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Porto Alegre, 26 a 30 de julho de 2009, Sociedade Brasileira de Economia, Administração e Sociologia Rural 1 PRODUÇÃO DE NOVIDADES: ‘DESVIOS’ DA AGRICULTURA FAMILIAR NO OESTE DE SANTA CATARINA [email protected] Apresentação Oral-Agricultura Familiar e Ruralidade FLÁVIA CHARÃO MARQUES 1 ; MARCIO ANTONIO DE MELLO 2 . 1.UFRGS, PORTO ALEGRE - RS - BRASIL; 2.EPAGRI/PGDR/UFRGS, SAO JOSE - SC - BRASIL. Produção de Novidades: ‘desvios’ da agricultura familiar no Oeste de Santa Catarina 1 Grupo de Pesquisa: Agricultura Familiar e Ruralidade. Resumo O processo modernizador da agricultura forçou uma reorganização do trabalho agrícola em bases simplificadoras e reducionistas. Por outro lado, a mesma modernização, re- interpretada pelos agricultores familiares, contribui para o surgimento de novas heterogeneidades nos espaços rurais. No Oeste de Santa Catarina, Região Sul do Brasil, percebe-se uma situação de crise causada por um processo de descapitalização dos agricultores e grandes problemas ambientais derivados da agricultura intensiva. Mas, a crise não está paralisando os agricultores familiares, eles estão reagindo criativamente produzindo ‘novidades’, que correspondem a mudanças tecnológicas, organizativas e institucionais. Analisando iniciativas de produção ecológica de alimentos e o cultivo de plantas medicinais, observamos que há um ativo processo de produção de novidades que, no entanto, enfrenta barreiras impostas pelo regime sociotécnico prevalente. Identificamos que há mudanças substanciais na região pelo fortalecimento das redes de relações sociais, contudo, engajamentos institucionais ampliados poderiam favorecer a criação de espaços protegidos para nichos de inovação, fundamentais para a consolidação dos processos em andamento. Palavras-chaves: desenvolvimento rural, transição tecnológica, agricultura ecológica, plantas medicinais. Abstract The modernizing process into agriculture has forced a farm labour re-organization on simplifying and reducing basis. On the other hand, the same modernization has been re- interpreted by the family farmers and it is also contributing for emerging new heterogeneities in the rural spaces. In the West of Santa Catarina State, Brazilian South Region, we can recognize a crisis situation which results from a farmers descapitalization process and huge environmental problems caused by the intensive agriculture. But the crisis is not paralyzing the family farmers; they are reacting creatively producing ‘novelties’ which correspond to technological, organizatives and institutional changes. Analyzing ecological food production and medicinal plant cultivation initiatives, we 1 A elaboração deste artigo está, parcialmente, baseada nos trabalhos de tese de doutorado de seus autores.

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Sociedade Brasileira de Economia, Administração e Sociologia Rural

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PRODUÇÃO DE NOVIDADES: ‘DESVIOS’ DA AGRICULTURA FAMILIAR NO OESTE DE SANTA CATARINA

[email protected]

Apresentação Oral-Agricultura Familiar e Ruralidade FLÁVIA CHARÃO MARQUES 1; MARCIO ANTONIO DE MELLO 2.

1.UFRGS, PORTO ALEGRE - RS - BRASIL; 2.EPAGRI/PGDR/UFRGS, SAO JOSE - SC - BRASIL.

Produção de Novidades: ‘desvios’ da agricultura familiar no Oeste de

Santa Catarina1

Grupo de Pesquisa: Agricultura Familiar e Ruralidade.

Resumo O processo modernizador da agricultura forçou uma reorganização do trabalho agrícola em bases simplificadoras e reducionistas. Por outro lado, a mesma modernização, re-interpretada pelos agricultores familiares, contribui para o surgimento de novas heterogeneidades nos espaços rurais. No Oeste de Santa Catarina, Região Sul do Brasil, percebe-se uma situação de crise causada por um processo de descapitalização dos agricultores e grandes problemas ambientais derivados da agricultura intensiva. Mas, a crise não está paralisando os agricultores familiares, eles estão reagindo criativamente produzindo ‘novidades’, que correspondem a mudanças tecnológicas, organizativas e institucionais. Analisando iniciativas de produção ecológica de alimentos e o cultivo de plantas medicinais, observamos que há um ativo processo de produção de novidades que, no entanto, enfrenta barreiras impostas pelo regime sociotécnico prevalente. Identificamos que há mudanças substanciais na região pelo fortalecimento das redes de relações sociais, contudo, engajamentos institucionais ampliados poderiam favorecer a criação de espaços protegidos para nichos de inovação, fundamentais para a consolidação dos processos em andamento. Palavras-chaves: desenvolvimento rural, transição tecnológica, agricultura ecológica, plantas medicinais. Abstract The modernizing process into agriculture has forced a farm labour re-organization on simplifying and reducing basis. On the other hand, the same modernization has been re-interpreted by the family farmers and it is also contributing for emerging new heterogeneities in the rural spaces. In the West of Santa Catarina State, Brazilian South Region, we can recognize a crisis situation which results from a farmers descapitalization process and huge environmental problems caused by the intensive agriculture. But the crisis is not paralyzing the family farmers; they are reacting creatively producing ‘novelties’ which correspond to technological, organizatives and institutional changes. Analyzing ecological food production and medicinal plant cultivation initiatives, we 1 A elaboração deste artigo está, parcialmente, baseada nos trabalhos de tese de doutorado de seus autores.

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observed that there is an active process of novelty production. However this process is often hampered by the prevailing sociotechnical regime. We identified that there are substantial regional shifts because the strengthening of the social relations networks, nevertheless, more extended institutional engagements could allow protected space creation for innovation niches, very important for consolidating of the current process. Key Words: rural development, technological transition, ecological agriculture, medicinal plants.

1. INTRODUÇÃO O esforço modernizador na agricultura se traduziu em um processo que foi distanciando a agricultura dos contextos em que deveria estar inserida. A globalização do industrialismo e do progresso tecnológico reorganizou a produção, alterou as relações sociais e as relações com o ambiente físico e natural (Brandenburg, 1996), propondo o fim de um trabalho artesanal pela decomposição de um processo produtivo complexo em uma série de operações simples, efetuadas de forma repetitiva (Jean, 1993). Especificamente, esta cunha da modernidade sobre a agricultura desloca os diferentes fatores de produção que compunham a localidade e a diversidade: “a agricultura se torna desconectada daqueles elementos estruturantes que inicialmente introduziram sua especificidade” (Ploeg, 1992, p.21). Assim, a ordem do dia era a busca de produtividade e eficiência pela combinação do aumento de escala e aplicação de tecnologias modernas balizadas pela ciência agrícola. A ‘vanguarda’ assumiu o modelo, integrou-se rapidamente ao mercado e passou a depender da compra de insumos para viabilizar seus modernos processos de produção. Todavia, como colocam Arce e Long (2000, p. 14), pessoas não experenciam a chegada da modernidade como uma desintegração dos seus velhos mundos, marcados por um estabelecimento de um novo e puro código de comunicação e racionalidade não problemático. Ao contrário, elas visualizam a realidade como feita de misturas das experiências imaginadas e realizadas que justapõe e inter-relacionam diferentes materialidades e tipos de agência, que envolvem noções associadas com aspectos de ambas, ‘modernidade’ e ‘tradição’. Carneiro (1997, p. 18) reforça essa noção quando afirma que as transformações provocadas pela intensificação das trocas entre universos culturais distintos (grosso modo, os ‘urbanos’ e os ‘rurais’) não resultam, necessariamente, na descaracterização de um sistema cultural e social. Com isso queremos apontar que as profundas modificações introduzidas pela modernização da agricultura, apesar de sua dinâmica uniformizadora, acabaram, também, por abrir precedentes para o surgimento de ‘novas’ heterogeneidades no espaço rural.

O modelo de modernização foi bastante internalizado por alguns agricultores, assim como foi desconstruído e redesenhado por outros. Alguns grupos têm, de fato, ativamente tomado distância daquilo que parece ser a diretriz dominante. A modernização, então, analisada ‘mais de perto’ resultou, também, em uma diferenciação (Dijk e Ploeg, 1995). A heterogeneidade conferida pela diversidade de circunstâncias agroecológicas e culturais é, justamente, fonte para uma mudança evolucionária e apresenta um potencial estratégico a ser explorado no sentido de ampliar a transformação do regime e dos processos de transição que apontem para a superação da insustentabilidade das atuais práticas agrícolas (Moors et al., 2004).

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A região Oeste de Santa Catarina, no sul do Brasil, é conhecida como um ‘território da agricultura familiar’. No entanto, destacamos que esse ‘maciço’ da agricultura familiar, vem sendo considerado expressão de resistência no espaço rural brasileiro, está longe de guardar características homogêneas, despertando, assim, a necessidade de compreender mais amiúde os processos produtivos engendrados pelos agricultores em seu cotidiano.

Deste modo, nesse artigo, faremos uma análise de alguns aspectos relativos às ‘novidades’ emergentes no Oeste catarinense, como contribuição à reflexão sobre do seu papel para a construção de diferentes possibilidades de desenvolvimento rural na região. A partir do destaque de dois casos de formas inovadoras de intervenção técnica na produção agrícola e estabelecimento de novas redes de relações sociais pretendemos apontar quais são os principais avanços e limites que enfrentam os agricultores no processo de ‘produção de novidades para a agricultura’. 2. BASE EMPÍRICA E METODOLÓGICA

A região Oeste de Santa Catarina (Figura 1) ficou conhecida como uma região de ‘agricultura avançada’, essa espécie de consenso foi fruto de um processo de convergência entre atores regionais, que, na década de 1970 e 1980, construíram a noção de que era o desenvolvimento agrícola, baseado na modernização da agricultura e na articulação e integração dos agricultores familiares às grandes agroindústrias, que conduziria ao desenvolvimento rural e ao bem-estar da população.

Desde a colonização da região, a suinocultura esteve presente como um dos componentes de um modelo de policultura. Em um primeiro momento, a produção estava voltada para atender o consumo familiar, em seguida, o excedente de produção passa a inserir-se ao mercado. A suinocultura firma-se, então, como a principal atividade mercantil da maioria das unidades familiares que, contudo, mantiveram características de produção diversificada. Este modelo de produção foi denominado por Testa et al. (1996) como “policultura hierarquicamente subordinada à suinocultura” por contemplar sistemas de cultivo de milho, feijão e soja de modo complementar à produção de suíno.

Figura 1 – Localização da Região Oeste de Santa Catarina em relação ao Estado e ao Brasil

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Entretanto, desde o final da década de 1980 até meados da década de 1990, quase 50 mil famílias deixaram a produção comercial de suínos (Testa et al. 1996) porque não puderam ou não quiseram atender as exigências de aumento de escala impostas pelas grandes agroindústrias. Essa reestruturação produtiva, forçada pela especialização e alta capitalização exigidas pelas indústrias, também concentrou espacialmente a produção de suínos, causando poluição ambiental pelo excesso de dejetos e causou uma crise socioeconômica e ambiental sem precedentes na região. Além disso, Silvestro et al. (2001) destacam outros fatores de agravamento da crise: o esgotamento dos recursos naturais; a queda do preço das commodities tradicionalmente produzidas na região e a escassez de terras aptas para cultivos anuais. Todos esses fatores geraram um quadro de descapitalização de grande parcela das unidades familiares, diminuindo as oportunidades de trabalho e intensificando o êxodo rural. Tais conseqüências fragilizam dois dos principais pilares que servem de base para o desenvolvimento rural: o capital social e a qualidade ambiental (Mello e Marques, 2007).

Esse quadro, de algum modo, mostra o revés do avanço da agricultura modernizada e, a partir de um olhar panorâmico, parece indicar que as unidades familiares que ficaram fora da subordinação às grandes agroindústrias estariam condenadas ao desaparecimento; ao mesmo tempo em que aquelas totalmente integradas estariam destinadas unicamente ao endividamento pela exigência cada vez maior de capital para financiar a produção. Todavia, as respostas dos agricultores familiares a esse contexto de ‘crise’ parece contrapor essa lógica unidirecional. Uma análise mais criteriosa da realidade do Oeste de Santa Catarina permite constatar que os agricultores familiares e suas organizações não estão imobilizados diante da crise e grande parcela deles está construindo estratégias de reação e adaptação ao ambiente socioeconômico considerado hostil. Grande parte dessas estratégias se insere no que Ploeg (2000) e Marsden (2003) denominam de “novas iniciativas de desenvolvimento rural” ou “sementes da transição”, que se materializam como agroindústrias familiares, atividades de turismo rural, produção agroecológica ou de baixo uso de insumos externos, pluriatividade, novas formas de organização social e da produção, dentre outras. A fala do Sr. Celito do município de Pinhalzinho é emblemática e permite perceber a motivação e as respostas que os agricultores vêm construindo:

...chegou uma época que eu não agüentei mais na suinocultura; me tirou todo o capital de giro, me tirou toda a estrutura. Durante essa crise, ali, as sucessivas crises. Faz 12 anos que eu tive que parar [de produzir suínos]. Ao poucos fui tentando descobrir alguma coisa que nossa família podia fazer para conseguir ganhar dinheiro e se manter no meio rural. Como aqui não era longe da cidade, começamos a vender na feira livre. Ela [a esposa] fazia panificados e cuidava, um pouco da horta. [...] fui mudando a estrutura da propriedade: aos poucos passei para a produção agroecológica. Plantei mais uns pés de fruta no pomar produzindo sem uso de adubo e veneno... agroecológico, sabe? Também, soltei umas galinhas caipiras no pomar, elas comiam os bichinhos e ainda podia vender os ovos e a carne na feira. Aos poucos a gente foi diversificando produzimos de tudo um pouco. Assim a gente vai...Cada dia aprendendo um pouco.

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O lócus empírico desse trabalho é justamente essa agricultura familiar que, não só resiste, mas vem construindo formas inovadoras nos processos agrícolas, na relação com mercados, na articulação entre atores e/ou na criação de novas institucionalidades, em outras palavras, que está ‘produzindo novidades’.

Deste modo, a discussão e análise apresentada neste trabalho partem de pesquisa a campo que procurou captar práticas sociais e organizacionais dos atores, estabelecendo nexos entre distintos níveis das relações sociais, através da observação da ação dos agricultores, bem como a realização de entrevistas. Tomando por base a Perspectiva Orientada pelos Atores2, procuramos elementos que permitissem entender a articulação, a gestão dos interesses dos atores e seus mundos de vida. Esses últimos constituem o campo de capacidades, constrangimentos e sancionamento mútuo pelos quais novas personificações da ação dos atores tomam forma (Long, 2001). Deste modo procuramos ‘seguir os agricultores inovativos’ (Dijk e Ploeg, 1995) ao nível micro para, posteriormente, estabelecer relações mais amplas.

As observações e a tomada de informações foram realizadas no período compreendido entre outubro de 2007 e maio de 2008. As famílias entrevistadas vivem e desenvolvem suas atividades no espaço rural dos municípios de Sul Brasil, Águas Frias, Chapecó, Coronel Freitas, Seara, Concórdia e Ipira todos localizados na região Oeste do Estado de Santa Catarina. De modo complementar, foram utilizados dados de fontes secundárias e informações obtidas em entrevistas semi-estruturadas com pessoal técnico que atua nos municípios citados. 3. UMA VISÃO MULTINÍVEL, MULTI-ATOR E MULTI-ASPECTO

A agricultura tem a sua história marcada pela produção de novidades. Ploeg et al. (2004) afirmam que ao longo dos tempos, voluntária ou involuntariamente, os agricultores têm introduzido mudanças no processo de produção utilizando, para isso, cuidadosas observações, interpretações, reorganizações e avaliações. Segundo os autores, é assim que as novidades são descobertas ou criadas.

Uma novidade pode ser entendida como uma modificação e, às vezes, uma quebra em rotinas existentes. Deste modo, uma novidade pode significar uma modificação dentro de uma prática existente ou pode consistir em uma nova prática. Pode, ainda, ser um novo modo de fazer ou pensar, presumivelmente com potencial para promover melhorias nas rotinas existentes (Ploeg at al., 2004). A produção de novidades não representa apenas aquelas relacionadas ao processo produtivo, ela também pode estar relacionada com as formas de organização da produção e com a criação e consolidação de dispositivos coletivos e arranjos institucionais. Um bom exemplo é o surgimento e consolidação de uma de rede de pequenas cooperativas que congregam as agroindústrias familiares do Oeste de Santa Catarina (UCAF3) ou a Cooperfamiliar, que congrega os feirantes do município de Chapecó e, dentre, eles alguns que produzem e vendem plantas medicinais.

2 Essa abordagem assume que os diferentes padrões emergentes de desenvolvimento são, em parte, criação dos próprios atores sociais. sso, sugere que as análises sejam muito mais centradas nos próprios atores sociais e menos nas forças externas (Long, 1988). A perspectiva considera que as variações culturais e as diferenças organizacionais são resultados das distintas formas que os atores respondem às situações problemáticas e interações com outros atores (Long e Ploeg, 1994). Ainda, ressalta-se que, mesmo considerando os limites colocados pelas estruturas, essas não são abordadas de modo determinista. 3 Unidade Central das Agroindústrias Familiares

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Novidades diferem de inovações. Ploeg et al. (2007, p. 1) nos lembram que uma novidade está associada ao conhecimento tácito e, por isso, é altamente limitada ao contexto local, enquanto, uma inovação é a expressão do conhecimento codificado, construída primeiramente em um mundo externo da produção, incorporado a um artefato que pode ser transposto de um local para outro. O processo de inovação se caracteriza pela padronização, pela externalização e pela globalização, diferindo da produção de novidades na agricultura, que é um processo altamente localizado, dependente do tempo, dos ecossistemas locais e dos repertórios culturais nos quais a organização do trabalho está envolvida. Entretanto, as novidades podem vir a constituir inovações, a depender de suas propriedades e/ou contexto.

A importância da produção de novidades não pode ser subestimada, ela é essencial para o desenvolvimento de métodos sustentáveis para a agricultura (Swagemakers, 2003), que poderão dar sustentação para re-estruturações de agroecossistemas ou para enriquecimentos do tecido social nos espaços rurais.

Assim, considerando a interação entre tecnologia e sociedade como o processo de co-evolução ou co-produção em distintos contextos (como a própria agricultura), Ploeg et al. (2004) argumentam que uma perspectiva multinível, dinâmica e co-evolucionária é importante, no sentido de desenvolver um método técnico-institucional que considere componentes materiais e sócio-institucionais das novidades na agricultura, bem como a inter-relação entre os dois. Os autores apontam que, para desenvolver tal perspectiva, as mudanças multinível, multi-ator e multi-aspecto nas dinâmicas das transformações sociotécnicas devem estar em foco.

O termo-chave ‘Produção de Novidade’ (Novelty Production) foi proposto a partir da necessidade de particularizar ou evidenciar fenômenos que, até então, estavam escondidos na obviedade do dia-a-dia e é derivado de uma rica tradição de estudos de tecnologia dedicados à compreensão das mudanças tecnológicas (Swagemakers, 2003; Ploeg et al., 2004). Tais estudos estão amparados pela Perspectiva Multinível (PMN) 4, uma abordagem interdisciplinar, influenciada pelos evolucionários da teoria econômica, pela teoria institucional e pela teoria da estruturação de Giddens (1984). A perspectiva propõe explicar as transições tecnológicas pela inter-relação de processos de três diferentes níveis heurísticos, os conceitos analíticos de nicho de inovação, regime sociotécnico e paisagem sociotécnica (Kemp et al., 1998; Geels, 2002; Verbong e Geels, 2007). Geels e Schot (2007) sublinham que a Perspectiva Multinível é um modelo multidimensional de agência, que assume que os atores têm interesses próprios, agem estrategicamente, mas são limitados pelo tempo e por distintos tipos de regras (regulativas, normativas e cognitivas), sejam elas partilhadas ou não com os demais atores. A Perspectiva Multinível, então, propõe distinguir três níveis de análise: micro, meso e macro.

Regime sociotécnico (meso) é definido como a gramática ou o conjunto de normas compreendido no complexo do conhecimento científico, práticas de engenharia, processos de produção de tecnologias, características de produtos, habilidades e procedimentos, instituições e infra-estruturas que constituem a totalidade da tecnologia (Kemp, et al 2001). Nicho e paisagem são os elementos complementares de regimes na conceituação multinível. Nichos representam o nível local do processo de inovação e são comumente referidos como espaços protegidos ou incubadoras nos quais novas tecnologias ou práticas 4 O uso dos recursos analíticos da Perspectiva Multinível para estudos da tecnologia pode ser considerado recente, em especial no Brasil, assim, alguns elementos teórico-conceituais estão mais detalhados em Marques (2008).

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sociotécnicas emergem e desenvolvem-se isoladas das pressões do mercado normal ou regimes (Kemp et al., 1998; Geels, 2005). A paisagem sociotécnica representa o ambiente externo dos processos e fatores que influenciam regimes e nichos. Os autores consideram paisagem como variáveis de fundo, as quais influenciam processos de transição, mas são largamente independentes e autônomas.

Transição, que pode ser definida como um processo gradual e contínuo de mudança estrutural dentro de uma sociedade ou cultura (Rotmans et al., 2001), é uma noção fundamental para esta perspectiva, uma vez que o esforço dos acadêmicos, ao aprofundar estudos sobre ciência e tecnologia, foi justamente no sentido de melhor analisar mudanças tecnológicas, quando elas estão ocorrendo ou quando transformações aparentemente necessárias permanecem estacionadas ou escondidas.

A abordagem multinível, então, concebe transições tecnológicas como processos interativos de mudança ao nível de nichos e ao nível de regime sociotécnico, ambos inseridos em uma paisagem exterior de fatores, admitindo causalidades múltiplas e processos co-evolucionários como emuladores de desenvolvimentos independentes; que não se restringem ao campo tecnológico, mas interconectam diferentes domínios como economia, instituições, comportamento, cultura, ecologia e sistema de crenças.

Nichos e regimes têm a característica de campos organizacionais (comunidade de grupos interativos). Para regimes, essas comunidades são amplas e estáveis, enquanto para nichos elas são pequenas e instáveis (Markard e Truffer, 2008). Embora seja importante manter a idéia de múltiplos desenvolvimentos em todos os níveis, a probabilidade do surgimento de inovações radicais é maior ao nível do nicho (Geels e Schot, 2007). Hebinck (2001), Wiskerke (2003), Swagemakers (2003), Moors et al. (2004), Roep e Wiskerke (2004), Stuiver (2008), Ploeg (2008, cap.7) pioneiramente enriquecem os estudos e a discussão a cerca da utilização de elementos da PMN para melhor analisar dinâmicas da inovação na prática agrícola e, sobretudo, incorporam o entendimento de que transição tecnológica é um processo que merece maior atenção daqueles que estão dedicados a aprofundar o debate sobre o desenvolvimento rural, em especial, quando a questão é a perseguição de metas de sustentabilidade.

A idéia básica é que os diversos processos de inovação e as escolhas tecnológicas do nível local acumulam-se de tal forma que acabam por constituir-se como desenvolvimento tecnológico ao nível de sociedade. Neste sentido, é que compreender melhor as dinâmicas ao nível micro se torna promissor, pois nichos de inovação podem transformar os regimes quando redes sociais crescem o suficiente para pactuar regras estáveis e restritivas (Geels e Schot, 2007, p.403). No entanto, Moors et al. (2004, p.48) chamam a atenção para o fato de que o nicho estratégico, mesmo considerando que haja um ativo processo de gestão em andamento, não provocará, sozinho, mudanças no regime como um todo.

Assim, simultaneamente, endereçando realidades materiais e técnicas, modelos de interação sociotécnica e os impactos de ação coletiva é que uma visão multinível, multi-ator e multi-aspecto apresenta-se como abordagem robusta para estudos sobre transformações nos perfis técnico-institucionais em direção a novas formas de desenvolvimento rural. Sendo que a ação dos atores merece atenção no nível micro (nicho), pois a partir dele estão sendo delineadas mudanças mais profundas para o desenvolvimento rural (Ploeg e Renting, 2004).

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4. A PRODUÇÃO DE NOVIDADES: SE OPONDO AO REGIME

Embora muitas análises apontem para a construção de um complexo agroalimentar altamente integrado e em certa medida homogêneo, outros estudos (Marsden, 2003; Ploeg, 2000 e 2006; Ploeg et al. 2000, 2002, 2004; Ploeg e Renting, 2000) têm mostrado que a emergência e a consolidação de modelos heterogêneos de práticas de produção agrícola e de inserção ao mercado são o resultado da reação dos próprios atores sociais às pressões externas a que estão submetidos e a construção social de projetos individuais e coletivos.

A produção de novidades pode constituir processo de grande relevância para a transição do desenvolvimento rural em direção à incorporação da sustentabilidade. No entanto, a maioria das promissoras novidades emergentes das distintas realidades rurais brasileiras permanece, ainda, ‘escondida’. Estão nas sombras porque vêm dos “invisíveis camponeses” (Ploeg, 2008) ou porque estão em desacordo com as regras do regime sociotécnico prevalente (Wiskerke, 2003).

Acreditando que no ‘campo’ heterogêneo e diversificado, representado pela agricultura familiar do Oeste de Santa Catarina, podem estar germinando ‘sementes da transição’, examinaremos, nas próximas seções, duas iniciativas – que podem ser traduzidas como ‘novidades’ – a produção de alimentos com base nos princípios agroecológicos e o cultivo de plantas medicinais. 4.1 Produção ecológica de alimentos: construindo oportunidades

A produção de alimentos com base nos princípios agroecológicos5 é uma estratégia que, crescentemente, vem ganhando adeptos entre os agricultores familiares do Oeste de Santa Catarina. Trata-se de sistemas agrícolas desviantes se compararmos com o regime prevalente da agricultura convencional. Mais especificamente, são sistemas produtivos que vão em direção ao desenvolvimento de uma agricultura sustentável, cujas contingências fundamentais são: a) incorporação de processos de reciclagem de nutrientes, fixação do nitrogênio atmosférico e relações predador-presa; b) gestão dos agroecossistemas, com ênfase na conservação do solo, da água, da energia e no incremento da agrobiodiversidade; c) redução no uso de inputs externos e não renováveis; d) integração das práticas e conhecimentos locais com o conhecimento proveniente das instituições técnico-científicas; e) promoção à criação de relações de confiança e interdependência entre os agricultores, a população urbana e a rural [adaptadas de Pretty (1996) e Gliessman (2000)].

A entrevista com uma família de feirantes agroecológicos do município de Chapecó bem ilustra esse esforço dos agricultores em superar as dificuldades e construir novas trajetórias sociotécnicas.

Nesta comunidade nos fomos os primeiros a abandonar a avicultura. Depois, também abandonamos a suinocultura. Logo no começo, quando a gente vendeu o aviário, os vizinhos comentavam que estávamos fazendo uma loucura. “Venderam o aviário e vão viver do quê? Da roça?” Se perguntavam os vizinhos. Eles diziam que pela pouca terra que temos não tínhamos condições de viver só da lavoura. Agora, acho que eles estão convencidos que fizemos a coisa certa. Muitos ficam observando e vem perguntar como eles podem fazer também.

5 Os princípios agroecológicos são, em grande medida, ancorados na noção de ‘co-evolução’, que se refere à dependência recíproca observada na evolução concomitante dos sistemas sociais e naturais (Noorgard, 1989/1994) e constituem diretrizes que orientam inúmeros modos de engendrar sistemas que objetivam desenvolver a agricultura sustentável.

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O objetivo principal das estratégias, que lançam mão esses agricultores, é tornar os estabelecimentos menos dependentes de recursos externos sem, contudo, perder de vista as possibilidades de inserção em um mercado em crescente expansão. Na prática, torna-se necessário o desenvolvimento, por parte dos próprios agricultores, de uma infinidade de técnicas adaptadas tanto ao seu ambiente imediato, como a realidade cambiante das normas e regras exigidas pelo mercado, um bom exemplo são as constantes adaptações para aceder às certificações. Estas situações constituem-se, portanto, um nascedouro de inúmeras novidades constituindo o que Ploeg (2008) chama de ‘constelações de novidades’.

É observável que o processo de geração do conhecimento, que pode dar suporte às mudanças que vão sendo compreendidas como necessárias para promover melhorias no processo produtivo, em parte parece vir da recuperação de experiências anteriores ao processo de modernização. Ao mesmo tempo, os agricultores combinam com novas informações, adaptam, inventam equipamentos também em ‘formas híbridas de tecnologia’ (Moors et al, 2004).

Ressaltamos, porém, que a dinâmica da ação desses agricultores vai além da resolução dos gargalos técnicos, as próprias formas de organização têm mudado e se constituem igualmente como novidades, uma vez que uma série de diferentes organizações vem se mobilizando em torno da agroecologia, ainda que, por vezes, seja difícil um completo alinhamentos entre os distintos atores.

Diferentes organizações existentes no Oeste de Santa Catarina têm promovido e animado debates e implementado ações baseadas nos princípios agroecológicos. O Projeto Microbacias 26, por exemplo, que está sendo coordenado pela EPAGRI (Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina), pretende alcançar mais de 40 mil unidades familiares na região e tem na agroecologia uma de suas principais diretrizes. Também, os projetos de desenvolvimento rural que estão sendo concebidos e executados pela APACO (Associação dos Pequenos Agricultores do Oeste de Santa Catarina) e pela FETRAF (Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar); pelos setores progressistas da Igreja Católica e Luterana; pelo MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) e por outras ONGs que atuam no meio rural, tem na agroecologia base para estratégias de superação da crise pela qual passa a agricultura familiar.

Algumas entidades públicas estatais, como a EPAGRI e secretarias municipais de agricultura, organizações não governamentais, como APACO, Terra Viva-Cooperbiorga, CAPA7, CEPAGRO8, juntamente com os movimentos sociais (MST e MMC – Movimento das Mulheres Camponesas) têm promovido diversos eventos regionais e estaduais sobre agroecologia, sendo massiva a participação dos agricultores familiares, inclusive daqueles que ainda não promoveram transições em seus estabelecimentos. Esse afluxo dos agricultores em torno dos temas relacionados parece demonstrar que o interesse e o engajamento vêm crescendo, apesar de certo ceticismo ainda perceptível. A agricultura convencional ocupa um espaço econômico relevante na região, ainda que seja um padrão excludente, alguns agricultores ainda manifestam certo ‘fascínio pela tecnologia moderna’.

Por outro lado, há exemplos de ações coordenadas bastante dinâmicas, como o exemplo da APACO que, desde meados dos anos 1990, tem estimulado a criação de 6 O Microbacias 2, vigente desde 1999, é o “Projeto de Recuperação, Conservação e Manejo dos Recursos Naturais em Microbacias Hidrográficas no Estado de Santa Catarina”, além de difusão de práticas conservacionistas de recursos naturais, visa promover o desenvolvimento rural sustentável, prevendo a participação dos agricultores em instâncias decisórias (ver Mello e Marques, 2007). 7 Centro de Apoio ao Pequeno Agricultor, organização não governamental ligada à Igreja Evangélica de Confissão Luterana do Brasil. 8 Centro de Estudos e Promoção da Agricultura de Grupo, com sede em Florianópolis.

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grupos de cooperação e associações de agricultores agroecológicos, sendo que grande parte desses grupos já conta com certificação da rede Ecovida9.

A produção agroecológica do Oeste de Santa Catarina destina-se, majoritariamente, ao abastecimento local (municipal) de alimentos como hortaliças, frutas, carne de aves, ovos e laticínios. Esse mercado se caracteriza pela relação face a face entre o agricultor e o consumidor, que acontece nas feiras livres municipais ou mesmo na venda de ‘porta em porta’. Trata-se, na realidade, de um mercado de ciclo curto, onde a relação de proximidade e os laços de confiança são as marcas que o caracterizam. Em menor escala, os agricultores agroecológicos também têm construído oportunidades de comercialização nas redes de supermercados locais e, até mesmo, para mercados mais distantes. No entanto, essa venda mais distante, em geral, requer algum sistema de certificação que garanta a origem e a forma de produção.

A certificação passa, inclusive, a se constituir em uma barreira para a inserção de um maior número de agricultores familiares na atividade, tendo em vista que a demanda local pode ser atendida por relativamente poucos agricultores e a região tem potencial para produzir grandes excedentes que precisam ser escoados para fora. É um ‘resultado sintomático’ da pressão do regime sobre as novidades, uma expressão concreta das barreiras das instituições dominantes sobre as desviantes.

No entanto, começam a surgir alternativas mesmo por dentro das políticas públicas, é o caso do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que adquire alimentos provenientes da agricultura familiar produzidos de forma agroecológica. Em alguns municípios ele tem se constituído em oportunidade para muitos agricultores que tinham dificuldades de acesso ao mercado. A esse respeito a coordenadora da APACO assim se manifestou:

Tem um grupo de agricultores da barranca do Rio Uruguai que veio aqui pedir para trabalhar dentro do núcleo de agroecologia e acessar o PAA. Temos que pensar nessas pessoas que estão excluídas de tudo. Elas fazem agroecologia e nem sabem. Elas estão excluídas de tudo até do uso de insumos. Mercado tem, para inserir esse povo. Vamos começar com o PAA. Três mil e quinhentos reais por ano. Pode não ser muito. Dá quanto por mês? Faça as contas...Trezentos pilas por mês. Para uma família quase excluída de tudo esse valor significa muita coisa.

A transição da agricultura convencional para uma baseada nos princípios agroecológicos em uma região fortemente marcada pela e agricultura modernizada, como é o caso do Oeste de Santa Catarina, não se torna realidade sem dificuldades e conflitos. A presença de grandes empresas e cooperativas tradicionais com seu corpo técnico fazendo um trabalho diário de convencimento e, sobretudo, de imposição do modelo tecnológico convencional se constitui em um forte inibidor e entrave à implantação, estabelecimento e expansão de uma proposta agroecológica. Nem só o corpo técnico tem essa visão, os próprios políticos assim se comportam. A coordenadora da APACO, cuja família faz parte de um núcleo de agricultores agroecológico, tece um comentário a respeito da visão dos políticos locais em relação à agroecologia:

9 A Rede de Agroecologia Ecovida congrega agricultores, técnicos e consumidores e está presente em 170 municípios da Região Sul do Brasil, além da certificação participativa, organiza e articula ações em torno da promoção da agroecologia.

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[...] quando a gente iniciou com a agroecologia fomos pedir ajuda ao secretário municipal da agricultura para fazer um financiamento. Ele falou assim: “Ah, o quê esse povo quer? Manda esse povo fazer chiqueirão que dá muito mais dinheiro criar porco”. Olha, é só por tu ser pequeno. Mas ser pequeno lá. Você não imagina quanto esse povo sofre. Eu me coloco no lugar deles. A gente ainda tinha informações, a gente se defendia, a gente sabia onde queria chegar.... mas e esse povo?

Além da maior exigência em mão de obra, um dos entrevistados também aponta o baixo conhecimento do consumidor em relação a qualidade dos alimentos como uma barreira para o desenvolvimento da agroecologia:

uma dificuldade? Como é que podia dizer? É o conhecimento do consumidor. Eles comem com os olhos. A verdura agroecológica tu não usa veneno, não usa nada. Ela dá um pé miúdo, dá um pé assim, que parece uma folha velha. O pessoal chega na feira e na outra banca que não produz agroecológico, tem , aqueles pezão, desse tamanho assim. Claro que ele vai levar esse que achou mais bonito.

Por outro lado, a crise promovida pelo modelo tecnológico preconizado pelas grandes agroindústrias e cooperativas tradicionais se transforma em estímulo ou a única alternativa para muitos agricultores familiares marginalizados do processo produtivo e que buscam superar a queda da rentabilidade do setor agrícola, praticando uma agricultura mais autônoma e com baixo uso de insumos externos, especialmente sem os agrotóxicos. Buscam melhorar, assim, não só a produção, mas suas próprias condições de trabalho e de saúde.

Como sublinhamos, grande parte das experiências na produção e comercialização da produção agroecológica está voltada para ao abastecimento local de alimentos, especialmente dos produtos comercializados em feiras livres municipais. Mesmo que ainda seja relativamente pequeno o número de agricultores familiares do Oeste de Santa Catarina que trabalham dentro dos princípios agroecológicos, se constitui em um novo desafio de produção, comercialização e industrialização e que proporciona um ambiente propício à geração de novidades (tecnológicas, organizacionais, etc.) e promove um aprendizado que acaba sendo apropriado por toda a região. Essas experiências parecem representar manifestações de resistência e contraponto ao modelo da modernização da agricultura. 4.2 Renovando velhas práticas: o cultivo de plantas medicinais.

A utilização de plantas com propriedades terapêuticas é ancestral, a humanidade utiliza inúmeras espécies vegetais medicinais10 dentro dos mais diversificados sistemas de uso. Entretanto, a universalização da modernidade enquanto estatuto do progresso patrocinado pela ciência, que tanto influenciou as mudanças estruturais na agricultura, não foi diferente no campo da saúde e terapêutica. Os recursos vegetais, antes amplamente conhecidos e utilizados, foram reduzidos a moléculas, cujo uso depende da aprovação da ciência vigente. Por outro lado, como lembram Chechetto (2006) e Pimentel (2006), há 10 Normalmente, são chamadas de ‘medicinais’ espécies vegetais que contém um ou mais componentes fitoquímicos (princípios ativos) que são considerados terapêuticos quando utilizados por seres humanos ou animais, podem ter uso popular/tradicional consagrado e/ou evidências científicas de atividade biológica. As formas de utilização incluem o uso direto de partes das plantas em infusos (chás), como a transformação, por meio de técnicas avançadas, em medicamentos fitoterápicos e outros produtos, como cosméticos, produtos de higiene ou alimentos.

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uma série de movimentos no sentido de construir uma nova integralidade no campo da saúde, em que as plantas medicinais têm um papel importante não só como recurso, mas porque re-significam o contato do ser humano com a natureza.

Deste modo, a tendência de consumo crescente de alimentos seguros e produzidos dentro de princípios de sustentabilidade não é diferente para as plantas medicinais, gerando uma demanda pelos chamados produtos naturais que tem sido incrementada ano a ano no mundo e no Brasil. Mesmo assim, a produção de plantas medicinais como atividade agrícola é razoavelmente pouco desenvolvida no país.

Entretanto, na Região Sul do país, alguns agricultores de forma pioneira vêm dedicando seu trabalho ao cultivo dessas plantas. Motivados por distintas razões criam diferentes estratégias para manter-se na atividade, ao mesmo tempo em que desenvolvem sistemas que favorecem a conservação e o incremento da agrobiodiversidade. Esse pioneirismo é acompanhado por uma ativa ‘produção de novidades’ (Marques, 2008), a começar pelo próprio cultivo de plantas medicinais, que não tem precedente como atividade agrícola voltada para o mercado.

No Oeste catarinense, o uso doméstico das plantas medicinais entre os agricultores é comum e faz parte da tradição das famílias, remetendo a um vasto conhecimento sobre as plantas e seus usos, No entanto, ao aumentar a escala do cultivo das plantas, vislumbrando sua comercialização, alguns desafios vão surgindo. Assim, os agricultores, participantes do presente estudo, que têm como atividades principais a produção de aves, suínos, leite, cana-de-açúcar, milho e soja passam a desenvolver uma nova frente de trabalho para a qual não dispõe de conhecimento específico e, tampouco, pacotes tecnológicos vindos da assistência técnica nos moldes convencionais.

Normalmente, o conhecimento sobre as plantas é um domínio feminino, as falas de duas agricultoras ilustram esse fato.

Só um pouquinho assim na horta, só pro gasto. Camomila eu tinha sempre uns pé. A melissa eu tenho aqui na horta, a menta, tenho cavalinha, mas era só pro gasto da família (Irene, Sul Brasil). O ruibardo? Esse era plantio da minha mãe, sempre teve lá em casa (Rosa, Chapecó).

Dois pontos chamam a atenção com relação a este conhecimento diferenciado pelo gênero, um é que muitas vezes são elas que propõem a introdução das novidades. O segundo ponto é que, também, são as mulheres que ‘inventam’ maneiras de viabilizar semeaduras, plantios, fertilizações de solo, métodos de colheita e secagem. Aparentemente, o fato das mulheres se ocuparem com a saúde da família e com isto acumularem conhecimento sobre as plantas medicinais contribui para a re-construção de habilidades que estavam em desuso ou que eram circunscritas ao âmbito doméstico. Podemos reconhecer no resgate desse conhecimento, nas suas ampliações e modificações uma espécie de ‘retro-inovação’ (Stuiver, 2006).

A Dona Oliva, em Chapecó, nos conta que a família trabalhava com criação de aves de postura e que cansados das exigências da indústria passaram a produzir gado de leite, soja e milho, mas: “as plantas de chá é só coisa minha... na feira, tem procura; procuram mudas, quem está em apartamento procura mudinha para ter lá”. E a Dona Rosa, também

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em Chapecó, nos diz que, através da militância no MMC11, organizaram um grupo de mulheres que está produzindo plantas medicinais e alguns produtos manipulados. As plantas e remédios são utilizados em trabalhos comunitários em saúde, mas também são comercializados na Feira do Agricultor, que acontece uma vez por semana no campus da universidade em Chapecó.

Dona Judite também faz feira em Chapecó, mas em outro lugar no centro da cidade, ela conta que terá que parar de comercializar produtos manipulados (são tinturas, xaropes, sabonetes, pomadas), pois a vigilância sanitária não permite que produtos dessa natureza, produzidos artesanalmente, cheguem ao consumidor. Do mesmo modo, Dona Rosa aponta que seu trabalho e do grupo de mulheres enfrenta uma séries de barreiras que restringem a expansão da produção, assim, relata as exigências legais quanto às instalações, padrão de produção e registro dos produtos são impossíveis de atender.

As novidades infringem regras e códigos de conduta existentes (Ploeg, 2008, p.192), justamente por isso se constituem como novidades, que são desvios do regime prevalente. As agricultoras mantêm a comercialização das plantas secas e seguem preparando alguns remédios, nem sempre comercializados, mas utilizados amplamente nos trabalhos comunitários de saúde, em uma dinâmica continuamente retroalimentada por processos de aprendizagem e aperfeiçoamento.

As mulheres mantêm diferentes fóruns periódicos, alguns de cunho mais organizativo e político, outros com objetivo de trocas de experiências sobre o uso e cultivos de plantas. Há uma rede de relações na qual se pode identificar a participação das agricultoras, extensionistas, pesquisadores, professores da universidade, técnicos de ONG’s, membros de sindicatos e consumidores. A rede é mobilizada tanto para a geração de apoios recíprocos, como para manter processos permanentes de aprendizado mútuo. Todavia, os comprometimentos são apoiados grandemente em disposições individuais, o que fragiliza a rede em determinadas circunstâncias onde um suporte oficialmente institucionalizado seria requerido. Uma dessas situações concretas é a obtenção de recursos financeiros para investimento em melhorias nos estabelecimentos, os relatos das agricultoras apontam como insuficiente o apoio formal de instituições estatais na região.

Entretanto, é verificável a descontinuidade dos apoios formais em conseqüência de mudanças nas conjunturas políticas locais. Dona Rosa conta que:

tinha discussão, mas tinha bastante rejeição e tudo, mas, daí, foi trabalhado com o CAPA, foi trabalhado com a UNO12, com o pessoal dali e eu tava junto com o pessoal lá, com a pastoral. Daí, depois, começaram a fazer até treinamento com as médica.

Através da organização das mulheres e da Pastoral da Saúde13, lograram êxito em um processo gerou condições para a criação de um programa municipal de fitoterapia, que funcionou durante quatro anos, promovendo a produção de plantas medicinais e sua dispensação para usuários do Programa Saúde da Família. Na ocasião da pesquisa de campo, o programa estava desativado em função de disputas políticas locais, entretanto, o acúmulo de conhecimento e a ampliação de redes sociais ‘extra-oficiais’ são resultados residuais visivelmente consolidados.

11 O Movimento das Mulheres Camponesas está organizado em 18 estados brasileiros, sua mobilização políticas trabalha pela igualdade de direitos e pelo fim da violência contra as mulheres. 12 Unochapecó, Universidade Comunitária Regional de Chapecó. 13 Organização subordinada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que possui inúmeros grupos organizados e articulados em todo o país.

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A produção de plantas medicinais na região aparece, também, como parte de outra dinâmica, mais diretamente associada à abertura de novas oportunidades de mercado e inserção econômica regional. No município de Chapecó, está instalada uma indústria que processa e embala chás, cuja matéria-prima utilizada, de modo geral, é proveniente de outras regiões do Brasil ou do exterior. No sentido de aproveitar potencialidades regionais, as prefeituras de Sul Brasil e Águas Frias, em conjunto com a EPAGRI, passaram a estimular o cultivo de algumas espécies medicinais.

As principais demandas da empresa foram: camomila, endro, funcho (folha), erva-doce, melissa, hortelã, cavalinha, orégano. Só para esta última espécie, utilizada mais como condimento, a demanda era de 500 kg de folha /ano, considerada alta pelos agricultores, tendo em vista que estavam tendo dificuldades para estabelecer o cultivo. O capim cidró (ou capim limão), cuja demanda é relatada como descontínua, já estava sendo cultivado em Águas Frias há mais tempo, no entanto, observando as áreas de cultivo é perceptível que há dificuldades de ordem técnica para a obtenção de um produto de melhor qualidade.

Em 2007, a nova proposta ainda era recente, entretanto, algumas famílias prontamente aceitaram o desafio de introduzir novos cultivos, apesar de manifestarem que sentiam certa insegurança devido ao desconhecimento técnico por parte dos extensionistas e deles mesmos, que nunca haviam cultivado essas plantas em escala comercial. Como nos conta o Cássio em Águas Frias:

conversamos com eles, eles disseram que compravam a produção. E nós plantamos, plantamos para experimentar, mas isto aí vem que é uma beleza. Daí veio, deu certo, eles compraram [...] a gente ia pedir (falava sobre assistência técnica) para poder ampliar, ter uma garantia de se precisar se tiver alguma coisa que a gente não sabe. Daí a agente consegue fazer mais tranqüilo, mais com o pé no chão.

Também, podemos registrar como relevante que, em uma região onde há um envelhecimento e esvaziamento da população rural (Mello et al., 2003), a proposta inovadora das plantas medicinais parece atrair a atenção dos mais jovens. Em Sul Brasil, a Luciane com dezesseis anos e, em Águas Frias, o Cássio com dezoito estão diretamente envolvidos na nova atividade e falam com entusiasmo sobre o ‘novo’ trabalho. Nas famílias, os jovens têm mais anos de estudo do que os pais e são os que estabelecem comunicação mais ativa com o ambiente externo à agricultura e ao espaço rural.

Para Jean (1993), a agricultura familiar demonstra uma extraordinária plasticidade nas diferentes conjunturas econômicas, técnicas e políticas. Esta capacidade de adaptação atua em favor do processo de produção de novidades. Ainda que a motivação para promoção de mudanças às vezes seja externa à família, a reorientação das muitas tarefas agrícolas está ocorrendo internamente e gerando diferentes ordens de novidades relacionadas entre si, mesmo porque, como lembra Long (2001, p. 190), a vida cotidiana é dominada por motivo pragmático, que é essencialmente orientado para resolver problemas práticos.

[...] antes, eu tava mais no aviário. Antes, nós não tínhamos o comedor automático, daí ao meio dia eu tava direto lá, agora nós temos o trato automático, daí sobra tempo, senão não daria tempo (Dona Irene, Sul Brasil, está se referindo à nova atividade com as plantas medicinais).

O processo modernizador da agricultura, que foi intenso no oeste catarinense e levou a especialização dos agricultores, diminuiu significativamente a diversidade de

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atividades agrícolas nas unidades familiares. Deste modo, é bastante comum, em processos de revitalização da agricultura familiar ou na tentativa de promover melhorias ambientais observar o estímulo à diversificação na produção agrícola. Dentre famílias entrevistadas, percebe-se que assumem o propósito da diversificação como estratégia, pois manifestam que a introdução das plantas medicinais é motivada pela necessidade de criar novas fontes de renda ou otimizar o uso dos recursos disponíveis.

No entanto, há outros elementos e expectativas envolvidos que geram alguns alinhamentos entre os agricultores, como o rechaço ao modelo de agricultura convencional; a tentativa de rompimento com o sistema de produção integrado à indústria; a busca de satisfação com o próprio trabalho; a preocupação com a construção de uma consciência ecológica; uma mudança de postura frente a elementos da natureza, que voltam a ser entendidos como aliados no processo agrícola. Há, além disso, outros engajamentos surgidos em torno da ‘novidade plantas medicinais’, pois os agricultores e demais atores envolvidos estabelecem novos e cambiantes nexos entre a produção das plantas medicinais e a agricultura ecológica; o sistema público de saúde; circuitos curtos de mercadorias; movimentos emancipatórios (como de mulheres e o agroecológico); movimentos de consumidores urbanos; agentes e agências de políticas públicas; atividades de pesquisa e ensino dentro e fora da universidade regional; projetos de recuperação ambiental que envolvem organizações estatais e não governamentais.

Consideramos fundamental chamar a atenção para esses alinhamentos e engajamentos, sobretudo, porque são justamente eles que criam as condições para a emergência do ‘nicho’. O nicho de inovação, que é um domínio específico de aplicação, onde atores assumem o trabalho com funcionalidades específicas e o risco de aceitar problemas inesperados, não pode ser confundido com ‘nicho de mercado’, cujo entendimento é mais restrito, referindo-se unicamente a benefícios advindos de ganhos adicionais pela modificação de produtos e/ou acesso a novos canais de comercialização. Em outras palavras, diversificar a produção agrícola pela introdução das plantas medicinais pode significar atender e/ou criar um nicho de mercado, fato que, sem dúvida, traz vantagens às famílias; todavia, o desenvolvimento de nichos de mercado por si não, necessariamente, contribuirá para processos de transição de regimes sociotécnicos. 6. UM PASSO A FRENTE: LIÇÕES DESDE O OESTE CATARINENSE

As iniciativas aqui apresentadas – produção de alimentos baseada em princípios agroecológicos e o cultivo de plantas medicinais – podem ser consideradas como novidades, cujos processos provocam a geração de múltiplas novidades encadeadas entre si, que poderão ser chamadas de ‘teias de novidades’ (Swagemakers, 2003; Ploeg, 2008). Esses processos podem ser considerados recentes, entretanto, começam a mudar a ‘fisionomia’ da região sob a perspectiva do desenvolvimento rural. Em uma região, até pouco tempo, bem conhecida como exemplo de ‘modernização bem sucedida’ com a agricultura familiar de ‘vanguarda’ totalmente subordinada aos complexos agroindustriais, parece que ‘desvios’ da rota convencional pré-determinada vão se consolidando. A emergência de novas e complexas redes de relações sociais é uma realidade, resultantes de processos de mobilização social, parecem estar favorecendo novas aprendizagens individuais e coletivas que são fundamentais para o surgimento das promissoras novidades.

Apesar do ‘terreno fértil’, a carência de apoios políticos mais efetivos, de um maior reconhecimento social e de melhores resultados econômicos deverá ser superada de modo

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a expandir e disseminar iniciativas inovadoras na região. As novidades, muitas vezes vistas como anomalias, precisam de tempo e ambiente social, político e institucional adequado para emergir e para demonstração de seu potencial de materialização (Ploeg et al., 2004). Neste sentido, seria importante dar um passo a frente e trabalhar no sentido de construir processos de Gestão Estratégica de Nichos14, que representam um esforço concentrado de desenvolvimento de espaços protegidos, nos quais seja possível desenvolver ou aplicar novas tecnologias, principalmente, pela inclusão do conhecimento e a experiência de todos os atores envolvidos no desenvolvimento tecnológico, com o objetivo de gerar processos interativos de aprendizagem e adaptação institucional (Kemp et al., 1998, p.186).

No entanto, Moors et al. (2004) chamam a atenção para o fato de que o nicho, mesmo considerando que haja um ativo processo de gestão em andamento, não provocará, sozinho, mudanças no regime sociotécnico como um todo. Não é apenas o desenvolvimento do nicho que mudará o ambiente para inovação, é fundamental haver um processo de engajamento institucional.

Neste sentido, salientamos dois aspectos que não esgotam a discussão, mas permitem confrontar mais alguns avanços e limites no que se refere ao encontro inevitável (e nem sempre tranqüilo) do regime e do nicho. No caso da introdução das plantas medicinais como um produto agrícola interessante para a diversificação da produção, a proposta aparece como interessante e os agricultores, em sua permanente vocação de inovar incorporam e iniciam imediatamente processos de geração de novidades associadas que vão se encadeando. Entretanto, é necessário considerar que esses agricultores não dispõem de espaços protegidos o suficiente, nem alinhamentos de expectativas comuns com técnicos e/ou a indústria compradora. O regime sociotécnico que dá suporte aos modelos de subordinação à indústria e simples difusão tecnológica ainda está bem presente. Em outras palavras, há possibilidades de novidades emergirem, mas as condições institucionais ou os alinhamentos entre os atores ainda se mostram bastante vulnerável. O caminho parece aberto, mas as direções ainda aparecem como nebulosas.

O segundo ponto que gostaríamos de destacar se refere à imposição dos sistemas de certificação da produção ecológica de alimentos. A credibilidade gerada pelas instituições (pactos, regras) que conformam o regime dominante se torna muito tangível nos aspectos relativos às certificações. Pois, ainda que surjam dos nichos, novidades interessantes, nesse caso, alimentos de alta qualidade obtidos em processos sustentáveis de agricultura, não há novas instituições suficientemente fortes ao nível de nicho que possam romper as barreiras consolidadas ao nível intermediário, do regime sociotécnico.

Marsden (2009, p.121) defende que a agricultura, como processo fundamental para o desenvolvimento rural, deve tentar de maneiras variadas encontrar novas e amplas plataformas políticas, sociais e econômicas e espaços para distinguir ela mesma dos processos convencionais de modernização, uma vez que estes tendem a continuar a desvalorizar sua base.

Contudo, é perceptível que, apesar das muitas ingerências do regime sociotécnico dominante que estabelece uma série de barreiras para seu pleno desenvolvimento, há nichos de inovação no Oeste catarinense que, mesmo embrionários, estão criando espaços para a ‘produção de novidades’.

14 No original, em inglês, Strategic Niche Management (SNM), abordagem que tem aplicações de ordem analítica e pragmáticas, sugerindo a gestão estratégica de processos de desenvolvimento de tecnologia pela criação de condições para proteção dos nichos de inovação.

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