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PROCESSO DE ESCOLARIZAÇÃO E APRENDIZAGEM DE ALUNOS
INDÍGENAS DA ALDEIA LARANJEIRA ÑANDERU: PERSPECTIVAS E
DESAFIOS
José Paulo Gutierrez (UCDB)1
Antonio Hilário Aguilera Urquiza (UFMS)2
Resumo
O presente texto é fruto de pesquisa de campo em andamento e discute o processo de
escolarização e aprendizagem de crianças indígenas Kaiowá e Guarani, em situação de
acampamento, no sul de Mato Grosso do Sul. Ao redor de sessenta alunos/as
frequentam a Escola Municipal Prefeito Sirio Borges e a Escola Estadual Etalivio
Pereira Martins no Município de Rio Brilhante/MS, oriundas da aldeia Laranjeira
Ñanderu, área de retomada (ao redor de 50 hectares), em conflito com o proprietário e
cedida provisoriamente pela Justiça Federal enquanto não finaliza o processo judicial.
Os estudantes indígenas deslocam-se do acampamento todos os dias para as escolas
públicas na cidade e acompanham em seus estudos o desenvolvimento de uma grade
curricular de uma escola não indígena, urbana. Trata-se de uma realidade conflitante,
pois no acampamento, além das dificuldades de alimentação e moradia, as crianças
aparentemente carecem das condições mínimas para as atividades escolares: cadernos,
espaços para estudar e fazer tarefas. A partir da caracterização desta situação (território,
história, cultura), nos propomos discutir como ocorre o processo da escolarização e
aprendizagem a partir das especificidades culturais dos alunos e alunas indígenas da
aldeia Laranjeira Ñanderu: dificuldades, preconceitos, atrasos, desistências, entre
outros, ancorados em autores oriundos dos chamados Estudos Culturais, como Stuart
Hall (1997), Fleuri (2003), Bhabha (2001), Walsh (2009), assim como autores
estudiosos do povo Guarani, como Brand (1997), Nascimento (2006). A escolarização e
aprendizagem vinculam-se à cultura hegemônica? Há espaço para manifestação da
cultura indígena na escola? Em qual momento essas culturas se cruzam na escolarização
e aprendizagem dentro da escola e quais as consequências dessa formação na identidade
dos alunos indígenas é o eixo orientador deste trabalho.
PALAVRAS–CHAVE: Processo de Escolarização e Aprendizagem; Crianças Kaiowá
e Guarani; Educação Intercultural
Introdução
1 Doutorando em Educação pela Linha de Pesquisa Diversidade Cultural e Educação Indígena da
Universidade Católica Dom Bosco – UCDB. Bolsista da FUNDECT/CAPES - Fundação de Apoio ao
Desenvolvimento do Ensino, Ciência e Tecnologia do Estado de Mato Grosso do Sul. Contato:
[email protected] 2 Doutor em Antropologia pela Universidade de Salamanca. É Professor Adjunto da UFMS, Professor do
Programa de Pós-graduação em Antropologia (PPGAnt) da UFGD e professor colaborador do Programa
de Pós-graduação em Educação da UCDB. Contato: [email protected]
Didática e Prática de Ensino na relação com a Escola
EdUECE- Livro 103842
No Estado de Mato Grosso do Sul3, assiste-se à situação de muitas comunidades
indígenas, especialmente Kaiowa e Guarani, que vivem fora de seus territórios
tradicionais e à beira de rodovias, ou provisoriamente em reduzidos a pedaços de terra,
onde ficam aguardando até o julgamento do processo judicial que decidirá pelo retorno
ou não ao seu antigo tekoha4.
Por se encontrarem fora de seus territórios tradicionais, por motivo de esbulho
durante o governo do presidente Getúlio Vargas (1930-1945), os Kaiowa e Guarani a
partir da década de 1980 começam a luta pela retomada de parte de seu território
tradicional. Antonio Brand em sua tese de doutorado fez um grande trabalho de
levantamento histórico e listou em seu estudo mais de 80 antigas áreas de ocupação
tradicional indígena que foram esbulhadas e destruídas por iniciativas colonialistas,
durante o século XX, no território tradicional Kaiowa e Guarani (BRAND, 1997).
É neste contexto que surgem os denominados acampamentos que estão situados
nas margens de rodovias, ou mesmo em uma pequena porção da área reivindicada.
Nosso objetivo neste artigo é discutir como ocorre o processo da escolarização e
aprendizagem a partir das especificidades culturais dos alunos e alunas indígenas da
aldeia Laranjeira Ñanderu, em situação de acampamento, nas escolas do Município de
Rio Brilhante/MS.
1. A aldeia Laranjeira Ñanderu
A aldeia Laranjeira Ñanderu tem uma população estimada em 110 indígenas5,
situa-se na BR 163, rodovia que liga Campo Grande à Rio Brilhante. A comunidade que
vivia à margem da rodovia deixou a BR e entrou em parte do seu território tradicional,
em reserva legal da fazenda em disputa judicial. A área foi retomada em 2004. Por
ordem da justiça federal, ocupam cerca de 50 hectares de terra, até que finalize o
processo judicial.
3 Segundo Thiago Leandro Vieira Cavalcante [...] dados do Censo Populacional do IBGE de 2010, da
SESAI e da FUNAI, estima-se que a população Guarani e Kaiowa que vive em áreas de reservas
indígenas, terras indígenas e acampamentos em Mato Grosso do Sul seja de 51.801 indivíduos, desses
2.630 vivem em acampamentos, 38.525 em reservas indígenas criadas pelo SPI e 10.646 em terras
indígenas demarcadas após 1980. Esses dados são bastantes conservadores e não computam grande parte
da população indígena que vive em áreas urbanas, o que faz considerar que estimar a população guarani e
kaiowa de Mato Grosso do Sul em 60.000 pessoas vivendo em diferentes tipos de assentamentos não seja
nenhum exagero (CAVALCANTI, 2013, p. 84). 4 Segundo Thiago Leandro Vieira Cavalcante os Kaiowa e Guarani [...] utilizam a categoria nativa tekoha
como sinônimo de aldeia ou terra indígena. Trata-se de categoria polissêmica cuja instrumentalização
depende do contexto de sua utilização (CAVALCANTI, 2013, p. 51). 5 Os dados populacionais têm por base o programa de segurança alimentar MDS/FUNAI. Situação em
julho de 2012.
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Os alunos indígenas têm que se deslocar para as escolas municipais Criança
Esperança I, II, III e IV, Escola Municipal Prefeito Sírio Borges, Escola Municipal
Rural Arthur Tavares e Escola Estadual Etalivio Pereira Martins onde recebem aulas do
1º ao 9º ano e Ensino Médio.
Estas crianças indígenas não têm nenhum acompanhamento dos professores na
aldeia para verificar se de fato os processos de aprendizagem ocorrem de forma
eficiente na comunidade a qual pertencem. O fato da escola não ser indígena também
implica na organização do ensino e da aprendizagem marcados por um currículo não
indígena.
O propósito de estudar o processo de escolarização e aprendizagem é verificar
se os alunos indígenas da aldeia conseguem desenvolver o conhecimento curricular
apresentado na escola formal, e verificar se também na escola há espaço para
desenvolver suas culturas tradicionais por meio da pedagogia da oralidade recebida na
aldeia.
Os dados foram levantados em três jornadas de campo (02 de dezembro de 2013,
24 e 25 de fevereiro de 2014 e 14 de abril de 2014), por meio de observação do contexto
familiar e comunitário, entrevistas semiestruturadas com alunas indígenas, diário de
campo, conversa com o Secretário Municipal, a diretora da escola, pais e liderança da
aldeia.
Discute-se o processo de escolarização e aprendizagem com autores da Linha 3
de Pesquisa do Programa de Pós-Graduação que é Diversidade Cultural e Educação
Indígena. Tonico Benites (2009), Antônio Carlos Seizer da Silva (2009), Elda Vasques
Aquino (2012), e Eliel Benites (2014) falam sobre a educação indígena nas suas
pesquisas de mestrado. Para Romanowski e Ens (2006) o estado da arte contribui para a
constituição do campo teórico de uma área de conhecimento, pois
[...] procura identificar os aportes significativos da construção da
teoria e prática pedagógica, apontar as restrições sobre o campo em
que se move a pesquisa, as suas lacunas de disseminação, identificar
experiências inovadoras investigadas que apontem alternativas de
solução para os problemas da prática e reconhecer as contribuições da
pesquisa na constituição de propostas na área localizada
(ROMANOWSKI; ENS 2006, p. 39).
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A importância do estado da arte neste momento é por que favorece a
compreensão de como se dá a produção do conhecimento em uma determinada área de
conhecimento, em teses de doutorado, dissertações de mestrado, artigos de periódicos e
publicações. No contexto em discussão, fez-se uma revisão de literatura com autores,
dos chamados Estudos Culturais, assim como autores regionais que contribuem com
seus estudos para o entendimento do processo de escolarização e aprendizagem na
escola e fora dela.
Eliel Benites (2014) defendeu a dissertação que tratou de “Oguata Pyahu (uma
nova caminhada) no processo de desconstrução e construção da educação escolar
indígena da aldeia Te‟yikue” e afirmou que a construção da escola indígena (processo
de escolarização) se faz na perspectiva do diálogo entre os conhecimentos tradicionais e
a escola formal. Relatou que a identidade que se forma é o produto de uma realidade e
resistência.
A dissertação de Tonico Benites (2009) tratou do tema “A escola na ótica dos
Ava Kaiowá: impactos e interpretações indígenas”. Analisou as divergências e conflitos
entre a educação Kaiowá realizada pelas famílias extensas e a escola formal introduzida
nas aldeias. Fez também uma análise dos efeitos de atividades desenvolvidas pelas
antigas escolas integracionistas na formação de novas gerações indígenas, identificando
os possíveis impactos e interferências negativas na organização educativa das famílias
extensas Kaiowa.
A dissertação de Benites (2009) contribuiu para se entender que na educação das
crianças se há dois grupos, sendo o primeiro grupo educativo composto pelas mulheres
e o segundo grupo é composto pelos homens. O primeiro grupo é determinante, pois
todas as tarefas educativas são supervisionadas rigorosamente pela liderança feminina, a
avó, juntamente com filhas e noras mais experientes.
Nesse momento de aprendizagem é que se faz a classificação das crianças por
ciclo de crescimento. Segundo Benites (2009)
Neste âmbito da família extensa para ensinar as crianças e jovens de
modo correto É feita uma classificação das crianças por ciclo de
crescimento, considerando os diversos momentos por que passam os
jovens. É levada em consideração o estado e a característica de cada
alma gradativamente assentada no corpo da criança, observando a sua
força e a fraqueza, visto que a condição da alma (ayvu ñe’e) é a
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condição vital para o bom desenvolvimento da aprendizagem e
crescimento saudável do corpo (BENITES, 2009, p. 62). (Grifos dos
autores).
Aqui começa o processo de aprendizagem na educação tradicional, pois, as fases
de crescimento das crianças são acompanhadas de forma que elas ganham liberdade
vigiada no espaço familiar. A sequência das fases é acompanhada pela mãe e avó que
ajudam a criança com a idade de cinco a dez anos a realizar a ressignificação do
comportamento e a incorporação de frases ou ideias de adultos. Segundo Benites (2009)
Esta fase é considerada a mais delicada e preocupante, porque é o
início da imitação, reprodução e incorporação de qualquer
comportamento e atitudes, sejam positivas ou negativas. Ainda é
possível afastar da alma as palavras imperfeitas ou negativas, que
podem comprometer a força e a aprendizagem do modo de ser
adequado (teko porã vy’a) almejado pela família. É possível também
fortalecer o estado da alma no corpo, para suportar e superar os
desafios futuros frente aos possíveis ataques dos espíritos maléficos,
visando sempre a derrotá-los e a evitar a sua incorporação.
(BENITES, 2009, p. 62).
Verifica-se que o processo de aprendizagem inicia-se desde que a criança tem
uma identidade na aldeia e cada família, iniciando pelas mulheres (avó, mãe, noras)
supervisiona as tarefas desenvolvidas por elas. Após, acompanhando o ciclo de
crescimento a criança recebe a educação dada pelos homens. Somente após esse
processo de aprendizagem é que os alunos indígenas ficam aptos a buscar a
escolarização nas escolas públicas.
A dissertação de Antônio Carlos Seizer da Silva (2009) que tratou do tema
“Educação escolar indígena na aldeia bananal: prática e utopia” investigou as
permanências e mudanças na prática pedagógica decorrente da passagem de escola
extensão para a escola indígena de ensino médio, na Aldeia Bananal, Distrito de
Taunay, Município de Aquidauana/MS, com especial atenção para a questão das
diferenças étnicas.
Seizer da Silva (2009) descreve que os grupos escolares se organizam de acordo
com os poderes que se constituem e se reconstituem dentro da Aldeia Bananal. Segundo
Seizer da Silva (2009)
Os grupos escolares se organizam, numa tomada de pertencimento,
solicitada pelos grupos dominantes. Tem-se aqui a necessidade de
confirmar espaços, de marcar territórios. Mas o que se vê é o trânsito
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constante dos sujeitos entre os diversos grupos religiosos, que
demonstram seu poder no espaço onde se encontram. Mas nesse
transitar, não há exclusão (SEIZER DA SILVA, 2009, p. 118).
Para este autor, a tensão criada, os enfrentamentos e os diálogos constantes na
comunidade sobre a atuação da escola (processo de escolarização), provocam
desconstruções que dinamizam o pertencer crítico estabelecido (aprendizagem),
permitindo elaborar um conhecimento satisfatório e eficaz para a comunidade escolar
do povo Terena do Posto Indígena de Taunay e Ipegue, e não mais do Terena da Aldeia
Bananal (SEIZER DA SILVA, 2009, p. 120). A escola esquece o conhecimento que o
aluno indígena produz na aldeia e que esse conhecimento poderia ser reproduzido em
sua vivência na sala de aula.
Segundo Backes e Nascimento (2011) a escola indígena, por estar nesse espaço
ambivalente, localizada na fronteira entre a negação e a afirmação dos saberes
indígenas, ora legitimando o saber ocidental, ora subvertendo-o, torna-se um espaço de
negociação privilegiado entre a cultura indígena e a cultura ocidental, reconhecendo sua
incomensurabilidade ao mesmo tempo em que também reconhece a impossibilidade de
que elas não se cruzem, imbriquem, mesclem, produzindo novos modos de ser/viver
indígena. Para Seizer da Silva (2009) o conhecimento circunscrito na realidade não-
indígena não satisfaz o seu ideal de escola indígena. Segundo ele
O que seria viável são os poderes polissêmicos que a atuação da
escola produziria no campo social e político. Ninguém aqui pretende
uma escola ligada à concepção mítica Terena, que evidencia os
valores do passado. E também não querem a escola do não-índio, pura
e simplesmente, com suas tecnologias e aparatos pedagógicos. Mas,
dizem aqui, de uma retomada da vivência, onde todos esses valores,
com seus significados, seriam colocados a apreciação da população
num todo. E só ai construir efetivamente e porque não, gradativamente
a educação que garante acesso, mas que não deixa de ser a do
momento que o povo Terena esteja vivendo na perspectiva da
interculturalidade (SEIZER DA SILVA 2009, p. 147).
Quando se fala em interculturalidade se quer retomar com Fleuri (2003) que a
educação intercultural propõe uma escola dialógica onde o diverso faz parte do seu
espaço, sem ser mancha que provoque a exclusão, buscando por meio da escola superar
as discriminações da sociedade (SEIZER DA SILVA 2009, p. 98).
A dissertação de Elda Vasques Aquino (2012) que tratou da “Educação Escolar
Indígena e os processos próprios de aprendizagens: espaços de inter-relação de
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conhecimentos na infância Guarani/Kaiowá, antes da escola, na Comunidade Indígena
de Amambai, Amambai – MS” teve como objetivo principal conhecer melhor a criança
Guarani/Kaiowá antes de ir à escola, e observar/descrever como se davam as suas
aprendizagens, tendo em vista a compreensão dos seus processos próprios de
aprendizagens e as suas interações estabelecidas com o cotidiano e seu em torno.
Verifica-se que a autora concluiu que as crianças que ainda não haviam ido para a
escola têm seus próprios processos de aprendizagem uma vez que essa aprendizagem
vai ocorrendo no cotidiano, não importando os momentos e nem os lugares em que se
encontram. Segundo a autora
Tudo se torna uma escola de aprender, sempre vai ultrapassando as
fronteiras e os entre-lugares e afirmando sua identidade, buscando o
seu pertencimento nos lugares adequados, aprendendo a conviver com
os dois mundos diferentes, respeitando as diferenças culturais
existentes (AQUINO, 2012, p. 06).
Segundo Aquino (2012) a aprendizagem ocorre nos diferentes momentos da
vida. Verifica-se, portanto que
[...] ao longo de toda a vida as pessoas vão adquirindo muitos
aprendizados, e esses aprendizados acontecem em diferentes
momentos. As crianças indígenas Guarani/Kaiowá, como todo e
qualquer ser humano, estão em constante processo de
desenvolvimento, aprendendo dos mais diferentes jeitos e em vários
momentos da vida (AQUINO, 2012, p. 86).
E, nesse passo, apresenta diversos depoimentos de entrevistados que relatam
serem as crianças sujeitos culturais e por isso transitam nas culturas sem dificuldades
embora sejam educadas para respeitar os valores tradicionais e os valores não indígenas
(2012). Reforça esse olhar o entendimento de Nascimento (2006) de que
As crianças aprendem olhando, observando toda a realidade,
estão presentes em toda a parte na aldeia e nas áreas
circundantes e quase não há punições. A criança tem liberdade,
permissividade e autonomia, experimentando e participando da
realidade concreta do dia a dia, seus conflitos e contradições,
estão perfeitamente articuladas com aprendizagem e
responsabilidades (NASCIMENTO, 2006, p. 8).
Desta forma, defende Aquino (2006) que o Kaiowá e Guarani precisa negociar o
conteúdo sistematizado (na escola) com o sistema tradicional de educação numa relação
de ambiguidade para o alcance do mesmo objetivo. Backes e Nascimento (2011)
acreditam que os povos indígenas instigam-nos a subverter e ressignificar as práticas de
colonização e subordinação.
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No caso do processo de escolarização e aprendizagem nas escolas públicas de
Rio Brilhante/MS não se trata de reivindicar o desenvolvimento de uma cultura apenas
para os alunos indígenas na escola e nem de tornar a cultura indígena absoluta, mas de
propor um processo dinâmico onde a escola possa trabalhar com a presença do indígena
em seu interior, apresente um projeto político e pedagógico que inclua a comunidade
indígena, que no espaço escolar faça atividades onde se possibilite o desenvolvimento
da cultura e da aprendizagem e ela negocie com a cultura indígena que muitas vezes foi
negada pelo poder colonizador.
Com o estudo do processo de escolarização e aprendizagem dos alunos
indígenas nas escolas públicas de Rio Brilhante, desvendando as relações de poder
dentro da escola, busca-se na visão de Walsh (2009) pensar que estamos colaborando
para descolonizar o saber e isso representa uma mistura de sentimentos/pensamentos
ambivalentes e também um exercício permanente de descentramento como bem reforça
Larrosa (2003) uma vez que se torna uma experiência impronunciável.
Neste sentido, Skliar (2003) nos lembra que na condição de sujeito do
conhecimento produzido pelo ocidente é importante que controlemos o ímpeto
etnocêntrico/colonizador de nossa racionalidade aceitando nossa incapacidade de
vermos o outro na radicalidade de sua diferença. Escutar o outro sem pretensão de
compreendê-lo é crucial, pois sem a compreensão e sem o reconhecimento de que há
coisas incompreensíveis o sujeito resultará no retorno da mesmidade e da asfixia da
diferença.
Como se reconhece aos alunos indígenas o direito à educação diferenciada? O
processo de escolarização para esses alunos indígenas Kaiowá e Guarani em situação de
acampamento passa pelo respeito que se deve ter à representação de seus conhecimentos
dentro da escola. A presença da cultura indígena no espaço escolar desestabiliza,
questiona e gera cidadania e esta poderá ser construída e desenvolvida de forma
coletiva.
2. A Escola formal e os/as alunos/as indígenas
No contexto da pesquisa de campo conversamos com a direção da Escola, que
em entrevista nos informou que na Escola Municipal Prefeito Sirio Borges, há alunos
indígenas da escolaridade pré 1 até o 8º ano e que neste ano de 2014 não havia nenhum
aluno indígena no 9º ano. Ela nos disse que
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Trabalha na Escola Municipal Prefeito Sirio Borges há 10 anos e que
os alunos indígenas que estudam lá são do pré 1 até o 8º ano; que sabe
que são cerca de 60 alunos da aldeia Laranjeira Ñanderu que estudam
nas escolas de Rio Brilhante/MS; que os alunos vem para a Escola
Municipal Prefeito Sirio Borges no ônibus escolar do município de 2ª
a 6ª feira e às vezes no sábado quando tem jogo ou alguma atividade e
também na reunião de pais; disse que eles (alunos) são muito
educados e a família é muito presente; que a família quando não vem
na reunião eles comunicam e também quando os filhos não vem à
escola por motivo de chuva ou outro motivo; que a escola comunica
aos pais para vir buscar o aluno se ele não passa bem na escola; disse
que os alunos indígenas começaram a estudar na Escola Municipal
Prefeito Sirio Borges a partir de 2007 e disse que já estava na escola
(CELESTRINO, 2014). (Grifos dos autores).
Ressalte-se que na fala da diretora substituta parece que tudo a primeira vista
encontra-se bem com relação à situação de escolarização e aprendizagem dos alunos
indígenas que estudam nesta escola. Verifica-se que os alunos vão à escola de 2ª a 6ª
feira e às vezes no sábado quando se tem alguma atividade ou jogo. Segundo a diretora,
os alunos indígenas são muito educados e a família é muito presente nas ações que se
desenvolvem na escola. Percebe-se num primeiro momento que a cultura indígena a
priori encontra-se em situação de igualdade com as demais culturas presentes na escola.
É instigante pesquisar dentro da escola as manifestações do elemento cultural
neste espaço onde a maioria dos alunos são brancos (karai) e os alunos indígenas são
minoria. Eles têm livre acesso à cultura ocidental. Segundo Bhabha (2001) as culturas
estão sempre em processos de negociação e mais do que olhar para esses processos de
negociação é importante olhar para o processo de construção do sentido de cultura.
Sabe-se que uma cultura (e principalmente a cultura ocidental) não está imune aos
encontros e desencontros inocentes, mas atribuem um significado às ações articuladas
por meio das identidades que são produzidas dentro do espaço escolar. Sabe-se que as
identidades são articuladas de maneira instável e são constantemente perturbadas pela
diferença.
Verifica-se que as identidades culturais (dentro do espaço escolar) estão sempre
se ressignificando a partir das fronteiras porosas que caracterizam as culturas. Segundo
Hall (1997):
Os seres humanos são seres interpretativos, instituidores de sentido. A
ação social é significativa tanto para aqueles que a praticam quanto
para os que a observam: não em si mesma, mas em razão dos muitos e
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variados sistemas de significado que os seres humanos utilizam para
definir o que significam as coisas e para codificar, organizar e regular
sua conduta uns em relação aos outros. Estes sistemas ou códigos de
significado dão sentido às nossas ações. Eles nos permitem interpretar
significativamente as ações alheias. Tomamos em seu conjunto, eles
constituem nossas „culturas‟ (HALL, 1997, p. 16).
O processo de escolarização e aprendizagem dos alunos indígenas que estudam
na cidade em escola de branco, mas que vivem em situação de acampamento é um
desafio não somente para a escola, mas para toda a comunidade escolar (pais,
professores e alunos), pois a educação é um direito de todos, inclusive direito subjetivo
do cidadão brasileiro6. Sabe-se que o direito à cultura é garantido, como afirma Bhabha
(2001), com a “articulação social da diferença, da perspectiva da minoria, é uma
negociação complexa, em andamento, que procura conferir autoridade aos hibridismos
culturais que emergem em momentos de transformação histórica” (BHABHA, 2001).
Na pesquisa verifica-se que os alunos indígenas saem de sua aldeia e vão estudar
em escolas municipais e estaduais no Município de Rio Brilhante/MS e, portanto estas
escolas não são escolas indígenas e sim escolas urbanas, as quais não apresentam
elementos de prática intercultural, em que contemple a cultura dos alunos indígenas.
Os gestores destas escolas não se obrigam a seguir a Legislação Nacional
referente à educação escolar indígena por que estas escolas não estão dentro da aldeia, e
as escolas indígenas têm características próprias de gestão, portanto, não são escolas
para indígenas. Apesar de não existir no município de Rio Brilhante/MS escolas
indígenas com classes multisseriadas e apenas alguns professores com formação
específica para atender os alunos indígenas, é necessário ouvir a comunidade indígena
que tem seus filhos matriculados nas escolas municipais e estaduais para favorecer e
possibilitar a interação da cultura indígena e a cultura escolar.
Os alunos indígenas que cursam a educação infantil e o ensino fundamental
muitas vezes têm muita dificuldade para acompanhar o processo de escolarização e
aprendizagem, especialmente por que não tem conhecimento satisfatório da língua
portuguesa. A escola segue os parâmetros tradicionais de cultura, em que a prática da
colonialidade do saber e do poder é constante. Há uma dificuldade das escolas públicas
6 O direito subjetivo na educação quer dizer que o acesso ao ensino fundamental é obrigatório e gratuito;
o seu não-oferecimento pelo Poder Público (Federal, Estadual, Municipal), ou sua oferta irregular,
importa crime de responsabilidade da autoridade competente.
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entenderem as particularidades culturais dos alunos indígenas Kaiowa e Guarani
justamente por que não se teve uma discussão e nem formação dos professores a
respeito do processo de colonização imposto e a possibilidade de uma educação
intercultural.
O Estado de Mato Grosso do Sul sofreu no início do século XX uma intensa
colonização promovida e estimulada pelo Estado Brasileiro. Entender o processo de
escolarização e aprendizagem requer medidas que desenvolvam a interculturalidade. Por
exemplo, em relação às crianças indígenas que chegam sem nenhum tipo de
aprendizado da língua portuguesa a escola municipal responsável pela
escolarização/alfabetização inicial deveria investir na capacitação de professores para
que estes ensinem o conteúdo na língua materna e pensem um ensino baseado na
interculturalidade. Pode-se também pensar em colocar um intérprete para o
acompanhamento da alfabetização dessas crianças o que esbarra na questão de se
promover concurso público para esses profissionais.
Entender a cultura do outro se trata de uma experiência limite e devemos ouvir a
voz daqueles que se encontram nos limites da exclusão. Para Backes e Nascimento
(2001) devemos aprender “a ouvir as vozes dos que estão posicionados nas fronteiras da
exclusão [e isso] é uma experiência agonística”. Compreender o processo de
escolarização e aprendizagem que ocorre nas escolas de Rio Brilhante/MS com os
alunos indígenas que vivem em acampamento na aldeia Laranjeira Ñanderu, ajudará a
identificar as formas de contribuir para o desenvolvimento de sua formação educacional
e a construção de uma identidade indígena. Isso contribui para desmistificar as
fronteiras da educação na aldeia pesquisada.
Na aldeia Laranjeira Ñanderu também foram entrevistadas algumas alunas
indígenas que estudam na Escola Estadual Etalivio Pereira Martins, no Ensino Médio.
Na entrevista foram perguntadas sobre o processo de escolarização e aprendizagem que
recebem na Escola, se há momentos de diálogo entre as culturas e valorização da cultura
indígena.
Verifica-se que a escola deveria entender que o processo de escolarização não
está dissociado do processo de aprendizagem que ocorre no cotidiano dos alunos
indígenas na aldeia. Aliás, o aluno indígena se orgulha de sua identidade cultural, pois,
é com ela que ele ressignifica seu espaço.
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Considerações finais
Finalizando o texto verifica-se tratar de resultados ainda preliminares da
pesquisa de campo que se propôs a compreender o processo de escolarização e
aprendizagem de alunos indígenas em situação de acampamento, a partir dos autores
dos Estudos Culturais e pós-coloniais percebendo a lacuna e necessidade de práticas
interculturais na educação formal.
Sabe-se que o processo de escolarização e aprendizagem para os alunos
indígenas da aldeia Laranjeira Ñanderu aponta para um desenvolvimento de conceitos,
concepções de mundo e território que alargam a visão etnocêntrica de que a escola deva
ser homogênea no desenvolvimento da identidade da pessoa. A função da escola faz
sentido à medida que ela é capaz de preparar o aluno para viver entre culturas
diferentes.
Desta forma, a escola que favoreça o desenvolvimento do processo de
escolarização e aprendizagem pode ser concebida como um espaço de encontro de
culturas diferentes respeitando as diversas formas de ser e de pensar. O que se espera é
despertar na família, na comunidade, nos professores e alunos, e também na sociedade,
toda a perspectiva de vivência intercultural para o desenvolvimento de uma sociedade
aberta e marcada pela diferença cultural.
Espera-se, ainda, que o processo de escolarização e aprendizagem dos alunos
indígenas que estudam nas escolas públicas de Rio Brilhante/MS seja corroborado pela
participação da comunidade indígena que possui uma cultura que permite o diálogo com
a comunidade escolar no projeto político e pedagógico. Que seja realmente um diálogo
que possibilite dar visibilidade ao conhecimento tradicional e que a educação escolar
indígena se transforme numa educação intercultural.
Referências Bibliográficas
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aprendizagens: espaços de inter-relação de conhecimentos na infância
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Didática e Prática de Ensino na relação com a Escola
EdUECE- Livro 103854