pro archia poeta

4
 1 Em Defesa do Poeta  Árquias ou a Magna Charta do Humanismo Por Paulo Pinto INTRODUÇÃO  Aulo Licinio Archia 1  (Árquias), o poeta de origem grega que se estabelece em Roma, é acusado por um tal Grátio de ter falseado o seu direito de cidadania romana, direito esse que lhe era facultado pela Lex Plautia Papiria 2 . Grátio, sustentando-se no facto de um incêndio, durante a Guerra Itálica 3 , ter destruído toda a documentação, baseia-se noutra lei, a Lex Papia 4 , e leva o poeta grego a  julgamento. Cícero, advogado, político, estadista e escritor romano do séc. I a.C., era considerado um orador de excepção e um defensor das letras. Nos primeiros passos da sua formação como advogado,  Árquias foi o seu mestre. Por esse motivo, o poeta pede a Cícero que o defenda em tribunal. As grandes qualidades de orador de Cícero podem ser comprovadas na brilhante argumentação utilizada na defesa do poeta heracliense. PRO ARCHIA POETA CÍCERO      N     o     v     e     m      b     r     o  ,      2      0      0      8

Upload: paulo-pinto

Post on 09-Jul-2015

213 views

Category:

Documents


2 download

DESCRIPTION

Novembro, 2008PRO ARCHIA POETACÍCEROEm Defesa do Poeta Árquias ou a Magna Charta do HumanismoPor Paulo Pintodurante a Guerra INTRODUÇÃO Itálica3, ter destruído toda a documentação, Aulo Licinio Archia1 baseia-se noutra lei, a (Árquias), o poeta de Lex Papia4, e leva o origem grega que se poeta grego a estabelece em Roma, é julgamento. acusado por um tal Cícero, advogado, Grátio de ter falseado o político, estadista e seu direito de cidadania escritor romano do séc. romana, direito esse

TRANSCRIPT

5/10/2018 Pro Archia Poeta - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pro-archia-poeta 1/41

Em Defesa do Poeta  Árquiasou a Magna Charta do HumanismoPor Paulo Pinto

INTRODUÇÃO

 Aulo Licinio Archia1 

(Árquias), o poeta de

origem grega que se

estabelece em Roma, é

acusado por um tal

Grátio de ter falseado o

seu direito de cidadania

romana, direito esse

que lhe era facultado

pela Lex Plautia

Papiria2. Grátio,sustentando-se no facto

de um incêndio,

durante a Guerra

Itálica3, ter destruído

toda a documentação,

baseia-se noutra lei, a

Lex Papia4

, e leva opoeta grego a

 julgamento.

Cícero, advogado,

político, estadista e

escritor romano do séc.

I a.C., era considerado

um orador de excepção

e um defensor dasletras. Nos primeiros

passos da sua formação

como advogado,

 Árquias foi o seu

mestre. Por esse

motivo, o poeta pede a

Cícero que o defendaem tribunal. As

grandes qualidades de

orador de Cícero podem

ser comprovadas na

brilhante

argumentação utilizada

na defesa do poeta

heracliense.

PRO ARCHIA POETA 

CÍCERO

     N    o    v    e    m     b    r    o

 ,     2     0     0     8

5/10/2018 Pro Archia Poeta - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pro-archia-poeta 2/42

OS ARGUMENTOS

 A forma como Cícero começa o seu discurso

em tribunal é paradigmática dos seus

grandes dotes de oratória. Todo o seu saber,

o seu talento e conhecimento adquirido ao

longo do tempo, através de estudos

sistemáticos, é devido ao poeta Árquias. «Na

verdade, até onde a minha memória pode

perscrutar o passado e recordar a mais

antiga época da minha infância,

relembrando tudo desde então, vejo que foi

este meu constituinte quem principalmente

contribui para eu empreender e continuar

este género de estudos»5. Cícero atribui à

sua habilidade e saber a grande influência

de Árquias na sua vida, condição que fazcom que a sua educação e mestria se

reflictam nos seus ditos. É uma astúcia

inteligente, estando Cícero consciente de

seus méritos. O afastamento das práticas

 judiciais correntes, patente no seu discurso,

atribui um valor inusitado às letras

enquanto ferramenta de argumentação

técnica, perante aqueles que ele considera«juízes tão rigorosos». A evocação que faz

com que a causa passe de um «tribunal

forense» para um «tribunal humanístico e

literário» surge ao abrigo do enaltecimento

da cultura dos presentes, quando diz:

«...consentirdes que, ao falar em defesa de

um excelso poeta e homem de larga erudição

nesta assembleia de homens tão ilustrados,perante a vossa cultura, enfim, com tal

pretor a presidir ao julgamento, eu discorra

um pouco mais livremente sobre os estudos

humanísticos e literários; e consentirdes

que, a favor de uma personalidade que por

seus ócios literários jamais se viu arrastada

para penosos julgamentos, eu utilize um

estilo oratório quase novo e inusitado.»6.

 A partir daqui, Cícero começa a enaltecer

as virtudes do poeta, referindo todo o seu

percurso como cidadão culto e letrado, desde

os primeiros estudos, em Antioquia, sua

cidade natal, passando pela Ásia e Grécia, e

até à chegada a Roma. Nesse tempo, em

Itália, fervilhava a cultura e a erudição

gregas, facto que possibilita o grande

acolhimento que lhe é concedido por

Tarentinos, Locrenses, Reginos e

Napolitanos7. Árquias acompanha LúcioLuculo8 à Sicília e quando regressa vai para

Heracleia, cidade aliada de Roma desde o

séc. III a.C. Este último facto sustenta a

validade do pedido de cidadania que lhe é

concedido pela lei e que entrega ao pretor

Quinto Metelo.

Cícero não se baseou apenas nas leis paraprovar a validade da cidadania do seu

constituinte. Ele pretendeu reafirmar a

validade do mérito de Árquias, lembrando o

seu inestimável contributo para a formação

d o s c i d a d ã o s , b e m c o m o p a r a a

imortalização dos feitos romanos através da

sua poesia. Para o primeiro dos argumentos,

o da cidadania do poeta, Cícero dispunha do

testemunho de Marco Luculo, irmão de

Lúcio, e de mais uma embaixada de ilustres

individualidades daquela cidade. A

reputação e a honorabilidade de Marco

Luculo eram suficientes para garantir a

veracidade e credibilidade das suas

palavras. Diz Cícero: «É ridículo nada dizer

sobre o que possuímos e procurar o que não

podemos ter; fazer silêncio quanto atestemunhos pessoais e pedir com

insistência provas documentais: e, tendo-se

a palavra de um homem tão distinto e a

garantia sob juramento de um município

integérrimo, repudiar aquilo que de modo

algum pode ser corrompido e exigir registos

que tu próprio dizes costumarem ser

viciados».9 Desta forma, Cícero utiliza umargumento que não só é credível, como

escapa à própria afirmação de Grátio sobre

5/10/2018 Pro Archia Poeta - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pro-archia-poeta 3/43

a não rara falsidade dos registos escritos. O

facto de Árquias ter apresentado a sua

pretensão ao pretor Quinto Metelo, podia

ser validado por tão ilustres testemunhos. A

concessão da cidadania a outros que,

segundo Cícero, não estão à altura da

grandeza de Árquias, serve o propósito de

valorização do seu processo enquanto

merecedor por excelência.

Para o segundo dos argumentos, o

advogado sensibiliza o tribunal para o facto

do poeta Árquias ser um exemplo a seguir

por todos os cidadãos, usando astutamente,

e mais uma vez, as comparações. Enaltece o

cultivo do espírito, o cultivo dos estudos

literários, como forma de combateraltercações impostas por tensões no seio da

sociedade. Vai mais longe, ao reafirmar a

importância das letras na preservação e

transmissão dos feitos valorosos de outrora,

dizendo: «mas todos os livros estão plenos de

obras assinaláveis, plenas estão as lições

dos sábios, plena a Antiguidade de

exemplos: todos ficariam na sombra, se lhesnão valesse a luz das letras. Quantas

figuras de homens valorosos nos deixaram

gravadas os escritores gregos e latinos, não

para as contemplarmos, mas para as

imitarmos!»10. Esta função transmissora de

importância suprema, Cícero pretende ligar

definitivamente ao papel das letras, numa

posição assumidamente apoiante da poesiaépica, numa abordagem seguramente

neoplatónica, e que se coaduna com o

espírito heróico dos generais romanos e as

suas tropas. Cícero descreve então todas as

guerras contadas por Árquias, como são

exemplo as Guerras Címbricas e a Guerra

Mitridática. Cícero continua a enaltecer o

grande contributo das letras para o

enaltecimento das virtudes dos homens, dos

seus feitos heróicos, e para o papel que

poetas da Antiguidade desempenharam

nesta grande virtude. Ao referir-se a

Homero e à Ilíada, ele compara Árquias ao

grande poeta grego, concluindo,

inevitavelmente, que qualquer general

romano lhe concederia a cidadania11. Num

discurso onde estão patentes, além da sua

própria retórica, alguns elementos da

retórica de Aristóteles, Cícero utiliza todos

estes argumentos extra causam como

credenciais mais do que suficientes para que

a Árquias lhe fosse concedida a cidadania

romana. Mais do que por uma questão de

leis, por uma questão de justiça, apoiada na

cláusula aequitas, um dos garantes em que

assentava o ius romanum12 para atenuar adura lex, sed lex13. A rigidez das leis seria

corrigida, sempre que o seu cumprimento

originasse um caso de injustiça. Desta

forma a justiça está na verdade, e esta

supera a própria lei.

CONCLUSÃO

 Aparte a importância do contexto em que se

insere, seguramente, é o discurso de Cícero

um hino às letras, uma dignificação da

cultura literária e humanística como base

fundamental para a educação dos cidadãos.

Uma Paideia14 que subtrai a desvalorização

da poesia como terceiro grau de

conhecimento15

e a coloca num plano demagna afirmação. O cultivo da sabedoria

como uma condição para o conhecimento e a

ética. As letras vistas como a conservação e

transmissão de muitos acontecimentos que

contribuem para a formação moral dos

cidadãos, constituindo-se numa função

educadora transversal a toda a

humanidade. É, indiscutivelmente, um

texto apologético da literatura e da poesia,

enaltecendo a superioridade da cultura

5/10/2018 Pro Archia Poeta - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pro-archia-poeta 4/44

grega na figura do poeta Árquias, e que

adquire especial significado16 no contexto da

aceitação da literatura grega no seio dos

romanos.

Termino a minha análise com uma

citação da Professora Maria Helena da

Rocha Pereira, que é elucidativa da

importância da defesa do poeta Árquias

para o humanismo e para as letras.

"Trata-se da defesa de Árquias, essa oração quehavia de ser redescoberta no séc. XIV por 

  Petrarca, e que ficou conhecida como a magnacharta do humanismo. É aí que, principalmenteentre os capítulos VI e XI, Cícero exprimedesassombradamente o seu entusiasmo pelas

  Belas Letras. Elas são deleite e descanso econtribuem para o aperfeiçoamento espiritual."

Maria Helena da Rocha Pereira, Estudos deHistória da Cultura Clássica,

II volume, F. Gulbenkian, Lisboa, 1982, pp.128-9

NOTAS

1 Aulo Licinio Archia chegou a Roma em 102 a.C. duranteo consulado de Mário e Cátulo. Cf. Cícero, Em defesa do poeta Árquias. Mem Martins: Editorial Inquérito, 1999, p.5.

2 A Lex Plautia Paipiria foi uma lei romana, promulgadaem 89 a.C. Segundo esta lei, as pessoas inscritas comocidadãos de cidades federadas, com domicílio em Itália àaltura da aprovação da lei, tinham direito à cidadaniaromana desde que o comunicassem ao pretor da própriacidade num prazo de setenta dias. Cf. Cic., Arch. 6.

3 Cf. Cícero, Em defesa do poeta Árquias. Mem Martins:

Editorial Inquérito, 1999, IV.8.4 Lei que excluia os cidadãos estrangeiros de Roma,

considerada por Cícero uma lei injusta e pouco humana.5 Cf. Cícero, Em defesa do poeta Árquias. Mem Martins:

Editorial Inquérito, 1999, I.1.6 Cf. Cícero, Em defesa do poeta Árquias. Mem Martins:

Editorial Inquérito, 1999, II.3.7 Cf. Cícero, Em defesa do poeta Árquias. Mem Martins:

Editorial Inquérito, 1999, III.5.8 Lúcio Licínio Luculo foi um importante político e general

da República Romana.9 Cf. Cícero, Em defesa do poeta Árquias. Mem Martins:

Editorial Inquérito, 1999, IV.8.10 Cf. Cícero, Em defesa do poeta Árquias. Mem Martins:

Editorial Inquérito, 1999, VI.14.11 Cf. Cícero, Em defesa do poeta Árquias. Mem Martins:

Editorial Inquérito, 1999, VII.19.12 Direito romano, criado apenas para os cidadãos de Roma.13 Do latim dura lex, sed lex, que significa: a lei é dura, mas

é lei.14 Processo de educação na Grécia Antiga.15 Cf. Platão, República, Livro X.16 Em Roma são conhecidas as hostilidades para com a

cultura grega, principalmente desde a Guerra de Aníbal.

BIBLIOGRAFIA

CÍCERO,   Em defesa do poeta Árquias. MemMartins: Editorial Inquérito, 1999.

PEREIRA, Maria Helena da Rocha,   Estudos de  História da Cultura Clássica, II Volume.Lisboa: F.Gulbenkian,1992.