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DULCINEIA CATADORA - 2012 relatos,fotos e memórias sobre o Morro da Providência

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Livro de relatos, entrevistas e memórias de moradores do morro da Providência, RJ, BR

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DULCINEIA CATADORA - 2012

relatos,fotos e memórias sobre o Morro da Providência

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Este livreto foi realizado pelo COLETIvO DULCINéIA CATADORA, que atualmente conta com a participação de Ana d’Angelo, Andreia Ribeiro Emboava, Elisângela Joventino,Eminéia Silva Santos, Lúcia Rosa eMaria Aparecida Dias da Costa e realiza atividades na Cooperglicério, em São Paulo. O coletivo contou com a participação de aproxidamente 30 moradores do Morro da Providência na pintura e montagem dos livros e de Clarissa Diniz, Fabio Prestes, Tânia Rêgo, Tati Rivoire, que atuaram em diversas etapas do processo. Agradecemos àqueles quecolaboraram para o conteúdo deste livreto,ao darem entrevistasou cederem textos,desenhos e fotos.

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favela e seu legadoEron César Santos

manhattan brasileiraFabio Prestes

nascido e criado aquiencontro no bar do carlinhosentrevista de Roberto Carlos da Silva

seu nélio a bateria mirim MEL do futuro

da boca dos moradores

ciranda da resistência

pimpolhos na providência entrevista com Camila Soares e Livia Diniz

alucinações produtivas.Produção cultural na Zona Portuária?Cristina Ribas

histórias e brincadeiras colhidas entre crianças do morro da providência

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o Morro da Providência já foi chamado de Formiga, Paulo Caieiro, Livramento e Favela.o termo “favela” designa uma planta leguminosa encontrada em algumas regiões do nordeste brasileiro.

Ao fi nal da campanha militar contra o arraial de Canudos (sertão baiano, 1898), soldados do exército brasileiro acamparam próximo ao Ministério da Guerra -- atual palácio Duque de Caxias -- esperando receber uma recompensa prometida pelo governo da época. Como não receberam, ocuparam o topo de um morro que se assemelhava ao Morro da Favela, na Bahia. a partir de então o termo “favela” passou a designar todo tipo de habitação precária e ocupação irregular na cidade.

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Eron César santos45 anos, é zelador da Capela n. s. da Penha, no Morro da Providência.

ao longo da história o termo “favelado” passou a ser utilizado de forma pejorativa e ofensiva, sendo a favela associada à marginalidade, violência, sujeira e prostituição. Entretanto, a população dessas comunidades cresceu, produzindo uma cultura própria com sua alegria, musicalidade e criatividade. apesar de toda violência produzida pelo conflito entre o Estado e o poder paralelo, o povo sobreviveu e manteve sua produção cultural.

nos últimos 20 anos da história do Morro da Providência, a palavra-chave foi “violência”. Mas há 3 anos, após a pacificação, com a política de revitalização da zona portuária, a palavra-chave passou a ser “cultura”.

Hoje a elite carioca volta sua atenção para o Morro da Providência, que tem uma vista fantástica da cidade do rio de Janeiro, tornando-se importante para o turismo. a especulação imobiliária é inevitável. sou nascido e criado no Morro da Providência, biólogo formado pela UErJ e professor de capoeira pelo Centro Cultural de Capoeira Ventre Livre, e deixo a seguinte pergunta:

Quem realmente vai ganhar com estas transformações no Morro da Providência?

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ninguém aqui respeita o que eu posso sentira dor não tem voz nos obrigam a partire se você tem coração então pense o momento no colo cai tijolo e cimentofecharam os olhos para área existentea cultura local sendo expulsa do presenteisso aqui não é comédia é muita tristezaa história soterrada por muitas empresasolha a sujeira que está acontecendoa Manhattan Brasileira do seu bolso crescendosendo ótimo lugar para especulaçãocom grandes eventos atraindo a multidãoesse é o rio de Janeiro com mais um exemploa zona portuária a locação do momentopassa o Pereira passa o Pazno porto maravilha é remoção demaisescrevem nas casas sMHa tinta nazista que vai te marcardizem que vão fazer o seu cadastrodias depois derrubam seu barracoespera um instante ali vem o meu valortrouxeram a grana com muito amorum cheque social de 400 reaiso que fazer com isso Eduardo Paz?ninguém aqui respeita o que eu posso sentira dor não tem voz nos obrigam a partire se você tem coração então pense o momentono colo cai tijolo e cimentofecharam os olhos para área existente

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ninguém aqui respeita o que eu posso sentira dor não tem voz nos obrigam a partire se você tem coração então pense o momento no colo cai tijolo e cimentofecharam os olhos para área existentea cultura local sendo expulsa do presenteisso aqui não é comédia é muita tristezaa história soterrada por muitas empresasolha a sujeira que está acontecendoa Manhattan Brasileira do seu bolso crescendosendo ótimo lugar para especulaçãocom grandes eventos atraindo a multidãoesse é o rio de Janeiro com mais um exemploa zona portuária a locação do momentopassa o Pereira passa o Pazno porto maravilha é remoção demaisescrevem nas casas sMHa tinta nazista que vai te marcardizem que vão fazer o seu cadastrodias depois derrubam seu barracoespera um instante ali vem o meu valortrouxeram a grana com muito amorum cheque social de 400 reaiso que fazer com isso Eduardo Paz?ninguém aqui respeita o que eu posso sentira dor não tem voz nos obrigam a partire se você tem coração então pense o momentono colo cai tijolo e cimentofecharam os olhos para área existente

a cultura local sendo expulsa do presenteisso aqui não é comédia é muita tristezaa história soterrada por muitas empresaso aluguel aqui não para de aumentaro povo brasileiro que não tem onde morargrandes construções em paralisiae o mosquito da dengue com direito a moradiavejam só a tamanha calamidadeo balcão de negócios que virou essa cidadeCopa, Olimpíadas, Filmagens de Hollywoodsem dinheiro para o bombeiro para educação e para saúdetem bueiro estourando cuidado ao caminharo salto em distância começou a funcionaro jogo já existe e é fétido o valora natureza do rio revela sua dorleva bem rápido feito sua ganânciaolha o que a água tem deixado de lembrança!e a avalanche continua com o falso progressoquando pensa em destruir eu construo meus versosninguém aqui respeita o que eu posso sentira dor não tem voz nos obrigam a partire se você tem coração então pense o momentocom seu filho no colo cai tijolo e cimentofecharam os olhos para área existentea cultura local sendo expulsa do presenteisso aqui não é comédia é muita tristezaa história soterrada por muitas empresas.

FáBio PrEstEsrapper, colaborador da Pimpolhos (Morro da Providência) e do coletivo Dulcinéia Catadora (sP)

http://youtu.be/EhX3UHsIR_w

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Clarissa Diniz Conta aí, mas aí tu falou que nasceu aqui, cresceu aqui. Desde os anos 70.

Roberto Carlos Nasci em 1971.

CD Roberto Carlinhos 70.

RC Não, Roberto Carlos da Silva. O apelido é que é Roberto 70.

CD E de quando tu era criança pra agora, o que tu percebe de grandes mudanças por aqui?

RC Mudanças tão acontecendo, um favorismo aos governos. Favorismo a nós nunca teve. Só em época de eleição que vem vereador aí engana a gente. Sempre fomos enganados mesmo. A população pobre é a que tem mais força mas não tem noção disso. Porque nós tem conhecimento da força que temos. Não tem conhecimento da força, das leis, entendeu? Então tem uns aí que engana uns, lesa outros. Faz histórias, papo mole prometendo o céu das estrelas e nunca cumpre nada... Ninguém cumpre nada. Nunca nenhum deles cumpriu nada, que eu não tenho nada contra que eu também sou comerciante. Mas aí eles têm um ditado que pra fazer omelete tem que quebrar um ovo. Eu acho que isso é uma palavra muito feia. Eu não vou nem te falar o nome de quem fala isso. Depois vocês vê. Vocês vai entender que ...A respeito desta obra aí muitas pessoas tão satisfeitas outras não tão porque....Os que estão satisfeitos, eu também nem posso falar nada contra porque sou nascido e criado, tenho sangue nordestino também porque meu pai e minha mãe é do norte. É pessoas que tão aqui, vêm de lá, pessoas que estão aqui e querem construir

encontro no bar do carlinhosnascido e criado aqui

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uma vida melhor lá porque lá é ruim de grana; a parte financeira lá é péssima. E eu posso falar isso porque já passei quatro anos lá.

CD Lá aonde?

RC Lá no Norte.

CD Em que lugar do Norte?

RC Na Paraíba.

CD Eu sou de Recife, Pernambuco.

RC A minha esposa é de Recife.

Fábio Prestes O comércio maior mesmo está nas grandes cidades.

RC Faz parte, entendeu? Muitas pessoas daqui quer que essa obra aconteça porque a finalidade deles é pegar um dinheiro e ir embora. Mas se é daqui mesmo às vezes não tá satisfeito com essas obras todas não porque dizem que ia ter um negócio de reforma aí. Uma reforma que ia sair. Até agora não vi isso. Se houve foi só fachada também. Não sei se começou, mas por lá mesmo começou e terminou. Até agora não vi isso. Começou em 60 mas por lá mesmo começou por lá mesmo terminou. Que eu não ouvi falar mais nada de obra.

CD Mas são reformas das casas.

RC A reforma das casas. Sendo que tem umas casas aí que tão marcadas para sair que são do Morar Carioca. Umas obras que eles tão fazendo. Eles tão construindo. Em várias outras comunidades também estão acontecendo essas coisas.

Muitas pessoas estão satisfeitas, muitas não estão satisfeitas porque tem uma parte, num vou falar que não é ruim porque tem pessoas que não podem se locomover, mas tem outras pessoas que podem. A respeito de...

CD Você fala em relação ao teleférico?

RC Ao teleférico e a respeito da idade também

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porque tem pessoas que já têm idade avançada. Então no ponto de vista deles eles tão querendo. Mas é poucas pessoas, também não é essas pessoas todas que tão, entendeu? Então é tipo você falar e não ter uma pessoa, voz pra te... Você vai falar umas não têm ouvido pra te escutar, entendeu? Você vai falar à toa, em vão. Faz de conta que você não tá falando nada. É um ditado antigo “Manda quem pode obedece quem tem juízo”. É tipo assim, entendeu? Fica meio vago até de... Eu participei dos jogos abertos das Olimpíadas agora em 2016. Das mesas.. Fui um dos convidados. É coisa que... Eu esqueci o nome das meninas que acompanha você também. Você participou de festa comigo também, que é de Santos. Uma branca, alta, magra, é a...não sei se você também conhece ela.

F Ela faz parte do quê?

RC Faz parte do fórum pra defender a população carente.

F Tem o seu Nélio também.

RC O seu Nélio é daqui da comunidade. Tô falando nela que não é da comunidade. Então é pessoas que tenta defender a gente. Mas vamos supor. Vem duas três defendendo e vem um milhão, dois milhão jogando pedra, entendeu? Então fi ca...

F Eles têm poder também, né. Daí é complicado.

RC É o que eu tô falando “Manda quem pode obedece quem tem juízo”. Não adianta, o cara vem e fala: Tua casa tá marcada pra sair. Ah! não quero que minha casa saia. Eles vão alegar que isto aqui é invasão. Eles vão alegar que isto aqui é da prefeitura. Eles vão alegar que isto aqui é... Entendeu?

F Vão falar que eles dão um aluguel social.

RC Eu não quero passar por isso não. Meu bar, minha

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casa não tão marcados pra sair. E se tivesse não sei como ia ser, mas isto aí é um negócio muito chato. É complicado. Você nasceu no lugar você não tá querendo sair. Eles falam que isto aqui é área de risco. Não é, sabe por quê? Área de risco é coisa...Aquele morro do Bumba lá que derrubou quantas casas, quantas famílias. Estão aí pra receber o aluguel social. Umas casa aí que... Aqui não, cara, aqui é área fi rme. Aqui é rocha.

CD Tem uma pedra que desabou.

RC Pedra lisa? Ah é, era aqui, mas isto aí era nos anos quarenta e poucos, cinquenta e poucos. Não lembro muito. Meu pai me contava essas histórias. Que desabou uma pedra lá embaixo e matou muita gente.

CD Dá pra ver, né?

RC Dá. Ainda tá lá até hoje. Ninguém removeu até hoje. Tá lá até hoje.

CD Matou muita gente, né?

RC O negócio foi triste. Antigamente a favela era mais, mais precária. Agora eles estão querendo mais. Eles tão...Bem por mim é, é época de eleição. É urbanização. Saneamento básico. É vale de...Aí eles vêm faz uma... aí entendeu, tapeia.

F Maquiagem.

RC É maqueia. Eles sempre tenta esconder o lado negro da favela. Teve uma época aí que eles queriam até tapar, pintar só as casas de baixo dos cantos do morro que era pra achar que o morro era tudo...

F É igual na Rocinha, né.

RC Entendeu?

F Tem umas casas todas pintadinhas, bonitinhas.

RC Lá dentro, lá no miolo mesmo é que tem

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prioridade de fazer. E fi zeram um brinquedos pras crianças aí não sei nem quantos anos tem. Só vê os ferros, só. Tudo abandonado porque eles mesmos não procuram manter os negócios. Eu mesmo tento tá brigando com uns dando esporro no outro.. Tudo quebrado, tudo amassado. Tudo destruído. É tudo...

F E aqui esse teleférico seria na quadra das crianças. É a única quadra que tem, né?

RC E agora destruíram tudo. Não tem mais quadra não tem mais nada. E quem vai falar alguma coisa? E quem vai fazer alguma coisa entendeu? É o que eu tô falando um ajuda e um milhão taca pedra. É que eu faço parte da associação. Sou líder comunitário ativo, mas não é dizer que joguei o chapéu, não. Não me entreguei, sou comerciante. Tenho meu comércio, entendeu?

F Mas sem remover, né?

RC Eles querem, mas é o que eles querem, cara. Eles querem...Isso aí é uma empresa que pra te falar

a verdade, no Rio de Janeiro favela nenhuma tem teleférico, só o complexo do

Alemão e agora o Providência. Ninguém sabe se vai dar

certo ou não. Quem sabe se do meio pro fi m não

vai dar pra

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trás. Aí já ficou tudo abandonado mesmo. Porque já tiraram. O pessoal que tiraram aqui era tudo freguês, eles compravam fiado...Só

CD E fizeram alguma coisa? Nada, né? Removeram as famílias.

RC As famílias. Eu fui uma delas. Nunca quis sair daqui. Meu bar continuou aí. Também não tá marcado pra sair. Se me tirar eu vou ficar...

F E essas que tão marcadas pra sair, por quê? Vai cair?

RC É área de risco.

CD Porque é área de risco. Não é aquela coisa pra ver o santuário?

RC Isto aí eu tô sabendo que eles querem fazer essas obras é pra desocupar estas casas porque é santuário.

CD Que é pra poder ver lá de baixo.

RC Porque isto é histórico, foi da época dos escravos. Eles querem fazer no mínimo igual ao Cristo, ao Pão de Açúcar. Igual ao Engenhão. Igual à Ponte Rio-Niteroi. Igual ao S. Cristóvão que era de graça pra população. Igual praia que daqui uns tempos vai ter roleta pra entrar na praia. Eles querem ganhar em tudo. Daqui o morro da Providência que tem uma visão bonita. Acha que esses teleféricos vai ser de graça? Levar milhões a respeito disso?

CD Por que tem teleférico e tem o plano inclinado também, né? Não são duas coisas?

RC Tem a escada que é o plano inclinado.

CD Que tem uma espécie de elevador.

RC É.

CD Que já funciona como teleférico, para as pessoas mais velhas.

RC Funciona aonde?

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CD Não, vai funcionar. Ele vai suprir essa necessidade de mobilidade.

RC Você tá me fazendo uma pergunta e eu vou te fazer uma resposta que vai muito além. Não sei se é verdade, não posso afirmar porque o negócio nem foi feito ainda. Mas eu escuto um comentário que quem mora na comunidade, envelheceu na comunidade. Aí você tem direito a duas passagens. Uma pra descer outra pra subir. Vamos supor, você é da comunidade. Tá ficando velho. Aí você tem duas viagens. Uma pra subir outra pra descer. Vamos supor. De manhã você vai na padaria. Aí você desce e sobe. Você vai comprar o pão e vai subir. Aí se você tiver que descer. Se você adoecer ...

F Tem que pagar.

RC Você vai ter que pagar pra descer. Então é isso, por isso que eu tô te falando. E eu nem ao menos sei se esta história é verdade ou é mentira. Por que se for verdade É melhor nem fazer.

F Daí é sacanagem.

CD Eu achei que fosse de graça.

RC De graça, nem mão na testa é de graça, coração. Desculpe, tô fazendo você rir, né? ...Tudo tem, cara, tudo tem grana envolvida. É um negócio que...Eu vou te falar a verdade Se eu falar que tô contra a obra tô sendo injusto comigo mesmo. Eu só sou contra certas remoções que eles falam que precisa ter e que eu acho que não precisa ter. Obra pra melhorar, eu concordo.

F Você teve amigos que já foram removidos?

RC Cara se eu for te falar. Conheço todo mundo desde 40 anos. Então é meio difícil falar que não tem nenhum porque já tiraram tantos aí.

F E já tiraram bastante.

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RC Lado esquerdo, direito, inferior, superior. Pra cima pra baixo. Todo lado, entendeu?

CD E tu consegue ter contato com as pessoas que saíram?

RC Às vezes sim, às vezes não. Aí passa uns meses. E aí fulano, bate aquela saudade porque faz um tempo que você não vê.

F Mas a maioria nem tá mais aí.

RC A maioria tão fazendo umas construção aí. Uns tão fazendo uns prédios que dizem que é pro pessoal do aterro, pro pessoal da Pedra Lisa. Eles não têm mostrado, né, o que eles querem fazer.

CD Eles não têm mostrado o que eles tão querendo fazer. O que eles querem fazer é interesse deles.

RC Se for falar. E quem vai defender? É interesse deles, não da população. Por isso que fica esse caos aí. Quem vai falar alguma coisa? Se for falar vai vir a lei, a Upp, Se reclamar...

CD E a falta de informação, o disse-me-disse, o ouvi dizer que prejudica muito a mobilização das pessoas. Pra criticar, pra resistir, pra contestar.

RC É o que eu te falei, né, do começo, a população pobre, carente tem uma força que não conhece a força que tem. São muito desunidos. Teriam que ser mais unidos pra botar essa força em prática.

F Muita gente que não sabe que não tem essa força. Muita gente acha que não tá afetando o deles...

RC Rapaz. E outra coisa, outra coisa, os que ficaram, amigo, os que fica quando vai ter que ter um emprego. Eu nunca aguentei trabalhar pra ninguém. Eu nunca gostei de trabalhar pra ninguém. Ser mandado pelos outros é um bagulho muito ruim. Muito ruim mesmo. Eu nunca gostei disso. Por isso que eu sempre me dediquei a vender limão na feira, vender decentemente. Trabalhar na praia. Mas sempre dei um jeito.

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Tenho minha casinha alugada graças a Deus, tenho meu estabelecimento, tenho minha vida, entendeu? Porque os que não sair daqui agora querendo, ou eles vão sair querendo ou vão sair sem querer. Sabe por quê? Porque vai chegar uma época aí sabe quem vai ficar? Os caras não vão ter condições de pagar IPTU, IPVA. Vai se tornar uma área muito cara. Então quem não tiver condições de se manter nessa área cara...

F É com o progresso...

RC Agora por enquanto tá bom porque num tem SEDAE, num tem Light, não tem taxa de lixo, num tem taxa de gás, num tem taxa de feiura, de boniteza. Não tem taxa de nada. Mas depois vai ficar assim.

F Se reformar tudo isso aqui não dá trabalho pra pessoa aqui porque...

RC Trabalho tem meu amigo, mas é quinhentos reais por mês. Não mas aí você bebe só água.

F O progresso não é feito pras pessoas. O progresso é feito pra especulação imobiliária. Eles afastam as pessoas da área.

RC Mas, entendeu, mas outra coisa também. Eles não têm que falar a verdade porque eles são mentiroso. Eles têm que botar na mente deles que todas essas favelas tá pacificada, que tem vários projetos deles só vão começar mesmo a valorizar legal quando não tiver pobre nenhum. Porque pobre não valoriza as favelas. Só faz certas perguntas, a resposta pra eles, eles fica tonto, eles fica assim, entendeu? Então é por isso que deixe quieto em vez de começar a falar. Manda quem pode obedece quem tem juízo. Isto é a vida. É complicado. Se não sair agora vai sair depois. Não adianta. Quem ficar ou vai ter que ter um meio de vida tranquilo pra ficar. Ou não sei como vai ser porque assalariado não vai ter condição de viver aqui na Providência

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daqui a uns oito ou nove anos, não ou talvez menos que isso. Não vai não porque isso que eu tô falando é tudo verdade.

CD É mesmo.

RC Eles falam em SEDAE, Comurb, não sei o quê, Light, que vai ser preço , é...comunitário. R$16,90. Um negócio assim. Eu tô sabendo que tem disso aí lá pra não sei onde. Que pra certas comunidades que tá vindo trezentos e tal quatrocentos e tal. Quem vai pagar? E quando a pessoa vai reclamar eles falam que se não tem dinheiro, corta. Agora tão querendo tomar conta de uma maneira que não tem condições dos pobre. Não tem condições. A não ser que seja parente de Eike Batista.

F Parente dele.

RC Parente dele tá tranquilo. Eu tô sabendo e quando a pessoa vai reclamar eles falam que não tem dinheiro.

F Não é mole.

RC É difícil. É dose pra leão. É colega, isso aí é a vida, entendeu. E se olhar pra trás tem sempre gente pior que nós. Tem que valorizar a mesma.

F O duro daqui é que é uma área que tem uma vista boa e tal. Aqui com certeza é um alvo de especulação bem grande, né.

RC Eles ficam curioso com essa visão. Então vira e mexe tá vindo gringo aqui. Então eles param aqui. Dá pra ver aí fica tudo aqui. Das escolas de samba aí. Fica tudo aqui. Para aqui pra tomar uma cerveja. Dá pra ver. Aí arma churrasco.

F Nós desfilamos este ano, na Pimpolho.

RC Ficou legal. Ficou legal, cara. Ficou legal. Vamos ver, vamos ver se vai melhorar mesmo. A tendência é melhorar, mas...

CD E a parte da obra que você falou que não é contra, que é a favor. Qual é a parte?

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RC A parte da urbanização, né, colega. Eu não sou contra a obra, eu sou a favor à obra, mas que ela venha pra melhorar a comunidade em todo. Não é só lá embaixo a fachada. Eles melhora só a fachada do morro e em cima continua a mesma porcaria. Desculpe falar assim. Continua a mesma coisa. Eles têm que parar com isso. Eu não entendo muito disso não, mas eu acho que é muita grana envolvida para eles querer derrubar uma perimetral dessa. Tudo bem que vem aí 2016, 2020. É muita grana. É muita grana. É nova. Isso aí não tem muito tempo que foi feito. Então por isso que eu te falo porque vai fazer túnel não sei por onde, fazer túnel subterrâneo, tu vai no hospital teve uma mordida de cachorro. Não tem uma gaze, não tem um curativo pra te fazer. Mas tem dinheiro pra eles fazer obra aí ó, é 70% de obras tá sendo concluída por eles. Sei que muitas não tá sendo entregue. A maioria tá atrasada. Eu tenho uma base mais ou menos que é... Até me deu um branco agora. É muita coisa na mente... não tava preparado pra isso, não. Mas é muita obra, colega. Tu vai no hospital não tem um esparadrapo. Graças a Deus que eu não preciso. Quem sou eu pra falar alguma coisa se a perimetral não tá. Eles vão derrubar mil vezes a perimetral, eles vão fazer mil vezes mais caro que a perimetral. Eles vão derrubar. Se eles não fizer a obra como é que o dinheiro vai entrar. No bolso deles, né, no bolso deles.

CD Esse dinheiro não está saindo da prefeitura. São as próprias construtoras estão construindo na região e estão pagando pelo direito de construir prédios mais altos do que o normal. Então se o cara quer construir sei lá, oito andares a mais do que antigamente era previsto, ele paga milhões para ter esse direito e aí juntando esses milhões que várias construtoras estão pagando é a grana que eles estão usando para construir toda essa área, inclusive o morro.

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Então não tá saindo da prefeitura. É basicamente como se os grandes donos de construtoras estivessem se juntando pra comprar essa área.

F E tem o FGTS também.

RC Meu amigo, mas deixa eu te falar, é igual também quando tavam fazendo essa Dutra daqui pra SP e vinham os carros daqui e de SP comprava aqui por que era...é coisa de doido, não dá pra entender. Aí tinha uma empresa, a OAS que era de São Paulo. Os daqui compravam em SP porque era mais barato e os de São Paulo compravam aqui. Eu procurei saber. Se batesse o carro, era da OAS. Qualquer coisa que acontecesse. Essa obra é tudo dela, é ela que faz. Mas o faturamento do pedágio que tu cobra, é pedágio, né? É pedágio que passa na roleta, 40% é da OAS. Eu falei ah, entendi. E quem me garante...Vamos supor é tudo 60%, 70%, 80% que os brasileiros são cabeça oca, cabeça oca. Porque o petróleo saiu daqui. Sai grosso não sei pra onde pra voltar refinado e o botijão de gás custa cinquenta reais. Eles podendo refinar aqui e podendo vender mais barato. Ou então ele gosta mesmo de estragar dinheiro, entendeu? A vida é muito complicada.

F É muito jogo de interesse.

RC Por isso que eu prefiro ficar vendendo minhas balinha, minha cerveja, meus biscoitinho, tá entendendo? É porque é muito jogo de interesse. Ninguém vai fazer nada de graça. Porque de dois anos pra cá que se descobriu que a construção civil era a área que tava dando mais lucro, aí começou...

F E agora com esses jogos e as Olimpíadas, né?

RC O Rio de Janeiro era pra ter sido consertado há muito tempo. É uma vergonha ver esses casarão tudo desabando.

F Vergonha mesmo.

RC É porque o Rio de Janeiro é um lugar que era pra

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tá sendo arrumado. Mas é vergonha. Eu costumo dizer que não é nem centro do Rio de Janeiro. Quando esse pessoal me pergunta se eu posso dar entrevista, aí quando eu falo que não é o centro eles tomam um susto. E falam, mas por que você acha que não é o centro? Aqui não é o centro é o coração. Ah, quando eu falo coração eles acabam respirando. Central do Brasil não era pra ser essa bagunça que é, essa baderna. Esses trens tudo caindo aos pedaços, que não são nem mais brasileiros.

F Dizem que tá pra vim os trens aí, pra quando?

RC Pra tu vê, tem também a reforma do porto novo maravilha. Isso aqui eles pegaram assim. Olha o galpão que eles tão aproveitando aí. Isso aí é dois prédios deitados, menina. Isso aqui eles pegaram dois prédios assim, entendeu? Isso aí são prédios deitados. Tudo bem que antigamente o tráfico era forte. Não vou falar que sou contra nem que sou a favor porque quem fechar com alguém errado tá errado também. Jamais vou querer fechar com o errado sabendo que eu vou tá errado. Nem tô falando

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mal do Brasil. O Brasil é um lugar rico mas é um lugar explorado de bobeira. Que as melhores coisas do Rio de Janeiro não é mais do Brasil. As melhores indústrias.

F Se vê o bondinho de S. Tereza. Teve acidente, pararam agora vão querer privatizar.

RC Privatizar um negócio que...

F ...que tem a cara do Brasil.

RC O Morro da Providência sempre foi o Morro da Providência. É a primeira favela da América Latina. Sobreviventes da Guerra de Canudos. Meu pai tinha parentes de segundo grau, terceiro grau que sobreviveram à guerra. Meu pai contava essas histórias pra nós dos sobreviventes da guerra. Ainda tinha rei, ainda tinha esses negócios que eles espancavam os escravos, eles maltratavam muito os escravos. Veio pra cá de pau-de-arara. Meu pai foi, a bem dizer, um dos fundadores do Morro da Providência.

F Como era o nome dele?

RC Jonas Dias da Silva. Veio pra cá de pau-de-arara. Então tinha um mato que chamava, parece que era favella, e aqui tinha esse mesmo mato.

CD Lá na Bahia também.

RC Então as pessoas que tomava tiro, que ficava

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ferido com facada, chibatada, não tinha remédio nem tinha dinheiro pra médico. Aí descobriram que aqui tinha esse mato. Começaram a vir pra cá porque tinha um mato e ficavam se cuidando. E começaram a fazer uns parque aí. Eu quando nasci aqui a minha casa era de folha de zinco. Meu pai pegava aquela lata de manteiga, trazia aquela lata na mão. Eu não entendia nada. Eu pensava que era pra carregar água. Aqui antigamente era ruim de água. Meu pai chegava em casa com uma faca um martelo, abria a lata e, tô falando a verdade, mano, pra fazer parede. Eu posso falar que sou empresário. Posso não ter muito dinheiro, mas tenho minha honestidade, minha dignidade. Não gosto de me rebaixar que pra mim é tudo um...

F Bando de safado.

RC Então, se eles pensam que vai pegar mole não vai não porque eu nunca vou dar mole pra eles, que vai vim o governo e come o meu... Eu nunca vou dar esse mole pra eles. Prefiro ficar aí trabalhando honestamente.

F Do que entrar nesse sistema.

RC É, nunca. Por que é isso que eles quer, pô. Se não tiver preso quem é que vai ganhar? Os preso é muito dinheiro, cê sabe disso, né? Se tiver mil presos eles precisam ter dois mil, três mil. Eles ganham na quentinha. Eles ganham no dia-a-dia dos presos que os presos precisam cobrar pra repassar né? Se sabe disso. Então é o interesse. Aí vem os políticos na época das eleição e promete o céu das estrelas. Aí não faz nada, aí passa...

F Interesse...

RC É, é interesse. Época de eleição. Então você tem que ser uma pessoa.

F Tem que saber aproveitar.

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RObERTO CARLOS DA SILvA é dono do bar do Carlinhos que funciona no Morro da Providência. Em julho, conversou com CLARISSA DINIZ, crítica de arte e artista e FAbIO PRESTES, rapper.

RC Se ficar com muita fome e muita comida você vai morrer engasgado.

F Nessa hora é que precisa ser malandro carioca.

RC Eu quero morrer acima de setenta anos. Depois de setenta anos se Deus me levar eu tô tranquilo. Porque isso ali ó, levanta aí que eu quero te mostrar uma coisa. Oia as visita que nós tá recebendo... Então tá mudando muito, tá modificando muito. A tendência é que melhore mais, cada vez mais.

F E o nosso trabalho é pra isso. É pra gente tentar melhorar.

RC Mas eu sei é por isso que eu tô falando pra você. Eu não lembro muito bem o nome dela não. Ela é amiga do Maurício. Sempre foi nas reunião, é a nosso favor. Tava na abertura dos jogos agora de 2016, 2014. Eles tão interessados, que é pra eles poderem ganhar o deles também.

Agora que é pra eles ganhá o dinheiro deles. Eu também não fico de fora, sempre pergunto pra eles: Tem alguma vaga de agente comunitário? Tô sempre tentando.

F Numa dessas consegue alguma coisa.

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nélio de oliveira é uma referência no Morro da Providência por sua atuação em defesa dos direitos da comunidade e pela coordenação do projeto Escola de Percussão da Providência.

Em 2001 recebeu convite da Prefeitura para dirigir um projeto de percussão na comunidade. Desde então, vem se dedicando a ele, embora de forma independente, depois de mudanças de rumo no âmbito municipal.

Em frente de sua casa ele reúne semanalmente crianças de 5 anos que fazem parte da bateria mirim MEL do Futuro. Muitos participantes tiveram que se desligar depois que suas famílias foram removidas. Atravessar grandes distâncias para chegar ao morro da Providência passou a ser prática inviável. o grupo diminui, crianças e jovens já habituados ao encontro e às batidas interrompem o aprendizado. Mas a resistência continua. ao todo, já passaram 800 alunos pelo projeto. alguns atuam na área de percussão, como ritmistas, já viajaram para o exterior para trabalhar. Seu Nélio diz com firmeza que acompanha o aproveitamento e a frequência das crianças na escola. Quem não estudar, está fora!

sabedor da história do morro, participa do Fórum Comunitário e é respeitado pelos moradores. sempre que tem oportunidade, alerta para modificações na comunidade que envolvem vidas, provocam mudanças indesejáveis, destruindo vínculos, impedindo vivências, soterrando histórias, o passado, manifestações culturais.

seu nélio e a

bateria mirim MEL do Futuro

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Maria aparecida Teixeira,50 anos, moradora à rua Rego Barros, 97, ao lado da S. Silvestre (garagem)Quando minha mãe veio para cá era tudo de caixote. Nós construímos tudo. Meus irmãos. Hoje a casa é de tijolo, mas não tem divisões. É um barraco. Aqui é melhor pra trabalhar porque é perto e tem creche. A nossa renda dá pra comer porque nóis não paga aluguel e nem precisa de condução.

ViViane cosTa, moradora há 34 anosAcho que vai melhorar, vai ficar bonito. Já passamos tanta violência aqui, mudou muito com a UPP. Muitas pessoas vão querer ficar aqui mesmo depois das obras. Se eu for mandada para a Baixada, depois dou um jeito de voltar. Se for morar longe vou ter de mudar de vida. Meu lugar é aqui. Eles estão indo lá na Pedra Lisa e dizendo que vão derrubar as casas. Marcaram minha casa mas não me avisaram nada. Ninguém veio falar comigo ainda. Soube de vizinhos que ganharam dinheiro. Não sei quanto vale a minha casa, mas quero mudar de vida, já sou separada. Onde eu moro já vi muito tiroteio, muita coisa pesada. Vamos ver se sair daqui a vida melhora.

Tereza oliVeira, 63 anos, veio do Ceará em 1980. Casei com um mineiro e fiquei viúva com 41 anos. Morava na Pedra Lisa, mas vendi e comprei na Rego Barros. Mas lá eu tenho dois barracos ainda onde moram minhas filhas e que devem ser removidos. Estou aqui (na assembleia) para saber o que vai acontecer porque gente jovem não quer saber de nada. Prefiro que fique todo mundo junto, perto, é o futuro delas, esses barracos são herança do pai delas. A gente quer ficar junto, não quer ir pra longe. Ninguém

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sabe de nada. A gente espera que melhore a região. Já vimos muitas coisas ruins, muita morte nas costas aqui. Na minha família nunca, mas na porta da gente acontecia. E o que a gente podia era morar aqui, na comunidade, de forma honesta. A gente preferia que reformassem as casas, nem queremos dinheiro não.

Maria do carMo GoMes, 69 anos, de Campina Grande,PBMoro há 32 anos na mesma casa na Pedra Lisa. Não quero sair porque eu tenho ônibus, mercado, médico, tudo perto. Passei um mês agora na Paraíba, mas a gente quer é ficar no Rio mesmo e se for o caso eles reformam nossas casas. Tem quem pense que sair é melhor, mas não é. E todo mundo sabe, onde a gente mora não é área de risco.

Vanessa dos sanTos ribeiro, 20 anos, residente nos fundos da moradia de D. Maria Aparecida TeixeiraTenho três filhos, um de dois meses. Dá medo de cair uma pedra. A garagem fica na encosta. Lá fica o meu barraco. Já caiu pedra e matou um bebê tem uns dez, onze anos. Mas não tem outro lugar pra ir.

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27Fonte: Dossiê da Articulação Nacional dos Comitês Populares - Mega Eventos e Violacões de Direitos Humanos no Brasil

comitepopulario.files.wordpress.com

O Morar carioca morro da Providência, legado das olimpíadas de 2016, prevê

a remoção de 832 residências, 515 unidades em razão de “risco geotécnico,

estrutural e insalubridade” e 317 realocações necessárias para a realização do

projeto urbanístico, incluindo o desadensamento da comunidade. O risco alegado pela

prefeitura já foi descaracterizado por contra-laudo geotécnico, que concluiu um

número muito inferior de casas vulneráveis e a maioria dos problemas seria facilmente

solucionável com simples obras de contenção.

Na tentativa de conseguir informações precisas sobre as remoções, foi proposta pela

Defensoria Pública ação judicial para exibição de documentos relacionados ao projeto.

O único espaço de negociação estabelecido foi a Comissão de Prevenção e mediação

de Conflitos - presidida pelo secretário municipal de Habitação, órgão responsável pelas

remoções -, do Fundo municipal de Habitação de interesse social. A negociação neste

âmbito ficou comprometida com a interposição da Ação de Exibição de Documentos

na justiça. A prefeitura retirou o caso da esfera de mediação.

Dentre as denúncias feitas pelos moradores do morro de Providência, destaca-se:

técnicos ligados ao Porto Maravilha abordam os moradores sem identificação ou

com o crachá escondido falando na necessidade de cadastramento das residências;

a Prefeitura afirma que seria área de risco, porém não apresenta laudo aos

moradores comprovando o fato.

Em relatório do Fórum Comunitário do Porto é narrado um caso que expressa bem o

tratamento dispensado aos moradores da Providência, mas também aos afetados pelas

remoções em geral: “o do prédio na Ladeira do Barroso 235, de propriedade particular, onde

moram 9 famílias, que está sendo desapropriado pela Prefeitura para ser construído ali

um conjunto habitacional, no qual não está previsto o atendimento das mesmas.”

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Meu nome é Altair, eu sou presidente da Associação dos Moradores da Vila Autódromo.A comunidade do Autódromo enfrenta ameaça de remoção há 19 anos. A justiça não se decide. Fica em cima do muro sem dar uma decisão que seria de dar aos moradores o direito de continuar morando na comunidade. Eu entendo que o judiciário não quer se comprometer com a opinião pública e quer ser favorável ao governo. Também não quer nos favorecer. Aí a gente fica nesse impasse. Estou à frente da Associação há seis anos. A comunidade resistindo. Desde 14 anos que eu sou removido. A Providência está na luta. Eu tinha 14 anos quando começou o projeto cidade limpa. Tava no projeto da Linha Amarela. Eu sempre tô no caminho do governo. Não tem lugar pra mim. E a gente está na luta. Faz resistência. Há 19, 20 anos eu tô aqui à frente desta resistência sem abrir mão da nossa terra. A gente tenta permanecer. Embora jornalistas, a imprensa tente dizer coisas que não falamos, na verdade a postura é defender a minha comunidade enquanto eu estiver na associação.

a luta contra o processo de remoção envolve moradores e lideranças dos morros do Pinto, da Providência, Vila autódromo, arroio da Pavuna, entre outras áreas. Muitas assembleias têm sido realizadas nessas comunidades. aqui estão alguns depoimentos de pessoas que participaram da assembleia de julho de 2012:

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Meu nome é Valdemar de Silva Sousa, vivi boa parte da minha vida na Ilha Grande onde eu também sofri com os predadores. Sofri muito com a pesca predatória de espécies de peixe consumindo nossa cadeia alimentar e hoje em dia sou da comunidade do Arroio Pavuna vizinha da comunidade do Autódromo. Hoje em dia estamos vivendo o problema de remoção. A nossa comunidade de Arroio Pavuna é a mais ameaçada devido ao crescimento da especulação imobiliária que não para de crescer em velocidade estrondosa. Estamos passando por momentos muito difíceis. Temos na Vila Autódromo 200 famílias e 28 famílias no Arroio Pavuna e estamos sofrendo muito com isso porque é muito difícil ser lançado para outro lado onde não conhecemos ninguém. As pessoas se identifi cam durante anos e anos e depois têm que ir pra outro lugar. Estamos na região que mais cresce no Rio de Janeiro. Não para de crescer devido à especulação imobiliária. Empresários, a prefeitura, nossos representantes e etc. , todos estão interessados nessa região, causando grande destruição do meio ambiente. Temos um único charco no Jacarepaguá. Áreas enormes cobertas de taboa. Espécies de jacarés. Muitas espécies de animais pertencem verdadeiramente a essa área ambiental. Essa área foi esquecida pelos governantes, pela alta sociedade. Mas por nós que vivemos ali e preservamos a natureza, ela não tá esquecida. Ela vai sempre ser lembrada, e vamos sempre viver ali, até o dia de amanhã, se Deus nos permitir. Vamos sempre lembrar da existência de todas as espécies dessa área ambiental que está sendo soterrada. Jacarés não têm pra onde ir, capivaras não têm pra onde ir. Espécies de pássaros também estão migrando para as praias, para outros lugares. Toda a mata Atlântica está sendo soterrada. A mata está sendo devastada. Isto está sendo um ponto muito difícil. A gente não queria que isto acontecesse nunca na vida. A gente fi ca naquele espaço ali. Tem pescadores que vivem ali. Embora a cadeia alimentar de toda aquela área esteja sendo afetada, mesmo o espaço da lagoa, com toda a poluição e esgoto, a cadeia alimentar ainda é viva. Consegui ver ali espécies de peixes como tilápia, tainha e outras, até robalo ainda existe ali. Por incrível que pareça vi isso. A gente tem espécies que procriam em lagoas, em braços de mar pra depois sair pro mar devido a seus predadores naturais. Em nome do grupo e da vila Arroio da Pavuna e da Vila do Autódromo gostaria de agradecer a toda a organização deste maravilhoso evento e a todos vocês.

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Sou vereador da cidade do Rio de Janeiro e quero dizer que participamos da feitura da lei orgânica do Rio de Janeiro, Artigo 449, que diz com todas as letras que as pessoas que estiverem instaladas em áreas de risco poderão ser reassentadas em outro lugar, obedecendo-se a três critérios:O primeiro, tem que existir um parecer técnico que diga que aquela pessoa está em área que compromete o meio ambiente ou de risco. O segundo, caso seja comprovado que realmente isto é verdade, então o processo de reassentamento terá que contar com a participação efetiva da representação dos moradores. E o terceiro critério, tem que ser escolhido o local mais próximo dessas áreas porque as pessoas viveram há anos e vão ser jogadas para cem quilômetros de distância, o que inviabiliza a sobrevivência delas.A lei orgânica é da constituição. Se formos na lei federal está tudo lá. Garante exatamente tudo o que eu acabei de falar. Atualmente, na cidade do Rio de Janeiro vêm acontecendo remoções que eu venho a afirmar que são realizadas de forma truculenta, perversa, desumana sem o mínimo de respeito pelas pessoas que estão morando lá e que passa por cima da lei da legislação. Tanto que no Rio de Janeiro hoje já se fala na cidade da reinserção. Isto está acontecendo com pessoas de baixa renda. E por que que eles estão fazendo isto? Estão pra atender àquilo que é uma exigência do setor imobiliário. Ou seja, é junto com a indústria da construção civil e a especulação imobiliária. Aliados com o empresários dos transportes infelizmente a ação que se faz está tendo a cobertura dos governantes dos três níveis. De qualquer forma isto não deve ser motivo pra gente cruzar os braços. Os nossos esforços deverão ser redobrados. Devemos construir uma articulação... É insaciável a gula do setor imobiliário. Vocês não têm noção do que vai acontecer com a cidade do Rio de Janeiro. As pessoas da zona Sul vão ser expulsas para uma periferia e de uma periferia para outra periferia e ninguém sabe onde isso vai parar. De forma truculenta e desumana. Isto pra favorecer aos grandes poderosos interesses econômicos. A única coisa que não existe é transparência. Falta escola para as nossas crianças, faltam postos de saúde pra atender as necessidades básicas. Falta habitação. Como é que se admite falar em desenvolvimento falar que esta cidade está mudando pra melhor quando famílias são retiradas de suas casas onde estavam lá há trinta anos e jogadas na rua da amargura. A forma como eles oferecem a contrapartida é uma vergonha. Às vezes oferecem 8 mil quando (aquela casa) vale 20 a 30 mil reais. “Se não aceitar pode até ser pior porque depois passamos com o trator e colocamos tudo abaixo” é o que dizem.

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Sou Maria Lúcia, defensora pública. Estou aqui pra discutir este sistema de justiça, como ele é formado e por que o sistema de justiça não responde às necessidades reais da população. Pensar de uma forma crítica o próprio sistema. O problema da remoção não é específico do Brasil. A forma que a sociedade é organizada aqui é organizada no mundo inteiro.O problema é que este processo não começou e terminou. Esse processo existe desde o achamento do Brasil. Quem pensa a produção da cidade, quem tem pensado até agora, quem tem conseguido impor o pensamento é uma parte que pensa no lucro, no mercado. Este processo vai continuar eternamente, se a gente não tomar pra nós mesmos a decisão e execução de uma outra forma de sociedade. Este é o grande desafio que nós do fórum da justiça enfrentamos. A gente precisa pensar um projeto de cidade, um projeto de sociedade que acolha a todos. E esse projeto, infelizmente, que está sendo pensado e executado nunca vai dar a resposta que a gente precisa. O que a gente precisa é encabeçar esta tarefa. Digo sempre que quem sofre diretamente na pele esse processo de remoção tem que ser o primeiro a fazer essa resistência. Enquanto a gente não conseguir fazer com que as pessoas tenham direito à cidade, à moradia, a resistir, a gente não vai conseguir dar um passo à frente. Quando a gente conseguir que cada morador, na favela e na cidade, passe a ser seu próprio defensor, e eu não estou aqui retirando meu papel de defensora, minha tarefa terá sido cumprida. Esta é uma tarefa de cada um de nós. As pessoas que vivem e moram em comunidade pensam que não têm direito a resistir. A gente tem chance de transformar essa cidade com a nossa união e organização. Ter uma cidade que acolha a todos.

Eu queria dizer aqui que no mês que vem começa a propaganda política. Os candidatos começam a subir o morro. Nosso presidente ressurgiu das cinzas. Apareceu o presidente da Associação. E por incrível que pareça apareceu pra ser candidato a vereador. Chega de política partidária. A gente precisa de política pública. Em outubro todo mundo pode mudar a situação. Não é porque esse mesmo presidente foi lá e falou pro pessoal “aceita, aceita o aluguel social, pode acreditar na minha palavra”. Olha o que que deu ali. As crianças hoje não têm praça. As obras do teleférico nunca estiveram tão aceleradas quanto estão agora. Por quê? Propaganda eleitoral. Várias vezes questionei autoridades da Secretaria sobre um projeto de saúde aqui. Por que que só agora o posto de saúde vai funcionar? Todo mundo aqui sabe, com certeza, o que acontece, né? As obras, a Odebrecht vai pegar os prédios, a estação do teleférico. A coisa tá bombando. Nunca viram o morro tão fácil de subir como agora. Colocaram a UPP na comunidade, foi uma maravilha... Assim eles têm acesso. Um vem e promete não sei o quê... Só queria mais uma vez pedir a conscientização de toda a comunidade. Dizer Fora PMDB, fora PT. Acabou essa hegemonia, essa destruição que estão fazendo. Como o companheiro falou ali, os animais vão ser expulsos. Mas nós também vamos ser expulsos. Vamos dar a resposta pra eles agora em outubro, vamos mostrar a eles que embora sejamos pobres, nós não somos tão burros quanto eles pensam.

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Quero ser capitão e liderar os soldados igual no Haiti e Angola.Fazer a paz no mundo e acabar com a polícia corrupta.(Danilo Emiliano Pereira)

De histórias de terror. O Niterói virou lobisomem em cima da igreja. Ele já morreu e fica assombrando o morro. A mulher sangrenta também morreu e fica em cima do buraco da igreja.

A bonequinha fica na minha casa, tem a cara cortada e quer acabar com a minha vida...

O boneco do piolho fica lá em cima, quer matar as pessoas.

Tem o cara que pulou o galinheiro da Lia. Era bandido e tava fugindo do Beto. Pulou da pedreira e até hoje fica lá gemendo: ajuda, ajuda!

do Miúdo – os dois braços dele são facas. Ele já morreu mas aparece à noite. Se assobiar três vezes ele aparece, no lugar dos olhos ele tem pregos.

Medo de morar no passa Um – Lá não tem iluminação e tem vultos.

A loura do banheiro mora no banheiro da casa amarela. Ela é casada com o Miúdo. Ela aparece quando puxa a descarga três vezes, acende a luz três vezes e bate na porta.

De morrerDe saciDe cair na pedreira

De tomar um tiro

As crianças:

Camila de Sá Freire.vitoria Maia dos Santos.Luana dos Santos Vidal.Alexandre Setembrino da Silva.Jhon da Silva Nascimento.Felipe da Silva Nascimento.Richard Leonardo.Danilo Emiliano Pereira.Leandro Nicolau

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Passa a bola pra três pessoas no vôlei, na terceira corta e dá uma chinelada na mão de quem pega.

Põe uma garrafa no meio do pátio, quem chegar primeiro dáum chutão na garrafa.

é toda hora, o gol a gente marca com chinelos e a trave também.

Quando falta luz no morro, a gente monta arminhas e sai atrás dos outros. Sai uma galera sabotando, cercando no morro.

Põe milho no cano como munição, põe uma bola de festa de aniversário e vira uma arma. O milho sai como tiro e arde se pegar na perna.

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Camila Soares: Quando você tem os governantes da cidade já muito focados no que querem fazer e já com planos, com bilhões entrando, é muito difícil negociar. Eles estão muito fechados para entender essas coisas. Pela gestão que está aí a gente entendeu que não vai ficar aqui na Pequena África. O polo do carnaval vai ser desarticulado. Os planos que já foram traçados no passado mostram um erro estratégico. Esta região poderia ser reconhecida como polo, mas, em

vez disso, o carnaval, que é uma das coisas que mais pode dar retorno, foi desarticulado. A Marquês de Sapucaí está aqui, a Cidade do Samba está aqui. Você leva todas as escolas para outros lugares. Quem trabalhava na Mangueira, na Grande Rio e na Pimpolhos já não vai ganhar o seu pão. Talvez só tenha tempo de trabalhar apenas em uma escola, devido às remoções.Eles falam em preservar o patrimônio, só que na prática não é assim que funciona. Eles estão muito focados no patrimônio morto, material. E as pessoas que estão aqui? E

Tem mais gente que gosta e luta pela preservação e cultura no Morro da Providência. A Escola de Samba Mirim Pimpolhos da Grande Rio é uma ONG que realiza atividades

socioculturais, como a realização como o seu próprio desfile de

Carnaval e oficinas artísticas. A escola agrega mais de três

mil crianças e adolescentes das comunidades de Duque de Caxias e da Região Portuária do Rio de Janeiro. A Pimpolhos da Grande Rio utiliza

o carnaval como uma ferramenta de inclusão social e desenvolve sua arte a partir da estética do reaproveitamento, transformando materiais recicláveis em objetos

lúdico-pedagógicos,alegorias e fantasias.

O barracão da escola funciona no Morro da Providência e as lideranças

da ONG também integram a luta, junto aos moradores, contra as

remoções que ameaçam a comunidade. Em visita ao barracão, Clarissa

Diniz e Fábio Prestes conversaram com Camila Soares, que preside a

ONG, e Livia Diniz sobre como estão enfrentando a ameaça

de remoção da Pimpolhos.

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a cultura viva que está aqui agora? Esta é a nossa pergunta.

Clarissa Diniz: E como estão reagindo as outras escolas?

Camila Soares: As outras escolas não têm esse apego à Pequena África. Brasileiro não tem apego à sua história. Elas não querem sair daqui, mas se oferecerem outro lugar para elas ficarem, aceitam. O brasileiro não tem o reconhecimento de sua história. O samba nasceu aqui, o carnaval se constituiu aqui, a Marquês de Sapucaí está aqui. Por que a gente tem que sair daqui?Os bairros de Saúde, Gamboa e Santo Cristo fazem parte da Pequena África, do centro do Rio que se estende até o casario antigo de Saara, Mangue, hoje Cidade Nova. Foi nesse chão que nasceu o samba, na casa de Tia Ciata, o escritor Machado de Assis no Morro do Livramento, o compositor Ernesto Nazareth no Morro do Pinto e pelo Cais do Valongo na praia da Gamboa passaram centenas e milhares de escravos que ali desembarcaram dos porões navios negreiros. A escola entende que a presença da produção do carnaval nesta área da cidade é fundamental. Os antigos armazéns servem ao samba há mais de trinta anos. Aí nasceu o carnaval.

Clarissa Diniz: Livia, conte um pouco pra nós quais são suas frustrações, expectativas e desejos relativos ao Porto Maravilha.

Livia: Como todo grande processo, os processos de diálogo são complexos, principalmente se grandes projetos são feitos em tempos curtos, se os processos de continuidade não são construídos com base sólida. Então é natural que as coisas se embolem no processo. Mas é muito surreal, na questão “carnaval”, ver que o projeto Porto Maravilha não contempla o carnaval como um todo, só contempla o carnaval especial, o espetáculo. O carnaval é muito maior do que as escolas que participam do desfile especial. É estranho presenciar o que está acontecendo. Chega uma ordem de despejo na quarta, é feriado quinta e sexta, passa sábado e domingo e a execução acontece na segunda sem que eles saibam para onde irão, sem se definir quem vai cuidar desse patrimônio, como isso vai ocorrer. E a forma como isso acontece é muito estranha. Essa questão da moradia é intensa. Quando cheguei no Morro da Providência e vi as casas marcadas, e ao conversar com as pessoas, percebi que elas não têm informação, as tentativas de conversar com instâncias políticas não vão muito pra frente. Não existe diálogo. Chega a ordem de despejo e você não sabe o que fazer, pra onde você vai. Ainda mais numa comunidade como é a do carnaval. É preciso planejar. É preciso produzir. É preciso ter espaço, pessoas. Há pessoas que trabalham em várias escolas. Por isso se concentrou tudo numa única região. A

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partir do momento em que você descentraliza isso, joga cada um pra um lado, está mexendo em toda essa cadeia. As escolas foram se instalando no mesmo local, isto foi algo que não veio de cima pra baixo. Surgiu a partir das demandas de uma cultura, uma arte milenar que se mantém por ter uma força. E isso tem que ser visto. A questão participativa é essencial, mas eu não vejo isso acontecer. Até porque para que o povo participe é preciso estar preparado. Para querer participar você precisa minimamente se sentir apto a tal. E quando rola toda essa pressão, as pessoas começam a ver suas casas marcadas e perdem o rumo, isso tira a força delas. As pessoas se sentem sem voz. As pessoas têm que se sentir capazes de se manifestar, que o que falam tem pertinência. É preciso munir as pessoas de informação para que, juntas, elas consigam chegar a soluções que sejam integradoras e não excludentes. Acho o projeto de arquitetura do Porto Maravilha muito estranho. Não dialoga com a história. Aqui a gente está na Pequena África, no berço da civilização brasileira, no berço da diversidade cultural que é um dos valores mais reconhecidos em todo o mundo; um dos motivos pelos quais o Brasil é admirado é pela diversidade cultural. Então, como você pega toda essa diversidade cultural, esse potencial de construção a partir do novo, essa sociedade

que foi construída de forma tão peculiar e você abstrai isso? O que a gente tem de mais valioso, mais nosso é ser miscigenado, ser diferente. Aí você pega isso e diz: “não, isso é passado e agora vamos construir prédios dentro de tal e tal modelo” e aí? Cadê essas características? Acho que elas têm que estar incluídas nos projetos, têm que ser consideradas. Essa diversidade você não vê e não há essa valorização do patrimônio material e imaterial. Falta diálogo, participação, preparo, educação. A gente tem essas chagas do passado. Pereira Passos, Getúlio Vargas. Tem a própria questão de remoção dos escravos para esta área, de total desleixo por essa região. Aqui era meio que um depósito humano mesmo. Saúde leva esse nome porque os doentes eram levados para lá. Como olhar para essa região que tem toda uma carga positiva e negativa da história do Rio, do Brasil e não lembrar que essas coisas aconteceram aqui? Foram tirados os cortiços e deixaram as fachadas. A primeira favela no Rio de Janeiro está aqui. Machado de Assis, a casa dele está ali. Falta valorização da nossa cultura e da nossa história. Os espaços construídos na região deveriam dialogar com a questão histórica local. É isso que constrói nossa identidade nacional. Constrói nossa autoestima para a gente poder falar, participar dos processos políticos.

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alucinaçõesComo parte das ações que implementam o projeto de sucesso “Porto Maravilha” na região portuária do rio de Janeiro, a produção cultural vem sendo invocada. Dizer “região” ou Zona Portuária pouco qualifica esse terreno/território e, para colaborar na porosidade da percepção desse espaço podemos listar quais são os registros de que dispomos, pensar que modos de vida, que narrativas fugidias, que histórias percorrem as ruas, que resistências, ... e como essas produções constituem esse local. o objetivo deste artigo é, sinalizando o modelo econômico e de gestão que utilizam dois museus em construção na área, compreender como eles contrastam com ações que poderiam fomentar, mais diretamente, a produção cultural já existente ali. E por isso, analisar como o fomento à produção cultural mais crítica ocorre trazendo enfrentamentos necessários para a própria produção, ou seja: para a(s) arte(s), o que chamo de “alucinações produtivas”.

o projeto Porto Maravilha vem sendo realizado por uma operação Urbana Consorciada (oUC), um modelo de negócio do tipo Parceria Público

Privada (PPP) que facilita uma série de possibilidades para empresas privadas no trato do espaço e de serviços públicos. Contudo, organizações sociais têm resistido ao modelo implementado, criando diversos comitês, grupos e fóruns de discussão para garantir os direitos dos moradores e trabalhadores sobretudo quanto à ocupação do território e o direito à moradia. as ações do projeto “maravilha” já forçaram primeiro a desestruturação seguida de expulsão de duas ocupações de moradores - entre elas a Zumbi dos Palmares, então a maior ocupação da cidade do rio de Janeiro; e atualmente ameaçam e expulsam centenas de moradores do Morro da Providência.

Cristina ribas

Produção cultural na Zona Portuária?

produtivas

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a produção cultural, e/ou o turismo cultural, por sua vez, tem sido usada nos discursos da macropolítica como ferramenta de apaziguamento de diferenças, de porta de entrada para empreendimentos econômicos e tem sido promovida como elemento neutralizador indireto das ações severas da prefeitura do rio de Janeiro, em sua maioria levadas a cabo pelas forças policiais do estado (como a remoção de casas para a construção do teleférico no Morro da Providência). Um exemplo da contradição atual que vivemos é: se os imóveis desocupados na região podem ser usados para a produção cultural, no caso da Fábrica Behring (“comprada” a punho por Eduardo Paes), porque não se garante também a moradia em prédios desocupados, como é designado por lei federal?

a implantação do Porto Maravilha realiza uma privatização deste terreno e agrega, em uma onda atrasada e “não vanguardista” porque se pauta sobre projetos de revitalização como das docas do sul do rio tamisa, em Londres, e o Porto Olímpico em Barcelona. Em ambos batalhas sociais foram travadas pelas populações locais que habitavam as regiões e que foram expulsas pelos planos de revitalização. Contraditoriamente, tais planos também apagaram qualquer vestígio dessas vidas, ainda que afirmem seu valor de consumo sobre a tradição destas histórias e práticas (como em Londres, onde se “vende” o modo de vida criando apartamentos de luxo onde antes estocava-se alimentos).

Já podem ser vistos na Praça Mauá os dois grandes museus (o

Museu de arte do rio (Mar) e o Museu do Amanhã, no píer Mauá) que conduziriam para a região uma população de consumidores de cultura, entretenimento e informação. Contudo, pode fazer parte dessa tarefa ativar a produção de diferentes expressões e quebrar o discurso uníssono de que a “degradação” da região ocorre por conta dos seus próprios atuais moradores e trabalhadores. Para tal, na “revitalização da região”, o reconhecimento da produção cultural local poderia ser um dos motores primeiros.

a dita “degradação” da área é implementada indiscriminadamente no discurso do atual prefeito Eduardo Paes de maneira a construir terreno para a especulação imobiliária. alguns moradores da região afirmam que a área carecia de investimentos, e o “abandono” seria esse, abandono de políticas públicas, que tem sido retomadas nas mãos da iniciativa privada. a especulação imobiliária, que acontece em todo o rio de Janeiro, ali tomou corpo com a venda de Certificados de Potencial adicional Construtivo (CEPaCs), em 2011, cujos compradores não apareceram e a Caixa Econômica Federal, que administra o FGts, foi a grande compradora, assumindo a responsabilidade de um investimento que beneficia prioritariamente o capital privado e as empresas ligadas ao turismo.

Para a produção cultural o modelo que parece vir colado ao da especulação é o da “indústria criativa”. o termo surge no pós-guerra europeu cujas características sociais,

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culturais e econômicas são bem distintas de nossa realidade. Conhecidos genericamente por “equipamentos culturais”, os Museus da região vêm sendo implementados nessa mesma “onda”, visto que não têm nenhuma relação com o território (ousei sugerir uma vez que se fizesse na região o “Museu da Prostituição”) e existem para promover o lazer (“leisure”). os cerca de 170 milhões investidos por renúncia fiscal da Fundação Roberto Marinho são um valor discrepante frente a qualquer investimento na região que de fato colabore na manutenção do cotidiano das comunidades afetadas também na área da cultura – considerando a diversidade de iniciativas e produtores culturais que polinizam a região. Quanto a isso, foi feito um mapeamento recentemente, por um grupo de pesquisadores, que criou o “Guia do cidadão da Zona Portuária”, uma listagem de instituições culturais e religiosas, serviços públicos, escolas, etc. sob coordenação da socióloga Maria da silveira Lobo.

Com o real “descolamento” entre território e equipamentos culturais implementados, resta saber que tipo de produção cultural, social, educativa vai ocupar essas instituições. o que nos apresenta um problema a mais: na grande maioria dos casos os profissionais que passam a atuar nesses espaços não têm qualquer relação política com o território e produzem a programação ou políticas de “inclusão” ou de instrumentalização da população local, num programa educativo pouco crítico com o passado recente dessa revitalização. a dificuldade é, na verdade, operar

uma arte que seja ela mesma ruptura, que provoque alucinações produtivas, assumindo as rachaduras de uma degradação real, da arte e da cultura elas mesmas.

a produção cultural, sua realização artística, precisa cuidar para não entrar num modelo forçado de capital/cultura que se efetiva por meio de um modelo compra e venda, e caindo muitas vezes em práticas e discursos apaziguadores e neutralizadores. sem dúvida, as paixões e os delírios que conduzem a produção artística e mobilizam acontecimentos precisam ser equacionados com os modos de sustentabilidade econômica, e é aí que os desafios são rapidamente abandonados.

na membrana da arte em relação com a cultura se abrem possibilidades de produção sígnica, de intercâmbio de linguagem e modos de acontecimento mais ricos - permeabilidade que depende da disponibilidade daquele que participa de uma realidade comum, ou como um cartógrafo (contemporâneo) entremetido no terreno. o encontro com o terreno constitui o(s) território(s) onde passam a fazer sentido as singularidades e as diferenças, as lutas pelos direitos e os modos próprios de manifestar-se. Há uma diferença grande entre a produção do território e não “para o” território.

o trabalho do coletivo Catadores de Histórias, formado por Fabiane Borges e rafael adaime que acompanhou a luta pela moradia e os moradores de rua no centro

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1 http://catadoresdehistorias.wordpress.com/ e “Domínios do demasiado: por uma ontologia sem cabimento”, São Paulo, Editora Hucitec, 2010.

Versão editada do texto “A Arte de provocar ruínas: especulações na Zona Portuária”, publicado originalmente em Revista Global 14(http://www.revistaglobalbrasil.com.br/?p=697)

de são Paulo no auge das ações para limpar o terreno e revitalizar o centro entre 2002 e 2005 é muito interessante para pensar a realidade da Zona Portuária. Fabiane Borges descreve no seu livro “Domínios do demasiado” que em certo ponto ela mesma começa a ver-se e transformar-se numa moradora de rua que “não tem funcionalidade social, que atrapalha, que atravanca os canais internos do corpo citadino colossal como se fosse uma merda trancada no reto, para depois ser escoada nos canos subterrâneos.” a cidade é feita, então, desses corpos que são, para ela “o negativo do corpo incluído”1.

A ruína provocada pela destruição do existente (a expulsão, a demolição) para projetar o novo é uma imagem que está em o “Caráter destrutivo”, de Walter Benjamin (1931). Como seus tantos conceitos severa e inteligentemente complexos “o caráter destrutivo conhece apenas uma divisa: criar espaço; conhece apenas uma atividade: abrir caminho.” Poderia ser como Fabiane Borges percebe: a presença de corpos

antiantropocên-tricos que desa-fiam o signo máximo do pensamento antropocêntrico: “a cidade, que outrora contraiu o sentido de ambições civilizatórias, hoje escancara os significantes da sua impotência.”

no entanto, a ação do estado se disfarça de uma “harmonia”, como expõe Benjamin. aplicando ao nosso terreno, o que os movimentos e produtores culturais que atuam na região não precisam é desta harmonia que se constrói por cima da destruição. E sim do reconhecimento do seu próprio “legado”, de sua história e de sua resistência. Pode a arte corroborar nesse processo? não sem aportar as alucinações que a permitem ser o elemento desprogramador, dialógico, revolucionário à sua maneira, enfrentando os mesmos desafios que a população local enfrenta, e não entrando na lavada “maravilha” que se cria como imagem, na verdade, insuportável.