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1 TENTATIVA DE ANÁLISE DO DISCURSO PRO ARCHIA À LUZ DOS SISTEMAS RETÓRICOS DE CÍCERO E DE ARISTÓTELES Robson Tadeu Cesila SOBRE ESTE ESTUDO A obra de Marco Túlio Cícero (106 a.C. – 43 d.C.), orador, retor, político e filósofo romano que viveu no final da República, possui, em sua amplidão de temas e áreas, um rico filão retórico, composto por obras de teorização retórica (De Inuentione, De Oratore, Partitiones Oratoriae, De Optimo Genere Oratorum, Brutus, Orator, Topica) e por dezenas de discursos pronunciados no decorrer de sua carreira de orador 1 . É um desses discursos (orationes, como chamavam os antigos) que tentaremos analisar no presente estudo, servindo-nos do próprio Cícero e de Aristóteles: o Pro Archia, a defesa do poeta Árquias levada a cabo por Cícero em 62 a.C.. Assim, algumas considerações fazem-se importantes. Em conformidade com o conteúdo da disciplina “Discurso e Argumentação – LL127”, a análise deveria se basear apenas na Retórica de Aristóteles, obra lida e estudada durante o semestre. No entanto, seria no mínimo estranho analisar um discurso de um orador e retor como Cícero sem levar em conta as obras que ele próprio escreveu sobre retórica. Além disso, o sistema retórico de Cícero – assim como o de Quintiliano e de outros teorizadores – nada mais é do que um aprofundamento e uma sistematização daquele exposto por Aristóteles, de maneira que, mesmo que não se utilizassem as idéias de Cícero nesta análise, mesmo assim elas estariam, de alguma forma, presentes. Porém, dadas as dimensões limitadas deste trabalho, o estudo do Pro Archia se baseará na Retórica de Aristóteles e em apenas uma das obras retóricas de Cícero, o Orator (“O Orador”). Assim como não serão utilizadas, salvo alguma referência rápida, outras obras do Estagirita como a Poética e os Tópicos (ambas possuidoras, certamente, de importantes elementos para esta análise) também serão deixadas de lado as outras obras de Cícero, pois, embora a essência do sistema retórico 1 A autoria da obra de teorização retórica Retorica ad Herenium é controvertida, embora a tendência seja atribuí-la a Cícero. Quanto aos discursos, são cerca de 30, que nos chegaram diretamente. Há ainda mais 30 títulos, assim como inúmeros fragmentos, pertencentes a discursos que se perderam, dos quais sabemos por citações de outros autores.

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TENTATIVA DE ANÁLISE DO DISCURSO PRO ARCHIA À LUZ DOS SISTEMAS

RETÓRICOS DE CÍCERO E DE ARISTÓTELES

Robson Tadeu Cesila

SOBRE ESTE ESTUDO

A obra de Marco Túlio Cícero (106 a.C. – 43 d.C.), orador, retor, político e

filósofo romano que viveu no final da República, possui, em sua amplidão de temas e

áreas, um rico filão retórico, composto por obras de teorização retórica (De Inuentione,

De Oratore, Partitiones Oratoriae, De Optimo Genere Oratorum, Brutus, Orator, Topica)

e por dezenas de discursos pronunciados no decorrer de sua carreira de orador1. É um

desses discursos (orationes, como chamavam os antigos) que tentaremos analisar no

presente estudo, servindo-nos do próprio Cícero e de Aristóteles: o Pro Archia, a

defesa do poeta Árquias levada a cabo por Cícero em 62 a.C..

Assim, algumas considerações fazem-se importantes. Em conformidade com o

conteúdo da disciplina “Discurso e Argumentação – LL127”, a análise deveria se

basear apenas na Retórica de Aristóteles, obra lida e estudada durante o semestre. No

entanto, seria no mínimo estranho analisar um discurso de um orador e retor como

Cícero sem levar em conta as obras que ele próprio escreveu sobre retórica. Além

disso, o sistema retórico de Cícero – assim como o de Quintiliano e de outros

teorizadores – nada mais é do que um aprofundamento e uma sistematização daquele

exposto por Aristóteles, de maneira que, mesmo que não se utilizassem as idéias de

Cícero nesta análise, mesmo assim elas estariam, de alguma forma, presentes.

Porém, dadas as dimensões limitadas deste trabalho, o estudo do Pro Archia se

baseará na Retórica de Aristóteles e em apenas uma das obras retóricas de Cícero, o

Orator (“O Orador”). Assim como não serão utilizadas, salvo alguma referência rápida,

outras obras do Estagirita como a Poética e os Tópicos (ambas possuidoras,

certamente, de importantes elementos para esta análise) também serão deixadas de

lado as outras obras de Cícero, pois, embora a essência do sistema retórico 1 A autoria da obra de teorização retórica Retorica ad Herenium é controvertida, embora a tendência seja atribuí-la a Cícero. Quanto aos discursos, são cerca de 30, que nos chegaram diretamente. Há ainda mais 30 títulos, assim como inúmeros fragmentos, pertencentes a discursos que se perderam, dos quais sabemos por citações de outros autores.

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ciceroniano seja o mesmo em todas as suas obras, há variações em seus elementos e

definições, de acordo com a obra que consultamos2. Seria extenso demais darmos

conta, nessa análise do Pro Archia, de todas essas variações. Assim, nosso

procedimento será o de tentar identificar alguns dispositivos e recursos retóricos que

Cícero utiliza em seu Pro Archia, apontando sua filiação ao sistema de Aristóteles

(Retórica) ou, quando houver, explicitando as diferenças com o sistema do próprio

Cícero, já que, como foi dito acima, este não é exatamente igual ao de Aristóteles, mas

um aprofundamento do mesmo3. Lembramos que o texto completo, em sua versão

portuguesa, do discurso que será agora analisado, se encontra em anexo, ao final

deste trabalho.

ANÁLISE DOS DISPOSITIVOS E ELEMENTOS RETÓRICOS DO PRO ARCHIA

1- Introdução

O discurso Pro Archia, cujo título costuma-se traduzir por “Defesa de Árquias”,

foi proferido em 62 d.C., um ano após o final da conjuração liderada por Catilina, contra

o qual Cícero escreveu seus quatro discursos intitulados Catilinárias. Os anos

anteriores tinham sido então de muita agitação política, e deles, Cícero, que fora cônsul

em 63 a.C., saíra fortalecido, uma vez que vencera a conjuração e condenara, por meio

de seus discursos, os líderes dos conjurados4.

A defesa do poeta Árquias, objetivo do discurso que estamos analisando, era,

portanto, uma tarefa menor, por assim dizer, para um orador – o melhor de Roma, na

época – que discursara contra perigosos inimigos públicos como Catilina. De fato, se

se comparam as quatro Catilinárias com o Pro Archia, vê-se claramente como o tom

2 Apenas para citar um exemplo dessa variação, o De Oratore divide a actio (Ação), uma das partes do discurso, em Voz e Gesto, enquanto que o Orator distingue três partes: a Voz, o Gesto e a Fisionomia. 3 Uma das principais diferenças entre ambos diz respeito, certamente, aos tropos e figuras, cujo tratamento, em Cícero, é abundante, enquanto que praticamente inexiste na Retórica de Aristóteles. Assim, como o estudo das figuras e tropos retóricos não é contemplado na Retórica e por ser ele extremamente complicado (por vezes até confuso), não nos aprofundaremos, em nossa análise do Pro Archia, na identificação desses elementos da elocutio, o que exigiria um estudo minucioso do texto latino original, tarefa que não se adapta às dimensões deste trabalho. 4 A respeito da conjuração de Catilina escreveu Salústio em sua monografia histórica De Coniuratione Catilinae

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daquelas é inflamado, agressivo, denso, enquanto que, nesse último, parece pairar

uma certa paz e moderação, com o orador tentando convencer os juízes não com seus

costumeiros arroubos patéticos na peroração, mas com a suavidade e o tom vibrante

de sua linguagem5. Por isso, os estudiosos costumam identificar na “Defesas de

Árquias” o estilo médio, um dos três estilos de composição. Mas voltaremos a isso

depois.

Vejamos, inicialmente, em que consistia o caso do poeta Árquias, e em que este

teve de ser defendido por Cícero. Árquias era grego de Antioquia, na Síria; não

nascera, portanto, cidadão romano. Quando, em 89 a.C., se promulgou a lei Plautia-

Papiria – segundo a qual ganhariam o direito de cidadania romana todos os cidadãos

das cidades aliadas de Roma que estivessem domiciliados em alguma cidade da Itália

e que se apresentassem aos pretores no prazo dois meses –, Árquias teria obtido,

depois de cumprir essas exigências, a cidadania romana, inscrevendo-se e

apresentando-se diante do pretor em Heracléia. Seguiram-se outras leis de expansão

do direito de cidadania; da mesma forma, políticos e generais passaram a conceder o

direito de cidadão em troca do apoio político e militar de outras cidades do império

romano. Assim, chegou-se a um ponto em que foi necessário impor limites a esse

abuso, pois era perigoso, segundo os romanos mais tradicionais, conceder a tantos

estrangeiros plenos direitos de participar da vida pública de Roma. Além de dificultar a

concessão desse direito, instituíram-se tribunais que julgariam os casos em que tivesse

havido aquisição ilegal da cidadania, uma espécie de revisão dos direitos concedidos.

Isso era o que pregava a lei Papia, de 65 a.C., que determinava ainda a expulsão dos

estrangeiros residentes em Roma.

Baseando-se na lei Papia, um certo Graco acusou o poeta Árquias de ter

adquirido fraudulentamente a cidadania romana. Não se sabe com certeza quem era

esse Graco e quais razões motivaram sua acusação, mas presume-se que era apenas

um testa-de-ferro do partido de Pompeu, de quem a família protetora de Árquias, os

Lúculos, eram adversários políticos. Assim, o processo do poeta Árquias tinha, na

verdade, um fundo político, enquadrando-se naqueles casos em que se procura atacar

os partidários e protegidos do adversário, ao invés de atacar a este diretamente6. O

5 Já se vê que, no Pro Archia, o orador se vale mais da elocutio, isto é, da ornamentação da palavra, do que dos efeitos advindos do K ?TR��e do SDYTR� . 6 As origens das inimizades entre os Lúculos e Pompeu são diversas, e não cabe aqui, creio, detalhá-las.

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processo de Árquias ocorreu, como já mencionei acima, em 62 a.C., quando então

Cícero o defendeu num tribunal presidido pelo irmão do orador, Quinto Túlio.

2- Análise

2.1. Considerações gerais

O Pro Archia – talvez seja desnecessário dizê-lo – constitui um discurso do

gênero judiciário, cumprindo uma das duas funções previstas por Aristóteles para esse

gênero: defender7. O que o prova é o auditório ao qual se dirige o orador: um tribunal

jurídico, do qual fazem parte cerca de setenta e cinco juízes, escolhidos dentre as três

ordens sociais de Roma: senadores, cavaleiros e tribunos (estes últimos

representantes da plebe).8 O fim do Pro Archia incidirá, portanto, sobre o justo ou o

injusto (Árquias adquiriu justa ou injustamente, legal ou ilegalmente o direito de

cidadania romana?) e o orador se pronunciará sobre um fato passado9.

Quanto ao estilo do Pro Archia, tem-se, como já mencionamos acima, um tom

médio, dado que sua função é defender uma figura que, embora tivesse um

determinado valor, estava longe do prestígio e glória de que gozavam os magistrados e

generais10. Não se deve esquecer que Aristóteles (Ret. 3, 7) aconselha a adequação

do estilo ao assunto tratado, idéia adotada também por Cícero (Orator, 21, 69)11.

7 A outra, como se sabe, é acusar. Aristóteles fala dos três gêneros retóricos na Retórica, 1, 3: o deliberativo ou político (cuja função é aconselhar ou dissuadir), o judicial ou forense (acusar ou defender) e o epidítico ou demonstrativo (elogiar ou censurar). 8 Diz Aristóteles (Ret. 1, 3) que é o ouvinte, isto é, o auditório - um dos três elementos do discurso, junto do orador e do assunto - que determina o fim e, conseqüentemente, o gênero do discurso. 9 Ainda em 1, 3, Aristóteles diz que o gênero deliberativo tem por finalidade o conveniente ou o prejudicial; o judiciário, o justo ou o injusto; e o epidítico, o belo ou o feio. Associa ao primeiro o tempo futuro; ao segundo, o passado; e ao terceiro, o presente. 10 O espírito dos romanos, muito mais pragmático e materialista que o dos gregos, valorizava menos a arte, o otium e, conseqüentemente, o trabalho de artistas como os poetas. 11 Com essa adequação, tem-se o que os latinos chamaram decorum, uma das quatro partes da elocutio, de acordo com Cícero (De Oratore, 3, 10, 37). Quanto aos estilos oratórios, são em número de três, segundo a Retorica ad Herenium (4, 8, 11): grave, médio e tênue.

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2.2. As partes do discurso no Pro Archia

a) Exórdio

Os dois primeiros capítulos da “Defesa de Árquias” correspondem ao exórdio, no

qual Cícero explica os motivos que o induziram a levar a cabo a defesa do poeta.

Começa por expor sua dívida particular com Árquias, com quem diz ter aprendido muita

coisa, apesar de pertencerem a áreas de conhecimento bastante diversas (poesia e

oratória)12. Em seguida, desculpa-se com o auditório porque vai utilizar uma maneira

de discursar um pouco diferente daquela dos discursos judiciais, pois a pessoa que vai

defender é um poeta, não afeito aos juízos e intrigas do fórum13. O orador parece estar,

aqui, se preocupando com o decorum, tentando adequar o estilo e o tom de seu

discurso à pessoa (ao assunto) sobre quem discursará. Não é estranho, a nosso ver,

que o orador queira se afastar um pouco do tom judiciário para tratar da causa de um

poeta, uma vez que à poesia e à literatura corresponderia mais proximamente o gênero

epidítico; assim, talvez Cícero preferisse fazer, ao invés da defesa do poeta Árquias, o

seu elogio, o que de certa forma ele faz na narração, que se segue ao exórdio.

Ao final deste último, o orador expõe “com todas as letras” o objetivo de sua

oratio:

“Se esta mercê me permitirdes e concederdes, certo estou de conseguir que

julgueis que Árquias Licínio, sendo cidadão, como é, não só não seja excluído

do número dos cidadãos, mas ainda que deveria entrar nele, se não o fosse.”

12 Não se sabe ao certo se Cícero foi, realmente, em algum momento, discípulo de Árquias, como ele afirma no Pro Archia, já que em nenhuma outra obra sua faz menção a essa ligação. Prefere-se ver nessa afirmação de Cícero mais uma estratégia retórica que um fato real. É evidente que a afirmação, pela própria boca de Cícero – orador famoso e político “em alta” –, de uma ligação sua com o poeta Árquias faria com que este fosse olhado, pelos juízes, com outros olhos. É o que os antigos chamavam captatio beneuolentiae, ou seja, a conquista, a captação da benevolência e da simpatia do auditório. Essa captação beneficiava tanto o réu, ex-mestre de tão ilustre homem público como Cícero, como o próprio orador, cujo sentimento de gratidão para com o mestre era, certamente, agradável aos olhos do auditório. 13 Essas desculpas para com o auditório e essa preocupação em pedir a autorização do mesmo para fugir aos protocolos tradicionais do gênero judiciário também fazem parte da captatio beneuolentiae.

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O exórdio do Pro Archia reflete, então, a definição de exórdio presente na

Retórica e no Orator. Aristóteles denomina o exórdio SURRL YPLRQ� (proêmio), e não o

considera como uma parte essencial do discurso, uma vez que, quando “o assunto for

óbvio e insignificante”, não há necessidade de proêmio. Atribui-lhe a função de “pôr em

evidência qual a finalidade daquilo sobre o qual se desenvolve o discurso” e afirma que

é nele que se prepara o ouvinte para o discurso14. O Orator (35, 122) diz que é no

exórdio que se concilia o auditório, se estimula sua atenção e faz com que ele se

disponha a ouvir.

Assim, nessa parte do discurso, fazem-se bastante úteis o�K ?TR��e o SDYTR��

duas das estratégias que Aristóteles chamou meios de persuasão15. Cícero, que, no

Orator, identifica, embora sem nomear da mesma forma, os mesmos recursos de

eloqüência ou persuasão16, explora, de certa forma, o recurso do K ?TR��no exórdio do

Pro Archia. Isto se dá, a nosso ver, quando o orador destaca sua ligação discípulo-

mestre com o poeta, fazendo com que este desfrute dos elementos positivos que o

nome e a figura do orador, ilustre homem público de Roma, podem fornecer. Em outras

palavras, o orador explora seu caráter, seu K ?TR�� diante do auditório, e com isso

procura beneficiar a causa de seu cliente, uma vez que o caráter do orador tem força

de argumentação.

Façamos uma última observação quanto a uma outra estratégia retórica do

orador. Desde o exórdio até ao final do discurso, o poeta Árquias será sempre referido

com seu nome romano: Árquias Licínio. Em nenhum momento Cícero dirá

simplesmente “Árquias” ou “o poeta Árquias”, mas sempre acompanhará seu prenome

do nome de família romano “Licínio”, originário dos protetores do poeta, os Lúculos.

Isso poderia servir para reforçar na mente dos juízes a tese de que Árquias era um

cidadão romano.

b) Narração

14 Ret., 3, 14. 15 Ret. 1,2. “As provas de persuasão fornecidas pelo discurso são de três espécies: umas residem no caráter moral do orador; outras, no modo como se dispõe o ouvinte; e outras, no próprio discurso, pelo que este demonstra ou parece demonstrar.” 16 Orator, 21, 69. O orador eloqüente será o que souber probare (provar pela argumentação e pela demonstração), delectare (agradar, parecer agradável e simpático aos olhos do auditório) e mouere (comover, mover o espírito do auditório através do apelo às paixões).

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Na narração, que vai do parágrafo 3 até a metade do 4, o orador conta um

pouco sobre a vida de Árquias, que, antes de chegar a Roma, percorreu a porção

oriental do império, Ásia Menor e Grécia, sendo homenageado em várias cidades com

o título de “cidadão”. Chega então a Roma, onde é acolhido pela família dos Lúculos.

Em viagem a Heracléia, junto com seus protetores, foi-lhe concedido o direito de

cidadão dessa cidade, que ficava no sul da Itália, no golfo de Tarento. Com a

promulgação da lei Plautia-Papiria – que, como foi dito acima, dava direito de cidadania

romana a todos os cidadãos das cidades aliadas a Roma, desde que, à época da lei,

estivessem domiciliados em alguma cidade da Itália e se apresentassem ao pretor

dentro do prazo de dois meses –, Árquias obteve este privilégio, uma vez que era

agora cidadão de Heracléia.

A narração, que Aristóteles chama SUR YTHVL� – termo que alguns traduzem

por exposição – constitui, segundo a Retórica, a enunciação do assunto de que se vai

tratar. É considerada, juntamente com as provas, parte essencial do discurso17. O

Orator diz que a narração deve ser uma exposição breve e clara dos fatos, “para que

se possa compreender de que se trata” o assunto18.

c) Confirmação – Refutação19

A argumentação de Cícero, isto é, a confirmação e a refutação, se concentra

nos méritos e direitos do poeta Árquias, e visa dois objetivos: primeiro, provar que

Árquias é um cidadão romano, adquiriu legalmente esse direito; segundo, defender que

ele, mesmo que não fosse cidadão romano, mereceria sê-lo. Assim, o orador possui,

na verdade, uma dupla causa: provar, através de evidências, que o poeta adquiriu

legalmente o direito de cidadania (essa é a tarefa mais importante e a causa,

propriamente dita, a ser defendida), e convencer os juízes, através do louvor dos 17 Ret. 3, 13. 18 Orator, 35, 122. Segundo esta obra de Cícero, as partes do discurso são quatro: exórdio, narração, confirmação-refutação, peroração. Lembremos que Aristóteles identificava também quatro: proêmio (exórdio), exposição (narração), provas (argumentação ou confirmação-refutação) e epílogo (peroração). 19 Aristóteles (Ret. 3, 13 e 3, 17) considera as provas (confirmação-refutação) uma das duas partes essenciais do discurso e afirma que cabe a elas a “demonstração” do assunto. Dos recursos de eloqüência (ou meios de prova, em Aristóteles) definidos pelo Orator, cabe à confirmação-refutação o prouare, isto é, o persuadir, o provar através de demostração objetiva. Da mesma forma, o delectare (proveniente do K ?TR��do orador) serve mais ao exórdio, como já mencionamos acima; o mouere (a emoção dos ouvintes, o SDYTR�), à peroração ou epílogo.

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méritos do poeta, de que o direito não deve ser dele retirado. Então, Cícero argumenta

primeiro para

c.1. provar que Árquias adquiriu legalmente o direito de cidadão romano

(parágrafo 4)

Para isso, arrola os argumentos que defendem a legitimidade do direito de

cidadania do poeta, ou seja, constrói a confirmação. São dois os principais desses

argumentos: o poeta cumpriu com as prescrições legais20 e comportou-se sempre

como cidadão romano.

prescrições legais: Árquias cumpriu com as três determinações da lei Plautia-Papiria:

era cidadão de uma cidade aliada (Heracléia) à época da promulgação da lei; tinha

domicílio na Itália (possuía casa e negócios em Roma); e se apresentara ao pretor no

prazo determinado (ao pretor de Heracléia, seu amigo Quinto Metelo).

comportamento como cidadão: fizera testamentos de acordo com as leis romanas,

recebera heranças de cidadãos romanos e fora registrado no erário, por seu protetor,

entre os pensionários da República.

Cícero também combate, nessa parte do discurso, possíveis argumentos dos

adversários (refutação). Vejamos alguns:

• o adversário alegaria que Árquias não era cidadão de Heracléia; logo, não poderia se

tornar cidadão romano pela lei Plautia-Papiria: o orador contrapõe os testemunhos de

pessoas presentes, trazidas exatamente para esse fim. São eles Marco Lúculo,

protetor do poeta, que intercedera por este em Heracléia para que obtivesse o

20 Lembremos que, em Aristóteles (Ret. 1.2 e 1.15), as leis são consideradas fontes de argumentos externas ao discurso, assim como os testemunhos, as confissões sob tortura, os contratos e o juramento. São as chamadas D >WHFQRL�SL YVWHL�, provas inartísticas, ou seja, que não dependem do discurso, mas já existem. Opõem-se às H >QWHFQRL�SL YVWHL� ou provas artísticas, que dependem do discurso (o caráter moral do orador, a emoção dos ouvintes e as demonstrações). O Orator faz uma rápida alusão a essa mesma classificação, em 35, 122.

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privilégio; e embaixadores da referida cidade, que garantem a cidadania heracleiana de

Árquias21.

• a oposição poderia exigir os registros escritos de Heracléia em que constasse o nome

de Árquias: o orador lembra que é de conhecimento de todos que os arquivos públicos

dessa cidade foram todos consumidos pelos incêndios durante a guerra Itálica. Além

disso, é ridículo recusar os documentos que se tem e exigir exatamente os que não se

tem, além de se menosprezar os testemunhos de tão nobres cidadãos como Lúculo e

os enviados de Heracléia.

• o acusador poderia dizer que o poeta não tinha domicílio em Roma, uma vez que seu

nome não consta no recenseamento: o orador rebate argumentando que, dos três

recenseamentos em questão, em dois deles o poeta estivera ausente de Roma,

alistado no exército de seu protetor, e no terceiro não pudera se inscrever

simplesmente porque o terceiro não fora realizado.

Passemos agora à outra tarefa do orador:

c.2. convencer os juízes de que Árquias, ainda que não fosse cidadão romano,

mereceria sê-lo, dados os seus méritos e qualidades (parágrafos 5 até a metade do

9)

Depois de fazer com que a voz de Graco, o acusador de Árquias, entre em seu

discurso para lhe perguntar por que é tão afeiçoado àquele poeta, Cícero responde

pondo em evidência as qualidades e méritos do mesmo e da arte praticada por ele,

elencando uma série de argumentos (confirmação):

• a poesia e a literatura em geral fornecem descanso para o orador cansado da

agitação e das falsidades do fórum.

• as letras conservaram e transmitiram muitas lições de vida e muitos bons exemplos

úteis para a formação moral do cidadão.

21 Os testemunhos são também argumentos externos ao discurso (ver nota anterior).

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• a diversão de espírito proveniente da poesia não é específica de nenhuma época,

nação ou idade, mas é própria de todas elas, perene, eterna, ao contrário de outros

prazeres, que se restringem a uma época ou idade ou são próprias de uma só cultura.

• grandes homens se entregaram ao estudo das letras para adquirirem virtudes, como

Cipião Africano, C. Lélio, L. Fúrio e Marco Catão; esses ilustres cidadãos não o fariam,

se tal não fosse proveitoso22.

• o ator Róscio, que fora também defendido por Cícero, já encantara as pessoas com o

talento de seu corpo; logo, não se poderia desprezar um poeta, cujo talento vem do

espírito23.

• Ênio chamava aos poetas “sagrados”, pois seu talento não vem de regras ou ensino,

mas da natureza humana e da inspiração divina24.

• Os ermos e as solidões respondem às vozes dos poetas, as feras mais cruéis são

mitigadas pelo seu canto; logo, os homens também se devem deixar comover pela arte

dos poetas25.

• Os habitantes de Cólofon, Quíos, Salamina, Esmirna e de muitas outras cidades

reivindicam o direito de ser a pátria de Homero, morto já há muito tempo, só porque ele

era um poeta26.

22 O exemplo é, segundo a Retórica (2, 20), uma das provas comuns aos três gêneros de discurso, ao lado do entimema. Pode ser de dois tipos: um fato histórico, verídico; ou inventado pelo orador (nesse segundo caso, tem-se as parábolas e as fábulas). Cícero faz uso, em sua argumentação no Pro Archia, de vários exemplos históricos para comprovar o valor que sempre se deu à poesia e às letras em geral. O uso dos entimemas também é abundante. 23 Tem-se aqui um exemplo de raciocínio entimemático, que caracteriza a retórica aristotélica (Ret. 2, 22 e 2, 24-25). Trata-se de um silogismo imperfeito: o ator Róscio era dotado de virtudes físicas e foi louvado (premissa menor); o poeta Árquias, que é dotado das virtudes do ânimo, deve também ser louvado (conclusão). A premissa maior está subentendida, ou seja: “as virtudes do espírito são superiores às do corpo”. 24 De novo o orador recorre à autoridade dos antepassados, invocando um exemplo histórico. 25 Novamente o raciocínio entimemático. Subentende-se a premissa maior: “os homens são melhores que as pedras e as feras”. 26 Raciocínio entimemático: Homero é já morto há muito tempo, mas se disputa o privilégio de ser sua pátria (premissa menor); logo, com relação a Árquias, que é vivo, dever-se-ia dar-lhe a cidadania (conclusão). Está subentendida a premissa maior: “o poeta vivo é mais importante que o poeta morto”. Note-se também que há, na mesma passagem, uso do recurso do exemplo, ao se citar as cidades que brigam pelo direito de ter sido o berço de Homero. De fato, segundo Aristóteles (Ret. 2, 25), os entimemas podem ser formulados a partir do exemplo: “... há também os [entimemas] que se tiram por indução, a partir da semelhança de um ou de muitos, quando, tomando o geral, se chega logo por silogismos ao particular, mediante o exemplo.” As outras formas são: a probabilidade, o tekmérion e o sinal. (2, 25)

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• O poeta é quem imortaliza os feitos dos grandes homens, e todos esses heróicos

varões tiveram um poeta que lhes louvou as virtudes e narrou os grandes feitos.

Seguem-se uma série de exemplo históricos:

I. Temístocles, político ateniense, ao ser perguntado que voz ouviria

prazerosamente, respondeu que aquela que dignamente cantasse os seus

louvores.

II. Mário, general romano, amou extremamente L. Plócio por conhecer o talento

que este tinha para poder celebrar suas proezas.

III. O poeta Ênio foi muito amado por Cipião, o Africano, que colocou a estátua

daquele no túmulo de sua própria família.

IV. O próprio poeta Árquias agradou a Mário quando narrou a guerra dos romanos

contra os címbrios.

• A poesia, ao celebrar os feitos dos grandes homens, está ao mesmo tempo

celebrando a glória do povo, do Estado, da nação como um todo. O orador cita

exemplos históricos, como o poeta Ênio, que celebrou os feitos de Cipião e de Catão.

Da mesma forma Árquias, ao louvar os feitos de seu protetor L. Lúculo na guerra

contra Mitridates, rei do Ponto, estava também celebrando a glória e superioridade da

nação romana (e aqui Cícero relembra alguns feitos memoráveis dessa guerra).

• Ênio, que era de Rúdias (na Calábria), foi, pelos antepassados, recompensado com a

cidadania romana, devido à sua obra poética; logo Árquias, que também era cidadão

de uma cidade itálica (Heracléia), mereceria o mesmo prêmio27.

• Até os maus poetas recebem a sua parcela de recompensa; logo, Árquias, que é um

bom poeta, possuidor de engenho, valentia e abundância, mereceria o mesmo e muito

mais28. Ilustra-se com exemplos históricos:

I. Sila, ao receber de um mau poeta, em seu louvor, um epigrama cujos versos

eram uns mais compridos que os outros, mandou que o premiassem mesmo

assim, apesar de mandar que lhe dissessem para nunca mais escrever coisa

alguma.

27 Raciocínio entimemático. Além disso, usa-se do exemplo ao se citar o poeta Ênio e a atitude dos antepassados romanos. Os costumes dos antepassados romanos (o mos maiorum), sempre invocados pelos antigos como exemplos das puras tradições romanas, é aqui usado pelo orador para conferir autoridade ao seu argumento e à sua proposta de conferir cidadania a Árquias. 28 De novo o raciocínio por entimemas, subentendo-se que “o bom poeta é mais merecedor de graças que o mau”.

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II. Quinto Metelo Pio, por ser tanto seu desejo de ver seus feitos celebrados, dava

ouvidos até mesmo aos poetas de Córdoba, cujos versos eram grosseiros e

insulsos.

Intercalados aos argumentos acima, que constituiriam a confirmação, são

também utilizados alguns que rebatem possíveis argumentos dos adversários, ou seja,

tem-se a refutação:

• Árquias escrevia em grego; assim, alguém poderia objetar que os versos gregos

rendem menos glória que os latinos. O orador rebate esse argumento dizendo que a

língua grega é lida em quase todas as nações, enquanto que o latim se encerra em

pequenos limites. Assim, o conhecimento das façanhas romanas celebradas em versos

gregos chegará, da mesma forma que as legiões de Roma, às partes mais longínquas

da terra. Reforça seu ponto de vista com exemplos históricos:

I. Alexandre, que possuía junto de si muitos poetas para louvarem seus feitos,

invejara a Aquiles, quando visitou o túmulo deste em Sigeo, pois o herói grego

tivera, como cantor de sua glória, ninguém menos que Homero (que escreveu

em grego).

II. O grande Pompeu deu ao poeta que celebrara seu valor, Teófanes de Malta

(que escrevia em grego), o direito de cidadania romana.

• O valor dos poetas como celebradores das façanhas pessoais é inegável, mas

alguém poderia condenar a vaidade dos que querem ver seus feitos louvados, de

modo que a função dos poetas seria nula. Cícero combate esse argumento dizendo

que não se deve tentar esconder o que não é possível ocultar. Além disso, a virtude

não recebe nenhuma outra paga além do reconhecimento das façanhas que dela se

originaram, de modo que é importante o trabalho dos poetas ao celebrarem tais feitos.

Se não houvesse essa glória oriunda do louvor e do reconhecimento público,

provavelmente não se lutaria nem se enfrentariam tantas dificuldades para se realizar

grandes façanhas pela pátria. O orador acrescenta alguns exemplos:

I. Os próprios filósofos que condenaram em seus livros o desejo de glória e de

louvor dos homens não deixaram de escrever seu nome nesses mesmos livros,

o que prova que eles mesmos desejavam a glória e o reconhecimento da

posteridade.

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II. Décio Bruto, grande homem e general, adornou as fachadas dos seus

monumentos com os versos que celebravam suas façanhas, compostos por seu

amigo Ácio.

III. O próprio Cícero se confessa desejoso de glória, e revela que os feitos

grandiosos que produzira durante seu consulado estavam sendo louvados pelo

poeta Árquias em um poema cuja composição este já iniciara29. Justifica esse

seu desejo de louvor lembrando que grandes homens encomendaram retratos,

estátuas e imagens para representarem seu corpo; então a ele, que queria

deixar o retrato de seu espírito e de suas virtudes, era legítimo ser louvado por

um grande gênio como o poeta Árquias.

d) Peroração (metade final do parágrafo 9)

As perorações ciceronianas eram sempre repletas de elementos patéticos,

sendo, portanto, extremamente persuasivas e poderosas. Quando uma causa era

defendida por mais de um orador, e se Cícero estivesse entre eles, sempre se

reservava a ele a peroratio30. No Pro Archia, no entanto, a peroração foge a esse

padrão ciceroniano, apresentando-se extremamente comedida. Deve-se lembrar,

porém, que o orador já avisara, no exórdio, que não seguiria o modelo típico do

discurso forense31.

Aristóteles chama a essa parte do discurso H MSL YORJR�� (epílogo) e trata da

mesma no livro 3 da Retórica (3, 19)32. Segundo ele, o epílogo é composto por quatro

elementos, ou, em outras palavras, tem quatro funções: tornar o ouvinte favorável à

29 Não se sabe se é verídica essa afirmação do orador, uma vez que, em carta ao seu amigo Ático (ad Atticum, I, 16, 15), Cícero lamenta que o poeta Árquias nada escrevera sobre ele. De qualquer forma, a sinceridade do orador ao reconhecer seu desejo de glória, que ele considera honesto, contribuiria, certamente, para sua imagem perante o auditório, ou seja, seria mais um elemento argumentativo, proveniente de seu K >TR� . 30 A nota marcante da peroração em Cícero é, portanto, a exploração dos meios persuasivos decorrentes do SDYTR� . No Orator, o autor refere-se rapidamente à peroração ou conclusão em 35, 122. 31 Na peroração, o orador faz nova referência a essa mudança: “O que até aqui, senhores, tenho dito da causa com brevidade e singeleza, entendo que a todos foi aceito; no que disse do talento deste homem, apartando-me do costume forense e judicial, creio, senhores, que o lançareis à boa parte...”. 32 Em 3, 14, Aristóteles afirma que o epílogo não é necessário se o discurso é breve e o assunto de fácil memorização.

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sua causa e desfavorável à do adversário (K >TR�)� amplificar ou minimizar elementos

que foram fornecidos na etapa das provas; dispor o ouvinte para um comportamento

emocional (SDYTR�); e recapitular o que foi discutido nas provas.

Vejamos, então, o Pro Archia. O orador faz uma rápida recapitulação de alguns

dos argumentos que expôs em favor da causa de Árquias: � o poeta é dotado de qualidades, fato comprovado pelos favores obtidos de seus

amigos, pelo seu merecimento e reputação; � está de acordo com a lei; � tem a favor de si a autoridade do município de Heracléia, representada pelos

seus enviados, ali presentes; � tem o testemunho de Lúculo; � tem como prova sua inscrição nos registros de Metelo.

A seguir, dirige-se ao auditório e recomenda-lhes a adesão à causa de

Árquias, lembrando-lhes mais uma vez que o poeta celebrou e louvou os feitos dos

generais e do povo romano. Termina dizendo que confia na decisão do juiz que preside

o tribunal, a qual será sem dúvida a mais acertada.

3- Conclusão O Pro Archia, como se pôde ver acima, não está entre os melhores discursos do

orador romano, nem segue precisamente o modelo típico do discurso ciceroniano. A

análise do mesmo nos mostra, porém, alguns elementos do sistema retórico de Cícero

e de Aristóteles, e foi isso que se tentou expor neste trabalho, cuja dimensão não nos

permitiu ir além do estudo, no Pro Archia, das partes da retórica chamadas, na

terminologia latina, inuentio e dispositio. Quanto à elocutio, não foi possível seu

tratamento aprofundado, uma vez que a classificação dos tropos e figuras exposta no

Orator, além de extremamente confusa, como já mencionamos em nota de rodapé na

Introdução deste trabalho, exigiria, no caso de um estudo da elocutio no presente

discurso, uma análise incansável do texto original.

Este trabalho resultou de nossa própria análise do Pro Archia – com todas as

limitações que podem advir deste fato – e comparação dos sistemas retóricos de

Cícero e de Aristóteles, razão pela qual chamou-se a este estudo “Tentativa”. Assim, a

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Conclusão deste trabalho acaba servindo não como uma peroração, mas como uma

captatio beneuolentiae.

BIBLIOGRAFIA

ARISTÓTELES. Retórica. Trad. Manuel A. Junior et alii. Lisboa: Imprensa Nacional –

Casa da Moeda, 1998.

CÍCERO. Defensa del poeta Arquías. Trad. para o espanho de Alvaro D’Ors e

Francisco Torrent. Madrid: Ediciones Clásicas, 1970.

_______. L’Orateur. Trad. para o francês de Albert Yon. Paris. Les Belles Lettres,

1964.

_______. Discours. Trad. para o francês de Félix Gaffiot. Paris: Les Belles Lettres,

1938.

_______. Obras. Trad. Pe. Antonio Joaquim. São Paulo: Edições Cultura, 1942.

_______. Rhétorique a Hérennius. Trad. para o francês de Henri Bornecque. Paris:

Garnier.

CONTE, Gian Biagio. Latin Literature: a History. Trad. para o inglês de Joseph B.

Solodow. London: J. Hopkins University, 1994.

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ANEXO: “DEFESA DE ÁRQUIAS”, TRADUÇÃO DE PRO ARCHIA

(In: CICERO. Obras. Trad. Pe. Antonio Joaquim. São Paulo: Edições Cultura, 1942)

1- [EXÓRDIO] Se algum talento, senhores, em mim há (que reconheço bem

limitado), e algum exercício tenho de orar, em que não nego ser medianamente

instruído; e se algum proveito se tira do estudo das boas artes, de que em nenhum

tempo me apartei, de tudo isto, como de justiça, me deve requerer o fruto Árquias

Licínio muito principalmente. Porque estendendo eu o pensamento, quanto posso, por

todo o tempo passado, e recordando memórias desde a primeira puerícia até o

presente, vejo que ele me serviu de exemplo para empreender e continuar a carreira

desses estudos. E se esta voz, animada com suas exortações, e instruída com seus

documentos, foi a alguns de proveito, por certo a devo empenhar, quanto em mim

estiver, em favor daquele de quem recebi o poder patrocinar os outros. E para que

ninguém talvez se admire do que digo, por haver tanta diferença entre o meu talento e

o deste homem, também advirto que nem sempre este gênero de estudos foi a minha

única ocupação, pois todas as artes de letras humanas têm uma certa lição comum

entre si, e se unem com um certo parentesco.

2- Mas para que a nenhum de vós pareça coisa digna de estranheza usar eu em

uma causa forense, e neste público juízo, perante a personagem de um pretor do povo

romano, e juízes severíssimos, em tão grande ajuntamento e concurso de pessoas, de

um método de orar alheio da praxe judicial e estilo do foro, desde aqui vos peço, e

rogo, que na presente causa me concedais esta licença, acomodada ao presente réu, e

a vós, como entendo, não importuna; que orando eu por um eminentíssimo poeta e

eruditíssimo varão neste congresso de sujeitos tão letrados, e na vossa benigna

presença, e sendo juiz um tal pretor, me permitais que fale com franqueza dos estudos,

das boas artes e letras humanas, e me valha de um novo, desusado método de oração,

tratando de um sujeito que nunca foi versado em juízos e intrigas do foro, por razão do

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seu sossegado e estudioso modo de vida. Se esta mercê me permitirdes e

concederdes, certo estou de conseguir que julgueis que Árquias Licínio, sendo cidadão,

como é, não só não seja excluído do número dos cidadãos, mas ainda que deverá

entrar nele, no caso que o não fosse.

3- [NARRAÇÃO] Tanto que acabou a idade da puerícia e deixou aquelas artes

com que a idade pueril se costuma instruir, se aplicou ao estudo de compor; primeiro,

em Antioquia (onde nasceu de família nobre, cidade antigamente célebre, rica e

abundante de homens eruditíssimos e estudos das artes liberais), rapidamente se

entrou a distinguir entre todos, com crédito notável, a sua capacidade. Depois era

celebrada nas mais partes da Ásia, e de toda a Grécia, a sua vinda, de modo que a

expectação deste sujeito vencia a fama do seu talento; e ainda maior que a expectação

era o aplauso com que o recebiam, quando chegava. Nadava então a Itália em artes

gregas e doutrinas da Grécia; freqüentavam-se com mais eficácia estes estudos no

Lácio do que agora nas mesmas cidades e, aqui em Roma, por estar a República em

paz, eles não eram desprezados. Por isto, tanto os de Tarento como os de Régio e os

napolitanos o fizeram seu cidadão e o encheram de prêmios; não houve homem de

erudição que não procurasse o seu conhecimento e amizade, e ser seu hóspede.

Sendo já tão celebrada a sua fama que até os ausentes o conheciam, veio para Roma,

sendo cônsules Mário e Catulo; conseguiu, então, encontrar uns cônsules tais que um

lhe podia dar matéria de escrever, e o outro não só matéria, mas atenção e ouvidos às

suas composições. Receberam-no logo os Lúculos em sua casa, sendo ainda

mancebo: e o que não só prova o seu talento e erudição, mas o seu gênio e virtude, é

que, sendo esta a primeira casa onde entrou na mocidade, nela se conservou mui

aceito, até a velhice. Gostaram muito dele naqueles tempos Q. Metelo Numídico e Pio,

seu filho; M. Emílio foi seu discípulo; tratava-se com os dois Catulos, pai e filho; e com

estar enlaçado com a familiaridade dos Lúculos, de Druso, de Otávio, de Catão, e com

toda a casa dos Hortênsios, o tratavam com sumo respeito e veneração, não só

aqueles que queriam aprender alguma coisa, mas ainda aqueles que o fingiam.

4- Passado depois largo tempo, tendo partido com Lúculo para a Sicília, e

retirando-se daquela província com o mesmo Lúculo, veio para Heracléia, da qual,

como era cidade de privilégios e foros especiais, pediu ser cidadão, e o conseguiu,

tanto pelo seu merecimento como pela autoridade e favor de Lúculo. Pela lei, pois, de

Silvano e Carbão, todos os que tinham privilégio de cidadãos nas cidades aliadas da

República foram feitos cidadãos romanos, contanto que, ao tempo da promulgação da

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lei, tivessem domicílio na Itália e fizessem esta declaração dentro em sessenta dias

diante do pretor. Tendo Árquias casa em Roma havia já muitos anos, fez a sua

declaração perante Quinto Metelo, seu grande amigo, que então era pretor.

[CONFIRMAÇÃO-REFUTAÇÃO] Se não há mais que dizer, senão do direito de

cidadão, e da lei de Silvano, tenho arrazoado a causa: por que coisa destas, Graco, se

pode enfraquecer? Hás de porventura negar-me que foi cidadão de Heracléia?

Presente está M. Lúculo, homem de suma autoridade, religião e verdade, o qual não

diz que lhe parece, mas que o sabe; nem que o ouvira, mas que o vira; nem que

estivera presente, mas que ele mesmo lhe obtivera esta mercê. Presente estão os

enviados de Heracléia, homens nobilíssimos, que por causa deste juízo vieram com

ordens e instrumentos públicos que dizem que fora admitido por cidadão heracleense.

Aqui requeres tu os registros públicos dos heracleenses, os quais sabemos se

consumiram todos na guerra de Itália com o incêndio do arquivo. Ridícula coisa é não

responder nada aos documentos que temos, e procurar os que não podemos ter: não

falar da memória dos homens, e importunar-nos pela das escrituras; e tendo o

testemunho de um varão autorizadíssimo e o juramento e atestação de um município

integérrimo, rejeitar o que se não pode viciar, e requerer registros que dizes se

costumam corromper. Mas não teve domicílio em Roma: isto se diz daquele que antes

de ser cidadão, já ali tinha assentado todos os seus negócios e utilidades. Mas não

tinha feito declaração autêntica, nem dado seu nome aos registros. Antes, pelo

contrário, se registrou naquelas escrituras que, por confissão e consenso de todos os

pretores, têm a autoridade dos registros públicos. Porque dizendo-se que os registros

de Ápio se guardavam com pouco cuidado, Metelo, homem retíssimo e de suma

modéstia, teve tanta exação que, indo ter com o pretor e os juízes, lhes disse estar com

grande cuidado por ver apagado um nome. Nestes registros, pois, nenhuma risca

vedes no nome de Árquias Licínio. Sendo isto assim, por que duvidais da sua cidade,

sendo ele alistado em outras? Dando-se na Grécia este foro a homens que não tinham

arte alguma, ou a tinham mui abatida, como entendo que faziam os de Régio, os de

Tarento, os de Locro e os de Nápoles, que o costumam conferir a comediantes, como

não haviam querer concedê-lo a este varão, sendo dotado de tão famoso talento? Se

os mais, não só depois de conseguirem a mercê de cidadãos, mas ainda depois da lei

Pápia, de algum modo se introduziram nos registros daqueles municípios, este, que

sempre quis ser de Heracléia, há de ser rejeitado? Já percebo que requeres os nossos

censos: porque é coisa escondida que ele estivera no exército com o ilustre general L.

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Lúculo, e em tempo dos antecedentes estivera com o mesmo Lúculo, quando era

pretor na Ásia; e que no tempo dos primeiros, Júlio e Crasso, se não alistou parte

alguma do povo. Mas como o censo não confirma o foro de cidadão, e somente mostra

que aquele que foi alistado já então se portava como cidadão, naqueles mesmos

tempos que dizes que ele próprio se não tinha por cidadão romano, fez muitas vezes

testamento, segundo as nossas leis; herdou a cidadãos romanos, que o fizeram seu

herdeiro; e foi registrado no erário entre os pensionários da República por L. Lúculo,

sendo pretor e cônsul. Busca quantas provas quiseres, que nunca acharás que Árquias

nem seus amigos dissessem jamais coisa que possa prejudicar à sua causa.

5- Perguntar-me-ás, Graco, por que me mostro eu tão afeiçoado a este homem?

Porque me subministra matéria com que o ânimo se alivie do estrépito do foro; e os

ouvidos, cansados de ouvir trapassas, descansem. Porventura te persuades de que

teríamos capacidade para dar expediente a tão grande número de negócios, como

cada dia se nos oferecem, se não cultivássemos nossos ânimos com o estudo das

letras? Ou que poderiam os ânimos suportar tão aturada aplicação, se os não

aliviássemos com os mesmos estudos? Da minha parte confesso que me tenho

entregue a estes estudos: envergonhem-se outros, se se esconderam tanto com suas

letras que nada podem publicar para comum utilidade, nada que se possa ver e

aparecer em público; eu, porém, senhores, por que me hei de envergonhar, eu que há

tantos anos vivo de modo nenhum tempo me apartou deles o ócio, nem desviaram as

delícias, ou retardou o sono? Quem me poderá, pois, estranhar, se os mais empregam

tanto tempo em seus negócios, tanto em celebrar os dias festivos dos jogos, tanto mais

passatempos, e no mesmo descanso da alma e do corpo; e se outros gastam em

banquetes intempestivos, ou, enfim no jogo e na péla, enquanto eu gasto o meu a

recordar estes estudos? E ainda mais sabendo-se que este emprego é mais útil à

minha profissão, a qual, tal qual é, nunca deixou de prestar aos amigos em seus

apertos. Com efeito, se me não persuadisse, desde a adolescência, pelas persuasões

de muitos e muita lição de escritores, de que não há na vida humana coisa mais digna

de se procurar que o bom nome e honestidade de costumes, e de que, para os

conseguir, se devem desprezar todos os tormentos do corpo e todos os perigos de

morte e desterro, nunca pela conservação de vossas pessoas me exporia a tantas

altercações e a estes assaltos quotidianos de homens perdidos. Mas cheios estão os

livros, cheias as vozes dos sábios, cheia a antigüidade de exemplos que estariam

todos sepultados em trevas, se não lhe desse esplendor a luz das letras. Que

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inumeráveis retratos não só para vermos, mas imitarmos, nos não deixaram em seus

escritos tantos autores gregos e latinos, os quais eu sempre pus diante dos olhos na

administração da República, para regular eu ânimos e pensamentos pelas idéias

daqueles varões excelentes?

6- Perguntará alguém: E esses homens, cujas virtudes se escreveram, foram

peritos nessas doutrinas que com tantos encômios engrandeces? Não me atreveria

afirmá-lo de todos: contudo, é certo o que vou dizer. Confesso que houve muitos

homens de ânimo e virtudes excelentes que foram, por si mesmos, regrados e

prudentes sem doutrina, por disposição quase divina da mesma natureza; também

acrescento que ordinariamente a natureza conduz mais para a glória e virtude sem a

doutrina do que a doutrina sem a natureza; mas também sou o mesmo que defendo

que, quando algum gênero e forma de doutrina se ajuntar a um natural excelente, um

não sei que de cabal e singular se costuma então distinguir. Deste número foi aquele

homem divino que nossos pais conheceram, Cipião Africano; da mesma forma o foram

C. Lélio, e L. Fúrio, sujeitos de suma moderação e temperança; e também o

virtuosíssimo e doutíssimo varão daqueles tempos, M. Catão, o velho; todos eles,

certamente, se em nada os ajudassem as letras a adquirir e praticar as virtudes, nunca

teriam se entregado ao estudo delas. E ainda que coloquemos de parte tão grandes

utilidades, mesmo que estes estudos nos não servissem mais que de recreio, ainda

assim julgo devíeis avaliar esta diversão de ânimo pela mais suave e nobre. Porque

todas as mais não são próprias de todos os tempos, nem de todos os lugares, nem de

todas as idades, mas estes estudos criam a adolescência, recreiam a velhice, adornam

os sucessos prósperos e consolam nos adversos, divertem dentro de casa, não

embaraçam fora dela, enfim, nos acompanham nas noites, nas jornadas, no campo. E

no caso de não haver absolutamente em nós capacidade de atingir nem experimentar

estas coisas, ainda assim nos devíamos admirar, quando as víssemos nos outros.

7- Quem houve entre nós de ânimo tão agreste e grosseiro que há pouco não

sentisse a morte de Rócio, que, morrendo já velho, por ser eminente e singular na sua

arte, parecia digno de perpétua vida? Se ele, com o ar e ação natural do corpo tinha

grangeado tanto afeto de todos, havemos nós desprezar os incríveis movimentos do

ânimo e prontidão dos entendimentos? Quantas vezes, senhores, vi eu mesmo a este

Árquias (valho-me da vossa benignidade, já que me dais tão cuidadosa atenção neste

novo gênero de orar), quantas vezes o vi eu, sem por mão em pena, proferir

extemporaneamente grande número de versos excelentes sobre as matérias que então

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ocorriam? Quantas o vi tratar a mesma matéria repetidamente com diversas palavras e

sentenças? Pois já quanto ao que escrevia de pensado e com meditação chegou a

conseguir estimação e aplauso igual ao dos antigos escritores. E não hei de amar a

este homem? Não hei de admirá-lo? Não hei de defendê-lo quanto me for possível?

Ouvido tenho dizer aos sujeitos mais eminentes e de suma erudição que a ciência das

outras artes se consegue com o ensino, ditames e regras; mas que o poeta era

formado pela mesma natureza, que as forças do mesmo entendimento o incitavam e

que um certo espírito divino o inspirava. Esta a razão por que o nosso Ênio, com a sua

autoridade, chama aos poetas sagrados, porque parece nos foram concedidos por

mercê particular e dádiva dos deuses. Seja, pois, senhores, para vós, pessoas de tanta

humanidade, sagrado o nome de poeta, que nenhuma barbaridade violou em tempo

algum. As penhas e as solidões respondem à sua voz; as feras mais cruéis muitas

vezes o canto as doma e mitiga; e nós, sendo tão bem disciplinados, não nos havemos

de mover com as vozes dos poetas? Os de Cólofon dizem que Homero fora seu

cidadão, os de Quíos o tomam para si, os de Salamina o fazem seu, e os de Esmirna

asseveram pertencer-lhe e na sua cidade lhe dedicaram um templo; outros muitos

contendem entre si e se debatem por esta causa. Eles, pois, buscam um mero

estranho porque foi poeta; e nós havemos repudiar a este vivo, que por vontade sua e

pelas leis é nosso? Principalmente tendo Árquias algum dia empregado sua aplicação

e engenho em celebrar as glórias e louvores do povo romano: pois, sendo mancebo,

tocou as coisas dos povos címbrios, agradando àquele mesmo C. Mário que parecia

pouco inclinado a estes estudos. Ninguém há tão inimigo das Musas que não consinta

facilmente que se ponha em verso um eterno pregão das suas ações. Dizem que

Temístocles, aquele grande homem de Atenas, perguntando que som ou voz ouviria de

bom grado, dissera que aquela que dignamente cantasse os seus louvores. Também

aquele outro Mário amou por extremo a L. Plócio por conhecer o talento que tinha para

poder celebrar as suas proezas. A importante e arriscada guerra mitridática, feita com

tão vários sucessos por mar e por terra, toda ela Árquias descreveu, cujos versos

juntamente ilustram o esclarecido e valorosíssimo varão L. Lúculo e exaltam a glória do

povo romano. Imperando Lúculo, rompeu o povo romano o Ponto, inacessível

antigamente pela potência do rei e situação do lugar; com o mesmo general, não sendo

o exército romano mui numeroso, derrotou inumeráveis tropas de armênios; glória é do

povo romano ser a cidade de Císico livre por seu conselho de toda a invasão do rei, e

preservada de que a guerra a tragasse e devorasse; em todas as idades se contará

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aquela nossa insigne batalha naval junto a Tênedos, em que, pelejando L. Lúculo,

mortos os generais, foi metida a fundo a armada inimiga; tudo isto são troféus, são

monumentos, são triunfos nossos. Por isso, empregarem-se os engenhos em referir

estas coisas é o mesmo que celebrar a glória do povo romano. O nosso Ênio foi mui

amado do Africano, o mais velho; e se entende que a estátua daquele fosse posta no

sepulcro dos Cipiões. Mas com aqueles encômios não só os mesmo são elogiados,

mas também o nome romano é engrandecido. Catão, bisavô deste, é exaltado até o

céu; grande honra acresce daqui às coisas do povo romano. Enfim todos os insignes

Marcelos e Fúlvios não gozam de glória alguma de que geralmente todos nós não

participemos. Pois se nossos maiores admitiram ao grau de cidadão aquele que isto

fez, sendo natural de Rúdias, havemos nós despedir a este, que é de Heracléia, sendo

requerido por tantas cidades, e na nossa estabelecido pelas leis? E se alguém julga

que os versos gregos rendem menos glória que os latinos, engana-se enormemente;

porque os gregos lêem-se em quase todos os povos, e os latinos se encerram em seus

limites, assaz pequenos. Portanto, se aquelas façanhas que obramos se estenderam

por todo o mundo, devemos desejar que onde chegaram as armas de nossos

esquadrões entre também a sua glória e fama; tanto por serem estas coisas para os

povos de quem se escrevem, como por ser o maior incentivo de entrar nos perigos

para aqueles que pelejam pela glória. Que multidão de escritores das suas ações se

não diz tivera consigo o grande Alexandre? E ainda assim, quando este na cidade de

Sigeo chegou ao sepulcro de Aquiles, exclamou: “Ó afortunado mancebo, que tiveste

um Homero por pregoeiro do teu valor!” E com razão, porque, se não fosse aquela

Ilíada, a mesma campa que lhe cobria o corpo sepultaria também o nome. E não foi

este nosso grande Pompeu, que igualou a fortuna ao seu valor, quem fez cidadão a

Teófanes de Malta, escritor de suas proezas, em um concurso militar, quando

aprovaram esta ação, com grandes clamores, aqueles nossos homens que, embora

rústicos soldados, foram atraídos por uma certa suavidade de glória, como se

participassem do mesmo louvor? Por onde entendo que, se Árquias não fosse cidadão

romano pelas leis, não deixaria de conseguir esta mercê de algum general. E também

Sila, quando conferiu este foro aos espanhóis e franceses, entendo o não negaria a

este, se o pedisse; quanto a Sila, vi eu que, em certo congresso, oferecendo-lhe um

mau poeta da plebe um caderno com um epigrama em seu louvor, somente com os

versos alternativamente uns mais compridos que os outros, mandou logo que,

daqueles móveis que então se vendiam, se lhe desse um prêmio, com a condição de

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que dali em diante não tornasse a escrever coisa alguma. Quem julgou digna de algum

prêmio a curiosidade de um mau poeta, como não estimaria sumamente o engenho, a

valentia, a abundância do nosso escritor? Por que razão não conseguiria Árquias isto

por si, ou pelos Lúculos, de Q. Metelo Pio, seu íntimo amigo, que a tantos fez cidadãos,

principalmente sendo neste tanto o desejo de que se escrevessem as suas ações que

dava ouvidos até aos poetas de Córdoba, cujos versos eram grosseiros e insulsos?

8- Nem se deve dissimular o que não é possível esconder e o que devemos

manifestar. Todos nós apetecemos glória; não há sujeito de bem que não se deixe

levar por este afeto. Aqueles mesmos filósofos que compuseram livros do desprezo da

glória lhe subscreveram o seu nome, mostrando desejo de serem louvados e

nomeados naquilo mesmo em que desprezavam a fama e a celebridade. Décio Bruto,

aquele grande homem e general, adornou as fachadas dos seus templos e

monumentos com versos de Ácio, seu grande amigo. Pois já aquele Fúlvio, que

guerreou com os etólios, sendo seu companheiro Ênio, não duvidou dedicar às Musas

os despojos de Marte. Não há, pois, razão para que, em uma cidade onde os generais

ainda com as armas na mão veneram o nome dos poetas e os templos das Musas,

nessa mesma se mostrem os ministros de toga contrários à conservação dos poetas. E

para que de boa mente o façais, quero agora me abrir convosco, confessando-vos um

certo desejo que tenho de glória, talvez veemente em demasia, mas, contudo, honesto.

Todas aquelas coisas que eu, juntamente convosco, obrei no meu consulado pela

preservação desta Corte e Império, pela vida dos cidadãos e por toda a República,

tocou ele e entrou a tratar em seus versos; e ouvindo eu isto, por me parecer a obra

grandiosa e agradável, o exortei a que a completasse. Porque a virtude não procura

outra paga dos trabalhos e perigos senão esta do louvor e glória; tirada esta, senhores,

que há para neste tão limitado e breve decurso da vida nos fatigarmos com tantos

trabalhos? Por certo que, se a alma nada pressentisse para o futuro e todos os seus

pensamentos tivessem os mesmos limites que a vida, nem se quebrantaria com tantos

trabalhos, nem se afligiria com tantos cuidados e vigílias, nem pela mesma vida se

pelejaria tantas vezes. Mas reside em qualquer homem de bem um certo vigor que nem

de dia nem de noite deixa continuamente de o excitar e advertir de que a memória do

nosso nome se não há de comensurar pelo espaço da vida, mas igualar com toda a

posteridade.

9- Porventura todos nós havemos de nos mostrar de ânimo tão apoucado, nós

que, na República, andamos metidos nestes trabalhos e perigos da vida, que não

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temos até o último instante dela lugar nem para respirar livremente com sossego,

porventura deixaremos nós que tudo morra conosco? Porventura, quando tantos

homens grandes deixaram estátuas, imagens e retratos não das almas mas dos

corpos, não havemos nós querer muito mais deixar o retrato da nossa prudência e

virtudes traçado e polido pelos melhores engenhos? Quanto a mim, tudo o que obrava

me parecia que o espalhava e semeava por toda a memória dos séculos. Mas estas

coisas, ou estarão muito remotas dos meus sentidos depois da morte, ou pertencerão a

alguma parte da minha alma, como julgaram muitos homens doutíssimos; agora,

porém, certamente me deleitam com um certa consideração e esperança delas.

[PERORAÇÃO] Portanto, senhores, conservai um homem dotado de tal modéstia –

qual vedes comprovada pelos obséquios dos amigos, pelo seu merecimento e pela sua

reputação –, de tão grande entendimento – comprovado pelo fato dele ser procurado

pelos sujeitos de maior capacidade – e de causa tal que é aprovada pelo benefício da

lei, autoridade do município, testemunho de Lúculo e tábuas de Metelo. Sendo isto

assim, vos rogamos, senhores, que, se alguma recomendação não só humana, mas

divina, deve haver em tamanhos negócios, recebais no vosso amparo aquele que

sempre adornou os vossos generais e as ações do povo romano, que confessa estar

pronto para dar um eterno pregão em louvor destes vossos perigos domésticos, e que

pertence ao número daqueles que foram sempre, na estimação de todos, tidos e

nomeados por sagrados, para que percebais que antes deveis aliviá-lo com a vossa

benignidade do que ofendê-lo com o vosso rigor. O que até aqui, senhores, tenho dito

da causa com brevidade e singeleza, entendo que a todos foi aceito; o que disse do

talento deste homem, apartando-me do costume forense e judicial, creio, senhores, que

levareis em consideração, e certamente me persuado de que assim o faz aquele que

preside a este juízo.