parece, pouco eco nesses acalorados debates sobre a "realidade

brasileira”, a ponto de um amigo seu e estudioso de sua obra confessar que "um dia

ele será apresentado em seu exato valor, passando a exercer influência maior.

Então a nossa historiografia será superior e vai ficar comprovado seu pioneirismo,

seu papel de verdadeiro abridor de caminhos".276

Essas palavras proferidas por Francisco Iglésias foram publicadas

primeiramente nas páginas do jornal "O Estado de S. Paulo" do dia 6 de junho de

1982, portanto, pouco depois da morte do amigo. Elas indicam, além de um devir,

que até a presente data, Sérgio Buarque de Holanda mesmo já reconhecido, não era

unanimidade entre seus pares no meio intelectual. Uma década depois as mesmas

elucubrações reaparecem, dessa vez compondo um conjunto de debates, cujos

temas eram a vida e a obra de Sérgio Buarque de Holanda, realizados na

Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Se tal lamento foi novamente dividido,

agora com os partícipes do Colóquio, é de se supor que as representações do

homenageado e do seu enquadramento no campo disciplinar projetado no passado,

ainda estava, naquela altura, em plena dinâmica de elaboração memorialística.

Feitas essas considerações, a sequência do capítulo tem o propósito de

acompanhar os últimos anos da vida de Sérgio Buarque de Holanda em sua casa e

no Centro Brasil Democrático-CBD, privilegiando a documentação que legou à

posteridade e que compõe parte de seu arquivo pessoal, juntamente com fontes

produzidas pela extinta Divisão de Segurança e Informações do Ministério da Justiça

encontradas no Arquivo Nacional em Brasília. Papéis que, em diálogo, expõem as

suas redes de sociabilidade e a dialética dos anos finais da ditadura brasileira, além

do protagonismo de alguns setores intelectuais nesse processo.

um asilo", de Maria Clementina Pereira Cunha (Paz e Terra, 1986), "Sacralização da Política”, de AlcirLenharo (Papirus, 1988), "Quotidiano e Poder em São Paulo no século XIX", de Maria Odila L. da S.Dias (Brasiliense, 1984), "O diabo e a Terra de Santa Cruz", de Laura de Melo e Souza (Companhiadas Letras, 1986), "Campos da violência: escravos e senhores na Capitania do Rio de Janeiro" (1750-1808), de Silvia H. Lara (Paz e Terra, 1988), "Londres e Paris no século XIX: o espetáculo dapobreza”, de Maria Stella Bresciani (Brasiliense, 1982) e "Onda negra, medo branco. O negro noimaginário das elites no século XIX", de Célia Maria A. Marinho (Paz e Terra, 1987). 276 IGLESIAS, Francisco. Sérgio Buarque de Holanda, historiador. In: Universidade Estadual do Riode Janeiro. Sérgio Buarque de Holanda: 3º Colóquio UERJ. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1992.p. 44.

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2.3. Os ultimos anos de vida: Rua Buri 35, o Centro Brasil Democrático e um pouco do Partido dos Trabalhadores

Mesmo aposentado Sérgio Buarque de Holanda não deixou de ter uma

vida social intensa. Continuou trabalhando e a sua casa na rua Buri 35, no bairro do

Pacaembú, em São Paulo, não raro era o endereço para o qual se deslocavam ex-

alunos, jovens pesquisadores, amigos próximos, amigos dos amigos, amigos dos

filhos e jornalistas em busca de boas entrevistas. Era também um local de muitas

festas e um reduto em que o historiador, quando não estava em viagens, passava

um bocado de tempo ao lado dos filhos e dos netos.277

Numa crônica publicada em 1969 Luís Martins já se referia à

hospitalidade dos Buarque de Holanda e com trocadilhos às obras do anfitrião,

assim se referia a ela:

A casa grande e hospitaleira – “raízes do Brasil” – o portão sempre aberto, aescadinha do jardim que dá uma porção de voltas – “caminhos e fronteiras”– a rede no terraço, enfim o salão cheio de livros, o anfitrião de chinelos, ocafezinho logo oferecido: “visão do Paraíso”. – Dr. Sérgio Buarque de Holanda, é verdade que, na opinião de ManuelBandeira, o senhor é um mestre “verdadeiramente sem par em suageração?”– Nada disso. Eu sou apenas o pai do Chico.278

Anos depois, sobretudo ao nos debruçarmos na vasta produção

acadêmica sobre a vida e a obra de Sérgio Buarque, produzidas nas décadas de

1980 e 1990, encontramos muitas dessas lembranças. Em uma delas, o professor e

crítico literário Antônio Arnoni Prado narrou sua “epopeia" de estudante em fim de

tese.

277 Após a morte de Sérgio Buarque de Holanda e a compra de sua biblioteca pela UniversidadeEstadual de Campinas, em 1983, a casa passou por um longo período de abandono. Em 1992 surgiua ideia de transformá-la em bem público. A proposta inicial era a montagem de um centro depesquisas voltado para professores da rede pública. Esse projeto não saiu do papel. Em 2002, anodo centenário de nascimento de Sérgio Buarque, o casarão foi declarado de utilidade pública pelomunicípio, que previa a construção de uma discoteca. Desde então o local foi alvo de um demoradoprocesso judicial que envolveu a família e Emérita Aparecida Carbone, ex-babá de um dos filhos deSérgio e Maria Amélia. Em 2010 Emétita perdeu o processo por usocapião, a casa foi devolvida àfamília que a repassou à prefeitura por uma indenização de cerca de 450 mil reais, sem correção.Hoje o casarão abriga o Memorial do Ensino Municipal de São Paulo.278 MARTNS, Luís. Crônica, O Estado de S. Paulo, 25/04/1969. Apud: WITTER, José Sebartião.Introdução. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. O Extremo Oeste. São Paulo: Brasiliense: Secretariado Estado da Cultura, 1986. p. 21.

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Em outubro de 1976 visitei Sérgio Buarque de Holanda em sua casa (…). Iaentrevistá-lo para uma tese que então preparava, (…) sobre o modernismoe a Semana de 22. Como seria natural, fui equipado para uma tarefaacadêmica: lápis, muitas fichas e uma relação de questões anotadas nopapel almaço em cujo verso iam resumidos os temas, os autores a as datasrelativas aos acontecimentos do Teatro Municipal de São Paulo. (…) “Nãoescreva nada, rapaz”, foi me dizendo assim que abri a pasta de cartolinapreta que ficava em cima da mesinha diante do sofá ao pé da escada, ondeele estava sentado quando entrei conduzido por dona Maria Amélia (…).“Não vale a pena escrever nada agora, eu ando muito esquecido de tudo…Vamos conversando e eu vou falando do que lembrar…”. Estavaescurecendo, Sérgio usava uma camisa clara, vestia calças de algodão, decujos bolsos ia tirando, à medida que falava, cigarros Gauloise sem filtro,que ascendia um na ponta do outro, sem precisar recorrer aos fósforos. “DoGraça Aranha eu não vou falar, porque esse não foi modernista”, me dissede repente, sem imaginar que com isso liquidava de vez com meu plano detrabalho precariamente escorado numa série de perguntas que eu levaradias organizando (…). Em dez minutos a conversa perdeu o rumo e a coisaferveu. Foram tantos os retratos, as revelações e as anedotas que aindahoje, vinte e oito anos depois, às vezes me surpreendo articulando aquilotudo num relatório que jamais serei capaz de concluir.279

Em outra, o ex-orientando e assistente de Sérgio na USP, o historiador

José Sebastião Witter, nos deixou lembranças entusiastas dos tempos em que

frequentava o saudoso endereço:

Sérgio era, no entanto, sempre um Professor… Dentro da sala de aula, noscorredores da Maria Antônia, nas escadarias do prédio da Velha Reitoria daUSP ou no moderno edifício da Geografia e História (…) ele estava sempreatendendo alguém, ouvindo, falando, ironizando, mas sempre ensinando.Foi pelo menos para mim, um mestre. Também não deixava de sê-lonaquela saudosa sala de estar da rua Buri, onde, sentado no seu sofápredileto, passava horas e horas a nos falar sobre os seus temas preferidosda História, abrindo caminhos para nossas pesquisas.280

Por fim, a crítica literária, historiadora e tradutora Marlyse Mayer, que

tinha em comum com Sérgio também a amizade com Antonio Candido, relata o

clima “alegre e festivo” da casa dos Buarque:

Conheci a alegre casa de Sérgio e de Maria Amélia por ocasião de um deseus aniversários. Com o tempo nos encontraríamos frequentemente, eSérgio até construiu um parentesco um pouco emaranhado a partir deprimos tortos meus e sobrinho dele. Éramos primos, dizia ele, e me lembro

279 PRADO, Antônio Arnoni. Sérgio, Mário e Klaxon: um encontro com Lima Barreto. In: ______.Trincheira, palco e letras: crítica, literatura e utopia no Brasil. São Paulo: Cosac & Naify, 2004. pp.257-258. 280 WITTER, José Sebastião. Sérgio Buarque de Holanda, o professor. In: CALDEIRA, João Ricardode Castro (org.). Perfis Buarqueanos. Ensaios sobre Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo:Imprensa Oficial, 2005. p. 45. O professor Witter faleceu no dia 7 de julho de 2014, aos 81 anos emMogi das Cruzes, onde morava. Para mais informações sobre sua trajetória cito entrevista concedidaao portal da FAPESP e publicada em 2006: http://revistapesquisa.fapesp.br/2006/06/01/uma-vida-na-sala-de-aula/ acessado em 15 de julho de 2014, às 15h 51m.

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quando, radiante, me convidou para a estreia da “neta”, minha “prima”??? a“filha" do Chico, que é Morte e Vida Severina… E tive a sorte de ter podidoir várias vezes conversar com ele no seu escritório da casa da rua Buri,quando começava minhas indagações sobre os primórdios do romancebrasileiro, as primeiras leituras no Brasil, os primeiros livros que chegaramaqui. Sérgio indicou-me o que seria para mim um fundamental livro deaprendizagem, El Libro del Conquistador, de Irving Leonard (…).281

Poderíamos citar mais exemplos.282 No entanto, é importante frisar que

em conjunto esses relatos têm um duplo papel na construção póstuma da

personagem: servem para demonstrar a perenidade do morto e de sua obra, bem

como para atualizar o valor simbólico de vivos e mortos. No caso específico dos

relatos daqueles que conviveram com Sérgio mais de perto, um argumento de

autoridade parece ser acionado na medida em que seus contemporâneos são vistos

como os mais capazes de identificar suas qualidades e os seus defeitos, de modo a

atribuir-lhe a devida importância no campo intelectual.283

Na mesma direção, o historiador português Carlos Maurício afirma que

representamos os outros para dar sentido à sua existência, para conferir sentido ao

mundo, para falar do que somos e do que desejamos ser. Segundo ele, ao

manipular a sua imagem (a do outro) esperamos colher ganhos nos combates em

que estamos envolvidos, para nós ou para nossa concepção de vida. Ganhos que se

podem traduzir no "aumento da autoridade ou de prestígio nos domínios político,

religioso, científico, artístico, profissional, etc.". Em suma, manipulamos a sua

imagem para induzir alterações nos valores e nas práticas sociais, ou, ao invés, para

ajudar a enfrentar "a sua erosão. Inventar o outro, é mostrar/ter poder sobre o outro,

sobre os outros, sobre nós”.284

Além dos netos e filhos, dos estudantes e artistas, o endereço também

recebeu diversos jornalistas, que até lá se deslocavam em busca de boas histórias

ou de opiniões mais severas a respeito das agruras do país. Assim é que em junho

de 1977 Sérgio Buarque recebeu em sua casa um grupo de jornalistas, formado por

Moacir Amâncio, Maria José, Miguel Fontoura e Sérgio Gomes. Juntos estavam os

281 MEYER, Marlyse. No centenário de Sérgio Buarque de Holanda. In: CALDEIRA, João Ricardo deCastro (org.). Perfis Buarqueanos. Ensaios sobre Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo: ImprensaOficial, 2005. pp. 19-20. 282 O último livro de Chico Buarque, "O irmão alemão", lançado em 14 de novembro de 2014, pelaeditora Companhia das Letras, traz algumas lembranças e descrições da casa da rua Buri, dabiblioteca e do jeito que Sérgio Buarque costumava trabalhar quando estava em casa. 283 ABREU, Regina. Entre a nação e a alma: quando os mortos são comemorados. EstudosHistóricos-Dossiê Comemorações, Rio de Janeiro, vol. 7, n. 14, 1994, p. 210. 284 MAURÍCIO, Carlos. A invenção de Oliveira Martins: política, historiografia e Identidade Nacionalno Portugal Contemporâneo (1867-1960). Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2005. p. 12.

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amigos de longa data, Tarso de Castro e Paulo Duarte, este responsável pela

“excursão” ao bairro do Pacaembú.

Não se tratava necessariamente de uma entrevista em moldes

tradicionais, com roteiro prévio e temáticas determinadas, antevendo respostas que

comprovassem a capacidade intelectual dos protagonistas. Sob o título de "Sérgio

Buarque e Paulo Duarte" ou "Os velhos mestres", esse encontro estava muito mais

para uma roda de conversas à mesa de bar, do que qualquer outra coisa,

reafirmando a fama que possuía a rua Buri como " locus de sociabilidade". Tanto é

que, a certa altura, o anfitrião em meio a uma acalorada discussão sobre o papel

atual do jornalista como intelectual, interrompe sua fala a fim de completar os copos

vazios. Transcrito na íntegra, o diálogo, assim foi publicado:

Sérgio - Preciso fazer uma coisinha, passa essa bengala aí. A bengala émeu pai nosso de cada dia nos dias de hoje! Olha, mas tem muito uísqueaqui em baixo ainda? Lá em cima tem à bessa, mas não posso subir.Ontem, tinha uma menina aí, tomaram muito uísque (olha a garrafa). Umrestinho, não tem um restinho. Tarso - (pega apressado outra garrafa, de baixo da mesa) - Não, não, temaqui, tem aqui. Sérgio - Eu tenho medo que acabe, né?(…).285

De maneira geral podemos sugerir que essa conversa se transformou em

uma memória de geração, na medida em que os protagonistas dividiram suas

lembranças e experiências desde o modernismo até as suas críticas à ditadura atual

e aos seus representantes e, até mesmo, quanto a uma expectativa de futuro nada

promissora que se esboçava no país. Por algumas vezes mandatários foram citados

em tom de galhofa, o que gerou mal-estar em segmentos do aparelho de censura. A

resposta do regime aos "ataques" verbais veio na forma de um processo, que foi

encaminhado ao Ministro da Justiça sugerindo o enquadramento de Sérgio Buarque

e Paulo Duarte no artigo 36 da Lei de Segurança Nacional.

A entrevista foi publicada na íntegra no "Folhetim" do jornal "Folha de S.

Paulo" no dia 26 de junho de 1977 e contava com sete páginas de transcrição e

algumas imagens, não apenas de Sérgio e Paulo Duarte, mas também de

personagens por eles retratados, como Mário de Andrade, Oswald de Andrade,

Augusto Meyer, Érico Veríssimo e Filinto Müller. Lida na "Divisão de Segurança e

Informações" e considerada ofensiva, uma cópia do material foi encaminhada no dia

285 Sérgio Buarque e Paulo Duarte. Folha de S. Paulo, São Paulo, 26 de junho de 1977. SuplementoFolhetim, p. 8.

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12 do mês seguinte à José Carlos da Silva de Meira Mattos, responsável pela

assessoria de assuntos sigilosos do Gabinete do Ministro da Justiça. A folha inicial

do processo continha algumas marcas específicas, comuns nesses documentos da

época que atestavam o caráter sigiloso e confidencial das informações correntes,

além de nos apontar um devir, o de que a "Revolução de 64 é irreversível e

consolidará a Democracia no Brasil".286 Quanto à acusação:

O posicionamento dos dois entrevistados é nitidamente contestatório aoregime e ao governo, não sendo poupados ataques, que culminam comofensas diretas ao Titular da Pasta da Justiça e genéricas a deputados,senadores e ao Sr. Presidente da República. A Revolução de 64 possuidispositivo legal apropriado para que não continuem impunes tais ofensasàs autoridades: no entender desta SNI a aplicação do art. 36 da Lei deSegurança Nacional é plenamente cabível no caso.287

A Lei de Segurança que vigorava nessa ocasião era regida pelo Decreto-

Lei 898, de 29 de setembro de 1969, assinado em pleno funcionamento do AI-5.

Caso viessem a ser enquadrados e condenados, Sérgio Buarque e Paulo Duarte

deveriam cumprir a pena de 2 a 6 anos de reclusão, conforme o artigo citado.

Embora hoje pareça absurdo pensarmos que essas acusações pudessem ser

levadas à cabo, não podemos esquecer que na mesma época, quando já se falava

em distensão, o jornalista Vladimir Herzog, então diretor de jornalismo da TV

Cultura, havia sido torturado e em seguida assassinado nas dependências do DOI-

CODI, em São Paulo no dia 25 de outubro de 1975, quando se apresentou

“espontaneamente” para prestar esclarecimentos.

Outro caso emblemático ocorreu em janeiro de 1976, quando o

metalúrgico Manoel Filho também foi assassinado no mesmo DOI-CODI em

circunstâncias semelhantes. Portanto, ao se debruçarem naquilo que foi publicado,

os agentes da Divisão de Segurança e Informação nada mais faziam do que cumprir

a lei e o que previam as suas atribuições dentro da máquina pública, quais eram a

vigília e a censura política a qualquer forma de "subversão ou corrupção ao

sistema”.288

286 Processo GAB nº 100.430, 15/07/1977, Divisão de Segurança e Informação do Ministério daJustiça. Arquivo Nacional, Rio de Janeiro. 287 Idem. 288 A Divisão de Segurança e Informações do MJ foi criada pelo decreto-Lei nº 60.940/67, que alteroua seção de Segurança Nacional. De acordo com o decreto, cabia a essa Divisão, como órgão deassessoramento do ministro de estado e complementar do Conselho de Segurança Nacional,fornecer dados, observações e elementos necessários à formulação do conceito de estratégianacional e do Plano Nacional de Informação; colaborar na preparação dos programas particulares de

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No que se refere às "ofensas e ataques", o documento torna-se relevante

na medida em que sugere a forma como a entrevista foi lida pelos agentes. Anexa

ao processo verificamos que determinadas passagens encontram-se grifadas e

enquadradas. O problema, na ótica dos censores, não era necessariamente as

críticas ao país. Não lhes interessava também saber mais sobre o modernismo ou os

rumos da universidade brasileira, antes o que lhes despertava a ira eram o

"deboche" e a “galhofa” aos seus superiores. Assim, podemos ver assinalas as

seguintes passagens:

Sérgio - Acho que para resolver o “problemas” da USP basta botar oArmando Falcão como reitor (risos). Paulo - Como é?Sérgio - O Armando Falcão como reitor.Gomes - O que seria da USP com o Armando Falcão como Reitor?Paulo - Acho que seria uma indicação digna da Universidade atual (risos). (…)Paulo - Dentro de 10 anos esse país é um país de analfabetos, né? Hoje eleé quase país de analfabetos, não? Porque na realidade é o seguinte: é essegrupo de analfabetos, dessa categoria de homens que aprendem a ler masnão entendem o que lê, é que atualmente se tiram deputados, ossenadores, o presidente da República. Você olha a cara dele, do Falcão,aquela cara cavalar. É uma cara cavalar a do Falcão, né? Mas não é oúnico cavalar que existe. Há cavalares aí por toda a parte, né?.289

Após essa primeira triagem o processo chegou às mãos do assessor de

assuntos sigilosos, José Carlos Silva de Meira Mattos, que redigiu um outro parecer

encaminhado ao chefe de gabinete do ministro. No documento, amenizava as

acusações anteriores e responsabilizava os editores do jornal pelo “descuido" na

publicação da entrevista. Walter Costa Porto, o chefe de gabinete, leu as seguintes

palavras:

A DSI/MJ remete ao Gabinete matéria publicada pelo jornal “FOLHA DESÃO PAULO”, em suplemento denominado “FOLHETIM”, em que sãoentrevistados os Snrs. Sérgio Buarque de Hollanda e Paulo Duarte. Naentrevista é feita uma referência desairosa ao Snr. Ministro da Justiça. É dese notar que no caso parece que a responsabilidade maior cabe aoseditores que transcreveram uma conversa em tom informal com osentrevistados sem termo cuidado de uma revisão. É claro que umcomentário feito em um “bate-papo” descontraído é diferente de umadeclaração feita à imprensa ou em caráter oficial. Parece-nos entretanto quesó o Snr. Ministro poderá julgar a extensão da ofensa sofrida e a

segurança e informação relativos ao MJ e acompanhar a respectiva execução. Essa Divisão só foiextinta no ano de 1990. Fundo: Divisão de Segurança e Informação do Ministério da Justiça:Inventário dos dossiês avulsos da série Movimentos Contestatórios: Equipe de Documentos do PoderExecutivo e Legislativo; ALVES, Marcus Vinícius Pereira. 2. ed. Rio de Janeiro: Arquivo, 2013. p. 10. 289 Processo, GAB…op.cit.

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conveniência de qualquer medida com intuito de repara-la. Brasília, 26 dejulho de 1977.290

O desfecho se deu da seguinte forma: o assessor assinou o texto dando

ciência e o encaminhou ao Ministro Armando Falcão, que no dia 28 de julho decidiu

pelo arquivamento. É bem possível que tenham concluído que o "bate-papo

descontraído", em âmbito privado, não traria grandes prejuízos à imagem já

desgastada do regime, que àquela altura, deveria estar mais preocupado com a

perda de espaço no Congresso Nacional para o MDB, depois das eleições de 1974

e 1976, com a repercussão da morte de Herzog e com a pressão dos movimentos

sociais, sem levar em conta a economia que sempre assustava uma parcela da

“classe média” adepta aos militares. Sérgio Buarque possivelmente nunca soube do

seu “enquadramento" na Lei de Segurança Nacional, por isso mesmo continuou a

receber os amigos em casa e a debater questões políticas do país, tanto que no ano

seguinte fez parte com outros intelectuais da fundação do "Centro Brasil

Democrático” - CBD.

O historiador viajou de São Paulo para o Rio de Janeiro e no dia 29 de

julho, por volta das dez da manhã compareceu, ao lado de outros intelectuais, ao

salão de Convenções IV do Hotel Nacional para lavrarem a ata de fundação da nova

entidade, que mereceu da imprensa paulista uma breve nota:

Com o objetivo básico de realizar estudos e debates sobre os váriosaspectos da vida brasileira (…) será fundado oficialmente hoje o CentroDemocrático Brasileiro, presidido pelo arquiteto Oscar Niemeyer. Durante asolenidade de instalação (…) serão realizadas eleições para os principaiscargos da diretoria do Centro, formada entre outros, por Sérgio Buarque deHolanda, Ênio Silveira e Antônio Houaiss. A entidade terá atuação decaráter nacional, embora sua representatividade maior seja composta porintelectuais do eixo Rio de Janeiro/ São Paulo. Entre os sócios fundadores(…) estão o procurador Hélio Bicudo e o professor Dalmo Dallari.291

Após breve oração de abertura, Oscar Niemeyer agradeceu a presença

de todos e enfatizou a finalidade que os congregava naquele instante, a de

"constituírem uma entidade civil, sem fins lucrativos ou político-partidários e que

seria devotada a colaborar nos esforços comuns de toda a Nação pela sua

redemocratização".292 A presidência da mesa ficou à cargo do professor Antônio

290 Idem. 291 O Estado de S. Paulo, de 29 de julho de 1978. p. 15. 292 Ata da Assembleia Geral de Constituição do Centro Brasil Democrático. D 1/1-9 P 79. DossiêCentro Brasil Democrático. Fundo Sérgio Buarque de Holanda. SIARQ/Unicamp.

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Houaiss. A pedido dos colegas, o presidente realizou a leitura de diversos

telegramas daqueles que não puderam estar presentes, mas que "hipotecavam o

seu plano de apoio e os seus votos de amplo êxito aos trabalhos que ali se iriam

desenrolar". Transcritos em ata, podemos ler as seguintes mensagens:

1) Confirmando minha adesão ao Centro Brasil Democrático peço ilustrepatrício representar-me reunião de amanhã. Abraços, Ruy Barata. 2)Solidarizo-me Centro Brasil Democrático autorizando aposição minhaassinatura manifesto. Josué Guimarães. 3) Peço receber minha adesãoCentro, termos honrosa carta hoje recebida. Muito Grato. Edgar da MataMachado. 4) Na impossibilidade comparecer Assembleia inaugural CBDrazão compromisso eleitoral interior, desejo reiterar total apoio programanossa entidade (…) Romulo Almeida. 5) Razões fortes última hora obrigam-me viajar hoje Brasília. Peço transmitir demais participantes Centro BrasilDemocrático meu grande interesse estar presente essa assembleia e meuentusiasmo integrar tão patriótica iniciativa. Saudação. Roberto SaturninoBraga. 6) Impossibilitado comparecer pessoalmente convenção dia 29 (…)em virtude proximidade data convenção MDB de Minas (…) AdherbalTeixeira Rocha.293

Após a leitura dos telegramas foi a vez da apresentação da Ordem do

Dia, para a qual o presidente pedia aprovação dos presentes. Em ordem podemos

assinalar: 1) Discussão e aprovação dos Estatutos; 2) Resoluções diversas; 3)

Leitura e assinatura da Ata. Houaiss deixou claro aos presentes que após o

encerramento da Assembleia haveria a convocação de uma outra, complementar, a

realizar-se depois de breve intervalo e na qual fossem discutidas e deliberadas

questões como o Regimento Interno da entidade, seu Programa de Trabalho e,

ainda, eleitos e empossados os componentes de seus órgãos efetivos. Após

movimentados debates, a Assembleia aprovara por unanimidade a constituição do

Centro Brasil Democrático, cuja sede provisória localizar-se-ia à Avenida Atlântica,

3.940, apartamento 201, no bairro de Copacabana.294

Retomando a palavra, o Sr. Presidente esclareceu que a Assembleia

seguinte deveria contar com a presença de todos aqueles investidos da condição de

membros do Conselho Deliberativo provisório da entidade. Uma vez instituído, o

CBD passou a contar com as seguintes instâncias: Conselho Consultivo, Conselho

Fiscal, Conselho Diretor e Comissão de Sindicância. Sérgio Buarque de Holanda fez

parte do Conselho Diretor e ao lado de Ênio Silveira se tornou um dos vice-

presidentes. O Secretário Geral era Antônio Houaiss, o tesoureiro Mauro Lins e

293 Idem294 Ibidem

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Silva, os diretores, Audálio Dantas, Dias Gomes, Edmar Bacha, Francisco de

Oliveira, Francisco Pinto e João Saldanha. A presidência coube a Oscar

Niemeyer.295

Ainda na Assembleia, o presidente teve acatado por unanimidade o

pedido de transcrição, em Ata, do manifesto de fundação da sociedade. O

documento já era do conhecimento dos presentes, que dias antes o receberam

juntamente com o convite de convocação para o evento. O discurso defendido

previa uma pluralidade de signatários, que com diferentes convicções políticas e

religiosas tivessem em comum a luta pela democracia no país sob a bandeira da

Declaração Universal dos Direitos Humanos. Pediam também "mudanças profundas

na organização institucional e social do País, a fim de que todos os brasileiros

possam, efetivamente, gozar de liberdade e viver em democracia". Com um tom um

pouco mais enérgico, o manifesto recomendava ainda a libertação das influências

estrangeiras nos campos, cultural, político e econômico e clamava pela reforma

agrária, afirmando que "se apropriem dos frutos da terra os que nela trabalham" ,

mas desde que dentro das leis. 296

Do geral para o específico, o documento previa como prioridades "a

anistia para todos os punidos e perseguidos políticos, a supressão do AI-5 e demais

instrumentos vigentes de abuso de poder", a revogação da atual Lei de Segurança

Nacional, o reconhecimento do direito de opinião e de associação, de reunião de

greve, de organização de partidos políticos e "outros direitos democráticos

ordinários" e por fim a convocação de uma Assembleia Constituinte soberana e

livremente eleita, medidas que "tornarão possível a edificação de uma sociedade

democrática em nosso país".297

No geral, a linguagem política do manifesto resumia o “espírito da época”

ao ressignificar os valores democráticos que, por vias institucionais, trariam consigo

novamente todos os demais direitos e liberdades. Nesse sentido, a Declaração dos

Direitos Humanos utilizada como bandeira possuía um valor simbólico de denúncia

contra as arbitrariedades cometidas pelo estado brasileiro, como as prisões, as

torturas e os desaparecimentos, bem como os princípios embutidos no rótulo

universal de uma "democracia burguesa" ou do que hoje se costuma chamar de

Estado Democrático de Direito. Historicamente, a Declaração dos Direitos Humanos

295 Idem. 296 Ibidem. 297 Idem.

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só teve seu rascunho votado pelas Nações Unidas no contexto do pós-guerra, mais

precisamente em 1948, após "oitenta e três reuniões e quase 170 emendas mais

tarde”. No seu preâmbulo pregava que o desrespeito e o desprezo pelos direitos

humanos têm resultado em atos bárbaros que ofendem a consciência da

humanidade.298

De acordo com a historiadora Lynn Hunt, a Declaração não apenas

reafirmava as noções de direitos individuais do século XVIII, tais como a igualdade

perante a lei, a liberdade de expressão, a liberdade de religião, o direito de participar

do governo, a proteção da propriedade privada e a rejeição da tortura e da punição

cruel, como também proibia expressamente a escravidão e providenciava o sufrágio

universal e igual por votação secreta. Além disso, requeria a liberdade de ir e vir, o

direito a uma nacionalidade, o direito de casar e, com mais controvérsia, o direito à

segurança social; o direito de trabalhar com pagamento igual para trabalho igual,

tendo por base um salário de subsistência; o direito ao descanso e ao lazer; e o

direito à educação, que deveria ser pública nos níveis elementares. Em suma, a

Declaração expressava um conjunto de aspirações em vez de uma realidade

prontamente alcançável. Concebia uma soma de obrigações morais para a

comunidade mundial, mas não tinha nenhum mecanismo de imposição, caso

contrário não teria sido aprovada.299 Assumida, portanto, estrategicamente pelo CBD

num momento de acentuada oposição ao regime, a Declaração Universal dos

Direitos Humanos se tornou um abrigo político capaz de acolher em sua área de

proteção os diferentes projetos partidários do momento, até que a enxurrada

repressiva se interrompesse.

Assim, a ideia de uma entidade autônoma e plural, conforme apontava

seu estatuto, deixava dúvidas e logo nos primeiros encontros, após a fundação, o

Centro se mostrou vulnerável às disputas internas das diferentes correntes político-

partidárias que lhe sustentavam, deixando outros temas na penumbra dos debates.

A cobertura do "Encontro Nacional pela Democracia", cujo tema era "Brasil depois

de novembro"300, feita pelo jornal "O Estado de S. Paulo" nos ajuda a perceber o jogo

298 HUNT, Lynn. A invenção dos Direitos Humanos: uma história. Trad. Rosaura Eichenberg. SãoPaulo: Companhia das Letras, 2009. p. 205. 299 Idem, p. 206. 300 Obviamente o título do encontro refere-se às eleições gerais que ocorreram no dia 15 daquele mêspara mandatos que se estenderiam até 1983. Na ocasião estava em jogo a disputa por 23 vagas aosenado e 420 à Câmara Federal. Foi nessa legislatura que nos anos seguintes se votou a Lei deAnistia e a reforma política que instituiu o pluripartidarismo. Para mais detalhes sobre os resultadosdesse pleito ver o artigo de Márcio Moreira Alves e Artur Baptista, publicado em: Revista Crítica de

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de forças. Na página 3 de sua edição de 12 de dezembro de 1978, podemos ler a

seguinte chamada: "Encontro do Rio revela o desejo de manter MDB unido e

controlado". O conteúdo informava que após três dias de debates promovidos pelo

Centro Brasil Democrático, já era possível registrar duas evidências: uma, relativa ao

empenho das esquerdas em manter unido o MDB e a tentativa de assumir o controle

e a iniciativa de suas ações; a outra, de que essa unidade seria mantida até que se

concretizassem os compromissos de desdobramento de reforma política no rumo de

uma efetiva abertura democrática.301

Apesar da ausência das principais lideranças, o partido foi o tema central

dos debates, questionando-se, contudo, a conclusão contida no relatório final no

sentido de um apelo aos representantes dos diferentes setores da sociedade para

que se filiassem à legenda, "dando-lhe consistência e perenidade". Parlamentares

oposicionistas e representantes liberais negaram, no entanto, que essa posição

tivesse sido acordada, deixando as portas abertas para uma reformulação partidária

no momento oportuno. O questionamento refletia, segundo a nota do jornal, as

nítidas divergências de opinião e pontos de vista expostos na sessão de

encerramento, ocorrida no dia 10. Com claro “cunho liberal”, Raymundo Faoro e

Teotônio Vilela, o único arenista presente, pregaram a conciliação e a luta política

pacífica pela redemocratização dentro das regras vigentes, "das quais discordam,

mas aceitam como ponto de partida para a normalização constitucional e a plenitude

democrática", tom que desagradou os grupos mais à esquerda.302

Do outro lado, pronunciamentos mais “radicais" também desagradaram

setores mais moderados e liberais. Em um deles, o líder sindical Lula, "certamente

feriu a sensibilidade de emedebistas compromissados com setores empresariais e

desgostou os remanescentes trabalhistas, de resto já descontentes com as críticas

feitas no curso dos debates dos dias anteriores".303 Todavia, o discurso mais

polêmico partiu do presidente do Centro, o arquiteto Oscar Niemeyer, que

manifestando suas tendências comunistas deu salvas a Luís Carlos Prestes e a

Carlos Marighela. Segundo o jornal, a fala do "presidente e principal organizador do

Ciências Sociais, nº 3, dez. 1979. 301 O E s t a d o d e S . P a u l o , 1 2 d e d e z e m b r o d e 1 9 7 8 . p . 3 . A c e r v o online:http://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19781212-31823-nac-0003-999-3-not, acessado em 31 dejulho de 2014. Vale ressaltar que para o evento foram convidados 37 pessoas, entre elas, políticos,historiadores, jornalistas, economistas, cientistas sociais e líderes de classe, que debateram questõeseconômicas, políticas, institucionais e sociais, distribuídos em seis painéis.302 Idem. 303 Ibidem

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encontro destoou das conclusões e do sentido que se procurou, no curso dos

debates, dar à reunião”. Ao que tudo indica, ela produziu "evidente constrangimento"

à maioria dos membros da mesa, em especial ao presidente da "Ordem dos

Advogados do Brasil” - OAB e aos senadores Teotônio Vilela, José Richa e Pedro

Simon, situados em posição notoriamente opostas à do arquiteto.

Ao final do encontro, as manifestações dos liberais presentes na sessão

de encerramento transitavam entre irritação e surpresa. Moderados emedebistas

criticaram o que acharam "descortesia" da parte de Niemeyer, enquanto ex-

parlamentares do antigo PTB apontavam para a impossibilidade de qualquer aliança

com setores "radicais". Quanto aos liberais, o que se discutia é se a sua presença

nos debates ajudou a dar probidade a um movimento de tendência radical ou se, ao

contrário, contribuiu para minimizar a radicalização. A conclusão da reportagem não

poderia ser mais enfática quanto à ideia anterior de um “abrigo político”, afirmando

que, "seja como for, sabem que terão de continuar juntos até que se efetivem as

promessas e esperanças de democratização do país".304

Diferentemente da entrevista concedida por Sérgio Buarque e Paulo

Duarte no ano anterior, em que os órgãos de censura atribuíram a um erro de edição

do jornal as "ofensas" ditas por eles em "conversa informal" e publicadas, a

efetivação do Centro Brasil Democrático recebeu por parte da Divisão de Segurança

e Informação-DSI um pouco mais de atenção, na medida em que se tratava de uma

organização política, pública e visivelmente articulada por setores do MDB e por

intelectuais de diferentes segmentos. Desse modo, desde o dia 2 de agosto uma

série de informes protocolados já circulavam por gabinetes do Ministério da Justiça

constituindo um processo, no qual podemos acompanhar todos os passos do Centro

Brasil Democrático.

Dentre os informes contidos no processo, o de número 23, de 17 de

janeiro de 1979, merece atenção. Nele podemos perceber o modo como o "Encontro

Nacional pela Democracia", ocorrido em dezembro, foi inscrito pelos órgãos oficiais.

Primeiramente, o documento apresenta um erro de registro, quando assinala o dia

10 de outubro como data de encerramento do encontro. Sabemos, entretanto, que o

correto é 10 de dezembro conforme matérias publicadas na imprensa. Aos olhos de

quem produziu o relato, todos os participantes eram "esquerdistas" pelo simples fato

de debaterem problemas ligados à democracia. A cobertura da imprensa e o

304 Idem.

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133

Manifesto de Fundação do Centro, todavia, indicam o contrário, já que em torno do

projeto comum de retorno democrático gravitaram tanto liberais quanto comunistas,

como visto na sessão de encerramento.

No mais, o documento nos informa ainda sobre a "razoável cobertura" que

o Encontro recebeu da imprensa, sobretudo a carioca, e cita as conclusões a que

chegaram os participantes após "54 horas" de debates, das quais se destacam os

seguintes tópicos:

- "As eleições de 74, 76 e 78 demonstram que o modelo econômico e socialimplantado em 1964 está falido".

- "O desgaste do fantasma do comunismo é flagrante”.- “O fantasma do comunismo foi o grande derrotado nas eleições de 78, não

acrescentando um voto a mais à ARENA e não privando o MDB de umúnico voto”.

Outras decisões importantes puderam ser constatadas, dentre elas o

"empenho dos esquerdistas em manter a união do MDB contra as tentativas de

implantação do pluripartidarismo, bem como a exigência de que se comprovem, na

prática, as promessas de liberalização do regime".305 Mais à frente, o relato cai numa

contradição na medida em que ameniza o caráter exclusivamente "esquerdista" do

encontro, alegando que os discursos proferidos eram "ponderados e coerentes com

o atual momento" do país, em que pese a pressão das ruas e o rearranjo pelo alto

das principais elites políticas. Dissonante, assim como noticiaram os jornais, foi o

registro do discurso de Oscar Niemeyer, que no encerramento dos trabalhos "teceu

loas a Luis Carlos Prestes e Carlos Marighela, causando certo mal-estar e

constrangimento aos presentes, dentre eles Pedro Simon, Teotônio Vilela e

Raimundo Faoro, que não esconderam seu desagrado diante das palavras do

idealizador do Centro Brasil Democrático".306 Por fim, em tom de respeito, o informe

ressalta a competência de “uma entidade que com apenas três meses (…) já

consegue aglutinar em torno de si segmentos diversos das esquerdas brasileiras,

sendo possível que em pouco tempo (…) se transforme num polo “legal" de

divulgação, em âmbito nacional, de ideias e concepções esquerdistas e

contestatórias em relação ao regime vigente".307

305 Processo GAB nº 100.567, 07/08/1978, Divisão de Segurança e Informação do Ministério daJustiça. Arquivo Nacional, Rio de Janeiro. Informação n. 23/79/DSI/MJ. 306 Idem. 307 Ibidem.

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Doravante, a questão central do processo, que após passar pelo

Ministério da Justiça foi encaminhado à Divisão de Ordem Política e Social-DOPS do

Departamento de Polícia Federal e em seguida arquivado, era saber se o Centro

Brasil Democrático constituía ou não uma entidade "subversiva", cuja finalidade

previa a organização partidária. A conclusão a que chegaram os assessores do

ministro é a de que "não está comprovada a propaganda, a tentativa, nem a

organização de partido de esquerda". Em um dos documentos, datado de 8 de

fevereiro de 1979, o diretor do DOPS, José da Costa Negraes, informava ao ministro

Armando Falcão que mesmo arquivado o processo o CBD continuaria a ser

"acompanhado", isso porque, segundo ele, o atual momento político de abertura

colocado em prática pelo governo não comportaria mais "medidas repressivas".308

Em 6 de março o processo foi arquivado no DOPS e ficou aguardando

"novos fatos para acompanhamento do assunto", o que não demorou mais do que

72 horas para acontecer. Assim, no dia 9 chegava pelas letras da Divisão de

Segurança do Ministério da Justiça um "aditamento" com detalhes das atividades do

CBD desde sua fundação. Esse documento, em linhas gerais, atestava que o

Centro, após "organizar-se legalmente, vinha atuando concretamente segundo seus

objetivos”. Também dava destaque ao jornal "Brasil Democrático", em cuja edição de

novembro, a primeira, diga-se de passagem, trazia textos de "notórios esquerdistas”,

tais como Oscar Niemeyer, Sérgio Buarque de Holanda, Nelson W. Sodré, Antônio

Houaiss, Ênio Silveira, João Saldanha e alguns outros. A tônica dos artigos,

segundo a fonte, era a crítica ao atual regime taxado de "arbitrário, fascista,

repressivo, reacionário e anti-democrático”. Ao final, a Divisão de Segurança e

Informação, órgão responsável pelo informe, não escondia a suas preocupações

sobre os rumos do país, alertando que:

As atividades do Centro Brasil Democrático (CEBRADE), e em vista dosprincípios ideológicos de seus fundadores, dirigentes e filiados, assimtambém a sua estrutura de atuação, significam um perigoso incremento deum movimento ostensivamente subversivo, que dado aos apaixonantesdebates dos temas propiciados pela abertura democrática, tenderá a tomarvulto a curto prazo.309

No que se refere a uma participação mais efetiva de Sérgio Buarque de

Holanda dentro do CBD, as fontes apresentadas não trazem muito mais detalhes do

308 Idem, folha 33. 309 Ibidem, folhas 39 e 40.

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que foi exposto. Não encontramos, por exemplo, registros de que ele tenha feito

pronunciamentos nos dois eventos em que participou no Hotel Nacional ou mesmo

que tenha acrescentado pontos mais específicos ao texto do Manifesto. O que há de

mais direcionado são as poucas fotografias em que Sérgio aparece ao lado de

Oscar Niemeyer, Antônio Houaiss e Ênio Silveira durante a fundação do Centro e o

texto assinado por ele no jornal "Brasil Democrático", conforme citado no processo.

Ao lermos o texto "Conseguirão expulsar o povo?", a conclusão a que chegamos é

que se trata da transcrição de uma entrevista e não propriamente de um texto de

opinião anotado pelo historiador. O parágrafo inicial esclarece qualquer dúvida:

Por que o Centro Brasil Democrático? O historiador Sérgio Buarque deHollanda , 75 anos, tem uma resposta precisa para a criação da entidade.“O Centro objetivou a unir em torno de um programa eminentementedemocrático todas as forças vivas da nação. E é através dessa mobilizaçãoque se bloquearão quaisquer tentativas de um retrocesso político".310

Considerando o momento histórico e o estado de Sérgio Buarque à

época, "já meio tolhido por problemas de saúde", seria mais razoável deduzir que o

seu envolvimento no Centro Brasil Democrático tenha se efetivado muito mais por

afinidades eletivas com o grupo idealizador e por sua presença simbólica no campo

intelectual do que aquilo que foi consolidado em tom superlativo por certa memória

histórica, qual seja, a de que a sua participação foi "um ato de coragem e um

passaporte do intelectual Sérgio para o militante combativo". Atitude que revela a

“singularidade do espírito e ao mesmo tempo a sua grandeza em sendo o maior

historiador brasileiro, ser capaz de atitudes tão carregadas de sentimento, daquilo

que ele era, um homem simples (…)”.311 E se trocássemos o seu nome pelo de outro

integrante do Centro, não teríamos a mesma narrativa? Nesse caso, as noções de

"coragem" ou "grandeza" trazem consigo a ideia de que Sérgio Buarque era

excepcional, "singular" em suas tomadas de posição política, portanto, uma forma de

inscrevê-lo, resultante do trabalho de “enquadramento de lembranças construídas a

seu respeito em um complexo processo de organização da memória levado a cabo

por seus amigos e conhecidos a partir de marcos instituídos por ele próprio".312

310 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Conseguirão expulsar o povo?. In: Brasil Democrático, nº 1,novembro de 1978, p. 3. Em Marcos Costa, op.cit, p. 173 a referência a essa passagem aparececomo publicada em Caderno CBD, 1976. Informação ao meu ver equivocada. 311 CANDIDO, Antonio. Sérgio em Berlim e depois. Novos Estudos Cebrap, vol. 1, n. 3, julho de1982, p. 9; COSTA, Marcos, Biografia histórica…op.cit., pp. 177 e 188. 312 SCHMIDT, Benito Bisso. Nunca houve uma mulher como Gilda? Memória e gênero na construçãode uma mulher “excepcional”. In:______; GOMES, Angela de Castro. (orgs). Memórias e narrativas

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Pouco menos de dois anos após a fundação do CBD, algumas

preocupações apresentadas pelos órgãos do estado faziam sentido. Em 1979, já

sob o governo Figueiredo, houve a dissolução da ARENA e do MDB com retorno ao

pluripartidarismo e, também, a assinatura da Lei de Anistia que possibilitou a volta

ao país de lideranças políticas, intelectuais, artistas, a reintegração ao serviço

público de servidores cassados e a soltura de presos políticos. Terreno fértil,

portanto, para que parte do Centro viesse a apoiar a organização de um novo

partido, de massas e oriundo de setores do movimento operário, dos movimentos

sociais, da ala progressista da igreja e das classes artística e intelectual. Assim, no

dia 10 de fevereiro de 1980, intelectuais ligados ao CBD como Antonio Candido,

Perseu Abramo, Hélio Pelegrino, Hélio Bicudo, Mário Pedrosa, Sérgio Buarque,

entre outros, estiveram presentes no tradicional Colégio Sion, ao lado de outras

lideranças políticas e sindicais, para assinarem a ata de fundação do Partido dos

Trabalhadores - PT.

No caso específico de Sérgio Buarque é sabido que não deixou nenhum

documento formal acerca de sua opção pelo Partido, não publicou qualquer artigo,

nem deu entrevistas sobre o tema; tampouco foram encontradas em seus arquivos

anotações relativas a ele. O que conhecemos foi contado por sua viúva, D. Maria

Amélia, e por amigos próximos que estiveram presentes naquela ocasião ou, ainda,

por algumas fotografias. Logo após a morte de Sérgio em 1982, Antonio Candido,

um de seus principais “inventores”, publicou na revista do CEBRAP um texto

intitulado "Sérgio em Berlim e depois", no qual traça a linha contínua de uma

biografia excepcional em que o “jovem modernista” avant la lettre do passado se

ligava ao “intelectual maduro e combativo” do presente, preocupado com a aflição

dos oprimidos frente ao regime de exceção. Em suas palavras,

Afinal, em 1980 se integrou no processo de constituição do Partido dosTrabalhadores e foi seu membro fundador. No encontro nacionalpreparatório, lá estava ele apoiado à bengala, recebendo com MárioPedrosa, Apolônio de Carvalho e Manuel da Conceição uma apoteose deaplausos, devidos aos que exprimem, cada um a seu modo, a coerência, acontinuidade e a diversidade dos esforços, necessários para aquele tipo deluta que começava. Simbolicamente, era como se houvesse uma ligaçãoprofunda entre a aclamação de agora e aquele texto de 1936, segundo oqual sóa transferência de poder às camadas espoliadas e oprimidas poderiaquebrar o velho Brasil da iniquidade oligárquica.313

(auto)biográficas. Rio de Janeiro: Editora FGV; Porto Alegre: EdUFRGS, 2009. p. 167. 313 CANDIDO, Antonio, Sérgio em Berlim…op.cit. p. 9.

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Nas lembranças de Luiz Dulci, Sérgio "estava lá, no colégio Sion, em 10

de fevereiro de 1980, naquela inesquecível assembleia de líderes operários e

camponeses, de sindicalistas e intelectuais, de padres e artistas, de exilados que

acabavam de regressar ao Brasil e de companheiros recém-saídos da

clandestinidade".314 Sérgio estava lá, ao lado de Lula, de Olívio Dutra, de Manoel da

Conceição, de Apolônio de Carvalho, "de todos nós, vindos dos quatro cantos do

país para fundar o PT”.315 Com um pouco mais de detalhes, afirma Dulci, "recordo-

me de vê-lo à entrada do auditório, naquela confusão fraterna e emocionada, em

palestra com Mário Pedrosa, Antonio Candido e Hélio Pellegrino. Dalí a pouco, uma

das primeiras assinaturas do livro de fundação seria sua".316

Seguindo a linha narrativa do “homem de coragem”, Dulci expõe que

naquela fase inicial de "dramáticos obstáculos organizativos", em que tanto se

combateu à direita e à esquerda a proposta petista, intelectuais como Sérgio

Buarque, Marilena Chauí, Antonio Candido, Paulo Freire, Mário Pedrosa, entre

vários outros, "cumpriram papel decisivo na defesa do PT e do pluralismo político-

ideológico no país. Pondo corajosamente em jogo o seu prestígio, afirmaram não só

o direito do PT a existir como também a importância histórica de sua existência para

os rumos da democracia brasileira. Uma batalha travada em vários campos: o

jurídico, o sociopolítico e o intelectual". Nesse último, afirma Dulci, "a simples

presença de alguém como Sérgio Buarque entre os proponentes do PT já alterava a

qualidade do debate".317

Já D. Maria Amélia, principal memorialista de Sérgio e organizadora de

seus papéis pessoais, recorda que até os últimos dias de vida o marido nunca

deixou de acompanhar "com entusiasmo o noticiário sobre o PT". Lembra-se de sua

indignação com o enquadramento de Lula na Lei de Segurança Nacional em outubro

de 1980. Temia que o episódio fosse utilizado para impedir a legalização do Partido,

para proscrevê-lo.318 Algumas fotos da época ficaram bastante conhecidas ao serem

reproduzidas em diversos livros em que Sérgio Buarque aparece como personagem.

A mais famosa, sem sombra de dúvida, é a que mostra o intelectual em pé apoiado

em sua bengala, enquanto assina o livro de fundação do partido. Em outras,

314 DULCI, Luiz. Sérgio Buarque de Holanda petista. In: CANDIDO, Antonio (org.). Sérgio Buarquede Holanda e o Brasil. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 1998. pp. 89-90. 315 Idem316 Ibidem317 Idem, p. 91. 318 Ibidem.

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podemos vê-lo ao lado de Lélia Abramo, Olívio Dutra, Lula e Jacó Bittar ou de pé em

companhia de Mário Pedrosa e Hélio Pellegrino.

Segundo um dos biógrafos de Sérgio, na ocasião da fundação do Partido

dos Trabalhadores, o historiador, já muito doente, confessou ter medo da morte.

Medo no sentido de não poder acompanhar o “desenrolar de uma nova fase que se

abria na história do país em relação aos seus movimentos sociais, com a fundação

do Partido. Um medo também realista, pois sentia que algo estava por acontecer e a

morte realmente não tardaria para chegar”.319 Em 24 de abril de 1982, morria o

“homem cordial”.

***

Daqui em diante nos interessa problematizar as tramas da memória que

constituíram Sérgio Buarque de Holanda como uma figura excepcional. Para tanto,

elegemos alguns momentos importantes para analisar: 1) os discursos proferidos em

seu velório; 2) o processo de compra de sua biblioteca e a montagem de seu arquivo

pessoal; 3) o evento "Semanas Sérgio Buarque de Holanda"; e, 4) a publicação

"Sérgio Buarque de Holanda: vida e obra". A partir dessas escolhas refletiremos

sobre aquilo que definimos como "estratégias de consagração", em outros termos,

um conjunto de enunciados e sentidos atribuídos por amigos, parentes, instituições e

pelo próprio personagem, que buscaram ao longo dos anos construir e sustentar

uma memória biográfica oficial, tanto no campo historiográfico quanto no campo

político das esquerdas e legado às gerações futuras.

319 COSTA, op.cit., p. 188.

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Capítulo 3

UMA MEMÓRIA PARA AS NOVAS GERAÇÕES

3.1. Morre o “Homem Cordial”

Na manhã do dia 24 de abril Sérgio Buarque havia acordado, descido as

escadas e tomado seu café como de costume. Naquela época, se encontrava

acometido por uma forte pneumonia, agravada por um câncer nos brônquios,

possivelmente resultante dos cigarros que fumara durante toda a vida. Além do

uísque, gostava muito dos cigarros. Não os abandonou em momento algum.

Gostava dos franceses, mas na falta deles os nacionais o saciavam. O próprio

médico que o cuidava admitiu que proibí-lo de fumar seria inútil. O escritor não se

considerava supersticioso, embora não usasse marrom ou fumasse o 13º cigarro do

maço.

Dias antes, Sérgio havia almoçado com alguns amigos. Não imaginava

que seria a última vez que realizara tão simples e prazeroso ato. À mesa reuniram-

se o então líder sindical Luiz Inácio “Lula" da Silva, o deputado estadual Eduardo

Suplicy, Frei Beto e um de seus filhos, o compositor Chico Buarque, responsável

pelo encontro. Conversaram sobre política, possivelmente sobre o protagonismo do

recém-fundado “Partido dos Trabalhadores”- PT nas eleições que estavam por vir,

sobre a Guerra das Malvinas, que havia iniciado recentemente, e outros assuntos.

Em meio às elocubrações sobre os destinos pátrios, eis que surge em tom maior a

voz de Sérgio, sempre "avesso às formalidades”, a cantarolar “Sassaricando”,

conhecida marchinha carnavalesca, com um toque pessoal de sua irreverência: a

cantarolou em latim!

O historiador encontrava-se disposto naquela manhã de sábado e mesmo

com a saúde debilitada trabalhava em seus escritos, ao que parece, três ou quatro

livros já iniciados. Após tomar o café, Sérgio retornou ao quarto e em seguida

informou ao seu enfermeiro que queria se dirigir até o escritório. No curto trajeto o

historiador subitamente cai para trás. Seu coração parou de bater por volta das nove

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e trinta. A imprensa não demoraria mais do que 24 horas para informar que havia

desaparecido o “homem cordial”, rótulo que carregou desde as polêmicas que

envolveram o seu livro de estreia.

Morreu em trânsito entre o quarto de dormir e o escritório, local da

agitação intelectual. Contrariando a lógica de funerais festivos, muito em voga na

capital da República a partir da virada do século XIX para o XX, tais como ocorreram

com literatos e homens públicos, a exemplo de Machado de Assis, em 1908, Afonso

Pena e Euclides da Cunha, em 1909, Joaquim Nabuco, em 1910, o Barão do Rio

Branco, em 1912, Pinheiro Machado, em 1915, Oswaldo Cruz, em 1917, Rodrigues

Alves, também em 1917 e Rui Barbosa, em 1923, Sérgio Buarque preferiu algo bem

mais simples. Avesso, portanto, àqueles mortos que “haviam construído a nação

com seus dotes inatos e únicos, de modo que o Brasil era visto como um grande

artifício dessas vontades individuais, como um produto desses homens com

qualidades acima do normal”. Qualidades que os tornavam capazes de materializar

valores, ideias ou instituições a serem lembradas e comemoradas.320

Os velórios eram de suma importância para os membros da elite política e

literária, devendo haver identidade entre o morto e o local onde ocorria, exigindo-se

dos organizadores cuidadosas escolhas, já que em muitos casos poder e letras

andavam atados. Machado de Assis e Euclides da Cunha, por exemplo, foram

velados na "Academia Brasileira de Letras"-ABL, o Barão do Rio Branco no Palácio

do Itamaraty, enquanto Rui Barbosa na Biblioteca Nacional. Todos caracterizados

por luxuosa decoração, repleta de veludo negro, flores, altares, dosséis e guardas

de honra. O objetivo, segundo alguns estudos, "era demonstrar a especificidade da

vida e das obras do finado por meio das instituições com as quais ele se relacionara.

Na ocasião dos funerais, esses espaços serviam como uma espécie de palco para a

performance pública das elites”, que não se ressentiam em momento algum em

deixar de fora a população.321

Os velórios também eram uma ocasião propícia para discursos,

responsáveis pela dimensão mais cognitiva da cerimônia fúnebre. Por meio de

320 GONTIJO, Rebeca. O Velho Vaqueano. Capistrano de Abreu (1853-1927): memória,historiografia e escrita de si. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2013. pp. 32-33. Em especial a discussão doprimeiro capítulo, “Morre o historiador da pátria”, no qual a autora apresenta o intelectual comosímbolo da “brasilidade” a partir do velório e dos necrológios lidos e publicados a respeito de suapersonagem. 321 Idem; GONÇALVES, João Felipe. Enterrando Rui Barbosa, Estudos Históricos - Dossiê HeróisNacionais, Rio de Janeiro, vol. 14, n. 25, 2000, p. 152.

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panegíricos, buscava-se a individualização e a imortalidade do finado. No caso dos

ilustres aqui citados, é notória a associação de seus nomes à nação, o que permite

considerar seus funerais como verdadeiros “rituais cívicos”.322

O historiador português Fernando Catroga estudou muito bem o que

chamou de “culto cívico dos mortos”. Para ele é importante perceber que no trabalho

de elaboração póstuma, o que se “re-presentifica" é a imagem purificada do evocado

e o que se confirma é a vida do vivo. Daí a origem de uma prosopopeia memorial e o

seu cariz de exemplum: idealiza-se a personalidade do defunto, mascaram-se os

seus defeitos e exaltam-se as suas qualidades, edificando-se um modelo em que se

combinam formas de pensar arquetípicas e estereotipadas. A competência dos

“grandes homens" desaparecidos tende, assim, a ganhar o estatuto de

“panteonização” e este é posto a serviço das práticas identitárias dos grupos

(família, associações, gerações, Nação, etc.).323

De acordo com Catroga, então, recordar os finados possibilita a instituição

e o reconhecimento de identidade, bem como o delineamento de esperanças

escatológicas (transcendentes e terrenas), oferecendo-se ao evocador uma história

com "um passado e um futuro” num encadeamento contínuo de gerações. Desse

modo, apesar de o rito implicar a repetição, “recordar e, sobretudo comemorar, será

sempre teatralizar uma prática de reescrita da(s) história(s); será, em síntese,

praticar coletivamente uma recordação que veicula mensagem para um tempo

fictício tecido pelo diálogo entre o presente-passado e o presente-futuro”.324

Os Buarque de Holanda dispensaram qualquer tipo de pompa. Afinal, era

desejo de Sérgio que em seu velório não o rodeassem com flores, velas e nem que

tocassem música, muito menos que o fotografassem ou que fizessem imagens suas

para a televisão. Sabia que seu filho causava furor por onde passava e na sua

cerimônia não seria diferente. Preferiu a cremação e dela esvair-se no tempo e no

322 Ibidem, p. 151.323 CATROGA, Fernando. O céu da memória: cemitério romântico e culto cívico dos mortos.Coimbra: Minerva, 1999. p. 31. Esse livro descreve o processo que conduziu à revolução românticados cemitérios em Portugal e à transformação da necrópole num espaço público e efetivo, onde sepassou a dramatizar e a delir a tensão entre a finitude humana e os sonhos (utópicos e ucrónicos) desua superação. Também, mostra como é que, deste jogo simulador da vida e dissimulador da provaontológica da morte –o cadáver–, nasceu a cenografia simbolicamente adequada ao crescimento dopapel de uma instância julgadora que, em combinação ou em alternativa com a escatalogia judaico-cristã, se foi impondo, cada vez mais, como um novo além: a memória dos vivos. Daí, a atenção doautor à função sociabilitária e cívica das liturgias de recordação, assim como ao estudo das relaçõesentre o(s) poder(es) e o culto dos mortos. 324 Idem, p. 32.

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espaço como pó a ficar imóvel preso em uma caixa de madeira esperando o tempo

fazer o resto.

O historiador não era religioso e alegava que a fé da esposa equilibrava

as contas com o mundo desconhecido. Tinha pavor da morte e detestava cemitérios,

talvez por isso, a cremação fosse para ele o meio mais eficaz para se recalcar o

medo dos mortos, pois os antigos acreditavam que ela impedia o regresso do duplo,

isto é, o retorno da alma do defunto, eliminava as impurezas, protegia o cadáver do

ataque das feras, libertava o finado do domínio dos espíritos malignos,

proporcionava calor no mundo inferior, evitava o nojo da putrefação do corpo e

comunicava um significado salvífico evidente: o fogo purificava e iluminava o defunto

no caminho até o outro mundo, indicando que tal como o fumo, assim o espírito se

elevaria à morada dos bem-aventurados.325

Desejo respeitado. Durante o simples velório, ocorrido em sua residência

da rua Buri, estiveram presentes apenas os familiares e alguns amigos muito

próximos, como Frei Beto, Antonio Candido, Darcy Ribeiro, Paulo Vanzolini, Aziz

Ab’Saber, Aurélio Buarque, Mário Schemberg, Soares Amora, Perseu Abramo, entre

outros. Apenas no dia seguinte é que os jornais das principais capitais do país

estampavam manchetes sobre a morte de Sérgio. “O mundo intelectual reage diante

da notícia inesperada” publicava “O Estado de S. Paulo”, enquanto a “Folha”

anunciava “Sérgio até o fim, sem pompas”. No Rio de Janeiro, “O Globo” trazia

“Morre Sérgio Buarque de Holanda” e o "Jornal do Brasil” informava que “Historiador

é cremado na Vila Alpina”. Fora do eixo Rio-São Paulo, o curitibano “A Gazeta do

Povo” destacava que “Vítima de câncer, morre aos 80 anos o historiador Sérgio B.

de Hollanda” e o gaúcho “Correio do Povo”, de Porto Alegre, insistia em uma das

mais assinaladas características do falecido, “Um homem sem pose”.326

O cortejo fúnebre partiu às 10 da manhã da casa da família direto para o

Cemitério da Vila Alpina, onde o escritor seria cremado. Chegando lá, além dos

parentes e amigos, muitos curiosos aglomeraram-se em frente à Capela, não para

solidarizarem-se em momento tão difícil, antes para ver se conseguiam avistar seu

325 Ibidem, p. 268. 326 Respectivamente, O Estado de S. Paulo, 25 de abril de 1982; Folha de S. Paulo, 26 de abril de1982, Ilustrada, p. 19; O Globo, Rio de Janeiro, 25 de abril de 1982; Jornal do Brasil, Rio deJaneiro, 26 de abril de 1982; A Gazeta do Povo, Curitiba, 25 de abril de 1982 e Correio do Povo,Porto Alegre, 27 de abril de 1982. Vale mencionar que o jornal paranaense cometeu um erro em suamanchete, já que Sérgio Buarque, falecido no dia 24 de abril, apenas completaria 80 anos no dia 11de julho.

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filho ilustre. Dentre os curiosos, talvez muitos nem soubessem quem foi o defunto e

nem qual teria sido a sua contribuição para a cultura do país. Na capela, a missa foi

rezada por Frei Beto, que leu um trecho do Evangelho segundo São Mateus e falou

sobre a importância da obra de Sérgio Buarque. Eis o que pode ter dito:

Sérgio Buarque de Holanda parte e permanece presente ali onde ele nosensinou a admirá-lo e a apreendê-lo: em nossos corações. Sabemos, pelafé, que agora ele está no Senhor, porque toda a sua vida foi o esforçoconstante para vivenciar isto em que se resume a religião: o amor feitocausa de justiça e de liberdade. Para um homem anticonvencional comoeste querido amigo e pai, façamos esta oração anticonvencional. Nessadespedida, fica tudo aquilo que ele representou e representa: sua firmeza,sua fidelidade, sua coragem, sua permanente juventude. Uma árvore, diz oevangelho, se conhece por seus frutos. As sementes plantadas por Sérgiogerminaram no talento de seus filhos e no valor de sua obra. Enquantotantos insistem em olhar os fatos históricos pelos olhos do opressor, dahistoriografia oficial, Sérgio nos ensinou a ler a história pela ótica dosoprimidos, dos pequenos e dos humildes. Dele, guardamos agora umalembrança feliz: a fina ironia, sua vontade de contar e de recontar casos, acapacidade de acolher as pessoas com os olhos e com o coração, o dom deser amigo de infância após cinco minutos de conversa. Fardas e fardõesnunca o preocuparam. Este trabalhador da cultura viveu entre seus livros eamigos. Agora, a seu pedido, seu corpo será cremado, suas cinzas tornar-se-ão sementes de vida nova. Sérgio será comunhão e nós encontraremossempre na brisa que sopra, na beleza das flores, no sol que brilha pelamanhã.327

Nas palavras mencionadas, dois pontos merecem destaque. O primeiro

diz respeito às características de Sérgio, retratado como uma figura

“anticonvencional”, de “fina ironia”, acolhedor, de amizade fácil e completamente

avesso às honrarias. Ditas em momento especial e delicado, essas adjetivações

formam, com tantas outras, um conjunto de características relacionadas à

personagem, definidoras de seu espírito e que são encontradas facilmente em

muitos textos que esboçam sua biografia.

Arquitetada por um grupo de renomados intelectuais próximos do

homenageado e de sua família, ecoada a partir de lugares socioeconômicos de

produção de conhecimento (universidades, imprensa, arquivo e biblioteca), com

regras científicas específicas, a versão hegemônica da vida de Sérgio que restou à

posteridade foi sendo transmitida e sustentada “monotonamente" por outros

327 Reprodução aproximada das palavras proferidas por Frei Betto na despedida de Sérgio Buarquede Holanda, por ocasião de seu sepultamento. São Paulo, 25 de abril de 1982. Arquivo CentralUnicamp/Siarq. Fundo Sérgio Buarque de Holanda. Série Homenagens Póstumas, Hp 1.

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intérpretes de sua obra até praticamente os dias de hoje, como visto, por exemplo,

em eventos celebrativos legitimadores dessa memória.328

O segundo refere-se a uma leitura equivocada ou até mesmo inocente da

dinâmica historiográfica brasileira. Afinal, Sérgio Buarque de Holanda até onde o

compreendemos, jamais insinuou fazer uma “história dos oprimidos”, muito menos

pela “sua ótica”. Antes, buscava a experiência do tempo, com suas mudanças e

movimentos, atentando-se a debates e autores até então pouco mencionados, a

exemplo do historiador americano Frederick J. Turner, fundamental para a sua

definição de “fronteira” desenvolvida em “Caminhos e Fronteiras” (1956), coletânea

de estudos que tratou das relações entre colonizadores portugueses e indígenas,

sobre a geografia no processo de expansão paulista ou ainda das estruturas de vida

e cultura material, revelando uma colônia em movimento, diferente, portanto, das

grandes lavouras extáticas do nordeste açucareiro e escravocrata.

Podemos citar também o crítico alemão Ernst Robert Curtius,

sistematicamente apropriado por Sérgio Buarque em seus estudos sobre literatura

colonial, barroco e arcádia, no período em que viveu em Roma entre 1953 e 1954 e

cuja referência é claramente notada em “Visão do Paraíso” (1959). Obra na qual

328 A ideia de uma versão oficial passada à posteridade deve muito às discussões em torno da ideiade "memória do vencedor”, trazidas aqui para um contexto de construção de personagem, diferente,portanto, da demarcação temporal de um fato político, como propuseram Carlos Alberto Vesentini eEdgar de Decca nas críticas à ideia de “revolução de 1930”. Ver a respeito: VESENTINI, CarlosAlberto; DECCA, Edgar S. A revolução do vencedor. In: Contraponto, ano 1, n. 1, novembro de1976. pp. 60-71; LENHARO, Alcir. Carlos Alberto Vesentini, historiador. Revista História, São Paulo,n. 122, pp. 117-127, jan/jun, 1990; VESENTINI, Carlos Alberto. A teia do fato. Uma proposta deestudo sobre a Memória Histórica. São Paulo: HUCITEC; História Social USP, 1997; DECCA, EdgarS. de. O silêncio dos vencidos: memória, história e revolução. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.Exemplo de culto à memória de Sérgio Buarque foi realizado no Instituto de Estudos Brasileiros daUSP-IEB, entre os dias 13 e 16 de setembro de 2011. O Seminário “Atualidade de Sérgio Buarque deHolanda”, contou com a presença de nomes como Antonio Candido, Laura de Mello e Souza, RichardGraham, Antônio Arnoni Prado, Pedro Meira Monteiro, entre outros. Na ocasião os participantesforam saudados com uma exposição sobre a trajetória intelectual de Sérgio, elaborada a partir dedocumentação do seu arquivo privado. No ano seguinte foi publicada obra homônima, Atualidade deSérgio Buarque de Holanda. São Paulo: EdUSP; IEB, 2012, organizada por Stelio Marras. Emboraeu me refira a textos e eventos póstumos, é importante registrar que quando era vivo, alguns amigoslhe renderam homenagens. Uma análise daqueles textos indicam total semelhança com estes queestou apresentando, a exemplo de “Singularidade e multiplicidade de Sérgio”, anotado por RodrigoMelle Franco Andrade, “O cinquentenário do mestre”, de Octávio Tarquínio de Souza ou “Sérgio,anticafajeste", de Manuel Bandeira. Quando nos referimos à universidade como lugar de produção deconhecimento é no sentido atribuído por Michel de Certeau, ou seja, um local privilegiado, no qual ahistória é escrita, reescrita ou não escrita, visto que esse mesmo lugar possibilita e interdita o que épossível pensar, investigar, escrever e divulgar, contribuindo para a fabricação do conhecimento e adefinição das regras que o presidem. CERTEAU, Michel de. A operação historiográfica. In: ______. Aescrita da história. Trad. Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982.Por fim, a transmissão de sua memória também se concretizou com a publicação de livros póstumos,livros celebrativos, montagem de biblioteca e arquivo pessoal, tópicos que serão desmembrados aolongo do capítulo.

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Sérgio estudou os mitos edênicos que acompanharam as narrativas dos

descobrimentos e da colonização da América, deixando claras as diferentes visões

de mundo que tinham espanhóis e portugueses no que se refere aos seus

imaginários sobre o Novo Mundo. No entanto, mesmo considerado por muitos como

o seu melhor livro, “Visão do Paraíso” teve ressonância limitada na época de sua

publicação, sendo esmiuçado em seu devido valor a partir da década de 1980,

quando os estudos historiográficos no Brasil passavam por uma maior

dinamização.329

Nesse sentido, o discurso de Frei Beto se torna anacrônico, uma vez que

reduz a obra de Sérgio, que teve fases distintas, a uma conjuntura de efervescência

política atravessada pelo país a partir dos anos finais da década de 1970, quando

encontramos na pauta do dia a repercussão da Lei de Anistia, a ascensão dos

“novos movimentos sociais”, o “novo sindicalismo”, a fundação do Partido dos

Trabalhadores-PT, as grandes greves de massa e o caso conciliatório do regime

civil-militar em vigor; em suma, o restabelecimento vindouro de uma nova ordem

democrática. Momento propício, portanto, para que as lembranças aferidas a Sérgio

Buarque tenham incluído em seu leque de singularidades o perfil de esquerda e

combativo do historiador, mais tarde naturalmente dissolvido em consenso a partir

de certa memória histórica.330 Nesse sentido, não custa lembrar que na ocasião do

329 TURNER, Frederick Jackson. The frontier in American history. New York: H. Holt, 1920;CURTIUS, Ernst Robert. Europaische Literatur und lateinisches Mittelalter. Bern: Francke, 1948.Não por acaso, ambas as obras, em edições na língua original, faziam parte da Biblioteca quepertenceu a Sérgio Buarque, hoje disponível ao público na Biblioteca Central da UniversidadeEstadual de Campinas-UNICAMP. A esse respeito ver também: WEGNER, Robert. A conquista dooeste: a Fronteira na obra de Sérgio Buarque de Holanda. Belo Horizonte: EdUFMG, 2000;NICODEMO, Thiago L. Urdidura do vivido: Visão do Paraíso e a obra de Sérgio Buarque deHolanda nos anos 1950. São Paulo: EdUSP, 2008; ______. Alegoria Moderna. Critica Literária eHistória da Literatura na obra de Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo: FAP-UNIFESP, 2014. 330 Importante nesse sentido é o conceito de "enquadramento da memória”, proposto por MichaelPollak. Essa noção diz respeito a um processo de afirmação de determinadas lembranças, quedevem ser compartilhadas por um grupo a ponto de anular ou diminuir memórias concorrentes. É umtrabalho de restrição das possibilidades de interpretar aquilo que é lembrado, configurando umaforma considerada socialmente legítima de recordação. Esse processo, todavia, não está imune adisputas e fissuras que um determinado presente pode provocar, mas essa noção permite observar adinâmica da memória e do trabalho de geri-la, que transforma o que é lembrado ao mesmo tempo emque contribui para a transformação dos indivíduos que lembram. POLLAK, Michael. Memória,esquecimento, silêncio, Estudos Históricos - Dossiê Memória, vol. 2, n. 3, 1989. pp. 3-15. Não custalembrar que o Centro de Documentação e Memória Política do PT, ligado à Fundação PerseuAbramo, leva o nome de Sérgio Buarque de Holanda. A editora da Fundação também é responsávelpor algumas publicações póstumas de textos inéditos de Sérgio e de outros trabalhos de cunhocomemorativo, como “Sérgio Buarque de Holanda e o Brasil”, organizado por Antonio Candido epublicado em 1998, como resultado do Seminário "Sérgio Buarque de Holanda e o Brasil”, ocorridoem 26 e 27 de novembro de 1997. Nesse volume, vale lembrar, dois textos são emblemáticos:"Sérgio Buarque de Holanda: petista," de Luiz Dulci e “A visão política de Sérgio Buarque deHolanda”, de Antonio Candido, que em certa passagem afirma: “Ora, Sérgio Buarque de Holanda foi

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seu enterro, o então deputado Eduardo Suplicy, que poucos dias antes havia

almoçado com Sérgio, afirmava ao enviado do “Jornal da Tarde” que o amigo “foi um

dos principais intelectuais do PT”.331

Se por um lado, Frei Beto tentava dar unidade à vida do amigo, por outro,

alguns textos saídos na imprensa em sua homenagem apontam que sua biografia

intelectual ainda carecia de maiores ajustes. Nesse sentido, "O Estado de S. Paulo”

de 25 de abril de 1982 trazia um artigo assinado por Marcelo Ielo. No texto o autor

elenca algumas das principais características de Sérgio Buarque, dentre elas, sua

“aptidão para a leitura”, sua “índole brincalhona”, seu “viés modernista”, seu “espírito

inquieto” e claro, sua "tendência para os estudos históricos” explícita desde a sua

juventude. Tamanho brilhantismo teria levado, de "maneira natural”, Sérgio a

escrever sua obra de estreia, já que foi “um verdadeiro batalhador para que os

caminhos nacionais fossem mais bem entendidos no Brasil. Nisso conclui que

"Raízes do Brasil", publicado em 1936, foi “elogiado por todos na época”, sendo a

obra mais conhecida de Sérgio “até os dias de hoje”. Foi com este volume, segue,

que a Editora José Olympio iniciou a Coleção Documentos Brasileiros, vendo-se

obrigada a publicar várias edições devido à procura”.332

Elevado ao longo do tempo à categoria de “clássico de nascença” por

Antonio Candido e inserido na famosa tríade ao lado de "Casa Grande & Senzala"

(1933) de Gilberto Freyre e “Formação do Brasil Contemporâneo” (1942) de Caio

Prado Júnior, o livro de estreia de Sérgio, diferente do que insinuou o jornalista,

também recebeu críticas negativas e “pouco a pouco sumiria do debate daqueles

dias sem que sua ausência se fizesse notar”, como demonstra Fábio Franzini em

seu estudo sobre a "Coleção Documentos Brasileiros”.333

o primeiro historiador que aludiu à necessidade de despertar a iniciativa das massas, manifestandoassim um radicalismo democrático raro naquela altura fora dos pequenos agrupamentos deesquerda”. In: CANDIDO, Antonio (org.). Sérgio Buarque de Holanda e o Brasil. São Paulo:Fundação Perseu Abramo, 1998. p. 86.331 "Assim noticiou o Jornal da Tarde a cerimônia fúnebre”. In: Revista do Brasil, Número Especialdedicado a Sérgio Buarque de Holanda, Ano 3, nº 6, 1987. p. 111. 332 "Às vésperas dos 80 anos, a morte de Sérgio Buarque", de Maurício Ielo. O Estado de S. Paulo.São Paulo, 25 abr. 1982. p. 38. 333 FRANZINI, Fabio. À sombra das palmeiras: Coleção Documentos Brasileiros e astransformações da historiografia nacional (1936-1959). Rio de Janeiro, RJ: Edições Casa de RuiBarbosa, 2010. Embora poucas, as críticas retiram o ar de unanimidade da obra citada. Em umadelas, publicada no Boletim de Ariel, o crítico V. de Miranda Reis registrava o seguinte: “vai a gentelendo o livro, lendo e aprendendo, aprendendo e concordando, até o capítulo IV. Daí por diante, faz-se mister bons dentes. Porque em 'O homem cordial’, 'Tempos Novos’, ‘Nossa revolução’, háverdadeiras concreções pedregosas”. REIS, V. de Miranda. Raízes do Brasil. Boletim de Ariel, anoVI, n. 5, fevereiro de 1937, p. 129. Na mesma linha, a revista Veja, de 5 de maio de 1982, p. 123,publicou uma pequena matéria em homenagem a Sérgio em que afirmava que Raízes do Brasil teve

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Em outro exemplo, a "Academia Paulista de Letras”- APL, instituição da

qual Sérgio era membro, ocupando a cadeira de número 36, registrava em ata do

dia 6 de maio de 1982 que a sessão seria em “memória do acadêmico”. Ao se

debruçar sobre as biografias de Capistrano de Abreu, a historiadora Rebeca Gontijo

já nos alertava para o conjunto de “pequenas histórias”, que ao longo do tempo

construíram uma espécie de “folclore” a respeito de sua personagem. De modo que

ele passou a ser lembrado como alguém de quem se falava por meio de anedotas,

ditos espirituosos e epigramas, “prevalecendo a autoridade daqueles que o

conheceram pessoalmente”, criando assim, uma "rede de proximidade”, uma

espécie de "círculo de pactários”, responsável pela produção e pelo controle dos

rumores a serem divulgados.334

A esse "círculo" soma-se o próprio personagem, considerado como

alguém que atuou, passiva ou ativamente, na produção de discursos sobre si

mesmo e que, simultaneamente, foi objeto do discurso dos outros. A partir dessa via

de mão dupla é possível supor que Sérgio Buarque tenha criado para si uma versão

da própria vida, cujas pistas expostas em suas "Tentativas de Mitologia” (1979)

foram pouco depois atestadas e transmitidas pela sua "rede de proximidades”,

formada por seus pares, familiares, sobretudo sua viúva, instituições acadêmicas e

casas editoriais. Dessa simbiose é que foi surgindo um perfil no qual Sérgio se

autointitulou historiador, “minha vocação principal”335 e foi retratado como um

intelectual sem pompas, crítico sem igual, leitor voraz, mestre, professor

extraordinário, scholar, erudito, boêmio, dedicado aos amigos e à família, um pouco

preguiçoso, pai do Chico, etc.

De volta à Sessão da Academia é possível identificarmos nas falas de

alguns presentes essa memória em movimento. O acadêmico Leonardo Arroyo, por

exemplo, lembrou do "anticonvencionalismo do confrade desaparecido”. Já Nogueira

Moutinho afirmava que Sérgio foi um "verdadeiro scholar” e Soares Amora, que

esteve no enterro, dizia que o amigo foi "exemplo raríssimo de professor dotado do

condão da sedução, da inteligência, da cultura, do saber profundo e da capacidade

de interpretação da História”.

“pouca ressonância na época” de sua publicação. 334 GONTIJO, op.cit., p. 157. A base para essa reflexão da autora encontra-se em BONNET, Jean-Claude. Naissance du panthéon: essai sur le culte des grands hommes. Paris: Bayard, 1998. Nãopor acaso, em um artigo assinado no jornal O Estado de S. Paulo, de 6 de junho de 1982, FranciscoIglesias afirmava que “o folclore particular” Sérgio "deveria ser recolhido para que não se perdesse". 335 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Tentativas de Mitologia. São Paulo: Perspectiva, 1979. p. 32.

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Numa outra linha, alguns acadêmicos não poupavam loas à imagem

idealizada do "homem de letras”, elevando Sérgio ao mais alto panteão da história

pátria e mundial, tal como faziam no século XIX os integrantes do IHGB.336 Pedro

Brasil Bandecchi, orientado por Sérgio em seu doutoramento, registrou que ele foi

“historiador dos maiores”, a exemplo de João Francisco Lisboa e Capistrano de

Abreu. Enquanto Geraldo Pinto Rodrigues, que sequer conviveu com o

homenageado, expunha que uma “visão bela e profunda da História” elevava Sérgio

à importância de um Fustel de Coulanges (1830-1889), Charles Seignobos (1854-

1942) e Thomas Carlyle (1795-1865). No final, Leite Cordeiro definia o colega como

“símbolo de intelectual honesto e independente, exemplo de amor ao trabalho, à

família e à pátria”.337

Se num horizonte próximo a imagem pessoal de Sérgio se desenhava

com traços mais nítidos, o mesmo não se pode dizer em relação à sua obra, naquele

tempo, esparsa. As considerações feitas sobre os seus escritos na época de sua

morte, indicam um historiador ainda a ser "descoberto em seu devido valor”. Não

obstante, Raimundo Faoro admitiu que o amigo “deixa uma obra importantíssima,

um pouco dispersa, que deveria ser levantada, reunida e editada”. Rubens Borba de

Moraes, parceiro inconteste de muitos trabalhos, dizia, por exemplo, ser “Visão do

Paraíso” um livro para “poucas pessoas”, enquanto Claudio Abramo enfatizava que

o companheiro de mais de trinta anos, “historiador emérito”, havia sido “suplantado

pelos sociólogos”.338

Em 5 de maio de 1982, a revista “Veja" divulgava um texto em que

assinalava estar a obra de Sérgio “relegada à segundo plano frente à Raízes do

Brasil”, ao passo que a APL não deixou de registrar em ata o fato de “a grande

produção de crítica literária de Sérgio Buarque ainda não estar reunida em livro”.

Opinião, aliás, defendida por Francisco Iglesias no "O Estado de S. Paulo” de 6 de

junho de 1982. Em um extenso artigo, além de questionar a imagem professoral do

amigo, segundo ele, “creiamos, Sérgio não gostasse muito do magistério, pois não

tinha boa comunicação oral”, Iglesias vislumbrava um horizonte de expectativas que,

336 Sobre a questão biográfica no século XIX brasileiro ver: OLIVEIRA, Maria da Glória de. Escrevervidas, narrar a história: a biografia como problema historiográfico no Brasil oitocentista. Rio deJaneiro: FGV, 2012. 337 Academia Paulista de Letras. Ata da Sessão Ordinária de 6 de maio de 1982. Arquivo CentralUnicamp/Siarq. Fundo Sérgio Buarque de Holanda. Série Homenagens Póstumas, Hp 3. 338 Respectivamente: “O mundo intelectual reage diante da notícia inesperada”, O Estado de S.Paulo, 25 de abril de 1982; “Impacto no meio intelectual”, Folha de S. Paulo, 26 de abril de 1982.

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hoje sabemos, se concretizou. Dizia que a obra crítica de Sérgio era esparsa, mas

que “renderia alguns volumes”, se publicadas, o mesmo valendo aos seus muitos

prefácios “que deveriam ser reunidos em livro”. Quanto aos já editados, Iglesias

mostrava indignação ao fato de “Do Império à República” (1972), "um livro de tal

atitude” não ter recebido nenhuma atenção dos especialistas: “não saiu uma crítica,

nem mesmo uma notícia de jornal”. No caso de “Monções” informava o leitor que

Sérgio estava preparando uma segunda edição, na verdade “um outro estudo, três

ou quatro vezes maior”, no qual seriam inseridas pesquisas que vinha realizando há

algum tempo em arquivos de Portugal, Rio de Janeiro, São Paulo e Mato Grosso.

“Deve ter sido acabado. Virá a ser a mais significativa obra do gênero, temos

certeza”. Iglesias tinha ainda conhecimento de outros inéditos, não se furtando de

sugerir que se preparasse os originais de “A Era do Barroco no Brasil” e “Literatura

Colonial Brasileira”.339

Não tardaria muito para que as sugestões de Francisco Iglesias se

concretizassem. Ainda na década de 1980 começaram a ser publicados alguns

textos inéditos de Sérgio, a exemplo de "O extremo Oeste” (1986), organizado por

José Sebastião Witter e cujos originais se encontram no Arquivo Público do Estado

de São Paulo e “Raízes de Sérgio Buarque de Holanda” (1989), assinado por

Francisco de Assis Barbosa. Este último contendo artigos de juventude do autor, do

tempo em que viveu na Alemanha como jornalista. Já na década de 1990, Antonio

Candido organizou os originais de “A Era do Barroco no Brasil” e de "Literatura

Colonial Brasileira” em um volume intitulado "Capítulos de Literatura Colonial”

(1991), um conjunto inacabado de textos escritos ao longo da década de 1950 e

estimulados por pesquisas realizadas em diversos arquivos europeus, sobretudo,

italianos.340 Na mesma década viriam a público seus esparsos textos de crítica

literária, compilados nos dois volumes grossos de "O Espírito e a Letra” (1996)

apresentados por Antônio Arnoni Prado, bem como seus prefácios reunidos em livro

339 "Evocação de Sérgio Buarque de Holanda", Francisco Iglésias, O Estado de S. Paulo, 6 junhode1982. Suplemento Cultura, v. 2, n. 104. pp. 4-5.340 Do que tratava esse material? Salvo o escrito panorâmico, as partes elaboradas destinavam-secom certeza ao volume Literatura Colonial, que seria o 7º da "História da literatura brasileira”planejada no começo dos anos 1940 por Álvaro Lins para a editora José Olympio. No final das contasforam publicados apenas o 6º volume, de Luis da Câmara Cascudo, "Literatura Oral", em 1952,precedido em 1950 pelo 12º, de Lucia Miguel Pereira, "Prosa de Ficção (De 1870-1920)”. É possívelque naquela altura Sérgio estivesse trabalhando em paralelo, com tema ligado ao seu volume, o quese percebe com a publicação de "Antologia dos poetas coloniais”, publicado em 1953 (texto que faziaparte de um projeto do Ministério da Educação). CANDIDO, Antonio. Exposição: inéditos sobreliteratura colonial. In: Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Sérgio Buarque de Holanda: 3ºColóquio UERJ. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1992. p. 93.

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homônimo.341 E mais recentemente vimos surgir, também em dois volumes, os seus

“Escritos Coligidos” contendo textos escritos entre a década de 1920 até o final dos

anos 1970, grande parte dos quais não contemplados em outras publicações.342

“Monções" demoraria muito mais tempo para ser reeditado. Com a

segunda edição de 1976, apenas em 1990 sairia a terceira, que a pedido de Maria

Amélia foi organizada por Antonio Candido, contendo o texto original e um apêndice

com três capítulos reescritos (“Caminhos do Sertão”, “O transporte fluvial” e “As

estradas móveis”), o primeiro deles publicado como artigo343 e os outros dois na

forma como foram encontrados no papelório do autor. Depois disso, só no fim de

2014 é que voltou às livrarias, em conjunto com “Capítulos de Expansão Paulista”,

cuja organização ficou a cargo de Laura de Mello e Souza em parceria com André

Sekkel Cerqueira.

Numa entrevista concedida à "Folha de S. Paulo”, publicada no dia 10 de

janeiro de 2015, a historiadora confirmava algumas pistas assinaladas por Iglésias

em seu artigo. Dizia, por exemplo, que quando fazia graduação durante a década de

1970, “intrigava-se com o fato de o já então renomado Sérgio Buarque de Holanda

andar com pequenos pedaços de papel rabiscados e amassados no bolso”.

Indagado pela aluna no que estava trabalhando, Sérgio respondeu: “estou

reescrevendo Monções”.344

Laura de Mello e Souza afirma ainda que, após a primeira edição da obra,

em 1945, Sérgio Buarque continuou a pesquisa, refez viagens, visitou muitos

arquivos e acumulou novos documentos sobre o tema a ponto de concentrar tanto

volume de material que "pensou em escrever um livro novo, mais completo”345 ou

como indicou Iglésias, um estudo “três ou quatro vezes maior”, “a mais significativa

obra do gênero”. Em outras palavras, o agora denominado “Capítulos de Expansão

Paulista” nada mais é do que o conjunto dos capítulos reescritos de “Monções"

somados ao já publicado “O Extremo Oeste”.

341 HOLANDA, Sérgio. O livro dos prefácios. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 342 COSTA, Marcos (org.).Sérgio Buarque de Holanda: escritos coligidos I (1920-1949). São Paulo,SP: Editora da UNESP: Fundação Perseu Abramo, 2011 e Sérgio Buarque de Holanda: escritoscoligidos II (1950-1979). São Paulo, SP: Editora da UNESP: Fundação Perseu Abramo, 2011.343 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos do Sertão. Revista de História, São Paulo, n. 57, pp.59-111, 1964. 344 “Livro Monções é reeditado com textos inéditos”. Folha de S. Paulo, 10 de janeiro de 2015.Versão online, acessada em 20 de fevereiro de 2015 às 17 horas. Disponível em:http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2015/01/1572902-livro-moncoes-e-reeditado-com-textos-ineditos.shtml345 Idem.

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A esse respeito, o próprio Sérgio Buarque, em 1976, admitia em nota à

segunda edição de “Monções", que nada o impediu de ocupar-se durante as

décadas de 1950, 60 e 70 “com intermitências mais ou menos dilatadas de coligir

nova documentação sobre navegações fluviais setecentistas e oitocentistas e seus

reflexos na vida brasileira”, temas, “para um outro livro e provavelmente com título

diverso”, a que pesquisadores apontaram se tratar de “O Extremo Oeste”.346

Segundo Sérgio, o trabalho em preparo “tem a ver com as chamadas 'monções de

povoado’, que assim se chamavam as frotas de comércio entre Porto Feliz e Cuiabá

e com viagens por terra entre São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia, respectivamente, e

o extremo ocidente do Brasil. Para obra mais completa, segue, seria conveniente o

estudo “de toda a vasta estrada fluvial, que com breves intervalos, abraçava quase

todo o Brasil, desde o Tietê até a Amazônia”.347

Tamanho empenho foi financiado nos anos 1960 pela Fundação Calouste

Gulbenkian348 de Portugal e pela recém-criada Fundação de Amparo à Pesquisa do

Estado de São Paulo-FAPESP. Em relação à primeira, enviamos no dia 3 de março

de 2015 um e-mail formal solicitando mais detalhes ou se havia algum indício que

confirmasse o envolvimento de Sérgio com aquela instituição. A resposta veio rápida

e para nossa surpresa descobrimos o seguinte:

(…) podemos confirmar que o historiador brasileiro Sérgio Buarque deHolanda solicitou, em 1966, à Fundação Calouste Gulbenkian uma bolsa,que teve anuência, para se deslocar a Portugal durante um período de 20dias, a fim de consultar arquivos portugueses (Arquivo Ultramarino,Biblioteca e Arquivo Público do Porto), com vista à preparação da segunda

346 Em seu prefácio à nova edição de Monções, Laura de Mello e Souza afirma que tanto JoséSebastião Witter, quanto André Sekkel Cerqueira defendem essa ideia. O primeiro, na apresentaçãoda obra póstuma de Sérgio observou que “aqui está o esboço de outro livro anunciado pelohistoriador, em 1976” e o segundo, em relatório de iniciação científica, apontou que “esse seria o livroreferido pelo autor no prefácio que escreveu para Monções, em 1976, quando justificou a opção demanter o texto de 1945 e destinar a vasta pesquisa realizada, desde então, a outro livro, em vias deelaboração, sobre igual tema”. Mais de uma passagem comum encontrada em ambas as obrasfundamentaria essa hipótese. SOUZA, Laura de Mello. Prefácio: Estrela da vida inteira. In:HOLANDA, Sérgio Buarque de. Monções e Capítulos de Expansão Paulista. 4. ed. São Paulo:Companhia das Letras, 2014. 347 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Nota à segunda edição. In: ______. Monções e Capítulos deExpansão Paulista. 4. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.348 A Fundação Calouste Gulbenkian é uma instituição portuguesa de direito privado e utilidadepública, cujos fins estatutários são a Arte, a Beneficência, a Ciência e a Educação. Criada pordisposição testamentária de Calouste Sarkis Gulbenkian, os seus estatutos foram aprovados peloEstado Português a 18 de Julho de 1956. Com mais de 50 anos de existência, a Fundação CalousteGulbenkian é uma das mais importantes fundações europeias, desenvolvendo uma vasta atividadeem Portugal e no estrangeiro por meio de projetos próprios, ou em parceria com outras entidades, eatravés da atribuição d e s u b síd ios e bo lsas. In formações re t i radas do s í t io :http://www.gulbenkian.pt/Institucional/pt/Fundacao/HistoriaEMissao?a=22, acessado em 4 de marçode 2015.

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edição do seu livro “Monções”, onde se estuda o comércio e navegaçãoentre São Paulo e Cuiabá no século XVIII. Informamos ainda que oprocesso encontra-se microfilmado e o acesso é muito restrito. Nele apenasconsta correspondência trocada entre a Fundação Gulbenkian e o ProfessorSérgio Buarque de Holanda, sobre este assunto, não havendo informaçãoadicional, respeitante às pesquisas por ele desenvolvidas em Portugal.349

Em relação à FAPESP, Sérgio já docente na Universidade de São Paulo-

USP, encaminhou um pedido em junho de 1965 de auxílio financeiro ao projeto

denominado “A navegação fluvial entre São Paulo e Cuiabá nos séculos XIX e XX”,

justificando que precisava de subsídios para a reedição de “Monções”. A solicitação

financeira foi aprovada e Sérgio Buarque recebeu a importância total de CR$

550.000,00 (Quinhentos e Cinquenta mil cruzeiros), pagas ao longo de 18 meses e

que buscavam cobrir as suas viagens de avião à Cuiabá e de transporte terrestre ao

Rio de Janeiro, bem como a sua estadia nessas cidades.350

Nas referidas capitais, Sérgio pretendia visitar o Arquivo e a Biblioteca

Pública do Estado de Mato Grosso e no Rio de Janeiro o Instituto Histórico e

Geográfico Brasileiro-IHGB, a Biblioteca Nacional e o Arquivo do Ministério das

Relações Exteriores. Queria com isso levantar e coletar fontes para “o estudo da

navegação dos rios entre São Paulo e o extremo oeste do Brasil”, visando “ampliar

consideravelmente em nova edição, que atualmente se elabora, a obra Monções

(…) encontrada há muito completamente esgotada”.351

A complementação desse estudo das rotas de comércio fluviais que

contemplariam ainda os rios amazônicos foi praticamente deixada de lado por

Sérgio, que admitia estar fora de sua capacidade o enfrentamento de “muitos e

mortais obstáculos que se oferecem ao longo de tão dificultosa navegação, de

milhares e milhares de quilômetros”, lacuna suprida por um pesquisador americano,

349 Carlos Luis, Serviço de Bolsas Gulbenkian. Visita pesquisador brasileiro (mensagem pessoal).Mensagem recebida por <[email protected]> em 6 de março de 2015. 350 Respectivamente, Termo de outorga e aceitação de auxílio da Fundação de Amparo e Pesquisado Estado de São Paulo - FAPESP concedido ao projeto "A navegação fluvial entre São Paulo eCuiabá nos séculos XIX E XX". s.l., 9. jun.1965 e Ofício de Alberto Bononi, Diretor Administrativo daFundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP a Sérgio Buarque de Holanda,informando a aprovação das contas relativas ao auxílio que lhe foi concedido. São Paulo, 13 mar.1969. Arquivo Central Unicamp, Fundo Sérgio Buarque de Holanda, Série Vida Pessoal. Valecorrigir o seguinte: no Termo de outorga, o título do projeto apresenta a pesquisa entre os séculosXIX e XX, sendo que o manuscrito original do projeto aponta para os séculos XVIII e XIX. 351 Rascunho incompleto de Sérgio Buarque de Holanda pleiteando auxílio à Fundação de Amparo àPesquisa do Estado de São Paulo para um projeto de pesquisa referente a um estudo da navegaçãodos rios entre São Paulo e o extremo oeste do Brasil durante os séculos XVIII e XIX, visando ampliaruma nova edição da obra "Monções". 9 p. Pi1315/68:101 P55. Arquivo Central Unicamp, FundoSérgio Buarque de Holanda, Sub-Série Anotações de Pesquisa. pp. 104-105.

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que naquela época se encontrava vasculhando arquivos e bibliotecas no norte do

país e em Portugal.352

Concretizadas as previsões, voltamos à imprensa. Mais de um estudioso

atribuiu à “ilusão biográfica” da vida de Sérgio a imagem de um “homem de

pensamento político radical”, “socialista-democrático”, apenas “socialista”, “militante

político”, “petista", etc. Ao fazerem isso, como tentamos mostrar nos capítulos

anteriores, esses autores deixavam de lado a dimensão pública de sua militância,

apagada para que o historiador se transformasse em um intelectual das esquerdas,

a exemplo do que disse Antonio Candido ao escrever “que a esquerda brasileira

poderá encontrar" nos textos de Sérgio Buarque de Holanda “muitos fermentos para

definir uma posição que leve em conta as nossas condições”.353 Todavia, se

olharmos com mais detalhes alguns depoimentos publicados nos jornais, veremos

que essas adjetivações, ao menos no calor da hora, tinham outro significado.

Um exemplo é o que disse o professor e político Afonso Arinos de Melo

Franco: “Já sabia da morte de Sérgio, que era casado com minha prima-irmã. Estou

muito atingido. Era dos meus mais velhos amigos, representava uma espécie de

guia e líder da cultura. Pode e deve ser considerado uma das mais altas expressões

do humanismo cultural de toda a vida brasileira”.354 Outros, podem ser lidos no jornal

Folha de S. Paulo, de 26 de abril, o qual trazia uma série de depoimentos sobre o

impacto que teve a morte do historiador no meio intelectual.

352 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Nota à segunda edição de Monções, op.cit. Orientado na YaleUniversity por Richard Morse, David Michael Davidson apresentou, em 1970, o resultado dessaempreitada em sua tese intitulada “Rivers & Empires: the Madeira Route and the Incorporation of theBrazilian Far West, 1737-1808”, estudo que engloba a formação territorial do Brasil Colonial ao longodo século XVIII nos seus aspectos geopolíticos e econômicos, com foco sobre a história da Rota doMadeira (formada pelos rios Guaporé, Mamoré e Madeira), que ligava as minas do extremo oeste doMato Grosso a Belém do Pará. Em suma, uma "tese sobre as monções do Norte”. A estadia doamericano em terras brasileiras não foi contínua. Iniciando suas pesquisas por Mato Grosso, em1966, apenas no ano seguinte é que temos registros dele no norte do país, quando estabelece comSérgio uma interessante troca de cartas, nas quais é possível, entre outros temas, identificar ospassos de sua investigação, a circulação de fontes, o intercâmbio de ideias, bem como uma relaçãointerpessoal marcada pela cumplicidade. A tese de Davidson não foi publicada, salvo um únicotrecho, intitulado “How the Brazilian West was won: freelance and state on the Mato Grosso frontier,1737-1752”, capítulo da coletânea organizada por Dauril Alden, intitulada “Colonial Roots of ModernBrazil: Papers of the Newberry Library Conference”. Em relação à tese, Sérgio registrou o seguinte:“Minha falta neste particular é suprida, aliás, com vantagem, pelo magnífico estudo que dedicou àsmonções do norte (…) o professor David Davidson, da Universidade de Cornell, que ainda espero verimpresso e traduzido”.353 CANDIDO, Antonio. Sérgio, o radical. In: NOGUEIRA, Arlinda; PACHECO, Felipe de Moura;PLINIK, Márcia; HORCH, Rosemarie Erika. (orgs). Sérgio Buarque de Holanda: vida e obra. SãoPaulo: Secretaria de Estado da Cultura: Arquivo do Estado: USP: IEB, 1988. p. 65. 354 O Estado de S. Paulo, 25 de abril de 1982, p. 38.

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Segundo o periódico, “amigos e críticos de sua obra são unânimes em

afirmar que o escritor, além de grande figura, era antes, um humanista (…). A

historiadora Emilia Viotti, que conhecia Sérgio desde os tempos da USP, não

hesitava em afirmar que o amigo pertencia a uma “geração de intelectuais de elite”,

mesmo que fosse capaz de assumir uma crítica de sua própria classe. Por jamais

hesitar em defender as causas democráticas, Sérgio era o “exemplo mais perfeito do

humanismo no século XX (…)”. Rubens Borba de Moraes, que esteve com o finado

há pouco mais de um mês, sublinhava que sua morte significava “a perda de um

companheiro que foi um dos grandes historiadores brasileiros, homem de cultura

geral extraordinária (…)”, mesma opinião de Fernando Novais, que não deixou de

destacar que Sérgio era um homem de “formação ampla”. Por fim, Nogueira

Moutinho escrevia que “o mais vivo de nossos homens de espírito”, se empenhou na

realização de uma carreira toda ela voltada à cultura brasileira”.355

Em nenhum dos exemplos citados Sérgio Buarque foi alvejado como

intelectual de esquerda. Antes, o sentido atribuído à sua vida foi a de um homem

que estava acima de divisões pragmáticas, para o qual termos vagos como

“humanista”, “democrata”, “homem de espírito” podiam representar, em época de

ceticismo, sofreguidão e turbulência, como a do início da década de 1980, uma

promessa de descanso e de certeza. Não custa lembrar que essas mesmas

expressões foram objeto da análise do autor em outro momento de incertezas.

Em uma série de artigos saídos na imprensa paulista e carioca no final da

década de 1940 e início da década de 1950, Sérgio Buarque de Holanda trazia ao

público o resultado das discussões em curso, organizadas pela Unesco, sobre os

diferentes sentidos do conceito de democracia. Após rodadas de discussões os

estudiosos chegaram ao consenso em um único ponto, qual seja, a de que “todas as

formas de democracia (…) participam de uma tradição comum de humanismo”.356

Cunhado em princípios universalistas, o sentido de humanismo atribuído

às democracias do pós-guerra, incluindo o ideal genérico de homem, é muito

próximo daquele atribuído ao historiador pelos seus pares, “o exemplo mais perfeito

do humanismo no século XX”, já que “tanto as formas coletivistas como as

instituições liberal-democráticas buscam igualmente a justiça, a igualdade, a

355 Folha de S. Paulo, 26 de abril de 1982. Caderno Ilustrada, p. 1. 356 HOLANDA, Sérgio Buarque de. A democracia e a tradição humanista. In: COSTA, Marcos (org.).Para uma nova história. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2004. p. 35. Publicadooriginalmente no Diário de Notícias, Rio de Janeiro, em 26 de junho de 1949.

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liberdade, a liberação do homem para o amplo desenvolvimento das suas

faculdades, o igual acesso aos benefícios da civilização e a livre participação nas

funções públicas”.357 Em suma, à época de sua morte e aos olhos de alguns amigos

próximos, Sérgio era muito mais um autor de literatura universal do que um possível

intelectual orgânico a municiar as esquerdas em sua luta política hodierna.

Passada uma semana de sua morte, as homenagens concentravam-se

agora na missa de sétimo dia que aconteceria no Convento dos Dominicanos no Rio

de Janeiro. Da família compareceram quase todos. A viúva e seis dos sete filhos.

Completando os presentes, muitos amigos. Não foi uma missa convencional, a

começar pela simplicidade, seguida de música, não aquelas carismáticas de

evocação à Deus, mas as de Chico Buarque, das quais Sérgio gostava muito e cujas

letras refletiam as aflições do povo, seus costumes e o cotidiano da “gente humilde”,

dos trabalhadores, etc. Mesmo assim, a liturgia fora seguida à risca. Nas primeiras

fileiras encontravam-se os familiares, dentre os quais Chico que estava

acompanhado de sua esposa, a atriz Marieta Severo. Parecia, dentre os outros, o

mais abatido.

As falas de Frei Beto mencionaram os escritos do morto. Afinal, além de

amigo, foi um de seus leitores. Para ele, eram livros que evocavam o nosso passado

profundo, que acusavam os verdadeiros objetivos dos colonizadores, que trouxeram

a morte aos índios, que saquearam nossas riquezas naturais e que denunciavam

também o autoritarismo ainda persistente, proclamava. Saindo da crítica aos

oprimidos, a cerimônia voltou-se à intimidade do casal tão bem conhecida do

religioso. Relatou, que “em sua última noite, Sérgio deu a mão à Maria Amélia e

pediu que cantasse com ele. Ela começou com “Acalanto”, mas ele disse: “essa

não!”, e começou a cantar “O que será”, uma de suas prediletas! Dentre os que

também assistiam a missa, além dos amigos próximos, talvez os amigos dos

amigos. Admiradores de seu trabalho como escritor, dentre eles Fernando Henrique

Cardoso.

No meio da celebração uma singela homenagem dos filhos ao pai. Escrito

por Maria Teresa e lido por Bebel Gilberto, neta de Sérgio, o pequeno texto já

anunciava um esboço oficial da vida do falecido, que aos poucos tomava corpo para

mais tarde materializar-se em diferentes instâncias de consagração. Eis o que ele

dizia:

357 Idem.

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Sérgio, pai nosso, a você que está no céu assim como entre nós aqui naterra, gostaríamos de repetir as palavras que te disse nosso queridíssimoFrei Beto: Sérgio Buarque de Holanda sempre foi jovem, de fina einteligente ironia. Emprenhou-se em seu trabalho pela ótica dos humilhados,dos pequenos e dos condenados da História. Você foi cremado para quesuas cinzas se tornem semente de uma vida nova. Vamos poderreencontrá-lo na brisa da manhã, nas flores, na grama do jardim, nasplantas, pois se tornará comunhão. Papioto, é como teus netos te chamam.Papioto quer dizer Papai Outro. É isto aí. Você foi e será para sempre o paioutro, muito grande e especial, de um mundão de jovens a quem vocêencontrou tempo e paciência para se dedicar, como se não te bastassetransmitir tanta sabedoria de vida a Miúcha, Sergito, Álvaro, Chico, Pii,Bahia, Cristina, os sete filhos que você acarinhou a Memélia. Com certeza,todos os seus muitos filhos aqui presentes, e também os distantes, estãopensando em você assim: Sérgio, alegria nossa, salve.358

Após as cinzas ao vento, tudo foi voltando à normalidade. Àqueles que

haviam homenageado o morto, “a família do escritor impossibilitada de agradecer

pessoalmente as manifestações de pesar de todos os amigos e entidades,

expressou seu profundo reconhecimento”, assinava D. Maria Amélia em uma nota

na imprensa.

E assim foram descansar, ao contrário da memória de Sérgio, que

ainda hoje permeia os mais diversos lugares. Como um espectro, um fantasma, ele

ainda vive em publicações póstumas e reedições, em corredores de universidades,

bibliotecas, em placas de rua, de praças e na memória histórica. Afinal, Chico

continua na pauta do dia, sobretudo após revelar um segredo que se esfarelou com

o pai. Sabia ainda que herdara dele certo talento literário. Agora, não apenas nas

páginas de jornais, ambos circulam lado a lado nas prateleiras de livrarias mundo

afora.359

3.2. A constituição de espaços de recordação: a Biblioteca e o Arquivo (de) Sérgio Buarque de Holanda na Unicamp

358 Homenagem escrita por Teresa Maria e lida por Bebel, por ocasião da Missa de Sétimo Dia,realizada no Rio de Janeiro. São Paulo, 01 maio 1982. Arquivo Central Unicamp/Siarq. Fundo SérgioBuarque de Holanda. Série Homenagens Póstumas, Hp 2. (Cópia datilografada com anotaçõesmanuscritas de Maria Amélia). 359 Esse texto foi escrito com base nos documentos contidos na Série Homenagens Póstumas, umadas tantas que formam o Fundo Privado Sérgio Buarque de Holanda, localizado no Arquivo Centralda Unicamp. Faço referência também ao último romance de Chico, O irmão alemão. São Paulo:Companhia das Letras, 2014.

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No início dos anos 1980 a Universidade Estadual de Campinas passava

por um período de crise institucional, sobretudo após a morte de Zeferino Vaz 360, em

1981. O panorama daquela época foi dominado por greves, passeatas, atos na

Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, mobilizando toda a comunidade

universitária por melhores condições salariais e de trabalho. No ambiente interno, a

institucionalização e a ampliação da participação da comunidade nas tomadas de

decisão eram bandeiras comuns, delas resultando na primeira consulta para

reitores. Mas se por um lado a crise serviu para alinhar docentes, servidores e

estudantes em busca de maior autonomia universitária, por outro, a mão autoritária

do estado ainda era presente.

Contrário a esse estado de coisas, o governador-biônico Paulo Maluf

promoveu, de maneira arbitrária, a intervenção no Conselho Diretor e nas diretorias

de unidades acadêmicas, resultando na exoneração de 8 diretores e na demissão de

14 membros da Associação dos Servidores da Unicamp-ASSUC. Em seguida houve

um clima de receio e cuidado para que a universidade se mantivesse preservada e,

após muitas manifestações contrárias aos interventores e algumas rodadas de

negociação, um governo de pacificação foi instaurado para serenar os ânimos.361

Em meio a essas questões José Aristodemo Pinotti, professor da

Faculdade de Ciências Médicas, foi nomeado reitor com o compromisso de iniciar o

processo de reconstrução física do campus e implementação da institucionalização

que previa a organização das instituições internas conforme determinavam os atos

estatutários e a atualização desses mesmos atos. No ano seguinte, em 1983,

ampliaram-se os debates em torno desses temas com ampla participação de

360 "O médico Zeferino Vaz (1908-1981) era bastante conhecido nos meios acadêmicos do paísdevido à sua atuação em outras instituições universitárias: fora diretor da Faculdade de MedicinaVeterinária da USP; criador e diretor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto-USP; presidente doConselho Estadual de Educação e reitor-interventor da UnB. Esta trajetória do Prof Zeferino Vaz deu-lhe não só experiência administrativa mas também trânsito político nos governos estadual e federal,beneficiando a Unicamp na aquisição de recursos para sua implantação e em seu desenvolvimento,que deu-se à margem de perseguições políticas e ideológicas comuns nas instituições públicas daépoca. A despeito de uma administração centralizadora e autoritária, as estratégias de marketing,gerenciamento empresarial e produtividade acadêmica utilizadas pelo Prof. Zeferino à frente daUnicamp possibilitaram que esta crescesse sem burocracia e que se mantivesse autônoma e livre deintervenções militares”. MENEGHEL, Stela Maria. Zeferino Vaz e a UNICAMP: uma trajetória e ummodelo de universidade. 1994. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas,Faculdade de Educação, Campinas, SP. p. ix. 361 ROSSIO, Neire Martins. Memória universitária: o Arquivo Central do Sistema de Arquivos daUniversidade Estadual de Campinas (1980-1995). 2012. Dissertação de Mestrado, UniversidadeEstadual de Campinas. Faculdade de Educação. pp. 2-3; SILVA, Patrícia Helena Gomes da. Ateatralização da memória: a cenificação da biblioteca Sérgio Buarque de Holanda na Unicamp.2008. Trabalho de Conclusão de Curso, Universidade Estadual Paulista, Marília, Faculdade deFilosofia e Ciências. p. 71.

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docentes, discentes e servidores, concluídos em 1986, com a nomeação do

economista Paulo Renato Costa Souza como reitor e pela instauração do Conselho

Universitário, órgão máximo deliberativo da universidade.362

Simultaneamente a essas querelas administrativas, a Unicamp entrava na

briga pela memória intelectual de Sérgio Buarque de Holanda, materializada em sua

vasta biblioteca, nos seus documentos e objetos pessoais. A nova gestão sabia que

não poderia perder tempo, pois o tesouro deixado pelo patriarca da família já era

alvo de cobiça da Universidade de São Paulo-USP e também de casas

especializadas, como a Parke-Bennet de Nova Iorque e a Sotheby de Londres,

ambas interessadas em algumas raridades lá contidas.

Indícios dessa movimentação podem ser encontrados, por exemplo, na

troca de ofícios entre a Universidade Estadual de Campinas-UNICAMP e a viúva do

Dr. Sérgio, mas também na imprensa e em outros registros. No dia 11 de junho de

1982, Maria Amélia recebia um documento oficial assinado por Pinotti,

demonstrando o interesse da instituição em adquirir o valioso acervo e no qual

expunha as seguintes “pré-condições”:

1) A Unicamp tem interesse na preservação da biblioteca particular doprofessor Sérgio Buarque de Holanda em toda a sua integridade, mantendoreunidos os livros, documentos, microfilmes, arquivos, e tudo o mais que lhefor confiado pela família, no entendimento de que esse acervo representa avida científica de um dos nossos mais respeitados intelectuais; 2) AUnicamp reservará instalações adequadas para a guarda do acervo e suautilização por pesquisadores do país e do estrangeiro e estudará aconveniência de instalar um “Centro de Estudos Brasileiros” que terá pornúcleo inicial a biblioteca aqui mencionada; 3) Na hipótese de constituiçãodo aludido Centro, que terá o nome do prof. Sérgio Buarque de Holanda,prever-se-á nas instalações um local adequado para a reconstituição do seuambiente de trabalho, aparelhando-o com os móveis, objetos de usopessoal e demais elementos que forem destinados pela família; 4) AUnicamp contatará pessoal especializado para a preparação, guarda eutilização do acervo, de forma a preservá-lo e mantê-lo na forma como foideixado; 5) A Unicamp designará uma Comissão de Professores que atuarácomo mediadora nas conversações com a família de Vossa Senhoria, parafins de avaliação, aquisição, traslado e guarda do acervo em seu campus,situado em Campinas.363

A resposta de Maria Amélia, em forma de carta, foi enviada alguns dias

depois. Nas linhas datilografadas à reitoria, no dia 22 de junho, destacam-se a sua

preocupação com a memória do marido e ainda a “pressão" que amigos próximos,

362 SILVA, op.cit., p. 71. 363 Ofício Gabinete do Reitor 366/82. “Aquisição da Biblioteca do falecido Professor Sérgio Buarquede Hollanda”. Processo nº 2891, 1º Volume. Folhas 2-3. Arquivo Central Unicamp.

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ligados ao Instituto de Estudos Brasileiros-IEB da Universidade de São Paulo-USP,

vinham fazendo para que o acervo restasse lá. Eis o que diz o documento:

Em meu nome e em nome de meus filhos venho agradecer-lhe a grandedeferência demonstrada em relação à memória de Sérgio. Ele nutria pelaUnicamp o maior apreço e, para nós, será um contentamento se vier a serpreservada e utilizada aí, parte do legado de toda a sua vida de trabalho. Sónão podemos, de imediato, levar adiante uma aceitação de sua honrosaproposta porque, antes de a recebermos, outros amigos já estavammobilizando para que o acervo fosse adquirido pelo Instituto de EstudosBrasileiros da USP, organizado por Sérgio, por delegação do então reitor,prof. Ulhoa Cintra. Hoje procurei a profa. Myriam Ellis, diretora do mesmoinstituto, expondo minha urgência de enviar ao senhor uma satisfação. (…)Independente desta resposta, no entanto, se uma comissão da Unicamp seinteressar por um primeiro contato com a biblioteca, ela se encontrará a seuinteiro dispor.364

O que mais chama a atenção nesse diálogo são os diferentes sentidos

que instituição e família atribuíram ao acervo bibliográfico em questão. Para a

Reitoria, o acervo representava "a vida científica de um dos nossos mais respeitados

intelectuais”, ou seja, nos transmite uma ideia de totalidade, grandiosidade, beirando

o “culto ao homem de letras” de outrora, cuja vida pública deve ser um espelho às

gerações futuras. Já para Maria Amélia, a vasta biblioteca era apenas “parte de um

legado”, um fragmento de escolhas conscientes daquilo que poderia ser exposto ao

público, construindo uma versão do marido, cuja memória ainda estava por ser

inscrita em suas outras dimensões.

A imprensa também cumpria o seu papel, não deixando passar a disputa

de bastidores envolvendo as duas instituições paulistas. Em 30 de setembro de

1982, “O Estado de S. Paulo” estampava a seguinte manchete: “Escolas disputam o

acervo do historiador”.365 Já “O Globo”, em tom mais “belicoso”, circulava com a

chamada: “Universidades em ‘guerra' pela biblioteca de Sérgio Buarque de

Holanda”.366 Em outro documento ainda, vemos os professores responsáveis pela

Comissão de aquisição da biblioteca pedindo à reitoria rapidez nos desdobramentos

do embate: “Informamos (…) que há grande interesse por parte da USP e de

universidades estrangeiras nessa aquisição, o que recomenda certa agilização do

processo respectivo”.367

364 Carta de Maria Amélia a José Aristodemo Pinotti, 22 de junho de 1982, Idem, Folha 5. 365 O Estado de S. Paulo, 30 de setembro de 1982, p. 17.366 O Globo, 9 de outubro de 1982, edição matutina, Caderno de Cultura, p. 29. 367 “Aquisição da Biblioteca do falecido Professor Sérgio Buarque de Hollanda”. Processo nº 2891, 1ºVolume. Folhas 11-12. Arquivo Central Unicamp.

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Da “batalha", como sabemos, saiu vitoriosa a Unicamp que superou a

falta de verbas apresentando à família de Sérgio as melhores condições físicas e

técnicas para a salvaguarda do material. Contou ainda a seu favor o fato de, desde a

década de 1970, ela ter uma política voltada à aquisição de coleções privadas e a

constituição de arquivos que retratassem aspectos da vida brasileira nos mais

diferentes campos.368

É nesse contexto de expansão de acervos, portanto, que se insere a

compra da biblioteca (de) Sérgio Buarque de Holanda e a posterior montagem de

seu arquivo pessoal, lugares fundamentais para a construção, manutenção e

divulgação de sua biografia. O nosso objetivo nessa parte do capítulo é descrever

como se deu esse complexo jogo burocrático de aquisição da biblioteca,

identificando na documentação da própria universidade, evidências que apontem a

construção de uma memória celebrativa em torno da figura de Sérgio Buarque de

Holanda. Expor essa trama se torna relevante porque é a partir dela que emerge o

"Fundo Sérgio Buarque de Holanda", cuja entrada no espaço público e a sua

disponibilização como fonte de pesquisa, ou seja, a sua funcionalidade, abrem lugar

para uma série de novas interferências ou “ativações” que alteram os sentidos

atribuídos ao conjunto documental original.369

Dentro desse entendimento, o estudo do arquivo de Sérgio Buarque

aponta para duas dimensões: uma, pessoal, viva, que passa por uma "escrita de si”

e a outra, institucional ou funcional, que atesta em diferentes níveis de intervenção,

a versão oficial do titular, garantindo para o futuro a sua dimensão simbólica. E qual

seria essa versão? Notavelmente a que foi escrita sob a perspectiva da "memória

368 O exemplo mais conhecido talvez seja o do "Arquivo Edgard Leuenroth”–AEL, composto pordocumentos acumulados pelo militante e historiador do movimento anarquista Edgar Leuenroth, aolongo de mais de cinco décadas e que contam capítulos importantes da nossa história social eoperária durante a primeira república, mas também dos modos de narrar a história brasileira,fortemente influenciada pela história social inglesa nos anos 1980. Na mesma época, sob a guardado Instituto de Estudos da Linguagem-IEL, vinham-se constituindo o “Arquivo de Línguas Indígenas",o "Arquivo de Português Culto falado em São Paulo", o "Arquivo de falares rurais afro-brasileiros eoutros falares" e o "Arquivo Pessoal de Brito Broca” (1903-1961). Em relação às bibliotecas, aUnicamp passou a incorporar muitos acervos, como a biblioteca de Paulo Duarte, em 1970, cujasobras tratam de história, sociologia e antropologia do Brasil. Em seguida veio a do historiador HélioVianna, adquirida pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da universidade, em 1973. Em 1980,foi a vez da aquisição da biblioteca de Theodoro Henrique Maurer Júnior, composta de ricos materiaisde linguística românica e linguística do português do Brasil, com cerca de 5 mil obras especializadas.No ano seguinte, o Instituto de Estudos da Linguagem recebeu a doação da coleção bibliográfica deMüller-Carioba, contendo livros gregos, italianos, ingleses, alemães e latinos, concomitante à doaçãoda Biblioteca Cornélio Penna.369 Essa ideia foi defendida por Luciana Quillet Heymann em seu livro "O lugar do arquivo: aconstrução do legado de Darcy Ribeiro”, Rio de Janeiro: Contra Capa/FAPERJ, 2012.

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experiencial das testemunhas”, ou seja, aquela traduzida em uma memória cultural

da posteridade, uma memória viva suportada em mídias, protegida por portadores

materiais, como monumentos, memoriais, museus e arquivos e que no nível coletivo

e institucional são guiados por uma política específica de recordação e

esquecimento.370

Tal memória estabeleceu definitivamente o lugar de Sérgio Buarque nos

campos disciplinares da história e da crítica literária. Iniciada por Sérgio e transmitida

por seus pares e discípulos a partir da década de 1980, esse excesso de memória

viva primou por um caráter excepcional da personagem, pela sua condição de

mestre, por um recorte cronológico específico de sua vida e por seu viés político à

esquerda, predominando nessas narrativas, além dos atos de poder de quem as

definiu, o fatalismo biográfico. Em suma, uma biografia modelar, inscrita também em

celebrações, homenagens póstumas, coletâneas e na publicação de inéditos que

(re)atualizam no tempo a versão unívoca de sua trajetória intelectual.

3.2.1. Os labirintos burocráticos e a compra da Biblioteca

Era 13 de julho de 1982 quando o ofício número 223/82, enviado pelo

professor Jesus Antônio Durigan, diretor associado do Instituto de Estudos da

Linguagem-IEL chegava às mãos do reitor José Aristodemo Pinotti. O documento

tratava da indicação de nomes para compor uma comissão que seria encarregada

de estudar, avaliar e encaminhar os procedimentos para a “aquisição da valiosa

Biblioteca do Professor Sérgio Buarque de Holanda”. Construía-se nesse momento o

início de um diálogo envolvendo a universidade, a família do morto e diversos

órgãos de fomento à pesquisa. O volume de documentos surgidos dessas

conversas, incluindo trocas de ofícios, cartas, relatórios descritivos, minutas de

contratos, notas de empenho, bilhetes, comunicados, etc., foi reunido nas duas

partes do Processo nº 8291/82 que discriminava a “Aquisição da Biblioteca do

falecido Professor Dr. Sérgio Buarque de Hollanda”. É com base nesses

documentos que contaremos essa história.

370 ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação: formas e transformações da memória cultural.Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2011. p. 19.

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Não demorou muito mais do que 48 horas para que os nomes sugeridos

fossem aceitos pelo Reitor e homologados por uma Portaria. Segundo o documento,

a Comissão ficava assim constituída: Professor José Roberto do Amaral Lapa,

Presidente; Professor Alexandre Eulálio Pimentel da Cunha; Professora Adélia

Bezerra de Menezes Bolle; e, Professor Ataliba Teixeira de Castilho.371 Dois meses

após iniciados os trabalhos, a Comissão já apresentava os primeiros resultados.

Sabiam que não podiam perder tempo, já que a USP, concorrente direta no

processo, também havia montado um grupo de trabalho encabeçado pela professora

e diretora do Instituto de Estudos Brasileiros-IEB, Myrian Ellis.

No relatório entregue em 22 de setembro de 1982, a Comissão divulgava

à Reitoria as primeiras informações detalhadas do que haviam encontrado entre as

estantes e prateleiras da casa da rua Buri. Na parte documental, destacam-se

manuscritos de produção científica original, correspondência ativa e passiva,

microfilmes de documentação inédita provenientes de arquivos brasileiros e

estrangeiros e exemplares de teses inéditas de cuja banca Sérgio participou. O

fundo propriamente bibliográfico contava com cerca de 10 mil volumes e com um

setor de obras raras, sendo 50 delas de extrema preciosidade “altamente cotadas no

mercado internacional, e já preteridas por livrarias especializadas", como as citadas

Parke-Bennet e a Sotheby.372

Na mesma época, um importante livreiro de São Paulo foi procurado pela

Comissão para que emitisse um parecer, avaliando em números, a coleção. No

relatório entregue à reitoria no dia 26 de outubro, Álvaro Bittencourt, da famosa

livraria “Parthenon”373, não apenas sustentava o relatório descrito, como também

informava com maiores detalhes o que havia prestigiado, justificando assim, o preço

final de Cr$ 100 milhões de Cruzeiros. Segundo ele, tratava-se "de um rico e

expressivo acervo de quase 10 mil volumes versando sobre história, artes,

sociologia, filosofia, literatura, política e áreas de ciências humanas de modo geral,

371 Portaria Interna Gabinete do Reitor 045/82. Processo nº 2891, 1º Volume. Folha 9. ArquivoCentral Unicamp. 372 Para um "Centro de de Documentação da Memória Nacional” na Unicamp, Relatório de Comissão.“Aquisição da Biblioteca do falecido Professor Sérgio Buarque de Hollanda” . Processo nº 2891, 1ºVolume. Folha 17. Arquivo Central Unicamp. 373 Fundada pelos bibliófilos José Mindlin, Cláudio Blum e Jacques Bloch, a loja, localizadaprimeiramente na rua Barão de Itapetininga, 40, seria dedicada ao comércio de obras raras. Em 1951o estabelecimento passou às mãos de Álvaro Bittencourt, que começou a vender outros tipos delivros, além das edições de luxo. Em 1978, a loja mudou-se para o novo centro financeiro de SãoPaulo, a Avenida Paulista.

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de procedência nacional e estrangeira”, vários desses com anotações feitas por

Sérgio Buarque de Holanda nas margens ou no final do volume.

Havia também cerca de 400 obras raras, dentre as quais 3 volumes das

narrativas de Giovan Battista Ramusio374, “muito bem conservados”, editados em

Veneza no século XVI, um dos seis exemplares de que se tem notícia e o único

existente no Brasil, além dos “Emblemata" de Andrea Alciati375 do mesmo período.376

Não seria exagero acreditar que essas relíquias possam ter sido adquiridas por

Sérgio durante a sua estada em Roma, entre 1953 e 1954, período em que

intensificou os estudos sobre história literária, pesquisando arquivos e bibliotecas de

diferentes cidades europeias e vasculhando livrarias e casas especializadas em

momentos de folga.

De resto, segundo Bittencourt, foram listadas coleções raras de revistas

brasileiras, como as modernistas “Klaxon" e “Estética” e estrangeiras, muitas das

quais completas e de difícil acesso, enciclopédias especializadas em história e

história da cultura, separatas, “curiosos livretos e folhetos sobre São Paulo e cidades

paulistas”, fichas de trabalho, manuscritos e inúmeros documentos datilografados ou

manualmente copiados no Brasil e no exterior. Destaque do acervo são as inúmeras

edições originais de autores brasileiros, a grande maioria com dedicatórias

autografadas, como vistos em “Há uma gota de sangue em cada poema”, de Mário

de Andrade, “Os parceiros do Rio Bonito” de Antonio Candido, “Velórios de Rodrigo

M. F. de Andrade, “A trilogia do exílio” de Oswald de Andrade, “A bolsa e a vida” de

Carlos Drummond de Andrade ou “O homem nu” de Fernando Sabino.377

374 RAMUSIO, Giovan Battista. Primo volume delle navigationi et viaggi: la descrittione dell'Africa & delpaese del Prete Ianni, con varij viaggi, dalla Citta di Lisbona, & infin!all isole Molucche, doue nasconole Spetiere, et la Navigatione attorno il Mondo. Seconda editione in molti luoghi corretta, et ampliata.In Venetia: nella Stamperia de Giunti, 1554; RAMUSIO, Giovan Battista. Secondo volume dellenavigationi et viaggi, nel quale si contengono l'Historia delle cose de Tartari, & diversi fatti de loroImperatore, descritta da M. Marco Polo Gentilhuomo Venetiano, & da Hayton Armero, variedescrittioni di diversi autori... In Venetia: nella Stamperia de Giunti, 1559; RAMUSIO, Giovan Battista.Terzo volume delle navigationi et viaggi, nel quale si contengono le Navigationi al Mondo Nuovo, a gliAntichi incognito... Seconda edtioni. In Venetia: nella Stamperia de Giunti, 1565. 375 ALCIATI, Andrea. Andreae Alciati emblemata cum commentariis. Patavii (Italia): Typis PauliFrambotti Bibliopollae, 1661.376 Relatório de Álvaro Bittencourt entregue à Reitoria. “Aquisição da Biblioteca do falecido ProfessorSérgio Buarque de Hollanda”. Processo nº 2891, 1º Volume. Folha 21. Arquivo Central Unicamp. 377 Idem.

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Figura 1: Folha de rosto de livro com dedicatória de Mário de Andrade378

Fonte: ANDRADE, Mário de; SOBRAL, Mario (Coaut. de). Há uma gota de sangue em cada poema. SãoPaulo, SP: Pocai, 1917. Coleção Biblioteca Sérgio Buarque de Holanda, Biblioteca Central-Unicamp.

Importante frisar que junto a esse importante acervo cultural, “a família

Buarque de Holanda aquiesceu incorporar, para efeito de sua venda, as estantes

que contêm os livros, bem como o mobiliário de trabalho do escritório tal como foi

deixado pelo insigne historiador”. Desse modo, a família não interferia somente na

seleção de papéis, “apenas uma parte do legado”, vale lembrar, como também na

etapa de "musealização" da biblioteca, prevista para ocupar um lugar de destaque

na futura sede da Biblioteca Central da Unicamp. Segundo o relatório da Comissão:

378 “Sérgio Buarque de agá ó dois eles á êne dê á, com a parte de mim que talvez esse livro nãoconte… Será que não conta mesmo? Acho que conta sim tudo o que afinal não posso de, vulgo: umabêsta. Adonde é mesmo que você está morando agora? De automóvel sei ir porém pelo Correio nãosei. Ergo: baldeação Prudentico. Mário de Andrade.

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Os livros e documentos constituirão um importante centro de pesquisaspara as áreas de Pós-Graduação em Letras, História, Ciências Sociais,Artes e Educação. Os objetos pessoais e os móveis, devidamenteordenados em local próprio no novo edifício da Biblioteca Central,constituirão uma memória para as novas gerações e um exemplo para ospesquisadores que certamente acudirão de todas as partes, atraídos poresse importante acervo. Em seu conjunto, eles representam uma destacadacontribuição aos estudos brasileiros que se desenvolvem nestaUniversidade, e seu natural desenvolvimento na direção dos estudos latino-americanos, tudo o que poderá ensejar, por sua vez , um novo espaçocriativo de pesquisas e produção de conhecimentos, sob a motivação de umnome e de uma obra que constituem um dos grandes momentos dopensamento brasileiro. Sérgio Buarque de Holanda.379

É razoável entendermos esse processo como uma troca simbólica no

campo cultural, pois, se por um lado, a Unicamp garantia à Sérgio Buarque um

"lugar de memória”380 e de perpetuação de seu legado intelectual, por outro, o peso

do seu nome conferia à jovem universidade em expansão ainda mais prestígio e

credibilidade acadêmica no campo das humanidades, vislumbrados na expectativa

futura de "atrair pesquisadores de várias partes” do mundo interessados no tesouro.

Desnecessário seria listar todo o mobiliário que pouco depois acabou

sendo adquirido pela universidade; todavia, alguns objetos merecem nossa atenção.

Além dos muitos metros de estantes e prateleiras que ocupavam cômodos e

corredores da casa da família, em São Paulo, podemos destacar dentre os itens que

compunham o escritório, “tal como foi deixado” por Sérgio: 1 máquina de escrever

IBM com corretivo; uma máquina leitora de microfilmes “FUJI Microfilm Reader

Pinter Q4”, 1 escrivaninha de madeira clara com corte arredondado ao centro; sobre

ela, fazendo parte do móvel, 1 estante com 5 prateleiras de ambos os lados da

escrivaninha, 2 portas com 1 prateleira interna e 5 prateleiras acima; 1 cadeira de

379 Para um "Centro de de Documentação da Memória Nacional” na Unicamp, op.cit., Folhas 18-19. 380 A ideia de “lugares de memória” desenvolvida por Pierre Nora ganhou vida própria e vem sendoconstantemente utilizada de maneira aleatória e sem muito entendimento preciso de seu significadohistórico. De maneira rápida, esse conceito se desenvolve dentro dos debates historiográficosfranceses da década de 1970, cujo manifesto será a coletânea ‘Faire de la Histoire’, livro publicadoem 1974 que pôs em destaque os problemas teóricos que a disciplina histórica tinha diante de si, aexemplo do artigo de Michel de Certeau, “A operarão historiográfica”, um contraponto às provocaçõesde Hyden White em “Meta-História" (1973) contido no volume. Do ponto de vista político, houve naFrança na mesma época a “emergência do problema da memória como preocupação histórica”,resultante da morte do General De Gaulle e do aumento progressivo do culto ao patrimônio. Maioresdetalhes em: BREFE, Ana Cláudia Fonseca. Pierre Nora ou o historiador da memória. Entrevista comPierre Nora. História Social, Campinas, nº 6, 1999, pp. 13-33. Nesse sentido, para não corrermos orisco de cair no vazio conceitual, utilizamos aqui o termo de maneira um pouco mais livre, semreferência direta à obra, todavia chamando a atenção para um ponto que ela levanta: “(...) a razãofundamental de ser de um lugar de memória é parar o tempo, é bloquear o trabalho do esquecimento,fixar um estado de coisas, imortalizar a morte, materializar o imaterial”. NORA, Pierre. Entre mémoireet histoire. La problemátique des lieux. In: ______. (org.). Les lieux de mémoire. vol 1. LaRépublique. Paris: Gallimard, 1984. p. 22.

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madeira, acento de palhinha, arredondada atrás; 1 cadeira tipo descanso, de

madeira escura, encosto regulável para trás e 1 sobressaltaste para frente, com 2

almofadas, assento e encosto listrados; troféus que Sérgio Buarque recebeu (Juca

Pato “O intelectual do ano" de 1979, Prêmio Jabuti, por "Tentativas de Mitologia”); e

1 placa de prata oferecida pelo Conselho Municipal de Educação de Bauru.381

O escritório ou gabinete de leitura, reordenado a partir desses objetos no

novo espaço de visitação e como o encontramos ainda hoje, era muito diferente

daquele outro, “tal como foi deixado” por Sérgio em sua residência. O exame de

alguns registros fotográficos da época aponta para a existência de um espaço

doméstico predominantemente masculino, bagunçado, que destoava de outros

cômodos da casa, de ordenação atribuída às mulheres, esposas ou governantas, tal

como apontaram em seus estudos Regina Abreu e Vania Carneiro de Carvalho382. É

sabido que Sérgio pertenceu a uma geração de intelectuais, denominada de

“homens de letras”, cujas características incluíam o bacharelado em Direito ou

Medicina, o autodidatismo, o domínio de várias línguas estrangeiras e de disciplinas

variadas, indo das artes à literatura, passando bem pela sociologia, antropologia,

etnologia, alcançando as carreiras jornalística ou política até chegarem na erudição

da disciplina histórica.

Na casa desses letrados, desde os mais ricos até os intimistas e

modestos, como demonstra a iconografia masculina da primeira parte do século XX,

estudada por Carvalho, as mesas de trabalho situadas no escritório que podiam

abrigar bibliotecas ou parte delas, como no caso de Sérgio, se constituíam como

“territórios de exceção”, imunes à ordenação doméstica supervisionada pelas

esposas ou criadas e longe da curiosidade dos filhos. Sobre as mesas podiam

figurar papéis, livros, tinteiros, canetas, telefones, carimbos, arquivos, máquinas de

escrever, etc.383 Imagem reforçada por Chico Buarque em seu último romance,

quando Ciccio, o personagem-narrador, descreve a rotina do pai no escritório de

trabalho, local proibido, vedado às suas curiosidades. À Assunta, mãe da

381 “Aquisição da Biblioteca do falecido Professor Sérgio Buarque de Hollanda”. Processo nº 2891, 2ºVolume. Folhas 49-50. Arquivo Central Unicamp. 382 ABREU, Regina. A Fabricação do imortal: memória, história e estratégias de consagração noBrasil. Rio de Janeiro: Rocco: Lapa, 1996; CARVALHO, Vania Carneiro de. Gênero e artefato: osistema doméstico na perspectiva da cultura material - São Paulo, 1870-1920. São Paulo, SP: Editorada USP: FAPESP, 2008.383 CARVALHO, op.cit., p.150.

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personagem, cabia o papel de assistente do marido em seus delírios criativos.

Vejamos um trecho:

“Por via das dúvidas, quando ao sair do quarto eu ouvia o toque-toque damáquina de escrever, tirava os sapatos e prendia a respiração para passarao largo do seu escritório. E me encolhia todo se por azar naquele instanteele arrancasse num ímpeto o papel do rolo, achava que em parte era demim a raiva com que ele esmagava, embolava a folha e a arremessavalonge. Outras vezes a máquina cessava para meu pai pedir socorro:Assunta! Assunta!, era alguma citação que ele precisava transcreverurgentemente de um determinado livro. Com isso levava meses para redigir,rever, rasurar, arremessar bolotas, recomeçar, corrigir, passar a limpo ecertamente contrafeito entregar para publicação o que seriam rascunhos doesqueleto do grande livro da sua vida. Eram artigos sobre estética,literatura, filosofia, história da civilização, que ocupariam uma coluna ou umrodapé de jornal”.384

Ao longo de sua pesquisa, Carvalho afirma que era comum em muitas

imagens os homens aparecerem “sentados, mãos sob o queixo em posição de

leitura prolongada, escrevendo ou manipulando livros e papéis”, "exibição de si

mesmos” e fato raro para os ramos de atividade ligados ao trabalho manual. A

autora observa ainda, a presença de “verdadeiras mesas de trabalho, onde a

desordem, apenas aparente e circunstancial, significava algo extremamente positivo

e respeitável - o momento de reflexão, de criação, de estudo, imagens do trabalho

intelectual, atribuição masculina revestida do mais alto prestígio”385, tudo aquilo que

a cenificação do “escritório-museu” nos subtraiu. Abaixo podemos ter a dimensão

dessas diferenças:

Figura 2: Reconstituição do escritório e biblioteca de Sérgio Buarque de Holanda. BC, Unicamp, 2012

384 BUARQUE, Chico. O irmão alemão. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.385 CARVALHO, op.cit, pp. 43-48.

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Fonte: Fotografia tirada pelo autor, acervo particular.

Figura 3: Escritório e biblioteca de Sérgio Buarque de Holanda, em sua residência à Rua Buri, pouco antes deseu falecimento, São Paulo, fevereiro de 1982

Fonte: Fotografia tirada por Maria do Carmo Buarque de Holanda. Fundo Sérgio Buarque de Holanda, Série VidaPessoal, Arquivo Central, Unicamp

Em outra direção, arriscamos que é também possível atribuir a esse

mobiliário o sentido que Krzysztof Pomian definiu como "coleção", ou seja: “(…)

qualquer conjunto de objetos naturais ou artificiais, mantidos temporária ou

definitivamente fora do circuito das atividades econômicas, sujeitos a uma proteção

especial num local fechado preparado para este fim, e exposto ao olhar do público.

Somando-se a função dos objetos de serem intermediários entre os espectadores e

um mundo invisível de que falam os mitos, os contos e as histórias”.386

Desse modo, por exemplo, o visitante poderia observar a máquina de

escrever “Royal", na qual foi datilografado “Raízes do Brasil”, os troféus de prêmios

literários como o “Juca Pato”, recebido da Associação Brasileira de Escritores ou as

cadeiras que Sérgio utilizava para leituras e repouso, as primeiras edições de suas

obras, em suma, o triunfo do intelectual bem-sucedido, imagem que deveria

perpassar às gerações futuras.

Antes, porém, de concretizar a compra de todo esse material e inaugurar

um espaço apropriado a ele, a Unicamp precisava captar recursos para efetivar o

pagamento estimado de Cz$ 100 milhões de cruzeiros, que ficou especulado com os

herdeiros do historiador. Nesse sentido, é possível acompanharmos por meio da

386 POMIAN, Ktrzysztof. Coleção. In: Enciclopedia Einaudi. vol. 1 Memória-história. Lisboa:Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1984. p. 67 e 71.

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documentação, as dificuldades encontradas pela universidade para dar cabo a esse

ambicioso empreendimento de expansão cultural que previa tirar do papel o “Projeto

Pró-Memória Brasil” e estabelecer um "Centro de Estudos Latino-Amercianos".

Um exemplo disso é a negativa do Unibanco ao ofício expedido por José

Aristodemo Pinotti no dia 4 de outubro de 1982, na qual o seu diretor-presidente,

Roberto Konder Bornhausen, após delongas elogiosas, expunha o seguinte:

Em primeiro lugar gostaríamos de levar a V. Sa. os nossos mais sinceroscumprimentos pelo seu empenho em dar continuidade a tão significativoprojeto de aquisição de bibliotecas e arquivos particulares dos nossosmaiores literatos, iniciativa esta que vem enaltecer ainda mais a nossa jáconceituada Universidade Estadual de Campinas. De outra parte, é compesar que vimos comunicar sobre a possibilidade de levarmos o nossoefetivo apoio a tão relevante iniciativa, merecedora do maior estímulo porparte de todos, uma vez que, por contingências orçamentárias, não temoscomo atender no presente exercício, a pedidos como este ora formulado porV. Sa.387

Ao que tudo indica, cópias do mesmo ofício foram enviadas a outras

empresas privadas por todo o Brasil, como também a órgãos públicos. Uma delas foi

recebida pelo “Bradesco", que justificando estar com as suas ações sociais em dia

através de sua Fundação, lamentava com elevada estima não poder ajudar:

“Informamos-lhe que, infelizmente, não podemos atender seu pedido. O nosso

orçamento, com verbas substanciais, já está, prioritariamente, comprometido com o

trabalho de assistência e ensino primário a mais de 17.500 menores carentes, nas

18 escolas instaladas no país”.388

Em outras respostas, o discurso ou as desculpas eram sempre as

mesmas. O “Brasilinvest", por intermédio de seu presidente Mário Garneiro, anotava

em 12 de novembro de 1982, que “embora reconhecendo (…) o elevado alcance da

iniciativa”, a empresa não tinha possibilidade, no momento, de destinar recursos a

esse fim, idêntico ao que advogava um representante da “Mercedes-Benz do Brasil”,

que, “embora entendendo ser o referido projeto de grande valia para o

desenvolvimento cultural dos pesquisadores em geral”, “desculpava-se” da

impossibilidade de assumir quaisquer compromissos.389

387 “Aquisição da Biblioteca do falecido Professor Sérgio Buarque de Hollanda” , op.cit.,1º Volume.Folha 23. Arquivo Central Unicamp. 388 Idem, Folha 24389 Ibidem, Folhas 26-27.

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Algumas entidades, no entanto, se mostraram bastante receptivas ao

projeto da universidade, como foram os casos da companhia de saúde, higiene e

beleza "Johnson & Johnson” e da “Fundação Ford”. A primeira registrou a satisfação

de passar às mãos da universidade, através do “portador, nosso colaborador Dr.

João Alfredo Mendes Filho, o cheque 074299 de nossa emissão contra o Unibanco,

no valor de Cr$ 200.000,00 cruzeiros”. Recursos muito bem-vindos, como podemos

ver nos agradecimentos enviados à empresa pelo Reitor José Pinotti: “(…) ao

colaborar com a iniciativa em questão, a ‘Johnson & Johnson’ trabalha lucidamente

em favor da própria coletividade, pois uma universidade como a nossa, fortemente

voltada para a investigação, sempre balizou sua existência ativa pelos interesses da

comunidade que serve. (…) Com os nossos sinceros agradecimentos”. Já a outra,

após destacar a importância nacional e internacional do acervo a ser adquirido e

"não dispondo de recursos especiais para essa finalidade”, se mostrou disposta a

colaborar “ainda que de forma modesta” em apoio e reconhecimento à causa, sob a

condição de ficar a par do andamento do projeto, bem como do interesse

demonstrado por outras fontes de financiamento do mesmo.390

Dentre as instituições públicas que foram chamadas a participar com a

disponibilização de recursos, a “Financiadora de Estudos e Projetos”-FINEP se

comprometeu quase que com metade deles. Os 40% do custo orçado do acervo,

destinados à Unicamp de forma complementar, possibilitaram à universidade

formalizar uma proposta oficial de compra da biblioteca, mesmo “levando em conta

as dificuldades naturais à execução de um orçamento” desse porte. Um documento

do gabinete do reitor, elaborado em 27 de janeiro de 1983 e endereçado a Maria

Amélia, propunha que a família recebesse a "Comissão designada para assinalar

essa matéria”, estabelecendo com ela o custo final da compra.

Em 24 de fevereiro a comissão entregou ao reitor uma síntese desse

encontro, na qual os herdeiros se dispunham a receber o montante oferecido pela

universidade. Anexada ao documento, uma carta assinada por Sérgio Buarque de

Holanda Filho, procurador da família, oferece mais detalhes daquilo que ficou

acertado:

(…) recebi hoje a Comissão designada por Vossa Excelência para aaquisição da biblioteca do meu pai. Desejo inicialmente manifestar (…) aconcordância da família com relação à avaliação procedida no final do ano

390 Idem, Folhas 35-36.

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passado, que estabelecia o total Cr$ 100.000.000,00 (cem milhões decruzeiros). Não obstante, e para preservar esse valor do desgaste a quevem sendo submetida nossa moeda, é nossa intenção propor-lhe suacorreção a partir da data da carta do avaliador, mediante a aplicação de umdos índices e correção monetária vigentes. Com respeito a sua forma depagamento (…) concordaríamos com um pagamento parcelar, aplicando-seao saldo devedor os mesmos índices de preservação de seu valoraquisitivo, ao longo de 1983.391

Exatamente um mês depois e já dispondo de quase toda a quantia

necessária para a transação, José Aristodemo Pinotti autorizou, enfim, a compra da

biblioteca, celebrada a partir da assinatura de contrato em 27 de maio de 1983392 e

do pagamento no ato da primeira parcela estimada em Cr$ 40 milhões de cruzeiros.

Não nos cabe nesse espaço descrever cada uma das cláusulas; todavia, uma delas

merece destaque, já que reforçava pelas letras jurídicas o esforço conjunto que

universidade e família vinham realizando na constituição e manutenção da memória

do falecido historiador. Segundo a cláusula nona:

A COMPRADORA obriga-se a constituir com o acervo um centro depesquisas para as áreas de Pós-Graduação em Letras, História, CiênciasSociais, Artes e Educação e estudar a conveniência de instalar um “Centrode Estudos Brasileiros” que terão por núcleo inicial a biblioteca objeto dopresente contrato. Na hipótese de constituição ao aludido Centro, o qualterá o nome do Prof. SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA, preservar-se-ánas instalações, um local adequado para a reconstituição de seu ambientede trabalho, aparelhando-o com os móveis e objetos de uso pessoal edemais elementos que forem destinados pela família. A compradoracontratará pessoal especializado para a preparação, guarda e utilização doacervo, de forma a preservá-lo e mante-lo, na forma como foi deixado peloProf. SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA.393

Oficializada a compra, coube a um professor da USP as autocríticas à sua

universidade por não terem adquirido o valioso acervo de um de seus mais ilustres

mestres. Tomado de certa perplexidade, o ex-assistente de Sérgio Buarque, o

professor José Sebstião Witter, à época também supervisor do Arquivo Público do

Estado de São Paulo, escreveu em 31 de março dois ofícios. Um deles, enviado à

reitoria, parabenizava a Unicamp pela façanha, ressaltando a importância da

391 Ibidem, Folha 53. Importante registrar, que pouco depois, em 2 de março de 1983, a Comissãorelatou à reitoria uma outra conversa que tiveram com Sérgio Buarque de Holanda Filho. Na ocasiãoa família assinalava que a correção monetária deveria se dar a partir de 1º de janeiro de 1983,favorecendo, desse modo, a Unicamp. 392 Reitoria, Resumo de Contratos, Processo 2981/82, contrato 1483. Diário Oficial do Estado deSão Paulo, 11 de junho de 1983, página 11. 393 Termo particular de Contrato de compra e venda do acervo bibliotecário e documental doProfessor Sérgio Buarque de Holanda. In: “Aquisição da Biblioteca do falecido Professor SérgioBuarque de Hollanda”, op.cit.,1º Volume. Folha 82. Arquivo Central Unicamp.

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permanência da biblioteca no estado, o seu valor inestimável e a manutenção de

sua unidade, desejos do titular e de seus herdeiros.

O outro foi enviado ao chefe do Departamento de História da Faculdade

de Filosofia, Ciências e Letras-FFLCH da USP, professor Carlos Guilherme Mota. No

documento, Witter não escondia o desencanto com a instituição devido à falta de

sensibilidade e empenho dos seus dirigentes para que a biblioteca de Sérgio

Buarque ficasse lá. Em suas palavras: “(…) registro o fato e alerto o colega e Chefe

de Departamento para a falta de vigor de nossa universidade, que não procura se

agilizar para competir e ocupar o lugar que lhe é destinado na sociedade paulista.

Parece que a inércia nos relegará ao esquecimento, até mesmo daqueles que foram

nossos alunos”.394

Frustração de uns, alegria de outros, o certo é que poucos meses depois,

em cumprimento à cláusula sétima do contrato, a Unicamp começava o trabalho de

traslado do acervo cultural do local onde se encontrava, a rua Buri, 35, no

Pacaembú, em São Paulo, para as próprias dependências da universidade, que

previa ainda a contratação de pessoal especializado para a preparação, guarda e

disponibilização de todo o conjunto. Em se tratando de um grande volume de livros,

dentre eles obras raras, objetos pessoais, documentação e mobiliário, coube à

universidade um planejamento minucioso para que tudo corresse dentro dos

conformes.395

Não convém nessa parte do capítulo expor as manobras burocráticas em

curso na universidade naquela época, mesmo porque o assunto já foi tratado de

maneira pontual por outros pesquisadores. Todavia, é válido ressaltar que foi

durante essa “fase de institucionalização”, desdobramento da crise interna citada no

início dessa seção, que foi criado o "Centro de Informação e Difusão Cultural”-

CIDIC, um órgão previsto nos Estatutos (1980) e no Regimento Interno da

394 SILVA, Patrícia Helena Gomes da. op.cit. p. 85; Carta de José Sebastião Witter a Maria AméliaBuarque de Holanda, comunicando que enviou à USP e à UNICAMP, correspondência sobre aaquisição do acervo de Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo, 31 maio 1983. 1p. (anexocorrespondência mencionada), Hp 14, Fundo Sérgio Buarque de Holanda, Arquivo Central Unicamp. 395 Segundo o “Relatório Preliminar sobre a mudança da ‘Biblioteca Sérgio Buarque de Holanda’”, otraslado iniciado em 19 de julho de 1983 contava com mais duas etapas, sendo elas em 19 de agostoe 26 de agosto. Ainda segundo o relatório, os períodos entre 22 e 25 de agosto e 29 de agosto e 2 desetembro seriam reservados para o arranjo do material, que ficou alocado provisoriamente na antigasede da Fundação de Desenvolvimento da Unicamp-FUNCAMP. In: In: “Aquisição da Biblioteca dofalecido Professor Sérgio Buarque de Hollanda”, op.cit.,1º Volume. Folhas 141-144. Arquivo CentralUnicamp.

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Universidade (1974), que estabelecia como subordinados a Biblioteca Central, já

instalada desde 1967 e uma Divisão de Documentação em fase de construção.396

Para os nossos propósitos esse órgão se torna importante porque quem o

coordena é Ataliba Teixeira de Castilho, integrante da Comissão que avaliou a

biblioteca de Sérgio Buarque de Holanda e responsável pela contratação, via

FAPESP, dos profissionais técnicos (dois bibliotecários e um arquivista) que

iniciaram os trabalhos de tratamento do acervo bibliográfico recém-adquirido.397

Durante essa etapa, muitos documentos vistos como “pessoais”, foram sendo

encontrados aleatoriamente em meio aos livros, os quais passaram a integrar junto

com outros papéis existentes nas coleções de Paulo Duarte e Zeferino Vaz, a

Divisão de Documentação.

Esta ganharia, em 1986, o contorno que conhecemos hoje de Arquivo

Central, constituída definitivamente como órgão complementar à Reitoria,

encarregado pelas suas políticas arquivísticas, em 1995, quando o CIDIC é extinto.

A partir de então foram fixadas duas categorias para a constituição de fundos dentro

da Unicamp: uma, de documentos produzidos e recebidos pelos órgãos da

universidade, constituintes de sua memória institucional, e outra, de fundos privados,

o patrimônio adquirido por ela em duplo sentido, de bem material e de bem cultural,

divulgador de memórias, de livre acesso a pesquisadores e outros visitantes.398

A Unicamp, após cumprir as promessas expostas em 1983, – instalações

adequadas para a guarda do acervo, espaço para a reconstituição de ambiente de

trabalho e contratação de pessoal especializado para o tratamento e disponibilização

do material – enfim, entregava ao público, em 12 de agosto de 1986, a Biblioteca

(de) Sérgio Buarque de Holanda e seu “escritório-museu” numa inauguração solene,

que contou com exposição de fotos e com a presença de autoridades, como o novo

Reitor, Paulo Renato Souza, da viúva e filhos do casal.

Não podemos deixar de explicitar o fato de que essa inauguração ocorreu

durante a "V Semana Sérgio Buarque de Holanda”, evento que tinha além desse

objetivo, o de comemorar os cinquenta anos da primeira edição de “Raízes do

Brasil”. Essas “Semanas" foram instituídas pela Secretaria de Cultura do Estado de

São Paulo em 28 de abril de 1982, por meio da Resolução 19, assinada pelo

396 MARTINS, Neire do Rossio, op.cit., p. 19.397 Para mais detalhes sobre esse processo de preparação técnica ver: Projeto FAPESP 83/0959 eProcesso FAPESP 85/0084-9. Fundo CIDIC, Caixa 2, Maços 20-21. Arquivo Central Unicamp. 398 Idem, pp.3-6.

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secretário extraordinário à época, o senhor Antônio Henrique da Cunha Bueno,

nomeado pelo governador-biônico Paulo Maluf. Na prática, o evento entrava para a

programação oficial do estado, cabendo a essa secretaria a organização,

planejamento e execução de atividades que incluíam conferências, seminários,

debates e concursos “versando sobre a vida e obra do seu patrono”. Em suma, o

objetivo final era promover “comemorações visando recordar a figura do

homenageado”.399

A palavra "comemoração", não custa lembrar, vem do latim

commemoratione, declinação de commemoratio, que remete por sua vez ao verbo

memorare, que significa trazer à memória, fazer recordar, lembrar. Imperativa, a

palavra tem um sentido de necessidade, de quase obrigação. A comemoração seria

então a necessária evocação de uma memória, ela estaria ligada a fatos, a atos e a

pessoas não só dignos de serem trazidos à lembrança, mas que deveriam ser

lembrados, que não poderiam ou não podem deixar de ser recordados.400

Em síntese, como expôs certa vez Durval Muniz de Albuquerque, as

comemorações são feitas de memórias, de lembranças e esquecimentos, mas

também são feitas de sonhos, de esperanças e de investimentos no presente

visando o futuro. Ela está diretamente relacionada com os usos sociais, culturais e

políticos da memória, é uma das modalidades não só de sua transmissão, mas de

sua elaboração, de sua produção. Ainda segundo este autor, o ato comemorativo

não só se organiza num momento em que se instaura um dever de memória, não só

se constitui num momento em que a lembrança é voluntariamente convocada, mas

“também se constitui num momento privilegiado para a proliferação de memórias,

399 Resolução 19 de 28 de abril de 1982. Fundo Sérgio Buarque de Holanda, Série HomenagensPóstumas, Hp 131, Arquivo Central Unicamp. Ao todo ocorreram seis "Semanas Sérgio Buarque deHolanda”, a primeira, em 1982 e a última em 1987. Com excessão da "V Semana", que ocorreu entre12 e 14 de agosto de 1986 na Unicamp, todas as demais se deram em julho, mês de nascimento deSérgio, na cidade de São Paulo. No mesmo ano de 1986, ocorreu na cidade do Rio de Janeiro aexposição comemorativa aos 50 anos de Raízes do Brasil, intitulada, “Sérgio, o renovador”. O eventofoi organizado pela Fundação Casa de Rui Barbosa, que publicou um pequeno livreto contendo textospanegíricos de José Murilo de Carvalho, Francisco de Assis Barbosa, Onestaldo de Pennaforte,Manuel Bandeira, além da lista de peças expostas, bibliografia do homenageado e dados biográficos.Podemos a partir desse material, citar um exemplo do que definiremos abaixo como fatalismo: oprimeiro foi retirado do texto de José Murilo de Carvalho e diz o seguinte: “Raízes do Brasil tornou-seo livro mais conhecido de Sérgio (…) e talvez o mais influente. Não foi o seu melhor livro. Mas teve ogrande mérito de representar uma alternativa às tendências dominantes da época e de anunciar ogrande historiador do futuro”. CARVALHO, José Murilo de. Cinquentenário de Raízes do Brasil. In:Sérgio, Renovador. Rio de Janeiro: FCRB, 1986. p. 7. 400 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Conferência - Ritual de Aurora e de Crepúsculo: acomemoração como a experiência de um tempo fronteiriço e multiplicado ou as antinomias damemória. Revista Brasileira de História (online), v. 33, n. 65, 2013. p. 386.

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para a elaboração de versões daquilo ou daquele que se comemora". Pois o ato de

lembrar “é sempre realizado no presente, mas traz consigo uma expectativa de

futuro”.401

Já assinalamos no início do capítulo que a competência dos grandes

homens desaparecidos tende a ganhar o estatuto de “panteonização”, e este é posto

a serviço das práticas identitárias dos grupos. Nesse sentido, após atravessar a

esfera privada e a esfera institucional concedida pela Unicamp, a memória de Sérgio

chegava agora à esfera pública, uma vez inserida no calendário oficial de

comemorações do estado.

Vimos também, na época de sua morte, que a sua biografia carecia de

"ajustes" e que sua obra era “esparsa”. Portanto, nada mais propício para um

determinado grupo, formado por importantes acadêmicos que conheceram de perto

o morto, tomar para si a partir de um certo espaço de enunciação e com

determinados fins, cultural e político, o projeto de forjar, conforme seus próprios

interesses identitários, a biografia modelar do velho mestre baseada em princípios

de fatalismo402 e excepcionalidade, cujo resultado é visto em um livro matriz, produto

dessas “Semanas” e de nome sugestivo, "Sérgio Buarque de Holanda: vida e obra”,

ato daquele presente-passado com vistas a congelar no tempo a memória

elaborada.

E o que emerge das páginas desse livro-monumento? Da parte de nomes

como Antonio Candido, Francisco de Assis Barbosa, Maria Odila L. da Silva Dias,

José Sebastião Witter, Suely Robles de Queiroz, para ficarmos apenas nos

memorialistas, lê-se a imagem de Sérgio Buarque como um intelectual

multifacetado, dividido entre os ofícios de jornalista, crítico literário, ensaísta e

401 Idem, p. 388. 402 O fatalismo é entendido aqui como uma “doutrina" segundo a qual os acontecimentos são fixadoscom antecedência pelo destino. Tudo acontece porque tem de acontecer, sem que nada possamodificar o rumo dos acontecimentos. Propenso a um rígido determinismo, o fatalismo impõe umamítica inevitável à jornada humana. O fatalismo tem-se insinuado em narrativas biográficascontemporâneas escritas. O senso fatalista coloca o biografado em função de sua obra. Sendo assim,em vez da parcela considerável da vida, sua obra se torna a sua própria vida. VILAS-BOAS, Sérgio.Biografismo: reflexões sobre as escritas da vida. São Paulo: Unesp, 2014. p. 85. Não por acaso,lermos na Introdução de "Sérgio Buarque de Holanda: vida e obra”, a seguinte passagem: “O volumefoi organizado visando um leitor imaginário que desconheça o autor e sua obra inteiramente.Procuramos dispor a matéria de forma que, analisada inicialmente a vida, esta possa ajudar àcompreensão da obra, estudada em seus mais diferentes ângulos, aflorando em toda a suaimportância e profundidade. Ao final, contará o leitor com um levantamento exaustivo das publicaçõesdo autor e do que sobre ele e sobre a sua obra já foi escrito até nossos dias”. In: NOGUEIRA, Arlinda;PACHECO, Felipe de Moura; PLINIK, Márcia; HORCH, Rosemarie Erika.(orgs). Sérgio Buarque deHolanda: vida e obra. São Paulo: Secretaria de Estado da Cultura: Arquivo do Estado: USP: IEB,1988. p. 11.

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historiador, transeunte dos grandes centros produtores de conhecimento intelectual

do país, São Paulo e Rio de Janeiro.

Uma trajetória linear, vivida por alguém excepcional, isenta de conflitos e

cuja linha do tempo o levou da juventude modernista à fundação do Partido dos

Trabalhadores, a que tudo se ajusta à construção simbólica de um historiador

perfeito: “o mundo social inerte se curva à ação arrebatadora do gênio criador, que

não mais faria do que dar sequência a uma história de vida pontuada por feitos

escolares extraordinários”.403

Foi apenas no final dos anos 90 que as narrativas testemunhais daquela

época cederam lugar a estudos mais críticos e sistemáticos de sua obra, com a

elaboração de dissertações e teses em diversos programas de pós-graduação Brasil

afora e até no exterior. Parte desses estudos foi motivada pela consulta à sua

biblioteca e ao seu arquivo privado, fazendo com que Sérgio continuasse a ser

objeto de embates/debates e tema de produções acadêmicas variadas,

postergando, assim, sua memória até os dias de hoje.404

3.3. A várias mãos: a montagem de um Fundo Privado

Hoje grande parte das pesquisas sobre Sérgio Buarque se valem de seu

papelório. Todavia, são estudos constituídos dentro de uma concepção na qual

esses papéis acumulados seriam uma espécie de “repositório de provas”,

possibilitando aos investigadores tecerem narrativas e análises sobre ele e sobre

sua obra. Vistos nessa chave, os arquivos pessoais como objetos tendem a ocupar

um lugar periférico nas análises interessadas na construção social dos arquivos, já

que existe uma tendência em associá-los à “memória individual”, a interpretá-los

unicamente como acúmulos que documentam as atividades do titular ou revelam

dimensões de sua personalidade. Esse tipo de abordagem, como sugere pesquisa

recente, obscurece o caráter de múltiplas interferências, que de outro ponto de vista,

nos indicam a ideia de que esses arquivos são constituídos a várias mãos.405

403 PALMEIRA, Miguel S. Arquivos pessoais e história da história: a propósito dos Finley Papers. In:TRAVANCAS, Isabel; ROUCHOU, Joëlle; HEYMANN, Luciana (org.). Arquivos Pessoais: reflexõesmultidisciplinares e experiências de pesquisa. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2013. p. 89. 404 SILVA, Rafael Pereira da. Conversas com Sérgio Buarque de Holanda. História da Historiografia,v. 8, 2012. pp. 233-234. 405 HEYMANN, Luciana. Arquivos pessoais em perspectiva etnográfica. In: TRAVANCAS, op.cit, p.69. A autora trabalha com a ideia de “olhar antropológico” sobre os arquivos pessoais, propondo que

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De maneira geral, o interesse pelos arquivos no campo das ciências

humanas é tributário de reflexões que tiveram início no princípio da década de 1990,

nas áreas da filosofia, dos estudos culturais e da antropologia. De “repositório de

provas” que permitiriam conhecer o passado, essas reflexões passaram a olhar os

arquivos como parte do processo de construção de discursos e de consolidação de

memórias sobre um certo passado em disputa, ou seja, o arquivo passa a ser uma

instância na qual e pela qual se constroem “fatos" e “verdades”.

Nos pareceu consensual dentro dessa nova perspectiva, a importância

central que tiveram os trabalhos de Jacques Derrida e Michel Foucault, cujos textos

instituíram o arquivo como metáfora do cruzamento entre memória, saber e poder;

como constructo político que produz e controla a informação, orientando a

lembrança e o esquecimento ou, de forma mais direta, como a “lei do que pode ser

dito”406, daí sugerirmos que o Fundo Sérgio Buarque de Holanda, concebido por uma

pluralidade de atores, pode atestar do ponto de vista da memória a versão que o

titular esboçou de si mesmo.

Com base nessas constatações, o objetivo principal dessa última seção é

descrever como se deu a montagem do "Fundo Sérgio Buarque de Holanda” e a

partir desse processo trazer à tona alguns indícios dessa montagem a várias mãos

no intuito de demonstrar como, do ponto de vista institucional, a memória histórica

do titular foi sustentada.

Os documentos do acervo pessoal407 de Sérgio que deram origem ao

Fundo Privado - manuscritos de produção científica original, poucas

correspondências ativas e passivas, alguns cadernos de anotações de pesquisa,

o investigador desloque a atenção dos documentos para os processos de constituição dessesacervos. Por esse ângulo, além dos gestos individuais de seleção e guarda dos registros, devem serconsiderados os contextos nos quais os conjuntos documentais se inserem: contextos sócio-históricos mais amplos, de uma parte, e contextos arquivísticos nos quais são preservados, tratados edisponibilizados, de outra. 406 FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008;DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Rio de Janeiro: Relume-Dumará,2001; FRAINZ, Priscila. A dimensão autobiográfica dos arquivos pessoais: o arquivo de GustavoCapanema. Estudos Históricos, vol.11, n. 21, Rio de Janeiro, pp. 58-87; COOK, Terry. Arquivospessoais e arquivos institucionais: para um entendimento arquivístico comum na formação damemória em um mundo pós-moderno. Estudos Históricos, vol. 11, n. 21, Rio de Janeiro, pp. 129-149; FARGE, Arlette. O sabor do arquivo. Trad. Fátima Murad. São Paulo: EdUSP, 2009; GOMES,Angela de Castro. Nas malhas do feitiço: o historiador e os encantos dos arquivos privados. EstudosHistóricos, vol.11, n. 21, Rio de Janeiro, pp. 121-127; KEETELAR, Eric. (De)Contruire l’archive.Matériaux pour l’Histoire de Notre Temps, n. 82, Nanterre, avr-juin, pp. 63-69. 407 Laurent Vidal define o termo “acervo pessoal” como “o conjunto dos documentos produzidos e/oupertencentes a uma pessoa, um indivíduo, resultados de uma atividade profissional ou culturalespecífica. (…) O alcance cronológico dos acervos pessoais não ultrapassa a vida do indivíduo que oconstituiu”. Patrimônio e memória (Unesp), vol. 3 n. 1, 2007. p. 6.

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microfilmes de documentação inédita provenientes de arquivos brasileiros e

estrangeiros, exemplares de teses não publicadas - começaram a ser reunidos pela

“Divisão de Documentação" e tratados ainda no final de 1984 e início de 1985.

Segundo Neire Rossio Martins, diretora do Arquivo Central da Unicamp e na época a

arquivista contratada por Ataliba Teixeira, as atividades consistiram, primeiramente,

em identificar os documentos acumulados na antiga Biblioteca Central e que

demandavam tratamento técnico. Foram então identificados os dossiês da biblioteca

de Paulo Duarte, que se encontravam em uma sala com livros “especiais”,

documentos da biblioteca Sérgio Buarque de Holanda, recém-adquirida e em fase

de organização e outros documentos da própria universidade.

Ao longo dos anos outros papéis passaram a ser incorporados pela viúva

de Sérgio, D. Maria Amélia. Em algumas ocasiões, maços de documentos eram

entregues em mãos a enviados da Unicamp, em outras, eram pessoas de confiança

da viúva que se dirigiam até a universidade para levar os documentos.

Partícipe direta dessa história, Neire Rossio relembra que o contato com a

esposa de Sérgio se deu em 1984, por intermédio de João Bosco. Na época, o

músico estava em Campinas para um show promovido pelo "Diretório Central dos

Estudantes” e recebeu de Neire um bilhete que deveria ser entregue por ele à Chico

Buarque. A mensagem dizia respeito ao acervo de Sérgio. Não sabemos outros

detalhes, mas o bilhete chegou às mãos de Maria Amélia, que pouco depois foi à

Campinas visitar a biblioteca, trazendo consigo a primeira pasta com alguns

documentos selecionados, obviamente resultantes de um amplo "processo de

seleção" daquilo que poderia e/ou deveria se tornar público, com a clara finalidade

de instituir uma narrativa oficial sobre a memória do marido.408

Se comparado ao acervo de outros intelectuais ou homens públicos, o de

Sérgio Buarque não é monumental, embora revele alguma fixação do titular no

acúmulo sistemático de papéis, porém muito diferente, por exemplo, de um Mário de

408 Essa característica da constituição de acervos também foi estudada por Aleida Assmann quandotratou dos arquivos como constituintes de uma memória histórica. Para a autora, depois que asatividades de recolhimento e conservação foram consideradas primeiramente como as maisimportantes do arquivo, a partir do século XIX os arquivistas tiveram também que limpar o arquivo edescartar itens dele, atividades não menos importantes que as anteriores. Para a “cassação”, jargãoque denomina a destruição de acervos de arquivos, existem em cada época determinados princípiosde segregação e medidas de valor que não são necessariamente compartilhados pelas geraçõesposteriores. O que é lixo para uma geração pode ser informação preciosa para outra e, por isso, osarquivos não são apenas locais para armazenamento de informação; são igualmente locais para aslacunas de informações que não resgatam somente as perdas em catástrofes e em guerras, mastambém resgatam, de maneira essencial e estruturalmente indispensável, uma “cassação"equivocada, sob o ponto de vista dos pósteros. ASSMANN, op.cit, p. 370.

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Andrade com o seu gigantismo epistolar, um Darcy Ribeiro com os seus documentos

de trabalho e diários, de um Pedro Nava memorialista ou ainda de Paulo Duarte, que

chegou a guardar um capacete do tempo da Revolta Paulista de 1932.409

Segundo D. Maria Amélia, Sérgio tinha uma dinâmica própria de

autoarquivamento. Sua biblioteca, por exemplo, era uma “bagunça”, mas organizada

de acordo com sua própria lógica de recuperação e interesse. Os seus documentos

pessoais eram mantidos em pastas, caixas e gavetas sem quaisquer critérios

rigorosos de organização e indexação e seguiam uma certa “ordem natural” de

interesses de acordo com cada época de sua trajetória. Muitas cartas, por exemplo,

foram encontradas dentro de livros410 por bibliotecários da Unicamp que as remetiam

ao Arquivo.

Pensando numa expectativa futura, no legado de seu trabalho e numa

eventual autobiografia como historiador e crítico, a suposta “bagunça" imposta pelo

arquivista não teria o intuito de incentivar naqueles que mais tarde encontrassem

esses papeis, a participação num jogo de adivinhações, gerando nesses

pesquisadores a surpresa em revelar cada um desses enigmas e ativando no trato

com outros rastros a composição de um “mosaico de si”?411

A última remessa de documentos feita por Maria Amélia se deu em 2004.

Nessa época o Fundo já contava com mais de 2 mil documentos em diversos

idiomas, incluíndo certidões, fotografias, cartões pessoais, postais, medalhas de

honrarias, correspondências, originais de textos, cadernos de pesquisa, textos

escritos por Sérgio em diversos jornais e revistas no Brasil e no exterior, cópias de

409 Ponto importante a ser considerado é o fato de que nem todo gesto de arquivamento pode serassociado a uma vontade de memória ou a um testemunho. Ver respectivamente: MORAES, MarcosAntônio de. Orgulho de jamais aconselhar: a epistolografia de Mário de Andrade. São Paulo:EdUSP; FAPESP, 2007; HEYMANN, Luciana Quillet. O lugar do arquivo: a construção do legado deDarcy Ribeiro. Rio de Janeiro: Contra Capa/FAPERJ, 2012; PIOVESAN, Greyce Kely. Prezadodoutor, querido amigo, caro memorialista: a sociabilidade intelectual nas cartas para Pedro Nava.Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e CiênciasHumanas, Programa de Pós-Graduação em História, Florianópolis, 2009; MARTINS, Neire Rossio.Memória universitária: o Arquivo Central do Sistema de Arquivos da Universidade Estadual deCampinas (1980-1995). 2012, Dissertação (mestrado), Unicamp, Faculdade de Educação.410 Não por acaso que Chico Buarque abre seu novo romance descrevendo uma carta encontradapelo personagem principal dentro do livro “O Ramo de Ouro”, pertencente ao seu pai e que depois demanuseado deveria ser guardado exatamente como ele o havia deixado em alguma prateleira da suaenorme biblioteca. BUARQUE, Chico. O irmão alemão, op.cit., pp. 8-10. 411 Questões dessa ordem foram formuladas por Philippe Artières ao tratar de certas práticas deautoarquivamento. Para esse historiador, mais do que a natureza dos arquivos pessoais e as práticasque lhes dão origem, o importante seria cotejar os modos de fabricação desses arquivos, ou seja,buscam-se os gestos que podem transformar as práticas comuns em pequenos altares singulares ouas experiências desse autoarquivamento numa obra de arte. ARTIÈRES, Philippe. Arquivar-se: apropósito de certas práticas de autoarquivamento. In: TRAVANCAS, op.cit., pp. 45-54.

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documentos de arquivos visitados, dossiês (Centro Brasil Democrático, Instituto de

Estudos Brasileiros-IEB, Prudente de Moraes, neto, Museu de Arte Moderna-MAM),

resenhas sobre as suas obras, etc.

Remessas posteriores ainda foram feitas, todavia, constituíam-se em

produtos de pesquisadores recebidos por Maria Amélia ou matérias de jornal e

revista que ela mesmo colecionava, em geral textos celebrativos sobre a vida e a

obra do marido, portanto, documentos que compõem o seu Fundo Privado

institucional, mas que não são originários de seu acervo pessoal.

Dadas as características de movimento desse arquivo, Neire Rossio, que

trabalhou nele diretamente, o definiu como um “fundo aberto”, já que o trabalho de

catalogação se deu ao longo de mais de uma década, demandando da equipe

arquivística constantes “(re)fazimentos”412. Com o falecimento de D. Maria Amélia, já

centenária em 2010, o fundo pôde, enfim, ser considerado fechado.

A característica de movimento desse tipo de arquivo foi estudada por

Miguel Palmeira ao se debruçar sobre o legado do historiador da Antiguidade,

Moses Finley. Para esse autor, a criação de um arquivo pessoal e os seus

deslocamentos lançam luz sobre as energias sociais consumidas no processo de

constituição e preservação desse acervo, energias que somente poderiam ser

canalizadas em razão de um capital simbólico expressivo, previamente acumulado

pelo titular. Por essa perspectiva, alguém como Sérgio Buarque "mereceria" ser

reproduzido em arquivo não apenas porque nele se reconhece um historiador e

crítico importante, mas porque se entende que essa importância tem sua

perpetuação favorecida pela organização de um arquivo pessoal.

O que estaria em jogo, segundo Palmeira, é a administração de um

patrimônio intelectual que não diz respeito somente ao morto, mas

fundamentalmente às pessoas e às instituições associadas a seu legado, como já

sugerimos ao longo da tese. O arquivo, em outras palavras, reteria a marca dos

interesses, dos valores e das estratégias de consagração dos grupos sociais a que

se refere e elabora uma atividade de simbolização mediante a qual certos grupos

manifestam sua existência material, política e intelectual.413

412 HEYMANN, Luciana Quillet. O lugar do arquivo, op.cit., sobretudo o capítulo 4, “Os papéis deDarcy Ribeiro ou um arquivo de ‘refazimentos’". pp. 171-219. 413 PALMEIRA, Miguel. Arquivos pessoais e história da história: a propósito dos Finley Papers. In:TRAVANCAS, op. cit., pp. 95-96.

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O caminho trilhado por Palmeira vai ao encontro daquilo que estamos

buscando nesse capítulo, ou seja, o de que há um princípio e um efeito de

sacralização do indivíduo na constituição de um arquivo pessoal com amparo

institucional. Assim, podemos afirmar que a inscrição de um conjunto documental

heterogêneo sob uma categoria que leva o nome de seu titular, seja ele quem for,

opera um recorte do registro de atividades intelectuais que se ajusta facilmente à

voga de restringir as forças atuantes no mundo acadêmico às ações isoladas de

alguns notáveis.414

Nisso procede o fato de que a não observação da dimensão de poder

investida na forma “arquivo pessoal” poderia levar os historiadores da historiografia

(e das ciências sociais, etc.) a relegar, como no passado, os historiadores de

“segundo time” ao limbo do esquecimento ou às trevas. Um desvio em relação a

uma linha evolutiva preestabelecida - o que atenderá às necessidades de uma

axiologia da profissão, mas não as de uma compreensão histórica das práticas dos

historiadores nos debates do tempo.415

Desse modo, mesmo que alguns biógrafos de Sérgio sugiram que ele não

estivesse lá muito preocupado em construir uma autoimagem, o discurso histórico

que emerge de seu arquivo pode ser lido como o produto de ações que envolveram

ele próprio, sua família, seus pares, a instituição detentora de seu legado e

estudiosos, que a partir de certa elaboração do passado feita de maneira póstuma,

contribuíram para a transmissão de uma dada memória às futuras gerações.

Caso contrário, o intelectual, nos seus últimos anos de vida não teria

concedido entrevistas416 “contando-se", não ditaria os seus “apontamentos

414 Idem, p. 96. 415 Ibidem, pp. 96-97. 416 Parte delas foram publicadas em um livro organizado por Renato Martins, intitulado SérgioBuarque de Holanda: encontros. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009. Na época publiquei umaresenha da obra na Revista “História da Historiografia”, da UFOP, em que exponho o seguinte: ”Olivro conta com uma apresentação, dezesseis entrevistas e uma cronologia ao final do volume. Deformato pequeno e bem acabado, ele sugere um passeio pela vida do intelectual. Desse modo, otempo de leitura (…) voa como uma boa conversa de amigos em um bar, também porque algumasdas entrevistas levantadas por Martins possuem essa informalidade. Da juventude modernista àmaturidade serena, é o “pai do Chico” quem conta sua vida, explica, esclarece dúvidas e as expõemtambém ao leitor (…). Vale ressaltar ainda que as entrevistas apresentadas nesta obra compõemapenas um pequeno fragmento do que há no acervo do homenageado, aberto para consulta noArquivo Central da Unicamp. Dos dezesseis depoimentos apresentados, apenas oito coincidem comos trinta e dois que formam a Sub-série: entrevistas, da Série Vida Pessoal, que inclui ainda centenasde fotografias de Sérgio Buarque, com familiares e diversos intelectuais. Quanto ao texto deapresentação de Renato Martins, nada traz de novo. Sua leitura de Sérgio Buarque em nada diferedas de seus mais ilustres comentadores. Aqui, mais uma vez, a linha do tempo que liga o jovemmodernista ao membro fundador do Partido dos Trabalhadores é seguida à risca, ficando as nuancesde uma leitura a contrapelo, ou da busca de uma “política da boa memória”, a cargo de quem quiser

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biográficos” para a esposa, não revisaria alguns de seus livros, postumamente

publicados como restaram nos datilografados, não vetaria a publicação de um outro

ainda hoje inédito e nem escreveria as suas autobiográficas "Tentativas de

Mitologia”, agraciadas com o Prêmio "Juca Pato” da União Brasileira de Escritores.417

Um conjunto intencional de indícios, por conseguinte, que auxiliaram na

organização do seu “mosaico" e que serviram de matriz para muitas narrativas

posteriores que o consagraram. Dito de outra maneira, Sérgio Buarque foi uma

personagem que se “moldou como o couro”, para usar uma expressão sua, e que

soube com inteligência e êxito sobreviver aos “movediços” campos intelectual e

institucional brasileiro durante toda a sua trajetória, somando quantias consideráveis

à totalidade da figura intelectual exemplar que restou à posteridade.

A organização das entrevistas, tal como está exposta no arquivo, nos dá

bons indícios dessa prática de contar-se. Observando a fase uspiana de Sérgio,

entre o final da década de 1950, quando foi aprovado no concurso de cátedra até o

final da década seguinte, quando se aposentou em 1969, constatamos que não há

indicação de que ele tenha concedido entrevistas a jornais ou revistas. Entre 1970 e

1975 há apenas uma indicação, enquanto que entre 1976 e 1982, ano de sua morte,

contamos 17 depoimentos.

À chamada imprensa diária, Sérgio Buarque falou aos gravadores e

repórteres do "Jornal do Brasil", "Folha de S. Paulo", "Última Hora", "Jornal da

Semana", "Diário do Grande ABC", além das semanais "Veja", "Isto É" e "Manchete".

No âmbito acadêmico há o famoso depoimento concedido ao amigo Richard

Graham, publicado em 1982 na "The Hispanic American Historical Review", que

muitos acharam ser a derradeira. Todavia, um bilhete de punho de Maria Amélia nos

informa que a última conversa que o marido teve com um jornalista foi publicada na

"Folha Ilustrada" da "Folha de S. Paulo"no dia 14 de fevereiro de 1982 e junto com

ela a sua última foto.418

se aventurar nesses encontros. SILVA, Rafael Pereira da. Conversas com Sérgio Buarque deH o l a n d a , o p . c i t . , p p . 2 3 5 - 2 3 6 . D i s p o n í v e l e m :http://www.historiadahistoriografia.com.br/revista/article/viewFile/357/255417 A “União Brasileira de Escritores”- UBE foi criada em 17 de janeiro 1958, resultando da fusão daSociedade Paulista de Escritores com a Associação Brasileira de Escritores-ABDE. Esta última tevecomo participantes, além do próprio Sérgio Buarque, figuras importantes de sua amizade, comoSérgio Milliet, Mário de Andrade, Antonio Candido, Paulo Duarte, entre outros. 418 Catálogo do Fundo Sérgio Buarque de Holanda. Arquivo Central-SIARQ, Unicamp. Série VidaPessoal, sub-série Entrevistas. Campinas, maio de 2002. O grande número de entrevistas que ohistoriador concedeu, entre 1976 e 1982, se inserem muito mais num momento de abertura política enuma tentativa de inscrever-se à posteridade, do que numa "postura militante propriamente dita",como insinua de maneira tendenciosa o historiador Marcos Costa, no intuito de colar Sérgio à

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Mais de um autor já apontou que essas práticas de produção de si

compreendem um diversificado conjunto de ações, desde as mais diretas como a

escrita autobiográfica ou de diários íntimos ou aquelas constitutivas de uma auto-

imagem, realizadas pelo recolhimento de objetos materiais com ou sem a intenção

do indivíduo em formar coleção.

Pode ser o caso de pinturas que retratam a intimidade de famosos ou

anônimos, das fotografias, dos cartões-postais ou das correspondências e de outros

objetos ordinários como canetas, blocos de notas, bibliotecas, mobiliários, medalhas,

insígnias, diplomas, tudo aquilo que passa a povoar e a transformar a privacidade da

casa ou do escritório em um “teatro da memória”. Em suma, espaços cujos registros

encontrados materializam a história do indivíduo e dos grupos a que pertenceu, num

processo de musealização da própria vida como vimos, por exemplo, na montagem

da biblioteca de Sérgio na Unicamp.

Das possíveis narrativas que emergem do baú de memórias de Sérgio,

podemos vislumbrar duas figuras: a do “homem público", até então envolto em

diferentes projetos educacionais, da direção do Museu Paulista à docência,

passando pela direção da "Coleção História Geral da Civilização Brasileira” e

trilhando os labirintos da burocracia universitária dos conturbados anos de ditadura e

outra, do “homem de família", recolhido no aconchego do lar, cercado de parentes e

amigos.

Abrindo o álbum de sua vida, o vemos ainda criança posando nos

estúdios do Foto Rizzo ou na antiga casa dos pais na rua Piauí, ambos em São

Paulo, para em seguida desvendarmos sua trajetória intelectual desde os tempos do

modernismo até a maturidade historiadora, sempre rodeado de figuras de peso,

como Mário de Andrade, Prudente de Moraes, neto, Ribeiro Couto, Blaise Cendrars,

Caio Prado Júnior, Otávio Tarquínio de Sousa, Manuel Bandeira, Múcio Leão,

Lucien Febvre, Vinícius de Moraes, Vitorino Magalhães Godinho, Maria Yeda

Linhares, etc.

imagem da esquerda combativa do país. Segundo ele, “(…) só a partir dos anos 1970 que essatendência até então pouco recessiva na personalidade de Sérgio Buarque de Holanda ganhapredominância. Na última fase de sua vida, diante do conservadorismo obscurantista que havia seabatido sobre a sociedade brasileira, Sérgio Buarque de Holanda se torna um militante propriamentedito e demonstra isso de diversas maneiras, entre elas por meio das entrevistas que concedeucriticando o regime em seu pleno período mais sombrio a partir da vigência do AI-5”. COSTA, Marcos.Biografia Histórica: a trajetória intelectual de Sérgio Buarque de Holanda entre os anos de 1930 e1980. 2007. Tese, Doutorado em História, Universidade Estadual Paulista (UNESP)- Assis. p. 168.

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Também acompanhamos suas viagens a países como Alemanha, Itália,

França, Estados Unidos, Suíça, passeamos com ele pelas ruas cariocas,

berlinenses e paulistanas, até chegarmos ao período da aposentadoria e às cenas

da vida doméstica, quando já se tornara “pai do Chico”.419

Sobre fotografias arquivadas, um autor reflete que as percorrer é como

mergulhar nos registros da memória familiar. Elas são, nesse sentido, um recurso

eminentemente moderno que possibilita a conservação e permanência de uma

continuidade visual do passado familiar. Resistindo à aceleração do tempo, esses

registros proporcionam uma orientação para a memória num contexto que tende a

ser fragmentário e dispersivo. Por meio das poses e instantâneos que contribuem

para a fixação da autoimagem de indivíduos e grupos familiares, podemos

acompanhar os registros de alguns ritos da vida privada, de alguns padrões de

sociabilidade.420

Assim, ao abrir um álbum podemos imaginar como seria a tarde de

conversas com Sérgio Buarque na varanda de casa, regada a uísque e cigarros, sua

afetividade ao lado dos netos, a alegria à mesa em dias de aniversário ou deixando-

se fotografar nos jardins da residência com a família toda. Também podemos subir

as escadas de madeira escura de sua casa e chegar ao seu caótico escritório, de

onde a claridade do sol perpassa sem dificuldade duas janelas amplas, uma delas

com vistas ao jardim. Dentro dele, prateleiras repletas de livros, uns valiosos, outros

nem tanto, inúmeros papéis e rascunhos de anotações espalhados, poltrona para419 Além de cenas que retratam a vida intelectual e familiar de Sérgio Buarque, é possívelvislumbrarmos uma cartografia dos principais países percorridos por ele e porque não, “enquadrá-lo”na categoria de "turista-fotógrafo", já que seus registros fotográficos têm o potencial de nos contarhistórias, de conter o tempo e, sobretudo, de preservar a memória, "que é falha e sujeita aoesquecimento, um instantâneo que possibilita rever em imagem a própria experiência". LAURETTI,Patrícia. Revelando o turista-fotógrafo. Jornal da Unicamp, nº 601, Campinas, 23/06 a 3/08/2014, p.12. A matéria citada refere-se à tese de Lívia Afonso de Aquino, Picture ahead: a Kodak e aconstrução de um turista-fotógrafo, Instituto de Artes, Unicamp, 2014. Há evidentemente outras fotosque registram cenas de Sérgio Buarque em ambiente privado, como uma em Nova Iorque na casa desua filha, Miúcha e de seu marido João Gilberto ou vestido de Netuno em um navio durante festa afantasia, doravante, nos interessou aquelas em que está na casa da rua Buri. Outras cenascorriqueiras que revelam a intimidade da família em sua residência são atestadas, por exemplo, pelosregistros da gravação do filme "Certas Palavras", documentário dirigido por Maurício Beru sobre atrajetória musical de Chico, Em uma das fotos, o historiador está sentado à mesa saboreando uísqueao lado do músico e de Vinícius de Morais. Em outra, aparece ao fundo, do lado direito da imagem,novamente ao lado do Poetinha, ambos cercados por refletores e pessoas de pé em volta àesquerda, só que dessa vez observando Toquinho, que está de costas e em primeiro plano. Já emuma das sequências do filme, na qual Vinícius de Moraes reconstrói a história da canção "Samba deOrly”, é possível vermos em viradas de câmera Sérgio Buarque em movimento, talvez um dos poucosregistros desse tipo acessíveis aos pesquisadores420 SCHAPOCHNIK, Nelson. Cartões-postais, álbuns de família e ícones da intimidade. In:SEVCENKO, Nicolau (org). História da Vida Privada no Brasil 3: Republica: da Belle Époque à Erado Rádio. São Paulo: Cia. das Letras, 1998. p. 457.

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leituras, a máquina de escrever. Esse pequeno museu da posteridade, àquela altura

aberto apenas para uns poucos, foi nos idos de 1972 descrito da seguinte forma

pelo jornalista Jorge Andrade:

Nas estantes, entre livros, microfilmes de toda a correspondência dosrepresentantes diplomáticos americanos no Brasil de 1809 a 1906. Sobreuma mesa, um vigor grande de microfilmes. Esparramados entre os livros –como num bric-à-brac –, vidros de colírio Moura Brasil, envelopes de Engov,lápis, adesivos, cinzeiros, um vidro de Agarol, Sonrisal, fósforos, latas deleite em pó, garrafas de uísque, remédios para dormir e outros para omanter acordado.421

As fotografias contidas nos arquivos públicos e privados só recentemente

foram estudadas de maneira mais consistente, já que há nesse tipo de acervo o

predomínio dos documentos escritos. Ainda hoje, como aponta um estudo, se

discute se as fotografias deveriam ser consideradas documentos de arquivo,

considerando que sua forma de constituição estaria mais próxima dos itens de

coleção.

Grosso modo, os materiais visuais são tradicionalmente vistos como

autorreferentes, imagens de "alguma coisa”, sem conexão clara com o restante do

arquivo, com a entidade produtora e responsável pela existência do conjunto. A

hegemonia do valor factual, de acordo com Aline Lopes de Lacerda, determina o

tratamento a elas aplicado, e, a despeito do tipo de acervo que se tenha em mãos,

os esforços para a identificação, a descrição dos materiais são sempre direcionados

para fotos, pessoas, lugares e épocas retratadas.422

Essa forma de tratamento é observada na composição do Fundo Sérgio

Buarque de Holanda. Elencadas na Série Vida Pessoal, esse conjunto, mesmo não

separado do restante dos documentos escritos, tem o claro intuito de dar

materialidade a um esforço biográfico, deixando de lado, por exemplo, questões

referentes à função original para o qual esses documentos foram produzidos. Em

outras palavras, ao mapear, indicar, localizar, inscrever, datar e descrever lugares,

momentos e personagens, num intenso trabalho de memória, D. Maria Amélia

reconstruiu histórias e atribuiu sentidos e significados a eventos que sustentam a

421 ANDRADE, Jorge. 42 anos a.C: um Buarque antes de Chico, o perfil de um dos maioreshistoriadores brasileiros. Realidade, nº 75. São Paulo, 1972. Apud: WEGNER, Robert. Latas de leiteem pó e garrafas de uísque: um modernista na universidade. In: MONTEIRO, Pedro Meira;EUGÊNIO, João Kennedy. Sérgio Buarque de Holanda: Perspectivas. Campinas/SP; Rio deJaneiro: Editora da Unicamp/EdUERJ, 2008. p. 495.422 LACERDA, Aline Lopes de. A imagem nos arquivos. In: TRAVANCAS, op.cit., p. 58.

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autoimagem e a memória do marido, garantindo pelo acervo visual a naturalidade

testemunhal necessária a versão oficial que se queria à posteridade.

Outras práticas de autoarquivamento podem ser vistas na Série

Correspondências. Nesse caso, indaga-se por que mesmo "desinteressado" de uma

"construção de si”, o intelectual teria se ocupado, ao longo de décadas, na

manutenção de papéis com grande valor simbólico, como as cartas modernistas que

recebeu de Mário de Andrade423, Manuel Bandeira, outras de historiadores

importantes como Lucien Febvre, Fernand Braudel, Richard Morse, Thomas

Skidmore, Lewis Hanke ou de amigos bem próximos e não menos célebres como

Antonio Candido, Octávio Tarquínio de Sousa, Rodrigo Melo de Franco Andrade,

Rubens Borba de Morais, Vinícius de Moraes, entre outros?

Sabemos que não foram poucas vezes que os carteiros tiveram que se

dirigir à Avenida Atlântica, esquina com a Ronald de Carvalho, no Rio de Janeiro, à

Via San Marino, 12, apartamento 2, em Roma ou à Rua Bury, 35 no Pacaembú em

São Paulo, entre outros endereços, procurando por um tal Dr. Sérgio Buarque de

Holanda, às vezes grafado como “Hollanda", para lhe entregar pacotes com

encomendas de livros, bilhetes, postais ou cartas. Imagina-se que o intelectual fosse

constantemente interrompido em seus afazeres sempre que o sino da campanhia

anunciasse mais uma entrega, em muitos casos recebidas primeiramente por D.

Maria Amélia.

Não raras também eram as cartas que faziam menção à família toda, nos

dando a certeza de que os Buarque de Holanda viviam na mais completa harmonia,

como visto nas despedidas, onde os amigos enviavam as mais cordiais saudações

de lembranças e saudades, a exemplo desta, recebida por Sérgio em 16 de agosto

de 1959: "Na espera da sua resposta, aqui fico, recomendando-me muito a Maria

Amélia, afilhada e demais rebentos, e mandando a você um forte abraço, mais

admirativo depois da espinafrada na competente canalha corruptora. Antonio

Candido”.424

As cartas recebidas por Sérgio vinham de muitos lugares. Às vezes de

pertinho, da mesma cidade em que residia; por outras de bem longe, como Buenos

Aires, Santiago, Viena, Sevilha, Paris, Avignon, Chicago, Londres, Roma, Siena,

423 Esse conjunto de poucas cartas, que não chegam a duas dezenas, foi muito bem organizado porPedro Meira Monteiro e publicadas no livro, Mário de Andrade e Sérgio Buarque de Holanda:correspondência. São Paulo: Companhia das Letras; EdUSP; IEB, 2012. 424 Correspondência passiva, Cp 220, Arquivo Central Unicamp, Fundo Sérgio Buarque de Holanda.

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Belgrado, Lisboa, Bourg-la-Reine, Genebra e tantos outros, indicando o ímpeto

cosmopolita do historiador. Indícios razoáveis para pensarmos que o historiador quis

legar à posteridade “um pequeno museu para o resto do mundo”425, além de

consolidar a "auto-imagem" de “mestre”, atribuída e amplamente divulgada por seus

discípulos e pares como podemos aferir a partir da leitura do instigante livro de

Françoise Waquet, “Os filhos de Sócrates”.426

Sérgio recebia muito mais cartas do que as enviava,427 como podemos

observar na leitura de seu inventário ou de algumas cartas em que o remetente

cobrava notícias suas, dizendo que só as tinha por terceiros, lembrando da última

vez em que se falaram por telefone ou que lhe pediam agilidade nas opiniões de

temas de trabalho e na entrega de textos que envolviam prazos. Sabiam eles que as

respostas poderiam demorar um bocado. É o que lemos, por exemplo, numa

correspondência de Luís da Câmara Cascudo, datada de 20 de maio de 1953,

enviada de Natal, época em que Sérgio encontrava-se como adido cultural em

Roma.

Nela o intelectual potiguar “obsequiava” do amigo um pequeno texto

sobre o “desconhecido Príncipe Adalberto da Prússia”, que havia publicado um livro

chamado "Minha viagem ao Brasil" para inserir no seu "Antologia do folclore

brasileiro”, segundo volume: “(...) Agradeceria muitíssimo a gentileza de uma sua

resposta urgente porque o trabalho fica interrompido até que tenha uma sua

decisão. Com todos os votos de felicidade e os antecipados agradecimentos do

velho e fiel admirador e confrade”.428

Prática comum no meio intelectual brasileiro da primeira metade do

século XX, as correspondências tornaram-se, na última década, objetos/fontes

privilegiados de pesquisas nas mais diversas áreas, dentre as quais a história e a

crítica literária. Nesse sentido, cada vez mais comuns são as publicações de

425 Achei a expressão apropriada para esse capítulo. Ela foi retirada de um artigo da professoraJeanne-Marie Gagnebin, O rastro e a cicatriz: metáforas da memória”. Revista Pro-Posições, v. 13n. 3 (39), set- dez., 2002, p. 133. A expressão, segundo ela, é de autoria do artista russo IlyaKabakow. 426 WAQUET, Françoise. Os filhos de Sócrates. Filiação intelectual e transmissão do saber doséculo XVII ao XXI. Trad. Marcelo Rouanet. Rio de Janeiro: DIFEL, 2010. 427 No inventário do Fundo Sérgio Buarque de Holanda, Série Correspondências, são indicados umtotal de 379 cartas. Dessas, apenas 11 são cópias de cartas enviadas pelo titular. Na Fundação Casade Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, localizei outras 6 cartas enviadas por Sérgio entre 1929 e 1954,coincidentemente, períodos importantes de sua formação intelectual, que remetem às experiênciasalemã e italiana. Outras tantas devem estar na guarda de parentes ou de amigos próximos, nãosendo possível localizá-las.428 Luis da Câmara Cascudo, Cp 121, Arquivo Central Unicamp, Fundo Sérgio Buarque de Holanda.

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coletâneas de cartas que, junto com os diários, as biografias e autobiografias,

ganham cada vez mais espaço nas vitrines das livrarias, movimentando o mercado

editorial e, ao mesmo tempo, aguçando a curiosidade e a imaginação dos

pesquisadores e dos leitores comuns.

Por não serem simples fontes de informação, as correspondências

constituem um tipo específico de escrita própria, bem como os diários, as biografias,

as autobiografias, os arquivos pessoais e as memórias. São registros produzidos no

âmbito do privado que podem revelar vestígios de trajetórias de vida, de redes de

sociabilidade intelectual e política, de personagens importantes ou de anônimos. E

fornecer subsídios para uma história das práticas culturais, que na última década do

século XX, passou a reconhecer novos objetos, fontes, metodologias e critérios de

verdade histórica.429

No que envolve a criação de uma cultura epistolar, o século XIX pode ser

visto como o século das correspondências. Para alguns estudiosos, o hábito

epistolar difundiu-se por diversas camadas sociais, tanto na Europa como na

América e a escrita de cartas - que podiam ser de amizade, amor, familiares,

pedidos, recomendações, trabalho, conselhos, censura, queixas, louvor,

agradecimentos, etc. - buscava satisfazer o ímpeto de intimidade e privacidade que

acompanhava o estabelecimento da ordem burguesa no Ocidente.430

Reveladoras, sobretudo, de fragmentos da vida íntima dos interlocutores,

de momentos perdidos no tempo após a sua composição, as cartas sempre

suscitaram, em seus autores ou destinatários, sentimentos ambivalentes de desejo

de preservação ou de destruição. Desse modo, o desejo de salvar vestígios de

vidas, de laços estabelecidos, de afetos experimentados permitiu que elas

sobrevivessem silenciosas em arquivos pessoais, muitos deles hoje abertos ao

público.

Se por um lado as fontes epistolares demonstram-se verdadeiros

"tesouros" ao gosto dos pesquisadores, por outro uma análise mais acurada desse

tipo de documento impõe, em geral, certos cuidados de rigor metodológico, em

especial quando personagens ilustres, intelectuais, políticos, celebridades passam a

ser o foco da devassa e objeto de debates promovidos por jornalistas, historiadores,

429 GOMES, Ângela de Castro. Escrita de si, escrita da história: a título de prólogo. In: _____. (Org).Escrita de si, escrita da história. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2004. pp. 13-14. 430 MALATIAN, Teresa. Narrador, registro e arquivo. In: PINKY, Karla Bessanezi; LUCA, Tânia Reginade. O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2009.

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ensaístas, literatos e curiosos, dentro ou fora do espaço acadêmico. Nesse sentido,

uma autora chama especial atenção para o fato de que a dificuldade é proporcional

à relevância social, política ou cultural do correspondente em pauta, pois, no caso de

figuras públicas, torna-se mais difícil o trato com a quantidade e a dispersão dos

conjuntos documentais a serem reunidos, além de ocorrer um confronto com a

imagem do indivíduo já construída e consolidada pela memória e pela História.431

No que foi exposto, é importante ressaltar a fragmentação desse tipo de

fonte/objeto. Não raro, as cartas se inserem nos arquivos como séries documentais

dispersas, pois, quando chegam ao pesquisador, tanto podem ter sofrido uma

seleção prévia por parte da família ou donatários que têm por interesse a

conservação de uma memória oficial do correspondente ou terem sofrido restrições

por parte do próprio autor que, por motivos variados, não guardava as cópias das

cartas que enviava, tampouco todas as que recebia. Por esses motivos, muitos

diálogos epistolares sofrem espaçamentos temporais ou tornam-se unilaterais,

devendo o historiador tentar complementá-los com outras fontes.

Em síntese, antes de se tornarem publicáveis ou comporem arquivos

institucionais abertos à curiosidade da pesquisa, as cartas, vistas como exemplo,

assim como os demais papéis do titular, passam por um criterioso processo de

escolha, seleção, que podem envolver familiares, no caso daqueles que já partiram,

os próprios envolvidos quando vivos ou ainda regras arquivísticas específicas

provenientes de cada instituição acolhedora, numa dinâmica de triagem daquilo que

vai ser preservado e do que será apagado, descartado, conduzindo, assim, à escrita

de uma memória que restará no tempo, ato político de construção de si ou do outro

que cabe ao pesquisador atento decifrar.

Assim é que podemos dizer que Maria Amélia foi uma das principais

memorialistas do marido. Atuando nos bastidores, foi ela quem primeiro se

preocupou com os "jogos de passado e de futuro”; em outros termos, com atos de

lembrança e esquecimento, já que conhecia de perto a dinâmica de trabalho de

Sérgio. Ela costumava acompanhá-lo, por exemplo, em pesquisas de campo,

chegando a dirigir o Fusca da família de São Paulo a Cuiabá, sendo responsável por

copiar passagens inteiras de documentos que o historiador encontrava em arquivos

visitados e, também, pela datilografia de muitos de seus escritos.

431 Idem., p. 203.

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A viúva, por exemplo, tinha o hábito de ter conversas constantes com

amigos próximos da família toda a vez que a memória de Sérgio era evocada. Foi

assim quando participou ativamente da montagem de exposições fotográficas paras

as “Semanas Sérgio Buarque de Holanda”432 e “Sérgio, o Renovador"433 ou quando

confiou a José Sebastião Witter, ex-orientando e assistente do marido na USP,

como mostramos acima, os manuscritos de "O Extremo Oeste”, seu último livro.

Inacabado, o texto original foi profundamente revisado por Witter, vindo a público

somente em 1986, pela editora Brasiliense e contando com uma cerimônia de

lançamento. No Fundo há alguns documentos a respeito dessa obra, como os

originais entregues posteriormente pela família à Unicamp.

Originais também foram entregues por Cecília Buarque a Francisco de

Assis Barbosa, que em 1988 organizou em parceria com Antonio Candido, um livro

inédito com os chamados “textos de aprendizado” do irmão, artigos que ele publicou

simultaneamente em “O Jornal” e no “Diário de Notícias” quando morou na

Alemanha.434 Cecília juntou atenciosamente cada um desses artigos, tendo o

cuidado de localizá-los nas páginas dos jornais, recortá-los e depois colá-los em um

caderno grande de capa dura, inscrevendo no tempo os momentos importantes da

vida do irmão, demonstrando por meio desse gesto, a preocupação da família com a

organização e a guarda da memória de um intelectual em ascensão.

A mesma sorte já não teve a tese de mestrado do historiador, defendida

em 1957 na "Escola Livre de Sociologia e Política”, pouco antes, portanto, do seu

famoso concurso de cátedra na Universidade de São Paulo. O inédito foi encontrado

nos arquivos da Unicamp pelo professor Edgar de Decca, quando este organizava

pesquisa para as celebrações do centenário de nascimento de Sérgio, em 2002.

"Elementos Formadores da Sociedade Portuguesa na Época dos

Descobrimentos”, título da dissertação, teve a publicação vetada por Maria Amélia,

432 Anotações com sugestões de Maria Amélia Buarque: trechos selecionados de cartas de artistas eacadêmicos enviadas a SBH e entrevistas sobre ele para composição da IV Semana Sérgio Buarquede Holanda. São Paulo, 1985. Hp 167, Fundo Sérgio Buarque de Holanda, Arquivo Central Unicamp. 433 Sérgio, Renovador, op.cit. Nos agradecimentos podemos ler: “À família Buarque de Holanda, emespecial a Maria Amélia Alvim Buarque de Holanda e a Cecília Buarque de Holanda, que gentilmentecederam por empréstimo a maior parte dos documentos”. 434 BARBOSA, Francisco de Assis (org.). Raízes de Sérgio Buarque de Holanda. Rio de Janeiro:Rocco, 1988. O livro é dividido em 3 partes: a primeira, com introdução de Barbosa, contém textos deSérgio de sua “fase modernista”, dentre eles os famosos “Originalidade Literária” e “O lado oposto eoutros lados”; a segunda parte é apresentada por Antonio Candido que reedita um texto seu jápublicado, “Sérgio em Berlim e depois” e praticamente imprime o caderno que foi organizado porCecília, que apresenta a famosa entrevista “Thomas Mann e o Brasil”; por fim, a última parte tem aapresentação de Manuel Bandeira.

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seguindo recomendações expressas do marido, que segundo consta, jamais quis a

circulação desse trabalho.435 Uma atitude clara de apagamento dos rastros e que

incide diretamente sobre o ofício de muitos historiadores. Num país de dimensões

continentais e de contrastes materiais visíveis, a consulta in loco na Unicamp da

única cópia disponível do material, como quis a família, relega à margem desse

silêncio um sem número de pesquisadores interessados na compreensão da

interpretação do Brasil feita por Sérgio.436

A publicação desse estudo seria uma demonstração de “política da justa

memória”437, porque sua importância para além do ineditismo, inclusive como um

texto literário nunca explorado, se deve ao fato de ser uma peça importante no

pensamento histórico de Sérgio, materializado em 1936, com "Raízes do Brasil" e

ampliado até 1958, com "Visão do Paraíso”, que aliás lhe deve um pedaço.438 Nesse

inédito, Sérgio aprofunda alguns temas como o da adaptabilidade dos portugueses a

outros povos como árabes, italianos e africanos que circulavam na cosmopolita

Lisboa da época pré-descobrimentos. Foi desse entrecruzamento cultural que

emergiu, por exemplo, a figura do aventureiro, acostumado a lidar com conflitos e

diferenças, fator importante para o êxito resultante das grandes navegações.

Mesmo com o Antigo Regime instalado, o desenvolvimento burguês

comercial de Lisboa havia criado uma sociedade menos estratificada, possibilitando

aos sujeitos sociais uma mobilidade vertical e horizontal muito grande, os habilitando

a uma aventura desse porte.439 Uma espécie de mal de origem – tão fundamental na

imaginação negativa do que foi a formação do Brasil contemporâneo – se explicita,

435 Entrevista com Edgar de Decca. Jornal da Unicamp, Edição 232, 5 a 12 de outubro de 2003.Durante a entrevista, De Decca chegou a mencionar que a publicação do texto estava sendonegociada com a família, todavia, o trabalho continua inédito e pouco conhecido mesmo dentro doambiente acadêmico. 436 Em suma, esse escrito escondido no arquivo é a peça que falta naquilo que foi indicado por DeDecca como dois projetos complementares feitos por Sérgio: um de compreensão das origens, vistonas três obras – “Raízes”, “Elementos Formadores” e "Visão do Paraíso” – e outro de entendimentoda constituição do território, "a constituição de uma cultura do adventício. Assim, 'Caminhos eFronteiras' é aquilo que move e aquilo que limita; 'Monções' também é algo que te leva; o 'ExtremoOeste' é até onde essa fantasia pode se estender. Existe claramente uma unidade”. Entrevista, op.cit.437 RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas, SP: Editora da Unicamp,2007. p. 17. Essa expressão é utilizada por meio de uma livre apropriação da ideia original do autor.438 NICODEMO, Thiago Lima. Urdidura do vivido: Visão do Paraíso e a obra de Sérgio Buarque deHolanda nos anos 1950. São Paulo: EdUSP, 2008. 439 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Elementos Formadores da Sociedade Portuguesa na Épocados Descobrimentos.

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portanto, na ideia de que "a colonização portuguesa funda uma sociedade voltada

para fora, incapaz de desenvolver-se com vistas a si mesma".440

Para terminar, passamos ao último ponto do capítulo, o que trata do papel

da equipe arquivística na constituição desse Fundo, a última das várias mãos a que

nos referimos. Como mencionado, o Fundo se formou durante o processo de

reestruturação institucional em curso na Unicamp, que formalizou, entre outros

órgãos, o Arquivo Central. O modelo adotado pela instituição resultou de uma

política de valorização e formação de seus quadros internos de pessoal, posta em

prática por meio de uma série de intercâmbios e estágios de formação em

importantes centros de referência no país.

A partir do testemunho de Neire Rossio é possível acompanharmos as

principais influências recebidas pela equipe arquivística na elaboração narrativa

desse Fundo. Ela lembra que o primeiro estágio que fez foi realizado no Instituto de

Estudos Brasileiros-IEB sob a tutela de Heloisa Liberalli Bellotto, professora da USP

e na época responsável pelo arquivo do órgão. Durante a sua passagem, além do

contato com arquivos pessoais, conheceu os principais teóricos do campo

arquivístico de então, tais como o americano Theodore Schellemberg, os

canadenses Carol Couture, Jean-Yves Rousseau e as espanholas Vicenta Córtes

Alonso e Heredia Herrera.

Em seguida realizou estágios no Arquivo Público Municipal de São Paulo,

onde conheceu as discussões e a minuta do projeto do "Sistema Municipal de

Arquivos” e no Arquivo do Estado de São Paulo, onde trabalhou com o Fundo Júlio

Prestes, participando de reuniões em que pôde acompanhar as discussões sobre

aspectos da teoria arquivística europeia e americana, vindo a conhecer os projetos

da criação do Sistema de Arquivos do Estado de São Paulo e do município de Rio

Claro.

Já no Rio de Janeiro ela visitou a "Fundação Casa de Rui Barbosa" e o

CPDOC da Fundação Getúlio Vargas. Foi nessa época que Neire Rossio passou a

coordenar a Divisão de Documentação do Centro de Informação e Difusão Cultural

da Unicamp, que mais tarde deu origem ao Arquivo Central do Sistema de Arquivos

daquela universidade. Em posse dos documentos de Sérgio, a opção da equipe do

440 MONTEIRO, Pedro Meira. Permanência e mudança: em torno de Sérgio Buarque de Holanda.História da Historiografia, n. 6, março de 2011. p. 226.

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Arquivo foi de estabelecer um programa descritivo levando em conta item a item

documental, com a finalidade de elaborar um inventário.

Resultante de um denso processo de descrição, o inventário reúne

verbetes e informações que levam o pesquisador a percorrer o acervo de

documentos “produzido e reunido por Sérgio Buarque durante sua vida e por

aqueles que se dedicaram a reler a sua obra”. Disposto desde 1991 a pesquisadores

e publicado pela primeira vez em 1995 na rede de dados da Unicamp, esse

documento permaneceu em construção durante muitos anos e contou com a

colaboração de pesquisadores do próprio acervo, que se dispuseram a revisar

verbetes, e da família que vez ou outra foi procurada para ajudar a identificar

pessoas e a contextualizar fatos.441

O inventário, esse importante instrumento de consulta por meio do qual o

pesquisador tem acesso à descrição das unidades documentais do fundo, é

importante porque pode revelar a “biografia do arquivo”, numa perspectiva em que

ele se transforma em objeto. Em outra acepção, o inventário constitui um tipo de

narrativa biográfica sobre o titular, à medida que ele opera um encadeamento dos

fragmentos que registram a sua trajetória, dotando-a de uma inteligibilidade

específica, induzindo o olhar ou os rumos da pesquisa histórica. Há ainda a

possibilidade de entendimento do inventário como a história da construção do

conjunto documental considerado o “arquivo" de uma entidade, seja pessoal ou

institucional.442

A esse respeito, alguns autores vêm chamando a atenção para o “mito da

neutralidade” do trabalho arquivístico, propondo que a subjetividade de que se

revestem essas intervenções contribuam para uma crítica dos arquivos e,

consequentemente, para a abertura de um debate sobre conceitos como “fonte”,

“prova" e “autoria" nas pesquisas baseadas em documentos históricos. Isso porque,

ao conferir historicidade ao arquivo-fonte, revelando o caminho seguido no seu

tratamento, o arquivista assume sua condição de agente do processo de construção

441 Catálogo do Fundo Sérgio Buarque de Holanda, Arquivo Central do Sistema de Arquivos, Área deArquivo Permanente, Campinas, março de 2013. 442 CUNHA, Olívia. Do ponto de vista de quem? Diálogos, olhares e etnografias dos/nos arquivos.Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 36, jul-dez. 2005, p. 7-32; HEYMANN Luciana. Indivíduo,memória e resíduo histórico: uma reflexão sobre arquivos pessoais e o caso Filinto Müller. EstudosHistóricos, Rio de Janeiro, n. 19, 1997, pp. 41-66; RANDOLPH, John. On the biography of theBakunin Family Archive. In: BURTON, A. (org.). Archive histories: facts, fictions and the writing ofHistory. Durham & Londres: Duke University Press, 2005, pp. 209-231, Apud, HEYMANN, Luciana.Arquivos Pessoais em perspectiva etnográfica, In: TRAVANCAS, op.cit, pp. 67-76.

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da memória, fornecendo elementos que podem orientar de forma diferenciada o

acesso do pesquisador aos documentos. Essa postura crítica só recentemente vem

ganhando espaço nos meios acadêmicos, uma vez que os estudos sobre arquivos

pessoais, pensados na perspectiva de objetos, ainda são em número escasso no

país.

Os poucos investimentos nessa direção apontam para o processo de

constituição do conjunto documental pelo titular e seus herdeiros, examinando os

esforços para projetar na documentação a imagem que gostariam de ver preservada

por meio do arquivo, mais do que os efeitos do tratamento arquivístico na imagem

projetada pela fonte documental com relação à trajetória do seu titular. Essa falta

reflete a “invisibilidade” da interferência do arquivista nesse processo, que é

alimentada, por sua vez, pelo desinteresse do usuário acadêmico pelas atividades

associadas à competência “técnica", o que faz com que o aparato por meio do qual

ele acesse os documentos se torne “transparente”, levando-o facilmente às

armadilhas da “ilusão biográfica"443 propiciadas por esses tipos de arquivo.

Nesse sentido, a custódia do arquivo de Sérgio por uma instituição de

pesquisa e pensamento crítico como a universidade não conseguiu neutralizar

completamente as demandas e projeções futuras do titular e de seus herdeiros

sobre ele. Sobretudo se considerarmos os efeitos desse arquivamento na

revitalização de sua obra, vistos na vasta fortuna crítica que se formou e nos muitos

inéditos de sua autoria que passaram a veicular no âmbito acadêmico a partir da

década de 1990, reforçando do ponto de vista documental o que a memória póstuma

já havia esboçado na década anterior.

É a partir desse conjunto, arquivo e biblioteca que se constituiu a memória

material de Sérgio Buarque de Holanda. Dele é que emergiu a historiografia que o

constituiu como personagem, como objeto, como texto, produto de uma operação

criteriosa de poder com base na escrita. Essa, que foi durante muito tempo

considerada como o rastro mais duradouro deixado pelo homem, uma marca capaz

de sobreviver à morte do seu autor e de transmitir uma mensagem444. A sua aura de

duração, muitas vezes empregada como sinônimo de rastro, continua até hoje

imbuindo as grandes bibliotecas, esses santuários da memória universal, ou nutrindo

443 Refiro-me ao importante artigo de Pierre Bourdieu L’illusion biographique , publicado em 1986 nasActes de la Recherche en Sciences Sociales, vol. 62, número 62-63, pp. 69-72. 444 GAGNEBIN, Jeanne Marie. O rastro e a cicatriz: metáforas da memória. Revista Pro-Posições, v.13 n. 3 (39), set-dez., 2002, p. 128.

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alguns escritores do sentimento de que deixarão uma marca imortal. Um rastro

duradouro nas ulteriores gerações, como se os seus textos fossem lídimos refúgios

contra o esquecimento e o silêncio, contra o desdém da morte.

Não fosse a vontade de memória e o esforço de um dado tempo histórico

em constituí-la, quem sabe os rastros deixados por Sérgio não se abeirassem

apenas dos restos, dos detritos, da sucata, do lixo, imagem afamada do chiffonier,

de Baudelaire e, assim, descrita por Walter Benjamin:

“Os poetas encontram o lixo da sociedade nas ruas e no próprio lixo o seuassunto heroico. Com isso, no tipo ilustre do poeta aparece a cópia de umtipo comum. Trespassam-no os traços do trapeiro que ocupou Baudelairetão assiduamente. (...) Aqui temos um homem - ele tem de recolher osrestos de um dia da capital. Tudo o que a grande cidade jogou fora, tudo oque ela perdeu, tudo o que desprezou, tudo o que quebrou, ele o cataloga,ele o coleciona. Compila os arquivos da devassidão, o cafarnaum daescória; ele procede a uma separação, a uma escolha inteligente; recolhe,como um avarento, um tesouro, o lixo que, mastigado pela deusa daIndústria, tornar-se-á objeto de utilidade ou de gozo.' Essa descrição é umaúnica metáfora ampliada do comportamento do poeta segundo o coração deBaudelaire. Trapeiro e poeta - os dejetos dizem respeito a ambos; solitários,ambos realizam seu negócio nas horas em que os burgueses se entregamao sono; o próprio gesto é o mesmo em ambos. Nadar fala do pas saccadé(passo intermitente) de Baudelaire; é o passo do poeta que erra pela cidadeprocurando a presa de rimas; deve ser também o passo ao trapeiro que, atodo instante, se detém no seu caminho para recolher o lixo em quetropeça”.445

Embora remeta à modernidade a imagem do trapeiro que explica a do

poeta, já que ambos buscam na rua e no lixo os seus temas de sobrevivência e de

arte, evoca situações que se assemelham hoje, de modo figurativo, ao trabalho do

historiador. O descartável, isto é, restos que não interessam mais ao presente, serão

salvos pelos arquivos, criados porque não há mais a memória espontânea. Neles o

historiador os recolhe, festeja o descartável, a sucata, os objetos indesejáveis, os

trapos, míseros fragmentos de indivíduos ou de grupos.

Solitário, muitas vezes, o historiador procede como lhe impõe seu mister.

Na montanha de lixo ele cataloga, compila, separa. Como um avarento, vê ganhos

naquilo tudo e transforma o descartável em matéria-prima. Dela resultará sua

narrativa, não aquela que garantiria a tradição, a continuidade entre gerações, como

a de Homero entre os gregos. Antes, uma escritura que será política, autoritária ou

445 BENJAMIN, Walter. A Paris do Segundo Império em Baudelaire. Capítulo "A Modernidade". In:______. Obras Escolhidas III. Tradução (modificada) de José Carlos Martins Barbosa. São Paulo:Ed. Brasiliense, 1989. pp. 78-79.

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de resistência, conforme o gosto, mas que será, no porvir, um campo de disputa da

memória.

Por essa perspectiva, pensar no que foi deixado por Sérgio Buarque de

Holanda nos remete a interrogar sobre a intencionalidade ou não dos rastros ou

traços que deixou o notável escritor. Marcas que remetem a uma tendência

frequente das sociedades atuais, qual seja, o ímpeto comemorativo, como nos

chamou a atenção Pierre Nora ao afirmar que “nenhum cientista, nenhum escritor,

nenhum artista teria a menor possibilidade de salvar-se do radar comemorativo”,

tantos eram os aniversários de nascimento e morte que geravam eventos de

comemoração.

Ímpeto observado nas diferentes estratégias de consagração que

garantiram a Sérgio não apenas lugares de memória, mas um lugar na história, da

historiografia, da crítica literária e no campo das esquerdas. Imagem póstuma, cuja

gênese encontramos nos elogios fúnebres, na fortuna crítica comemorativa da

década de 1980 e nos eventos acadêmicos que ainda hoje celebram o autor. Caso

contrário, sem essa vigilância comemorativa, a história depressa o varreria e talvez

não nos fosse possível elaborar um dos exercícios centrais desta tese, o de buscar

nos silenciamentos e, numa leitura às avessas desses rastros, uma possibilidade de

reconstituir as condições de elaboração dessa memória.

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Considerações finais

Esta tese buscou elaborar uma leitura alternativa à tradicional fortuna

crítica de Sérgio Buarque de Holanda, tendo como mote os debates estabelecidos

nos campos da História Intelectual ou dos Intelectuais e da Memória.446 Por essas

trilhas, em especial no Brasil, além dos já consagrados expoentes de nossa

“moderna historiografia”, pesquisas recentes passaram a cotejar, como objetos, os

historiadores, literatos e demais intelectuais ditos do “segundo time”, favorecendo a

crítica de uma memória instituída em nossa disciplina. No caso de Holanda, não

questionamos o seu mérito e contribuição às nossas letras, antes a persistência de

publicações comemorativas, reedições de livros, coletâneas de artigos e até análises

que insistem na trivial fórmula jovem modernista/fundador do PT. Como se sua

biografia fosse dotada de sentido programático, mesmo que a atual paleta de cores

da historiografia exija dos pesquisadores formas e cores variadas.

Isto posto, buscamos compreender o porquê de Sérgio Buarque de

Holanda ainda exercer a mesma “fascinação"447 de outrora em certas instâncias de

produção acadêmica, como a USP, por exemplo. Mostramos ao longo do texto que

ainda há uma “obsessão comemorativa” e um “monopólio da memória” em torno da

sua figura e de seus escritos, sobretudo “Raízes do Brasil”, fenômeno este iniciado

na década de 1980 e sem prazo de validade.

Basta retomarmos, por exemplo, o fato de que vieram à público, durante a

realização da tese, mais de uma dezena de novos títulos com Sérgio na capa,

incluindo, entre eles, muitas reedições suas, estudos de caso, coletâneas de textos

avulsos e entrevistas, além de outros tantos que tratam de obras específicas. Como

não pensar nesta “obsessão comemorativa” quando Chico Buarque revela, em cores

446 Essa temática continua em voga. Basta ver o Dossiê “História Intelectual” do último número daRevista Tempos Históricos, vol. 19, jan/jun, 2015, lançado logo após o término da redação da tese.Em especial vale mencionar o artigo de Cláudia Wasserman, "História Intelectual: origens eabordagens",pp.63-79.http://e-revista.unioeste.br/index.php/temposhistoricos/issue/view/744/showToc447 O termo fascinação denota um tipo de encantamento intelectual, uma sedução, uma paixão. Ideiaapropriada de Sérgio da Mata em seu livro sobre as origens da obra de Max Weber. Segundo o autor,quem primeiro teria usado a expressão “fascinação" ao se referir ao autor alemão, teria sido NelsonWerneck Sodré, nos idos de 1950. O termo ainda remete à ideia de “culto de fé”, segundo aconcepção de Edgar Zilsel, citada por Mata, o qual aponta que, “parte substancial de nossos literatos(…) satisfaz suas necessidades religiosas exclusivamente na forma de culto ao gênio”. MATA, Sérgioda. A fascinação weberiana. As origens da obra de Max Weber. Belo Horizonte: Fino Traço, 2012.p. 12.

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literárias, segredos familiares por muito tempo guardados, como a existência do seu

“Irmão Alemão”, apresentando documentos que desmontam a versão meramente

memorialística da passagem de seu pai por Berlim, causando frisson no mercado

editorial? Ou quando Antonio Candido insiste nesta mesma memória em um evento

celebrativo aos cinquenta anos do IEB?

Não seria exagero, então, afirmar que houve por parte de um pequeno

grupo de amigos e ex-orientandos o rearranjo da esparsa obra buarqueana, tanto

histórica quanto crítica, bem como o ajuste de seu perfil biográfico à esquerda,

levando em conta o envolvimento de alguns desses intelectuais com a fundação do

PT. Ou foi mero acaso que o Centro de memória política do Partido escolheu o

historiador como homenageado? O certo é que virou memória a versão de um

intelectual politicamente combativo, de posicionamento radical, anti-autoritário,

democrático, o maior de nossos historiadores, chegando sua obra em alguns casos

a ser lida como um sofisticado exemplo de história social dos excluídos, avant la

lettre.

Todavia, a leitura de algumas fontes apontou se tratar de um personagem

bem diferente, visto muito mais como um humanista e erudito, cuja obra naquele

início de década, além de esparsa, tinha pouco alcance nos meios acadêmicos fora

da órbita paulista. Daí a afirmação de Francisco Iglésias de que “Sérgio ainda há de

ser reconhecido em seu devido valor”. Se hoje o passado do historiador vive preso

nesse presentismo eterno, isso muito se deve a essas estratégias de consagração.

Um estudo recente mostrou que de nada vale a excelência de uma obra,

sem a existência de mediadores dispostos a mobilizar recursos capazes de garantir

a construção e a manutenção do “estatuto de clássico” de um determinado autor,

caso contrário muitos deles poderiam se desmanchar no ar.448 Não foi apenas por

saudade, portanto, que intelectuais como Antonio Cândido, Francisco de Assis

Barbosa, José Sebastião Witter, Fernando Novaes, Francisco Iglesias, Maria Odila

L. da S. Dias, Laura de Mello e Souza, entre outros, elaboraram e sustentaram

versões que ajudaram a cristalizar o perfil oficial do mestre-amigo, materializado em

publicações póstumas de inéditos, coletâneas, reedições e enunciações em eventos

acadêmicos, sem contar a biblioteca e o arquivo, lugares funcionais dessa memória.

Embora persistente, essa evocação perdeu força na virada do século XXI.

Nessa época vieram à tona estudos críticos e contundentes resultantes de

448 Idem, p. 11.

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pesquisas de fôlego em diversos programas de Pós-Graduação fora desse polo

irradiador e ancoradas de forma substancial na biblioteca e arquivo pessoal de

Sérgio. A partir de então, alguns estudos passaram e enxergar em seus textos, a

possibilidade de uma leitura historiográfica mais acurada, buscando suas influências

teóricas para além de "Raízes do Brasil”, a reconstituição de diálogos, suas práticas

de leitura, a influência de autores em sua prática crítica e historiadora, suas redes de

sociabilidade, seu papel como agente público e, o mais importante, muitas vezes

problematizando o status quo dessa memória.

Foi partindo dessa abertura de campo que este trabalho cotejou uma

história da memória, buscando no próprio recorte cronológico instituído pelos seus

detentores, possíveis silenciamentos concedidos à trajetória do historiador, como

visto em seus “dois projetos” intelectuais: o primeiro, de interpretação do Brasil

derivado de sua experiência militante no modernismo e, o outro, de divulgação da

História, praticada sem um fim político utópico, concretizado por meio de

publicações didáticas e pela sua atuação em instituições de ensino, pesquisa e

memória, a dimensão pública da sua militância relegada a uma atividade “menor",

para que depois fosse apreendido como um intelectual das esquerdas.

Buscamos demonstrar, também, que essa memória foi iniciada em vida

pelo próprio Sérgio Buarque de Holanda ao se constituir como objeto de sua própria

trama, tecida na guarda de papéis específicos, nas entrevistas concedidas no fim da

vida e em passagens autobiográficas de textos, como suas Tentativas de Mitologia. O

estudo desse material nos levou a sugerir que Sérgio Buarque buscou construir um

perfil de “mestre”, agrupando por meio de seus projetos, uma constelação

(inter)nacional de outros tantos historiadores e intelectuais, como acompanhamos

em suas correspondências, esboços de pesquisa ou livros autografados. Em vida,

vale lembrar, Sérgio não fez escola, mas deixou um valioso grupo de discípulos a

quem a família, por amizade, atribuiu o controle do seu passado biográfico.

A pesquisa também constatou que a memória de Sérgio Buarque não

sofreu qualquer embate de versões, já que foi criado um consenso em como narrá-

la. O que institucionalmente se disputou foi a sua herança material, composta de

uma valiosa biblioteca e um conjunto de móveis que originaram o seu escritório-

museu e o seu Fundo Pessoal. Nesse processo todo, o papel de D. Maria Amélia

como memorialista foi fundamental. Atuando nos bastidores, a viúva de Sérgio foi

quem primeiro se preocupou com atos de lembrança e esquecimento, já que

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conhecia como ninguém a dinâmica de trabalho de Sérgio. Muitos registros

demonstram que ela costumava acompanhar o marido em pesquisas de campo, se

responsabilizando por copiar passagens inteiras de documentos e datilografando

muitos de seus escritos.

Para melhor discutir essas questões buscamos problematizar a questão

do arquivo, entendido como um objeto dotado de possibilidades narrativas e não

meramente um depositário institucional de memória. Daí concluirmos que, nem

mesmo a salvaguarda deste arquivo por uma instituição de pesquisa e pensamento

crítico como a universidade, conseguiu neutralizar completamente as demandas e

projeções futuras do titular e de seus herdeiros sobre a memória em questão.

Sobretudo se considerarmos hoje os efeitos desse arquivamento na revitalização de

sua obra, vistos na vasta fortuna crítica que se formou e nos muitos inéditos de sua

autoria que passaram a veicular no âmbito acadêmico a partir da década de 1990,

reforçando do ponto de vista documental o que a memória póstuma já havia

esboçado na década de 1980.

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São Paulo:

Museu Paulista, Relatórios da direção do Museu (1946-1956)

Instituto de Estudos Brasileiros-IEB

Rio de Janeiro:

Fundação Casa de Rui Barbosa

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Biblioteca Nacional, Seção de Manuscritos

Brasília:

Arquivo Nacional