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Pró-Reitoria de Graduação Curso de Letras Trabalho de Conclusão de Curso A APOTEÓTICA VIAGEM MUSICAL E IRÔNICA NA ARQUITEXTURA E NO HORIZONTE HERMENÊUTICO DE MEMORIAL DE AIRES, DE MACHADO DE ASSIS Autor: Ériston Silva Melo de Queiroz Orientador: Prof. Msc. Lívila Pereira Maciel Brasília - DF 2013

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Pró-Reitoria de GraduaçãoCurso de Letras

Trabalho de Conclusão de Curso

A APOTEÓTICA VIAGEM MUSICAL E IRÔNICA

NA ARQUITEXTURA E NO HORIZONTE HERMENÊUTICO DE

MEMORIAL DE AIRES, DE MACHADO DE ASSIS

Autor: Ériston Silva Melo de QueirozOrientador: Prof. Msc. Lívila Pereira Maciel

Brasília - DF

2013

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ÉRISTON SILVA MELO DE QUEIROZ

A APOTEÓTICA VIAGEM MUSICAL E IRÔNICA NA ARQUITEXTURA E NOHORIZONTE HERMENÊUTICO DE MEMORIAL DE AIRES,

DE MACHADO DE ASSIS

Monografia apresentada ao curso degraduação em Letras da UniversidadeCatólica de Brasília, como requisito parcialpara obtenção do Título de Licenciado emLetras - Português e Inglês.

Orientador: Prof. Msc. Lívila PereiraMaciel.

Brasília

2013

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Monografia de autoria de Ériston Silva Melo de Queiroz, intitulada A APOTEÓTICA

VIAGEM MUSICAL E IRÔNICA NA ARQUITEXTURA E NO HORIZONTE

HERMENÊUTICO DE MEMORIAL DE AIRES, DE MACHADO DE ASSIS,

apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Licenciada em Letras

com Habilitação em Português e Literaturas em Língua Portuguesa e Inglês e

Literaturas em Língua Inglesa da Universidade Católica de Brasília, em 28 de

novembro de 2013, defendida e/ou aprovada pela banca examinadora abaixo

assinada:

______________________________________________________Prof. Msc. Lívila Pereira Maciel

OrientadoraCurso de Letras da Universidade Católica de Brasília – UCB

______________________________________________________Prof. Dr. Maurício Lemos Izolan

Curso de Letras da Universidade Católica de Brasília - UCB

______________________________________________________Prof. Msc. Robson André da Silva

Curso de Letras da Universidade Católica de Brasília - UCB

Brasília2013

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A Deus, que me trouxe até aqui, e à minha

mãe.

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AGRADECIMENTO

Agradeço primeiramente, acima de tudo e de todos, a Deus, que sempre tem

me acompanhado em todos os momentos da minha vida, tanto de forma perceptível

quanto de maneira imperceptível, e sempre tem me dado fé, esperança, forças,

ânimo e coragem para sempre prosseguir, persistir e insistir em tudo que faço na

vida.

Agradeço aos meus pais, mas principalmente à minha mãe, Valma de Fátima

Silva Melo, que tudo tem feito por mim, e também por todo seu desprendimento,

apoio e compreensão ao longo de toda minha vida.

Agradeço aos meus irmãos, Clayton e Vanessa, por sua compreensão e

ajuda principalmente quanto a alguns detalhes técnicos.

Agradeço à minha orientadora, Lívila Pereira Maciel, por seus conselhos,

apoio e incentivos com relação a esse trabalho.

Agradeço aos professores Maurício Lemos Izolan e Robson André da Silva,

que, a exemplo da professora Lívila, são grandes professores de Literatura, a única

área com a qual eu realmente me identifiquei ao longo do meu curso de Letras na

UCB, até mesmo por causa da minha bagagem literária formada ao longo desses

meus anos de vida até chegar à UCB, e que me mostraram outro lado da Literatura,

onde se vislumbra outros aspectos da arte literária e que ainda me ajudaram com

textos e cópias de textos e livros para a construção deste trabalho.

Agradeço também a todos os compositores eruditos e escritores que sempre

me acompanharam ao longo da vida.

Agradeço ao colega Expedito Carneiro que, enquanto esteve na UCB, foi

quem mais esteve próximo de mim, mais me acompanhou e mais me apoiou no que

pôde.

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RESUMO

Referência: QUEIROZ, Ériston Silva Melo de. A apoteótica viagem musical eirônica na arquitextura e no horizonte hermenêutico de Memorial de Aires, deMachado de Assis. 2013. 104 páginas. Monografia apresentada ao Curso de Letrasda Universidade Católica de Brasília, Brasília, 2013.

Esta pesquisa se propõe a analisar a obra Memorial de Aires de Machado de Assis,relacionando-a com a ópera, a música e com a ironia, que tem raízes na comédia ena tragédia gregas. A ironia aqui tratada é a proposta por Friedrich Schlegel, comseus fragmentos que estruturam o seu sistema assistemático, o que é um das basespara o pensamento em forma de ensaio de Walter Benjamin, alemão como Schlegele herdeiro do Romantismo, movimento do qual o filósofo dos fragmentos fez parte.Memorial de Aires dialoga com toda essa tradição que não é a tradição metafísica elógica herdada de Platão e Aristóteles, mas sim, uma tradição irônica que passa,perpassa e passeia pelo teatro, pela comédia, pela tragédia, pela música e pelaópera.

Palavras-chave: Música. Ópera. Dionisíaco. Tragédia. Comédia. Tragicômico.Ironia. Machado de Assis. Memorial de Aires.

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RÉSUMÉ

Referência: QUEIROZ, Ériston Silva Melo de. A apoteótica viagem musical eirônica na arquitextura e no horizonte hermenêutico de Memorial de Aires, deMachado de Assis. 2013. 104 páginas. Monografia apresentada ao Curso de Letrasda Universidade Católica de Brasília, Brasília, 2013.

Cette recherche vise à analyser l’oeuvre Memorial de Aires par Machado de Assis,le rapportant à l'opéra, à la musique et à l'ironie, qui sont les elements qui ont desracines dans la comédie grecque et dans la tragédie grecque. L'ironie qu'est traitéelà c'est l'ironie proposé par Friedrich Schlegel, avec les ses fragments qui sont lastructure de leur système, qui n’a pas de systéme, et qui est l'un des fondements dela pensée de Walter Benjamin, structuré dans la forme d'essai. Walter Benjamin étaitallemand, comme Schlegel et héritier du romantisme, le mouvement dont lephilosophe de les fragments faisait partie. L'oeuvre Memorial de Aires dialoguesavec toute cette tradition, mais cette tradition c'est pas la tradition métaphysique etlogique héritée de Platon et d'Aristote, mais une tradition qui est une traditionironique, et qui marche avec le théâtre, la comédie, le drame, la tragédie, la musiqueet l'opéra.

Mots-clés: Música. Ópera. Dionisíaco. Tragédia. Comédia. Tragicômico. Ironia.Machado de Assis. Memorial de Aires.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................9

1. IRONIA E POESIA DOS IMEMORIAIS TEMPOS MITOLÓGICOS A FRIEDRICHSCHLEGEL: A QUE SE DESTINA O EXISTIR DO HOMEM, PORQUE TUDO ÉASSIM CONTRADITÓRIO E VAGO TAMBÉM ........................................................12

2. A IRONIA DA HISTÓRIA E DA MEMÓRIA NO PENSAMENTO ENSAÍSTICO DEWALTER BENJAMIN E ADORNO ...........................................................................37

3. MEMORIAL DE AIRES: A NAU IRÔNICA DA MEMÓRIA, DA HISTÓRIA, DAMÚSICA E DA ÓPERA.............................................................................................56

3.1. A INTERTEXTUALIDADE DE MEMORIAL DE AIRES ..................................57

3.2. AIRES-FIDÉLIA-TRISTÃO E O CASAL ORFEU E EURÍDICE......................64

3.3. HERMENÊUTICA ...........................................................................................70

3.4. A HISTÓRIA EM MEMORIAL DE AIRES.......................................................74

3.5. A QUESTÃO NARRATIVA.............................................................................76

CONCLUSÃO ...........................................................................................................89

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.........................................................................92

DISCOGRAFIA .......................................................................................................100

FILMOGRAFIA .......................................................................................................102

VIDEOGRAFIA DE ÓPERAS .................................................................................103

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INTRODUÇÃO

A escrita e a escritura polifônicas do Memorial de Aires estabelecem o diálogo

com uma tradição que confuta a tradição metafísica e lógica perpetradas,

respectivamente, por Platão e Aristóteles. A tradição contida no substrato do diário

de Aires é aquela tradição irônica que se origina nas raízes do teatro grego, ou seja,

nos ritos dionisíacos, dos quais nascem a comédia e a tragédia gregas e também o

drama tragicômico.

Consoante Roland Barthes, “a música no ditirambo, que era o culto ao deus

Dioniso, passou a ser considerada mais importante que o texto, fato que faz com

que o ditirambo possa ser comparado ao que entendemos por ópera” (BARTHES,

1990, p. 65), desde que esta expressiva arte vocal foi criada em fins do século XVI

(COELHO, 2000, p. 43; BENNETT, 1986, p. 36).

Será a ária da opera seria italiana que concorrerá e conspirará para que, nos

séculos XVII e XVIII, haja a supremacia dos cantores líricos, leia-se, os castrati e as

prime donne, fato em que se verifica o triunfo do virtuosismo vocal, por meio de

floreios na escrita musical e nas técnicas vocais, em detrimento do texto e da poesia

(COELHO, 2000, p. 187-94; MASSIN, Jean e Brigitte, 1997, p. 343).

É fato que a ópera havia surgido como tentativa de reviver a antiga tragédia

grega, mas o que aconteceu foi que se deu o nascimento de um gênero teatral,

dramático e musical inteiramente novo (COELHO, 2000, p. 41-6; BORBA; GRAÇA,

1956, p. 312).

A música, da Antiguidade até a Idade Média, era monofônica, isto é, calcada

na monodia, que se caracteriza por se constituir em “uma única linha vocal,

sustentada por uma linha de baixo instrumental” (BENNETT, 1986, p. 36; GROUT,

Donald J.; PALISCA, Claude V, 1997, p. 19). Durante todo esse longo tempo, o

predomínio era da palavra, e não da música.

A polifonia tem seus primórdios entre os séculos X e XII (FERRAND, 1997, p.

185-194). No Renascimento, é praticada no estilo policoral (BENNETT, 1986, p. 29-

33). Com a instituição da ópera, tentativa de novamente se praticar o drama grego,

há uma volta à monodia (BENNETT, 1986, p. 36). O século XVIII assistirá ao retorno

à polifonia, ou seja, ao contraponto, instrumental e vocal, com as obras de

compositores como Vivaldi, J.S. Bach e Handel (BENNETT, 1986, p. 43).

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Em alguns momentos, surgem compositores que se insurgem contra a

superioridade da música, leia-se melodia, em relação ao texto nas obras musicais. É

o caso de gênios como Monteverdi, Lully, Mozart, Gluck, Verdi, Wagner e os

compositores da segunda escola de Viena – Schoenberg, Berg e Webern (COELHO,

2000, p. 43; COELHO, 2000, 230-4).

Jacob Guinsburg, em seu texto Nietzsche no Teatro, posfácio de sua autoria,

ao livro O Nascimento da Tragédia, de Friedrich Nietzche, tece que se pôde

vislumbrar um resgate das “virtudes estético-existenciais da primitiva Hélade” nas

“obras de Palestrina, de Bach e, mais ainda, as de Beethoven, no plano musical”.

Shakespeare, no que diz respeito ao teatro, é incluído no rol, uma vez que suas

obras e as dos compositores supracitados, “falam da presença recorrente das

antigas potências do gênio criador grego” (GUINSBURG, 2010, p. 165-6).

Richard Wagner, ao perseguir esse objetivo, esse ideal de dar força à palavra

declamada, musicalmente chega ao ponto de prenunciar a atonalidade da segunda

escola de Viena, em Tristão e Isolda, seu mais considerado drama, para Nietzche,

mas pisa no freio (GUINSBURG, 2010, p. 166-9; COELHO, 2000, 231-6).

Na obra atonal e dodecafônica de Schoenberg, “A música não deve enfeitar,

mas deve ser verdadeira” (SCHOENBERG, apud ADORNO, 2009, p. 41). Deste

modo, “Com a negação da aparência e do jogo, a música tende ao conhecimento”

(ADORNO, 2009, p. 42).

Theodor Adorno explica o conceito da “melodia tonal” ou melodia de timbres:

Este conceito significa que a simples mudança instrumental do timbre desons idênticos pode receber força melódica sem que se produza umaverdadeira melodia no sentido tradicional. Mais adiante procurar-se-á umdenominador geral para todas as dimensões musicais. Esta é a origem datécnica dodecafônica. Ela culmina na vontade de superar a oposiçãodominante da música ocidental, a oposição que há entre a naturezapolifônica da fuga e a natureza homofônica da sonata. Assim formulouWebern ao referir-se ao seu último Quarteto para cordas (ADORNO, 2009,p. 50).

Adorno, sobre o caráter social da nova música, diz que “O sujeito da nova

música, que ela registra fielmente, é o sujeito real, emancipado, abandonado a seu

isolamento no último período burguês” (ADORNO, 2009, p. 52).

E diz mais:

O acorde individual, que na tradição clássica e romântica representa comoveículo de expressão o pólo oposto da objetividade polifônica, éreconhecido agora em sua polifonia própria. O meio para chegar a isto nãoé outro senão o meio extremo da subjetividade romântica: a dissonância.

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Quanto mais dissonante é um acorde, quanto mais sons diferentes contémentre si, mais “polifônico” é, mais cada som individual, como demonstrouErwin Stein, adquire na simultaneidade do acorde o caráter de vozpolifônica. O predomínio da dissonância parece destruir as relaçõesracionais, “lógicas”, da tonalidade, ou seja, as relações simples de acordesperfeitos; mas aqui a dissonância é ainda mais racional do que aconsonância, já que mostra de maneira articulada, embora complexa, arelação dos sons nela presentes, ao invés de adquirir a unidade medianteum conjunto “homogêneo”, isto é, destruindo os momentos parciais quecontém. (ADORNO, 2009, p. 54)

Sobre o caráter criticamente libertário da obra de arte aberta, Adorno se

pronuncia:

Somente na obra fragmentária que renuncia a si mesma se libera oconteúdo crítico. Isto com certeza ocorre somente na dissolução da obrafechada e não na estratificação inseparável da teoria e da imagem, tal comoaquela está contida nas obras de arte arcaicas. (ADORNO, 2009, p. 102)

É esta emancipação do sujeito e da arte, na tensão entre consonância e

dissonância, que encontramos na forma do ensaio e do fragmento, enquanto

instâncias e potências críticas, produzidos por nomes como Michel de Montaigne,

Friedrich Schlegel e Walter Benjamin até chegar a Machado de Assis, que escreve o

Memorial de Aires não apenas como ensaio, mas entrelaçando este gênero com as

formas do diário, da epístola e das confissões, tudo isso em uma partitura musical e

operística regida magistralmente pelo Conselheiro Aires.

É partindo de todas essas considerações que estre trabalho se apresenta

estruturado em três capítulos: o primeiro, trata das origens dionisíacas, tragicômicas

e teatrais da ironia, sempre vislumbrando o horizonte da tensão musicalmente

harmônica dos contrários; o segundo, se configurando em um estudo sobre os

conceitos de história e ruína alegórica de Walter Benjamin, além de tratar do gênero

do ensaio – importante frisar aqui que Richard Wagner também foi autor de ensaios

–, defendido por este pensador; enfim, o terceiro, é um estudo e pesquisa

hermenêuticos do Memorial de Aires, de Machado de Assis, o qual constrói e

estabelece ponte que atravessa todo um horizonte em um firmamento em que, ao

longo do caminho percorrido por esta ponte, se abrem portas da percepção

imaginárias e imaginativas que estabelecem diálogos e conexões com os mais

diversos gêneros artísticos e os mais diversos autores, o que também ocorre ao

longo de todo este trabalho em seus três capítulos.

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1. IRONIA E POESIA DOS IMEMORIAIS TEMPOS MITOLÓGICOS A FRIEDRICHSCHLEGEL: A QUE SE DESTINA O EXISTIR DO HOMEM, PORQUE TUDO ÉASSIM CONTRADITÓRIO E VAGO TAMBÉM

O presente capítulo tem por objetivo expor o que é a ironia, mais

precisamente aquela proposta pelo filósofo alemão Friedrich Schlegel e que nos

interessa aqui, pelo fato de ser aquela a chave com que se lê acertadamente os

meandros do romance moderno e também da literatura antiga.

Segundo a lição do filósofo romântico alemão Friedrich Schlegel, a “ironia é a

análise de tese e antítese” – “Ironie ist Analyse der These und Antithese” -

(SCHLEGEL, apud IZOLAN, 2006, p. 61).1 O pensamento de Friedrich Schlegel, no

que tange à ironia, vai de encontro ao de Friedrich Hegel, uma vez que este

preconiza a síntese como solução ao impasse entre tese e antítese.

A ironia do Romantismo alemão foi plasmada em parte a partir da

metamórfica, contraditória e mutante paideia poética da tragédia grega, a qual havia

sido desacreditada pela pretensa paideia filosófica que se impôs de forma arbitrária

e totalitária ao longo da história do pensamento ocidental desde a criação da

metafísica por Platão e da lógica por Aristóteles (SOUZA, 2001, p. 115).

Enquanto a paideia poética dos tragediógrafos gregos trata do saber pelo

sofrer, do pathei mathos, a paideia filosófica, por seu turno, possui a pretensão da

epistemologia do saber a priori com relação ao ser e a tudo o que o cerca. A paideia

filosófica não leva em consideração, ou seja, ela ignora e desconhece tudo o que

transcende ou está além desse saber, uma vez que lança mão do ato de pré-

estabelecer um modelo paradigmático. Exemplo disso é o conhecimento científico

do mundo e da vida, fundado num pragmatismo que tudo quer esquadrinhar, medir,

prever, prescrever, antever, mensurar e calcular, como no filme O Enigma de Kaspar

Hauser, de Werner Herzog2.

Sob a égide e os auspícios do conhecimento monológico aristotélico e

platônico perpetrou-se a instituição e a imposição do uno único unificante que se

pretendeu absoluto e verdadeiro, cujo processo cognitivo não dá conta da correta

interpretação do lema dos Argonautas, de acordo com o qual “navegar é preciso;

1 Izolan (2006, p. 61), na nota de rodapé nº 73, dá a seguinte referência desse fragmento de F.Schlegel: SCHLEGEL,F.Fragmente. In: HASS, Hans Egon e MOHRLÜDER, Gustav – Adolf (org.).Ironies als literarisches Phänomen. Köln: Kiepenheuer & Witsch, 1973, p. 289.2 HERZOG, Werner. DVD O Enigma de Kaspar Hauser. Elenco: Bruno S., Walter Ladengast et al.Alemanha. Ano do filme: 1974. Versátil Home Video.

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viver não é preciso”, em que o adjetivo “preciso” é compreendido no sentido de

“exatidão”, “cálculo”, “medição” ou “prescrição”.

O pensamento hegemônico ocidental não leva em consideração a

incomensurável excessividade e desmesura do ser que é humano, demasiado

humano e que só é enquanto devir, enquanto vir-a-ser. Mas o saber propugnado

pela paideia poética declara veementemente que é proibido proibir que o ser viva

segundo o coração selvagem da vida para empreender a viagem e a travessia em

que se alça vôo com as asas da liberdade além das nuvens, outras vezes lançado

em mares nunca dantes navegados e regido pela poética do devaneio e pela

imaginação e seu pleno poder.

Malgrado as inscrições “Conhece-te a ti mesmo” e “Nada em demasia”,

encontradas no templo de Apolo em Delfos, o ser, porque é humano, demasiado

humano, e devido ao fato de essa sua condição humana ser um estatuto sine qua

non, age, ipso facto, dirigido pelo elan e o ímpeto de toda sua tempestade e paixão,

desvelando e revelando, entre outras coisas, sua anelante hýbris, e ultrapassando

perigosamente o métron, neste mundo que é uma verdadeira dobra que se desdobra

e re-desdobra ad infinitum formando-se, con-formando-se, con-figurando-se, con-

frontando-se, con-templando-se e con-jugando-se em uma mandala labiríntica.

Tal forma de saber, calcada nas supracitadas metafísica e lógica, as quais

desembocam no cartesianismo e na técnica científicos, também não dá conta do

que Hamlet diz a Horácio no final do primeiro ato na peça de William Shakespeare3:

“Há mais coisas, Horácio, em céus e terras, do que sonhou nossa filosofia”

(SHAKESPERAE, 1995).

Contra o brado retumbante da força do destino (para citar a ópera La Forza

del Destino, do compositor italiano Giuseppe Verdi4, e a quinta sinfonia do

compositor alemão Ludwig van Beethoven, que veio a ser intitulada pelos críticos de

Do Destino5), cujo fio é costurado pelas Moiras ou Parcas, chamadas de Nornas na

3 SHAKESPEARE, William: Hamlet. Trad. Anna AméliaCarneiro de Mendonça. Rio de Janeiro, RJ:Editora Nova Fronteira, 1995.4 VERDI, Giuseppe: DVD La Forza del Destino (ver videografia). Bibliografia sobre a ópera:COELHO, Lauro Machado: A Ópera Romântica Italiana. São Paulo, SP: Editora Perspectiva, 2002,p. 352 e 379. (Coleção História da Ópera)5 LP Beethoven, Ludwig van. Sinfonias 5 & 9.Orquestra Filarmônica de Berlim. Herbert von Karajan.Gravação de 1982. Selo Deutsche Grammophon-PolyGram Discos. Ano de lançamento do disco:1987 (acompanha o disco encarte com texto sobre as sinfonias, de autoria de Stefan Kunze,traduzido por Mário Willmersdorf Jr.). Bibliografia: MASSIN, Jean. Ludwig van Beethoven. In:MASSIN, Jean; MASSIN, Brigitte (org.). História da Música Ocidental. Trad. Ângela Ramalho Viana;Carlos Sussekind; Maria Teresa Resende Costa. Rio de Janeiro, RJ: Editora Nova Fronteira, 1997, p.

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mitologia germano-escandinava (e as quais aparecem no prólogo da ópera O

Crepúsculo dos Deuses, do compositor alemão Richard Wagner6), ninguém pode se

erguer, nem mesmo os próprios deuses olímpicos. Nem mesmo o maior destes

deuses, Zeus ou Júpiter, pode contra esta força maior (o nome romano do deus foi

tomado de empréstimo pelos críticos para apelidar a última sinfonia do compositor

austríaco Wolfgang Amadeus Mozart, a de número 417).

Os deuses, algumas vezes, podem unir-se em um conúbio que vai ao

encontro dos anseios dos homens e, em outras, em conluio que vai de encontro às

ações, às aspirações ou aos empreendimentos destes. Isso pode ser comprovado

nos poemas épicos Ilíada8 e Odisseia9, ambos de Homero; Eneida, de Virgílio10; e

Os Lusíadas, de Luiz Vaz de Camões11.

Ao contrário da metafísica platônica, da lógica aristotélica e da síntese

hegeliana, a ironia romântica, que retoma a paideia poética dos poetas trágicos – e

também dos cômicos - helênicos, harmoniza de forma equilibrada os opostos de

forma que um sirva de contrapeso ao outro – na balança de libra – em uma

coexistência fundamental e imprescindível à existência de ambos:

[...] o conflito dramático não se resolve lógica ou dialeticamente. Asuperação do conflito entre princípios adversos é uma ambição de filósofose teólogos. A unidade onto-teo-lógica é uma instância despótica, porqueadvoga o extermínio do adversário. Para o poeta trágico, a catarse nãosignifica a superação do conflito, mas, sim, a transformação da oposiçãoantagônica na oposição complementar. Na Oréstia [trilogia dramática deÉsquilo], a oposição antagônica dos [deuses] ctônicos e dos olímpicospoeticamente se converte na oposição harmônica. A unidade poética ésolidária da reversa harmonia dos contrários. (SOUZA, 2001, p. 120)

609. GROUT, Donald J.; PALISCA, Claude V.: História da Música Ocidental. Trad. Ana Luísa Faria.Lisboa, Portugal: Gradiva, 1997, p. 559.6 WAGNER, Richard. DVD Götterdämmerung (Crepúsculo dos Deuses) – elenco: Gwyneth Jones,Manfred Jung et al. Coro e Orquestra do Festival de Bayreuth – regente: Pierre Boulez – ano dagravação original: 1981 - ano de lançamento do DVD: 2005 - selo Deutsche Grammophon – Berlin,Germany. Bibliografia sobre a ópera: COELHO, Lauro Machado: A Ópera Alemã. São Paulo, SP:Editora Perspectiva, 2000, p. 226. (Coleção História da Ópera)7 MOZART, Wolfgang Amadeus. CD Sinfonia nº 41 “Júpiter” – Orchestra of the 18th Century –regente: FransBrüggen – 1986 – Philips Digital Classics Productions. Bibliografia: MASSIN, Brigitte eJean. Wolfgang Amadeus Mozart. In: MASSIN, Jean; MASSIN, Brigitte (org.). História da MúsicaOcidental. Trad. Ângela Ramalho Viana; Carlos Sussekind; Maria Teresa Resende Costa. Rio deJaneiro, RJ: Editora Nova Fronteira, 1997, p. 578. GROUT, Donald J.; PALISCA, Claude V.: Históriada Música Ocidental. Trad. Ana Luísa Faria. Lisboa, Portugal: Gradiva, 1997, p. 536.8 HOMERO. Ilíada. Trad. Haroldo de Campos. São Paulo, SP: Arx/Benvirá, 2002.9 HOMERO. Odisseia. Trad., prefácio e notas de Trajano Vieira. São Paulo, SP: Editora 34, 2011.10 VIRGÍLIO. Eneida. Trad. Odorico Mendes. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2005.11 CAMÕES, Luis Vaz de. Os Lusíadas. Edição crítica de Francisco da Silveira Bueno. Rio deJaneiro, RJ: Ediouro, 1985.

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Heráclito, fragmento nº 8: “O contrário em tensão é convergente; da

divergência dos contrários, a mais bela harmonia” (HERÁCLITO, 2005, p. 61).

Fragmento nº 10: “Conjunções: completo e incompleto (convergente e divergente,

concórdia e discórdia, e de todas as coisas, um e de um, todas as coisas)”

(HERÁCLITO, 2005, p. 61). Fragmento 51: “Não compreendem, como concorda o

que de si difere: harmonia de movimentos contrários, como do arco e da lira”

(HERÁCLITO, 2005, p. 71 – grifo meu) – Heráclito sobre os paradoxos, sobre os

opostos – o arco e a lira.

Os maiores poetas trágicos gregos foram, cronologicamente, Ésquilo,

Sófocles e Eurípedes, o triunvirato responsável pelas obras-primas do gênero.

Aristófanes, o grande criador da comédia ática.

O estatuto da paideia poética tragicômica, a qual comporta em sua

visceralidade a urdidura composta pelo conúbio com o extremo paradoxo dos

opostos que se harmonizam na dissonância e na consonância, é a pedra angular nel

mezzo del camin que os arquitetos da metafísica e da lógica rejeitaram, pela fato de

aquela contrariar e subverter seus pressupostos, e por não perceberem que aquela

está perene e inexoravelmente presente na cerzidura do multiverso e do pluriverso

do mundo e da vida.

Uma vez que a tragédia, a comédia, a tragicomédia, em outras palavras o

teatro grego, bem como a ironia, têm sua origem nos coros denominados ditirambos,

os quais eram entoados nos ritos em honra de Dioniso (BRANDÃO, 1992, p. 128-9),

pode-se dizer que este é o deus da ironia e da complexio oppositorum, isto é, da re-

união e conjugação dos contrários e dos opostos, por excelência.

Sobre a relação e o relacionamento entre mito e rito, Junito de Souza

Brandão esclarece que “[...] o rito é a práxis do mito. É o mito em ação. O mito

rememora, o rito comemora” (BRANDÃO, 1993, p. 39).

Acrescente-se a isso que “o rito, reiterando o mito, aponta o caminho, oferece

um modelo exemplar, colocando o homem na contemporaneidade do sagrado”

(BRANDÃO, 1993, p. 40).

Junito de Souza Brandão cita o mestre Mircea Eliade, que diz mais sobre o

assunto:

Um objeto ou um ato não se tornam reais, a não ser na medida em querepetem um arquétipo. Assim a realidade se adquire exclusivamente pelarepetição ou participação; tudo que não possui um modelo exemplar é vazio

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de sentido, isto é, carece de realidade (ELIADE, apud BRANDÃO, 1993, p.40)

O mito, pois, torna-se contemporâneo de quem realiza o rito, uma vez que

pelo rito atualiza-se o mito, por meio de sua representação, evocação e invocação.

Junito de Souza Brandão, na nota de rodapé nº 48 do 2º volume de sua obra

Mitologia Grega, explica a origem e o significado da palavra ditirambo:

Ditirambo, em grego [...] (dithyrambos) é uma canção coral cujo objetivo era,quando do sacrifício de uma vítima, gerar o êxtase coletiva com a ajuda demovimentos rítmicos, aclamações e vociferações rituais. Quando, a partirdos séculos VII-VI a.C., se desenvolveu no mundo grego o Lirismo Coral, oditirambo se tornou um gênero literário, dado o acréscimo de partescantadas pelo [...] (eksárkhon), isto é, pelo “regente” do hino sacro. Essaspartes cantadas pelo “regente” eram trechos líricos em temas adaptados àscircunstâncias e à pessoa de Dioniso. (BRANDÃO, 1992, p. 128)

Dioniso é o deus das metamorfoses, do êxtase e do entusiasmo. Como deus

das metamorfoses, pode assumir a forma de bode ou touro. Essa é a sua hierofania,

ou seja, sua aparição em outra forma que não a real. Além disso, sua forma

animalesca expressa sua condição de divindade ctônia, urânica e telúrica,

relacionada com a fertilidade e com a fecundidade.

A mitologia e os seus mitos estão repletos de exemplos de metamorfoses. O

próprio Zeus empreendeu o rapto de Europa sob a forma de touro.Certa feita,

Posídon – ou Poseidon – transformou Teófane (filha do rei Bisáltis da Macedônia e

neta de Hélio- o deus do sol no mito cretense, mais tarde substituído por Apolo) e

Geia (ou Gaia, a deusa da terra no mito cretense), a quem havia raptado, em ovelha,

e a si mesmo, em carneiro e, em outra oportunidade, ao perceber que Deméter

(deusa e mãe da terra e de Perséfone, filha de sua união com Zeus, isto é, fruto de

uma hierogamia, nome que se dá a uma união ou casamento sagrado, consumado

entre dois deuses), a quem perseguia, metamorfoseou-se em égua para despistá-lo,

assumiu a forma de um cavalo. Circe, a feiticeira filha de Hélio e Perseida,

transforma os companheiros de Ulisses em porcos. Acteon, o caçador, é

transformado em veado por Ártemis (deusa das flechas e da caça, irmã gêmea de

Apolo). Os exemplos se multiplicariam.

Dioniso também assume a máscara e a persona de Zagreu, que é outro nome

pelo qual ele é conhecido e que é uma espécie de primeiro Dioniso além de se

identificar com Hades ou Plutão:

[...] se Zagreu, como epíteto, raramente aparece em textos da épocaclássica, seu nome, todavia, já é atestado desde o século VI a.C.Ésquilo,

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em fragmentos de suas peças perdidas, faz de Zagreu o equivalente deHades ou Plutão, ou mesmo seu filho, mas Eurípedes o menciona entre asdivindades cultuadas por confrarias religiosas que ele supõe terem existidodesde a época de Minos e cujos membros formam o coro de sua tragédiaOs Cretenses.[...] Fundindo os dois [...] hão de fazer de Zagreu o primeiroDioniso. (BRANDÃO, 1992, p. 115)

Zagreu, o Dioniso primevo, é fruto da união de Zeus e Perséfone. Com o

objetivo de escondê-lo da ciumenta Hera, Zeus entrega a criança a Apolo, o qual é

incumbido de tomar conta do filho do maior dos deuses em meio às florestas do

monte Parnaso. Entretanto, Hera descobre onde o menino se encontra e ordena aos

Titãs raptarem e matarem a criança. De posse do rebento, os comandados da

esposa de Zeus o despedaçam, o cozinham em um caldeirão e o comem. Em

seguida, estes são destruídos pelos raios de Zeus. (BRANDÃO, 1992, p. 117-8)

Os titãs atraíram “o pequeno Zagreu com brinquedos místicos: ossinhos, pião,

carrapeta, ‘crepundia’ e espelho” (BRANDÃO, 1992, p. 117). Junito de Souza

Brandão ainda explica sobre o significado desses brinquedos e chama a atenção

para o fato de que um deus se atrai com instrumentos musicais e com a música

produzida por estes:

As crepundia, quer dizer, argolas de marfim ou pequenos chocalhos, que secolocavam no pescoço das crianças, os ossinhos e o pião tinham umsentido preciso: não existe teleté, isto é, cerimônia de iniciação, sem“determinados ruídos”. Um deus se atraía e se atrai com flauta e tambores...[...] (BRANDÃO, 1992, p. 118)

Há uma versão da mitologia segundo a qual os homens se originaram das

cinzas dos titãs que engoliram Dioniso, e que devido a isso possuem uma porção

titânica e outra dionisíaca.

De acordo com uma versão do mito, Atena, ou segundo outra variação,

Deméter, apanhou a tempo o coração de Zagreu que ainda batia. E é aqui que

começa a história do segundo Dioniso.

Ao engolir o coração de Dioniso ou ao ser fecundada por Zeus, a mortal

Sêmele, filha do herói e rei Cadmo (irmão de Europa, personagem supracitada, e

ambos filhos de Agenor, rei da cidade fenícia de Tiro, no Líbano, e netos de

Posídon, ou Poseidon, o deus dos mares), de Tebas (foi o fundador desta cidade

grega) com Harmonia ou Hermione (filha de Ares, o deus da guerra, e Afrodite, a

deusa do amor), acaba por ficar gestante deste novo Dioniso. Hera, a irmã e

ciumenta esposa de Zeus e protetora dos casamentos e das uniões legítimas,

disfarçada de ama desta princesa tebana, aconselha Sêmele, já grávida do maior

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dos deuses, a pedir a este que se lhe manifeste em todo o esplendor de sua

verdadeira forma, o que configura a epifania. Sêmele, como qualquer outro mortal,

não podendo suportar esta manifestação de Zeus, é morta tragicamente, ao ser

fulminada por seus raios. Imediatamente, em um gesto deveras dramático, Zeus

colhe, do ventre da defunta Sêmele, o fruto de seu amor com a mortal, colocando-o

em sua coxa, para que lá se conclua a sua gestação, a exemplo da deusa Atena,

que nasceu de suas meninges. Assim que Dioniso nasceu, Hermes o levou para a

corte do rei Átamas, rei da Queroneia, na Beócia, casado com Ino, irmã da falecida

amante do deus supremo, que recebeu o menino. Furiosa com essa acolhida, Hera

enlouqueceu o casal, que matou seus dois filhos. Para evitar nova investida de sua

esposa, Zeus faz com que seu filho assuma a forma de um bode e ordena mais uma

vez a Hermes, o mensageiro dos deuses, que este leve a criança, desta vez, para

uma gruta profunda no monte Nisa, para que fosse cuidado pelas ninfas e pelos

sátiros que ali moravam (BRANDÃO, 1992, p. 120).

Os sátiros, também chamados de silenos (de Sileno, companheiro

inseparável desse deus), sempre presentes nas celebrações dionisíacas, eram ora

caracterizados com feições equinas ora retratados com caracteres ou traços

caprinos (estes os mais conhecidos),mais tarde confundidos ou associados amiúde

com o fauno (que levou o escritor francês Stéphane Mallarmé a produzir o poema ou

écloga “L’Après-midi d’un faune” - Tarde de um fauno - do qual derivou o poema

sinfônico homônimo do compositor francês Claude Debussy12) e com o deus Pã (que

toca a flauta que leva o seu nome).Os sátiros eram, como se vê, personagens e

figuras obrigatoriamente partícipes e atuantes na entourage, ou seja, no círculo e no

séquito do deus da subversão.

Junito de Souza Brandão, na nota de rodapé nº 51 do 2º volume de sua obra

Mitologia Grega, esclarece que a palavra sátira não vem de sátiro:

Satura ou satira, esta na época imperial, é palavra latina. Trata-se dofeminino do adjetivo satur, - a, - um, “farto, sortido”. Satura lanx é um prato,uma travessa “farta”, “sortida”, isto é, um prato com as primícias de frutas elegumes que se ofereciam à deusa Ceres, por ocasião da colheita. Depoissubstantivada, Satura (Satira) passou a designar “mistura de prosa e versode assuntos e metros vários”. Em literatura, Satura (Satira) é a crítica àsinstituições e pessoas; a censura dos males da sociedade e indivíduos.Nada tem a ver com Sátiro [...] (Sátyros), que é palavra grega e que talvezsignifique em etimologia popular “de pênis em ereção”. Os Sátiros eremsemideuses rústicos e maliciosos, com o nariz arrebitado e chato, com o

12 CD DEBUSSY, Claude: Prélude à L’Après-Midi d’unFaune (Prelúdio Tarde de um Fauno). TheCleveland Orchestra.Regente: Pierre Boulez. France: Selo Deutsche Grammophon, 1993.

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corpo peludo, cabelos eriçados, dois pequenos cornos e com pernas epatas de bode. A confusão se deve ao fato de satírico ser um adjetivo quetanto pode provir de satira quanto de Sátiro, graças à simplificaçãoortográfica. (BRANDÃO, 1992, p. 128)

Eis a seguir a lição de Ronaldes de Melo e Souza, que cita Walter Otto, a

respeito da divindade aqui enfocada:

A interpretação do mito e do culto de Dioniso, efetivada por Walter F.Otto, elucida a duplicidade do deus que os contrários não contradizem,porque ele os contém em si mesmo [...]. Nascido da hierogamia do imortalZeus e da mortal Semele, Dioniso se distingue da idealidade dos deusesolímpicos porque o seu ser não se contrapõe ao não-ser, e a sua vida nãosubsiste, senão porque a morte existe. Ele aparece, nos mitos e ritos, comoagente da expansão vital e, ao mesmo tempo, como paciente da contraçãomortal. Dobrando e desdobrando o selado segredo do ser que bem querocultar-se, as epifanias dionisíacas, tanto as teriomórficas [metade humanometade animal] (Zagreus), quanto as fitomórficas [forma de planta](Dendrites), dramatizam a tensão harmônica do movente conúbio dosuperno celestial e do inferno terrestre. Divino guardião da reversaharmonia da euforia luminosa e da disforia trevosa, Dioniso se manifestacomo portador da fulgurante presencialização olímpica e da ofuscanteausencialização tartárica. (SOUZA, 2006, p.57-58)

Sobre o culto dionisíaco na gênese do metateatro helênico, vejamos o que

dizem Albin Lesky e Patricia Easterling, citada por Georges Minois:

[...] o elemento básico da religião dionisíaca é a transformação. O homemarrebatado pelo deus, transportado para o seu reino por meio do êxtase, édiferente do que era no mundo cotidiano. Mas a transformação é tambémaquilo de onde, e somente daí, pode surgira arte dramática, que é algodistinto de uma imitação desenvolvida a partir de um instinto lúdico, edistinto de uma representação mágico-ritual de demônios, arte dramática,que é uma replasmação do vivo. [...] (LESKY, 1996, p. 74)

Presidindo, ao mesmo tempo, a tragédia e o drama satírico, ele é o maisturvo dos deuses: está atrás do vinho e da embriaguez, mas também atrásda natureza selvagem, da possessão extática, da dança, da máscara, dodisfarce, da iniciação mística. (EASTERLING apud MINOIS, 2003, p. 36-7)

Além das perseguições de Hera a Dioniso, registram-se ainda as ocasiões em

que o deus do êxtase e do entusiasmo foi perseguido por Licurgo, Penteu, por

piratas etruscos e por Perseu. Ao fugir do primeiro, o deus mergulha no mar, e do

último, foi precipitado nas profundezas do pântano de Lerna.

A respeito das passagens de Dioniso pelos montes Parnaso e Nisa, de sua

entrada na água e de seu despedaçamento pelos Titãs, trata-se, cada um, de uma

catábase, de uma descida. No caso das duas montanhas, trata-se do regressus ad

uterum, isto é, retorno ou descida ao útero da terra, para entrar em contato com as

forças telúricas. No caso da travessia pelas profundezas da água, tem-se aí

catábase e essencialização pela água. Quando foi despedaçado e cozinhado pelos

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Titãs, isso também foi uma catábase, por meio da morte. Quando sua mãe foi

atingida pelos raios de Zeus, seu pai, Dioniso foi essencializado pelo fogo, o

elemento ígneo, oposto à água.

A catábase, que é uma essencialização e uma renovação, um renascimento,

seguida pela anábase ou subida, mostra-nos que aquela personagem que passa por

essa experiência é nada mais nada menos que o outro e o mesmo de si mesma.

Este é Dioniso, o deus brumoso e indefinido que assume várias máscaras,

como as de Zagreu, Brômio (o que ruge), Baco (o deus do vinho), o infernal Hades

(ou Plutão) e a de Apolo.

Sobre a máscara, este recurso e artefato que encerra e descerra um

multiverso multifacetado que abriga em si o ser e o não ser entrelaçados no eterno

retorno do inexorável ciclo e rito da vida e da morte e que é o símbolo do grande

teatro do mundo tragicômico cuja vontade e representação se descortina sob o véu

lunar e estelar da mais autêntica noite dos mascarados, eis o seguinte ensinamento:

Justamente porque não alegoriza nenhum ente dissimulado ou ocultonuma suposta idealidade substancial, precisamente porque tautegoriza arealidade processual e diluvial da essência inebriada de ausência é que amáscara se impõe como símbolo da teofania dionisíaca [...]. Sem avessonem fundo, porque nada contém dentro de si, a máscara simboliza amanifestação do que é simultaneamente presente e ausente. Na religaçãoda sobriedade cósmica e ebriedade caótica, em que o luciforme universodivino e o cruciforme destino se congregam na concórdia discordante oudiscórdia concordante, a máscara dionisíaca assinala a eurritmia do mundoque devém e revém no eterno retorno da fascinante essencialização e daexcruciante nadificação. Símbolo epifânico do plexo da vida e da morte oudo nexo do ser e do nada, a máscara divina constitui a sagrada cifra em quese decifra o enigmático fragmento heraclítico, segundo o qual Dionysos eHades são um e o mesmo deus. (SOUZA, 2006, p.58-59)

Eis o mencionado fragmento de Heráclito, que é o de nº 15: “Não fosse para

Dionísio a procissão que fazem o hino, que entoam com as vergonhas sagradas,

praticariam a coisa mais monstruosa. Mas Hades e Dionísio é o mesmo, para quem

deliram e festejam”. (HERÁCLITO, 2005, p. 63)

A máscara está presente em outras culturas, além da grega, desde a

antiguidade, como nos esclarece Lesky:

[...] Em todas as partes da terra se encontraram, a partir dos estádiosmais remotos dos coletores e primitivos caçadores, celebrações mímicas,danças com máscaras sobretudo, que têm seus paralelos no mais antigoculto grego. [...] (LESKY, 1996, p. 58)

A esse respeito, Lesky prossegue, detendo-se específica e

pormenorizadamente sobre a questão da máscara na cultura grega:

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Antes de mais nada, remonta àquela fase primitiva um requisito que atragédia grega jamais abandonou, como também a comédia: a máscara.Seu emprego nas culturas primitivas é múltiplo; a mais frequente é amáscara protetora, que deve subtrair o homem aos poderes hostis, e amáscara mágica, que transfere ao portador a força e as propriedades dosdemônios por ela representados. A primeira das duas formas de empregonão tem importância para nós, mas a segunda, em compensação, é degrande significado, pois nela se encontra o elemento da transformação emque se baseia a essência da representação dramática. Esse uso damáscara é antiquíssimo até mesmo em solo grego. Já na cultura creto-micênica, gemas e um afresco de Micenas nos mostram figuras commáscaras de animais. É significativo que este uso da máscara se tenhaconservado até época bem avançada, ligado principalmente ao culto dasgrandes divindades da natureza e do crescimento. [...] o sacerdote deDeméter usava em determinadas cerimônias a máscara da deusa [...]Entretanto, onde a máscara desempenhou seu papel mais relevante foi noculto do deus de que fazia parte a tragédia, no de Dioniso. Sua máscara,pendente de um mastro, era objeto de culto, de tal modo que é possívelmesmo falar de um deus-máscara; seus adoradores usavam máscaras,entre as quais a função maior cabia às dos sátiros, e máscaras desse tipoem levadas a seus santuários como oferendas. Não podemos passar porcima do fato de que as máscaras da tragédia, assim como as da comédia,têm suas raízes totalmente implantadas neste domínio cultual, que, por suavez, remonta às mais antigas concepções [...]. (LESKY, 1996, p. 59-60)

Mikhail Bakhtin tem mais a dizer sobre a máscara:

[...] A máscara traduz a alegre negação da identidade e do sentido único, anegação da coincidência estúpida consigo mesmo; a máscara é aexpressão das transferências, das metamorfoses, das violações dasfronteiras naturais, da ridicularização, dos apelidos; a máscara encarna oprincípio de jogo da vida, está baseada numa peculiar inter-relação darealidade e da imagem, característica das formas mais antigas dos ritos eespetáculos. O complexo simbolismo das máscaras é inesgotável. Bastalembrar que manifestações como a paródia, a caricatura, a careta, ascontorções e as “macaquices” são derivadas da máscara. [...] (BAKHTIN,1987, p. 35)

Dioniso é o deus que ora pode ser representado como um adolescente

efeminado ora como um adulto barbudo, o deus que subverte, inverte e perturba a

lógica e o status quo, isto é, a ordem e a hierarquia sociais, uma vez que em seu

culto misturavam-se fieis sem distinção de gênero e de classe social.

Dioniso é o deus das ambiguidades, das contradições e dos paradoxos, o

deus que reúne em si o diurno e o noturno, o ctônico e o olímpico, o cômico e o

trágico, a voluptuosidade e a crueldade, a luz e as trevas, o masculino e o feminino,

o viril e o afeminado, o heterossexual e o homossexual, a fecundidade e a

fertilidade, o bárbaro selvagem e o civilizado requintado, o antigo e o moderno, a

catábase e a anábase, e, a exemplo do mito da Fênix, vida e morte, nascimento e

renascimento.

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Entretanto, há mais o que se falar sobre a origem do turbilhão e do universo

inventivo e imaginário da ironia tragicômica entre os gregos:

[...] Na cultura dos povos gregos, manifesta-se no intercâmbio de motejospronunciados nas procissões falofóricas. (SOUZA, 2006, p.37)

[...] A cerimônia central [nas Dionísias Rurais, uma das quatro grandesfestas em honra do deus aqui estudado] consistia num kômos, quer dizer,aqui no caso, numa alegre e barulhenta procissão com danças e cantos, emque se escoltava um enorme falo. Os participantes dessa ruidosa falofóriacobriam o rosto com máscaras ou disfarçavam-se em animais, o que mostratratar-se de um sortilégio para provocar a fertilidade dos campos e doslares. (BRANDÃO, 1992, p. 126)

[...] É da kômodia que vem a comédia, os kômodoi eram os comediantes.[...] (MINOIS, 2003, p. 37)

Sobre o ditirambo, Jacob Guinsburg na nota nº 30 que comenta a obra O

Nascimento da Tragédia, de Friedrich Nietzsche (2010, p. 145) esclarece que se

trata de:

Canto cultual originariamente dedicado apenas a Dionísio e mais tardeestendido a outros deuses, sobretudo a Apolo. Era entoado por coro esolista, tendo-se convertido, em Corinto, a partir de Arion, em forma decomposição literária, cantada de maneira regular por um coral dispostocircularmente em torno do altar, com assunto definido e acompanhamentode flauta.

E, conforme Nietzsche ressalta, as raízes mais profundas da tragédia grega

estão mesmo no ditirambo:

[...] o coro ditirâmbico é um coro de transformados, para quem o passadocivil, a posição social estão inteiramente esquecidos; tornaram-se osservidores intemporais de seu deus, vivendo fora do tempo e fora de todasas esferas sociais. Toda e qualquer outra lírica coral dos helenos é apenasuma extraordinária intensificação do solista apolíneo, ao passo que noditirambo se ergue diante de nós uma comunidade de atores inconscientesque se encaram reciprocamente como transmudados. (NIETZSCHE, 2010,p. 57)

[...] Também no Medievo alemão contorciam-se sob o poder da mesmaviolência dionisíaca multidões sempre crescentes, cantando e dançando, delugar em lugar: nesses dançarinos de São João e São Guido reconhecemosde novo os coros báquicos dos gregos, com sua pré-história na Ásia Menor,até a Babilônia e as sáceas orgiásticas. (NIETZSCHE, 2010, p. 27)

É seguindo essa linha de interpretação do ditirambo apontada por Nietzsche,

que podemos compreender, por exemplo, as razões pelas quais, na ópera Os

Mestres Cantores de Nuremberg13, de Richard Wagner, o poeta bufão Hans Sachs

13 WAGNER, Richard. DVD Die Meistersinger von Nurnberg. Elenco: Siegfried Jerusalem, BerndWeikl, Hermann Prey et al. Coro e Orquestra do Festival de Bayreuth. Regente: Horst Stein. Ano dagravação original: 1984. Ano de lançamento do DVD: 2006. Selo Deutsche Grammophon.

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promove um concurso de canto em meio à festa de São João com ampla e intensa

participação entusiástica do povo. E podemos, também, chegar aos primórdios da

constituição do teatro na Grécia, como nos esclarece a nota nº 56 de Guinsburg ao

livro de Nietzsche (2010, p.147):

O teatro grego parece ter sido concebido originalmente para a apresentaçãode coros ditirâmbicos em honra de Dionísio. O seu centro era a orkhestra(“lugar de dançar”), um espaço circular no meio do qual se erguia o thymeleou altar do deus. Em volta de mais da metade da orkhestra, formando umaespécie de ferradura, ficava o thêatron (“lugar de ver”) propriamente dito,constituído de arquibancadas circulares, geralmente escavadas na encostade uma colina. Atrás da orkhestra e defronte da audiência encontrava-se askene, a princípio uma estrutura de madeira, uma fachada de três portas,através das quais, quando o drama se desenvolveu, a partir do coroditirâmbico, os atores entravam em cena. (The Oxford companion toclassical literature e The Oxford companion to the theatre)

Ditirambo. Tragédia. Comédia. Origem dionisíaca do drama tragicômico.

Ironia. Esse percurso nos leva a retornar às contribuições importantes de Friedrich

Schlegel sobre a instauração de uma poética da ironia. No fragmento de número 42

dos Fragmentos Críticos ou Fragmentos do Lyceum, o filósofo romântico alemão nos

diz mais a respeito da ironia:

A filosofia é a verdadeira pátria da ironia, que se poderia definir comobeleza lógica: pois onde quer que se filosofe em conversas faladas ouescritas, e apenas não de todo sistematicamente, se deve obter e exigirironia; e até os estoicos consideravam a urbanidade uma virtude. [...] Hápoemas antigos e modernos que respiram, do início ao fim, no todo e naspartes, o divino sopro da ironia. Neles vive uma bufonaria realmentetranscendental. No interior, a disposição que tudo supervisiona e se elevainfinitamente acima de todo condicionado, inclusive a própria arte, virtude ougenialidade; no exterior, na execução, a maneira mímica de um bom bufãoitaliano comum (SCHLEGEL, 1997, p. 26-7 – grifos meus).

Além da arte trágica, a outra fonte em que a ironia bebeu foi a da comédia (a

“bufonaria transcendental” apontada por Friedrich Schlegel no fragmento

supracitado), mais precisamente a de Aristófanes, autor de obras como As Rãs14 e

As Nuvens15. Destarte, a ironia não só se coaduna com o mundo mito-trágico como

também se compraz com o riso, o humor e o chiste. O riso – contra o qual se

voltaram alguns monges medievais no romance O Nome da Rosa, de Umberto Eco16

– é também matéria-prima utilizada para engendrar a filosofia irônica e a ironia

14 ARISTÓFANES: As Rãs. Coleção Comédia Grega. Vol. 2. Trad. e apresentação: Mário da GamaKury. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar Editor, 2004.15 ARISTÓFANES: As Nuvens. Coleção Comédia Grega. Vol. 1. Trad. e apresentação: Mário daGama Kury. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar Editor, 1995.16 ECO, UMBERTO: O Nome da Rosa. Trad. Aurora F. Bernardini e Homero F. De Andrade. Rio deJaneiro, RJ: Editora Record, 1986.

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filosófica, conforme nota nº 70 de Guinsburg ao livro O Nascimento da Tragédia, de

Nietzsche (2010, p.148-9):

A evolução do gênero cômico, entre os gregos, é dividida, em termos daprodução dramatúrgica, em três fases consecutivas, a saber, a ComédiaAntiga, cujo nome exponencial é o de Aristófanes (448-380 a.C.), aComédia Intermediária, representada por Antífanes e Aléxis, e a ComédiaNova. Esta começou a prevalecer por volta de 336 a.C.; seus traçoscaracterísticos encontram-se na representação da vida contemporânea pormeio de pessoas imaginárias dela extraídas, no desenvolvimento do enredoe das personagens, na substituição do lance de espírito pelo humor e naintrodução temática do amor romântico. Assemelha-se à tragédia deEurípedes (o Íon, por exemplo) mais do que à comédia de Aristófanes. Docoro, só resta um bando de músicos e dançarinos cujas apresentaçõespontuam os intervalos da peça. A Comédia Nova é de fato um progenitoróbvio do drama moderno. Mas o seu padrão moral é surpreendentementebaixo... Filemon e Menandro foram os principais poetas da Comédia Nova.O primeiro (c. 366-263 a.C.) nasceu em Soloi, na Cilícia, mas veio jovempara Atenas. Algumas de suas peças, das quais nenhuma se preservou,foram utilizadas por Plauto... Menandro (c. 342-292 a.C.) tornou-se o maisfamoso autor da Comédia Nova. Escreveu mais de cem peças. Subsistemapenas fragmentos maiores ou menores desse comediógrafo, somandoperto de 5500 versos de diferentes textos, sendo que somente O discóbolose aproxima da íntegra (The Oxford companion to classical literature e TheOxford companion to the theatre).

François Lissarrague, citado por Georges Minois, ensina que o riso era

deflagrado no teatro grego também como ferramenta de saber crítico e reflexivo, ou

seja, não havia apenas o riso pura e simplesmente pelo riso, uma vez que, entre

outras questões, rir de si mesmo é a maior sabedoria e a maior ciência: [...] O drama

satírico, distante das grandes questões da tragédia, utiliza o riso como instrumento

de conhecimento. [...] (LISSARRAGUE apud MINOIS, 2003, p. 36).

É, por conseguinte, tomando-se o riso cômico e a comédia risível como

recurso cognitivo de reflexão que se tem, no fragmento 668 dos Anos de

Aprendizagem Filosófica (Philosophische Lehrjahre, 1796-1806), de Friedrich

Schlegel, um outro conceito de ironia: o de que esta “é uma parábase permanente” –

“Die Ironie ist eine permanente Parekbase” (apud SOUZA. 2006, p. 36). Tal

postulado baseia-se no engenho e na arte cômicos de Aristófanes, cuja obra

representa o jogo cênico de luta e disputa de dois grupos antagônicos entre si e tem

como princípio estrutural a chamada parábase, que se consuma no coro que entra

em ação, intestinamente no centro do drama, com destaque para o corifeu (que

personificava o escritor), abordando os espectadores ou os adversários do autor. A

parábase, então, parte, reparte e dobra o enredo em dois momentos: no primeiro,

assiste-se ao dueto do duelo e ao duelo do dueto contrapontísticos em que se

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encena o litígio entre ambas as partes; e, no segundo, os desdobramentos cômicos

descontínuos do êxito de um dos lados (SOUZA, 2006, p. 36-7). Ronaldes de Melo e

Souza explicita esse esquema da parábase conforme Mazon o entende:

A estrutura da comédia ática se representa, portanto, no esquemasubsequente: a) prólogo: apresentação dos antagonistas; b) párodo:entrada do coro, que começa imediatamente a torcer por um doscontendores; c) litígio: parte central da comédia; d) parábase: motejo docoro aos espectadores; e) episódios da segunda parte: exposições dosefeitos cômicos do litígio; f) êxodo: comemoração final do vencedor.(MAZON apud SOUZA, 2006, p. 37)

O metateatro cômico de Aristófanes se revela genialmente, sobretudo, na

parábase, que se constitui no momento em que se faz uma pausa no ritmo

dramático para se efetue a interventiva reflexão crítica que questiona o próprio fazer

teatral e o homem, e em que todos, autor, personagens e plateia riem de suas

próprias falhas (SOUZA, 2006, p. 38), numa demonstração de autêntica sabedoria:

A estrutura da comédia aristofânica é, pois, paralelística e contrastiva.Parábase, parekbase, derivado de ekbasis, que é o movimento do coro,designa justamente a moção paralela e contrapontística do coro que sedesvia do curso normal dos eventos representados a fim de refletir sobre osentido do que se representa. (SCHLEGEL, 1958, p. 88)

[...] a grandeza da poesia do verso e da prosa é pendente da intensidadeconstante do movimento parabático. A obra literária é considerada superiorse apresentar um movimento parabático contínuo. Postula-se que aliteratura, além de representar acontecimentos, tem de ser uma formaprivilegiada de conhecimento. O primado artístico da parábase intensifica aforça cognitiva do discurso literário. Uma parábase permanente, eis o idealda obra de arte. [...] (SOUZA, 2006, p. 38)

O riso soa, ressoa, ecoa e reverbera amiúde retumbantemente entre as

divindades olímpicas. São diversos os exemplos extraídos da mitologia acerca do

catártico “riso inextinguível” dos deuses que, na montanha mágica do Olimpo, se

alimentam de néctar e ambrosia.

Sobre o aparecimento cronológico do trágico, do cômico e do tragicômico no

teatro grego, Minois cita dois intérpretes, Jouanna e Carrière:

O teatro grego antigo não hesita em misturar os gêneros: comédias etragédias alternam-se nas grandes competições. Nas leneanas (de lenai, oubacantes, companheiras de Dioniso)[outra das quatro grandes festasdionisíacas celebradas em solo helênico na Antiguidade], a comédiaaparece, pela primeira vez, em 440 a.C., e a tragédia, em 432 a.C. Maisrevelador ainda: certos temas são tratados tanto como comédia quanto soba forma de tragédia, como as leneanas ou as danaides. Tragédia oucomédia humana? Às vezes, basta deslocar o acento para passar de umaa outra. Os gregos antigos sabiam-no muito bem. Foi somente com aintelectualização crescente e a preocupação de classificação que osgêneros se apartaram pouco a pouco. Já para Aristóteles, é estrita a

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separação entre a tragédia, que apresenta os homens como melhores doque são, e a comédia, que exagera seus defeitos. (JOUANNA apudMINOIS, 2003, p. 37-8)

[...] Nas grandes dionisíacas, aparece o concurso de tragédia, em 501 a.C.,e o de comédia, quatro anos mais tarde. Aliás, os autores trágicos tambémpraticam o cômico: além das três tragédias, eles devem apresentar umacurta peça familiar, o drama satírico, que é representado pelos mesmosatores, utiliza a mesma métrica e o mesmo vocabulário, mas desenrola-seem cenário campestre. [...] (CARRIÈRE apud MINOIS, 2003, p. 36)

Sócrates, em A República (395a), de Platão, declara que um poeta que cria

tragédias não pode ou não é capaz de também compor comédias e vice-versa, pois

que isso se configura tarefa complicada para o vate.

Paradoxalmente, o mesmo Sócrates, ao final de O Banquete, de Platão,

coloca a questão de que “o mesmo homem que sabe compor tragédias sabe

também compor comédias, e que aquele que tem a arte do poeta trágico tem

também a do poeta cómico” (PLATÃO, 2001, p. 100, 223, d)

Friedrich Nietzsche, filósofo alemão, coloca a questão da comunhão fraterna

da embriaguez e da caótica dissonância musical dionisíaca e da sobriedade e da

cósmica consonância musical apolínea que plasmam o som e a fúria que é a arte

mito-trágica, ou seria melhor dizer, tragicômica:

[...] A seus dois deuses da arte, Apolo e Dionísio, vincula-se a nossacognição de que no mundo helênico existe uma enorme contraposição,quanto a origens e objetivos, entre a arte do figurador plástico [Bildner], aapolínea, e a arte não figurada [unbildlichen] da música, a de Dionísio:ambos os impulsos, tão diversos, caminham lado a lado, na maioria dasvezes em discórdia aberta e incitando-se mutuamente a produções semprenovas, para perpetuar nelas a luta daquela contraposição sobre a qual apalavra comum “arte” lançava apenas aparentemente a ponte; até que, porfim, através de um miraculoso ato metafísico da “vontade” helênica,apareceram emparelhados um com o outro, e nesse emparelhamento tantoa obra de arte dionisíaca quanto a apolínea geraram a tragédia ática.(NIETZSCHE, 2010, p. 24)

[...] Apolo não podia viver sem Dionísio! O “titânico” e o “bárbaro” eram, nofim de contas, precisamente uma necessidade tal como o apolíneo! [...] Oindivíduo, com todos os seus limites e medidas, afundava aqui no auto-esquecimento do estado dionisíaco e esquecia os preceitos apolíneos. Odesmedido revelava-se como a verdade, a contradição, o deleite nascidodas dores, falava por si desde o coração da natureza. (NIETZSCHE, 2010,p. 38)

Música e mito trágico são de igual maneira expressão da aptidão dionisíacade um povo e inseparáveis uma do outro. Ambos procedem de um domínioartístico situado para além do apolíneo; ambos transfiguram uma região emcujos prazenteiros acordes se perdem encantadoramente tanto adissonância como a imagem terrível do mundo; ambos jogam com oespinho do desprazer, confiando em suas artes mágicas sobremaneirapoderosas; ambos justificam com tal jogo a própria existência do “pior dosmundos”. Aqui o dionisíaco, medido com o apolíneo, se mostra como a

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potência artística eterna e originária que chama à existência em geral omundo todo da aparência: no centro do qual se faz necessária uma novailusão transfiguradora para manter firme em vida o ânimo da individuação.Se pudéssemos imaginar uma encarnação da dissonância – e que outracoisa é o homem? – tal dissonância precisaria, a fim de poder viver, de umailusão magnífica que cobrisse com um véu de beleza a sua própriaessência. Eis o verdadeiro desígnio artístico de Apolo: sob o seu nomereunimos todas aquelas inumeráveis ilusões da bela aparência que, a cadainstante, tornam de algum modo a existência digna de ser vivida e impelema viver o momento seguinte. (NIETZSCHE, 2010, p. 141)

Sendo a ironia uma vez entendida como questionamento (eironeia) e

problematização da realidade por ela torcida, distorcida, dobrada, desdobrada,

enfim, colocada em xeque e parodiada, pode-se encontrar em sua vereda labiríntica

o elemento humorístico. Todavia, torna-se importante atentar para o fato de que nem

sempre a ironia e o humor são presididos pelas instâncias do riso e do cômico

(reportemo-nos à pena da galhofa, de que nos fala Machado de Assis, no romance

Memórias Póstumas de Brás Cubas17), os quais se configuram apenas como um dos

seus extremos. As máscaras que representam e são símbolo do grande teatro do

mundo e da vida nos mostram que o trágico e o cômico se encontram e se

entrelaçam na concruz dos caminhos da existência humana. Na música dionisíaca

da ironia e do humor temos a presença marcante da reflexão, a qual nos leva, por

sua vez, ao que Luigi Pirandello denomina o sentimento do contrário:Ordinariamente–já disse alhures e aqui me é forçoso repetir– a obra de arteé criada pelo livre movimento da vida interior que organiza as ideias e asimagens em uma forma harmoniosa, na qual todos os elementoscorrespondem entre si e à ideia-mãe, que as coordena. A reflexão, durantea concepção, assim como durante a execução da obra de arte, nãopermanece inativa: assiste ao nascer e ao crescer da obra, segue suasfases progressivas e goza com elas, aproxima os vários elementos,coordena-os, compara-os. A consciência não ilumina todo o espírito;notadamente para o artista ela não é um lugar distinto do pensamento, quepermita à vontade atingi-la qual a um tesouro de imagens e de ideias. Aconsciência, em suma, não é uma potência criadora, mas o espelho interiorno qual o pensamento se mira; pode-se dizer, antes, que ela é opensamento que vê a si mesmo, assistindo aquilo que ele fazespontaneamente. E, comumente, no artista, no momento da concepção, areflexão se esconde e permanece, por assim dizer, invisível: é quase, parao artista, uma forma de sentimento. À medida em que a obra se faz, ela acritica, não friamente como faria um juiz desapaixonado, analisando-a, masimprovisadamente, segundo a impressão que dela recebe.[...]Pois bem, nós veremos que, na concepção de toda obra humorística, areflexão não se esconde, não permanece invisível, isto é, não permanecequase uma forma de sentimento, quase um espelho no qual o sentimento semira; mas se lhe põe diante, como um juiz; analisa-o, desligando-se dele;decompõe a sua imagem; desta análise, desta decomposição, porém, surgee emana um outro sentimento: aquele que poderia chamar-se, e que eu de

17 MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Memórias Póstumas de Brás Cubas. São Paulo, SP: AbrilCultural, 1978.

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fato chamo o sentimento do contrário. (PIRANDELLO apud IZOLAN, 2006,p. 31-2)

Luigi Pirandello dá o exemplo de um quadro, com o qual ele se depara, em

que se vê uma velha senhora trajando roupas jovens e caoticamente maquilada. Se

a imagem provoca o riso, é porque se tem a ideia de que o autor tem diante de si o

contrário do que a sociedade considera uma senhora idosa. Esta faceta cômica da

situação em questão é o que Luigi Pirandello chama de advertência do contrário. Por

outro lado, a reflexão pode vir a tomar o lugar da advertência e apontar para o fato

de que por trás do ridículo que é aquela figura, há uma explicação: a senhora em

questão veste-se e se arruma daquela maneira (aparentemente) ridícula na

esperança de não perder seu jovem amante. Eis agora então o humor propriamente

dito, expresso pelo sentimento do contrário, que é este lugar trazido à tona pelo

turbilhão da reflexão. (IZOLAN, 2006, p. 32)

A reflexão é um importante ponto e aspecto do pensamento de

Friedrich Schlegel. E o Romantismo alemão se compraz no casamento que se

efetua entre a imaginação e a reflexão.

É interessante observar como Michel de Montaigne, em um de seus ensaios,

nos propõe essa auspiciosa união:[...] assim como o som, prensado no estreito canal de uma trombeta, saimais agudo e forte, assim se me afigura que o pensamento, constringidopelas regras da poesia, se arremete mais vivamente e me impressiona commaior intensidade (MONTAIGNE, 1987,p. 211).

Para o Romantismo alemão, portanto, não se admite a cisão entre razão ou

pensamento e imaginação nem tampouco o êxodo e o exílio desta. Prova disso são

a filosofia poética de Friedrich Schlegel, as obras de Johann Wolfgang von Goethe,

como A Metamorfose das Plantas18 e a Teoria (ou Doutrina) das Cores19, e, no

século XX, a obra magistralmente imaginativa do pensador francês Gaston

Bachelard, apenas para citar alguns poucos exemplos. Segundo Friedrich Schlegel,

chega-se ao âmago da física se se aprender os segredos da poesia, ou, no original

da ideia de número 99, publicada na revista Athenäum: “Se quiser penetrar no íntimo

da física, inicie-se nos mistérios da poesia” (SCHLEGEL, 1997, p. 157).

Para continuarmos pelo pensamento de Friedrich Schlegel, cumpre assinalar

que o filósofo alemão irá aglutinar a física, a química e a biologia em sua filosofia

18 GOETHE,J.W. A Metamorfose das Plantas.São Paulo, SP: Antroposófica,2005.19 GOETHE,J.W. Doutrina das Cores. Apresentação, seleção e tradução de Marcos Giannotti. SãoPaulo, SP: Nova Alexandria,1993.

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poética ao tratar dos conceitos de entendimento, chiste (a combustão poética) e

gênio: “Entendimento é espírito mecânico, chiste é espírito químico, gênio é espírito

orgânico” (SCHLEGEL, 1997, p. 120).

O chiste, poética reação e combustão química, é como a anedota, de que fala

Guimarães Rosa, ou seja, “riscado, deflagrada, foi-se a serventia”, e, além disso,

"(...) Não é o chiste rasa coisa ordinária; tanto seja porque escancha os planos da

lógica, propondo-nos realidade superior e dimensões para mágicos novos sistemas

de pensamento." (ROSA, 1985, p. 7). Schlegel ainda tece as seguintes

considerações acerca do chiste: “Chiste é espírito social incondicionado, ou

genialidade fragmentária” (SCHLEGEL, 1997, p. 22); “Chiste é sociabilidade lógica”

(SCHLEGEL, 1997, p. 29); “Chiste é uma explosão do espírito estabilizado”

(SCHLEGEL, 1997, p. 34) e “Alguns achados chistosos são como o surpreendente

reencontro de dois pensamentos amigos após uma longa separação” (SCHLEGEL,

1997, p. 53). Ainda sobre o chiste, esta luminosa, radiante e irradiante centelha

fugidia que é deflagrada pela ironia poética, consoante Friedrich Schlegel:

Um achado chistoso é uma desagregação de elementos espirituais, que,portanto, tinham de estar intimamente misturados antes da súbitaseparação. A imaginação tem de estar primeiro provida, até a saturação, detoda espécie de vida, para que possa chegar o tempo de a eletrizar de talmodo pela fricção da livre sociabilidade, que a excitação do mais levecontato amigo ou inimigo possa lhe arrancar faíscas fulgurantes e raiosluminosos, ou choques estridentes. (SCHLEGEL, 1997, p. 24-5)

Sobre a problemática da constituição e estrutura físico-química da ironia

presente e atuante no espírito que urde a filosofia e o pensamento de Friedrich

Schlegel (e bastante operativa no romantismo), é o crítico e teórico literário suíço

Beda Allemann quem reflete:

È poi significativo che Schlegel consideri l’umorismo non solo comeappartenente al vivere sociale logico, ma lo definisca addirittura come unachimica logica, in quanto esso è appunto principio e strumento dela filosofiauniversale. Il carattere “chimico” dell’umorismo viene spesso menzionato.Quale sia la portata di questa metafora, può risultarci chiaro se teniamopresente quanta parte abbiano avuto i fenomeni chimici nel determinare leconcezioni della generazione idealistica del primo romanticismo nel campodella filosofia della natura. Mentre l’odierna ontologia distingue soltanto fraun modo inferiore d’essere, quellodella materia inanimata, ed uno stato adesso superiore, quello della vita (e perciò la chimica viene distinta in chimicaorganica ed inorganica), la filosofia della natura dell’idealismo riconosce aifenomeni chimici una posizione in larga mistura autônoma e vede in essiqualche cosa di intermedio fra la materia inanimata e gli organismi viventi.Hardenberg si baloccava con l’idea che fosse possibile creare con deiprocedimenti chimici degli esseri viventi dalla materia inanimata. Basta checi ricordiamo delle Affinità elettive e della loro simbolistica chimica, percomprendere quale importanza avessero, nella vita imaginativa di

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quell’epoca, i misteriosi processi delle scomposizioni e delle sintesispontanee degli elementi. Goethe si vale della metafora delle attrazioni edelle repulsioni chimiche nel descrivere le relazioni spirituali fra i personaggiprincipali del suo romanzo. [...] Si vede subito con tutta chiarezza anche inquale modo la chimica si riconnetta per Schlegel con la teoria dell’elettricità,e piú precisamente col galvanismo, che stava allora al centro degli interessinel campo della filosofia della natura. [...] (É, pois, significativo que Schlegelconsidere o humor não só como pertencente ao viver social lógico, mas odefine ainda como uma química lógica, uma vez que é precisamente oprincípio e o instrumento da filosofia universal. O caráter “químico” do humoré frequentemente mencionado. Qual é o escopo dessa metáfora, poderesultar claro somente se tivermos em mente quanta parte os fenômenosquímicos tiveram na determinação das concepções da primeira geração doromantismo idealista no campo da filosofia da natureza. Enquanto aontologia de hoje distingue apenas um menor modo de ser, o da vida (e,portanto, a química é dividida em orgânica e inorgânica), a filosofia danatureza do idealismo reconhece nos fenômenos químicos uma posição emgrande parte autônoma e vê neles algo intermediário entre a matériainanimada e os organismos vivos. Hardenberg [Novalis] brincava com aidéia de que era possível criar com os processos químicos dos seres vivos apartir da matéria inanimada. Basta nos lembrarmos das Afinidades eletivase da sua química simbolista, para entender qual a importância que tiveramna vida imaginativa da época, os misteriosos processos de decomposição esíntese espontânea dos elementos. Goethe se vale da metáfora dasatrações e repulsões químicas para descrever as relações espirituais entreos personagens principais do seu romance. [...] Vemos claramente deimediato com oa química também se reconecta com a teoria da eletricidadede Schlegel, e mais precisamente com o galvanismo, que era então o centrode interesse no campo da filosofia da natureza. [...]) (ALLEMANN, 1971, p.61-2 – tradução minha)

Sobre a ironia, seu princípio estrutural, Schlegel sintetiza: “Ironia é a forma do

paradoxo. Paradoxo é tudo aquilo que é ao mesmo tempo bom e grande”.

(SCHLEGEL, 1997, p. 28)

Conforme a nota de rodapé nº 6 que Márcio Suzuki (1998, p. 169) faz no

capítulo VII de seu livro O Gênio Romântico, o “(...) tratamento que Schlegel dá à

questão da ironia está quase todo ele calcado em Cícero”, o estóico, e

“principalmente ciceroniana é a ideia da ‘urbanidade’”, urbanidade a que se

contrapõe Epicuro, à frente da corrente de pensamento que leva o seu nome.

Epicuro é “desprovido dos predicados que formam a ‘urbanidade dos romanos’, a

saber, talento, formação, sagacidade, dignidade e humor”, o que o torna “sem a

faculdade, segundo Aristóteles, de ‘fazer e aceitar uma brincadeira’”. (SUZUKI,

1998, p. 169)

Ao contrário do estóico, Epicuro rejeita a “sociabilidade” e o “convívio da

cidade”, “não tendo a habilidade para a jocosidade e não possui o gosto ou o cheiro

de sua pátria”. “Ter humor é ter o aroma, o perfume, o sabor de sua cidade, e vice-

versa.” Cícero lança mão do verbo saber, que, etimologicamente, tem origem

comum com o substantivo sabor: sapere e sapor. Trata-se, pois, de um saber

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privilegiado nesse sentido, uma vez que essa “sabedoria tem de transpirar ares de

civilidade”, de onde se conclui que Epicuro não é sábio nesse sentido, não tem esse

referido saber, não sabe, e, enfim, “não tem jeito para ironia”. (SUZUKI, 1998, p.

170)

Desenvolve-se, desenrola-se e desdobra-se, a partir desse pensamento, a ideia

que identifica a urbanidade, a interação interpessoal citadina dos romanos e o

caráter comportamental desse povo com o nariz, o que é “claro do ponto de vista do

latim”: resipiens patriam – o cheiro da pátria. (SUZUKI, 1998, p. 170)

É pelo nasus que se fareja e distingue o cidadão polido do homem comum.Essa acepção da palavra latina nasus ocorre com bastante frequência, esão muitos os exemplos clássicos em que o nariz aparece com o sentidoconotativo de “esperteza”, “finura” ou “zombaria”. (SUZUKI, 1998, p. 170)

A partir de todo o exposto acima, descortina-se o seguinte fragmento de

Friedrich Schlegel sobre chiste, ironia e nariz entre os cidadãos romanos: “Os

romanos sabiam que o chiste é uma faculdade profética: chamavam-na de nariz.”

(SCHLEGEL, 1997, p. 41)

Além disso, a reflexão é, para os românticos, paradoxalmente infinita,

constituindo-se esta refração, tanto para Friedrich Schlegel quanto para Novalis na

porção benigna do pensamento, uma vez que por meio dela nos é mostrada a

“harmonia palindrômica dos contrários” (IZOLAN, 2006, p. 48).

Consoante Friedrich Schlegel, a gênese da reflexão só é possível se houver

um “pensar do pensar” (IZOLAN, 2006, p. 49), ou seja, se ocorrer o “conhece-te a ti

mesmo” do pensamento, quando este se defronta e se confronta com sua própria

imagem refletida no espelho, tal como Hamlet no filme homônimo de Kenneth

Branagh20. Uma vez que no princípio era o verbo, a esta gênese da reflexão

presidida por essa ação e movimentação especular, de espelho refletindo-se

refletindo, vem à luz também o conceito de Schlegel de espírito: “O sentido que vê a

si mesmo torna-se espírito” (SCHLEGEL, 1997, p. 112). E mais: “Letra é espírito

fixado [fixirter Geist]. Ler significa libertar o espírito estabilizado [gebundnen Geist],

portanto uma ação mágica”, é o que Schlegel assevera (apud SUZUKI, 1997, p.

203). Ou ainda sobre o jogo reflexivo entre letra e espírito, sobre a poesia romântica

no seu consórcio com a filosofia e a ciência e sobre a educação do espírito ofertada

pela leitura da obra de arte:

20 SHAKESPEARE, William; BRANAGH, Kenneth. Hamlet. Elenco: Kenneth Branagh, Julie Christie etal. Castle Rock Entertainment/Columbia Tristar Home Video: 1996.

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A poesia romântica é uma poesia universal progressiva. Sua destinação nãoé apenas reunificar todos os gêneros separados da poesia e pôr a poesiaem contato com filosofia e retórica. Quer e também deve ora mesclar, orafundir poesia e prosa, genialidade e crítica, poesia-de-arte e poesia-de-natureza, tornar viva e sociável a poesia, e poéticas a vida e a sociedade,poetizar o chiste, preencher e saturar as formas da arte com toda espéciede sólida matéria para cultivo, e as animar pelas pulsações do humor.Abrange tudo o que seja póetico, desde o sistema supremo da arte, que porsua vez contém em si muitos sistemas, até o suspiro, o beijo que a criançapoetizante exala em canção sem artifício. [...] Somente ela pode se tornar,como a epopeia, um espelho de todo o mundo circundante, uma imagem daépoca. E, no entanto, é também a que mais pode oscilar, livre de todointeresse real e ideal, no meio entre o exposto e aquele que expõe, nasasas da reflexão poética, sempre de novo potenciando e multiplicando essareflexão, como numa série infinita de espelhos. [...] A poesia romântica é,entre as artes, aquilo que o chiste é para a filosofia, e sociedade,relacionamento, amizade e amor são na vida. [...] O gênero poéticoromântico ainda está em devir; sua verdadeira essência é mesmo a de quesó pode vir a ser, jamais ser de maneira perfeita e acabada. [...](SCHLEGEL, 1997, p. 64-5)

Ainda sobre este assunto nos declara Schlegel que “Nos antigos se vê a letra

perfeita e acabada de toda a poesia; nos modernos se pressente o espírito em devir”

(SCHLEGEL, 1997, p. 34) e que “Toda arte deve se tornar ciência e toda ciência,

arte; poesia e filosofia devem ser unificadas” (SCHLEGEL, 1997, p. 38).

Reconhecendo que a filosofia ainda caminhasse “demasiadamente em linha

reta” e não fosse ainda “suficientemente cíclica”, Schlegel (1997, p. 53), nos propõe

uma filosofia e um pensamento novos, revigorados. Chamando a atenção para o

fato que, diferentemente de muitas obras dos antigos, as quais se tornaram

fragmentos, grande parte das obras dos modernos “já o são ao surgir” (SCHLEGEL,

1997, p. 51), o filósofo do Romantismo alemão ressalta que “Subjetivamente

considerada, a filosofia sempre começa no meio, como o poema épico”

(SCHLEGEL, 1997, p. 60).

A filosofia de Schlegel, por conseguinte, possui as seguintes características:

fragmentária, cíclica, assistemática e poética, as quais se ligam e se complementam

devido ao fato de serem regidas pela imaginação racional e pela razão imaginativa,

conforme nos esclarecem Benjamin (2002), Izolan (2006) e Suzuki (1998):

[...] para Fichte a consciência tem de ser intuída como reflexão que leva aoEu absoluto; para Schlegel, a consciência é o estar-aí ou a presença doparadoxo, um “sistema” de pensamento em que a lógica da reflexão deprimeiro grau não tem prioridade, apenas o pensar do pensar (do pensar)como desdobramento da consciência do eu pensante sobre o eu pensado enovamente sobre si mesmo. Assim nasce a filosofia cíclica de Schlegel,sistematicamente assistemática, fragmentária: a filosofia não é fim, é meio,o médium-de-reflexão. Filosofar é um ato mediativo, começa pelo meio, nãohavendo síntese (sem fim), apenas o embate dos contrários que deixam deser contraditórios e se tornam complementares. (IZOLAN, 2006, p. 49-50)

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Na base da filosofia deve repousar não só uma prova alternante, mastambém um conceito alternante. Pode-se a cada conceito e a cada provaperguntar novamente por um conceito e sua prova. Daí a filosofia ter decomeçar, como a poesia épica, pelo meio, e é impossível recitá-la e contarparte por parte de modo que a primeira parte fique completamentefundamentada e clara para si. Ela é um todo, e o caminho para conhecê-lanão é, portanto, uma linha reta, mas um círculo. O todo da ciênciafundamental deve ser derivado de duas idéias, proposições, conceitos [...],sem recurso a outra matéria. (BENJAMIN, 2002, p. 49)

O caráter alternante do conceito em filosofia é a afirmação da contingênciados modelos metafísicos tradicionais. O fragmento é a expressão maisacabada do filosofar crítico, pois traz implícito à sua incompletude, acompletude; à sua finitude, o infinito. Sua leitura é espiralada, labiríntica,não obedece a um modelo previamente determinado – uma espécie decosmogonia caótica. Imitar e repetir não fazem parte das possibilidades dofragmento, que se engendra e re-engendra na busca do impossível, arealização do absoluto que, justamente por sua impossibilidade, preconiza aprópria finitude do ideal num idealismo categoricamente liberal,reflexivamente inconsciente, que idealiza o real na medida daspossibilidades geniais do poeta que realiza o ideal. A sintaxe do fragmentoobedece a esse ritmo alternante entre o mostrar e o esconder. O sentidonão está completamente exposto no fragmento, mas está ali (Darstellen),pedindo para ser revelado pelo leitor crítico. A totalidade do todo não estátoda apresentada – mesmo porque a forma fragmentária já marca aimpossibilidade da totalidade total ou do uno único unificante da tradiçãometafísica – mas está implícita na parcialidade da parte, criando-se o círculohermenêutico da filosofia crítica. O expor do Darstellung do fragmentonunca se esquece do Dasein. Expor é revelar no fragmentário aspossibilidades engendrativas do que não foi dito; o verdadeiro não seapresenta no início nem no fim, mas bem no meio do caminho. A exposiçãodo sentido entre-dito é a revelação do inédito e do inaudito. Nesse processoo ponto de descontinuidade, o nível propriamente transcendental, é aimaginação criadora, a liberdade do espírito, a singularidade do universal naformação orgânica do individual (Bildung). [...] (IZOLAN, 2006, p. 50-1)

[...] o fragmento é a revelação do paradoxo entre o espírito e a letra, entre atotalidade do todo e a parcialidade da parte, transfigurada na totalidadeparcial da parte que reverbera o todo (círculo hermenêutico). [...] (IZOLAN,2006, p. 52)

Fichtizar [verbo criado por Friedrich Schlegel] e romantizar [verbo propostopor Novalis] revelam a vocação construtiva e imaginativa do espíritotranscendental do romantismo, a reunião do espírito e da sensibilidade, darazão e da emoção, do ideal e do real, da filosofia e da vida. Significampotencializar a imaginação criadora ao último grau da razão formativa. Nãohá criação sem liberdade, mas a liberdade implica a criação de uma novaordem ou razão. Criação implica reflexão: tornar sensível o espírito eespiritualizar o sensível. (IZOLAN, 2006, p. 52)

Algumas considerações sobre os contrários no pensamento de Schlegel: “O

princípio da alternância ou determinação recíproca dos contrários é o princípio

originário da filosofia cíclica dos fragmentos” (IZOLAN, 2006, p. 51) e “A alternância

de se já fazer a complementaridade dos contrários que a tradição filosófica desuniu”

(IZOLAN, 2006, p. 51).

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Sobre o dinamismo do círculo cíclico, da circularidade, eis o fragmento 103 de

Heráclito: “Princípio e fim se reúnem na circunferência do círculo” (HERÁCLITO,

2005, p. 87).

Sobre a sinfilosofia, Suzuki (1998) e Izolan (2006) esclarecem:

Conjunto orgânico das faculdades da mente em Kant, genialidade duplicadae potenciada em Fichte: com os românticos, o gênio será interpretado tantonuma leitura mais kantiana como “sistema de talentos”, quanto noutra maisfichtiana, como “plural interior”. A partir de agora, a filosofia poderá passar ase chamar sinfilosofia. (SUZUKI, 1998, p. 98)

[...] outro aspecto importante do filosofar cíclico dos fragmentos: asinfilosofia ou a filosofia em simpósio entre os vários autores e espíritoscriativos do romantismo alemão, filosofia que culmina na coletânea Pólen,publicada em 1798 na revista Athenäum (de August Wilhelm e FriedrichSchlegel). Essa coletânea apresenta os fragmentos de Friedrich VonHardenberg/Novalis sobre os fragmentos de Friedrich Schlegel. (IZOLAN,2006, p. 52)

Sobre o caráter fragmentário do pensar e do pensar do modus operandi de

Schlegel, Márcio Suzuki, em “A gênese do fragmento”, texto em que o crítico

brasileiro apresenta ao livro de Schlegel O Dialeto dos Fragmentos que ele traduz e

comenta, chama a atenção ao que diz o filósofo alemão em “carta ao irmão, datada

de 17 de dezembro de 1797”: “De mim, todo meu eu, não posso absolutamente dar

outro échantillon [amostra] que um tal sistema de fragmentos, porque eu mesmo sou

um?” (SUZUKI, 1997, p. 11).

Schlegel diz que o homem nada mais é que fragmento, ou conforme Márcio

Suzuki transcreve, “é como que uma parte, um pedaço (Stück), fração, fratura ou

fragmento (Bruckstück) de si mesmo, que se destaca do todo, mas ao mesmo tempo

o pressupõe e quer retornar à unidade do ‘proto-eu’ (Ur-Ich)” (SCHLEGEL apud

SUZUKI, 1997, p. 16):

Se ao refletir não nos podemos negar que tudo está em nós, então nãopodemos explicar o sentimento de limitação que nos acompanhaconstantemente na vida senão quando admitimos que somos somente umpedaço de nós mesmos(SCHLEGEL apud SUZUKI, 1997, p. 16).

Em trecho do fragmento 259 do Athenäum, Schlegel diz que o fragmento é “a

verdadeira forma da filosofia universal” (SCHLEGEL, 1997, p. 94).

Em Friedrich Schlegel temos uma razão/pensamento que imagina e uma

imaginação que raciocina/pensa e também o axioma e o aforismo de acordo com o

qual a filosofia não é um sistema que se ensina, mas um filosofar que se aprende.

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Assim se descortina, no palco do teatro da Lebensphilosophie (filosofia da

vida), tão cara a Schlegel, e condição sine qua non, ou seja, necessária, para a

bildung (formação) do indivíduo, o relacionamento interpessoal em sociedade, a

amizade e a arte por meio dos quais se tem contato com a vida e com o mundo.

Com relação à união e concórdia dos opostos, remonta mesmo à musical

harmonia das esferas de Pitágoras, baseada na configuração, composição e

disposição sideral e espacial dos astros, satélites e estrelas no sistema solar – que

é, ao fim e ao cabo, uma numérica e geométrica arquitextura, com seus circulares

movimentos de rotação e translação – e que “preside a toda uma concepção de

mundo” (BRUN, 2002, p. 35), pois “como princípio que concilia os princípios

contrários de qualquer ser, a harmonia é a proporção que une, em qualquer domínio,

os elementos em discórdia” (BRUN, 2002, p. 34).

Segundo Alexandre da Etólia, citado por Jean Brun, “as setes esferas dão os

setes sons da lira e produzem uma harmonia (isto é, uma oitava) por causa dos

intervalos que os separam dois a dois” (BRUN, 2002, p. 36). A seguir, o discípulo de

Pitágoras, Tião de Esmirna, também citado por Jean Brun, explica algo mais sobre a

teoria da harmonia das esferas de seu mestre, no que segue comentário de Jean

Brun acerca deste mesmo tema:

Segundo a doutrina de Pitágoras, sendo o mundo ordenadoharmoniosamente, os corpos celestes, que estão distanciados dois a doissegundo as proporções dos sons consoantes, produzem, pelo seumovimento e pela velocidade da sua revolução, os sons harmônicoscorrespondentes. (TIÃO de ESMIRNA apud BRUN, p. 227). O mundo écomo uma lira de sete cordas. Deste modo, para os Pitagóricos, a escala éum problema cósmico e a astronomia uma teoria da música celeste. (BRUN,2002, p. 36)

Por meio da ironia imaginativa e da imaginação irônica é que Euclides da

Cunha plasma, em Os Sertões21, a figura do Hércules quasímodo, que reúne

paradoxalmente em si o sublime herói mitológico e o grotesco corcunda do romance

de Victor Hugo.

A ironia é, pois, a harmonia dos contrários, já que a corda tangida por ela

possui, por exemplo, em uma ponta, a vida e, na outra, a morte. A ironia fica então

no meio do caminho entre uma antípoda e outra e nos mostra que a vida não

subsiste senão porque a morte existe.

21 CUNHA, Euclides da.Os Sertões. São Paulo, SP: Editora Três, 1973. (Obras imortais da nossaliteratura)

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O pensamento fragmentário, poético e irônico de Schlegel e de outros

românticos irá preparar o terreno para a filosofia ensaística de outro alemão, Walter

Benjamin...

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2. A IRONIA DA HISTÓRIA E DA MEMÓRIA NO PENSAMENTO ENSAÍSTICO DEWALTER BENJAMIN E ADORNO

Este capítulo tem por objetivo expor o pensamento de Walter Benjamin sobre

o ensaio como forma, e também seus conceitos de história, ruína alegórica,

experiência e vivência, associando suas importantes e capitais considerações às

contribuições complementares de Theodor Adorno e Antonio Jardim.

A história, no pensamento do filósofo alemão Walter Benjamin, herdeiro do

pensamento romântico de seu país, exatamente por ser irônica em sua urdidura, não

se quer lógica, linear, contínua, progressiva.

Antonio Jardim, na linha de Benjamin, chama atenção para o fato de que a

história recusa dois elementos, que a modernidade, por ilusão ou ingenuidade, pode

considerar imprescindíveis. São eles, a saber, a historiografia e o historiador, os

quais surgiram em momento determinado, juntamente com a criação do alfabeto

grafado. A história tem seus imemoriais inícios muito antes deles (JARDIM, 2005, p.

101), pois

[...] Ela é com o homem, desde que este se constituía como suporteprivilegiado de sua própria memória. A constituição de um suporte externo édecisiva para o surgimento da historiografia e do historiador. A história,portanto, não surge com a escrita, como nos foi um dia ensinado, e como é,em geral, até aqui aceito. A história surge com o homem. Desse modo, nãopodemos entender a história senão com as peripécias e vicissitudes dohomem no mundo, Sendo, no mundo, o homem é histórico. Suahistoricidade não depende diretamente dos suportes e dos meios de registrodessa historicidade. Historicidade e suporte, cada um tem seus própriosmecanismos, seus próprios pressupostos, seus próprios modos deencaminhamento (JARDIM, 2005, p. 101-2).

Ainda segundo Antonio Jardim, verifica-se, na mentalidade do homem culto

ocidental, a necessidade de se sujeitar a história à esfera historiográfica e aos

“suportes” que esta perpetra com o objetivo de solidificar memória, “por via da

medida, da identidade e da representação” (JARDIM, 2005, p. 102).

Destarte, atesta-se a existência de uma engrenagem na qual há o “real” é

substituído pela vigência de sua “representação” e o “acontecimento” é preterido em

favor da “narrativa”, o que engendra, ao fim e ao cabo, a transformação da “história”

em “artefato”, em algo apoiado e sustentado por um “suporte”, o que lhe subtrai e lhe

arrebata a sua essencial “concretude” (JARDIM, 2005, p. 102).

A escrita passa a ser o suporte que disponibiliza a determinação de um

princípio que mensura com base na “analogia”, a determinação que reconhece com

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base na “análise” e a determinação que representa sob a vigência e soberania da

“ideia” (JARDIM, 2005, p. 102).

A história submetida à mensuração por meio da analogia numérica, que

passa a representá-la, tem a sua “densidade” subtraída, pois, ao invés “de fazer

viger a concretude das quantidades”, passa a ser tomada a partir da “medida da sua

temporalidade”, sendo subjugada a uma ordenada “temporalidade sucessiva e

linear” (JARDIM, 2005, p. 102).

Por meio da identidade analítica, isto é, a possibilidade de identificar aspartes como componentes provisórias de um todo e fazer crer que o todo éconstituído pela soma dessas partes, a história é condicionada a produziridentidades abstratas, capazes de converter por comparação à semelhança,como se estas identidades fossem a constituição de sua própria concretude.Desse modo, a história perde o seu compromisso essencial com a suaunidade originária e se vê repartida em épocas e estilos que se sucedem deforma pretensamente evolutiva. A sua concretude se vê iludida pela malhade identificações abstratas e estas se tornam objetos privilegiados dasinvestigações históricas (JARDIM, 2005, p. 102).

A coleta de narrativas delimitadas por meio da escrita estabelece a realidade,

cujo dinamismo é acessado de forma privilegiada por meio da formação da

conceituação genérica que se confunde com o idealismo representativo, o que faz

com que a história seja tomada pela historiografia e deixe de se comprometer

essencialmente “com a dinâmica originária da verdade, convertendo esta em

verossimilhança”, fato este que possibilita “uma modalidade específica de

especialista – o historiador”, o qual, “no início, é aquele que sabe por ter vivido

(ouvido e visto), para logo depois se converter naquele que sabe por ter lido”

(JARDIM, 2005, p. 102-3).

Antonio Jardim tece mais algumas considerações a respeito da história e da

historiografia:

[...] A história não é, pois, apenas o passado, tenha este efeito ou não sobreo presente, nem tampouco pode ser concebida como o passado entendidocomo proveniência. Não pode ser ainda apenas o legado desse passado.[...] As narrativas do passado, uma vez convertidas em historiografia,acabaram se tornando o fundamento não só para o entendimento do que éo presente, mas também acabaram por se converter no fundamento para oque será o futuro. A escrita acabou de um modo ou de outro por aprisionar ohistórico [...] (JARDIM, 2005, p. 103).

Sobre o passado e a busca do que ficou para trás no passado, diz Antonio

Jardim:

Sabemos que certas culturas como, por exemplo, a das populaçõesandinas, descendentes dos antigos incas, gestualizam, ainda hoje, o

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passado apontando para frente e futuro apontando para trás, porque opassado é o que já teria sido visto, o que estaria, portanto, diante, e o futuroé por ver, o que estaria atrás, isto é, o que os olhos nunca poderiam ver,fosse qual fosse a posição que se assumisse no espaço. Na CulturaOcidental, ao contrário, se acreditou e ainda se acredita que é possível sevoltar para trás e, em assim fazendo, se erradicar a presença do mistérioinerente ao que há de vir. Mas, na realidade, o movimento entendido comoum voltar-se para trás não passa de um simulacro. Vemos o passado nãoporque somos capazes de nos voltar para trás, mas porque na verdade, eleé que está à nossa frente. Nunca poderemos nos voltar para trás. Éimpossível. O que ficou para trás permanecerá atrás. Se acreditamos quenão é assim, é porque nos referenciamos ônticamente nas coisas, e é,apenas e tão-somente, por meio destas que cremos poder fazer viger omovimento como se nós pudéssemos integralmente controla-lo. Há, noentanto, na vigência do que está atrás, a vigência de algo que não podemosiludir – o mistério, o risco, o que ainda não sabemos, numa dinâmica deaconteceres, isto é, existir desde a sua própria possibilidade de sermovimento, de acontecer (JARDIM, 2005, p. 104).

Sobre a história ser vista como uma reta, uma linha, “ligação entre um sem

começo e um sem-fim”, Antonio Jardim diz que isso é “a compreensão que o senso

comum tem tido de história” e ele explica que neste tipo de entendimento “a história

fica sendo como alguma coisa um tanto desprovida de corporeidade, porque essa

compreensão não compreende que a história tenha densidade” e, sendo assim, a

linearidade e progressividade com que se entende o que seja a história “não admite

a simultaneidade” (JARDIM, 2005, p. 105).

Antonio Jardim prossegue, explicando o conceito de contemporaneidade e

seu dinamismo, uma vez que a história é movimento puro:

Como explicar, na contemporaneidade, a vigência de tantas obras dopassado? Apelar para o conservadorismo dos intérpretes e do público seriasimplista e bisonho. Naturalmente se passado persiste se constitui econstitui presente é porque o desafio se mantém no presente. Setentássemos configurar uma contemporaneidade apenas com o que é feitohoje não conseguiríamos. Seria o mesmo que tentássemos abolir amemória. Da contemporaneidade participa o presente e o que do passadoinsiste por vigor. A história é precisamente a vigência dessa dinâmica. Alémdo mais, contemporaneidade não diz somente do que é feito, do que serealiza numa mesma temporalidade. Contemporaneidade diz do quejuntamente participa de uma temporalidade (JARDIM, 2005, p. 106).

Essa definição de contemporaneidade dada por ele não é privilégio apenas de

nossa temporalidade atual, mas pode viger em qualquer outra que já tenha ocorrido,

pois, na continuação, ele explica que

[...] em outros momentos da história, alguns homens foram semprecontemporâneos de outros. Algumas obras sempre foram contemporâneasde outras. Se é verdade que não somos contemporâneos de músicos comoBach, Mozart, Beethoven, não é menos verdade que suas obras são tãocontemporâneas nossas quanto as de Stockhausen, Boulez, Berio, Guerra-Peixe, Villa-Lobos etc. Uma grande obra é potencialmente sempre

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contemporânea, isto é, é capaz de concorrer para o movimento da históriaqualquer que seja. A história é precisamente a contemporaneidade vigendocomo e com os acontecimentos memoráveis. Nesse sentido ela não sedistingue de qualquer outra época histórica, na medida em que, emqualquer época a pretensão do ser humano é constituir e constituir-se comomemorável (JARDIM, 2005, p. 106).

Walter Benjamin começa a tecer sua tese contra o historicismo e sobre o seu

conceito de história ao conceber algumas ideias a respeito da linguagem, onde se

vislumbra “a possibilidade de se constituir, sobre algo de natureza tão fugaz, a

evanescente experiência [...]” (MURICY, 2009, p. 85) que, de acordo com o

pensador alemão, também se caracteriza por ser efêmera e fragmentada e é aque

ocorre no mundo real em que habitamos.

Ao refletir sobre a linguagem, Walter Benjamin irá construir desconstruindo

alguns conceitos dentro da esfera da linguagem nos quais se destacará a verdadeira

re-conquista do paraíso, de um Éden perdido, começando pelo nome, que se

configura em uma

[...] dimensão em que as palavras libertam-se da vicissitude da significaçãoe reencontram o seu frescor paradisíaco: “na origem dessa atitude não estáPlatão, e sim Adão, pai dos homens e pai da filosofia”. (MURICY, 2009, p.132)

O nome é algo que é dado, que é possível a partir do pensamento, que é

definido e caracterizado como: “(...) ‘recomeço perpétuo’. Em seu ‘ritmo intermitente’

ele elabora novas combinações das mesmas eternas ideias.” (MURICY, 2009, p.

132)

Nessa senda da linguagem, há a questão da conversa, “a linguagem em seu

aspecto mais corriqueiro e diluído” e que evoca “em seus silêncios, o passado

arcaico de onde vem todo o sentido do que se diz.” (MURICY, 2009, p. 86). Uma

conversa, como nos explica Muricy, “(...) é sempre evocação de passado, uma

imersão da memória, um reconhecimento.” (2009, p. 87)

Inscreve-se, no âmbito da conversa, a diferença apontada por Walter

Benjamin entre o masculino e o feminino. Enquanto aquele, em um diálogo entre

dois homens, por exemplo, caracteriza-se pelo debate e embate violento, tenso e

incisivo das palavras, esta, enquanto mulher, revela-se como uma guardiã e

sacerdotisa de um passado cuja dimensão do sagrado se perdeu em um mundo

comandado pelo primado hegemônico da lógica, passado este evocado e atualizado

pelo silêncio, que é inerente ao comportamento da mulher. O passado sagrado aqui

tratado é aquele pertencente à grandiosidade de um paraíso perdido cuja linguagem

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é uma poderosa potência e instância criadora, tal como se lê no mito do Gênese

bíblico. Pode ser também a infância, quando as palavras levam à consecução do

real concreto. O silêncio cose em sua trama o sentido, ao passo que a fala tece em

sua rede o silêncio. O falante/emissor, por meio da compreensão que adquire do

silêncio e a partir do silêncio do ouvinte/receptor, tem clara percepção do que ele

próprio exprime (MURICY, 2009, p. 87-8). Nas palavras de Muricy (2009, p. 88): “A

fala é como a pitonisa que não entende o sentido do que diz, por isso o falante

precisa, na conversa, entender o silêncio de quem escuta para poder entender o que

ele próprio diz.”

Aproximando-se o verbo francês entendre – ouvir – e o verbo português

entender, percebemos como as línguas brincam e jogam com esses conceitos na

esfera da linguagem.

A linguagem é que circunscreve o homem e é o mundo onde este, nela

inscrito e circunscrito, habita, não o oposto.

A palavra invoca e evoca a presença daquilo que nomeia.

Na conversação, silêncio e fala, passado e presente entrelaçam-se de modo a

criar uma temporalidade que não é contínua, mas fragmentada.

A possibilidade de uma escrita da conversa, que, como tal, não se prende a

nenhuma forma (ó) e/ou forma (ô) formal, formalizada e (pre)formatada,

preconcebida ou a priori, que a possa escravizar, se configura

[...] na escrita de diários – a tentativa malograda de vencer, no relatosucessivo do cotidiano, a vacuidade do tempo, e a vitória na construção deum eu que, nos intervalos inevitáveis que quebram a sua escrita, cria umnovo tempo descontínuo e submetido ao seu controle. (MURICY, 2009, p.86)

Walter Benjamin refuta a ideia, a exemplo de Friedrich Schlegel, de um

sistema filosófico bem como declina do convite de enxergar a linguagem a partir de

uma perspectiva pragmática, utilitária, instrumentalista, mediática. Elege o ensaio,

gênero literário cuja invenção e criação se deve ao escritor francês Michel de

Montaigne (1987), quando da composição de seus Ensaios, como a escrita filosófica

por excelência:

[...] Considerar [...] que a forma de exposição do pensamento é o texto, aescrita filosófica, é ir contra a tradição metafísica de privilégio do logos etambém, rompendo com a prioridade logocêntrica, é recuperar, para afilosofia, a tradição judaica de valoração da escrita. (MURICY, 2009, p. 140)

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Além disso, ele revela, em carta ao historiador, teólogo e filólogo judeu-

alemão Gerhard Scholem, a origem epistolar do ensaio: “O ensaio é um exercício

[...] da escrita, uma tentativa de capturar nas palavras a experiência do tempo que

passa”, como sintetiza Muricy (2009, p. 85)

O ensaio, nascido na modernidade, é considerado herdeiro da tradição

medieval escolástica do tratado, que traz em si conceitos e ideias teológicos caros à

filosofia, uma vez que aqueles tornam a filosofia fecunda para que esta possa

engendrar os frutos da verdade:

No prefácio do livro sobre o Trauerspiel [A Origem do Drama TrágicoBarroco Alemão], Benjamin refere-se ao tratado, um gênero filosófico datradição escolástica, cuja forma moderna é o ensaio, como a forma filosóficapor excelência. Esta preocupação em determinar a boa forma filosófica estárelacionada à compreensão da filosofia como apresentação da verdade, namaterialidade da linguagem. O tratado escolástico ocupa-se, escreverá noprefácio, com os “objetos da teologia sem os quais a verdade éimpensável”. Como é habitual em seu pensamento, Benjamin faz umdeslocamento do sentido mais estrito do termo teológico. Para o ensaio de1916 e para a sua teoria da linguagem, estes objetos sagrados, sem osquais a filosofia fracassa na sua tarefa de apresentar a verdade, são objetosda linguagem, o elemento das ideias. Um mesmo deslocamento em relaçãoà forma medieval do tratado: o que lhe interessa é ser o tratado a forma quemelhor se evidencia como sendo fundamentalmente um experimento com alinguagem – um ensaio.(MURICY, 2009, p. 102)

O pensamento de Walter Benjamin, que concebe a escrita do tratado e do

ensaio como forma de apresentação (Darstellung) e exposição do pensamento

filosófico a partir da escrita, vai de encontro ao sistema de didatismo matemático que

visa à exatidão por meio da demonstração. A matematização more geometrico

confuta a apresentação da verdade (Wahrheit) leva à artificialização do universo e

deixa o pensamento sem o fundamento, o chão e a dimensão da linguagem, sem a

qual a filosofia não é possível e a qual circunscreve a filosofia. Tanto Walter

Benjamin quanto Hans-Georg Gadamer (2008) concordam que o ser da verdade da

obra de arte e da filosofia não é passível de ser enredado aprioristicamente nas

malhas da sistematização absolutista do logocentrismo. Muricy esclarece sobre a

escolha de Walter Benjamin no que diz respeito à forma da escrita filosófica do

pensador alemão:

[...] Benjamin recorre a uma forma antiquada de escrita filosófica – o tratado– como alternativaao sistema. A escolha da exposição sistemática ou doensaio não é opção do pensador, mas determina-se pela imanente, poraquele “ritmo” do pensamento. O recurso à forma escolástica faz umareferência direta à teologia, importante para perspectiva que o Prefácio querabrir para alargamento dos impasses que Benjamin encontra na filosofia apartir de sua adoção de um conceito de experiência restrito ao modelo

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científico, legado por Kant. O tratado alude, segundo ele, “aos objetos dateologia sem os quais a verdade é impensável”, àquelas dimensões daexperiência descartadas [pelo racionalismo, pelo Iluminismo, peloEsclarecimento e] pela crítica kantiana: a religião, a linguagem, a história. Otratado não tem a “validade obrigatória de um ensino” como a doutrina, cujalegitimidade decorre – como nos pensadores da Antiguidade – de suaautoridade. Tampouco tem a validade da demonstração matemática. Otratado- cuja forma moderna é o ensaio – está voltado mais para a formação(Bildung) do que para o ensino. O seu único recurso didático é a citaçãoautorizada, recurso que, muito utilizado no livro sobre o barroco [A Origemdo Drama Trágico Barroco Alemão], irá ganhar a sua teoria própria naescrita de Benjamin. O método do tratado é a apresentação (Darstellung)que é “caminho direto”, “desvio”. O tratado, como “método de desvio”, é aforma de ser da contemplação, onde a verdade é obtida pela “justaposiçãode elementos heterogêneos e isolados”. É no horizonte dessaspreocupações que, muito próximo de Lukács, no ensaio de 1910, Anatureza e a forma do ensaio, Benjamin propõe o tratado ou o ensaio(termos equivalentes no Prefácio) como forma adequada à filosofia.(MURICY, 2009, p. 142)

O uso da citação nos Ensaios de Michel de Montaigne – que influencia Walter

Benjamin no que tange a essa utilização – se faz e se perfaz irônico, além de ter

sido criticado por Port-Royal e por Blaise Pascal, por ir de encontro aos

pressupostos de uma doutrina calcada e fundamentada no edifício lógico e

metodológico da ciência abstratamente sistemática e/ou de cunho matemático e se

caracterizar pela não submissão às regras metodológicas – ao negar, entre outras

normas, o eu pensante, cartesiano, consistente e lógico – e por figurar fora da esfera

teológica do tratado pertencente à tradição escolástica da Idade Média. Nas

palavras de Muricy (2009, p. 24-25):

[...] em Montaigne, a citação decide uma escrita cujo alcance filosóficoprecisou ser negado para se instaurasse a razão clássica e o primado dosujeitona filosofia. A escrita do Ensaios quer dar conta da experiência deperda de si como fundante da reflexão filosófica: “Parece que eu, a cadaminuto, me escapo...”. Seguindo a pista falsa que Montaigne dá ao leitor eque a sua escrita não para de ironizar – a de que pretende pintar noEnsaios o seu próprio eu, Pascal considera o projeto uma tolice e o livro umemaranhado confuso de citações, sem um método correto. A citação fazparte em Montaigne desta diluição do eu: “As histórias que tomoemprestadas, eu as tributo à consciência daqueles de quem eu as tomei”.Faz parte desta experiência filosófica que o leva a dizer que quer “pintar nãoo ser, mas a passagem.”

Walter Benjamin lança mão do ensaio, que é a escrita desclassificada pela

normatizadora e normatizante lógica clássica da modernidade, para ironizar e

problematizar de forma transgressora o sistema filosófico, ao instaurar, a exemplo de

Friedrich Schlegel, uma nova província do escrever e do pensar filosóficos. Benjamin

não adota um sistema, mas constrói desconstruindo e desconstrói construindo essa

província assistemática do pensar e escrever filosófico ao subverter o uso das

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citações, desautorizando a autoria e quebrando o ritmo da argumentação, tornando

o pensar-escrever descontínuo e negando sua linearidade ao arrebatar as citações

ao seu berço esplêndido e transplantá-las em um contexto totalmente outro e novo e

que lhes dão sentido e significado igualmente outros e novos, tudo isso para que,

nessa senda geográfica e propositalmente acidentada, venha o leitor a prender-se à

escrita,

[...] a ficar atento à forma de apresentação das ideias, sobressaltado que otexto lhe arranque mesmo as suas: “Citações em meu trabalho são comosalteadores no caminho, que irrompem armados e roubam ao passante asua convicção” (BENJAMIN apud MURICY, 2009, p. 25-6).

O filósofo alemão Theodor Adorno (2012) nos diz o seguinte a respeito do

contraditório, metamórfico e paradoxal gênero do ensaio como forma que, na

Alemanha, enfrenta o preconceito por parte dos acadêmicos mas que foi defendida

por parte da intelligentsia germânica, representada, como citou o próprio Adorno, por

Simmel, o jovem Lukács, Kassner e Benjamin:

[...] Nos processos do pensamento, a dúvida quanto ao direito incondicionaldo método foi levantada quase tão-somente pelo ensaio. Este leva em contaa consciência da não-identidade, mesmo sem expressá-la; é radical no não-radicalismo, ao se abster de qualquer redução a um princípio e ao acentuar,em seu caráter fragmentário, o parcial diante do total. “O grande Sieur deMontaigne talvez tenha sentido algo semelhante quando deu a seus escritoso admiravelmente belo e adequado título de Essais. Pois a modéstiasimples dessa palavra é uma altiva cortesia. O ensaísta suas próprias eorgulhosas esperanças, que tantas vezes o fizeram crer estar próximo dealgo definitivo: afinal, ele nada tem a oferecer além de explicações depoemas dos outros ou, na melhor das hipóteses, de suas próprias ideias.Mas ele se conforma ironicamente a essa pequenez, à eterna pequenez damais profunda obra do pensamento diante da vida, e ainda a sublinha comsua irônica modéstia.” O ensaio não segue as regras do jogo da ciência eda teoria organizadas, segundo as quais, como diz a formulação deSpinoza, a ordem das coisas seria o mesmo que a ordem das ideias. Comoa ordem dos conceitos, uma ordem sem lacunas, não equivale ao queexiste, o ensaio não almeja uma construção fechada, dedutiva ou indutiva.Ele se revolta sobretudo contra a doutrina, arraigada desde Platão, segundoa qual o mutável e o efêmero não seriam dignos da filosofia; revolta-secontra essa antiga injustiça cometida contra o transitório, pela qual este énovamente condenado no conceito. O ensaio recua, assustado, diante daviolência do dogma, que atribui dignidade ontológica ao resultado daabstração, ao conceito invariável no tempo, por oposição ao individual nelesubsumido. [...] (ADORNO, 2012, p. 25)

Poucas linhas à frente, Adorno trata da relação do ensaio com a verdade e a

história:

[...] o ensaio não se deixa intimidar pelo depravado pensamento profundo,que contrapõe verdade e história como opostos irreconciliáveis. Se averdade tem, de fato, um núcleo temporal, então o conteúdo histórico torna-se, em sua plenitude, um momento igual dessa verdade; o a posteriori

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torna-se concretamente um a priori, e não apenas genericamente, comoFichte e seus seguidores o exigiam. A relação com a experiência – e oensaio confere à experiência tanta substância quanto a teoria tradicional àsmeras categorias – é uma relação com toda a história; a experiênciameramente individual, que a consciência toma como ponto de partida porsua proximidade, é ela mesma já mediada pela experiência maisabrangente da humanidade histórica; é um mero auto-engano da sociedadee da ideologia individualistas conceber a experiência da humanidadehistórica como sendo mediada, enquanto o imediato, por sua vez, seria aexperiência própria a cada um. O ensaio desafia, por isso, a noção de que ohistoricamente produzido deve ser menosprezado como objeto da teoria.[...] (ADORNO, 2012, p. 26)

Sobre o caráter fragmentário do ensaio e sobre como este lida com o

transitório e o eterno, Adorno diz:

[...] A objeção corrente contra ele [o ensaio], de que seria fragmentário econtingente, postula por si mesma a totalidade como algo dado, e com issoa identidade entre sujeito e objeto, agindo como se o todo estivesse a seudispor. O ensaio, porém, não quer procurar o eterno no transitório, nemdestilá-lo a partir deste, mas sim eternizar o transitório. A sua fraquezatestemunha a própria não-identidade, que ele deve expressar; testemunha oexcesso de intenção sobre a coisa e, com isso, aquela utopia bloqueadapela divisão do mundo entre o eterno e o transitório. No ensaio enfático, opensamento se desembaraça da ideia tradicional de verdade. (ADORNO,2012, p. 27)

Sobre o caráter assistemático do ensaio:

[...] O ensaio [...] incorpora o impulso antissistemático em seu próprio modode proceder, introduzindo sem cerimônias e “imediatamente” os conceitos,tal como eles se apresentam. Estes só se tornam mais precisos por meiodas relações que engendram entre si. Pois é mera superstição da ciênciapropedêutica pensar os conceitos como intrinsecamente indeterminados,como algo que precisa de definição para ser determinado. (ADORNO, 2012,p. 28-9)

Sobre a relação do ensaio com o pretenso estatuto da exatidão, Adorno

afirma que “[...] o ensaio não apenas negligencia a certeza indubitável, como

também renuncia ao ideal dessa certeza. Torna-se verdadeiro pela marcha de seu

pensamento, que o leva para além de si mesmo [...]” (ADORNO, 2012, p. 30).

Ainda sobre a arquitetura e dinâmica do ensaio, Adorno também declara que

No ensaio, elementos discretamente separados entre si são reunidos emum todo legível; ele não constroi nenhum andaime ou estrutura. Mas,enquanto configuração, os elementos se cristalizam por seu movimento.Essa configuração é um campo de forças, assim como cada formação doespírito, sob o olhar do ensaio, deve se transformar em um campo deforças.(ADORNO, 2012, p. 31)

Todavia, ao mesmo tempo em que o ensaio é dinâmico, ele é também,

contraditoriamente, estático. Isso se explica pelo fato de que

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[...]o ensaio é mais dinâmico do que o pensamento tradicional, por causa datensão entre a exposição e o exposto. Mas, ao mesmo tempo, ele também émais estático, por ser uma construção baseada na justaposição deelementos. É somente nisso que reside a sua afinidade com a imagem,embora esse caráter estático seja,ele mesmo, fruto de relações de tensãoaté certo ponto imobilizadas (ADORNO, 2012, p. 44).

Sobre o complexo e dobradiço caráter paradoxal e concorrentemente aberto e

fechado do ensaio, eis a lição de Adorno:

O ensaio é, ao mesmo tempo, mais aberto e mais fechado do que agradariaao pensamento tradicional. Mais aberto na medida em que, por suadisposição, ele nega qualquer sistemática, satisfazendo a si mesmo quantomais rigorosamente sustenta essa negação; os resíduos sistemáticos nosensaios, como por exemplo a infiltração, nos estudos literários, defilosofemas já acabados e de uso disseminado, que deveriam conferirrespeitabilidade aos textos, valem tão pouco quanto as trivialidadespsicológicas. Mas o ensaio é também mais fechado, porque trabalhaenfaticamente na forma da exposição. A consciência da não-identidadeentre o modo de exposição e a coisa impõe à exposição um esforço semlimites. Apenas nisso o ensaio é semelhante à arte; no resto, elenecessariamente se aproxima da teoria, em razão dos conceitos que neleaparecem, trazendo de fora não só seus significados, mas também seusreferenciais teóricos (ADORNO, 2012, p. 37).

O ensaio é, pois, esta província do escrever que problematiza e questiona

ironicamente tudo de que trata e todo o percurso e percalço do pensamento

tradicional ocidental com sua pretensa verdade erigida em um pretenso sistema

pretensamente fechado em si mesmo.

Contemplação [Kontemplation] é o termo antiquado e abandonado de que

Walter Benjamin se vale para chamar a filosofia, além de ser uma claraalusão à

doutrina platônica acerca das ideias, e concorrentemente remete à valorização à

visibilidade, à concretude e ao imagético, o que, ipso facto, ou seja,

consequentemente, é uma crítica a Platão.

Por sua justaposição descontínua, fragmentária, dispersa e heterogênea, na

apresentação da verdade, a contemplação, como Walter Benjamin nomeia a

filosofia, é por ele comparada ao mosaico:

Tanto o mosaico como a contemplação justapõem elementos isolados eheterogêneos, e nada manifesta com mais força o impacto transcendente,quer da imagem sagrada, quer da verdade. O valor desses fragmentos depensamento é tanto maior quanto menor sua relação imediata com aconcepção básica que lhes corresponde e o brilho da apresentaçãodepende desse valor da mesma forma que o brilho do mosaico depende daqualidade do esmalte. A relação entre o trabalho microscópico e a grandezado todo plástico e intelectual demonstra que o conteúdo da verdade(Wahrheitsgehalt) só pode ser captado pela mais exata das imersões nospormenores do conteúdo material (Sachgehalt). (BENJAMIN apud MURICY,2009, p. 143)

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Sobre o eterno retorno do mesmo que se torna novo por meio do pensamento

e sobre a contemplação, Muricy (2009, p. 140) assinala ser esta “intermitência do

ritmo” o movimento próprio do pensar: “Incansável, o pensamento começa sempre

de novo, e volta sempre minuciosamente às próprias coisas. Esse fôlego infatigável

é a mais autêntica forma de ser da contemplação”.

As questões acerca da interpretação, da crítica e do comentário também

tomam parte importante no pensamento de Walter Benjamin. Sobre a crítica e o

comentário, percebe-se que, à medida que, em termos cronológicos e de história, a

obra de arte torna-se cada vez mais distante de seu âmbito de origem, seu

significado – o conteúdo de verdade (Wahrheitsgehalt) – pode ser melhor percebido

pela atividade interpretativa da crítica, ao mesmo tempo em que seu conteúdo

material (Sachgehalt) fica mais patente na obra que dura e se eterniza. O enigmático

aparecimento temporal da obra é descerrado a partir da inauguração da

historicidade própria da obra e tanto a crítica quanto o comentário são responsáveis

por este fenômeno (MURICY, 2009, p. 144). São palavras de Muricy sobre o

comentário e a crítica no pensamento de Benjamin:

Tanto mais o tempo passa, mais a exegese do que na obra surpreende edesorienta, isto é, o conteúdo material, torna-se, para qualquer crítico tardio,uma condição prévia. Pode-se compará-lo ao paleógrafo diante de umpergaminho cujo texto quase apagado está recoberto pelos traços de umaescrita mais visível que se relaciona a ele. Assim como o paleógrafo sópode a começar por ler este último escrito, o crítico também só podecomeçar pelo comentário.(MURICY, 2009, p. 144)

Comparando-se a obra que permanece a uma fogueira, o comentador estádiante dela como o químico, o crítico como o alquimista. Enquanto que paraaquele, madeiras e cinzas são os únicos objetos de sua análise, para este,só a flama é um enigma, o da vida. Assim o crítico se interroga sobre averdade, cuja flama viva continua a queimar sobre as lenhas do passado ea cinza leve da vida. (MURICY, 2009, p. 145)

A a-historicidade das obras de arte é comparada àquela da filosofia, pois

ambas são arrancadas de seu “contexto histórico original” e a sua proposta é a

interpretação:

Nisto as obras de arte são análogas aos sistemas filosóficos, o que sechama de “história da filosofia” sendo ou bem uma história de dogmas ou defilósofos, desprovida de interesse, ou então a história de problemas namedida em que esta ameaça, a todo momento, perder contato com ocontexto histórico e voltar-se à interpretação intemporal, intensiva. Ahistoricidade específica das obras de arte é também deste tipo, que não sedescobre em uma “história da arte”, mas somente em uma interpretação.(MURICY, 2009, p. 149-50)

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Walter Benjamin (apud MURICY, 2009, p. 149) contesta a tese de uma

história da arte, uma vez que nada há que conecte as obras de arte entre si de modo

extensivo, e sua inserção em uma história cronológica e em uma cronologia

histórica, ambas historicistas, não descortina nenhum horizonte em que se possa

vislumbrar sua profundidade. De acordo com Walter Benjamin:

Uma interpretação, na verdade, faz jorrar conexões que são a-temporais,sem serem por isso desprovidas de importância histórica. As mesmas“potências” que no universo da revelação (isto é, da história) se fazemtemporais sob um modo explosivo e extensivo, surgem no universo domistério (é o da natureza e das obras de arte) sob o modo intensivo (...) asideias são estrelas no oposto do sol da revelação. Elas não brilham nopleno dia da história, elas não agem aí senão de maneira invisível. Elas sóbrilham na noite da natureza. Donde as obras de arte se definem comomodelos de uma natureza que não espera nenhum dia, logo que não esperatampouco o dia do julgamento, como os modelos de uma natureza que nãoé a cena da história, nem o lugar onde reside o homem. A noite salva.(MURICY, 2009, p. 150-51)

Agora, retomamos a ideia de nome e palavra, seu caráter adâmico e sua

funçãocriadora e divina, desemboca-se na ideia de rememoração:

[...] A tarefa da filosofia seria a de apresentar essa dimensão simbólica ou,mais exatamente, restaurar, sob a opacidade dos conteúdos significativosda linguagem decaída, a expressividade transparente da palavra adâmica.Menos que resgatar a linguagem primitiva do paraíso, trata-se, para afilosofia, de restaurar, na linguagem decaída das significações, a“percepção original das palavras” (das urprüngliche Vernehmen der Worte)que evoca a harmonia paradisíaca destas com as coisas. Esta tarefa ésemelhante à reminiscência platônica: trata-se de uma rememoração(Erinnerung), na linguagem, dessa percepção original das palavras.(MURICY, 2009, p. 156-7)

[...] A rememoração é infinita, constantemente oscilando em uma dialéticaentre o sensível e o inteligível, ou seja, entre a apresentação da imagem edo que dela se furta, de uma visibilidade e de uma não-visibilidade, do quepode ser expresso e do inexprimível. O que esta rememoração visa, em suaoscilação dialética entre os extremos, é restaurar a linguagem do nome. Éno nome que a ideia revela o seu caráter imagético: o nome é o ser daideia, o ser da verdade. A rememoração não pretende recuperar umaimagem visual, mas a dimensão imagética da palavra, o poder do nome [...](MURICY, 2009, p. 157)

Em seus estudos sobre o Barroco, onde elabora sua teoria e análise sobre

este tema e, a partir deste, sobre a alegoria, Walter Benjamin (apud MURICY, 2009)

irá definir e caracterizar o Barroco diferenciando-o do classicismo, em que este é

apolíneo e unilateral, ao passo que aquele é dionisíaco e paradoxal:

[...] A “bela existência”, não-contraditória, integral, é a “apoteose clássica”. Aesta se opõe a apresentação de uma interioridade quebrada, contraditória,excêntrica: “a apoteose barroca é dialética”, dotada de um “movimento entreos extremos” [...] (BENJAMIN, apud MURICY, 2009, p. 174)

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O barroco é, na bela expressão de Benjamin, uma “ostentaçãoconstrutivista”. A estética das ruínas, do fragmento é uma estética daconstrução, uma atividade combinatória que quer se exibir como tal. Asruínas, os fragmentos, são a matéria nobre para a criação barroca. [...](BENJAMIN, apud MURICY, 2009, p. 183)

A vereda do pensamento de Walter Benjamin ainda contém, para a

formulação de sua tese sobre a história, a partir das ideias do filólogo e arqueólogo

alemão Georg Friedrich Creuzer e do escritor alemão Johann Joseph Von Görres, a

abordagem dos conceitos e da diferença entre os extremos e os paradoxos do

símbolo e da alegoria, explicitamente em seu livro sobre o drama barroco. O símbolo

é visto como imagem, imagético, contínuo, momentâneo e orgânico, e é na escultura

que se vislumbra sua essência, enquanto a alegoria, associada ao hieroglifo, ao

ideograma, é relacionada com a (caótica escrita de uma justaposição descontínua)

sequência e progressão de momentos, de instantes, cuja essência é comunicada na

epopeia.

Para Georg Friedrich Creuzer (1819), citado por Benjamin (1984, p. 186-7

apud MURICY, 2009, p. 178), “[...] O símbolo”

“é a ideia em sua forma sensível, corpórea. No caso da alegoria há umprocesso de substituição (...). No caso do símbolo, o conceito baixa nomundo físico, e pode ser visto, na imagem, em si mesmo, e de formaimediata”.

Segundo Johann Joseph Von Görres, citado por Creuzer (1819), por sua vez,

citado por Benjamin (1984, p. 187 apud MURICY, 2009, p. 178), “[...] o símbolo

seria”

“signo de ideias” – autárquico, compacto, sempre igual a si mesmo. Aalegoria seria “como uma cópia dessas ideias – em constante progressão,acompanhando o fluxo do tempo, dramaticamente móvel, torrencial.Símbolo e alegoria estão entre si como o grande, forte e silencioso mundonatural das montanhas e das plantas está para a história humana, viva e emcontínuo desenvolvimento”.

É na contradição entre as duas visões supracitadas sobre o símbolo, o fugaz

de Creuzer e o estável de Görres, que Benjamin encontra o que denomina “a

verdadeira solução” (MURICY, 2009, p. 178-9):

A relação entre o símbolo e a alegoria pode ser compreendida, de formapersuasiva e esquemática, à luz da decisiva categoria de tempo, que essespensadores da época romântica tiveram o mérito de introduzir na esfera dasemiótica. Ao passo que no símbolo, com a transfiguração do declínio, orosto metamorfoseado da natureza se revela fugazmente à luz da salvação,a alegoria mostra ao observador a facies hippocratica da história comoprotopaisagem petrificada. A história em tudo o que nela desde o início éprematuro, sofrido e malogrado, se exprime num rosto – não, numa caveira.

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E porque não existe nela nenhuma liberdade simbólica de expressão,nenhuma harmonia clássica da forma, em suma, nada de humano, essafigura, de todas a mais sujeita à natureza, exprime não somente aexistência humana em geral, mas, de modo altamente expressivo e sob aforma de um enigma, a história biográfica de um indivíduo. Nisso consiste ocerne da visão alegórica: a exposição barroca, mundana, da história comohistória mundial do sofrimento, significativa apenas nos episódios dedeclínio. (BENJAMIN apud MURICY, 2009, p. 179)

Benjamin irá relacionar essa visão da história com o mito, articulandoproporcionalmente a significação à morte: “Quanto maior a significação,tanto maior à sujeição à morte, porque é a morte que grava a tortuosa linhade demarcação entre a physis e a significação. Mas se a natureza desdesempre esteve sujeita à morte, desde sempre ela foi alegórica”. O domínioda alegoria conjuga paradoxalmente a natureza e a história. (BENJAMINapud MURICY, 2009, p. 179)

É no resgate e na recuperação dos pormenores ignorados pelo mundo

marcadamente dessacralizado da modernidade e na valorização de conceitos

míticos, místicos, sagrados, espirituais e teológicos, os quais são entrelaçados às

suas noções de linguagem, silêncio, palavra, nome, ideia, pormenor, rememoração,

símbolo e alegoria, caracterizando-os e impregnando-os, que Walter Benjamin vai

desenvolvendo a sua tese de história descontínua e fragmentada. Ele também lança

mão da crítica em sua filosofia e em seu pensamento, crítica esta que se revela

como uma alternativa que tem a intenção de salvar algo que foi negligenciado pela

tradição crítica hegemônica, a saber: o drama barroco alemão do século XVII, o qual

não foi incorporado ao cânone literário.

A escrita visual do Barroco e seu processo de fragmentação à luz do sentido

e da interpretação tem, à guisa de exemplificação, a seguinte imagem evocada por

Walter Benjamin:

[...] quando em Marianne, de Calderón [Calderón de la Barca, escritorbarroco espanhol], a personagem encontra os fragmentos de uma cartarasgada, cujo conteúdo talvez lhe seja fatal e, estendendo-os sobre a relva,tenta reconstituir-lhe o sentido – e, claro, encontra muitos.(MURICY, 2009,p. 190)

Sobre a força da imagem como concretude na escrita visual, Muricy (2009, p.

190) esclarece que “A importância da escrita visual é tanta que foi no barroco que se

introduziu o uso das maiúsculas na ortografia alemã.” (2009, p. 190)

Walter Benjamin também veio a trabalhar com dois conceitos igualmente

fundamentais em seu trabalho, que foram os de vivência (Erlebnis) e experiência

(Erfahrung), os quais se contrapõem um ao outro, o que nos leva à conclusão de

que o passado não pode ser entendido em seu caráter puramente estático nem deve

ser copiado fidedignamente, como uma fotografia estática exatamente igual ao que

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realmente era, como era o pretenso objetivo dos pretensos realismo e naturalismo

literários, pretensamente ancorado nas pretensas ciências biológicas e

historiográficas:

[...] Nas análises dos anos 30 que vêem a modernidade como umaexperiência infernal de tempo, como repetição sob a aparência do novo,Benjamin irá formular a noção de vivência (Erlebnis) para designar apercepção que o indivíduo moderno tem de si e de sua época – uma épocaesvaziada de significações compartilháveis – em oposição à noção deexperiência (Erfahrung) que remete, então, à percepção, ancorada natradição e perdida na modernidade, da riqueza significativa, utópica, dotempo e da história, a que o trabalho crítico precisa resgatar para devolverao presente a experiência verdadeira do novo [...] (MURICY, 2009, p. 47)

A experiência decai na era da modernidade, enquanto a vivência é nela

amplificada, consoante a lição de Walter Benjamin:

A experiência (Erfahrung) [cuja queda assiste-se na modernidade] érelacionada à memória individual e coletiva, ao inconsciente e à tradição. Avivência (Erlebnis) [que é potencializada cada vez mais desde o advento damodernidade] relaciona-se à existência privada, à solidão, à percepçãoconstante.(MURICY, 2009, p. 198)

Destarte, tem-se o macro-universo, o universal, o coletivo e o geral da

experiência em um extremo e o micro-universo, o particular, o individual e o privado

da vivência em outro pólo.

À guisa de conclusão, temos o conceito irônico, trágico e tragicômico de

história de Walter Benjamin22, uma vez que a história é trágica em sua cerzidura de

texturas sombrias, sendo composta e tecida de caos, cacos, fragmentos, pedaços,

estilhaços, ruínas, catástrofes, rupturas, cortes, choques, contas de vidro, enfim,

tudo que a caracteriza como descontínua e fragmentária, tal como um mosaico ou

um vitral de uma igreja gótica ou ainda como corações partidos ou quebrados.

A história aqui não é a já feita, pronta e acabada de uma vez e para sempre

acontecida, ela é tão inacabada quanto uma sinfonia inacabada, como é o caso da

Sinfonia nº 8 em Si menor, D. 759, a Sinfonia Inacabada, do compositor alemão

Franz Schubert23.

A história é vista e considerada concomitantemente como desconstrução e

construção constantes. É um jogo sem fim regido por essa aporia.

22 BENJAMIN, Walter. Origem do drama trágico alemão. Tradução e apresentação de JoãoBarrento. Lisboa, Portugal: Assírio & Alvim, 2004. (Obras escolhidas)23 SCHUBERT, Franz: CD Symphonies Nos. 8 "Unfinished" & 9 "The Great" (Sinfonias nº 8,“Inacabada”, & 9, “A Grande”). New York Philharmonic Orchestra. Regente: Leonard Bernstein.Sony Classical: 2000.

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Seus fragmentos podem ser resgatados, como em uma verdadeira epifania,

por meio da escrita visual alegórica e da rememoração, ambos presentes na

composição do ensaio, que foi eleito por ele a escrita filosófica em sua primazia.

Essa epifania se dá como o luminoso clarão de um relâmpago ou como o

sagrado e o passado que jorram do cálice sagrado, o Graal, ou do cântaro de

aquário, na noite escura e tenebrosa da galeria de sonhos da história que encerra

seus fragmentos, como em um quadro barroco que utiliza a técnica do claro-escuro,

neste pictórico mundo de luz e sombras, de gritos e sussurros.

Seus instantes são tão fugidios e fugazes quanto uma fuga do compositor

barroco alemão Johann Sebastian Bach, que compôs fugas para órgão – com

destaque para a fuga da Tocata e Fuga em Ré Menor BWV 56524 – e para cravo –

com destaque para as fugas presentes nos 48 prelúdios e fugas que compõem sua

obra O Cravo Bem Temperado BWV 846-89325.

A música fúnebre da história, trágica em sua urdidura, é também tão cíclica e

fragmentária quanto o Bolero do compositor francês Maurice Ravel26ou uma peça de

Claude Debussy27 ou a obra do compositor norte-americano Philip Glass28.

Na trágica, frenética e noturna música que acompanha a rodopiante dança

macabra das cinzas das horas, os fragmentos são levados pelo tempo e pelo vento,

que pode vir a se tornar um redemoinho ou mesmo um furacão como no filme O

Mágico de Oz, de 1939, dirigido por Victor Fleming29 a partir do livro infantil de L.

Frank Baum, assim como as folhas caídas são levadas pelo vento outonal. O tempo

e o vento.

24 LP BACH, Johann Sebastian: Tocata e Fuga em Ré Menor, BWV 565. Órgão: Walter Kraft.Coleção Mestres da Música. São Paulo, SP: Abril Cultural, 1980.25 CD BACH, Johann Sebastian: Das WohltemperierteKlavier (O Cravo Bem Temperado). 2 vol.Cravo: Gustav Leonhardt. Coleção EditioClassica. Deutschland: Selo Deutsche Harmonia Mundi,1992; 1989.26 LP RAVEL, Maurice: Bolero. Orchestre de Paris. Regente: Daniel Barenboim. Rio de Janeiro:Deutsche Grammophon-PolyGram, 1982.27 CD DEBUSSY, Claude: Images/Prélude à L’Après-Midi d’un Faune/Printemps. The ClevelandOrchestra.Regente: Pierre Boulez. France: Selo Deutsche Grammophon, 1993.CD DEBUSSY, Claude: La Mer/Nocturnes/Jeux/RhapsodiepourClarinette et Orchestre. TheCleveland Orchestra.Regente: Pierre Boulez. France: Selo Deutsche Grammophon, 1995.28 CD PHILIP GLASS: trilha-sonora do filme Naqoyaqatsi. Sony Music, 2002.CD PHILIP GLASS: trilha-sonora do filme Powaqqatsi. Nonesuch, 1990.CD PHILIP GLASS: trilha-sonora do filme Koyaanisqatsi. Orange Mountain Music, 2009.CD PHILIP GLASS: Glassworks. Sony Music, 1990.CD PHILIP GLASS: Symphonies 2 & 3. Bournemouth Symphony Orchestra.Naxos, 2004.29 DVD FLEMING, Victor. O Mágico de Oz. Estados Unidos. Elenco: Judy Garland, Frank Morgan,Ray Bolger, Bert Lahr, Jack Haley, Billy Burke, Margaret Hamilton, Charley Grapewin et al. Warner,2009.

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Com a palavra, Heráclito, em seu fragmento 52: “O tempo é uma criança,

criando, jogando o jogo de pedras; vigência da criança”. (HERÁCLITO, 2005, p. 73).

Na recriação de Haroldo de Campos: “vidatempo:/um jogo de/criança/(reinando/o

Infante/Infância)” (CAMPOS, 1985, p. 65)

Eis o fragmento de Anaximandro:

De onde pro-vêm as realizações, re-tornam também as des-realizações:pois, de acordo com o vigor da con-signação, elas con-cedem umas àsoutras articulação e, com isto, também con-sideração pela des-articulação,de acordo com o estatuto do tempo (ANAXIMANDRO, 2005, p. 39).

A partir da tese sobre a história de Walter Benjamin deriva o conceito de ruína

alegórica que caracteriza a história e a obra de arte que é a-temporal e a-histórica.

No mundo e na natureza deste mundo tudo tende ao perecimento e à morte.

História, passado, pensamento, rememoração, obra de arte, ensaio, escrita, citação,

raça humana, tudo é, ao fim e ao cabo, ruína alegórica. O mundo como uma caveira

– “a caveira do mundo”, como assinala o escritor barroco português Antonio Vieira,

em seu primeiro sermão de quarta-feira de cinzas – o mundo como o crânio de

Yorick, o bobo da corte em Hamlet (1995), de William Shakespeare30.

Convém assinalarmos aqui o paralelismo entre o segundo sermão de quarta-

feira de cinzas de Antonio Vieira e o texto de O Desespero Humano do filósofo

dinamarquês Soren Kierkegaard31, no tocante à passagem do bíblico capítulo XI do

evangelho de João, sobre a ressurreição de Lázaro por Cristo.

Eis algumas palavras de Vieira:

[...] A morte é um termo que se não pode passar da parte dalém, mas pode-se antecipar da parte aquém. Não tem remédio depois, porque depois deuma morte não há outra morte; mas tem remédio antes, porque antes deuma morte pode haver outra. Por lei e por estatuto, hei-de morrer uma vez,mas na minha mão e na minha eleição está morrer duas; e este é oremédio. [...] Se o podia sarar [a Lázaro], porque o deixou morrer, e não fezo que podia? Não fez Cristo neste caso o que podia, porque nos quisensinar com este caso a fazer o que podemos. Quis-nos ensinar Cristo amorrer duas vezes. [...] Deixou Cristo morrer a Lázaro, e não o quis sararenfermo, senão ressuscitar morto, para que à vista deste exemplar(morrendo Lázaro agora, e tornando a morrer depois) aprendessem esoubessem os homens, que nascendo uma só vez, podem morrer duas [...]Oh divino documento do Divino Mestre: Nascer uma vez, e morrer duasvezes! (VIEIRA, 1959, p. 198-9)

Vieira prossegue, no seu magistério irônico da morte, nos seguintes termos:

30 SHAKESPEARE, William: Hamlet. Trad. Anna Amélia Carneiro de Mendonça. Rio de Janeiro, RJ:Editora Nova Fronteira, 1995.31 KIERKEGAARD, Soren. O desespero humano. 3.ed. São Paulo, SP: Nova Cultural, 1988.(Ospensadores)

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[...] Deus que nos fez para a eternidade e não para o tempo, para averdade, e não para a vaidade, deixou o nascer à natureza, e o morrer àeleição. No nascer, em que todos somos iguais, não pode haver erro, e porisso basta nascer uma vez; no morrer, em que o erro ou acerto importatudo, e há-de durar para sempre, era justo que o homem pudesse morrerduas vezes, para eleger a morte que mais quisesse, e para aprender,morrendo, a saber morrer. [...] Reparo é digno de toda a admiração, quesendo tantas as meditações da morte, e tantos os despertadores destedesengano, sejam tão poucos os que sabem morrer. [...] Cristo nos ensinouem Lázaro a morrer duas vezes: uma vez para que aprendêssemos, outrapara que soubéssemos morrer. (VIEIRA, 1959, p. 199-200)

Kierkegaard mostra o seguinte em O Desespero Humano:

Esta enfermidade não é para a morte (João 11,4) e contudo Lázaro morreu;mas como os discípulos não compreendessem a continuação: Lázaro, onosso amigo, dorme, mas eu vou acordá-lo do seu sono, Cristo disse-lhessem ambiguidade: Lázaro está morto (11,14). Lázaro, portanto, está morto,e contudo a sua doença não era mortal, mas o fato é que está morto, semque tenha estado mortalmente doente. (KIERKEGAARD, 1988, p. 191)

A primeira morte, então, trata de aprendizado, nos ensina a morrer e nos

torna aprendizes, enquanto a segunda cuida que já saibamos dos meandros da

morte. Verdadeiras leçons de ténèbres – lições de trevas.

Na paisagem desoladoramente barroca da história, eis que surge o anjo da

história, o Angelus Novus do pintor e poeta suíço naturalizado alemão Paul Klee:

[...] com olhos escancarados, boca dilatada e asas abertas, encarando algofixamente, é a imagem da história, [...] um anjo de rosto voltado para opassado, mas arrastado inexoravelmente para o futuro. Ele quer deter-se,mas é impelido pela tempestade do progresso sempre para diante, e assimé arrancado de sua tenebrosa visão (MURICY, 2009, p. 10).

Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofeúnica, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa anossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar osfragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suasasas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade oimpele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto oamontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o quechamamos progresso (BENJAMIN apud MURICY, 2009, p. 10).

O anjo da história é uma metamorfose, um outro do corcundinha da infância

em Berlim de Walter Benjamin, o qual aparece e manda lembranças às crianças que

se descuidam com algum objeto precioso. Faz-se necessário aqui abrir um

parêntese para esclarecer que a melancolia em Walter Benjamin é irônica – no

sentido do Romantismo alemão – como tudo o mais em seu pensamento, não se

referindo à ideia que o senso comum tem de melancolia – como algo fundado sobre

o pessimismo, a desilusão e a exaustão – é, antes, um conceito fundado sobre o

pensar crítico e poético da imaginação racional e da razão imaginativa, o estatuto do

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calculável e do calculado. Este anjo é um anjo vingador que nos dirige o olhar, para

que, prestativos e solícitos, resgatemos os cacos da história.Semelhantemente ao

Cavaleiro Vingador32 do filmede Philippe de Brocca, que se finge e se disfarça de

corcunda.

Montaigne, Vieira, Kierkegaard, Schlegel, Benjamin, juntos, os cinco, entre

outros autores, claro, preparam o terreno para a nossa exegese da obra de

Machado de Assis, sendo que os quatro primeiros, entre outros mestres, preparam o

terreno para a sua obra e de outros escritores, pensadores, escritores-pensadores e

pensadores-escritores...

32 VHS BROCA, Philippe de. O Cavaleiro Vingador (Le Bossu / On Guard). Elenco: Vincent Perez,Daniel Auteuil, Fabrice Luchini, Marie Gillain, Yan Collette, Philippe Noiret et al. TF 1 International.São Paulo, SP: PlayArte Home Video, 1997.

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3. MEMORIAL DE AIRES: A NAU IRÔNICA DA MEMÓRIA, DA HISTÓRIA, DAMÚSICA E DA ÓPERA

“A vida é uma ópera e uma grande ópera”, já dizia Machado de Assis em seu

romance Dom Casmurro (1978). Há muitas alusões à ópera na obra de Machado de

Assis e podemos tomar como exemplo as obras Memórias Póstumas de Brás Cubas

(1978) e Ressurreição (1975). Entretanto, Memorial de Aires (1977), o último livro

deste grande nome e mestre da literatura, supera todos os títulos anteriores quando

o assunto é a ópera, constituindo-se brilhantemente na maior peça de Machado de

Assis.

Memorial de Aires (1977) é a obra derradeira de Machado de Assis assim

como A Tempestade33 (1999) o é no que tange a William Shakespeare. O

conselheiro Marcondes Aires, que já havia se apresentado em romance anterior do

escritor, Esaú e Jacó (1977), é narrador e personagem que levita sobre si mesmo,

se fizermos uma associação entre seu nome Aires – de ar – e sua personalidade e

estilo narrativo, assim como em A Tempestade (1999), temos o personagem Ariel,

que é um espírito do ar, uma espécie de mensageiro. Na última peça de William

Shakespeare, Próspero diz que vai lançar seu livro ao mar, ou seja, ao elemento

água, enquanto que em Machado de Assis, Aires diz que jogará suas memórias ao

fogo, elemento oposto àquele.

Ludwig van Beethoven, Richard Wagner e Giuseppe Verdi são os

compositores explicitamente presentes nesta fascinante obra-prima de Machado de

Assis. As obras, respectivamente, Fidélio34, Tristão e Isolda35, e Ernani36, acima de

tudo as duas primeiras, co-participam do princípio estruturante de Memorial de Aires

(1977). Sobre a ópera Borba e Graça esclarecem o seguinte:

33 SHAKESPEARE, William. A Tempestade. Trad. Barbara Heliodora. Rio de Janeiro, RJ: LacerdaEditores, 1999.34 BEETHOVEN, Ludwig van. DVD Fidelio – elenco: Lucia Popp, Gundula Janowitz, René Kollo et al.Coro e Orquestra da Ópera de Viena – regente: Leonard Bernstein – ano da gravação original: 1978 -ano de lançamento do DVD: 2007 - selo Deutsche Grammophon – Berlin, Germany. Bibliografia sobrea ópera: COELHO, Lauro Machado: A Ópera Alemã. São Paulo, SP: Editora Perspectiva, 2000, p.135-142. (Coleção História da Ópera)35 WAGNER, Richard. DVD Tristan und Isolde – elenco: Johanna Meier, Rene Kollo, Matti Salminenet al. Coro e Orquestra do Festival de Bayreuth – regente: Daniel Barenboim – ano da gravaçãooriginal: 1981 - ano de lançamento do DVD: 2007 - selo Deutsche Grammophon – Berlin, Germany.Bibliografia sobre a ópera: COELHO, Lauro Machado: A Ópera Alemã. São Paulo, SP: EditoraPerspectiva, 2000, p. 231-3. (Coleção História da Ópera)36 VERDI, Giuseppe: DVD Ernani (ver videografia). Bibliografia sobre a ópera: COELHO, LauroMachado: A Ópera Romântica Italiana. São Paulo, SP: Editora Perspectiva, 2002, p. 327-8.(Coleção História da Ópera)

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Ópera, s. f. (do it. opera). Drama cantado e acompanhado por umaorquestra. Foi a Itália que introduziu este vocábulo na musicologia, primeirocom o significado de peça de música, ou composição, depois, por evoluçãosemântica, com o sentido especial de cena musicada. A forma artística daópera era já conhecida dos Gregos, pois outra coisa não eram, cincoséculos antes de Cristo, as celebradas tragédias de Ésquilo, Sófocles eEurípedes, encenadas ao espírito da época, com coros, monólogos ediálogos musicados, prelúdios instrumentais, figuração movimentada, etc.Os artistas e sábios do Renascimento, concentrados em Florença,cansados a mais não de um diatonismo musical sem fim e das rebuscadascombinações contrapontísticas, de superior concepção, sem dúvida, mastambém de muito demorada compreensão, procuraram estudar o melhormeio de reviver o passado glorioso da arte greco-romana, que, durante aIdade Média, se tinha tão indescupavelmente desencaminhado. Reunidosnuma assembleia, a Academia dos Bardi ou Camerata Fiorentina, nãoforam absolutamente baldados os esforços de tão bons poetas e tão bonsmúsicos para fazer valer o que os gênios de outrora tinham tãoprofundamente pensado; mas outra era já a tonalidade musical e outrostambém os meios de expressão artística. A tragédia clássica não ressurgiu,mas surgiu a ópera. (BORBA; GRAÇA, 1956, p. 312)

3.1. A INTERTEXTUALIDADE DE MEMORIAL DE AIRESO drama de Memorial de Aires (1977, p. 68-70) já começa com o contraste e

o paradoxo entre a atmosfera gótica do ambiente do cemitério juntamente com o luto

e a viuvez dos personagens Aires, Rita e Fidélia e a luminosidade da luz do dia e da

juventude e mocidade de Fidélia e de outro personagem que comparece ao romance

logo em seguida, Tristão.

Fidélia traz em seu nome alusão ao título da única ópera de Ludwig van

Beethoven, compositor alemão célebre por suas obras instrumentais, entre as quais

as sinfonias e as sonatas para piano. A ópera Fidélio (originalmente intitulada por

seu autor como Leonora, mas que teve seu nome por este trocado) trata da

fidelidade conjugal:

(...) a ópera tem como subtítulo O Amor Conjugal – de Leonora por seumarido Florestan que é encarcerado injustamente por Don Pizzaro.Leonora, então, usa um disfarce masculino, passando a se chamar Fidélio,tornando-se ajudante do guarda da prisão, tudo isso com o fim de diligenciarrestituir o esposo à liberdade. (BORBA; GRAÇA, 1956, p. 510)

Entretanto, Fidélia, além de trazer o signo da fidelidade, possui,

simultaneamente, também em seu nome, a infidelidade, representado pelo título

Santa-Pia, referência à Pia de Tolomei, mulher que traiu – ou supõe-se que traiu – o

segundo marido (estava antes viúva do primeiro) e foi por este assassinada – ou

teve a morte encomendada por este –conforme encontramos no Canto V (versos

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130-136) do “Purgatório” da obra A Divina Comédia37, de Dante Alighieri (2010). Ela

é o terceiro de três espíritos que, ao perceberem a presença do vivo poeta Dante

que, acompanhado do morto poeta Virgílio, passa pelo segundo terraço do

Antepurgatório. Quando Dante atravessa esse local onde se encontram os espíritos

daqueles aos quais, malgrado terem sofrido morte violenta, foi concedido tempo

para o arrependimento, os mesmos pedem-lhe que pare e os ouça. Esse é o enredo

trágico, é bom ressaltar, de uma ópera intitulada Pia de Tolomei38, composta pelo

italiano Gaetano Donizetti.

Como é sabido que Machado de Assis era grande leitor e conhecedor da obra

de William Shakespeare, e também devido ao fato de que em Memorial de

Aires(1977) também há referências ao bardo maior da Inglaterra, faz-se aqui dois

primeiros paralelos, o primeiro entre o mestre maior do teatro inglês e o autor de A

Divina Comédia, uma vez que Pia de Tolomei pede para que seja lembrada –

“ricorditidi me, chesonla Pia” (recorda-te de mim que sou a Pia) –, enquanto que em

Hamlet39(1995), o fantasma do pai do príncipe dinamarquês, ao forçar o filho a jurar

que vai vingá-lo, ao mesmo tempo pede a este que dele se lembre – “Adeus! Adeus!

Recorda-te de mim”. Mas o herdeiro legítimo ao trono de um reino em que há algo

de podre também pede para ser lembrado, neste caso, à Ofélia: “Ninfa, em tuas

preces, lembre-se de mim.” Segundo paralelo: em Hamlet, a rainha Gertrudes, mãe

de Hamlet, aconselha seu filho a não procurar mais o pai em meio ao pó – “Não

continues sempre de olhos vagos/Procurando teu pai no pó da terra” –, ao passo

que, em Memorial de Aires (1977), aconselha-se a Fidélia a não persistir na viuvez,

que é um luto permanente e uma negação à vida e à arte.

Temos aqui presente mais uma grande personagem feminina de Machado de

Assis e que acabará por tornar-se, de certa forma,“infiel” e “volúvel” com relação à

morte. A mulher é volúvel, “La donna é mobile”, como é muito bem dito, ou melhor,

cantado, na ária da ópera Rigoletto40, de Giuseppe Verdi. Viúva, tal como a Lívia de

37 ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia. Tradução e notas de Ítalo Eugênio Mauro. 2. ed. SãoPaulo, SP: Editora 34, 2010.38 DONIZETTI, Gaetano. DVD Pia de Tolomei. Elenco: Patrizia Ciofi, Dario Schmunck, AndrewSchroeder, Laura Polverelli. Orquestra do Teatro La Fenice. Regente: Paolo Arrivabeni. Italy: SeloDynamic, 2005.39 SHAKESPEARE, William. Hamlet. Trad. Anna Amélia Carneiro de Mendonça. Rio de Janeiro, RJ:Editora Nova Fronteira, 1995.40 VERDI, Giuseppe. DVD Rigoletto (ver videografia). Bibliografia sobre a ópera: COELHO, LauroMachado: A Ópera Romântica Italiana. São Paulo, SP: Editora Perspectiva, 2002, p. 330. (ColeçãoHistória da Ópera)

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Ressurreição (1975) e a irmã de Marcondes Aires, Rita, também personagem de

Memorial de Aires. Contudo, tanto Lívia quanto Rita foram fiéis no casamento, e Rita

fiel a seu esposo falecido, à viuvez e à morte.

Verdi cria o nome para sua ópera Rigoletto a partir do verbo italiano ridere –

rir. E o riso, o riso tragicômico, também se encontra na urdidura –e na partitura – de

Memorial de Aires. “A vida é uma ópera bufa com intervalos de música séria”. Como

nos esclarece Minois:

O riso e a morte fazem boa mistura. É suficiente olhar para um crânio parase convencer: nada pode roubar-lhe o eterno sorriso. (MINOIS, 2003, p. 29)

No panteão grego, onde os deuses riem tão livremente entre si, o riso écuriosamente o atributo de um personagem obscuro, o trocista e sarcásticoMomo. Filho da noite, censor dos costumes divinos, Momo termina portornar-se tão insuportável que é expulso do Olimpo e refugia-se perto deBaco. Ele zomba, caçoa, escarnece, faz graça, mas não é desprovido deaspectos inquietantes: ele tem na mão um bastão, símbolo da loucura, eusa máscara. O que quer dizer isso? O riso desvela a realidade ou a oculta?Enfim, não é possível esquecer que, segundo Hesíodo, suas irmãs sãoNêmesis, deusa da vingança, Angústia e a “Velhice Maldita”. (MINOIS,2003, p. 29)

A supracitada cena inicial no cemitério de Memorial de Aires sugere outro

paralelo com Hamlet (1995): os coveiros da peça do dramaturgo inglês fazem

pilhérias entre si e com os mortos que enterram. Uma cena burlesca e de bufoneria

transcendental. Trata-se de uma obra plena de referências, não apenas operísticas

e musicais como também literárias, como já evidenciamos.

Aires e sua irmã Rita fazem uma aposta com relação à Fidélia, a viúva

Noronha, sendo que aquele acredita que a jovem se casa, apesar da viuvez, e esta

não crê que a moça despose alguém. Esta aposta é comparada por Aires àquela

entre Deus e Mefistófeles, o diabo, na obra Fausto41 (2011), de Johann Wolfgang

Von Goethe, a qual possui estrutura operística.

O crítico José Paulo Paes (1976) desentranhou, por meio de suas inferências,

mais dois paralelos entre as memórias do diplomata aposentado e o Fausto de

Goethe, a saber: o das duas almas e o dos sonhos, devaneios e imaginação deste

último grande personagem machadiano.

[...] Na lenda germânica, o velho doutor vende a alma ao diabo em troca desaber, de poderes mágicos e, sobretudo, de juventude; também Aires aspiraa transcender as limitações da idade para poder realizar in esse o seu amorpor Fidélia. Tal realização não será real como a do Dr. Fausto, mas

41 GOETHE, Johann W. Fausto I e II. 2 vol. Trad. Jenny Klabin Segall. São Paulo, SP: Editora 34,2010; 2011.

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imaginativa, como convém a alguém que confessa viver “do que ouve aosoutros”; não se fará por via de um pacto infernal, mas por via da introjecçãovicária. Aires, que já achava na Flora de Esaú e Jacó um “sabor particular”pela excentricidade de sua “ambição recôndita” de amar dois homens aomesmo tempo; que já dizia conhecer bem esses “sentimentos alternados esimultâneos”, pois “eu mesmo fui uma e outra coisa, e sempre me entendi amim” – Aires compraz-se agora em cultivar dentro do peito as zwei Seelenda famosa interjeição de Fausto [interjeição que, a propósito do duplo amorde Flora, Aires cita explicitamente no capítulo LXXXI de Esaú e Jacó,traduzida: “Ai, duas almas no meu peito moram!”]. Uma delas é a suaprópria alma de sexagenário cético e prudente, com receio de não poder“dar aquilo que os homens chamam amor”; outra, de empréstimo, é umaalma jovem, ambiciosa, pela qual ele sente a maior afinidade e que, por issomesmo, pode introjectar quando lhe apetece. Trata-se, evidentemente, deTristão. (PAES, 1976, p. 21)

Já que a música e a ópera são duas instâncias e dois estatutos que presidem

e regem a visceral trama intertextual e interdisciplinar do memorial do Conselheiro

Aires, coloquemos a questão do compasso musical de 3 x 2 – de duas pontas – a

ponta da vida (e dos jovens) e a ponta da morte (incluindo os velhos), as quais são

atadas e desatadas em um movimento constante de união e desunião, no qual con-

fundem-se e separam-se – identificado pelo crítico José Paulo Paes:

[...] há a considerar o desequilíbrio 3x2, ainda mais acentuado por oprimeiro grupo constituir-se de um casal mais um viúvo, enquanto osegundo é formado por um casal. Resolve-se facilmente esse desequilíbrionumérico, restabelecendo a simetria casal x casal, quando se reconhece emAires um elemento lábil que, pela sua própria condição de observador econforme o ângulo de observação, ora se alinha com os Aguiares, ora comFidélia-Tristão. Sua labilidade se manifesta não só em termos de angulaçãocomo principalmente em termos de empatia. Há, nele, uma permanenteambiguidade de atitudes em relação aos conflitos e aos protagonistas doMemorial, ambiguidade típica da sua índole de mediador diplomático; doseu sentido de relatividade das coisas, aguçado pela experiência e pelosanos [...] (PAES, 1976, p. 19)

Essa complacência de compasso aberto aos dois extremos, se o fazsimpatizar com o sofrimento dos Aguiares, de perder os dois filhos deempréstimo, último consolo de uma vida frustrada pela falta de filhos“naturais” ou “legítimos”, leva-o também a defender o egoísmo juvenil deFidélia-Tristão, que têm sua própria vida a viver fora do círculo de gizdaquela paternidade postiça. No primeiro caso, a adesão empática seexplica pela simetria de idades – à época da ação do romance, Aires tem 62anos, Aguiar 60 e Carmo 50 –, assim como por Aires não ter tido filhos e,malgrado alardeie não sentir falta deles, desempenhar amiúde o papel depai adotivo através de suas amizades moças (Tristão no Memorial; osgêmeos em Esaú e Jacó, dos quais chega a imaginar-se “pai espiritual”). Nosegundo caso, a empatia se estabelece por via de uns últimos assomos dejuventude que o Conselheiro ainda traz em si e que tenta baldadamenteconter ou dissimular; são eles que tornam compreensíveis as contradiçõesdo seu interesse por Fidélia. [...] (PAES, 1976, p. 19-20)

A partir disto e partindo das considerações de Leibniz e de Gilles Deleuze

(este, por sua vez, partindo de Leibniz) acerca da mônada e da dobra, e também do

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mundo e da casa barrocos divididos em duas instâncias ou dois compartimentos,

podemos compor um quadro em cujo centro está Aires entre Dona Carmo e o velho

Aguiar, tendo os mortos Eduardo e a mulher falecida do Conselheiro em baixo, e o

casal Fidélia e Tristão sobre o centro, encimando este imaginado quadro.

[...] o mundo barroco, como Wölfflin mostrou, organiza-se de acordo comdois vetores, o afundamento em baixo e o impulso para o alto. Leibniz fazcom que coexistam duas tendências: a tendência de um sistema pesadopara encontrar seu equilíbrio o mais baixo possível, ali onde a soma dasmassas já não pode descer mais, e a tendência para elevar-se, a mais altaaspiração de um sistema ao imponderável, onde as almas são destinadas ase tornar racionais, como em um quadro de Tintoretto. Que um sejametafísico e concernente às almas, que o outro seja físico e concernenteaos corpos, isso não impede que os dois vetores componham um mesmomundo, uma mesma casa. [...] O que é propriamente barroco é essadistinção e repartição de dois andares. [...] o mundo com apenas doisandares, andares separados pela dobra que repercute dos dois ladossegundo um regime diferente, é a contribuição barroco por excelência. Elaexpressa [...] a transformação do cosmos em mundus. (DELEUZE, 1991, p.50-1)

Entre os pintores ditos barrocos, Tintoretto e El Greco brilham,incomparáveis. Todavia eles têm em comum esse traço do barroco. Oenterro do conde de Orgaz, por exemplo, está dividido em dois por umalinha horizontal e, embaixo, os corpos comprimem-se, encostados uns aosoutros, ao passo que, no alto, por meio de uma tênue redobra, a almaascende, esperada por santas mônadas, tendo cada uma delas suaespontaneidade. Em seu próprio peso, as almas cambaleantes, inclinando-se e caindo nas redobras da matéria; a metade superior, ao contrário, agecomo poderoso ímã que atrai os corpos, fazendo-os cavalgar dobrasamarelas de luz, dobras de fogo que os reanimam, comunicando-lhes umavertigem, mas uma “vertigem do alto”: as duas metades do Juízo final sãoexemplos disso. (DELEUZE, 1991, p. 51)

Ao saber da estória do curto casamento de Fidélia e Eduardo, nome do

falecido esposo, que morre jovem, e da oposição dos pais de ambos à união entre

os jovens, Aires traça uma comparação com Romeu e Julieta42 de William

Shakespeare. Assim está no romance: “Romeu e Julieta aqui no Rio, entre a lavoura

e a advocacia, - porque o pai do nosso Romeu era advogado na cidade da Paraíba”

(ASSIS, 1977, p. 72). Além desse intertexto, uma sutil alusão à ópera no Memorial

de Aires, em meio às grandes referências, é o fato de Eduardo ter visto Fidélia a

primeira vez em um teatro lírico.

A indicação, assaz implícita, diga-se, à ópera Ernani, de Giuseppe Verdi,

encontra-se na seguinte passagem, presente em meio à comparação acima citada e

comentada: “Eu, se fosse capaz de ódio, era assim que odiava; mas eu não odeio

42 SHAKESPEARE, William. Romeu e Julieta. Trad. Barbara Heliodora. Rio de Janeiro, RJ: EditoraNova Fronteira, 1997.

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nada nem ninguém, - perdono a tutti, como na ópera” (ASSIS, 1977, p. 72). Esta

ópera a que se menciona é Ernani, como já se disse.

Em A Tempestade (1999), de William Shakespeare, Próspero também perdoa

a todos, como nos esclarece Izolan (2006, p. 181) na nota de rodapé nº 290:

Na ópera de Verdi, há, além do tema do amor, uma trama política contra orei D. Carlo. Ernani o quer destituir, assim como deseja Elvira, bela jovemque está, por sua vez, prometida ao Conde Ruy. Mas Elvira também éamada pelo rei D. Carlo. Todos a querem, enfim. Após encontros edesencontros, o rei é brando com os rebeldes, dando-lhes perdão –perdono a tutti – vinda daí a frase citada por Machado de Assis. E é aindamais generoso com Ernani, dando-lhe Elvira em casamento. Havia, noentanto, por detrás da generosidade, uma trama nefanda que leva Ernani aosuicídio: a alegria vira malogro. Elvira, ao ver seu amado morto, morre aoseu lado.

Giuseppe Verdi também foi outro artista que admirava William Shakespeare.

Exemplo notável dessa admiração são as suas versões operísticas de Otelo43,

Macbeth44 e Falstaff45 (ópera que se origina a partir das peças As Alegres Comadres

de Windsor46 e Henrique IV47, do arquipoeta inglês).

Memorial de Aires bem pode ser chamada também de ópera do perdão,

devido a essa referência à ópera de Verdi - perdono a tutti. Vê-se que ao longo

deste romance, não somente Aires, como também outros personagens, entre eles

Dona Carmo, a tudo perdoam. Perdoa-se a dissimulação, o esquecimento, o

abandono, a ausência, a omissão, enfim, a tudo.

Uma característica interessante do perfil de Fidélia é o fato de ela tocar piano,

que é algo bem comum nas heroínas tão caras aos romances e folhetins românticos.

Aliás, Memorial de Aires dialoga o tempo todo com o Romantismo crítico-reflexivo e

irônico – instaurado, sobretudo, pelos românticos alemães e ingleses -, a começar

pelas três óperas – Fidélio, de Ludwig van Beethoven; Tristão e Isolda, de Richard

Wagner; e Ernani, de Giuseppe Verdi - que o regem em toda sua organicidade,

passando pelas citações a poetas tão apreciados pelos românticos, como os bardos

italiano e inglês Dante Alighieri e William Shakespeare, respectivamente, entre

43 VERDI, Giuseppe. DVD Otello (ver videografia). Bibliografia: COELHO, Lauro Machado: A ÓperaRomântica Italiana. São Paulo, SP: Editora Perspectiva, 2002, p. 337;370-3.44 VERDI, Giuseppe. DVD Macbeth (ver videografia). Bibliografia: COELHO, Lauro Machado: AÓpera Romântica Italiana. São Paulo, SP: Editora Perspectiva, 2002, p. 328-9.45 VERDI, Giuseppe. DVD Falstaff (ver videografia). Bibliografia: COELHO, Lauro Machado: A ÓperaRomântica Italiana. São Paulo, SP: Editora Perspectiva, 2002, p. 337; 373-5.46 SHAKESPEARE, William. As Alegres Comadres de Windsor. Trad. Domingos Ramos. Lisboa,Portugal: Aillaud & Lellos, 1947.47 SHAKESPEARE, William. Henrique IV. Trad. Barbara Heliodora. Rio de Janeiro, RJ: Lacerda,2000.

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outros tantos autores e obras – por sua vez e em sua maior parte, românticos.

Devemos nos ater também, por tudo isso, ao fato de que Machado de Assis, em

suas obras, é partidário das digressões e parábases defendidas e manifestas pelo

movimento literário romântico alemão. Parábase e música estão relacionadas ao

princípio da ironia. Estruturam-se sob o princípio da ironia.

A música está na raiz da comédia e da tragédia, uma vez que estava presente

nas procissões e festas em honra ao deus Dioniso. A palavra música vem de musa.

Na música, na comédia e na tragédia encontra-se o princípio da ironia que tece

estas formas de arte e de linguagem.

Marcondes Aires, ao longo de Memorial de Aires, diz que a música sempre

fez parte de sua vida. A música permeia o romance por inteiro, tanto que ao longo

de suas páginas lança-se mão, reiteradas vezes, das palavras “nota” e “toque”.

É o filósofo alemão Friedrich Nietzsche quem tece a sentença de que “sem

música a vida seria um erro” (NIETZSCHE, 2000, p. 14). É ainda Nietzsche quem

diz: “Eu acreditaria somente num Deus que soubesse dançar” (NIETZSCHE, 2003,

p. 67), referindo-se a Dioniso, deus da dança e da música.

Recapitulando o tema da ironia, esta “não resulta tão-somente da soma de

frases ou segmentos irônicos” (SOUZA, 2006, p. 36). A ironia, que “é uma parábase

permanente” (SCHLEGEL, 1963, p. 85 apud SOUZA, 2006, p. 36), é o princípio

estruturante da obra de arte, e está presente no teatro e na literatura, entre outros,

em Aristófanes, Luciano de Samosata, François Rabelais, Erasmo de Roterdã,

Michel de Montaigne, Francisco de Quevedo, Miguel de Cervantes, William

Shakespeare, Henry Fielding, Jonathan Swift, Laurence Sterne, Denis Diderot,

Voltaire e Machado de Assis. E também na música, pois esta é toda tecida naquela.

A ironia é responsável por aquilo que chamamos de metateatro, de

metapoema ou metaficção, uma vez que temos, por meio dela, a reflexão e o

pensamento acerca do fazer teatro, poesia ou ficção:

A ironia como forma privilegiada do conhecimento se compreende quandose considera a tradição onto-teo-lógica da metafísica. Da separaçãometafísica da finitude sensível da infinitude inteligível decorrem asoposições antagônicas do corpo e da alma, da matéria e do espírito, darealidade e a idealidade, da aparência e da ideia, enfim, de todos os paresde dualismos que se impuseram ao pensamento ocidental-europeu.(SOUZA, 2006, p. 40-41)

Por meio da ironia, como se depreende da lição de Ronaldes de Melo e

Souza (2006), os pares não são antagônicos, mas antes, coexistem e

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complementam-se, pois é condição sine qua non para a existência de um pólo a

coexistência do outro pólo diametralmente oposto. A importância da ironia como

forma suprema do saber, filosófico, científico e poético é que:

No contexto histórico-social da intolerância generalizada, a dialética poéticada ironia se apresenta como uma antífona à teoria metafísica doconhecimento ao preconizar a substituição da oposição antagônica pelaoposição complementar. (SOUZA, 2006, p. 41)

Ainda no que tange a esta habilidade de Fidélia – a da música enquanto

musicista –, nota-se que ela abandona e abdica desta paixão de tocar, desta paixão

pela música, devido à fidelidade e devoção por ela manifesta em relação à morte,

neste caso, ao esposo falecido. E música é vida.

Em outra passagem de Memorial de Aires, lê-se o seguinte:

Gastei o dia a folhear livros, e reli especialmente alguma coisa de Shelley etambém de Thakeray. Um consolou-me de outro, este desenganou-medaquele; é assim que o engenho completa o engenho, e o espírito aprendeas línguas do espírito. (ASSIS, 1977, p. 73)

3.2. AIRES-FIDÉLIA-TRISTÃO E O CASAL ORFEU E EURÍDICEAqui temos outro tema tão caro aos românticos, que é o da educação do

espírito, através do conhecimento do transcendental, do sublime e do elevado, algo

que pode ser alcançado perfeitamente via filosofia e via artes.

Marcondes Aires, ao levantar a possibilidade de que Fidélia pode vir a casar-

se e ao imaginar-se desposando a viúva cogita também ele vir a trair a morte, uma

vez que também é viúvo.. Importante frisar que a esposa falecida de Aires está

enterrada em Viena, a pátria da música no século XVIII, representada pelo

triunvirato composto pelos compositores Joseph Haydn, Wolfgang Amadeus Mozart

e Ludwig van Beethoven.

Não é só em Romeu e Julieta, de William Shakespeare, e em Ernani, de

Giuseppe Verdi, que os amantes entregam-se à morte um ao lado do outro.

Também este fato ocorre em Tristão e Isolda, a ópera de Richard Wagner cujo

libreto é inspirado nos romances medievais em verso de autoria dos franceses

Chrétien ou Christian de Troyes, Beroul e Thomas (também conhecido como Tomás

da Inglaterra, ou Tomás da Bretanha), que, por sua vez, traduziram tais bretões.

Na ópera de Richard Wagner, Tristão, cavaleiro a serviço do velho rei Marcos,

leva Isolda, de barco, à corte de seu senhor, a fim de que este a possa desposar. No

caminho, Tristão é ferido pelo noivo de Isolda. Esta, ao curar-lhe a ferida, percebe

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que floresce entre os dois um amor arrebatador, porém pensa na possibilidade de

dar cabo às suas vidas, já que este sentimento encontra o obstáculo da

impossibilidade, da desesperança e da proibição. Bragânia, aia de Isolda, é por esta

ordenada a colocar veneno em uma taça, mas coloca em seu lugar um filtro

amoroso elaborado pela mãe da princesa, o qual é tomado por ambos, ou seja, por

Tristão e por Isolda. Ao chegarem à Cornualha, ficam sabendo que o rei Marcos está

caçando e, devido à irresistível atração que sentem um pelo outro, efeito do mágico

filtro, concretizam sua pecaminosa paixão. São descobertos pelo ciumento cortesão

Melot, que os denuncia ao rei. Ao serem surpreendidos por este, ocorre que Tristão

é acusado de traição. A caminho do decidido exílio, Tristão é interceptado por Melot,

que o fere gravemente. Kurvenal, escudeiro de Tristão o leva de volta a seu país, a

Bretanha, mas este perece da ferida e da saudade que sente de Isolda. Esta é

chamada por Kurvenal para curar o cavaleiro com certos dotes mágicos que tem.

Tristão acaba morrendo em seus braços ao vê-la. Marcos, ao saber do filtro por meio

de Bragânia, vai ao encontro de Isolda com o seu perdão. Apesar das tentativas do

velho rei e da aia de dissuadi-la, finalmente desfalece sobre o amado morto, após

contemplá-lo dolorosamente por algum tempo. (BORBA; GRAÇA, 1956, p. 642)

Histórias de amor proibido – Romeu e Julieta e Tristão e Isolda – assim como

as de Bernardo e Heloísa e Lancelote e Guinevere – tanto Tristão quanto Lancelote

são cavaleiros da Távola Redonda, também fazem parte do ciclo arturiano. Tristão e

Isolda traem, em nome de seu amor, o rei Marcos, enquanto Lancelote e Guinevere

traem o rei Artur.

Marcondes Aires, além de ser o próprio Machado de Assis a partir da própria

advertência do romance memorial, lembra e sugere vagamente, em seu nome,

porque não, o rei Marcos da ópera de Richard Wagner. Marcondes e Marcos.

Aires, entretanto, ao mencionar o verso de Percy Shelley, “I can give not what

men call love”, tem consciência de sua decrepitude, senilidade e impotência e

admite que o que teve, ao imaginar tomar a viúva para si, foram apenas veleidades

sexagenárias. Ou seja, ele, que chegou a estar “obnubilado pelos encantos de

Fidélia” (SARAIVA, 1993, p. 166) não teve, como o velho rei Marcos da ópera

wagneriana, grandes pretensões de desposar a jovem.

Como bem disse Juracy Assmann Saraiva, no capítulo dedicado ao Memorial

de Aires:

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Ao compensar pela escrita o enfado da solidão, Aires revela o conflitopessoal, representado pela oposição entre eros e tanatos, entre o desejo esua irrealização, entre o papel de protagonista e o de testemunha, parachegar, finalmente, ao acolhimento da condição imposta pelo ciclo da vida(SARAIVA, 1993, p. 157).

A autora faz referência a Eros, o deus grego do amor, e a Tânatos, o deus

grego da morte.

“Vamos celebrar Eros e Thanatos/Persephone e Hades” são dois versos da

canção “Perfeição”, da banda brasileira de rock Legião Urbana48 (1993), que

perfeitamente ilustram a estrutura ironicamente paradoxal entre vida/amor/cosmos e

morte/caos que está na cerzidura desta obra machadiana.[...] O amor de Fidélia por seu marido é comparado ao de Romeu eJulieta,mas note- se que, ao morrer Eduardo(seu Romeu), ao contrário dapeça de Shakespeare, Fidélia não morre. Em Tristão e Isolda, por sua vez,o tema da fidelidade e da resistência a toda adversidade também érecolocado. Machado o parodia ao dar a Fidélia a condição de umapersonagem que, sendo casada com um aristocrata, o nega para casar-secom um homem que representa outra estirpe social. O mesmo amorlegítimo de Julieta é o amor espúrio de Isolda.

Parece que o percurso da fidelidade ao primeiro amor até a entrega aonovo amor está claro. Mas como dissemos, o amor que é legítimo em umcaso, é espúrio e condenado noutro.Há um paradoxo construído sobre otema do amor na urdidura operesca das citações. Fidélia é fiel ao antigoamor, mas, uma vez morto, está livre para amar de novo. Sua liberdade ésua traição. (IZOLAN, 2006, p. 184)

Já o Aires de seu nome, se nos lembrarmos de que ar, em espanhol, é aire,

sugere ser ele alguém que levita sobre si mesmo, que de tão leve tem o pensamento

leviano de trair a morte e os mortos com a jovem viúva, sendo um homem bonachão

e todo ouvidos e atencioso a tudo e a todos, sendo, portanto, alguém que mais fala

dos outros que de si mesmo.

José Paulo Paes nos informa algo mais a respeito do nome do Conselheiro:

[...] valeria a pena notar [...] a correlação etimológica entre “Aires” e“Aguiar”. O primeiro nome deriva possivelmente da raiz germânica ar, quequer dizer “águia”, pelo que se vincula de imediato com “Aguilar”, port.“Aguiar”, cujo significado é “sítio habitado por águias”. O vínculo etimológicoreforça, de resto, uma polaridade bem marcada no romance: Aires não só éamigo e conviva regular dos Aguiares, mas com eles se alinha em razão daidade, constituindo o grupo dos velhos, ao qual se contrapõe o jovem parFidélia-Tristão. (PAES, 1976, p. 19)

Marcondes Aires, a exemplo de Brás Cubas, de Memórias Póstumas de Brás

Cubas, também é um defunto autor, um personagem que aprende a morrer.

48 LP Legião Urbana. O Descobrimento do Brasil. EMI, 1993.

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Memorial de Aires também bem pode ser chamada ópera do mar e da

viagem, uma vez que são feitas alusões literárias, a maior parte medievais, ao mar e

à viagem, começando pelas duas epígrafes oriundas de cantigas de amigo, uma de

autoria de Joham Zorro, e a outra, do rei Dom Dinis. Tristão é o amigo que talhou

preyto com Fidélia. Nas últimas páginas, Aires emenda Bernardim Ribeiro: “Viúva e

noiva me levaram da casa de meus pais para longes terras...” (RIBEIRO, apud

ASSIS, 1977, p. 210) Além disso, cita-se Luiz Vaz de Camões, mais precisamente o

quarto canto do poema épico Os Lusíadas, ao dizer-se “no porto da ínclita Ulisséia”

(CAMÕES, apud ASSIS, 1977, p. 211). Já havia dito Machado de Assis no capítulo

IX, A Ópera, de Dom Casmurro, que “a vida tanto podia ser uma ópera, como uma

viagem de mar ou uma batalha” (ASSIS, 1978, p. 186).

Interessante é também o fato de a chegada e a presença de Tristão terem

novamente despertado em Fidélia a paixão pela música e pelo piano, uma vez que a

volta deste e os encontros tête a tête entre os dois fazem com que inclusive a jovem

desperte a casa ao tocar o instrumento. Esta é a segunda ressurreição presente no

livro, já que a primeira é a mencionada por Dona Carmo ao se referir ao retorno do

filho postiço.

Um dos panos de fundo de Memorial de Aires é a questão da libertação dos

escravos negros, cujos antepassados foram trazidos ao Brasil em navios negreiros

vindos da África. Mas aqui se pode traçar um contraponto com relação aFidélia e

Tristão, já que este a liberta da morte e da condição de viúva, ou seja, da viuvez. O

amor liberta, isto é certo. Outra ópera de Verdi pode ser aqui lembrada: Nabuco49,

cujo tema é o da escravidão e do cativeiro. Acrescentando o amor ao célebre coro

Va pensiero desta ópera de acordo com todo este pensamento, teríamos, “Vá

pensamento de amor sobre as asas douradas...”

Pode-se traçar aqui paralelo também com o mito de Orfeu. Tristão seria

Orfeu, mas seu instrumento aqui não é a lira, e sim, o piano, que é também tocado

por nossa Eurídice, que é Fidélia. O casal aqui, ao contrário do casal do mito, é bem

sucedido, pois tanto Tristão/Orfeu consegue trazer Fidélia/Eurídice do mundo

inferior, das catacumbas e dos umbrais da morte para a luz e a vida, por meio da

música e do piano, como esta não olha sequer para trás, quando lhe surge Tristão.

49 VERDI, Giuseppe. DVD Nabucco. Elenco: Renato Bruson, Ghena Dimitrovaet al. Coro e Orquestrado Teatro alla Scala. Regente: Riccardo Muti. Ano da gravação original: 1987 – ano de lançamento doDVD: 2004. Selo Kultur. Bibliografia sobre a ópera: COELHO, Lauro Machado: A Ópera RomânticaItaliana. São Paulo, SP: Editora Perspectiva, 2002, p. 327. (Coleção História da Ópera)

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O originalíssimo poema “Orfeu. Eurídice. Hermes” do poeta de língua alemã

Rainer Maria Rilke“narra a última sequencia do mito de Orfeu e Eurídice” (SOUZA,

2004, p. 198). Nele, de acordo com a lição de Ronaldes de Melo e Souza, Orfeu

segue mudo à frente de Eurídice escoltada por Hermes, ambos igualmente

silenciosos. O que ele tem de originalíssimo é que ele não trata como oposição

antagônica o par vida e morte, mas como oposição harmônica e complementar.

O poema, ironicamente estruturado, “inicia-se no meio do caminho”, ou seja,

in media res, “que sobe do inferno para o superno” (SOUZA, 2004, p. 198):

Orfeu se nos apresenta dramaticamente dividido entre ouvir e ver. Proibidode olhar para trás, os seus sentidos se bifurcam na audição do rumor dospassos que o acompanham e no impulso de ver para certificar-se de queeles realmente vinham. (SOUZA, 2004, p. 198)

Ainda segundo Ronaldes de Melo e Souza, sobre o poema de Rilke, os

sentidos da audição e da visão conotam as instâncias da vida e da morte, conforme

depreendido e inferido na interpretação do português Segurado e Campos, bem

como dois modos de relação entre o casal que destoam um do outro: a visão como

sentimento de possessão contrapõe-se à sutileza aveludada da audição. Aliás,

segundo o decreto dos deuses, Eurídice não deveria ser compreendida por Orfeu na

condição de objeto pertencente a ele, o sujeito. Orfeu, em sua transgressão

binocular, mormente aos deuses catacrípticos, para volver(-se) em busca de algo

que, em sua crença, está para ele perdido

Acarreta a morte absoluta da amada, que perde a concretude sensível e seconverte em sombra evanescente. Por querer ver, e não só por ter visto, éque Orfeu perde Eurídice. Quando Hermes lhe diz que ele havia olhadopara trás, ela tanto já não lhe pertencia, que nem mesmo entendeu a quemo deus se referia. Estavam separados desde o início do trajeto ascensional.Ele vinha sôfrego, devorando o caminho em largos passos, mas ela oseguia incerta, branda, sem pressa. A lira capaz de apaziguar as feras eabalar montanhas, comover aves e peixes, árvores e fragas, dotada atémesmo do poder de propiciar as divindades infernais que, por mercêincomparável, lhe restituíram Eurídice, da mão lhe cai pendente, pois agoranão lhe serve mais. O prodigioso dom da musicalidade inerente ao versopertence ao Orfeu músico, ao auditor da potência musal, e não ao videntemonadicamente concentrado na clausura da subjetividade objetivadora.(SOUZA, 2004, p. 199)

Compreende-se que o drama de Orfeu não se configura apenas namito-

logicidade que gera o antagonismo entre os sentidos visual e auditivo, porém,

sobretudo, no contraste entre vida e morte. (SOUZA, 2004, p. 200)

O poema de Rilke mostra também que em Eurídice, que se confunde com o

reino dos mortos, a morte gera a vida e revela que, no invisível e subterrâneo reino

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obscuro da morte, encontra-se velada a seiva no interior da qual corre e escorre o

carmesim sanguíneo da vida que gera a terra:

A ambiência insubstancial do espaço que paira suspenso na profundidadeabissal simboliza o ser morto em Eurídice. Rochedos, bosques, pontossobre o vazio, o lago imenso suspenso do fundo distante como fecundo céupluvioso simbolizam a morte como a raiz da vida. [...] Árvore da vida e damorte, que se mantém firme no superno porque se enraíza no inferno, elavai e vem como a raiz da formatividade diurna e noturna. (SOUZA, 2004, p.201-2)

Ronaldes de Melo e Souza (2004) prossegue no esclarecimento sobre o

poema de Rilke e trata da oposição entre Orfeu e Eurídice, ao afirmar que “a

harmonia invisível de Eurídice suplanta a harmonia visível de Orfeu” (SOUZA, 2004,

p. 202). Sobre a visibilidade e a invisibilidade harmônicas, declara Heráclito no

fragmento nº 54 que “a harmonia invisível é mais forte do que a visível”

(HERÁCLITO, 2005, p. 73) e no de nº 56 comenta que “em seu esforço para

conhecer o visível, os homens são ludibriados como Homero, mais sagaz do que

todos os gregos. Pois é a ele que ludibriaram os garotos que matavam piolhos,

dizendo: ‘tudo, que vimos e pegamos, deixamos, tudo, que não vimos nem

pegamos, trouxemos conosco’” (HERÁCLITO, 2005, p. 73).

Sobre a simultaneidade do ir e vir que caracteriza a trajetória de Eurídice e

Hermes, temos o oportuno fragmento nº 60 de Heráclito, segundo o qual o “caminho:

para cima, para baixo, um e o mesmo” (HERÁCLITO, 2005, p. 75).

Oportunos também são os fragmentos de Parmênides, que tomados em

conjunto sob o título Acerca da nascitividade, tratam também de uma viagem

iniciática. Parmênides conta sobre a divindade que lá o recebeu:

E a deusa me acolheu graciosa e profusamente, tomou a mão direita nasua, e, desta maneira trazendo o epos à fala, me disse: Ó jovem, tucompanheiro de imortais condutoras de carro, que te trazem com oscavalos, alcançando nossa morada, viva! porque de nenhuma maneira umamoira ruim te enviou a trilhares este caminho, - (pois em verdade está forado caminho que vem dos homens), - mas themis e dike. (PARMÊNIDES,2005, p. 45)

E Ronaldes de Melo e Souza chama a atenção para a etimologia no nome

Eurídice: Eury-díke (=profunda diiudicatio) (SOUZA, 2004, p. 202). Chama a atenção

também para Eurídice que passa a se identificar com Perséfone e para as jovens

criativas e silenciosas que se mostram disponíveis e solícitas para morrer, atender e

responder ao chamado do materno e pré-helênico reino trevoso, isso na plenitude

em flor da idade, no lugar dos homens gregos, que não podem renunciar à própria

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vida e submetem e subordinam tudo que observam à metafísica e à lógica. Além

disso, elas, ao passarem para as noturnas e vivificantes origens primaveris, fazem

com que a tanatofobia se transmute em tanatofilia (SOUZA, 2004, p. 204-5). Que

para elas soe a Pavana para uma princesa morta de Maurice Ravel50.

O ato de Eurídice

prepara a conversão do Orfeu vidente no Orfeu músico. Inapreensível pelavisão, a noite se manifesta como esparsa presença de signos impregnadosde som e silêncio, que não se depreendem, senão mediante oaprimoramento da audição. Na sinfonia do silêncio noturno, que afonamenterufla, o essencial é saber ouvir, e não ver. (SOUZA, 2004, p. 205)

A perda de Eurídice por Orfeu não foi em vão, pois, tornando-se aprendiz de

morto em Eurídice, torna-se o poeta cantor e vate que é porta-voz do duplo domínio

da vida e da morte. Como disse Aires: “A vida é um direito, a mocidade outro”

(ASSIS, 1977, p. 105).

3.3. HERMENÊUTICAPercebe-se que o narrador, na última obra de Machado de Assis, se dobra e

se desdobra: Marcondes Aires se dobra e se desdobra no eu de outrora e no eu de

agora – se dobrando e se desdobrando, além disso, nos demais personagens que

habitam o memorial. A capacidade sua de outrar-se é enorme, uma vez que, como

defunto autor, assume a máscara do autor implícito e irônico Machado de Assis.

O leitor, então, tem de ser perspicaz, audaz e sagaz, para não ser um leitor

obtuso e cair nas pistas falsas da narração machadiana, a qual se dobra

ironicamente em mais de um horizonte e ironicamente conduz a um autêntico

labirinto–infinito labirinto formado por dois espelhos que se contrapõem um ao outro

– portanto, há que se ter cuidado para não ser pego pelo minotauro da interpretação

errada e errônea– a armadilha de se deter e se prender a uma leitura deficiente,

capenga, unilateral e monológica – uma verdade que se pretende única – uma

comédia dos erros.

Com relação à questão da estrutura pressupositiva da compreensão, da

relação dialética entre tema e horizonte, pergunta e resposta, da leitura, Gadamer

nos esclarece que:

50 LP RAVEL, Maurice. Pavana para uma princesa morta. Orchestre de Paris. Regente: DanielBarenboim. Deutsche Grammophon; PolyGram: 1982.

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[...] em nossa experiência hermenêutica não há dúvida de que a obracontinua a ser sempre a mesma, que comprova sua plenitude de sentidocada vez que é compreendida diferentemente, assim como a históriacontinua a ser a mesma, cujo significado continua se determinando. Aredução hermenêutica à opinião do autor é tão inadequada quanto aredução à intenção dos agentes, no caso dos acontecimentos históricos(GADAMER, 2008, p. 487).

Com efeito, é a relação que se estabelece entre perguntar e compreender que

pode dar dimensão real à experiência hermenêutica. O texto, conforme ressalta

Gadamer, “precisa ser compreendido como resposta a uma pergunta real”

(GADAMER, 2008, p. 487).

Consoante Gadamer, o jogo da representação, tanto a cultual quanto a

teatral, malgrado o fato de ser hermético em si mesmo, “deixa cair aqui uma parede”

e, destarte, “está como que aberto para o lado do espectador” e é, por isso, que,

paradoxalmente, “a abertura para o espectador contribui para formar o caráter

fechado do jogo” (GADAMER, 2008, p. 162-4).De fato, é aquele que não participa do jogo (aqui entendido o cultual e oteatral, diferentemente da literatura e do romance)mas assiste quem faz aexperiência mais autêntica e que percebe a intenção do jogo. Nele o jogo (arepresentação) eleva-se à sua idealidade própria (GADAMER, 2008, p.164).

Parafraseando Gadamer, podemos dizer que, com relação à literatura e ao

romance, é aquele que co-participa ou comparticipa do texto, interpretando-o e

compreendendo-o, fazendo suas inferências e conexões, tudo isso como chave que

abre as portas, janelas, cofres, passagens secretas e/ou subterrâneas, sótãos,

porões e demais compartimentos irônicos, e tecendo o seu horizonte de sentido,

mas estabelecendo paralelo com o horizonte do texto, jogando e sendo jogado pelo

jogo do texto, que faz a experiência mais autêntica do jogo do texto, fazendo-o

elevar-se à sua idealidade própria:

Se considerarmos o uso da palavra “jogo” dando preferência ao chamadosignificado figurado, resultará o seguinte: falamos do jogo das luzes, do jogodas ondas, do jogo da peça da máquina no rolamento, do jogo articuladodos membros, do jogo das forças, do jogo das moscas, até mesmo do jogodas palavras. Nisso sempre está implícito o vaivém de um movimento quenão se fixa em nenhum alvo, onde termine. A isso corresponde também osignificado originário da palavra “jogo” enquanto dança, que sobrevive emmúltiplas formas de palavras (p. ex. na palavra alemã Spielmann,menestrel) (TRIER apud GADAMER, 2008, p. 156)

Segundo Ronaldes de Melo e Souza, a “interpretação significa precisamente

a operacionalização da estrutura pressupositiva da compreensão. E não há

conhecimento sem interpretação”. (SOUZA, 1988, p. 73)

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Sobre a atualização proporcionada pela interpret-ação Souza esclarece que:

[...] o ato exegético não se reduz à recriação do significado estabelecidopelo autor original e estabilizado pelo receptor genial, mas induz àconcriação do sentido mobilizado e dinamizado pela produtividade doacontecimento histórico. A amplitude significativa do fenômenohistoricamente articulado é pendente, não da reconstituição do contexto emque aparece, mas de sua integração ao horizonte presente da historicidadevigente. Não importa tão-somente o seu significado de outrora, masprincipalmente o seu sentido de agora. O transmitido pela tradição não éadmitido como o enunciado dogmaticamente fixado na formulaçãoconclusiva de uma resposta exemplar, mas interpelado quanto à vigência eà legitimidade sócio-cultural de sua significação atual. O acontecimento daverdade da tradição significa precisamente que a história é um processocontínuo de formação e transformação do sentido do que se configura nohorizonte móvel do tempo. A operação histórico-ontológica da perguntaessencialmente hermenêutica não se limita a indagar pela coerência internade um sucesso acontecido de uma vez para sempre, mas se interroga pelapotencialidade de sua eficiência histórica, que se traduz em sua capacidadede ainda fazer e produzir história. Não interessa, pura e simplesmente, oque aconteceu, mas o que não cessa de acontecer. A interpretaçãopropriamente dita é o processo de mediação da realidade do passado coma realização do presente. Quem efetivamente interpreta o fenômenohistórico, não somente o explica em seu contexto objetivamente revelado,mas também o aplica ao horizonte atual da pergunta que o tematiza.Explicar o passado da história sem o aplicar ao presente do historiador éabdicar do compromisso ético do conhecimento, negligenciando a ação domomento vigente e se alienando na contemplação do monumento pretérito(SOUZA, 1988, p. 74-5).

História, arte, teatro e literatura (e vida) são operativos e estão em constante

construção, destruição e desconstrução, em constante e perpétuo in fieri e estão

sujeitos à interpretação e compreensão por parte do intérprete:

A distância temporal não só se interpõe entre o sujeito interpretante e oobjeto interpretado, mas principalmente os determina e condiciona. Ahistória se mostra continuamente em ação, formando a visão do intérprete econformando o sentido do que se interpreta. Nesta operatividade histórica, osujeito e o objeto são jogados e co-jogados. [...] O fator e feitor datemporalização histórica do sentido de tudo que existe não é o sujeito emconfronto com o objeto, mas o projeto que os mantém em inquebrantávelcorrelação. (SOUZA, 1988, p. 75)

Comparando a atividade hermenêutica aplicada aos textos jurídicos e

teológicos com a interpretação de outros tipos de textos, pode-se perceber que:

O essencial na interpretação de uma lei, por exemplo, não é a explicação deseu significado historicamente determinado em tal época passada, mas aconcretização do seu sentido na aplicação de sua validade jurídica hic etnunc. A mensagem religiosa também não deve ser apreendida como osignificado transmitido de um documento histórico, mas como o sentidoassumido de uma palavra que deve exercer a sua ação redentora. O fato éque todos os textos, a exemplo dos jurídicos e teológicos, necessitam sercompreendidos de uma maneira nova e diferente em cada momento esituação concreta. [...] Compreender não é produzir o significado objetivadoem seu contexto passado, mas produzir a significação efetivadora e

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atualizadora dos vínculos comunitários da existência humana, que se tornacontemporânea de si mesma. Não se trata de restaurar um efeito histórico,mas de instaurar o pôr-se em obra da verdade da história no efetuar-se daprópria compreensão.(SOUZA, 1988, p. 77)

Sobre o dinamismo do movimento dialético-dialógico na experiência e no

experimento experimentados e experienciados pelo homem, pelo artista e pelo

historiador no processo do jogo do diálogo hermenêutico de pergunta e resposta

empreendido entre o intérprete e o(a) texto/obra de arte/história/vida, Ronaldes de

Melo e Souza explicita que:

Homem experimentado não é quem supõe ter atualizado o plenoconhecimento da totalidade do real. Pelo contrário, ser experimentadosignifica reconhecer os limites intransponíveis do conhecimento,permanecendo predisposto à realização de novas experiências. O sábiosorri sempre da formulação dogmática do auto-conhecimentopretensamente consumado, não só por ter aprendido muito em cada novaexperiência, mas sobretudo por ter sido incessantemente jogado econtinuamente transformado pelo jogo imprevisível da realização dinâmicada vida. [...] Não é na certeza metodológica da ciência da razão que aexistência se consuma, mas na disponibilidade entusiástica para aconcretização continuamente renovada da verdade da tradição.

A historicidade interna da experiência humana, que se temporaliza e seatualiza na gestação histórica do próprio ser que se experimenta no ritmo detranse da incessante transfiguração das formas objetivadas da existência,não se inscreve nem se descreve no esquema conceptual da dialéticahegeliana. O modelo privilegiado do pensamento correspondente àmetamorfose constante da vida é o que se representa continuamente emvéspera de ser escrito. Homem experiente não é o que sabe tudo acerca detudo, mas quem exibe o vigor que suplanta as potências imanentizadorasda propulsão transcendente da sua existência. O saber só se totaliza numaconsciência dogmaticamente totalitária. A vocação imperial da razãoabsoluta é a dominação total do mundo tecnologicamente administrado. Asabedoria, porém, só se fundamenta no primado teórico da pergunta que setransforma no caminho em que o racional se transracionaliza, o real setransrealiza, e o homem demasiadamente humano se transumaniza napredisposição lúdica da permanente invenção de si mesmo. Só quem seescreve, tornando-se o poeta da sua própria vida, pode realmente escreverem consonância com ditame, segundo o qual a canção é existência. Aconsciência científica da objetividade totalizada se traduz no teorema doespírito, mas a consciência hermenêutica da verdade processual se produzno poema da vida. (SOUZA, 1988, p. 79-80 – grifos meus)

É interessante parar para notar a semelhança entre as palavras alemãs Spiel

(jogo) e Spiegel (espelho). Spie-ge-l. Aqui podemos traçar e tecer com propriedade

um paralelo (a partir do que é colocado acerca do jogo por Gadamer), primeiro, com

o pensador francês Michel Foucault (2000, p. 3-21), quando, em sua obra, As

Palavras e as Coisas, trata, no início do livro, do quadro Las Meninas, do pintor

barroco espanhol Diego Velázquez, e comenta que, no quadro, estão presentes o

espaço dos personagens, o espaço do próprio pintor – à distância, pintando os

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personagens – e mais um espaço que é o do espectador – que também fica à

distância. É a obra que se dobra e desdobra em mais de um horizonte, tornando-se

multiverso e multiperspectivando-se, tornando-se caleidoscópio. Tudo isso é a

formatividade e a operatividade da obra de arte. Por isso, é com propriedade que

novamente podemos mencionar aqui o pensamento/raciocínio que imagina e a

imaginação que pensa/raciocina, colocando e submetendo uma ciência pragmática

como a matemática a seu serviço e a seu favor: é o estatuto do calculado e do

calculável, é a radicalidade da imaginação segundo o Romantismo alemão.

Inscrevem-se ainda nessa senda e nessa vereda os conceitos de vazio

estrutural e leitor implícito do crítico e teórico alemão Wolfgang Iser (ISER, apud

IZOLAN, 2006, p. 23-4), pertencente à escola de Constança. De acordo com esses

conceitos, o romance moderno é regido, em sua cerzidura, pela irônica dissonância,

o que constrói desconstruindo o romance, tornando-o cheio de vazios, buracos,

abismos, precipícios, rupturas, silêncios, que se configuram em verdadeiros

alçapões – como na ópera – os quais o leitor pode acessar – e/ou de onde pode

repentina e surpreendentemente surgir – como em uma epifania – alguma coisa ou

alguma personagem – e/ou um horizonte de sentido – configurado a partir da gestalt

que tem sua origem na leitura, nas conexões, nas ligações, na compreensão e na

interpretação, isto é, na hermenêutica empreendida pelo leitor.

Com isso, o romance se compraz em ter uma estrutura, a sua estrutura,

dobrada, desdobrada, quebrada, imprevisível, descontínua, caótica, labiríntica e

fragmentária. Uma verdadeira polifonia dissonante de silêncios, gritos, sussurros,

vozes e coros dissonantes. Além disso, a exemplo do quadro de Velazquez, o

romance – moderno – tem o compartimento, ou seja, o espaço, do autor, o do

narrador, o do(s) personagem(ns) e o do leitor. É também a literatura como

provocação. Há também a questão, colocada por Luiz Costa Lima, de que “a poiesis

é presidida por uma força de figuração inconsciente que move o imaginário tanto do

produtor, quanto do receptor” (LIMA, 1989, p. 110). Linguagem, texto, imagem,

imagin-ação, tudo se entrelaça.

3.4. A HISTÓRIA EM MEMORIAL DE AIRESLevando em conta toda essa tessitura e musicalidade irônicas do romance

moderno, específica e especialmente do Memorial de Aires, é que podemos dizer

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que, na realidade, o autor Machado de Assis não está interessado em ser – ou

informar ao leitor se é – ou não a favor da abolição da escravatura, ou da República

ou da Monarquia:

Machado de Assis percebeu claramente a consistência ideológica e aimutabilidade histórica da classe dominante no Brasil numa de suascrônicas na série “Bons Dias”, publicada aos11 de Maio de 1888, em cujasegunda parte se lê a seguinte frase em alemão: Es dürfte leicht zuerweisen sein dass Brasilien weniger eine konstitutionelle Monarchieals eine absolute Oligarchie ist”. Em bom Português se diz que seria fácilprovar que o Brasil é mais uma oligarquia absoluta do que uma monarquiaconstitucional. Acrescentando a crítica da República em diversos textos,particularmente no romance Esaú e Jacó, pode se afirmar que, na visãomachadiana, o problema fundamental do Brasil não é a monarquia nem aRepública, mas, sim a oligarquia absoluta. Esse diagnóstico lúcido eatualíssimo é verdadeiramente genial. Monárquico ou republicano, o poderde fato é oligárquico. (SOUZA, 1998, p. 238-239)

Em Memorial de Aires, Machado é um pouco mais audaz. Mostra- nos, nosub-texto do romance, que o novo regime republicano foi o resultado docasamento entre a antiga elite agrária, agora modernizada, coma eliteeuropeizada pelos ideais da Revolução Francesa (modernização) e istoocorre nos salões da burguesia carioca que assistia a tudo embevecida.Todos fazem parte do mesmo jogo. Mas é claro que essa leitura nãoaparece no texto, é o resultado de nossa atividade reflexiva de leitores.(IZOLAN, 2006, p. 176)

A intertextualidade discursiva com a política está no substrato e no subsolo –

nas entranhas e nas vísceras – do Memorial de Aires, que problematiza e questiona

tudo isso (e muito mais) – eironea – ironia - paródia. “A ironia é o realismo

transcendental da arte.” (IZOLAN, 2006, p. 172) A prova disso está na relação entre

as óperas Ernani e Tristão e Isolda, uma vez que“(...) em ambas as peças, a personagem feminina (Elvira/Isolda) está ligada

(prometida/ casada) à nobreza (conde/rei), mas ama o plebeu (o jovemrevolucionário/o guerreiro)” e “o verdadeiro amor é interditado e morre, poruma trama político-amorosa (Ernani morre/Tristão morre). Em ambas aspeças, o amor à nobreza, por sua vez, é negado pela mulher.”(IZOLAN,2006, p. 182).

Destarte, pode-se dizer que o velho/o morto/o antigo regime é traído em nome

do amor e do entusiasmo pelo jovem/vivo/novo regime. O velho e antigo regime da

narração unívoca, unilateral, linear e monológica é substituído pelo novo estatuto da

narração plurívoca, dialógico-dialética/dialético-dialógica, descontínua e polifônica.

Ainda sobre a mudança política e, ipso facto, isto é, devido a isso,

obviamente, de status quo, segue-se que

Um dos elementos marcantes do imaginário republicano francês foi o usoda alegoria feminina para representar a República. A Monarquiarepresentava-se naturalmente pela figura do rei, que, eventualmente,simbolizava a própria nação [Luís XIV, o Rei Sol absolutista que disse:

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“L’État c’est moi”/“O Estado sou eu”]. Derrubada a Monarquia, decapitado orei, novos símbolos faziam-se necessários para preencher o vazio, pararepresentar as novas idéias e ideais, como a revolução, a liberdade, arepública, a própria pátria. Entre os muitos símbolos e alegorias utilizados,em geral inspirados na tradição clássica, salienta-se o da figura feminina.Da Primeira à Terceira República, a alegoria feminina domina a simbologiacívica francesa, representando seja a liberdade, seja a revolução, seja arepública.

A figura feminina passou a ser utilizada assim que foi proclamada aRepública, em 1792. A inspiração veio de Roma, onde a mulher já erasímbolo da liberdade. O primeiro selo da República trazia a efígie de umamulher de pé, vestida à moda romana, segurando na mão direita uma lança,de cuja ponta pendia um barrete frígio. A mão esquerda segurava um feixede armas. Um leme completava a simbologia. O barrete frígio identificava oslibertos na antiga Roma; o feixe de armas indicava a unidade, oufraternidade; o leme, o governo; a lança, arma popular por excelência, era apresença do povo no regime que se inaugurava. A mulher tambémapareceu em alegorias vivas, como na Festa do Ser Supremo, em1794, emque a liberdade foi representada por uma jovem. Na praça da Revolução[hoje Praça da Concórdia], uma estátua da liberdade em forma de mulherpresidia às execuções na guilhotina. Era uma figura em pé, barrete frígio nacabeça, lança na mão direita. A ela sem dúvida se dirigiu Manon Rolandquando, pouco antes de ser executado, exclamou: “Ó liberdade, quantoscrimes se cometem em teu nome!” (CARVALHO,1998, p.75-76)

3.5. A QUESTÃO NARRATIVAComo o poeta é um fingidor, temos que a arte do narrador machadiano se filia

à arte dionisíaca, caleidoscópica, metamórfica e camaleônica do artista e do poeta

que, devido à sua capacidade de inflexão vocal e de expressão facial, se outra, (se)

veste e se reveste, se dobra e se desdobra em múltiplos personagens e personas

fictas que dialogam e jogam dialética e mimeticamente entre si, a exemplo do que

acontece no e com o rapsodo das estórias mito-poéticas, os mimos da Antiguidade e

os jograis praticados na Idade Média. “O crítico Picot” aponta a existência “no teatro

medieval francês” “de uma técnica de representação, que se define como monólogo

dramático” na qual “uma comédia completa se representa numa cena única com um

só personagem, que finge diversos papéis” (SOUZA, 2006, p. 16).

Tudo isso em uma sublime e chistosa mascarada tragicômica que representa

uma bufoneria magistralmente transcendental, onde a realidade e a história, o narrar

e o representar ideologias, não se esgotam no conhecer-se e no saber-se. Todas as

instâncias do real só são, só existem e só subsistem enquanto devêm. Tudo isso em

uma arquitetura, ou arquitextura, que é uma arquite(x)tura da destruição, da

construção e da desconstrução. Trata-se de um moto perpetuo que é

constantemente enredado e desenredado, tal qual Penélope fazendo e desfazendo

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sua colcha para enganar os pretendentes enquanto espera por Ulisses. Nesse

autêntico baile de máscaras da arte machadiana constata-se que este fingidor

[...] cumpre a sublime função dramática de transmissor credenciado dossentidos culturalmente consentidos pelos diversos estratos sociais dacomunidade histórica. Não apresenta nenhuma ideologia em particular. Pelocontrário, representa a disputa das ideologias em luta. (SOUZA, 2006, p.16)

Ronaldes de Melo e Souza (2006) cita o erudito alemão Erwin Rohde, ao

colocar que este nos informa que a forma e o gênero do romance conhecem a sua

ascensão, na Grécia antiga, a partir do declínio e da queda do poema épico, da

tragédia e da comédia, suplantando-os, questionando-os e problematizando-os, já

que essa é a sua característica enquanto literatura irônico-revolucionária.

Mikhail Bakhtin adverte, entretanto, conforme lembra Ronaldes de Melo e

Souza, que podemos constatar, a partir do romance grego, e estendendo-se pela

trajetória literária europeia, duas vertentes estilísticas do romance: uma, reacionária,

que enveredou e esteve presa ao ranço do cânone; outra, inovadora, filiada aos

princípios e estatutos da irônica paródia desconstrutivista.

A partir disso, constata-se, curiosamente, que mesmo (muitas) obras

classificadas e alçadas ao cânone literário foram lidas e interpretadas de forma

unilateral e unívoca e que, durante muito tempo, a vigência dessa visão simplista

perdurou.

Para esclarecer a respeito da situação narrativa de primeira pessoa, Ronaldes

de Melo e Souza, recorrendo aos estudos do crítico austríaco Franz Stanzel,

ressaltando das três condições estruturais:

[...] 1ª) o eu narrante (o narrador) e o eu narrado (protagonista) são um e omesmo; 2ª) entre o eu narrante e o eu narrado, interpõe-se uma distânciatemporal; 3ª) a distância temporal implica metamorfose existencial(STANZEL apud SOUZA, 2006, p. 29).

Tais condições, conforme Ronaldes de Melo e Souza ressalta, nos ajudam a

compreender a revolução efetivada na estrutura narrativa das Memórias Póstumas

de Brás Cubas:

[...] o eu narrante e o eu narrado são um e o mesmo Brás Cubas. Só que,devido à distância temporal e à metamorfose existencial, o mesmo é,simultaneamente, o outro, e tão outro, que já não se concebe nem mesmocomo vivo. O narrador machadianamente definido como defunto-autor é aradicalização extrema do romance de primeira pessoa. (SOUZA, 2006, p.29)

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Com Memorial de Aires, Machado de Assis revoluciona mais uma vez o

romance de primeira pessoa ao escolher a forma de diário, em que está escrito o

memorial de Marcondes Aires: o “eu” deste diário fala mais dos outros que de si

mesmo. O memorial em forma de diário, que é o Último de sete cadernos e do qual

já se comentava em Esaú e Jacó, filia-se, criativamente à tradição do tratado e das

confissões (as Confissões51 de Santo Agostinho) – ambos medievais (principalmente

o primeiro) – e à do ensaio, que, criado na modernidade por Michel de Montaigne

(autor dos Ensaios), é a forma privilegiada da escrita dos pensadores alemães

Friedrich Schlegel e Walter Benjamin. Tudo isso sem nos esquecermos do gênero

epistolar:

O diário é, por tradição, um gênero confessional de literatura: dele seespera que, a sós com o papel, o autor nos desnude sua alma, pondo porescrito, de forma mais ou menos clara e ordenada, o mundo nebuloso desuas vivências. É o que supostamente se propõe a fazer o Conselheiro noMemorial quando, dialogando com o papel, chama-lhe “amigo a quem digotudo o que penso e tudo o que não penso”. Veja-se, porém, que esse “tudo”tem de ser tomado cum grano salis. Não é o tudo confessional domemorialista de praxe, mas o tudo reticencioso de um ex-diplomata a quemo vezo da profissão sempre levou a guiar “a conversação de modo que maisouvisse do que falasse”, ainda quando a conversação fosse consigo próprio,a ponto de reprender-se nos raros momentos em que, nas suas anotações,solta um pouco a língua: “emenda essa língua, velho diplomata”. (PAES,1976, p. 15)

No primeiro parágrafo da “Advertência” da primeira edição de Ressurreição,

seu primeiro romance, Machado de Assis (1975) o considera e denomina ensaio:

Não sei o que deva pensar deste livro; ignoro sobretudo, o que pensará deleo leitor. A benevolência com que foi recebido um volume de contos enovelas, que há dous anos publiquei, me animou a escrevê-lo. É um ensaio.Vai despretensiosamente às mãos da crítica e do público, que o tratarãocom a justiça que merecer. (ASSIS, 1975, p. 59 – grifo meu)

No terceiro parágrafo, torna a falar do ensaio:

Ora pois, eu atrevo-me a dizer à boa e sisuda crítica, que este prólogo nãose parece com esses prólogos. Venho apresentar-lhe um ensaio em gêneronovo para mim, e desejo saber se alguma qualidade me chama para ele, ouse todas me faltam, – em cujo caso, como em outro campo já tenhotrabalhado em alguma aprovação, a ele volverei cuidados e esforços. [...](ASSIS, 1975, p. 59-60 – grifo meu)

No penúltimo parágrafo (da “Advertência”), um aviso aos incautos críticos e

leitores obtusos deste escritor ironicamente oblíquo:

51 AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução de J. Oliveira Santos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002.

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Não quis fazer romance de costumes; tentei o esboço de uma situação e ocontraste de dous caracteres; com esses simples elementos busquei ointeresse do livro. A crítica decidirá se a obra corresponde ao intuito, esobretudo se o operário tem jeito para ela. (ASSIS, 1975, p. 61 – grifo meu)

José Paulo Paes (1976) diz mais a respeito da singularidade de Memorial de

Aires:

[...] o Conselheiro – conforme diz o Machado ortônimo desse seu diletoheterônimo – fora “diplomata excelente”, com aguçada “vocação dedescobrir e encobrir”, “verbos parentes” em que se contém “toda adiplomacia”. Pois são precisamente esses dois verbos que presidem aestilística do Memorial, onde o explícito só serve como indício do implícito eo encobrimento diplomático quase leva o leitor a esquecer o fato essencialde o livro ser mesmo, no fim das contas, um diário que, por indiretas vias,nos diz tanto acerca de quem o escreve como daqueles a quem descreve.(PAES, 1976, p. 14)

Consoante à lição de Ronaldes de Melo e Souza, “compreender é sempre

também compreender-se”, “conhecer é conhecer-se” (SOUZA, 1988, p. 78) e

“escrever é escrever-se” (SOUZA, 1988, p. 80), tudo isso “[...] no diário de um

aprendiz de morto” (PAES, 1976, p.) que é ao mesmo tempo um defunto autor.

Em dois capítulos de Esaú e Jacó (1977), Aires se diz de volta ao Rio de

Janeiro e restabelecendo-se permanente e definitivamente na velha residência do

Catete, “cansado de homens e de mulheres, de festas e de vigílias”. Com isso, traça

um planejamento para passar, para o papel amigo, suas memórias solitariamente.

Contraditoriamente, ele, em seguida, se queixa do enclausuramento e diz ter “sede

de gente viva”, o que o faz retornar ao convívio social. (PAES, 1976, p. 15-6)

“Essa ‘sede de gente viva’, traço fundamental do caráter de Aires, justifica o

paradoxo de o seu diário falar mais de outrem que dele próprio, o que não quer dizer

que o Memorial não tenha a sua dose de confessionalismo”. (PAES, 1976, p. 16)

Katia Muricy (1988) compara os três romances de Machado de Assis que se

inscrevem em um autêntico circuito das memórias, cada um com suas

particularidades e os três com suas semelhanças:

Ao menos três dos grandes romances de Machado de Assis têm comonarradores personagens que escrevem suas memórias: Dom Casmurro,Memórias Póstumas de Brás Cubas e Memorial de Aires. O advogadoBento e o Conselheiro Aires têm em comum a aposentadoria; Brás Cubasestá morto. Os três apresentam uma mesma característica: a exclusão dojogo social ou, pelo menos, a ausência de uma participação ativa. Solitáriosou morto, isto é, afastados do convívio social produtivo, dedicam-se aescrever suas memórias, exacerbação do cultivo de uma interioridade,ocasião privilegiada para o exame da compreensão dessa categoria emMachado de Assis. (MURICY, 1988, p. 112)

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Seguem-se abaixo as diferenças entre os três personagens narradores de

suas memórias que também são narrados por essas memórias:

[...] Ao contrário do defunto-autor ou do advogado misantropo, Aires éhomem de salão. No entanto, por seu cosmopolitismo, por seu longoafastamento do Brasil, pelo ócio das licenças ou da aposentadoria, foram-lhe imprimidas certas particularidades que o distinguem da sociedade quefrequenta por uma espécie de distanciamento complacente. Nela, suaconvivência não é propriamente uma participação social. Aires é, antes,testemunho: sua preocupação memorialista sublinha a diferença e medeseu interesse pelas pessoas [...] (MURICY, 1988, p. 113)

Ainda segundo Katia Muricy, os três não estão em busca de “nenhum tempo

perdido”, pois

não procuram a restauração ou invenção de um sentido que unifique osujeito das fragmentadas experiências vividas. Antes, narram o malogro ougratuidade dessa busca. A memória, aqui, não recupera o sujeito; trazendopara a cena o tempo, [...] ela o dilui no fluir [da corrente e da torrente daságuas] dos acontecimentos. [...] (MURICY, 1988, p. 115)

Na segmentação do tempo é impossível para o eu de agora reencontrar o eu

de outrora. Soma-se a isso o fato de que, em Machado de Assis, aquele nega,

renega, recusa, refuta e confuta este. A respeito do que é contado por esse eu de

agora também deve se considerar que “se é impossível reencontrar-se no tempo,

também o é encontrar aí a verdade ou o sentido dos acontecimentos” e que “o

indivíduo não se constitui como um eu único, não é o mesmo sujeito em suas

variadas experiências”, pois também ocorre a “experiência da perda da unidade do

eu na dispersão dos acontecimentos vividos” (MURICY, 1988, p. 116).

Sobre a confrontação entre o eu de agora da solidão e da reclusão com a

vivência entre e na multidão da cidade, verifica-se que este eu individual – no caso

de Brás Cubas e Aires, que gostam de estar em meio à gente da multidão – também

se perde, se ausenta e se dilui em meio à movimentação da cidade do século XIX

que começa a tomar forma a partir da modernização que nasce com os novos

conceitos urbanísticos que se iniciam e começam a se propagar como nova

tendência desde então.

Não há, portanto, como fruto de uma individualização disciplinar, simetria doindivíduo com o cidadão, conciliação do privado com o público. Imersos navida mundana, na multidão anônima da grande cidade, os personagens deMachado de Assis quebram sua individualidade na experiência dispersivado moderno que a nova sociabilidade proporciona (MURICY, 1988, p. 120).

O narrador machadiano não quer nenhuma ideologia para viver, pois não

compartilha nem partilha de nenhuma. Na qualidade de artista que lança mão de

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diversas máscaras, uma para cada estilo e personalidade dramáticos possíveis,

apenas nos abre as cortinas de um palco onde apenas se representamos (frágeis)

poderes, a glória e a rivalidade das e entre as ideologias – podres poderes – que

fazem parte da cultura e não da natureza, tudo isso dentro do real autorizado pela

dita civilização que se formou ao longo da história. Entre essas e outras coisas e

fatores, o narrador machadiano denuncia que

[...] A falsa consciência é que pretende fazer passar por natural o que éconvencional. A perpetuação de todo e qualquer poder depende destamistificação ideológica. Por isso é que o narrador machadiano não solicitado leitor nenhuma “adesão imaginativa” ao apelo pretensamente único deuma motivação realista correspondente a uma determinada posiçãoideológica. [...] (SOUZA, 2006, p. 24)

A fogueira das vaidades encontrada em meio a estes castelos de areia e de

cartas ou em uma partida de xadrez em que se sucedem poderes ideológicos e

estratos sociais dominantes e hegemônicos, em que um sai de cena e outro entra

debaixo holofotes das luzes da ribalta no romance machadiano “resulta antes da

trama de um texto capaz de desnudar as articulações do poder na nova sociedade

brasileira do século XIX” (MURICY, 1988, p. 110).

Luiz Costa Lima em texto sobre a relação entre a obra de Machado de Assis e

a história e política coloca que

[...] depositando na camada apagada do palimpsesto sua ficção corrosiva,inverteu os termos como a ficção se relacionava contemporaneamente coma História: em vez de tornar aquela submissa aos passos desta, tomou amatéria histórico-política como fonte para seu desdobramento eradicalização (LIMA, 1989, p. 260).

Machado de Assis, entre outros que recusam a historiografia, não trabalha

com a natura naturata, e sim, com a natura naturans; não cria com a ergon, mas sim,

com a energeia; e não cultiva o atual, mas o potencial.

Katia Muricy também nos fala mais sobre a potência crítica em Machado de

Assis, aqui, particularmente, de Aires e de seu Memorial:

Aires, o personagem-narrador de Memorial de Aires, aparece como o porta-voz mais bem-sucedido da crítica à razão burguesa presente no texto deMachado. Este Aires, de já vimos a novidade na questão do celibatário, nãoé o louco Quincas Borba, nem o defunto Brás Cubas. É o aposentado, o de“outro tempo”. Pode estar afastado das controvérsias. Já ultrapassou atémesmo o trágico, instalou-se na aposentadoria, no ceticismo indulgente.Livrou-se dos conflitos do “século utilitário e prático” de que se entedia, nãofoi obrigado a submeter-se com convicção aos novos tempos. Isso ele fez,posto que cordato, mas sem uma adesão, posto que cético. Livrou-se assimdos conflitos, do drama de Rubião. Aires computa alegremente ou, aomenos, serenamente, o tempo que perdeu. Nesse sentido, escreve o seu

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Memorial, contra a pressa de sua época, contra o gosto de sua época. Sutildiscordância de um “entediado” do século. (MURICY, 1988, p. 91)

O espectador, mantendo-se à distância e à parte do jogo da representação

teatral ou cúltica, ou o leitor que realiza a interpretação de um texto, dele

participando, no caso da literatura e do romance, na qualidade de leitor crítico ou

ruminante, pois, como disse Schlegel em um de seus fragmentos, “um crítico é um

leitor que rumina; por isso deveria ter mais de um estômago” (SCHLEGEL, 1997, p.

23), detecta as suas nuances e, doravante, o decifra, compreendendo-o e

interpretando-o, e, assim, descerra-se e descortina-se para ele um horizonte de

sentido. “A alegria ante o espetáculo que se oferece [...] é a alegria do

conhecimento”. (GADAMER, 2008, p. 167)

No ser do jogo do ser da obra de arte, a obra de arte representa e se

representa e se interpreta para si mesma infinitamente, representando e

interpretando a sua verdade acima e além do bem e do mal – o “que se representa

no jogo da arte é o verdadeiro que subsiste” (GADAMER, 2008, p. 166).

O segundo paralelo que pode ser efetuado, a partir das considerações de

Gadamer – o primeiro foi estabelecido com Foucault –, é com Walter Benjamin,

quando este trata da atividade interpretativa da crítica, da crítica propriamente dita,

do comentário, da verdade e da a-temporalidade, ou seja, do caráter ex tempore da

obra de arte.

Aires se conforma com o fato de Tristão e Fidélia terem ido embora e

abandonado e deixado os velhos que ficaram para trás e que encaminham-se para a

morte. “Deixe que os mortos enterrem seus mortos”, presente nos evangelhos de

Mateus (8: 22) e Lucas (9: 59-60) no texto bíblico do Novo Testamento, é o recado

dado por Machado de Assis. As relações entre os vivos e os mortos é tema

constante em sua obra. Os mortos que regem a narrativa e os destinos dos vivos,

perseguindo-os – perséptus morthus –, a perseguição dos mortos, tema presente

em Ésquilo.

Em Memorial de Aires, aposta-se e joga-se com a morte. Joga-se xadrez com

a morte, a exemplo do cavaleiro medieval das cruzadas na obra-prima

cinematográfica O Sétimo Selo52, do diretor sueco Ingmar Bergman.

52 BERGMAN, Ingmar. DVD O Sétimo Selo. Elenco: Max von Sydow, Bibi Andersson et al. Ano dofilme: 1956. Suécia. Versátil Home Video.

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A viagem e a travessia, tema caro à literatura desde sempre, desde A

Odisseia, de Homero, seja por terra, seja por mar, seja por ar (ou mesmo, no espaço

sideral, pegando carona na cauda de um cometa pela via láctea, estrada tão bonita,

como o pequeno príncipe), seja da vida para a morte, por entre pedras, brumas,

sendas e veredas, está aqui presente.

O pensador francês Gaston Bachelard lança a pergunta: “Não terá sido a

Morte o primeiro Navegador?” (BACHELARD, 1989, p. 75)

“A morte não seria a última viagem. Seria a primeira viagem. Ela será, para

alguns sonhadores profundos, a primeira viagem verdadeira”. (BACHELARD, 1989,

p. 75)

A respeito da morte enquanto viagem, prossegue Gaston Bachelard:

A Morte é uma viagem e a viagem é uma morte. “Partir é morrer um pouco.”Morrer é verdadeiramente partir, e só se parte bem, corajosamente,nitidamente, quando se segue o fluir da água, a corrente do largo rio. Todosos rios desembocam no Rio dos mortos. Apenas essa morte é fabulosa.Apenas essa partida é uma aventura. Se de fato um morto, para oinconsciente, é um ausente, só o navegador da morte é um morto com oqual se pode sonhar indefinidamente. (BACHELARD, 1989, p. 77)

Ainda sobre o elemento água, Gaston Bachelard, em sua obra A Água e os

Sonhos, irá tratar da horizontalidade do complexo de Caronte, o condutor da barca

do inferno na qual seguem os mortos e da verticalidade do complexo de Ofélia, que

pode, entre outras coisas, segundo o pensador francês, ter ido ao encontro da lua

cujo reflexo estava estampado nas águas do riacho. (BACHELARD, 1989, p. 73-96)

Bachelard também conta que “nas velhas lendas bretãs passam

incessantemente navios-fantasmas, navios-infernos como o Holandês Voador”

(BACHELARD, 1989, p. 80), como na ópera de Richard Wagner, O Holandês

Voador53, também chamada O Navio Fantasma, cujo personagem principal é

amaldiçoado e condenado a vagar eternamente pelos mares.

A água que liberta, a água que aprisiona, como na relação de anagrama entre

as palavras francesas lacustre e claustre, “claustro” em português.

53 WAGNER, Richard. DVD Der Fliegende Holländer (O Holandês Voador). Elenco: Simon Estes,Matti Salminen, Lisbeth Balslev et al. Coro e Orquestra do Festival de Bayreuth. Regente: WoldemarNelsson. Selo Deutsche Grammophon. Ano original da gravação: 1986. Ano de lançamento do DVD:2005. Bibliografia sobre a ópera: Coelho, Lauro Machado: A Ópera Alemã. São Paulo, SP: EditoraPerspectiva, 2000, p. 226-7. (coleção História da Ópera)

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O nome de família do grande compositor barroco alemão Johann Sebastian

Bach se relaciona com o fluxo da água, uma vez que Bach também é o substantivo

alemão que denota e designa pequeno rio ou riacho.

Eis o fragmento 12 de Heráclito: “Para os que entram nos mesmos rios,

afluem sempre outras águas, mas do úmido exalam também os vapores.”

(HERÁCLITO, 2005, p. 61). Já no fragmento 49a, ele diz: “No mesmo rio entramos e

não entramos; somos e não somos” (HERÁCLITO, 2005, p. 71). Segundo o

fragmento 91, “Não se pode entrar duas vezes no mesmo rio” (HERÁCLITO, 2005,

p. 83). Na releitura e recriação de Haroldo de Campos dos fragmentos heraclíticos,

tempo, história, memória, lembrança, é/são, ao fim e ao cabo, “tudo riocorrente”

(CAMPOS, 1985, p. 73).

Tudo flui em seu devir, assim como nas redondilhas de “Sôbolos rios...”, “a

suprema crição lírica de Camões” (MARQUES, 1989, p. 67), analisado, por

Oswaldino Marques no capítulo 7 de seu livro Acoplagem no Espaço, em que “o rio

flui... o pranto flui...” (MARQUES, 1989, p. 68), “a realidade flui...”, “a consciência

flui...” (MARQUES, 1989, p. 69), “os próprios estados integrantes da consciência

fluem...”, “a sociedade flui...” (MARQUES, 1989, p. 71), “o poema, em sua quididade,

flui...” (MARQUES, 1989, p. 72), “as ideações fluem...”, “a transrealidade flui...”

(MARQUES, 1989, p. 78), “Babel e Sião (re)flui...” (MARQUES, 1989, p. 81) e “o

metapoema flui...” (MARQUES, 1989, p. 85).

Oswaldino Marques diz sobre a arquitetura policoral e poli e multiestratificada

do poema de Camões, de “inegável construção em contraponto, ao molde de um

edifício polifônico” e de “composição quase plástica” (MARQUES, 1989, p. 73):

A leitura de “Babel e Sião” não raro parece conduzir-se num campo verbalpluriestratificado. Presumimos que, em parte, responde por isso a funçãocatalisadora do Salmo 136 [Super flumina Babylonis ou Os rios deBabilônia], espécie de controle remoto da obra que se comporta como umteleguiado. É bem verdade que fatores outros oriundos das artes plásticas eda Música, igualmente podem ser indiciados. A era de Camões assinala oíndice de cristalização de variados experimentos de simultaneidade e“espacialidade” na representação da realidade, em busca de umaobjetivação cada vez mais convincente. Pense-se no perspectivismo deBrunelleschi e de Uccello; pense-se no “policoralismo” veneziano sob aégide de Andrea Gabrieli, no século XVI. Duzentos anos depois, Bach aindapersegue a riqueza expressiva em prelúdios que têm a melodia coral naparte superior, acompanhada no basso continuo por motivos que espelhamo pensamento básico do texto plurivocal (Orgelbüchlein [o Pequeno Livro deÓrgão, do mestre alemão do barroco musical]). Recorde-se o numeroso, otranscendente políptico de Jan Van Eyck, O Cordeiro Místico, na catedral deSaint Bavon, em Gand, que consiste em duas teorias superpostas de

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composições com seus prolongamentos alares articulando pontes entre osagrado e o profano. (MARQUES, 1989, p. 73)

Sobre o fluxo da consciência nessa obra de Camões, o crítico chama a

atenção para cinco versos onde há “a notação sobretudo sagaz da transfusão do

passado no presente, de tal sorte que a alteração parece congelar-se na

inalterabilidade. Algo como o efeito ilusório do repuxo d’água que, de tão possuído

de ímpeto, se diria ‘parado’. Um ‘soberbo recurso retórico’” (MARQUES, 1989, p.

69):

Ali lembranças contentesN’alma se representaram;E minhas cousas ausentesSe fizeram tão presentes,Como se nunca passaram. (CAMÕES apud MARQUES, 1989, p. 69)

Desta feita, a memória atualiza o passado, tornando-o contemporâneo, hic et

nunc, sendo que o passado é sempre construído, reconstruído, inventado e

reinventado, já que é operativo.

Em Esaú e Jacó e Memorial de Aires, as duas obras de Machado de Assis em

que o Conselheiro está presente, há uma relação com o ontem e o hoje, além de

uma relação com o aqui e o lá, a qual pode estar relacionada também com a

questão temporal, conforme atesta José Paulo Paes:

[...] o passado está morto; o Aires sexagenário diz ter voltado à pátria paranela morrer. O aqui se polariza, assim, como o próprio locus do passado, davelhice, da morte. Por oposição, o lá, isto é, a Europa, se marca, nasemântica do Memorial, como o locus da vida. Quando Eduardo, o primeiromarido de Fidélia, morre inopinadamente em Lisboa, seu corpo não éenterrado lá, mas trasladado para cá. No registro de faz de seu almoço comTristão nas Paineiras e em que lhe ouve confidências acerca de seu amorpor Fidélia, o Conselheiro deixa escapar um frase reveladora: “a vida quechama Tristão para fora daqui, a morte que prende a viúva à terra e às suassaudades” (PAES, 1976, p. 22).

A falecida mulher de Aires, todavia, é enterrada em Viena. Sobre esse fato,

Aires diz que “os mortos ficam bem onde caem” (ASSIS, 1977, p. 71). Como bem

disse ironicamente o próprio Aires, “tudo é assim contraditório e vago também”

(ASSIS, 1977, p. 131).

Sobre a condição e fragilidade humanas diante da inexorável passagem da

vida para a morte, sobre a qual Aires fala, quando diz que “tudo é fugaz neste

mundo” (ASSIS, 1977, p. 131), eis esses cinco outros versos:

Mas, em vida tão escassaQue esperança será forte?

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Fraqueza da humana sorte,Que quanto da vida passa

Está recitando a Morte. (CAMÕES apud MARQUES, 1989, p. 74)

Eis os últimos versos, que tratam da travessia da vida para a morte:

Ditoso quem se partirPara ti, terra excelenteTão justo, e tão penitente,Que depois de a ti subir

Lá descanse eternamente! (CAMÕES apud MARQUES, 1989, p. 85)

Nesse clima extático [dos derradeiros versos dessas célebres redondilhasdo poeta maior de Portugal], enlaçam-se nupcialmente dentro de nós osacentos sublimes do Terzett und Chor, de Die Jahreszeiten [As Estações,oratório], de Haydn:

Sie steigt herauf, die Sonne, sie steigt.Sie naht, sie kommt.Sie strahlt, sie scheint.;

o Sanctus, sanctus, sanctus, dominus Deus / Sabaoth! , da Missa em SiMenor, de J. S. Bach; a portentosa força edificadora do retábulo L’AgneauMystique, de Van Eyck...

E nessa catedral invisível, essa colunata berniniana de símbolos, na criptados reis,

Lá descanse eternamente!

o nosso mousikòs anér, Camões!!... (MARQUES, 1989, p. 85)

Mousikòs anér: homem formado nas artes das Musas.

Uma vez que a palavra “discurso” em alemão é “Rede”, temos que essa

“rede”, que é o monumental texto de Memorial de Aires, é tecida musical e

ironicamente, entrelaçando-se diversos textos, obras e vozes – vozes dos vivos,

vozes dos mortos, vozes veladas, vozes desveladas, outras vozes – que dialogam

entre si na polifonia desta ópera-obra ou obra-ópera. Ópera dos Mortos. Ópera dos

Vivos.

Os mortos (e os que se encaminham para a morte) são pó deitado ao chão, à

terra, pó parado, pó sem vaidade. Os vivos são pó levantado, pó com vento, pó com

vaidade. Este é o desengano de que trata o escritor barroco português Antonio

Vieira, em seu primeiro “Sermão da Quarta-Feira de Cinza”.

História, estória, passado, pensamento, rememoração, lembrança, sonho, a

raça humana, tudo é, ao fim e ao cabo, fragmento e a ruína alegórica de que trata

Walter Benjamin. Aires, Rita, o casal Aguiar, todos são ruínas alegóricas – relíquias

da morte. O mundo – em cuja natureza tudo tende ao perecimento e à morte – como

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uma caveira – “a caveira do mundo”, como assinala o escritor barroco português

Antonio Vieira, também em seu primeiro “Sermão de Quarta-Feira de Cinza” – o

mundo como o crânio de Yorick, o bobo da corte em Hamlet (1995), de William

Shakespeare.

No capítulo V de Memórias Póstumas de Brás Cubas, o narrador se refere à

velha Virgília como “ruína, uma imponente ruína”, além de se referir a si mesmo

como pó e chamar o tempo de “ministro da morte” (ASSIS, 1978, p. 20).

Retomando a frase dita por Aires – “A vida é um direito, a mocidade outro” –

que é emendada com outra, dita pelo mesmo Aires, no encerramento do romance –

“Viva a mocidade!” conecta-se com o terceiro “Sermão da Quarta-Feira de Cinza” de

Antônio Vieira, quando o sermonista fala sobre a ressurreição de Lázaro por Cristo,

uma vez que este, o “supremo Senhor da vida e da morte” “lhe lamenta a morte” e

“lhe festeja a vida” (VIEIRA, 1959, p. 227).

Cinzas por cinzas, das cinzas às cinzas, do pó ao pó, outra obra que trata de

viagem – marítima – diga-se de passagem – e que também é uma homenagem à

ópera – é o filme E la nave va, do italiano Federico Fellini54, em que as cinzas da

cantora lírica Edmea Tetua são levadas a bordo do navio Gloria N. para a ilha de

Erimo, terra natal da artista. Ao final, os personagens se dirigem decididamente

rumo ao trágico encontro com a morte em alto-mar.

Aires, aprendiz de morto e defunto-autor, pois, se converte em ator que está

entre os demais personagens de suas memórias, no meio do jogo da representação

cênica e dramática do drama de paixões e, simultânea e paradoxalmente, está de

camarote ao longe com sua luneta, impassível e de forma imparcial narrando o que

se passa, pois aqui, nesta mediação narrativa, coral e parabática, “escrever significa

aprender a morrer”. (SOUZA, 2006, p. 174)

Viajando à roda da vida e da morte, Aires, com seu pensar chistoso e senhor

de seus próprios chistes bem como dos chistes dos demais atores-personagens de

seu drama, diz adeus à vida, em uma dança circular de transe, êxtase e

entusiasmo, das cinzas para as cinzas e do pó ao pó, em torno de si mesmo.

Aires é, destarte, como o Sphaïros dos fragmentos 27 a 29 de Empédocles:

Fixo no espesso invólucro da harmoniaO Sphaïros é alegre na sua revolução solitária.Não há discórdia nem lutas indecentes nos seus membros.

54 FELLINI, Federico. DVD E La Nave Va. Itália. Ano do filme: 1983. Versátil Home Video.

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Mas é igual em todos os sentidos, semelhante a si próprio e absolutamentesem limites,Sphaïros circular, alegre na sua revolução solitária.Porque não se vê dois ramos soltar-se a partir do seu dorso,Não tem pés, nem joelhos ágeis nem órgãos genitais,Mas é esférico, em todos os sentidos igual a si próprio (BRUN, 2002, p. 85-6)

Em toda esta polifonia musical e ensaística, a escrita do memorial estabelece

um discurso dialético, dialógico e contrapontístico com o que cita, com quem cita,

com seus personagens e com sua própria estrutura, bojo e arcabouço.

Memorial de Aires é a ópera mais sublime, sofisticada, refinada, requintada e

apoteótica de Machado de Assis. Verdadeira ode à vida, ao amor e à liberdade, trata

também do perdão, da viagem, do mar, da música e do inexorável ciclo da vida e da

morte. É a ópera das óperas de Machado de Assis.

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CONCLUSÃO

Nas pistas falsas dadas pelos escritores e/ou ensaístas a partir da sagração

do indivíduo deflagrada por Montaigne temos que de

Per se, cada homem já é um agregado de peças dessemelhantes; emconjunto, somos outras tantas diversidades. Algo entretanto nos iguala,Montaigne poderia ter dito: a arrogância e a frivolidade de nossa razão. Otribunal a que a submete parte da denúncia de ser infundada sua pretensãoao conhecimento. É em nome pois da radical diversidade de cada um quese condena e humilha a razão. Desta maneira cada portador dessaheterogeneidade assume o direito de se fazer ouvir, de contar minudênciase indiscrições pessoais. Tudo isso põe o autor na órbita do autobiográfico.Haveremos contudo de diferençar essa órbita geral do gêneroautobiográfico propriamente dito. A órbita geral não se esgota no gêneroautobiográfico, pois ainda abrange a carta – na qual o Renascimento e,particularmente, Erasmo, experimentam o prazer da expressão de sipróprio, não mais congelada pelo formulário retórico ou pelo modelociceroniano [...] – e o ensaio. A conversão de Montaigne-personagem emMontaigne-autor cumpriu-se menos ao se encerrar em seu próprio castelodo que quando, falido o projeto de glorificar a memória de La Boétie,praticamente compreendeu que escrever é lidar com ausências. Aconversão o insere no autobiográfico; o tom rapsódico o conecta à deriva doensaio (LIMA, 1993, p. 60-1).

Escritores e ensaístas como Cícero, Sócrates via Platão, Dante, Santo

Agostinho, o próprio Montaigne, entre tantos outros nomes, até chegar a Schlegel,

Benjamin, Adorno, Franz Kafka, Albert Camus e Machado de Assis problematizam

em sua obra e em seu discurso toda uma questão da objetividade, da subjetividade,

do sujeito e do eu, e:Percebemos assim que afirmar o caráter literário do ensaio em função deuma concentração sobre a subjetividade não equivale a identificar asrepresentações literárias à expressão dos conteúdos do sujeito – como ofarão os românticos. Na verdade, a obra de Montaigne não é o ensaio (nosentido de conatus, “tentativa”, “esboço”) de desvendamento da verdadeinterior, das “leis” do sujeito (das quais emanariam as leis do sensível, doartístico), mas um apelo à constância e à identidade que cedo percebe queo Eu – essa substância cuja evidência sensível deveria nos preservar dasilusões dogmáticas, das presunções da opinião – nada mais é quemutabilidade e fragmentação. Estamos alienados em nós mesmos, e nãopodemos senão confessar nossa dessemelhança essencial, expor ao leitora deriva permanente que se põe entre o auto-retrato que nos propomospintar e os acidentes que vão sendo introduzidos pelo detalhamento do atode retratar-se – e que vão progressivamente modificando as feiçõesoriginais do próprio pintor.O imperativo de atingir a identidade nunca é esquecido; mas ele é sempreimpossível, ou melhor, ele sempre é instável, pois pertence ao hemisfériosensível e contingente da imagem. Nisso, mais uma vez, Montaigne e osensaístas que herdam sua estratégia de enunciação diferem das posterioressistematizações do literário, que advogam uma verdade da representaçãoque, por ser uma verdade da aparência, estará circunscrita à fonte porexcelência dos sentidos – o sujeito.Montaigne segue o percurso contrário: a partir dele podemos dizer que nãoé o sujeito que tem uma objetividade, mas é a objetividade mesma que,

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enunciada pelo sujeito, se apresenta sempre como miragem. ComMontaigne a escrita não é, obviamente, ficcional – o que equivaleria aafirmar a verdade de nossas representações, de nossas “quimeras emonstros fantasiosos”; mas os Ensaios expõem – em sua própria estruturatextual – a fábula contida em toda linguagem (PINTO, 1998, p. 40-2).

Se “nos Essais é evidente que o registro do singular se transforma em

rapsódica reflexão sobre a vida enquanto humana” (LIMA, 1993, p. 60), temos, em

toda nossa exegese da diegese contida na visceralidade do texto machadiano

presente no Memorial de Aires, a rapsódica reflexão crítica não apenas quanto à

vida, mas também sobre a morte, ambas humanas e partes da condição humana,

por meio da mediação entre o ontem e o hoje, pois, no hoje, o defunto-autor Aires

não mais se reconhece no Aires envolto no drama de paixões do ontem. Nessa

revolucionária província machadiana do escrever, o eu de hoje de há muito deixou

de ser o eu de ontem, e entre os dois deu-se uma plena e irreversível ruptura em

meio à fragmentação, desdobramento e segmentação tanto temporal quanto do

Conselheiro, em um espetáculo que nos apresenta toda a carga dramática desta

autêntica, genuína e original ruína alegórica que é Aires.

O título do romance, as epígrafes, as citações, as alusões, funcionam como

interpretantes, desempenham o papel de súmulas metatextuais que demandam o

empenho exegético do leitor. Aqui também, o romance machadiano se nos

apresenta como provocação da diligência crítica do leitor ruminante. O defunto autor

Aires requer sempre uma leitura atenta, tal qual a leitura preconizada pelo filósofo

Agostinho no capítulo quatorze do livro décimo das suas Confissões: “a memória é o

estômago da mente”, ela absorve o que se lembra da mesma forma como se

assimila o alimento trazido à boca pela ruminação. Também no Memorial o leitor é

instado a jogar e ser jogado pelo jogo alusivo das citações que se entrelaçam. O

Aires que se poetiza no Memorial mantém uma conversa constante consigo mesmo,

com os demais personagens e com os autores evocados: Johan Zorro, Dom Dinis,

Dante, Shakespeare, Beethoven, Wagner, Verdi, Vieira, entre outros A matéria da

narração se converte então em diálogo de vozes em cujo concerto ressoa em

surdina a música mesma da vida que vibra pela última vez, comovida na audição do

colóquio autêntico do som e do silêncio, do ser e do não-ser, do saber e do não-

saber, da ilusão e da desilusão, da fidelidade e da traição, da plenitude da vida e do

vazio da morte, da fragilidade e da força, do absurdo e da graça.

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Nas páginas do diário que foram bordadas pelo Conselheiro Aires, não há

uma versão canônica dos fatos que se possa transmitir de forma absoluta, como um

selo de veracidade, porque a vida, que não firma pacto com a lógica, arroga-se o

direito de contradizer-se. A ironia, como forma privilegiada de conhecimento, funda-

se no reconhecimento do princípio de contradição inscrito no próprio ser do homem

e do mundo. Com seu conhecimento passional todo feito de imaginação e desrazão,

o Conselheiro Aires constrói o que não existe.

A tão proclamada intertextualidade de sua obra não se dá de forma aleatória.

Estabelece-se entre Machado e outros escritores, pensadores, compositores, um

grandioso e fecundo diálogo, não ocorrendo nunca a citação desnecessária e

pomposa, mas a problematização mesma do pensamento desses autores e de sua

forma escrita. Machado nos chama para sua própria escrita e nos encaminha para a

daqueles grandes escritores, pensadores, compositores. Jogados pelo jogo irônico

de sua obra, muitas vezes não percebemos que indo às obras universais, às obras

que escolhe como suas interlocutoras, retornamos à sua (dele, Machado de Assis).

O velho jogo de dar e recolher reaparece e acaba fazendo com que não

encontremos a saída dessa imensa casa-teatro-espelho-labirinto, obra entreaberta

que é. Para as poucas portas fechadas, esse escritor genial da literatura brasileira e

universal nos fornece as chaves, aqui e ali distribuídas na própria estrutura da sua

obra. “A obra em si mesmo é tudo”. Aparências de puro romance, de puro diário? O

“nosso” romance ou diário usual? Pode ser que sim. Pode ser que não. Acreditamos

que não, porque ninguém vê o outro para continuar o mesmo. Memorial de Aires,

como todos os outros romances machadianos é a prova incontestável da força

cognitiva do romance machadiano.

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DISCOGRAFIA

BACH, Johann Sebastian. LP Tocata e Fuga em Ré Menor, BWV 565. Órgão:

Walter Kraft. Coleção Mestres da Música. São Paulo, SP: Abril Cultural, 1980.

BACH, Johann Sebastian. CD Das Wohltemperierte Klavier (O Cravo BemTemperado). 2 vol. Cravo: Gustav Leonhardt. Coleção Editio Classica. Deutschland:

Selo Deutsche Harmonia Mundi, 1992; 1989.

BEETHOVEN, Ludwig van. LP Sinfonias 5 & 9.Orquestra Filarmônica de Berlim.

Herbert von Karajan. Gravação de 1982. Selo Deutsche Grammophon-PolyGram

Discos. Ano de lançamento do disco: 1987 (acompanha o disco encarte com texto

sobre as sinfonias, de autoria de Stefan Kunze, traduzido por Mário Willmersdorf Jr.).

DEBUSSY, Claude. CD Images/Prélude à L’Après-Midi d’un Faune/Printemps.

The Cleveland Orchestra.Regente: Pierre Boulez. France: Selo Deutsche

Grammophon, 1993.

_________. CD La Mer/Nocturnes/Jeux/Rhapsodie pour Clarinette et Orchestre.

The Cleveland Orchestra.Regente: Pierre Boulez. France: Selo Deutsche

Grammophon, 1995.

________. CD Prélude à L’Après-Midi d’un Faune (Prelúdio Tarde de umFauno). The Cleveland Orchestra. Regente: Pierre Boulez. France: Selo Deutsche

Grammophon, 1993.

Legião Urbana. LP O Descobrimento do Brasil. EMI, 1993.

PHILIP GLASS. CD trilha-sonora do filme Naqoyaqatsi. Sony Music, 2002.

_______. CD trilha-sonora do filme Powaqqatsi. Nonesuch, 1990.

_______. CD trilha-sonora do filme Koyaanisqatsi. Orange Mountain Music, 2009.

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101

________. CD Glassworks. Sony Music, 1990.

_________. CD Symphonies 2 & 3. Bournemouth Symphony Orchestra.Naxos,

2004.

MOZART, Wolfgang Amadeus. CD Sinfonia nº 41 “Júpiter”. Orchestra of the 18th

Century. regente: Frans Brüggen. Philips Digital Classics Productions: 1986.

RAVEL, Maurice: LP Bolero/Pavana para uma princesa morta. Orchestre de Paris.

Regente: Daniel Barenboim. Rio de Janeiro: Deutsche Grammophon-PolyGram,

1982.

SCHUBERT, Franz. CD Symphonies Nos. 8 "Unfinished" & 9 "The Great"(Sinfonias nº 8, “Inacabada”, & 9, “A Grande”). New York Philharmonic Orchestra.

Regente: Leonard Bernstein. Sony Classical: 2000.

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FILMOGRAFIA

BERGMAN, Ingmar. DVD O Sétimo Selo. Elenco: Max von Sydow, Bibi Andersson

et al. Ano do filme: 1956. Suécia. Versátil Home Video.

BROCA, Philippe de. VHS O Cavaleiro Vingador (Le Bossu / On Guard). França.

Elenco: Vincent Perez, Daniel Auteuil, Fabrice Luchini, Marie Gillain, Yan Collette,

Philippe Noiret et al. TF 1 International. São Paulo, SP: PlayArte Home Video, 1997.

FELLINI, Federico. DVD E La Nave Va. Itália. Ano do filme: 1983. Versátil Home

Video.

FLEMING, Victor. DVD O Mágico de Oz. Estados Unidos. Elenco: Judy Garland,

Frank Morgan, Ray Bolger, Bert Lahr, Jack Haley, Billy Burke, Margaret Hamilton,

Charley Grapewin et al. Ano do filme: 1939. Warner, 2009.

HERZOG, Werner. DVD O Enigma de Kaspar Hauser. Elenco: Bruno S., Walter

Ladengast et al. Alemanha. Ano do filme: 1974. Versátil Home Video.

SHAKESPEARE, William; BRANAGH, Kenneth. VHS Hamlet. Elenco: Kenneth

Branagh, Julie Christie et al. Castle Rock Entertainment/Columbia Tristar Home

Video: 1996.

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103

VIDEOGRAFIA DE ÓPERAS

BEETHOVEN, Ludwig van. DVD Fidelio – elenco: Lucia Popp, Gundula Janowitz,

René Kollo et al. Coro e Orquestra da Ópera de Viena – regente: Leonard Bernstein

– ano da gravação original: 1978 - ano de lançamento do DVD: 2007 - selo Deutsche

Grammophon – Berlin, Germany.

DONIZETTI, Gaetano. DVD Pia de Tolomei. Elenco: Patrizia Ciofi, Dario Schmunck,

Andrew Schroeder, Laura Polverelli. Orquestra do Teatro La Fenice. Regente: Paolo

Arrivabeni. Italy: Selo Dynamic, 2005.

VERDI, Giuseppe. DVD Ernani – elenco: Mirella Freni, Placido Domingo, Renato

Bruson, Nicolai Ghiaurov et al. - Orchestra e Coro del Teatro alla Scala – regente:

Riccardo Muti – ano da gravação original: 1983 – ano de lançamento do DVD: 2004

– selo Kultur.

__________. DVD Falstaff. Elenco: Renato Bruson, Katia Ricciarelliet al. Coro e

Orquestra do Royal Opera Covent Garden. Regente: Carlo Maria Giulini. Ano da

gravação original: 1982 – ano de lançamento do DVD: 2007. Selo Kultur.

__________. DVD La Forza del Destino – elenco: Montserrat Caballé, José

Carreras, Piero Cappuccilli et al. - Orchestra e Coro del Teatro alla Scala – regente:

Giuseppe Patané – ano da gravação original: 1978 – ano de lançamento do DVD:

2011 – selo Hardy Classic Video.

__________. DVD Macbeth. Elenco: Leo Nucci, Shirley Verrett, Samuel Ramey et

al. Coro e Orquestra do Teatro Comunal de Bolonha. Regente: Riccardo Chailly. Ano

da gravação original: 1987 – ano de lançamento do DVD: 2008. Selo Deutsche

Grammophon.

__________. DVD Nabucco. Elenco: Renato Bruson, Ghena Dimitrova et al. Coro e

Orquestra do Teatro alla Scala. Regente: Riccardo Muti. Ano da gravação original:

1987 – ano de lançamento do DVD: 2004. Selo Kultur.

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___________. DVD Otello. Elenco: Placido Domingo, Kiri Te Kanawa et al. Coro e

Orquestra do Royal Opera Covent Garden. Regente: Georg Solti. Ano da gravação

original: 1992 – ano de lançamento do DVD: 2001. Selo Kultur.

__________. DVD Rigoletto – elenco: Luciano Pavarotti, Ingvar Wixell, Edita

Gruberova et al. Orquestra Filarmônica de Viena – regente: Riccardo Chailly – ano

da gravação original: 1981 - ano de lançamento do DVD: 2006 - selo Deutsche

Grammophon – Berlin, Germany.

WAGNER, Richard. DVD Der Fliegende Holländer (O Holandês Voador). Elenco:

Simon Estes, Matti Salminen, Lisbeth Balslev et al. Coro e Orquestra do Festival de

Bayreuth. Regente: Woldemar Nelsson. Selo Deutsche Grammophon. Ano original

da gravação: 1986. Ano de lançamento do DVD: 2005.

__________. DVD Die Meistersinger von Nurnberg. Elenco: Siegfried Jerusalem,

Bernd Weikl, Hermann Prey et al. Coro e Orquestra do Festival de Bayreuth.

Regente: Horst Stein. Ano da gravação original: 1984. Ano de lançamento do DVD:

2006. Selo Deutsche Grammophon.

__________. DVD Götterdämmerung (Crepúsculo dos Deuses) – elenco:

Gwyneth Jones, Manfred Jung et al. Coro e Orquestra do Festival de Bayreuth –

regente: Pierre Boulez – ano da gravação original: 1981 - ano de lançamento do

DVD: 2005 - selo Deutsche Grammophon – Berlin, Germany.

__________. DVD Tristan und Isolde – elenco: Johanna Meier, Rene Kollo, Matti

Salminen et al. Coro e Orquestra do Festival de Bayreuth – regente: Daniel

Barenboim – ano da gravação original: 1981 - ano de lançamento do DVD: 2007 -

selo Deutsche Grammophon – Berlin, Germany.