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1 | Humanitas - literatura e filosofia HUMANITAS Revista de literatura e filosofia Publicação Anual, Nº 2, Maio 2017, 1 Luar Escola Secundária de Santa Maria

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Escola Secundária de Santa Maria

Todas as coisas são mesa para os pensamentos onde faço minha vida de paznum peso íntimo de alegria como um existir de mãofechada puramente sobre o ombro.– Junto a coisas magnânimas de águae espíritos,a casas e achas de manso consumindo-se,ervas e barcos altos – meus pensamentos criam-secom um outrora lento, um saborde terra velha e pão diurno.

in A colher na boca, 1961

Há cidades cor de pérola onde as mulheresexistem velozmente. Ondeàs vezes param e são morosaspor dentro. Há cidades absolutastrabalhadas interiormente pelo pensamentodas mulheres.Lugares límpidos e depois nocturnos,vistos ao alto como um fogo antigo,ou como um fogo juvenil.Vistos fixamente abaixados nas águascelestes.

in Lugar, 1962

nada pode ser mais complexo que um poema,organismo superlativo absoluto vivo,apenas com palavras, apenas com palavras despropositadas,movimentos milagrosos de míseras vogais e consoantes, nada mais que isso,música, e o silêncio por ela fora

in Servidões, 2013

queria fechar-me inteiro num poemalavrado em língua ao mesmo tempo plana e plenapoema enfim onde coubessem os dez dedosdesde a roca ao fusolá dentro ficar escrito direito e esquerdoquero eu dizer: todovivo moribundo mortoa sombra dos elementos por cima

in, A morte sem mestre, 2014

Herberto Helder1930-2015

Escola Secundária de Santa Maria

Só os cultos são livresEpicteto

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Colaboraram neste número

TextosAfonso Matos, Ana Matilde Canelas, Adriana Assis-Rosa, Baltasar Dinis, Beatriz Correia, Beatriz Ferreira, Beatriz Mourato, Bernardo Silvestre, Bruno Bento, Daniel Rio, Eva Ribeiro, Gabriela Augusto, Joana Figueiredo, Mafalda Sebastião, Maria Romão, Marta Abrantes, Miguel Marôco, Nicole Sjöholm, Patrícia Ribeiro, Rosa Galrão, Rute Prudêncio, Sara Guerra, Sofia Silva, Tatiana Melnyk (alunos dos 10.º, 11.º, 12.º anos). David Ruah, Hugo Luzio, Maria Cintra (ex-alunos ligados à criação da revista).

IlustraçõesCatarina Cacho, Catarina Fazenda, Edilson Oliveira, Ema Almeida, Harley Costa, Ivânia Pessoa (imagem da capa), Joana Silva, João Parcelas, João Silva, Miriam Coralejo.

FotografiasJoana Figueiredo, Martim Alexandre.

Design gráficoAna Frade

Paginação e publicação webJorge Damásio

Conselho editorialFernanda Peixoto, Margarida Santos, João Perdigão, Margarida Vidal, Teresa Gaspar, Ilídio Coutinho.Alunos: Ana Sofia Nunes, Filipa Lopes, Joana Figueiredo, Matilde Manso, Vasco Almeida.

Conselho de administraçãoFernanda Peixoto, Margarida Vidal, João Perdigão.

CoordenaçãoFernanda Peixoto

Endereço de correio eletró[email protected]

MoradaEscola Secundária de Santa Maria – SintraRua Pedro Cintra, s/nPortela de Sintra2710-436 Sintra

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ce 1. Literatura e CidadaniaO valor da Literatura, Beatriz Ferreira .............................................................................Cultura e civismo, Ana Matilde Canelas e Gabriela Augusto ...............................................

2. Literatura e condição humanaA Literatura na construção individual, Patrícia Ribeiro .......................................................Satisfação e aperfeiçoamento, Marta Abrantes e Rosa Galrão ............................................Deambulação sobre a liberdade e um poema de Fernando Pessoa, Eva Ribeiro ....................

3. Ética e LiteraturaO que é um Homem…, Tatiana Melnyk ............................................................................

4. Ética e PolíticaA Guerra e a Liberdade enquanto questões sociopolíticas, Beatriz Mourato ..........................Sobre o justo, Daniel Rio ..............................................................................................Arte, Liberdade e Direito – ou, ainda, sobre Charlie Hebdo, David Ruah ..............................

5. A História faz o Homem?O papel ativo e constante do Homem na História, Maria Romão .........................................

6. Viagem na literaturaA Máquina do Tempo, Rute Prudêncio...............................................................................7. Os Limites da CiênciaA Ética e a Ciência, Beatriz Correia ................................................................................

8. A função-autor em Michel Foucault, Hugo Luzio .....................................................

9. Olimpíadas da Filosofia da ESSM - Ensaios O homem transparente, Baltasar Dinis ...........................................................................O que implica sermos livres? Eva Ribeiro ........................................................................Donos da verdade ou críticos na incerteza, Beatriz Correia ................................................

10. Um conto … 10.1. A condição humanaReflexões ao revés do refratário, Daniel Rio ....................................................................Mais do que uma capa, Adriana Assis-Rosa e Sofia Silva ...................................................Três camas, Bruno Bento ..............................................................................................Espelhos, Miguel Marôco ...............................................................................................O Relógio, Mafalda Sebastião ........................................................................................Pressão para ser perfeito, Nicole Sjöholm .......................................................................Uma Parede para não voar, Afonso Matos ........................................................................

10.2. ViagemLar, Miguel Marôco .......................................................................................................A Ilha, Joana Figueiredo ...............................................................................................O Mariposa, Sara Guerra ..............................................................................................Sem título, Mafalda Sebastião .......................................................................................Viagem Sentimantal, Bernardo Silvestre .........................................................................

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11. Divulgação7 mil milhões de outros, Maria Cintra .............................................................................

IlustraçõesCatarina Cacho ...........................................................................................................Catarina Fazenda ...............................................……………………................................Edilson Oliveira ........................................................................................................Ema Almeida ..............................................................................................................Harley Costa ...............................................................................................................Ivânia Pessoa ...................................................................................................Joana Silva .................................................................................................................João Parcelas ..............................................................................................................João Silva ...............................................................................................................Miriam Coralejo ...........................................................................................................

FotografiaPrincipiar, Joana Figueiredo ...........................................................................................Cyclus, Joana Figueiredo ..............................................................................................Porto, Martim Alexandre ...............................................................................................

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A inserção da revista Humanitas nessa zona de fronteira «em que diferentes disciplinas se intercetam»1 constitui o ponto de partida para a construção deste projeto.

No discurso de Cícero, Defesa de Árquias 2, o orador latino afirma que as Humanidades «contribuem para o aperfeiçoamento espiritual … têm uma função paradigmática» e «formaram quase todos os grandes homens do passado.»

Em diferentes épocas é possível constatar uma atitude de suspeição face a um saber difícil de situar, perigoso e em perigo e, por isso, excluído do «triedro epistemológico.»3

Ainda que a episteme moderna venha a incluir «outras configurações do saber» que têm como sujeito e domínio do conhecimento o Homem, este escapa a uma apreensão enquanto «objeto de ciência», no sentido enunciado por Wittgenstein: «Sentimos que mesmo quando todas as possíveis questões da ciência fossem resolvidas os problemas da vida ficariam ainda por tocar».4

Neste contexto, podemos recordar a reflexão de Roland Barthes sobre o modo como «a instituição determina, diretamente, a natureza do saber humano, ao impor os seus modos de divisão e de classificação, pelas suas “rubricas obrigatórias” (e não apenas pelas sua exclusões), obriga a pensar de uma certa maneira.»5

Ao longo do século XX, são vários os contributos para a superação da lógica clássica binária – «lógica do terceiro excluído», segundo o princípio de não-contradição – numa «lógica do terceiro incluído», na qual os opostos coexistem. O «teorema de Gödel» e o «princípio de incerteza» postulado por Heisenberg fizeram vacilar os fundamentos das ciências e da lógica, puseram em questão a ideia de «progresso ilimitado», introduziram as noções de indeterminação, de complexidade e de interdependência que permitem conceber a realidade como um processo dinâmico e a verdade como provisória, apontando para um conhecimento transdisciplinar que pressupõe diferentes níveis de realidade e de perceção, diferentes lógicas e conceitos.

Numa formulação que dialoga com superação acima referida, Michel Serres introduz a noção de «terceiro instruído» e, simultaneamente, identifica uma longa tradição de autores – de Rabelais a Paul Valéry, passando por Pascal, Molière, Leibniz, Voltaire, Diderot, Goethe, Émile Zola, Robert Musil – e de textos «terceiro-instruídos», isto é, os que não separam as áreas do conhecimento em «linhas divisórias» e nos quais «os saberes nunca se dividem como continentes cristalinos, sólidos fortemente definidos, mas como oceanos, viscosos e sempre muito batidos, [atravessados] por

(1) George Steiner. Sobre a dificuldade e outros ensaios. Lisboa, Gradiva, 2013, p. 10.(2) Árquias é um poeta grego de Antioquia que, depois de ter cumprido as exigências requeridas, obteve a cidadania romana. No entanto, viu-se envolvido num processo – que tinha, na verdade, um fundo de rivalidades entre famílias políticas – em que é acusado de ter adquirido de modo fraudulento, o estatuto de cidadão romano. É neste contexto que Cícero o defende em tribunal (século I a. C.). O discurso de Cícero «ficou conhecido como a Magna Carta do humanis-mo», in Maria Helena da Rocha Pereira. Estudos de história da cultura clássica – Cultura romana. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, p. 141.(3) Michel Foucault. As palavras e as coisas. Lisboa, Edições 70, 1991, pp. 384-385.(4) Ludwig Wittgenstein. Tratado lógico-filosófico. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1995, §6.52.(5) Roland Barthes. O rumor da língua. Lisboa, Edições 70, p.13.

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correntes quentes ou frias, … em fluídos turbilhões» que apontam para uma «epistemologia futura».6

Esta reflexão vem de longe e atravessa os tempos, tal como o ilustra Lev Tolstoi na defesa da aliança entre a arte e a ciência, como condição para ambas cumprirem o seu propósito de se tornarem «atividades grandiosas» e «órgãos da vida humana e do progresso da Humanidade.»7

Assim, numa perspetiva crítica face a uma [pós-]pós-modernidade «míope, um falso progressismo, uma lógica empresarial economicista, utilitarista e tecnoburocrática»8, alguns pugnam por um ideal educativo e cultural que reporta à história secular, que aponta para as faculdades humanas de pensar, de interpretar, de compreender e de construir um discurso crítico, que integra os produtos e as realizações humanas – nas diversas áreas do conhecimento –, que assenta em fundamentos éticos, enquanto processo de revelação, de descoberta, de libertação, de formação estética, na senda de uma cidadania ativa, democrática.

E concluímos com a voz avisada de George Steiner, segundo o qual: «há tempos de crise em que só a utopia é realista.»9

Tal como no primeiro número da revista Humanitas, os textos e os desenhos que a seguir vos são apresentados foram produzidos pelos alunos da Escola Secundária de Santa Maria, Sintra, e, ainda, por três ex-alunos cujo papel foi determinante na criação da revista.

Aqui fica um novo elo na aliança com todos os interessados, onde quer que se encontrem…

(6) Michel Serres. O terceiro instruído. Lisboa, Instituto Piaget, s.d., pp. 63-66.(7) Lev Tolstoi. O que é a arte. Lisboa, Gradiva, 2013, pp. 250-251.(8) Vítor Aguiar e Silva. As Humanidades, os estudos culturais, o ensino da Literatura e a política da Língua Portuguesa. Coimbra, Almedina, 2010, pp. 80, 84. (9) George Steiner. Op. cit., p. 221.

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1. Literatura e cidadania

O valor da Literatura

“Os Portugueses são os que menos leem na União Europeia”, foi o que revelaram os resultados de uma sondagem Eurobarómetro divulgada em Bruxelas pela Comissão Europeia. Comparados com 60% dos europeus que afirmam ter lido pelo menos um livro por ano, o povo português apresentou a chocante percentagem de 32%.

É a partir destes dados que dou início a este artigo.

Como todos sabemos (ou pelo menos deveríamos saber), em termos de produção literária, Portugal foi e é um país muito rico. Temos como exemplo o nosso Camões, Gil Vicente, Almeida Garrett, Eça de Queirós, Bocage, Cesário Verde, Pessoa e, mais recentemente, Sophia de Mello Breyner Andresen, José Cardoso Pires, José Saramago, António Tavares, Maria Gabriela Llansol, etc. E não existem à nossa disposição apenas obras de autores portugueses, mas também ilustres escritores como Shakespeare, Dostoievski, Zoran Zivković, Edgar Allan Poe, Alan Bennett, entre muitos outros. Todos estes autores, poetas e dramaturgos, embora cada um à sua maneira, criaram um vasto conjunto de obras de todos os tipos e em todas as épocas literárias.

Quais poderão ser, então, os motivos que justifiquem este desinteresse e esta passividade que os Portugueses adotam?

Em primeiro lugar, penso que vêm as editoras, pelo simples facto de estas serem um dos modos através dos quais temos acesso à divulgação das diferentes obras. Quero dizer, as livrarias que encontramos num centro comercial, ou mesmo na rua, por exemplo. Porém, a Literatura que é privilegiada nessas livrarias não é exatamente a que eu penso que deveria ser e que descrevi acima. Peço-vos que reparem, da próxima vez que passarem por uma livraria, na tipologia de livros que se encontram expostos na montra. Certamente irão constatar que a maioria dos volumes são livros de autoajuda, de culinária e também romances best-sellers. Livros de autores portugueses raramente existem, a não ser que sejam de José Rodrigues dos Santos ou de Pedro Chagas Freitas.

Surgem, então, duas vertentes relacionadas com este “Mundo dos Livros”: de um lado, encontram-se os escritores de literatura leve ou cor de rosa e as editoras; do outro, surge o consumidor, ou seja, o leitor que se contenta com estas obras ligeiras, superficiais e, atrevo-me a dizer, pouco significantes para o nosso intelecto. Ou seja, o apelo que deixo é o seguinte: não se deixem levar pelas “modas” da literatura dos best-sellers.

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Não alimentem esta sociedade pobre em leitores que, de facto, leem. Sim, porque, para mim, “ler” e “saber ler” são competências muito diferentes.

Atualmente, a maioria dos portugueses “lê” sem “sabe ler”. É que ler é apenas um ato mecânico, cujo domínio se atinge durante a primeira fase da escolaridade básica - ler é conhecer a “historinha” que o livro contém. Mas saber ler é o que falta neste caso. Saber ler é saber interpretar e, consequentemente, é compreender em função do capital cultural de cada um; o que nos leva a questionar, a responder, a imaginar, a criar, a sentir, etc. Não se limitem a ler, saibam ler e saibam o que ler.

Considero importante destacar o facto de que cada um é livre de ler o que quiser, e que gostos não se discutem, obviamente. Mas aí é que está a questão: é o encarar da Literatura como modo de satisfazer única e exclusivamente os gostos de cada um.

E aqui se encontra o segundo motivo que poderá justificar o resultado do estudo realizado pela Comissão Europeia.

Passo, então, a explicar melhor o que pretendo evidenciar. Atualmente, os livros são encarados como um passatempo, uma espécie de televisão, uma distração da rotina atribulada do nosso dia-a-dia (com certeza que vocês de vez em quando leem umas páginas até vos vir o sono, à noite). Muitos de nós temos até um exemplar de um livro que nos agrada em cima da mesa-de-cabeceira e que ali permanece, dias e dias, à espera que o leitor o folheie com os olhos cansados e o pensamento noutro lugar qualquer.

Daqui para a frente, dirijo-me principalmente aos jovens.E agora, pergunto-vos: estaremos a tratar as obras com o devido

respeito?Ao fim e ao cabo, foram os textos que, quando ainda éramos novos e

trapalhões a ler, nos ajudaram a ordenar e estruturar o nosso pensamento e as nossas ideias e nos permitiram ler como sabemos hoje. Aqui encontramos logo a noção de “Livro” como professor. Depois, há que ter em conta o facto de que algumas obras já contêm séculos e séculos de existência e de aceitação. Isto impõe algum respeito, certo? Senão, deveria impor.

Todos nós, jovens desta geração que agora está a frequentar o ensino secundário e que se está a preparar para a vida Universitária, temos vindo a crescer num mundo e numa sociedade em que a tecnologia e a inovação se encontram apenas ao virar da esquina. Quantos de nós temos um telemóvel maior e melhor do que o dos nossos pais? Muitos, demasiados até, não é verdade? E quantos de nós é que sabem trabalhar num computador? Quem não souber é tido como desajustado. E, agora, quantos de nós é que fazem da leitura uma atividade regular, sossegada e cuidada? É exatamente esse silêncio na resposta que incomoda.

Alguma vez compraste ou adquiriste uma obra de um autor de valor, sem que tenha sido requerido pela escola? Não me refiro a autores de livros muito extensos, mas sem valor reconhecido pelo passar dos anos. Refiro-me

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a clássicos da Literatura Portuguesa e mundial. A obras-primas. Acima referi que um bom livro deve ser sempre tido como um professor.

A princípio, talvez custe ler obras que “puxem” por nós, obras que nos obriguem a sair da nossa zona de conforto e que nos ponham a pensar. Talvez não tenhamos coragem para ler um livro deste ou daquele autor, porque ouvimos dizer que é muito difícil, entediante ou desinteressante. Mas, também não afirmei um pouco acima que gostos não se discutem? Quem sabe se vocês não poderão vir a adorar Fernando Pessoa ou Eça de Queirós ou até mesmo Dostoievski?

O que é que eu pretendo evidenciar ao dizer isto? Seja exigentes convosco mesmos. Puxem os vossos limites, tirem uma tarde livre em que estavam a planear passar agarrados aos telemóveis ou à PlayStation para lerem um bom livro. Aventurem-se por uma biblioteca adentro, leiam um livro que a princípio nunca leriam. No meu caso, que sou aluna de Humanidades, irei ler um livro de Ciências ou de Artes.

É importante que nós, os jovens, saibamos “autodesafiar-nos”. Cabe-nos a nós cortar com esta geração ociosa e com hábitos de leitura quase inexistentes, que não reconhece o verdadeiro valor que a Literatura tem. Não estou a dizer que, atualmente, no nosso país não existam leitores exigentes, porque felizmente ainda existem! Mas a maioria deles não é da nossa geração. É a nós, que estamos hoje e agora a estudar para entrar na Universidade, que irá em breve caber o dever de votar, de participar ativamente na vida do nosso país e, quem sabe, de transmitir e educar os nossos filhos para que estes sigam o melhor caminho como leitores e “pensadores”. Não devemos, nem podemos, deixar o nosso país ser governado e representado por pessoas que não sabem ler! Afinal de contas, de um leitor preocupado e que sabe ler, pode sempre vir a nascer um escritor que não veja a Literatura apenas como negócio, mas sim como educação e formação ética. E como Louis Aragon uma vez disse: «A Literatura é um assunto sério para um país, pois é afinal de contas o seu rosto.»

Resta-me apenas fazer um último apelo. Demonstrem a vossa curiosidade intelectual. Alimentem as vossas mentes com obras-primas. Criem a vossa biblioteca com os livros que mais vos desafiaram, ou que não perceberam bem. Leiam-nos as vezes que forem necessárias para que aprendam a gostar dessas obras. Já disse, e volto a repetir: cabe-nos a nós, os jovens, os representantes futuros do nosso país, fazer renascer um Portugal culto, um Portugal que saiba ler, um Portugal que respeite e reconheça o valor da Literatura. Engrandeçam-se cultural e literariamente. Nós não somos só o que comemos; também somos o que lemos.

Beatriz Ferreira

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Cultura e civismo

A procura da cultura é imprescindível a qualquer ser humano que quer ter a capacidade de agir com autodomínio. É do processo de procura, quer seja através da educação no estabelecimento escolar ou através de outras atividades culturais que resultam indivíduos e cidadãos mais “ricos”, mais sabedores e conhecedores. O ser humano só pode colher o que cultiva. Porém, para cultivar, o indivíduo precisa de ser cultivado.

As Humanidades são a área que tem como finalidade formar seres humanos. Pretende criar cidadãos ativos e conscientes, para que possam participar de forma correta e cívica na vida da cidade/país.

Todos nós temos o direito à cidadania mas só aqueles com cultura têm a informação necessária dos seus direitos e deveres e a consciência de que podem ter influência e marcar a diferença na comunidade, o que os torna capazes de desempenhar um papel ativo nessa mesma comunidade.

Entende-se por civismo a capacidade que um ser humano tem de conhecer e respeitar os valores da cultura e de agir de acordo com os valores culturais, éticos e humanistas da sociedade, visto que os valores (com os quais temos contacto desde crianças) são orientações que permitem a um certo indivíduo distinguir o correto do errado.

Há, por isso, uma relação indissociável entre as Humanidades - educação que tem como finalidade formar seres humanos plenamente desenvolvidos enquanto pessoas e cidadãos - e a Cultura Cívica, uma vez que é este progresso individual de cada um de nós que permite o avanço da civilização em termos intelectuais, espirituais ou materiais. A Cultura Cívica é, portanto, a que vê o cidadão como uma ínfima parte de um todo que é a sociedade, na qual todos nós temos de nos integrar. No extremo, pode haver um cidadão culto mas “incivilizado”, porque nem sempre a cultura pessoal coincide com a cultura cívica de cada um.

Para o mundo evoluir culturalmente, a população deveria começar por aproveitar ao máximo todas as fontes de conhecimento que lhe são oferecidas, sem tomar nada por garantido. De outra forma, não passaremos de ignorantes com a plena noção de que podemos deixar de o ser.

Locais como escolas e universidades foram criados para transmitir cultura e criarem cidadãos, contudo existem muitos outros meios para fazer com que um sujeito adquira cultura, tais como o teatro, o cinema e, principalmente, os livros.

A Literatura é a base de tudo.

A leitura desempenha um papel fundamental na formação de seres humanos plenamente desenvolvidos, enquanto pessoas e cidadãos ativos, conscientes e com espírito crítico. São os livros que nos permitem ter conhecimento sobre a antiguidade e as culturas passadas, fazendo-nos

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crescer espiritual e intelectualmente.

Primeiramente, é imprescindível entender a importância dos livros e da leitura e o quanto influenciam a formação e a instrução dos leitores. De seguida, devemos implementar em nós mesmos o hábito de leitura, alimentar o gosto pela Literatura e aprender a apreciar a Literatura universal para podermos depois valorizar as obras-primas e usufruir da cultura que estas nos podem transmitir. É através da reflexão e da dedicação que a leitura exige aos leitores e de tudo aquilo que tem para nos oferecer, que nos tornamos seres cultos e capazes de pertencer a uma sociedade, não apenas por direito, mas por respeito à mesma.

É este crescimento que nos vai permitindo guardar o que aprendemos, podendo, assim, aplicá-lo nas decisões do nosso dia a dia.

Pode ser insuficiente formar cidadãos cultos, no sentido em que é também essencial criar cidadãos que saibam agir em sociedade, ou seja, que demonstrem possuir cultura cívica.

Devemos, por isso, valorizar a Literatura e perceber como esta contribui para o desenvolvimento de indivíduos cultos e civilizados e para uma melhor sociedade.

Ana Matilde Canelas e Gabriela Augusto

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2. Literatura e condição humana

A Literatura na construção individual

A Literatura é uma questão séria.

O discurso literário é tão enriquecedor e relevante como qualquer outra área do conhecimento. Nem melhor, nem pior que a Ciência: ambas constituem uma forma de entendimento da realidade, embora distinta. Aqui, o que convém diferenciar é a sabedoria: o conhecimento literário, por contraponto ao científico, não é quantificável ou mensurável. O que pretendo esclarecer é que não é possível quantificar o quanto se é mais sábio após a leitura de um livro.

No entanto, deve partir do nosso próprio esforço e da evolução íntima do nosso pensamento a procura da verdade e do conhecimento de nós mesmos, através de uma relação ativa com os livros. E o que é isto de uma relação ativa com um livro?

É ao respeito pela Literatura, através de uma capacidade seletiva, que me refiro. Por outras palavras, importa a distinção entre Literatura séria e digna de merecimento, e Literatura leve, que assenta na pobreza linguística e no apequenamento de um livro como objeto artístico. Decerto sabem que tipo de “literatura” é esta: aqueles best-sellers nas montras das livrarias que atraem a nossa atenção com as cores estonteantes das capas, que nos prendem o olhar no brilho excessivo, essa agressividade comercial que cada vez mais penetra na cultura e a empobrece.

Mas é para isto que um livro serve? Para atrair o olhar e não o pensamento? Para dar prioridade ao aspeto e acima do conteúdo?

Não. Alain de Botton afirma em Como Proust pode mudar a sua vida que, a partir da leitura dos livros de Ruskin, Proust aprendeu a olhar para o mundo, nomeadamente, a apreciar a beleza da arquitetura, cujo hábito de olhar havia esbatido, apagado o pormenor, morta a capacidade de atenção, destruída a curiosidade. Este exemplo mostra como uma relação ativa com os livros, assim como referi anteriormente, nos acorda para a vida, desperta-nos. Traz-nos os instrumentos necessários para que possamos viver no sentido absoluto da palavra, oferece-nos novas perspetivas e visões que anteriormente desconhecíamos, enriquece-nos! Podemos desta forma depreender que a Literatura traz ensinamentos para a vida, para uma nova visão do mundo e das coisas – tal como Ruskin sensibilizou Proust para o mundo visível –; mostra-nos novas perspetivas e ideias, novas reflexões.

Contudo, a tarefa de interpretação das mesmas é nossa, e não dos livros. Proust reconheceu a facilidade com que tal acontece: sentirmo-nos tentados a

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depender unicamente daquilo que lemos sem o analisarmos atentamente, ou sem investirmos alguma reflexão no que os livros nos oferecem. A Literatura é o incentivo, é um despertar, mas exige pensamento, esforço de reflexão, resiste-nos. A literatura não é um passatempo10, é um espaço de uma certa dureza pois o difícil é o que nos permite crescer e avançar.

Hermann Hesse, em Uma Biblioteca da Literatura Universal, aborda também esta temática, ao utilizar a metáfora “caminho” como significação de “procura da «cultura»”11. A procura sugere, à partida, a ambição do indivíduo, a sua vontade e interesse pessoal, a dedicação. Correlaciona-se com um caminho, uma vez que este implica um esforço, obstáculos, imprevisibilidade, sem limitação temporal ou espacial. Este caminho assenta na busca do aperfeiçoamento intelectual e espiritual, sendo a cultura “a janela para o mundo” – o que nos desperta para uma infinidade de conhecimento, em que proceder no infinito é um alargamento da consciência, uma abertura da mente a nós mesmos e ao que nos rodeia.

Ser mais consciente é parte, precisamente, deste caminho: é adotar uma mente aberta, que se permita crescer e enriquecer, a nível intelectual e espiritual, pois “só a leitura e o saber dão as «boas maneiras» do espírito”12; a nossa inteligência só a podemos desenvolver nas profundidades da nossa vida espiritual. A leitura é o alimento para o intelecto e para o espírito, é a busca do mais profundo no interior do sujeito.

Este caminho, a procura da cultura, é a formação e o cultivo de um carácter, é a construção individual.

Ao mesmo tempo, Literatura é estudar e interpretar o passado para olhar o futuro. Entre as vias que conduzem à cultura, sobreleva-se o estudo da Literatura universal, da herança de todo um passado literário de pensamentos, experiências, que os grandes poetas e filósofos nos deixaram. Estudar o passado para nos abrirmos ao futuro, contribuindo para dar à nossa vida um significado sempre mais elevado e mais pleno. No fundo, este é o significado de toda a existência que não se cinge à pura necessidade material, mas que tenta alcançar um sentido para a mesma, na procura de uma vida em conformidade com o pulsar da humanidade.

Isto porque, se tivermos em mente que somos, na nossa condição humana, seres culturais, torna-se uma verdade irrefutável que a evolução mental do homem parte, precisamente, do desenvolvimento intelectual e espiritual, a tal procura de cultura, de conhecimento. Se nos adaptamos a uma vida na ignorância e no desconhecimento, se caímos no abismo da dúvida e procuramos outras soluções para além da cultura, estagnamos. Pior do que uma estagnação individual, de um ser que não procura evoluir e enriquecer o seu intelecto e espírito, um ser que não procura humanizar-se, é toda uma

(10) Gonçalo M. Tavares, in Jornal de Letras, 13 de novembro, 2013(11) Cf. Hermann Hesse. Uma Biblioteca da Literatura Universal. Lisboa, Cavalo de Ferro, 2010, pp. 9-15.(12) Marcel Proust. Sur la Lecture. Librio, 2013.

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sociedade ignorante que, consequentemente, compromete a evolução das gerações vindouras.

Como conclusão, evidencia-se, de facto, uma importante relação que se estabelece entre a Literatura e, essencialmente, nós mesmos, na medida em que é a forma de compreensão e de interpretação da vida e do mundo que nos rodeia. É o cultivo de uma personalidade, é o desenvolvimento do nosso poder intelectual. É a janela para o mundo, para a vida, é o caminho para nos tornarmos seres ricos de consciência, com capacidade de pensar, seres humanos no sentido pleno da palavra.

Por último, queria apenas que refletissem sobre a seguinte citação:

A literatura, que é a arte casada com o pensamento, e a realização sem a mácula da realidade, parece-me ser o fim para que deveria tender todo o esforço humano, se fosse verdadeiramente humano, e não uma superfluidade do animal.13

A cultura é o que nos distingue das outras espécies enquanto seres racionais e, como tal, permite tornarmo-nos humanos; se não investimos o nosso esforço na sua procura, para a nossa própria formação e evolução, então para que mais ele vale?

Patrícia Ribeiro

(13) Fernando Pessoa. Livro do Desassossego. Lisboa, Assírio & Alvim, 2014, p. 332

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Satisfação e aperfeiçoamento

O esquema acima apresentado indica-nos que a Literatura é um meio de acesso à cultura e à consequente formação do caráter. A cultura adquirida a partir dos livros enriquece-nos a tantos níveis que nos proporciona uma sensação de satisfação que nos faz também ter sempre vontade de ler mais. Lendo mais, o nosso ser aperfeiçoa-se tanto a nível intelectual – nível esse mais diretamente ligado à cultura, às ciências e à história – como também a nível espiritual, ligado ao emocional e ao mais profundo de cada um.

Algumas das ideias essenciais para o percurso de um leitor são a necessidade de abolir os preconceitos, as reservas e as críticas antecipadas face aos livros. A recusa inicial para com um livro é despropositada porque não há conhecimento suficiente para, desde logo, pôr um livro de parte. Essa restrição a um certo tipo de livros é uma atitude passiva que se limita à «zona de conforto». O ir para além disso, o quebrar as nossas próprias barreiras é o ler verdadeiramente. Assim, é vital ter um espírito aberto. Este espírito aberto leva-nos a não desistir da leitura caso haja uma personagem da qual gostamos menos, por exemplo.

Há livros com portas de entrada mais difícil de passar, mas se desistirmos nunca vamos conhecê-los e perdemos uma boa oportunidade de conhecimento.14

O autor escreve o (sobre o) que pensa e sente, e cada um de nós não tem de se identificar, obrigatoriamente, aliás, essa é uma forma de crescimento pessoal. O papel de nos colocarmos na pele do autor faz-nos perceber outras perspetivas, outros ideais e outras vivências que contribuem de uma forma benéfica para a construção do ser.

É preciso prescindir de si para entender o outro. Não posso pedir ao autor que escreva algo com que eu me identifique, tenho simplesmente de compreendê-lo. São Livros os que nos inquietam, incomodam e nos põem a pensar; os livros que não nos fazem levantar a cabeça, enquanto lemos, não valem a pena.

Compreendi que ser leitora é um percurso com o objetivo constante de enriquecer o indivíduo a vários níveis, tais como o pessoal, emocional e cultural. Este percurso é apenas realizado uma vez aplicado esforço e dedicação. Essa dedicação passa pela procura de autores antigos, pois para perceber o presente e o futuro, é essencial perceber o passado:

… o adquirir, pouco a pouco, familiaridade com o imenso tesouro

(14) Cf. Virginia Woolf. Quem são eles? Que são eles? Como se chamam?

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literatura e condição humana

de pensamentos, experiências, símbolos, fantasia e miragens que o passado nos deixou em herança nas obras dos poetas e dos filósofos de muitas nações.15

Isto é, somos capazes de adquirir conhecimento, experiências e vivências mesmo não as tendo vivido literalmente. A Literatura leva-nos assim a aprender e apreender.16

Muitas vezes existe um grande desrespeito face aos livros, como quando se come e se deixa cair migalhas, quando se dobram os cantos das páginas, etc. Tudo isto para mostrar que se um livro é algo que nos fornece tanta riqueza, este também merece o nosso respeito. Ainda é importante referir que a Literatura não deve de modo algum distrair-nos, mas sim concentrar-nos17, visto que não é um passatempo, nem uma ajuda para adormecer, mas uma forma de conhecimento e enriquecimento pessoal.18

Passar o tempo? – disse a Rainha – Os livros não são para passar o tempo.19

Existe uma relação antitética entre a boa e a má literatura. Há que entender a Literatura como uma questão séria, para além do banal e do superficial; como formação humana, contributiva para o enriquecimento cultural tão importante, ou mais até, que qualquer outra matéria de estudo, visto que há uma desvalorização do conhecimento que a Literatura proporciona.20

O bom livro traz ensinamentos para a vida, motivação para ler outro, nova visão do mundo, um despertar para a escrita, uma descoberta de si mesmo.

Toda a leitura deve deixar uma marca no leitor e os ensinamentos apreendidos podem ser postos em prática no seu quotidiano. Sendo assim, a leitura não deve ser levada com ânimo leve ou de forma ligeira, nem ser considerada um passatempo. Se a leitura tem a função de ensinar e construir cidadãos enquanto pessoas cultas, não pode ser comparada a um mero hobby. Porém, nem todos os livros são Literatura. A verdadeira Literatura são as obras clássicas e intemporais e não os comuns, vulgares e superficiais best-sellers.

Marta Abrantes e Rosa Galrão

(15) Hermann Hesse. Uma Biblioteca da Literatura Universal. Lisboa, Cavalo de Ferro, 2010, p.10. (16) Cf. Idem, ibidem.(17) Idem, ibidem.(18) Cf. Colette, O amor de ler.(19) Alan Bennett. A Leitora Real. Lisboa, ASA, 2009, p. 32.(20) Cf. Alain de Botton. Como Proust pode mudar a sua vida. Lisboa, Dom Quixote, 2009,.

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literatura e condição humana

Deambulações sobre a liberdade e um poema de Fernando Pessoa

O poema “Liberdade” de Fernando Pessoa é um poema que parece ser claro, divertido e até mesmo algo infantil à primeira leitura. No entanto, é um poema extremamente irónico que abrange o tema da liberdade humana.

Nos primeiros seis versos:

Ai que prazer Não cumprir um dever, Ter um livro para ler E não o fazer! Ler é maçada, Estudar é nada.

Fernando Pessoa é politicamente incorreto. Não deixa de enunciar uma verdade. Que é o facto de nem sempre querermos fazer aquilo que devemos e quando não o praticamos sentimos uma enorme liberdade. Até porque frequentemente não temos vontade de fazer algo exatamente porque essa ação é o nosso dever. Sentimos uma rebeldia algo infantil perante o dever imposto. Por exemplo, se nos mandam fazer um desenho, escrever um texto, ler um livro para um trabalho, muitas vezes temos a sensação que não o que-remos fazer porque o pedido/a ordem nos retira a liberdade de escolha, e a iniciativa, a ideia, não provêm de nós. A ação é-nos, de certa forma, imposta. Apesar de ainda podermos escolher entre o cumprir e o não cumprir sabe-mos que a ação já nos foi determinada e, portanto, trará consequências caso não lhe demos cumprimento. É por isso que desobedecer poderá trazer um grande efeito de prazer em nós. Qual? O prazer de não cumprir um dever e de fazer o que realmente queremos. Aqui entende-se a ironia do poema.

Não será esta liberdade que sentimos uma ilusão pura e infantil, ima-tura? Não quererá Fernando Pessoa demonstrar que o dever é essencial à liberdade? Se o homem quer ser livre terá de cumprir deveres, designada-mente, morais e éticos. Quando diz:

Ler é maçada,Estudar é nada.

É uma grande ironia, outra vez, porque o conhecimento nos liberta. Quanto mais conhecemos acerca dum assunto mais possibilidade de sermos livres temos, pois obtemos mais capacidade de escolha. Estudar e ler são dois modos com os quais nos debruçamos para obter grande parte do nosso conhecimento.

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Sol doiraSem literaturaO rio corre, bem ou mal, Sem edição original,E a brisa, essa,De tão naturalmente matinal,Como o tempo não tem pressa…

É um exemplo do afirmado atrás. Enuncia vários elementos que nos parecem ter liberdade (o rio, a brisa e o sol) mas a verdade é que não a têm. São assim porque é a sua natureza. Porém o homem tem liberdade e por isso pode criar, como o fez com a Literatura, por o poder existem edições originais e por isso tem pressa de agir. O que se observa em Fernando Pessoa é uma sorridente comparação entre a liberdade do homem e a não liberdade do que nos parece ser livre. O exemplo da brisa que nos parece livre ao percorrer tudo, na verdade, não tem outra opção, é dominada por altas e baixas pres-sões que a condicionam e que, portanto, não são decisão sua.

E a brisa, essa,De tão naturalmente matinal,Como o tempo não tem pressa…

Este excerto pode ser interpretado como o tempo para o homem. Este tem o seu tempo limitado. E por isso corre, tem pressa. Mas o tempo e o rio não têm pressa, não têm de correr.

Livros são papéis pintados com tinta.

O autor reduz os livros à simplicidade. Reduze-os àquilo que são de uma forma física e mecânica, isto é, material. Porém, simbolizam também a liberdade que temos. Pois as letras no papel são escritas por nós, o homem insere a tinta no papel e cria daí a história. Daí que sejam também algo mais: são um reflexo da nossa liberdade.

E volta o poeta, a brincar com esta aparente dupla natureza do que os livros são materialmente e do que são imaterialmente, pois na realidade os livros transmitem-nos e expressam conhecimentos. Para além disso esse conhecimento acrescenta-nos liberdade.

Estudar é uma coisa que está indistinta.A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Nos dois versos seguintes encontramos o mesmo processo com “estu-dar”. Ironiza as faculdades que estudar ocupa. E menoriza-as à inexistência, a nada, a coisa nenhuma.

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Quanto é melhor, quanto há bruma, Esperar por D. Sebastião,Quer venha ou não.

Neste terceto o poeta aponta a falta de liberdade que as pessoas não desejam ter, a liberdade por que não anseiam. Tem uma posição crítica. D. Sebastião funciona como a salvação do povo e da pátria, esperá-lo é não ter de decidir.

Mais uma vez, ironiza. As pessoas não desejam ter liberdade. Porque não a querem. Dão gratuitamente à crença a sua inerente liberdade, que de alguma forma, reside na decisão, na escolha, na possibilidade de pensar por si próprios.

A bruma representa o manto de medo que as pessoas cobrem o co-nhecimento e,

portanto, a liberdade.

Grande é a poesia, a bondade e as danças…Mas o melhor do mundo são as crianças,

O primeiro verso incide sobre as coisas grandes que a Humanidade tem e criou e onde encontrou a sua liberdade.

Mas já no segundo verso, a criança é apenas um elemento simples para dar ao poema aquilo que ele demonstra desde o início: uma simplicida-de que parece quase infantil, escrito com uma leveza imatura que simboliza a inocência da criança a qual sendo espontânea e livre e aprende através da experiência.

Flores, música, o luar, e o sol, que pecaSó quando, em vez de criar, seca.

Nestes dois versos dá-se uma personificação do sol, diz que ele peca, mas quem pode pecar são as pessoas, o sol segue apenas as leis da física e quando seca não tem responsabilidade. Por isso, não integra a culpa ou o mérito.

As flores, a música e o luar são todos elementos que, tal como o sol, parecem ser livres. E a música é-o de certa forma, tendo em conta que é uma criação. Mas o luar e as flores são apenas escravos das leis biológicas e físicas.

Mais que istoÉ Jesus Cristo,Que não sabia nada de finanças,Nem consta que tivesse biblioteca.

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Nesta estrofe, Fernando Pessoa, critica a realidade, demonstrando que Cristo, Salvador e Perfeito, conseguiu obter toda a sua sabedoria de uma forma empírica, sem livros. Isto é, nenhum grande e poderoso é mais que Jesus Cristo, e ele tornou-se grande e poderoso sem livros ou finanças. E por isso, livre. Enquanto que hoje para sermos livres necessitamos de conhecer o mundo, por isso existem bibliotecas e leis sociais como as finanças.

As temáticas deste poema são: a liberdade, o homem, a espontaneida-de da liberdade em comparação com o estancamento face ao já descoberto. A forma de escrita do poema é leve, infantil e transmite a inocência de uma criança. Todavia quando analisamos o seu conteúdo percebemos que Fernan-do Pessoa diz o que não diz. O poema torna-se algo filosófico, pois compara aquilo que não tem liberdade, contudo parece tê-la quando comparado ao homem, que na verdade tem mesmo. Trata-o como um ser predeterminado… No entanto só à primeira leitura, dado que depois apercebemo-nos da sua ironia quase constante em todo o poema.

Notamos também uma crítica severa à crença de um salvador, que no fundo não é mais que o poeta a dizer-nos que não devemos ficar sentados à espera que o mundo e as coisas que queremos venham até nós. Devemos aceitar o que os outros fizeram e utilizar a nossa liberdade para criar mais, pois ainda contemos em nós uma espontaneidade infantil que nos pode tor-nar criadores e não criaturas que se deixam levar pelos feitos dos outros sem nos questionar.

O sentido que o poema propõe é o de que podemos continuar a ser espontâneos, utilizando assim a nossa liberdade, sem nos vergarmos ao já feito por outros homens.

Ai que prazernão cumprir um dever.Ter um livro para lere não o fazer!Ler é maçada,estudar é nada.O sol doira sem literatura.O rio corre bem ou mal,sem edição original.E a brisa, essa, de tão naturalmente matinalcomo tem tempo, não tem pressa...Livros são papéis pintados com tinta.Estudar é uma coisa em que está indistintaA distinção entre nada e coisa nenhuma.Quanto melhor é quando há bruma.Esperar por D. Sebastião,Quer venha ou não!Grande é a poesia, a bondade e as danças...

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Mas o melhor do mundo são as crianças,Flores, música, o luar, e o sol que pecaSó quando, em vez de criar, seca.E mais do que istoÉ Jesus Cristo,Que não sabia nada de finanças,Nem consta que tivesse biblioteca...

Fernando Pessoa

Eva Ribeiro

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ética e literatura

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3. Ética e Literatura

O que é um Homem…

No mundo em que vivemos é cada vez mais clara a necessidade de despertar no homem o ser humano.

Com o passar dos anos, a humanidade vai-se esquecendo dos males que lhe foram provocados pela ambição, pelo desrespeito e pelo abuso da liberdade. Às vezes penso que o problema de estarmos constantemente a regredir, deve-se ao facto de aqueles que realmente vivenciaram a maior desumanidade, e que sobreviveram a esse mal, estarem na idade de partir para a eternidade. Desse modo levam consigo as memórias que jamais poderão ser transcritas para um papel. Mesmo assim, nos nossos dias facilmente podemos encontrar livros, documentos que relatam os acontecimentos mais cruéis, rudes e impensáveis. Nunca relatarão os verdadeiros sentimentos da população enquanto o mal alastrava, mas tornam-nos conhecedores da desumanidade dos séculos passados, fazendo-nos desejar que tal nunca mais aconteça.

Os 70 anos após a libertação do lugar mais terrível do mundo, do maior campo de concentração nazi, foram relembrados este ano, a 27 de janeiro. Vários sobreviventes encontraram em si a força para voltar ao lugar que lhes provoca as mais negras memórias para homenagear o milhão de prisioneiros que foram assassinados. Já com 90 anos, ainda se recordam, como se fosse ontem, desses dias negros que marcaram a sua vida, a sua família, o mundo. Eles são a voz de aviso contra a capacidade humana de assassinar outros homens de uma forma tão brutal, cruel e impensável, como o fizeram os nazis.

Vários testemunhos e sobreviventes do Holocausto já faleceram, mas deixaram na Literatura mundial essas memórias negras daqueles dias cruéis em Auschwitz. Primo Levi é exemplo disso. Depois de um ano no maior lager nazi, Levi regressou para a sua terra natal, Itália, e dedicou-se à escrita, na qual descrevia os seus dias no campo de concentração. Uma das obras mais relevantes é Se isto é um Homem. A sua questão central é uma análise profunda da condição humana.

Ao longo da leitura observei duas noções de Homem que Levi descreve:

Se é um homem o ser a quem são retirados o nome, a roupa, os sapatos, até os cabelos, a liberdade de expressão:

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ética e literatura

Mais para baixo do que isto, não se pode ir: não há nem se pode imaginar condição humana mais miserável. Já nada nos pertence: tiraram-nos a roupa, os sapatos, até os cabelos, se falarmos, não nos escutarão e, se nos escutassem, não nos perceberiam. Tirar-nos-ão também o nome: se quisermos conservá-lo, teremos de encontrar dentro de nós a força para o fazer, fazer com que, por trás do nome, algo de nós, de nós tal como éramos antes, ainda sobreviva. (SH:26)21

Aqui a questão é a de saber se devemos considerar alguém humano quando a sua condição de homem é insignificante, quando “não há nem se pode imaginar condição humana mais miserável”; quando não se tem direito sequer a um corpo, às suas características, aos objetos que desde sempre o identificaram:

Imagine-se agora um homem ao qual, juntamente com as pessoas amadas, tiram a casa, os hábitos, a roupa, enfim, tudo, literalmente tudo quanto possui: será um homem vazio, reduzido ao sofrimento e à carência, esquecido da dignidade e bom senso, pois acontece facilmente, a quem tudo perdeu, perder-se a si próprio; reduzido a tal ponto, que outros poderão sem problemas de consciência decidir da sua vida ou da sua morte para além de qualquer sentido de afinidade humana. Compreender-se-á então o duplo significado da expressão “campo de extermínio”, e será claro o que entendemos exprimir com esta frase: jazer no fundo. (ibidem).

Como referi anteriormente, até o nome era retirado aos prisioneiros, e cada um deles tinha uma “matrícula” no braço esquerdo que os identificava: “…aprendi que sou um Haftling. O meu nome é 174 517; fomos batizados, guardaremos até à morte a marca tatuada…” (ibidem)

Em contrapartida temos outra noção de Homem:

Se é um homem aquele que retira a humanidade a outrem:

…da decisão alheia de nos aniquilarem primeiro enquanto homens para depois nos matarem lentamente” (idem: 53).

Esta segunda noção de homem baseia-se essencialmente na frieza com que agiam as tropas da SS: estavam cegos obedecendo inconscientemente à ideologia nazi. Não demonstravam sentimentos, compaixão, piedade…talvez

(21) Nas citações, a obra de Primo Levi, Se isto é um homem…, é identificada pela sigla: SH.

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se o fizessem, estariam eles também no lugar daqueles a quem retiram a vida:

…ecoaram ordens estrangeiras e os bárbaros latidos dos alemães quando dão ordens, que parecem libertar uma raiva velha de muitos séculos (…) Uma dezena de SS mantinha-se à distância, com ar indiferente(…) A determinada altura, meteram-se entre nós e, em voz baixa, os rostos de pedra, começaram a interrogar-nos rapidamente… (idem: 17).

Perante tais ações questiono-me se teriam “coração de pedra”. Melhor dizendo, teriam coração? Suponho que também estes homens tinham família. Então, porquê destruir a família de alguém? Para quê desmoronar a vida de alguém? É que no lugar dos prisioneiros podiam estar os alemães, só por serem alemães. Tal e qual como fez Hitler que acabou com a vida de milhões de seres humanos só por serem judeus. Ao mesmo tempo que escrevo, a minha mente fica estupefacta, simplesmente não consigo entender a necessidade desses abusos. Talvez isso seja o sinal de que sou humana, e de que em mim está desperto o ser humano.

Não consigo responder à questão subjacente a este artigo, mas tenho os meus argumentos: não considero os militares da SS humanos, porque não têm sentimentos, agridem sem raiva, como se fosse algo natural, sempre com rostos de pedra, insensíveis, desumanos, cruéis, rudes. Parece-me que são os nossos sentimentos e a racionalidade que devem dar origem a todos os valores humanos, e só assim nos caracterizam enquanto seres humanos. E os SS não os tinham, chegando a fazer tais barbaridades a outros seres humanos. Mas também dificilmente consigo atribuir o nome de humanos aos prisioneiros, porque a dada altura desistem de viver, e arrastam-se pelas ruas e corredores do lager sem esperança, seguidos pela morte até que esta os engole por completo.

É-lhes retirado tudo, mas ninguém deve poder retirar-lhes a vontade de viver, pois estamos vivos até à altura em que a nossa alma nega o que de mais humano há em nós: a esperança de viver. Isso é o que nos distingue dos animais, que existem, ao invés de nós, humanos, que vivemos.

Tatiana Melnyk

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ética e literatura

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ética e política

4. Ética e Política

A Guerra e a Liberdadeenquanto questões sociopolíticas

Inserido no âmbito da revista Humanitas, este texto centra-se na temática da guerra e da liberdade enquanto questões sociopolíticas.

A guerra, segundo o dicionário de Língua portuguesa, define-se como: luta à mão armada entre nações ou partidos; campanha; oposição; concorrência22.

Na teoria esta definição pode ser considerada como correta, mas será que o mesmo se aplica na prática? E será que, quando se aborda a temática da guerra, existe uma definição comum? Não. A guerra não tem o mesmo significado para aqueles que ouviram relatos sobre ela e para aqueles que a vivem na primeira pessoa. A guerra é o resultado de desentendimentos entre duas ou mais partes, conduzidas muitas vezes pela ganância, materialismo, ciúme, egoísmo e/ou pela ânsia do domínio e controlo sobre a outra parte (hegemonia).

Enquanto problemática sociopolítica, a guerra é tão ampla que gera mais do que aquilo que possamos expor ou exprimir por palavras. Gera questões, dúvidas, incertezas, emoções e, grande parte das vezes, traumas.

Apesar de ser uma temática tão abrangente, podemos abordá-la em quatro subtemas: as diferentes reações face à guerra e à morte; as marcas que ficam naqueles que passam pela guerra; a guerra associada a algo tão forte e marcante como um cheiro ou um som; e o que fica depois de uma guerra.

As reações face a uma guerra diferem de pessoa para pessoa, sendo influenciadas por diversos fatores como a educação ou a sua história de vida. Um indivíduo que foi, desde jovem, educado para considerar a morte de alguém como algo natural, tem obviamente uma reação diferente de um sujeito que nunca tenha sido educado para tal. A história de vida torna-se um elemento a considerar quando determina o modo de reagir e de lidar com a morte. Um indivíduo que já se “familiarizou” com a morte, enquanto acontecimento constante na sua vida, está claramente mais treinado para encarar a morte (ou o ato de matar) como banalidade, ao contrário de um sujeito que nunca tenha estado envolvido num clima como o do anterior.

As marcas que ficam naqueles que enfrentam cenários de guerra

(22) J. Almeida Costa; A. Sampaio Melo (orgs.). Dicionário da Língua Portuguesa. 6ª edição, Porto Editora.

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ética e política

tornam-se igualmente determinantes. Muitas das vezes as guerras obrigam a que um indivíduo altere a sua personalidade de maneira a enfrentar a vida. Os comportamentos, as rotinas, os nomes e mesmo a memória alteram-se. Os traumas são uma das marcas mais frequentes, quando se trata de consequências da guerra nas pessoas que a vivem. Estes traumas ficam para a vida, acabando por influenciar o futuro daqueles que têm de viver com as memórias de colegas e amigos a morrerem em prol da ganância de outros. As marcas não ficam apenas no domínio psicológico de uma pessoa. O físico é muitas vezes alterado. Queimaduras graves ou amputação de membros são apenas alguns exemplos do que resta de uma guerra num corpo de um soldado desgastado. Estes elementos marcantes influenciam e/ou, por vezes, determinam o futuro de soldados vindos da guerra, que agora se encontram feridos (física e psicologicamente).

Estes traumas psicológicos ficam muitas vezes associados a sons de guerra que marcam para sempre uma pessoa. No entanto, a guerra é também associada a outros sentidos humanos, para além da audição. A mais frequente é a visão, mas o olfato também não pode ser esquecido. Por vezes, a guerra é associada a um cheiro particular que, quando detetado fora do campo de batalha, remete para o ambiente de guerra vivido, acabando por reavivar a tragédia testemunhada.

Por fim, é ainda possível determinar as consequências negativas que advêm de uma guerra para um país e para a respetiva população. As consequências de uma guerra são muitas vezes incalculáveis, seja pelas enormes quantias de dinheiro investido numa guerra, seja pelas mudanças drásticas que ficam marcadas para sempre num país, agora perdido e sem verdadeira identidade. O mesmo acontece com a personalidade e as memórias de uma população que outrora vivia num país livre de guerras. Antes da guerra, as memórias e as personalidades das pessoas que habitam um determinado país são preciosas, mas igualmente frágeis, ao ponto de desaparecerem ou se alterarem com o passar de uma guerra.

Durante e após uma guerra não se perde apenas dinheiro ou posses. Perdem-se vidas, respeito e confiança, elementos que não podemos reaver depois de perdidos. Após a guerra, uma das partes conquista os territórios ou aquilo pelo qual estava a lutar, mas não recupera a confiança de um povo, principalmente devido às decisões tomadas durante os conflitos movidas pela ganância e pela vontade de ganhar, não olhando a meios para atingir os fins.

O livro Jornada de África23 retrata claramente este aspeto, sendo assim uma boa referência literária explicativa, cuja leitura é recomendada.

Assim, a guerra é injusta para aqueles que não a pediram, mas que, devido à ganância de alguém, sofrem as suas consequências.

(23) Manuel Alegre. Jornada de África. 3ªedição, Dom Quixote, Lisboa, 2007.

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ética e política

A guerra é, então, um conceito que está relacionado com a justiça e a igualdade. A igualdade é um aspeto integrante na área social e política, assim como a justiça.

Para se viver plenamente numa comunidade justa, é necessário termos consciência ética. Por outras palavras, a liberdade não confere a um cidadão a possibilidade de fazer o que quiser. A liberdade tem limites. A partir do momento em que invadimos e desrespeitamos a privacidade, os direitos e a liberdade de outros, deixamos de ter o direito à liberdade, até porque a total liberdade é uma ideia fictícia.

A liberdade pode também ser de escolha. Pode transportar em si uma possibilidade e necessidade de escolha entre o bem e o mal ou, por vezes, entre o que é benéfico e o que não é, conferindo em si um caráter moralizador. Portanto, a liberdade de escolha é, também, direcionada de acordo com os valores éticos e cívicos de uma pessoa.

Esta é, por isso, uma condição necessária para uma vida digna e plena: a liberdade humana conjugada com a dignidade e os valores.

Assim, podemos perceber as diferentes perspetivas ligadas à guerra e à liberdade, enquanto problemáticas sociopolíticas.

Beatriz Mourato Augusto

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ética e política

Sobre o justo

Devemos partir da premissa de que é totalmente proibido praticar a injustiça, ou devemos considerar que, em algumas circunstâncias,

tal é permitido?Platão

Num universo complexamente (des)organizado, minuciosamente arquivado em pequenas gavetas conceptuais, o modo como apreendemos a importância dos valores pode parecer-nos erradamente linear.

Embora Platão tenha alcançado resposta ao que para si parecia ser este problema axiológico, devemos abordar a matéria dos valores por várias frentes teóricas.

Assim, colocando a questão de maneira hegeliana, pensaríamos primeiramente em conceitos base diametralmente opostos, esperando que estes se digladiem até que um prevaleça sobre o outro, formando agora um segundo-conceito que irá opor-se a um segundo-contra-conceito e, da mesma forma, através da luta pelo Justo (valor a ser considerado), um sobreviver para se sublimar novamente numa eterna luta de opostos, tentando assim achar um único supra-conceito ou supra-valor, mais Justo que todos os outros e impossível de negar, contradizer e simultaneamente derrubar.

Deste modo, Justiça e Injustiça ou, mais propriamente, ações justas e injustas opor-se-ão eternamente, sendo que nunca teremos a certeza se a dada altura uma proposição demarcadamente injusta poderá passar a um novo estádio de estudo. Se este for o caso, e entendamos aqui que a complexidade do sistema social o permite, a Injustiça poderá ser permitida.

O objetivo será sempre alcançar o fim mais justo e ímpio, mas uma disposição final nunca poderá insistir sobre uma ideia unilateral. A relatividade dos valores causa-nos então um impasse, na medida em que, ao avaliarmos, por exemplo, um ritual canibal, prática ancestral e secular de alguns povos indígenas, sob “o microscópio ocidental”, o ato será vil, cruel e desrespeitador do mais nuclear direito humano: a vida. Por outro lado, visto através do contexto sociocultural desta ou doutra tribo canibal, o caráter injusto desta prática torna-se permitido, diria até legal.

Numa das suas mais icónicas películas cinematográficas, Andrei Tarkovsky, cineasta russo da década de 70, demonstra como um valor subjacente à ideia de Bem Supremo pode ser recusado pela incapacidade de não sabermos as repercussões de tal desejo concedido.

Stalker, filme em análise, conta-nos a história de um homem capaz de conduzir um grupo de pessoas a um lugar, a Zona, que, depois de um fenómeno (extra)terrestre misterioso, é capaz de conceder qualquer desejo

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ética e política

aos que se pronunciarem no estádio final da sua procura, o Quarto. Depois de atravessarem todos os obstáculos invisíveis (pois nenhum obstáculo material/físico nos é mostrado) deste lugar, as duas personagens que tentam alcançar a concretização do seu desejo simplesmente desistem. Porquê? Porque o poder conferido à Zona não deve ser extraviado, nem sequer utilizado por qualquer intenção humana.

Uma destas personagens tenta inclusive destruir este lugar com um estranho objeto explosivo capaz de eliminar qualquer lugar da Terra. Estaremos, portanto, perante a dúvida do fazer justamente sem que nos demos conta de implicarmos um ato muito mais injusto para o resto da humanidade? E se estes seres desejassem a paz mundial? Quem lhes atribui a missão de o decidirem por milhões e milhões de outras pessoas? Ou se, por acaso, um destes pedisse simplesmente a Justiça eterna para os seus, não seria um ato de maior injustiça fadar todos os outros ao acaso da vida?

Neste sentido, poderemos tentar compreender que um ato justo poderá acarretar simultaneamente uma repercussão injusta ou que, no limiar desta extrapolação, um ato injusto será validado como a destruição do desejo humano, mesmo que este tente unicamente preservar a integridade do Bem considerável.

Outro exemplo, pontífice da literatura mundial, poderá ser a magnum opus do iluminista Voltaire, Cândido. Nesta brilhante trama, acompanhamos um jovem rapaz, Cândido, nomeação derivada da sua candura e pureza características, que tenta desesperadamente salvar a sua amada, seja em que canto do mundo esta se encontre.

O problema aqui colocado é que Cândido, embora personifique em si a Justiça in extremis, muitas vezes é confrontado com situações de explosão irascível para alcançar o seu objetivo: matar altos oficiais militares, ferir alguns inocentes que, pela irónica volutabilidade do destino, se encontram no seu caminho.

Deverá Cândido pôr fim à sua demanda pela justiça de salvar a sua amada, pensando estar a ferir outros? Talvez. Mas… e se estes que a abduziram sentirem nos seus corações o desejo de pôr fim à sua vida? Caímos novamente num impasse axiológico, de ponderação entre o justo e o injusto, do que deve ser praticado ou não praticado.

Há que notar que não me proponho a impor a inoperância da decisão ou a não-escolha como alternativa para a dúvida entre valores praticáveis, mas sim a realização de todas as alternativas possíveis, tendo que, na hora de praticar um valor, enveredar pelo que menos causar sofrimento.

A hipótese kantiana de praticar o Justo como fim em si mesmo parece-me, em casos como os anteriormente descritos, passível de se tornar egoísta e contraditoriamente injusta, embora a finalidade de criarmos uma máxima

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ética e política

universal, isto é, praticável por todos, esteja peculiarmente bem estruturada.

Porquê praticar então o injusto como fim a uma solução mais justa? Para alcançar um fim, através de uma prévia examinação dos meios a utilizar, mais homogéneo, entendível e não reprovável aos olhos da ordem social.

Por tudo isto, considero aplicável o valor de injustiça a uma ação que, pelas suas complexas características, assim o impelem, visando a Justiça como juízo final.

Ainda assim, coloco em estudo um último exemplo problemático: em Esse obscuro objeto de desejo, filme realizado pelo surrealista Luis Buñuel, acompanhamos um homem no conforto da sua idade conduzido pelo enorme desejo de ter relações sexuais com uma belíssima espanhola pela qual se apaixona e que, dada a ousadia da mesma, o faz perceber que tal é permitido.

A jovem espanhola alimenta durante toda a película o desejo deste homem com sucessivos jogos psicológicos que o levam à exasperação de a perseguir esta e outra vez, sempre que ela decide fugir e acabar o seu relacionamento, para que depois suplique o seu regresso e o seu enamoramento até ao limite de consumarem finalmente o ato. Quando nos aproximamos do fim, depois de a jovem fazer com que este rico burguês lhe compre uma casa e o obrigue a assistir ao seu envolvimento com outro homem, obtemos a ligeira sensação de querer causar algum mal a este ser cruel, que se regozija ao causar sofrimento à personagem principal. Inclusive, no momento alto de todo o filme, consideramos justo o ato de violência que este burguês tem para com a jovem espanhola, considerando muitas vezes que esta mereceria muito mais sofrimento.

Talvez tenha sido este o verdadeiro esquema arquitetado por Buñuel: colocar o espetador em constante colisão com os seus valores para, no final, quando o casal se encontra de novo e decide recomeçar a sua relação, encurralar o ser humano, forçando-o a decidir. O desfecho deste filme é precisamente o alívio do espetador: o casal desaparece numa enorme explosão num centro comercial.

Entre a justificação de um ou outro personagem, Buñuel mata ambos; os que assistem ao filme podem retomar a calma, mas, no final de contas, a Injustiça encerrou este episódio com a grave sensação de que tudo terminou bem, de que a Justiça prevaleceu.

Daniel Rio

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ética e política

Arte, Liberdade e Direito – ou, ainda, sobre Charlie Hebdo

Toute Société dans laquelle la garantie des Droits

n’est pas assurée,

ni la séparation des Pouvoirs déterminée,n’a point de Constitution 24

(Art. 16.º, Declaração dos Direitosdo Homem e do Cidadão)

Introdução

1789, Versalhes. É aprovada, em Assembleia Nacional Constituinte, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. O primeiro documento da História a proclamar, de forma solene e codificada, os direitos fundamentais do Homem. Passado 226 anos, em Paris, pleno coração da cultura europeia, dá-se um ataque monstruoso aos princípios e valores da Democracia: atenta-se contra o valor irreverente da arte como veículo de crítica social, atenta-se contra a liberdade de pensamento e de expressão, e atenta-se, ainda, contra o próprio Estado de Direito, garante dos direitos fundamentais de todos os cidadãos.

O caráter trágico dos acontecimentos não teve, de forma massiva, uma receção comum de apoio, condenação e choque, por parte da comunidade internacional. Ao invés, estes acontecimentos suscitaram um sério debate, que confrontou a validade da liberdade de expressão com o respeito incondicional pelas crenças religiosas alheias.

Deveremos, então, privilegiar o possível valor superior da crença religiosa em virtude do valor satírico, que se constitui, apenas, possível enquanto uma liberdade da própria liberdade de expressão? Ou deveremos erigir-nos em nome da liberdade plena, invocando a laicidade do Estado em justificação da suposta heresia? E, caso optarmos pela primeira opção, devemos legitimar o assassinato destes jornalistas? Ou, pelo menos, aligeirá-lo, como se de vidas menores se tratassem?

I. A ilegitimidade da justiça popular

Todo este debate revela-se, inutilmente, infrutífero quando nos questionamos: há alguma razão que justifique o homicídio, para além da

(24) Qualquer sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos, nem estabelecida a separação dos pode-res, não tem Constituição.

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ética e política

legítima defesa? Imaginemos que, de facto, a maioria de nós considera as publicações de Charlie Hebdo imorais e suscetíveis de punição, teremos, então, a legitimidade para os matar?

É necessário declarar a inaceitabilidade da manifestação da justiça privada ou popular, que culmine em homicídio, para além da, já referida, legítima defesa. Ainda que as publicações fossem condenadas por todos os membros de uma dada comunidade, estes, jamais, teriam o direito de pôr fim à vida dos seus autores, qualquer que fosse o teor do artigo em causa. Do mesmo modo, nenhuma comunidade ou nenhum dos seus membros possui o direito de atentar contra a vida de alguém, mesmo que essa pessoa seja um violador, um pedófilo ou um assassino, a não ser em situação de perigo iminente de vida.

Deve-se desmistificar a ideia de justiça popular: a comunidade deve possuir um sentido moral de justiça, mas quem a elabora e a aplica devem ser os órgãos independentemente designados para tal. Embora o costume e, portanto, os diversos sentidos morais da sociedade se revelem fonte de Direito, o “Estado ao serviço da lei”, evidencia a primazia da lei, a favor da sua aplicação efetiva a todo o aparelho coativo do Estado e da submissão das demais fontes à sua hegemonia.

Logo, podemos inferir que, em caso algum, devemos tentar justificar o homicídio dos jornalistas de Charlie Hebdo, a favor dos assassinos, pois, qualquer ato contra a vida de um ser humano, que não seja validado pela legítima defesa, seja esse ato contra quem for, não é passível de legitimidade jurídica25. E, embora não seja importante para o tópico em questão, também nos referimos aos atos praticados pelo próprio Estado: nenhum poder estadual deve ter o direito de aplicar a morte como sanção, seja em que situação for.

É perigoso comparar a vida dos jornalistas de Charlie Hebdo com a vida de um criminoso, tal como, por exemplo, com a de um violador, porém, devemos salientar a ideia de que, juridicamente e não moralmente, a vida dos jornalistas de Charlie Hebdo valem tanto quanto a de um violador pérfido: o Estado de Direito impõe-se, através do seu caráter sancionatório, a todos os cidadãos, mas a aplicação de sanções a atos ilegais não deve culminar numa legitimação a favor do atentado à vida, que se deve manter um direito inalienável, tanto no caso de um inocente, como no caso de um criminoso: seja qual tenha sido o seu crime.

Assim, conclui-se que, mesmo que Charlie Hebdo fosse tão moralmente condenado pela comunidade muçulmana, como a maioria dos portugueses, moralmente, condena um violador, este não seria um motivo suficiente para a legitimidade da morte de qualquer dos dois, pois, em ambos os casos e,

(25) Embora haja casos, que não abordaremos, onde possa haver justificação moral mas ilegitimidade jurídica: é o caso de certos dilemas éticos, como, por exemplo, o caso da eutanásia, cuja ilegalidade não supõe, segundo alguns autores, a sua imoralidade.

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juridicamente, não se pode legitimar a morte de qualquer vida humana, mesmo que uma dada comunidade considere esse comportamento o mais imoral possível. A supremacia da lei implica, assim, a obediência ao Ordenamento Jurídico-Positivo vigente, onde cada indivíduo opta pela moral que quiser, mas está sujeito ao Direito que lhe for aplicável.26

II. Liberdade consciente

Embora haja quem conclua que, de facto, o homicídio não é justificável em qualquer situação e que a vida é um bem inalienável, há ainda quem afirme, referindo-se a Charlie Hebdo, que “quem semeia ventos, colhe tempestades”. A esta expressão popular – que tem sido utilizada para afirmar uma certa relação de causa-efeito, a que corresponde responsabilizar Charlie Hebdo –, está associada um conceito de liberdade consciente, segundo o qual, a nossa liberdade, não é uma liberdade absoluta, ao invés, acarreta a obrigação de dever ser uma liberdade devidamente consciente, cujos atos potenciam consequências - favoráveis ou não -, a que se deve atribuir responsabilidades.

Esta liberdade consciente define-se pelo seguinte raciocínio: eu sou livre mas, apenas, sou livre se, simultaneamente, preservar a liberdade de outrem, sendo que a autoridade existe de modo a impedir que uns exerçam coerção sobre os outros27. Assim, quando a autoridade me possibilita uma liberdade meramente circunscrita que não oscile com as demais, está a garantir a minha própria liberdade.

Há, portanto, limites à liberdade de expressão? Sim, há. É, aliás, o próprio Estado de Direito que sente a necessidade de criar mecanismos de proteção jurídica que impeçam a colisão de liberdades fundamentais, salvaguardando-as. Caso não houvesse limites à liberdade de expressão, a lei não teria necessidade de prever a punição de certos crimes, tais como os crimes de injúria e difamação.

Poderemos, assim, considerar os cartoons de Charlie Hebdo como um extravasamento dos limites da liberdade de expressão, já enunciados? É a liberdade de expressão oposta à liberdade de religião?

III. O valor de humanização da sátira enquanto arte

Haver proibições à liberdade de expressão, de modo a garantir o respeito nas diferentes esferas da vida civil, não implica que se aceite a

(26) Não desenvolveremos a ideia de conflito entre Direito Positivo e Direito Natural. Referimo-nos ao Direito Positivo conquanto o Direito que resulta da vontade coletiva de uma certa comunidade humana ou da vontade do legislador e o Direito Natural enquanto um Direito acima do Direito Positivo, fundamentado por Deus ou pela razão humana(27) A legitimidade da autoridade, enquanto preservadora da liberdade, insere-se num conceito de liberdade negativa, proposto por Isaiah Berlin, na sua obra “Liberty before Liberalism”

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censura, instrumento de repressão ideológica, típico de regimes totalitários. Mas no reverso, isso também não implica que o humor arbitrário assente no desrespeito de outrem, seja algo a ser cultivado nas gerações futuras. Certamente que nenhum de nós aceitaria, passivamente, se alguém se dirigisse a uma igreja, mesquita ou sinagoga e, lá, incomodasse todos os presentes com piadas sobre as suas crenças não os deixando praticar o seu culto livremente: não devemos permitir que as crenças religiosas – ou falta delas - de uns, impeçam a prática religiosa de outros. Esta seria uma situação que, provavelmente, teria, inclusivamente, enquadramento legal e sanções apropriadas. Porém, numa realidade mais distante, também não poderíamos, evidentemente, aceitar que numa qualquer faculdade israelita, alunos muçulmanos fossem humilhados e gozados, publicamente, apenas por acreditarem em Alá.

Devemos ser, pois, a favor da empatia, do respeito e do equilíbrio enquanto valores constitutivos da sociedade presente e construtivos das sociedades futuras. Contudo, não devemos fechar os olhos perante quem ouse exercer ataques monstruosos contra a humanidade, seja a humanidade da mulher saudita que não pode conduzir, apenas por ser mulher, ou seja a humanidade do homem com longa barba e feições árabes que, com base em falsas alegações, é torturado pela CIA, apenas para mostrar mais eficácia processual no combate ao terrorismo. E isto equivale a não podermos condenar determinados meios culturais que utilizem a ironia como meio de consciencialização social, mesmo que, para isso, desrespeitem o caráter sagrado de certas culturas, de forma a obterem mais impacto.

Quando falamos de Charlie Hebdo, não estamos a falar de indivíduos que, apenas, por sinal de irreverência, imaturidade ou demonstração de desrespeito, desenham uns bonecos para incomodar uma dada religião ou sequer uma dada opção política. Numa edição de 2011, intitulada “Charia Hebdo”, que causou grande celeuma, vê-se uma representação de Maomé a dizer “100 chibatadas se você não morrer de rir”. Esta é uma problemática real e preocupante: sim, na Arábia Saudita, onde o Direito se rege pela Sharia, há pessoas que são chicoteadas, em público, apenas por terem ideais liberais. O tom jocoso e irreverente da sátira, enquanto tentativa consciente de humanização, deve possuir plena liberdade para poder erguer-se contra a injustiça, que surge, muitas vezes, associada às “manipulações dos mercadores de ídolos e dos fabricantes de opinião”28.

Se, eventualmente, não aceitássemos críticas à imagem de Deus estaríamos a pôr em causa a laicidade do Estado e, do mesmo modo, teríamos de proibir todos os cartoons que fossem ética, política ou sexualmente incorretos, deixando, portanto de existir cartoons. Mas há ainda quem

(28) Manifesto dos intelectuais franceses em prol da Filosofia, publicado no Le Monde em Julho de 1975.

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ética e política

diga: Deus sobrepõe-se a etnias ou opções políticas. Pois bem, aceitar esta conclusão seria admitir a submissão do próprio Direito a uma determinada moral religiosa, colocando-a hierarquicamente acima do próprio Direito, porém, o núcleo fundamental do Estado de Direito é, atualmente, não uma determinada moral religiosa, mas uma moral humanista laica.

IV. Conclusões

Admito: eu gostaria de viver num mundo onde não fosse preciso recorrer ao humor como forma de alertar para determinadas problemáticas sociais e comportamentos imorais. No entanto, a realidade revela-se distante desse mundo utópico. Daí que, a necessidade da arte enquanto veículo de crítica moral não seja o de irreverência gratuita, mas sim, o de fazer jus ao adágio de Santeul - “Castigat ridendo mores” -, transformando o humor numa poderosa arma contra todos aqueles que se atrevem a tentar violentar a condição humana, que já de si se revela tão frágil.

Por outro lado, não sou nem nunca serei contra toda a solidariedade internacional em volta de Charlie Hebdo, porém, o choque de um atentado terrorista a uma cultura que nos é próxima, não nos deve paralisar de continuarmos a chocar-nos com outros atentados aos direitos humanos que, neste preciso momento, estarão a ocorrer numa qualquer parte do globo: não podemos, nem devemos, perder a capacidade de nos chocarmos com o sofrimento daqueles que não nos são próximos, mas que partilham da nossa humanidade. É necessário lutar e gritar a favor de todos os Charlies Hebdos que, infelizmente, ainda existem à volta do Mundo.

David Ruah

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literatura e condição humana

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a história faz o homem?

5. A História faz o Homem?

O papel ativo e constante do Homem na História

A verdade é que sem a presença e a consequente influência do Ho-mem em todas as problemáticas e em todos os acontecimentos marcantes não existiria a possibilidade de tecer uma linha da História, nem sequer essa linha ser recordada quer num pedaço de papel, quer numa estátua, quer em qualquer outra ferramenta que fomente a nossa aprendizagem ou avive a nossa memória.

O que mais me fascina nesta ciência que trata acontecimentos e fac-tos passados de importante relevância é a possibilidade de total articulação com o que acontece atualmente. Um bom aluno de História não é aquele que decora as datas dos acontecimentos e reproduz tudo tal qual como sucedeu no passado. É sim aquele que adquire conhecimento suficiente de maneira a projetar um determinado espírito crítico que o possa ajudar não só a enten-der a matéria do passado, mas também a perceber o presente de maneira a conseguir prevenir um futuro.

Como em tudo, é necessário aprender com os erros ou com as deci-sões menos felizes e mais prejudiciais para que, no futuro, não voltemos a cometer as mesmas falhas, ainda que a priori esse pareça o caminho mais fácil a seguir. Devemos ver os momentos felizes e gloriosos do passado como uma motivação para lutar pelo nosso futuro.

Consigo lembrar-me de duas obras de dois grandes escritores e poe-tas portugueses que ilustram bem esta ideia. Tanto n’Os Lusíadas, de Luís de Camões, como em Mensagem, de Fernando Pessoa, podemos observar a importância de trazer para a realidade decadente do país a glória dos feitos passados e, com essa glória, tentar trazer uma nova esperança de um novo e próspero futuro.

Em contraste, devemos olhar para os momentos menos felizes e que nos foram muito prejudiciais e observar os fatores que levaram a tal aconte-cimento e, consequentemente, aprender com isso, tentando prevenir que tal circunstância volte a acontecer no futuro.

Relembremos um dos piores momentos da História mundial, o Nazis-mo. Foi de longe o mais trágico genocídio ocorrido à escala mundial, duran-te a Segunda Guerra Mundial. Infelizmente, e como não podemos apagar nenhum período da nossa História, temos de saber lidar com esta tragédia passada. Nunca poderemos ter a noção do quanto sofreram aquelas pessoas enquanto eram torturadas e, consequentemente, mortas, mas o que pode-

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a história faz o homem?

mos aprender com essas lembranças é que jamais podemos deixar que algo idêntico aconteça nos dias de hoje. Precisamos de tomar uma atitude crítica e impedir que algo semelhante aconteça, visto que temos essa má experiência passada como uma “lição”, se assim o pudermos considerar.

O futuro somos nós, e se somos nós os Homens que construímos a nossa própria História, também somos nós que temos de estar aptos para mudar o mundo e as mentalidades. Como diz o ditado, “Dos fracos não reza a História”, se queremos ver mudanças temos de ser os primeiros a mudar e a fazer mudar. Quem sabe se daqui a uns anos não são os nossos nomes que vêm nos manuais escolares ou nas páginas dos livros mais importantes de História.

A História está sempre em constante mutação, tal como os Homens, tal como o Mundo. E é nosso dever, como construtores da História, preocuparmo--nos (pré-ocuparmo-nos) com o nosso futuro tendo como base experiências e situações do passado, de modo a conseguir produzir novos acontecimentos históricos dotados de orgulho e de esperança na Humanidade.

Maria Romão

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a função-autor em Michel Foucault

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viagem na literatura

6. A Viagem na Literatura

A Máquina do Tempo

A máquina do tempo é um aparelho que permite transportar o seu pas-sageiro para uma determinada época e um determinado espaço.

De acordo com algumas opiniões, máquinas do tempo são impossíveis de serem construídas, agora ou em qualquer momento futuro. No entanto, se não virmos um lado tão científico da máquina do tempo e olharmos para um lado mais metafórico, podemos associar as bibliotecas a verdadeiras máqui-nas do tempo. Nada melhor que um bom livro para viajar!

Para além disso, as viagens no tempo não têm fim, pois tal como o autor argentino do século XX, Jorge Luís Borges refere: Talvez me enganem a velhice e o temor, mas tenho a suspeita que a espécie humana – a única - está prestes a extinguir-se e que a Biblioteca perdurará.

Antes de existirem livros na forma que conhecemos, os conhecimentos a transmitir eram gravados em placas de argila.

Depois, surgiram, no Egito, os rolos de papiro que, em conjunto, for-maram uma das bibliotecas mais antigas, a Biblioteca de Alexandria.

Na Grécia, as bibliotecas estavam normalmente associadas aos tem-plos. No Império Romano, começaram a surgir e a multiplicar-se as bibliote-cas privadas.

Com a evolução do tempo e da tecnologia substituem-se os rolos de papiro pelo códex, ou seja, o primeiro livro.

Na Idade Média, as bibliotecas estavam, grande parte, associadas aos conventos e confinadas aos monges.

Mais tarde, surgem, então, as bibliotecas nacionais, que se foram pro-pagando por vários países.

Embora as bibliotecas fossem reservadas apenas para alguns particu-lares, não significa que elas não tenham sido, desde o seu começo, máquinas do tempo. Ao tornarem-se públicas e nacionais, a viagem no tempo e no espaço passou a ser uma atividade acessível a qualquer pessoa que esteja disponível para passar algumas horas na presença de um livro, acompanhada de um espírito de curiosidade, aventura e imaginação.

Passemos para exemplos mais concretos de como os livros nos permi-tem percorrer épocas e espaços diferentes.

Vamos supor que gostaríamos de viajar para a Grécia, por volta do

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viagem na literatura

século V a.C.. Vamos a uma biblioteca ou a uma livraria, procuramos uma tragédia grega, como, por exemplo, Édipo Rei, de Sófocles, e preparamo-nos para partir.

Primeiro ao perceber o contexto da escrita desta tragédia, verificamos que na Grécia Antiga as pessoas tinham como tradição fazer festas e celebra-ções em honra do deus Dionísio. Deduzimos, portanto, que a religião nessa época estava bastante presente na vida dos habitantes da Grécia e, para além disso, que seguiam uma religião politeísta.

Ao ler a obra em concreto, podemos captar alguns aspetos da realida-de vivida na Grécia Antiga, nomeadamente, a influência do destino e da ação dos deuses na vida dos humanos, a permanente influência das crenças e da mitologia no quotidiano dos gregos, mas também formas de pensamento e conhecimento. Concluímos também que a filosofia estava bastante presente e que a sabedoria era bastante prezada.

A leitura desta obra e de outras semelhantes transporta-nos para o es-paço e para a época que retratam, dando-nos a oportunidade de, juntamente com a imaginação, viver um pouco daquilo que lemos e, assim, conhecer uma época como se tivéssemos viajado até ela.

Queremos, agora, conhecer Portugal durante a Idade Média, por exem-plo. Novamente dirigimo-nos a um local que nos forneça livros.

Se pegarmos num Cancioneiro e procurarmos pela lírica trovadoresca, nomeadamente pelas Cantigas de Amigo, saberemos que, quanto ao espaço, Portugal era bastante rústico, sendo isso visível através da vida no campo, da presença da natureza ou de pequenas capelas ou ermidas.

Vemos também as tradições da época associadas a ambientes religio-sos, como as romarias e festas, e a uma vida rural, bem como a um quotidia-no doméstico em que as mulheres ficam em casa e os homens estão longe.

Podemos retirar também, já nas Cantigas de Amor, a forte presença do feudalismo e do serviço do cavaleiro perante a sua senhor.

Se passarmos pelas Cantigas de Escárnio e Maldizer, ser-nos-ão apre-sentados os aspetos negativos da sociedade portuguesa dessa época, como, por exemplo, a pobreza e a miséria disfarçadas….

Embora sejam textos líricos, essa característica não nos impede de imaginar e viajar no espaço e no tempo, nem nos impede de termos uma visão lúcida dos aspetos da época e do espaço retratado.

Se o nosso desejo for viajar para Auschwitz nos anos da Segunda Guerra Mundial, existem vários livros que nos podem levar até lá, como, por exemplo, Se isto é um homem, de Primo Levi.

Ao ler livros como o referido acima, é impossível não viajar pela ima-ginação até a um campo de concentração, somos verdadeiramente convida-

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viagem na literatura

dos, não só a ver as situações descritas, mas a vivê-las, também. O autor do livro conseguiu descrever com precisão as memórias que tinha do tempo em que esteve no campo de concentração, referindo o trabalho e o sofrimento passados nesse campo, bem como os tratamentos desumanos a que eram sujeitos, como comprova a seguinte citação do livro já mencionado, Se isto é um homem:

Imagine-se agora um homem ao qual, juntamente com as pessoas amadas, tiram a casa, os hábitos, a roupa, enfim, tudo, literalmente tudo quanto possui: será um homem vazio, reduzido ao sofrimento, à carência, esquecido da dignidade e bom senso, pois acontece facilmen-te, a quem tudo perdeu, perder-se a si próprio; reduzido a tal ponto, que outros poderão sem problemas de consciência decidir da sua vida ou da sua morte para além de qualquer sentido de afinidade humana.

Os livros permitem-nos, de facto, viajar pelo nosso mundo, e conhe-cê-lo em diferentes períodos de tempo, para além de nos levar a conhecer mentalidades e tradições. Porém, também nos levam a viajar por mundos desconhecidos fisicamente, por fazerem parte da ficção e por nos levarem a colocarmo-nos mais na imaginação do que na realidade, não deixando, por isso, de nos fazer sair do local onde estamos.

Se para viajarmos de carro, o nosso combustível é a gasolina ou o ga-sóleo, quando se trata de viajar num livro, o combustível é a imaginação e a vontade de conhecer. E tal como existem lugares que não nos dizem nada, existem livros que não nos levam a lado nenhum. Porém, o melhor dos livros que, na sua enorme diversidade, abordam os temas mais variados e existem para todos os gostos. De certa forma, ficamos sem desculpa para não viajar por um livro.

Ainda assim, esta viagem com os livros pode parecer desatualizada ou incompleta, por nos levar apenas ao passado, ou seja, a algo que já foi vivido e registado num momento anterior ao que vivemos, e por não nos levar a nenhum momento do futuro.

Porém, embora os livros sejam, por vezes, intemporais, ou seja, aquilo que foi escrito no passado ainda se verifique no presente, não são escritos com base num futuro, logo, alguém que leia um livro na época em que este foi escrito, não estará a deduzir, à partida, que seja isso que acontecerá no futuro, e, por isso, os livros não nos podem levar ao futuro, ou, pelo menos, a um futuro real.

No entanto, é importante estarmos atentos ao que os livros nos dizem no presente, porque eles podem refletir o que acontecerá no futuro, devido

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viagem na literatura

à intemporalidade de alguns livros. O que é registado no presente pode ser um reflexo do que continuará a acontecer. Por isso, se estamos descontentes com o que lemos acerca do presente, mudemos os nossos comportamentos para que o futuro seja diferente.

Se ainda há algum ceticismo sobre o facto de existirem livros escritos há séculos que se mantêm atuais, observemos o seguinte excerto de um livro intitulado Ensinos de Ptahotep, do pensador e político egípcio Ptahotep, que remonta ao ano 2600 a.C.:

Nestes tempos difíceis, a juventude esqueceu-se do respeitável com-portamento praticado pelos seus antecessores. Os rapazes conduzem as suas carroças imprudentemente pelas ruas sem qualquer conside-ração pela vida. As fúteis mocinhas pintam os rostos, escurecem as sobrancelhas e pintam as unhas. Todos eles se esquecem do respeito devido à idade e à sabedoria, e da honra que devem prestar aos cabe-los brancos.

Chegamos à conclusão de que os livros nos dão a oportunidade de viajar, quer para locais diferentes, quer para épocas diferentes. Por existir uma grande variedade de livros que abordam os mais vastos assuntos e que remontam para outras épocas e espaços, podemos considerar que uma biblioteca, uma livraria, ou a estante do nosso quarto contêm um programa enorme de ficheiros que nos levarão a sair do local onde estamos para conhe-cer diferentes mundos, diferentes costumes, diferentes mentalidades. E isto não tem, necessariamente, que se aplicar apenas ao passado. Mas tal como o excerto apresentado, se lermos atentamente o que nos mostra o presente, viajaremos também para o futuro.

Rute Prudêncio

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a função-autor em Michel Foucault

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a função-autor em Michel Foucault

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os limites da ciência

7. Os Limites da Ciência

A Ética e a Ciência

A Ética, como bússola responsável pela orientação da vida humana no que aos valores diz respeito, encarrega-se de criar parâmetros que, ainda que com diferentes interpretações, são reconhecidos universalmente e gerem a ação humana; pode, até certo ponto, dizer-se que a Ética será a dimensão que nos distingue do plano animal, porquanto procura o controlo dos impulsos e instintos mais primitivos, passíveis de destruir as relações sociais básicas sobre as quais assenta a nossa mundivisão.

Contudo, nos últimos anos, a Ética tomou sobre si um outro encargo: o de refrear o próprio intelecto humano. Se começaram por ser um mecanismo que nos protegia nas nossas inter-relações, centrando-se num plano mais emocional, atualmente os princípios éticos regulam a relação do Homem com a sua dimensão racional.

Nesta dimensão racional, pode realçar-se a Ciência como a maior cons-trução da razão humana, mas, também da relação entre o Homem e o mun-do/realidade que o rodeia.

Qual a necessidade de restringir a Ciência (e, com ela, aquilo que de mais racional o ser humano consegue atingir) aos parâmetros éticos que nos guiam noutros aspetos do quotidiano? Quais os limites éticos da Ciência?

A Ciência, tal como todas as outras áreas de conhecimento, é regida por um Código de Ética, reconhecido por toda a comunidade científica, que pretende moderar aquilo que é legítimo ou não experimentar ou sequer con-ceber no campo científico. Tal não exclui que este código seja, por vezes, vio-lado, sob as premissas de acelerar o conhecimento científico, quaisquer que sejam os meios empregues.

Exemplos de violações deste código encontram-se nos períodos mais negros da História humana, como as experiências médicas tenebrosas rea-lizadas em judeus durante o Holocausto, pelas quais muitos médicos foram, depois, condenados como criminosos de guerra; esta associação pejorativa leva a que quaisquer transgressões ao Código Ético sejam reprovadas por grande parte da comunidade científica, mas serão todas as transgressões si-nónimos da violência latente no ímpeto humano? Não poderão constituir uma forma de avanço do conhecimento científico, por métodos não dogmáticos, não tradicionais?

A inovação sempre foi característica distintiva da Ciência, o rompimen-to de dogmas e preconceitos uma consequência inevitável do seu avanço, logo é plausível supor que a Ética regente na Ciência tem vindo a alterar-se, consoante esta se desenvolve. Para além disso, a Ética é um reflexo da socie-dade em que se insere, portanto, à medida que as sociedades se desenvol-

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os limites da ciência

vem os preceitos éticos acompanham essa evolução. Desta forma, o Código de Ética das ciências também é moldável aos

estudos feitos e ao ambiente social em que são produzidos, ainda que, muitas vezes, as conclusões dos estudos choquem a comunidade leiga e provoquem alguma comoção: o estudo de células estaminais, por exemplo, que não re-úne consenso, principalmente em torno das grandes religiões, que o conde-nam publicamente.

A necessidade deste Código é muitas vezes posta em causa, princi-palmente pelos que a ele se não restringem, acusando-o de servir como um impedimento ao conhecimento, por razões puramente pudicas e emocionais, que não coadunam com o espírito científico, que preserva a Razão acima de todas as outras qualidades.

Contudo, especialmente desde finais do século passado, o papel do cientista é fundamentalmente estar ao serviço das comunidades humanas, tendo a Ciência concentrado os seus esforços em melhorar e compreender a nossa espécie, de forma a construir um mundo mais justo, mais sustentável e em que os problemas são minorados pelos avanços científico-tecnológicos. Faltavam recursos alimentares, a comunidade científica desenvolveu orga-nismos geneticamente modificados de crescimento rápido; existem doenças mortais, a comunidade científica esforça-se por criar vacinas, medicamentos; existem doenças degenerativas, a Ciência procura terapias.

Ainda que nem sempre as contingências políticas permitam a dissemi-nação dos avanços científicos, é impossível negar que o conhecimento cien-tífico tem evoluído no sentido de ajudar cada vez mais as populações; ora, sendo estas populações o principal foco da Ciência é errado supor que o Códi-go de Ética é desnecessário, na medida em que este permite a reafirmação de valores que tanto as populações como os cientistas consideram definidores da espécie humana: o Homem não é inteiramente racional, mas, segundo uma conceção kantiana da pessoa, será errado supor que quando se procura o avanço científico por meios pouco recomendáveis, em nome não do avanço do conhecimento, mas do egoísmo, do orgulho e da pura barbárie, estare-mos a ceder aos instintos primitivos e a não ser livres e racionais como tanto preconizamos? É, pois, necessário um conjunto de preceitos que, ainda que não sejam imutáveis e sempiternos, por se adequarem a novas realidades, construam uma Ciência que coadune com os princípios que utilizamos como meio distintivo das outras espécies (a existência de consciência, por exemplo, que nos torna responsáveis pelos seres que não possuem esta qualidade).

Posto isto, é relevante conduzir uma análise aos problemas ético-cien-tíficos com os quais a Ciência se depara atualmente; considerar-se-ão três, de entre muitos outros, mas que parecem ser relevantes neste caso: o estudo de células estaminais, já referido, os testes em cobaias animais e os testes em cobaias humanas.

No campo do estudo das células estaminais a comunidade científica encontra um obstáculo complexo, uma vez que estas células representam

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os limites da ciência

o início da nossa espécie e a sua manipulação uma procura de elevação do Homem acima de Deus, mesmo que a ideia de uma entidade superior seja desconsiderada na maioria das sociedades a Sua presença mantém-se num plano ideológico social subconsciente; também o facto de ser negado àque-las células o seu desenvolvimento até à formação de um novo ser humano é reprovado, sendo estes estudos percecionados como o homicídio de crianças inocentes.

No entanto, não se pode supor que estes estudos são despropositados, uma vez que, por sua causa, existe a capacidade de se realizarem trans-plantes com uma taxa de rejeição praticamente nula, de curar certos tipos de cancro e, com o tempo, de se regenerarem órgãos completos que podem permitir aumentar a longevidade da espécie humana e a sua qualidade de vida. Então, desde que a recolha destas células seja consentida, é hipócrita abominar estes estudos, porquanto nos são tão úteis.

Os testes em cobaias são, desde sempre, um assunto sensível. Desde a década de 70 do século passado que se tem vindo a ganhar a perceção de que os animais (e até as plantas) têm sensações, o que colocou um dilema moral: existirá legitimidade para os estudos em animais, que não poderão dar o seu consentimento a tratamentos que provavelmente os matarão ou deixarão gravemente incapacitados?

Tal como com as células estaminais, é desleal afirmar que estes es-tudos não têm propósito e que poderiam ser dispensados, porquanto deles depende a indústria farmacêutica. Não obstante, surge um problema: porque será a espécie humana superior às outras? O que lhe dá o direito de moldar a vida das outras espécies para servir os seus propósitos?

Uns dirão que é a consciência, mas essa mesma faculdade que nos distingue, confere-nos o dever de zelar pelas espécies que a não têm, reti-rando-nos legitimidade de agir sobre as outras espécies senão para aquilo que é absolutamente necessário (vestuário e alimento). Aqui está o cerne do dilema: não deveríamos provocar dor e sofrimento às outras espécies, mas não podemos evoluir sem esses processos.

O caso da ovelha Dolly, por exemplo, permitiu-nos descobrir, ainda que após numerosos falhanços, que a clonagem em animais complexos era possível, tendo sido, contudo, altamente reprovada, devido aos problemas de saúde que Dolly sofreu, muito antes do tempo devido e com o sofrimento associado, que levaram à sua morte precoce.

Por este prisma, o problema das cobaias humanas parece mais simples de resolver, afinal a estas são explicadas as consequências que podem advir das suas ações e é-lhes dada a hipótese de refletir antes do seu consentimen-to.

No entanto, para que os estudos resultem é necessário encontrar co-baias específicas, normalmente cobaias que se encontram infetadas com as doenças que se pretendem erradicar, estando dispostas a qualquer coisa para preservarem e aumentarem a qualidade da sua vida.

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os limites da ciência

Assim, é legítimo supor que estes homens, mulheres e crianças não têm uma escolha como à partida somos levados a assumir, já que os bene-fícios de recuperarem a sua vida, muitas vezes enfatizados pelas equipas responsáveis pela promoção dos estudos, se sobrepõem às consequências horríveis que podem daí advir.

Este é um exemplo para a importância do Código de Ética, pois este re-gula e explicita a forma como as equipas científicas anunciam os seus estudos aos pacientes, de forma a não serem levados a aceitar acriticamente algo que lhes pode ser extremamente desfavorável (considerem-se as mortes recen-tes de pacientes de um estudo farmacêutico em França).

Em conclusão, tem-se que a Ciência, expoente máximo da racionali-dade humana é, tal como o Homem que a constrói, imperfeita e que, para a tornar mais semelhante ao ideal preconizado que dela se tem, é indispensá-vel a criação de limites éticos que impeçam o ser humano de conspurcar o conhecimento científico com os seus instintos primitivos de destruição. Desta forma, os limites éticos da Ciência, ainda que possam retardar ligeiramente o conhecimento científico, garantem a transparência e a concordância entre os valores defendidos pelo Homem e aquilo que sobre ele próprio e a realidade descobre (Ciência).

Beatriz Correia

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divulgação

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a função-autor em Michel Foucault

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a função-autor em Michel Foucault

8. A função-autor em Michel Foucault

L’unité d’un texte n’est pas dans son origine

mais dans sa destination. La naissance du

lecteur doit se payer de la mort de l’Auteur.

Roland Barthes, La Mort de l’Auteur

Introdução

Pretende o presente trabalho o desenvolvimento de uma investigação bipartida. Procede-se, primeiramente, à exposição e análise críticas das principais temáticas dominantemente associadas à questão da morte ou desaparecimento do autor. Em seguida, discute-se, de forma particularizada, a chamada função-autor, a partir da obra O Que é um Autor?29, de Michel Foucault.

Quando se verifica uma tão densa produção literária como aquela existente a respeito dos temas que exploramos, poderá ser tendência natural discorrer sobre uma profusão de autores, referências e estudos visivelmente secundários ou suplementares. As questões discutidas neste projeto foram metolodologicamente seletadas de modo a contrariar esta tendência, garantindo a justa equilibração entre o tratamento das perspetivas tradicionais da crítica literária incidente sobre a questão do autor e o progresso analítico subsequente, do qual a proposta foucauldiana visada é parte integrante.

1. A Questão do Autor: de Barthes a Foucault

1.1. Génese – La Mort de L’Auteur, de Roland Barthes

O ensaio crítico, A Morte do Autor30, de Roland Barthes, disputa diretamente a perspetiva crítico-literário tradicional, muitíssimo manifesta

(29) Originalmente «Qu’est-ce qu’un auteur?». Trata-se do registo de uma comunicação apresentada por Foucault à Societé Française de Philosophie, em 1969, na qual a relação entre o homem e a obra é direcionalmente abordada. Tal como em Les Mots et les Choses, as condições de funcionamento das práticas discursivas são objeto de reflexão. (30) Originalmente publicado, em inglês, no jornal americano Aspen (nr. 5-6), em 1967, e mais tarde, em Francês, na revista Manteia (nr. 5), em 1968. O texto pode ser encontrado na antologia de ensaios de Barthes, Image-Music-Text (1977). Este ensaio influenciou extraordinariamente o paradigma da teoria literária da década de 70. Em La Figure de l’auteur, Couturier sustenta que é este mesmo ensaio que, “dez anos após o seu lançamento, viria a servir de carta fun-dadora a todo o movimento desconstrutivista”. A obra, O Que é um Autor?, de Foucault, surge também no seguimento desta publicação.

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a função-autor em Michel Foucault

no seu tempo, segundo a qual o significado último da produção literária de determinado autor é diretamente correlacionável com aspetos particulares da sua identidade pessoal. As caraterísticas individuadas do autor – o seu contexto histórico, atributos biográficos, perspetivas políticas, religiosas, etc. – são, assim, tomadas como aspetos fortemente implicativos de determinada explicação ou interpretação definitivas do significado da obra produzida.

Afirma Barthes que “a imagem da literatura [que encontramos] na cultura contemporânea está tiranicamente centrada na figura do autor, na sua pessoa, história, gostos e paixões”31. Se o entendimento interpretativo da produção artística de, exemplifiquemos, William Kurelek (pintor), não pode ser vinculativamente associado à conjunção de determinados aspetos individuais de Kurelek (pessoa)32 – e era célebre a sua esquizofrenia –, i.e., se não existe transparência ou permeabilidade totais entre as singularidades do homem e o que é impresso na sua obra, então, algum tipo de inversão interpretativa deve ocorrer: ao autor não pode caber um despótico papel de significação da sua produção; o autor não pode ser autocentrado.

Em O Que é um Autor?, Foucault questiona: “(...) em que momento se começou a contar a vida dos autores de preferência à dos heróis, como é que se instaurou essa categoria fundamental da crítica que é «o-homem-e-a-obra»?” (p.34). Sob a influência de uma estética romântica, uma hermenêutica subjetivista e um biografismo literário dominantes a partir dos séculos XVIII e XIX, a consagração e naturalização da figura do autor desenrolou-se como processo natural de uma estruturação literária em renovada adaptação. Em consonância com uma “lógica capitalista de coloração autoritária e proprietária”33, estes procedimentos históricos originaram uma sobrelevação firme da figura do criador sobre a sua criação.

A crítica barthesiana empreendida em A Morte do Autor não procura negar a existência trivial de uma figura autoral ou criadora. Isto seria propriamente impensável – é quase indisputável ou incontroverso que toda a produção artística tem produtor, toda a obra tem o seu obreiro . Antes, é a lógica subversiva de remissão do significado, explicação e interpretação de determinada obra à figura e circunstâncias próprias do seu produtor, que se procura adversar. As interpretações centradas na figura do autor como significante máximo da sua obra devem ser, então, suplantadas pela análise do sistema textual uno com o qual a sua figura se consubstancia; a partir do qual, em verdade, se origina.

(31) Roland Barthes. The Death of the Author. Image-Music-Text. Fontana Press, 1977. p.43.(32) Barthes reitera a ideia: “(...) dizer que a obra de Baudelaire é o falhanço do homem Baudelaire [e] que a de Van Gogh é a sua loucura” é procurar o significado da produção apenas do lado de quem a produziu, não lhe conferindo autonomia ou singularidade próprias.(33) A expressão certeira é empregue por Marco António Sousa Alves em “O autor em questão em Barthes e Foucault”, disponível em: http://www.academia.edu/2543136/O_autor_em_questao_em_Barthes_e_Foucault.

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a função-autor em Michel Foucault

1.2. Estruturalismo, Pós-Estruturalismo e Desconstrução

A análise avançada por Barthes evidencia algumas das tendências críticas preponderantes da chamada filosofia continental da década de 1960. Este ensaio viria a influenciar sobremodo as diretrizes fundamentais das correntes de análise desenvolvidas na teoria da literatura (e não só) de 1970 em diante. O pós-estruturalismo e o desconstrutivismo são exemplos significativos destas renovadas correntes críticas. É relevante explorarmos brevemente cada uma delas, uma vez que muitos aspetos da análise foucauldiana que tratamos são resultado explícito da sua influência.

Simon Blackburn define estruturalismo como “a crença de que os fenómenos da vida humana não são inteligíveis exceto através das suas inter-relações”34. Um dos eixos basilares do estruturalismo corresponde, no tocante à linguística, à distinção extensiva entre linguagem em sentido abstrato e linguagem funcional, aquela que diariamente usamos. O símbolo linguístico surge composicionalmente de um significante e de um significado. Se diferentes linguagens funcionais se referem aos mesmos objetos ou conceitos, não parece haver, segundo os estruturalistas, uma razão substancial para que um signo específico seja incondicionalmente associado a determinado significante. Logo, os signos ganham o seu significado partindo das suas relações e contrastes com outros signos.35

O pós-estruturalismo pode ser entendido como uma superação do estruturalismo.36 A sua tarefa primária é, em conjunção com o desconstrutivismo, a de desestruturar a unidade interna dos textos, identificando os seus padrões linguísticos implícitos, por forma a atingir, ulteriormente, uma multiplicidade intérmina de significados. Derrida, expoente máximo do desconstrutivismo, questiona, com efeito, a existência objetiva de significado: “(...) para ele, o significante é gerado a partir da cadeia discursiva [e] a significação nunca está presente num único signo, gerando-se, antes, na cadeia de significantes”37. Foucault é, também, uma das figuras máximas do pós-estruturalismo. O programa de análise da «ontologia da atualidade» que empreende visa, fundamentalmente, a descomplexificação do sujeito moderno e a clarificação plena das condições de funcionamento das práticas discursivas.

2. A Proposta Foucauldiana

(34) Simon Blackburn, «Structuralism», em Oxford Dictionary of Philosophy. Oxford University Press, 2008.(35) John Searle sumariza a questão da seguinte forma: “Eu entendo a frase «o gato está na cadeira» da forma como a entendo porque sei como esta frase particular se relaciona com uma infinitude de outras proposições associáveis a esta, tais como: «o gato está no tapete», «o gato está na mesa», etc”. (SEARLE, John, «Literal Meaning», 1977, disponível em: http://cas.uchicago.edu/workshops/wittgenstein/files/2008/01/searle-literal-meaning.pdf).(36) É normalmente associado ao conjunto de desenvolvimentos realizados por uma série de filósofos franceses da segunda metade do séc. XX, entre os quais constam nomes como Foucault, Derrida, Deleuze, entre outros.(37) Maria do Socorro de Assis Monteiro, em Autoria e Discurso: Diálogos com Michel Foucault. Disponível em: http://www.pucrs.br/edipucrs/online/IXsemanadeletras/lin/Maria_do_Socorro_de_Assis_Monteiro.pdf.

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a função-autor em Michel Foucault

2.1. A problemática da subjetividade

2.1.1. A Escrita e a Morte

O início da obra O que é um Autor? é marcado pela identificação dos paradigmas da «escrita contemporânea», dos fundamentos contextualmente associados à crítica das relações entre a estrutura textual, o significado e a sua remissão à figura central do autor. Como afirmado, a libertação da expressão escrita – a referência da escrita a si própria como jogo ordenado de signos num espaço onde o sujeito-de-escrita (as marcas do autor-pessoa mas não as do autor como figura ou função) constantemente desaparece – pode ser intimamente relacionada com a evolução simbiótica entre a escrita e a morte, em que, ultimamente, a escrita ou fala representam o contínuo apagamento do sujeito-autor.

Para ilustrar esta ideia, Foucault faz uso de exemplos concretos da história da literatura. O discurso da narrativa árabe, Mil e uma Noites, tem, como afirma, “[a] motivação, tema [e] pretexto [de] adiar a morte, [contando-se] histórias até de madrugada para afastar a morte, para evitar o momento em que o narrador se cala”. Também a narrativa grega “[se] destinava a perpetuar a imortalidade do herói, e se [este] aceitava morrer jovem era para [passar] à imortalidade”. De modo distinto, a obra que tinha antes o dever de conferir a imortalidade passou a ter, agora, o direito de matar, de ser a assassina do seu autor. A escrita está, como afirmado, presentemente ligada ao “sacrifício da própria vida”, ao apagamento voluntário que “não tem de ser representado nos livros [porque] já se cumpre na própria existência do escritor” (O Que é um Autor?, pp.36-37).

2.1.2. Categoria, Estatuto e Gesto Biográfico

O problema da subjetividade autoral – o que entendemos por autor e como se manifesta esta entidade no texto que produz? – reporta-se à dificuldade de compreensão do processo remissivo na relação texto-autor, i.e., ao complexo esforço de identificação do autor-indivíduo como exterioridade para a qual o texto aponta, tácita ou expressamente. De que modo se relacionam, portanto, autor e obra, exterior e interioridade literárias?

O autor de determinado texto possui um nome próprio, um referente fixo do indivíduo nomeado. No entanto, são inúmeras as partículas referenciais potencialmente identificativas desta exterioridade. Diferentes designações identificativas explícitas – o mesmo autor, Foucault, pode ser referenciado como «o autor de O que é um Autor?», «um dos mais importantes filósofos pós-estruturalistas», etc. –, partículas identitárias inerentes ao texto, coisas como referentes e pronomes pessoais – a afirmação discursiva «eu», «meu»

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a função-autor em Michel Foucault

-, entre outros, constituem conjuntos de marcas de subjetividade e autoria que podem apontar, ultimamente, para uma figura discursiva externa à textualidade.

A ligação do nome próprio com o indivíduo nomeado e a ligação do nome do autor com o que é parte concreta da sua autoria, não apresentam, no entanto, funcionamentos isomórficos. A forma como lidamos com uma e outra conexões é distinta. Por exemplo, se me aperceber que Fernando Pessoa não viveu em Lisboa, ou não usava chapéus, nada de significativo se segue em relação à forma como me refiro a Fernando Pessoa ele próprio, a Pessoa-pessoa, se assim quisermos. Ao invés, se descubro que não foi Fernando Pessoa que escreveu O Livro do Desassossego, ou que a poesia de Campos não é da sua autoria, o estatuto e funcionamento do referente Fernando Pessoa altera-se substancialmente. A forma como nos referimos a indivíduos parece, assim, ser assimétrica relativamente à forma como nos referimos a indivíduos que são, simultaneamente, autores.

O nome do autor não é, portanto, um nome próprio como os outros: corresponde, antes, ao resultado qualificativo do conjunto do seu trabalho, assegurando, simultaneamente, a ruptura individuante de um tipo de discursos por ele autorizados. Não é o caso que o nome do autor se constitua como mero elemento discursivo. Ele assegura, antes, relativamente ao discurso, uma funcionalidade classificativa, delimitando e relacionando associativamente a produção textual. Daqui não se segue, naturalmente, que as circunstâncias particulares (pessoais, individuais) do autor sejam transitáveis para o interior do discurso ele próprio, moldando-o intransigentemente. Esta modelação discursiva não tem de ser explicada em função das singularidades autorais.

2.1.3. O que é uma obra?

A que corresponde, constitutiva e estruturalmente, uma obra? Qual a marca que distancia um discurso individualmente proferido de uma unidade discursiva, de um tipo de discurso singular cuja aglomeração constitui o que nomeamos por obra? As noções de autor e escritor podem ser congruentemente dissociadas? Será que uma frase isolada, maior ou menormente significante, que Cesariny escreveu num guardanapo de papel pode ser integrada como parte inclusa da sua obra poética?38 O discurso anónimo, desautorizado, não é modalizável, i.e., não forma qualquer tipo de instituição apta à diferenciação classificativa, é apenas texto – “Um texto anónimo que se lê numa parede da

(38) Uma tentativa de solucionar o problema da unificação discursiva, de atribuir diferentes discursos a um mesmo au-tor, de modo que a sua obra se constitua a partir de um conjunto conexo de discursos é apresentada por São Jerónimo em quatro critérios: (1) constante de valor – um texto não deve ser qualitativamente inferior ou superior a outro; (2) campo de coerência conceptual – devem ser excluídas as obras escritas num estilo diferente da restante produção literária; (3) autor como unidade estilística; (4) contexto histórico do autor – consideração de que o autor é ponto de encontro de um certo número de acontecimentos de forro contextual histórico.

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a função-autor em Michel Foucault

rua terá um redator, mas não um autor” (Idem, p.46).

Foucault declara: “(...) não basta afirmar «deixemos o escritor, deixemos o autor e estudemos a obra em si mesma»” (Idem, p.39). A menos que a escrita seja autonomizada, ou seja, tornada parte total e completamente independente da figura autoral, a figura do autor não pode, de maneira nenhuma, deixar de existir. A autonomização da escrita “[permitiria] não apenas que se dispensasse a referência ao autor, mas também que se desse estatuto à sua nova ausência” (Idem, p.39); que figurássemos, para este vazio, uma autêntica estética da ausência. O facto é que as aproximações críticas à literatura evidenciam quase uniformemente a necessidade in extremis de remissão do texto para uma figura de autoria. A intolerância manifesta ao anonimato artístico é, também, evidência clara da impossibilidade de aceitarmos seriamente uma autonomização deste tipo.

2.2. A função-autor

2.2.1. Sujeito e Representação – o texto como apropriação

A função-autor, epicentro da proposta foucauldiana que exploramos, pode ser entendida como uma cisão entre a procura do autor no escritor real e no locutor fictício. Mas quem procura, verdadeiramente, o autor? Quem lida com a linguagem e a sua predominante sugestividade ou remissão inerentes? Naturalmente, o leitor. É ao leitor que cabe apreender a figura autoral como parte funcional de um sistema textual independente que, não obstante ser gerado a partir de um discurso autorizado, não é centrado na figura que o permite, fabricando-a, ao invés. Ocorre, assim, o que podemos chamar de inversão geracional – o autor possibilita o discurso e é este que, autonomizando-se, possibilita a figuração do autor como tal.

Os signos discursivos não funcionam da mesma maneira nos discursos providos da função-autor e nos que dela são desprovidos. Questiona Foucault: “Como é que se carateriza, na nossa cultura, um discurso portador da função-autor?” (Idem, p.46). Este tipo de discurso pode ser identificado a partir de quatro caraterísticas centrais: (1) trata-se de um objeto de apropriação (o discurso, que era originalmente um ato, é agora um bem); (2) a função não se exerce universalmente, nem sempre o anonimato autoral levantou dificuldades39; (3) a função não se formula com a atribuição de um discurso a um indivíduo, mas através de uma operação complexa de construção do que chamamos autor; (4) o texto traz consigo um certo conjunto de signos – e.g. gramáticos – que reenviam para o autor.

(39) Os discursos científicos começaram a ser recebidos por si mesmos, no anonimato, a partir dos sécs. XVII e XVIII. Era a sua pertença a um conjunto sistemático que lhes conferia garantias e credibilidade, secundarizando-se manifesta-mente a referência ao indivíduo seu produtor.

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a função-autor em Michel Foucault

A função-autor não é, portanto, em Foucault, uma confirmação da morte da figura do autor, mas uma forma de recuperação desta. A figura do autor não pode morrer na medida em que é necessária à formulação dos diversos discursos. Se os textos de autor não podem ser lidos exclusivamente a partir dos atributos e caraterísticas pessoais do autor-pessoa, a figura do autor, a função-autor irradiada do discurso por ele formulado – um discurso não é nunca anónimo – é o que oferece sentido ao texto, possibilitando a sua compreensão. É neste sentido que a função-autor não se formula com a atribuição de um discurso a um indivíduo, a uma pessoa exterior cujos aspetos particulares oferecem uma explicação concreta do significado do texto, mas através de uma operação de construção que parte do autor como função do discurso.

A operação complexa de construção do autor parte de um discurso formulado ele próprio por uma figura autoral. É a função-autor, a de formulação de um tipo de discursivo, que permite que entendamos o texto, a partir das caraterísticas próprias do discurso erguido. Assim, podemos considerar que a morte do autor é uma metáfora que denota uma renovada aproximação à figura autoral, considerando em primeiro lugar, não as caraterísticas particulares do autor-pessoa mas as marcas próprias do autor como figura fundadora do discurso e que a partir dele se constrói. Como afirmado por Couturier, a proposta central de Foucault é a de “apresentar uma teoria intersubjetiva de entendimento do texto autorizado, demonstrando que ambos leitor e autor são «capturados» dentro do texto, quaisquer que sejam as suas estratégias de fuga, e que interagem um e outro de maneira não simétrica e frequentemente conflituosa”40. O autor é “aquele que dá à inquietante linguagem da ficção as suas unidades, os seus nós de coerência [e] inserção no real” (A Ordem do Discurso, p.23) e é esta a sua função particular. É nesta medida que o autor se torna um fundador de discursividade. A função-autor não se define, assim, pela atribuição espontânea de um discurso ao seu produtor, mas através de uma série de operações específicas e complexas que operam reciprocamente sobre estas duas categorias. Não reenvia simplesmente para um indivíduo real mas dá lugar a vários «eus» em simultâneo, a várias posições-sujeitos que classes diferentes de indivíduos podem ocupar. O autor é, assim, transformado numa função do discurso que produz. É essa função, a de fundar novos tipos discursivos, que trataremos em seguida.

2.2.2. Fundações de discursividade: uma inversão

Evidencia Foucault que “ao longo do século XIX europeu, apareceram tipos de autor bastante singulares mas inconfundíveis com os «grandes» autores literários” (O Que é um Autor?, p. 58). Estes são não apenas os

(40) Maurice Couturier. La Figure de l’Auteur. Collection Poétique Seuil, 1995.

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a função-autor em Michel Foucault

autores das suas próprias obras, mas também os fundadores de renovadas possibilidades discursivas, renovadas possibilidades de formulação de outros textos, de novas vozes. O facto de que Freud fundou a psicanálise não é implicativo da ocorrência do conceito de libido em Abraham ou Mélanie Klein. Significa, antes, que “Freud tornou possível um certo número de diferenças relativamente aos seus textos, aos seus conceitos, às suas hipóteses.” (Idem, p. 60). Estes autores são, portanto, fundadores de discursividade41. A subordinação do sistema textual ao poder delineador do autor como deus-significante do discurso sofre, assim, uma profunda inversão: dando lugar a novas e variadas tipologias discursivas o autor desaparece, fundindo-se na estrutura linguística que formaliza, no tipo de discurso que autoriza.42 O autor transforma-se, assim, em discurso, porque é ele mesmo, o discurso, a linguagem autonomizada que estrutura o autor.

É, com efeito, para a inexorável morte do autor que as novas formas de unificação e apropriação dos discursos, agora tomados como informações instantaneamente compartilhadas em rede, nos encaminham? Poderá a formulação de Beckett «Que importa quem fala, disse alguém, que importa quem fala.» vir a representar apropriadamente um anonimato crescente no qual todos os discursos, qualquer que seja o seu estatuto e forma, se pautam pela mudez das vozes discursivas, pela ausência? Quanto tempo resta para que a nossa voz não mais seja do que um murmúrio sumido no frenesi da aldeia global.

Bibliografia

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DERRIDA, Jacques, «Structure, Sign, and Play in the Discourse of the Human Sciences»43 in Writing and Difference. Routledge & Kegan Paul Ltd,

(41) “Freud não é simplesmente o autor da Traumdeutung ou do Mot d’Espirit; Marx não é simplesmente o autor do Manifesto ou de O Capital: eles estabeleceram uma possibilidade indefinida de discursos.” (O Que é um Autor?, p.58). Noto, a este propósito, o curioso título de um dos capítulos de Contemporary Literary Theory, de Douglas Atkins e Laura Morrow – “Reading after Freud” – que bem ilustra a afirmação de Foucault.(42) Segundo Maria Assis Monteiro, “(...) esta forma de arregimentação tem profundas relações com a psicanálise Freudiana, onde a ideia de sujeito unitário, o eu, não é o sujeito autopresente, mas a incons-ciência é a marca fundadora do sujeito.” (O autor em questão em Barthes e Foucault, p.327. Disponível em: http://www.pucrs.br/edipucrs/online/IXsemanadeletras/lin/Maria_do_Socorro_de_Assis_Monteiro.pdf.).(43) Trata-se de uma comunicação realizada por Derrida no Colóquio Internacional da Universidade Johns Hopkins (Baltimore), sob a denominação “Les Langages Critiques et Les Sciences de L’Homme”, a 21 de outubro de 1966.

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ALVES, Marco António Sousa, O autor em questão em Barthes e Foucault. Disponível em: http://www.academia.edu/2543136/O_autor_em_questao_em_Barthes_e_Foucault.

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MONTEIRO, Maria do Socorro de Assis, Autoria e Discurso: Diálogos com Michel Foucault... Disponível em: http://www.pucrs.br/edipucrs/online/IXsemanadeletras/lin/Maria_do_Socorro_de_Assis_Monteiro.pdf.

Hugo Luzio

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um conto … a condição humana

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olimpíadas da filosofia da essm - ensaios

9. Olimpíadas da Filosofia da ESSM - Ensaios

O homem transparente

“Para muitos filósofos o relativismo moral é moralmente inaceitável por carecer de critério universalizável acerca do que é correto e incorrecto. As implicações de se adoptar a regra «em Roma, sê romano» vão muito além de mim e de os romanos.”

Das imensas problemáticas da ética e da moral, o seu carácter univer-sal ou relativo constitui uma das questões centrais. Parece, a uma primeira vista, que a diversidade de posições relativas às normas morais observadas em diferentes sociedades humanas e mesmo dentro de uma mesma socie-dade nos levaria a concluir que estas só podem ser relativas, pois aparentam ser tudo menos universais.

Não obstante, é de opinião de muitos filósofos que é necessário exis-tir uma forma de aferir, objectiva e universalmente, o que é certo e o que é errado. Será tal universalização possível? É de facto consistente e válido que todas as sociedades humanas devam ser sujeitas a um mesmo conjunto de normas morais? As Nações Unidas, à semelhança do que foi feito após a Revolução Francesa, promulgaram a Carta dos Direitos Humanos, que con-fere a cada indivíduo um dado conjunto de direitos tidos como inalienáveis, apontando as directrizes para um molde moral único, o conjunto de normas que todos temos de seguir impreterivelmente, pois cada um tem o direito de ter estas salvaguardas à sua dignidade e o dever de salvaguardar a dignidade dos outros. Será a Carta dos Direitos Humanos a resposta a este problema de universalização? Infelizmente, não aparenta que o seja. Em primeiro lugar, devido ao contexto histórico em que se apresentava: no seguimento da se-gunda Grande Guerra, em que o mundo, para além de estar a entrar no con-fronto ideológico e eminentemente militar entre o bloco comunista e o bloco capitalista, estava dividido ainda em vencedores e derrotados. Esta divisão de países permitiu que um conjunto de países, a chamada civilização ociden-tal, impusesse aquilo que no seu contexto era aceitável à maioria dos países do mundo, o que nos leva à segunda, e talvez mais importante razão. Tão flagrante foi esta imposição que a Carta dos Direitos Humanos das Nações Unidas tem uma semelhança extraordinária àquela que foi adoptada aquando a Revolução Francesa. Sendo assim, esta tentativa de universalizar normas morais cingiu-se a uma imposição de certas normas tidas como aceites num dado contexto social: o dos países ocidentais.

Isto revela uma característica das normas morais, as normas de con-duta que um indivíduo incorpora por contacto com o mundo em que vive: são o resultado de um contexto cultural. Esta dependência da cultura torna

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a moral impossível de universalizar enquanto a cultura não tiver ela própria um carácter universal. Parece assim que a moral não tem maneira de evo-luir para um patamar universal, pelo menos por si própria. Contudo a ética não apresenta as mesmas restrições. Contrariamente à moral, produto de um dado contexto cultural, a ética resulta de uma introspecção pessoal, que a torna unicamente dependente do pensamento individual. Este aumento de intervenientes, de culturas para intervenientes, pode parecer paradoxal, visto que na procura da universalização estamos a aumentar o número de divergências possíveis, mas como irei mostrar, não o é. Ao restringirmos o problema da ética ao indivíduo, que consideraremos ideal, no sentido em que não é influenciado pela sociedade em que vive, o que nos levaria para o mesmo problema cultural que já foi abordado, é nos possível analisar de que forma é que a Razão avalia as normas de conduta humana. Isto porque a mente individual, na sua essência puramente racional, já é universal: todas as entidades humanas possuidoras do dom do pensamento, tanto quanto sa-bemos, partilham a capacidade de dominar os processos lógicos. Assim, este indivíduo pensante ideal é aquele capaz de universalizar a ética, construindo as bases que todo o ser, quando é puramente racional e abstraído da sua he-rança cultural, consegue comprovar.

Todavia, um ser humano dificilmente se abstrai do seu contexto, o que corresponde ao ponto de ligação da problemática do conhecimento com a da ética. A possibilidade, ou não, de construir sem base para além da ra-zão, conhecimento ético é explorada de diversas formas, sendo o cepticismo imediato ao afirmar que é impossível basear qualquer tipo de conhecimento, tornando a ética impossível. No entanto, a base de todo o conhecimento, não sendo o conhecimento ético excepção, assenta na razão, que nós obtemos ao observar o mundo que nos rodeia. Esta observação, que como Descartes aponta pode muito bem ser falseada, permite-nos contextualizar o pensa-mento, visualizando o processo mental aplicado a uma dada situação, como por exemplo, compreender que uma maçã ou é vermelha ou não o é, que não pode simultaneamente ser e não ser vermelha e que, mais fundamentalmen-te, é vermelha e a sua cor, antes de toda a interpretação lógica, é igual a si mesma. Esta linha de pensamento é de seguida é levado para um patamar abstracto, que por sua vez permite a aplicação a outros contextos e torna a razão numa ferramenta independente e, como é mais relevante, indispensá-vel.

Assim, como vimos, um indivíduo provido com a razão e apenas com a razão (que, no ser humano, é universal) está habilitado a deliberar e decidir racionalmente quais as normas éticas que existem, criando o critério do certo e do errado, que são comprováveis por um ser humano que consiga abstrair--se da sua condição não-racional.

De facto, esta universalidade das normas éticas é indispensável para o contacto entre culturas, no contexto do diálogo entre dois contextos culturais que, como já vimos, terão duas vertentes morais diferentes. Isto porque se torna impraticável chegar a um consenso sobre o que fazer numa dada situa-ção se as normas que ditam a conduta de cada um dos povos são diferentes, resultado de diferentes contextos culturais. Caso cada parte considerasse

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que é válido que a ética varie, seriam certamente levados a concluir que o seu próprio património moral é o mais consistente, pois ser-lhe-ia permitido afirmar que se sustenta uma norma não na razão que é comum a ambas as partes dialogantes mas no contexto cultural singular em que cada uma se encontra. Somos assim levados a concluir que o relativismo moral é insus-tentável, pois o diálogo que seria racional se se apoiasse na universalidade da ética e na busca da verdade torna-se um confronto em que cada parte se vira para o etnocentrismo, ignorando o respeito pela diferença e o que partilham como base comum.

Abordando este mesmo tema da diversidade cultural de uma outra perspectiva, suponhamos que um mesmo indivíduo, viajando entre diferentes contextos culturais, decide adoptar as normas morais desse mesmo contexto onde se encontra. Assim, o indivíduo torna-se transparente ao meio em que se encontra, não é mais que uma reprodução do que o rodeia (em termos morais). Colocando esse mesmo indivíduo fora de contexto, esse indivíduo torna-se invisível, isto é, torna-se amoral, pois não tem nenhum conjunto de normas culturais que possa absorver. Ora, esta situação não é benéfica de forma alguma: a dependência do contexto torna-o incapaz de mudar um contexto que não se encontra correto e incapaz de agir correctamente fora do mesmo. Assim, sendo, a única alternativa é utilizar um critério universal – a ética baseada na razão – que permite que sejam salvaguardados todas as situações possíveis da amoralidade.

No entanto, este critério universal é, por enquanto, puramente teóri-co: não é possível abstrairmo-nos do nosso contexto cultural, por muito que procuremos. Mesmo fazendo um esforço, como John Rawls fez utilizando o chamado véu da ignorância, seria apontado como parcial, pois continuaria a reflectir a condição pessoal do sujeito em questão. Contudo, o carácter uni-versal da ética não está sujeito a reflectir parcialidades, pois é puramente assente na razão, que mostra que relativizar a ética leva a uma acção amoral ou a um confronto entre sociedades de carácter etnocêntrico, como a história mostrou diversas vezes e como acaba por ser uma componente da condição humana. Todavia, caso se descobrisse este critério moral universal não seria necessário impô-lo de forma alguma às diversas sociedades do mundo, pois através da razão cada indivíduo confirmá-lo-ia (o que demonstra uma vista utópica das diferentes sociedades do mundo, mas a falha deste mecanis-mo social de liberdade de pensar racionalmente coloca, na minha opinião, a questão da universalidade da ética em segundo plano).

Conclui-se que é possível, de um ponto de vista teórico, encontrar um critério ético para caracterizar as acções como corretas ou erradas, e que seria destrutivo tanto a nível do contexto da diversidade social como da mo-ralidade individual apoiarmo-nos no critério relativista da moral. Adoptar a regra «em Roma, sê romano» prova-se como destrutivo para a própria Hu-manidade, que por isso necessita do referido critério universal.

Baltasar Dinis

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O que implica sermos livres?

“Por vezes, temos orgulho da nossa liberdade: não somos apenas criações do instinto e do desejo. Conseguimos dominar-nos e lutar pelo controlo dos nossos vícios e obsessões. Quando somos bem-sucedidos tornamo-nos dignos de aprovação. Se falharmos, merecemos ser casti-gados e, por vezes, somo-lo. A liberdade traz consigo responsabilidade e quem dela abusa merece reprovação e castigo. Mas ninguém merece reprovação e castigo por falhar em fazer algo que não possa fazer.” (Simon Blackburn)

A liberdade de acção traz-nos responsabilidade. Através dela as nossas acções obtêm um significado, delas podem nascer vários tipos de sentimento, como a culpa ou o mérito. O livre-arbítrio faz com que as nossas acções, ao serem ponderadas, tenham importância, ou seja, a liberdade de acção torna a moral real e necessária.

Portanto, a liberdade implica a responsabilidade por parte de cada um de nós. Se um homem cometer um crime, deve ser completamente respon-sabilizado por ele e sofrer as consequências. Estas devem ser ponderadas de forma responsável, pois dependeram do acordo de vários em relação ao caminho que alguém, que utilizou a sua liberdade para desrespeitar a dos outros, deve seguir. A liberdade e a responsabilidade estão altamente conec-tadas.

É necessário que numa sociedade livre exista um critério de coexistên-cia e um que sanciona, ou seja, quando o critério de coexistência é desres-peitado, quem o pratica deve, por respeito à responsabilidade, ser punido.

Outra vertente da filosofia que está bastante ligada à livre acção é a ética. A ética, porque ao termos liberdade de acção nasce a compreensão de que o respeito tem de existir, pois, sendo nós portadores de culpa e mérito, temos de ponderar a acção e pensar tanto na sua intenção como na sua con-sequência. A sua ligação com a liberdade depende de cada um de nós e da nossa percepção das situações. A ética é a nossa forma, própria, de avaliar a situação e de agir, a ética existe porque nós temos liberdade.

Deter livre-arbítrio faz com que condicionemos a nossa acção e essa é a derradeira liberdade. Ao fazermos as nossas escolhas, condicionamos a nossas linhas de acção seguintes, porque vamos fazendo o que nos satisfaz e o que nos é mais certo. As nossas escolhas fazem-nos.

O porquê de não aceitarmos o determinismo? O determinismo implica que não exista culpa, os humanos não têm liberdade de acção, logo, não têm

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responsabilidade. Penso que este ponto do determinismo atrai muitos pois, assim, poderemos viver sem ser culpados (e sem mérito, também).

Esta teoria afirma que a natureza (não-humana) é determinada pelas leis da física e da biologia, por exemplo, se uma bola se encontra num local inclinado, ela vai rolar por ela abaixo e a física explicará isto. Portanto, não acontecerá o mesmo com o ser humano? Mas, será assim tão certo?

Na verdade penso que não e podemos explicar esta opinião através da forma como conhecemos o mundo.

Vamos supor que podemos apenas conhecer o mundo através da expe-riência, das percepções e que estas estão divididas em “impressões” (percep-ção imediata do conhecimento adquirido) e “ideias” (memória, sonhos, etc.). Nós nunca temos a impressão da causa/efeito, ou seja, imaginemos, eu meto a água ao lume e ela ferve, daqui eu só obtenho duas impressões separadas. A impressão correspondente a que pus a água ao lume e a impressão corres-pondente à água a ferver. Eu nunca obtenho a informação: “eu pus a água ao lume, por isso, ela ferveu”, mas duas separadas. Só porque o Sol nasceu hoje, não quer dizer que nasça amanhã. Esta conexão necessária é precisa para o dia-a-dia, mas não é, por isso, verdadeira. Ora, as ciências empíricas, como a biologia e a física, baseiam-se na relação causa/efeito. Sendo, como demonstrei, ciências que se baseiam no determinismo perdem a sua forma, pela falta de existência de impressão que lhe corresponda. Não existindo esta ligação as ciências perdem a sua razão e as acções humanas são livres por falta de causa/efeito. A bola do exemplo que dei, não foi determinada pelas leis da física, porque a explicação incluiria a relação causa/efeito nela.

O determinismo afirma: “a natureza é determinada pelas leis da física, por isso, também o humano o é.”. Aqui é utilizada uma relação causa/efeito que desqualifica o argumento.

Como explicaríamos o início de tudo através do determinismo?O determinismo afirma que se conhecemos todos os antecedentes de

tudo poderíamos desvendar o futuro. Falta aqui, porém, a explicação para aquilo que não tem antecedentes. Tem de existir um começo da vida, que não tem antecedentes. Este ficará sem sentido através do determinismo.

O “eu” de cada um de nós e a liberdade?Se o nosso “eu” fosse fixo significaria a continuidade, mas a continui-

dade é impossível, porque a nossa existência é um acumular de sensações (impressões). Logo, eu existo quando como uma maçã, quando leio um livro ou vejo televisão. Aqui há uma descontinuidade, porque são várias impres-sões separadas. A continuidade do “eu” significaria um caminho estabelecido, uma espécie de destino, porque as minhas sensações teriam um método de

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agregação uns aos outros. Para além disso, como seria eu livre se há algo fixo em mim? A liberdade supõe mudança, movimento, descontinuidade. Para ser livre eu tenho um conjunto de sensações que me vão alterando ao longo do tempo. A minha mudança faz-me criar, o criar demonstra liberdade (apesar de ser um conjunto de ideias que provêem de impressões a fundirem-se), nós somos o único animal que através da nossa acção pode criar. O rio corre, o vento passa, mas nós criamos ligações entre as impressões que, mesmo que imaginadas, são uma característica apenas nossa. Mais nenhum animal ou ser vivo pode ter esse tipo de acção (que nós possamos conhecer).

Poderá a nossa vontade ser índice da nossa livre acção?Sabemos que o determinismo diz que a liberdade que sentimos é uma

ilusão. Se assim fosse não sentiríamos todos vontade? Ou seja, se fossemos determinados sentiríamos sempre vontade, porque sentíamos a ilusão da liberdade. Mas existem pessoas desmotivadas, normalmente têm uma visão mais determinística da vida. Neste argumento o determinismo faz uma gene-ralização. Se todos sentimos a ilusão da liberdade, então, todos temos vonta-de. Mas isto não é verdade. A vontade gera-se com a mudança e a mudança com a liberdade (porque não existem relações entre acções).

E a questão da ilusão de liberdade?Nós conhecemos através dos nossos sentidos, quando temos a sensa-

ção de liberdade não temos a de ilusão. E nunca temos a sensação de ilusão. Então será que existe algo chamado ilusão, se nunca temos impressão dela? A ilusão é quando temos a percepção de algo, mas não é aquilo que vemos. Portanto, se os nossos sentidos não a percepcionam como podemos acreditar na sua existência?

Concluindo, será mais certo sentir a liberdade no mundo do que a sua ilusão. Podemos pensar nas nossas vidas e encontrar, nelas, vários índices de liberdade. Temos a sensação e essa deixa-nos conhecê-la. Convivemos com situações de responsabilidade de acção e ética, essas que tanto nos dizem sobre a liberdade a que estamos condenados. Somos castigados pelo que fa-zemos considerando mal a situação ou, então, com má intenção e recebemos mérito pelo que fazemos bem. Vivemos com liberdade e não nos podemos separar dela, porque não conseguimos viver a pensar que somos determina-dos, essa forma de pensar desmotiva a maior parte de nós. E assim, vivemos nós, sem saber, que estamos condenados à liberdade.

Eva Ribeiro

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Donos da verdade ou críticos na incerteza?

“Não são os que procuram a verdade que são perigosos, mas os que acham que a encontraram.” (W. Ritschard). No que toca ao conheci-mento, o ceticismo é a melhor das opções?

No que à melhor abordagem ao conhecimento diz respeito, poder-se-ia argumentar que os céticos, abstendo-se de se pronunciar e de ajuizar sobre todo e qualquer assunto, tomam para si uma posição mais prudente que os dogmáticos, na medida em que não vivem segundo a premissa de que são donos da verdade, por rejeitarem a existência da possibilidade de uma Verdade absoluta. Mas será esta a melhor forma de encarar o conhecimento humano?

Os céticos, suportando-se em vários argumentos, como sejam o da regressão infinita ou o da divergência de opiniões, crêem que é impossível conhecer de todo (céticos radicais), ou que certas áreas de conhecimento nos estão vedadas, sendo o conhecimento que temos delas infundado e baseado numa perceção errada da realidade (céticos moderados).

Contudo, a posição cética é insustentável nas sociedades atuais: é im-possível conceber uma sociedade moderna não regida pela física (que per-mite, por exemplo, a existência das mais variadas tecnologias) ou pela ma-temática (também fundamento das tecnologias que nos permitem entender a realidade em que nos inserimos); num plano menos racional, a existência de moral seria também indefensável, porquanto o ceticismo acarreta a abs-tenção de juízo e, neste plano, o relativismo moral, impedindo a aplicação de valores universais como a justiça: não posso conhecer o que é a justiça, logo não posso condenar outrem por agir de forma incorrecta, uma vez que não posso ajuizar sobre a forma correta de agir.

Mas será então o dogmatismo a resposta lógica ao problema do co-nhecimento? Será legítimo supor que possuo certezas sobre o mundo que me rodeia?

Como disse W. Ritschard, “Não são os que procuram a verdade que são perigosos, mas os que acham que a encontraram”, podendo inferir-se que os dogmáticos, ao suporem conhecer, adotam uma posição mais “perigosa”; isto porque o conhecimento pode levar à estagnação do espírito: a certeza sobre o mundo faz com que deixe de o questionar e aceite acriticamente as suas características, ainda que as não tenha experienciado ou que não me tenha questionado racionalmente sobre elas.

Esta posição é, também, insustentável. Tome-se a ciência como exem-plo: o conhecimento científico só evolui quando o dogmatismo imutável e acrítico é derrotado e se procura um conhecimento cada vez melhor funda-mentado, algo impossível se não se buscar, a cada dia, falhas nas teorias e conceitos e se se procurar colmatá-las com novos dados e hipóteses; esta

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evolução seria difícil, caso existisse a perspectiva de que a verdade já é co-nhecida, sujeitando o conhecimento científico a um congelamento, por já existirem teorias para explicar o que se conhece. Também a moral seria afe-tada, na medida em que os valores e preceitos éticos sobre os quais se esta-belece são fruto de uma evolução, por vezes lenta e gradual, outras brusca e abrupta, que reflecte a sociedade em que se insere; ora, numa sociedade em que se assuma o conhecimento total da verdade deixa de haver necessidade para a alteração da moral e, consequentemente, das leis, culminando numa estagnação sociocultural que irá eventualmente pôr em risco os direitos do indivíduo (os direitos dos homossexuais não seriam reconhecidos numa socie-dade que se considerasse dona da verdade, porquanto seria assumido que os seus valores tradicionais eram perfeitos e não necessitavam de alterações).

Para além disso, os donos da verdade incorrem frequentemente em manipulações, pois tentam adequar a realidade às suas crenças, o que, para além de ser eticamente reprovável, não poderá constituir forma de conheci-mento, já que não tem por base uma crença verdadeira e justificada (con-ceção tripartida do conhecimento), mas sim uma crença falsa, que adequa a realidade a si.

Então, ainda que com falhas, os céticos estão mais próximos do que deveria ser uma posição racional do problema do conhecimento? Estaremos condenados a uma incerteza constante?

Não, pois, regressando à frase de W. Ritschard, também os céticos se consideram donos da verdade. Até certo ponto, pode supor-se que um céti-co acredita que a verdade é não poder conhecer, sendo que, após adotar o ceticismo, cessa, ou tenta cessar, o seu envolvimento com o ambiente que o rodeia, deixa de procurar uma verdade porque já a encontrou: não existe uma verdade absoluta, o conhecimento é impossível.

Desta forma, também os céticos são passíveis de manipular a realida-de por não crerem existir um conhecimento absoluto (os sofistas gregos, por exemplo), moldando as diferentes crenças para servirem os seus propósitos; de notar que nem todos os céticos praticam este tipo de manipulação, na medida em que um dos princípios céticos é a abstenção de juízo sobre toda e qualquer coisa, sendo que o uso de crenças que pretendem ter conheci-mento como forma de servirem os seus propósitos seria uma violação a este princípio.

Por outro lado, W. Ritschard valoriza os que buscam a verdade sobre os que se consideram seus mestres e os céticos nunca se enquadrariam nesta categoria, uma vez que não buscam a verdade pois consideram-na inexisten-te ou inalcançável. São, pois, caracterizados por uma paralisação completa a nível racional.

Considero, então, que a posição mais prudente a ser tomada, no que respeita o conhecimento, será um meio termo entre o dogmatismo e o ceti-cismo, na corrente aceção da palavra. É possível conhecer, mas não devemos deixar o intelecto humano adormecer por excesso de teorias, de provas, de

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convenções, pois adormecer o espírito é matar a crítica, a análise, fontes pri-márias do conhecimento, algo que, devido ao elevado número de estímulos a que o ser humano está sujeito, é cada vez mais um perigo real. Assim, não devemos apegar-nos a um dogmatismo extremo que aceita o estado comum das coisas e não busca a consolidação das certezas que possui, sob pena de entrarmos numa nova Idade das Trevas naquela que, acima de todas as ou-tras, deveria ser a época da luz e da descoberta.

Para nos impedir de incorrer em tais considerações, passíveis de travar não só a dimensão racional do Homem, mas também a moral, a emocional e a sociocultural (uma moral estagnada e asfixiada por dogmas acríticos mina as sociedades e impede a evolução do Homem como Ser com capacidades emocionais desenvolvidas), deve recorrer-se ao ceticismo, não no sentido filosófico da não existência do conhecimento, mas no sentido em que nos impele a questionar as justificações que temos para aceitar o conhecimento que defendemos. Apenas assim conseguiremos rejeitar as justificações dú-bias, o conhecimento falso e inserir dinamismo no conhecimento humano, que deixa de ser pautado por dogmas e passa a ser dinâmico, existindo uma maior simetria entre o que conhecemos e a realidade, também ela mutável, de onde extraímos as ideias; a dúvida, o ceticismo, atuam como um motor que impede o ócio do espírito e nos leva a querer conhecer mais e melhor e a debruçarmo-nos sobre aspectos do real, cuja interpretação, à primeira vista, nos parecia inquestionável e segura.

Em suma, o ceticismo tem grandes falhas estruturais que impossibili-tam a sua utilização como resposta viável ao problema do conhecimento, não havendo, no entanto, uma resposta lógica a este problema no dogmatismo extremo, devendo as nossas crenças ser pautadas por uma certa dose de dú-vida, de modo que tentemos sempre melhorar e evoluir, quer a nível racional, como com as ciências, quer a nível moral, com a luta para a preservação dos direitos fundamentais do ser humano, mesmo nas sociedades mais tradicio-nais que, muitas vezes, os rejeitam. Até porque, segundo o princípio de que o Homem é imperfeito, seria ingénuo e hipócrita defender que o conhecimento por este produzido fosse certo e eterno, o que impossibilita a aceitação de dogmas.

Desta forma, não correremos o risco de, tal como W. Ritschard preco-nizava, nos tornarmos pessoas “perigosas” por acharmos que encontrámos uma Verdade absoluta, segundo a qual todos devem reger-se, mas também poderemos viver com a certeza de que a realidade não nos trai e de que há certos aspectos de que podemos e devemos ter consciência.

Beatriz Correia

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10. Um conto … 10.1. A condição humana

Reflexões ao revés do refratário

O meu pai, esse que não tive, morre plantado no jardim da minha infâmia, esperando que talvez o regue com uma boa dose de letárgicos, nos fade a um eterno retorno, mas sem início por onde possamos continuar.

É nesse desencontro semântico que separam palavra de palavra, corpo de corpo, que me escondo, sobrando-me a vacuidade extensiva dessa procura contrária pela noite do mundo, espaço figural de caras que me desmantelam.

Cobro-me apenas com essa inutilidade de me achar preenchido entre pausas, como se um último fôlego perpetuasse a escadaria com fim no cadafalso (ou ar diametralmente o mesmo ao passo término do abismo).

Pai, perdoa-me perecer placidamente, parte-me partires pelas palavras poucas. Não sei dizer-to de outa maneira, sem ficar neste jogo mecânico de quem evita desvendar o segredo por inteiro, nem recorre a mimese, sabendo ser do teu sangue (preferindo outro ou um qualquer de geração anterior à que te fez pelo frio).

Sugeres-me sempre o mesmo canto:

- Proliferarão dois estados maiores em ti enquanto caminhares: poderás cair num eterno amor ebúrneo ou tropeçar sobre um manto negro de vazio. E quando pensares que os dois se encontram nos antípodas um do outro, que se repelam como dois lados equivalentes de um íman, verás que estes achar-se-ão, devorando o mesmo lado de ti.

Um fará sonhar-te sobre as formas, pensando reconhecer-te em equilíbrio sobre o caos.

- Afogar-me sem o som das bolhas de ar é o mesmo que me contorcer enquanto dançamos; um mesmo jeito delineia os meus braços, segurando-te, sufocando-me, evitando desesperar …

- A extensão dos corpos subjetiviza o seu peso aquando do afogamento …

- Num mesmo inspirar mergulho, molhando-me. Moldo o lençol em milhares de vincos desorganizados.

Procurar alguma ordem seria servir-me a um deus desconhecido, morrer em braços instáveis.

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Consumir este estado farto, aspirar cansado o mar ou conhecer-te, resolvendo-me sem temer. Rir-me enquanto caio, ver-te se pudesse ter-te, adormecer, imobilizando-me no teu cheiro.

- Que se desenrole um perfume que não é meu; teremos que recolher a areia de um tempo já virado.

Um tempo que transbordou violentamente dessa ampulheta roubada em Copenhaga. 1996 era o ano. Registos? Apenas esta entrada no teu diário:

“Agosto de 1996 – O Søerne parece olhar discretamente a silhueta dos edifícios, enquanto pensa em prender-me mais uma temporada indefinida na cidade.

Eu sei que poderei ficar, encontrar-te pelo menos. Perdida na Rua Prateada, dizer-te que sou um ainda jovem Kierkegaard em busca da razão de existir.

Enquanto me ouves, pequena Regine, digo-te o quanto espero ver o lago pela manhã no teu conforto. Também eu senti que te conhecia de há muito, que estavas alojada no obscurantismo das minhas divagações.” (sic)

Porque o terás ouvido mãe? E porque não pude eu perscrutar, com toda a minha paciência, esse momento em que me concebeste?

Talvez se fosse mais atento, ter-te-ia avisado sobre os perigos desse lobo que vociferava o teu nome em histérica volúpia, consumindo o ar que restava entre os vossos corpos.

Não teve ele a atenção de explorar o teu ventre? Perceber que criara o monstro que se fez baloiçar violentamente em cima de um banco para, ao partir os dois pulsos, evitar abraçar-te?

Não terás percebido que a sua única ocupação seria ele mesmo, a sua eterna solidão e os seus pensamentos fragmentários, levando-o a cometer o que de mais extremo poderia ter sido feito? Dedicava-se a um propósito tão vão, tão inútil.

Como se fosse possível descobrir respostas a perguntas tão hiperbólicas: “o que sou?”.

E no meio desta personalidade dilacerada, estavas tu, o seu objeto de desejo, a força divina que alimentava a sua loucura.

Arrastada para o meio dos seus amigos igualmente insanos, estavas tu, a delicada inocência que servia cafés, bolos caseiros e acompanhava o seu amante sempre do lado direito da cadeira, em pé, respeitando mais um dos seus caprichos.

Hoje mal sei da minha infância junto de vós, como me fui desembaraçando durante todo esse processo longo, mas uma coisa tenho como garantida: mãe, eu sei que dele herdei a melancolia.

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Mãe, eu sei que desespero quanto te questiono sobre ele, o que fazia e o que pensava de tudo isto, mas talvez tenha o infortúnio de acarretar um fardo amaldiçoado, de continuar em busca de tais respostas- porque é que exististes pai?

Pois que a vida fugiu da alçada do conhecimento, refugiou-se num outro objeto que não pode ser mais lido à luz dos nossos olhos, como que um dialeto interior e estreito que se encontra além da linguagem, tomando como caminho um chão inexistente que se prolonga mesmo ao nosso lado. Viveremos então juntos, num único espetro, mas simultaneamente em paralelo com esta para que a hipótese de escolha nos seja dada em jeito dissimulado.

A mesma escolha assombrando-te todos os dias: permanecer ou partir? Fadar-me ao prazer humano ou sublimar-me asceticamente? É o que penso após debruçar-me sobre mim e quando tento acompanhar o teu raciocínio.

Talvez sejamos realmente um só orgânico que foge ao Destino.

Diz-me: quantas almas são precisas para preencher este temor? Quantas paixões, quantas mais mulheres em Copenhaga abduziste para teu desespero? E quantas mais precisarei eu para te alcançar?

O Amor … a sempiterna discussão sobre o sentimento humano (divino?) e as suas variadas formas.

Imagino, depois de todo o álcool efervescente do banquete, Platão disfarçadamente dissecando Eros em meticulosas partes monogenias; um doentíssimo Spinoza, guardando os resquícios desta descoberta em largos frascos rotulados, transbordando de arsénio; a obstinação de Schopenhauer, declarando o desespero da preocupação humana ao partir a embalagem no seu próprio corpo.

Sim, amor e loucura de mãos dadas (já tinha sido dito, também por um louco), dando longos passeios em torno de um lago em agosto, aproveitando o reflexo e as nuances difusas de uma luz vinda de cima, apontando para os edifícios. E como certos estavam ao enganarem-se um ao outro, mentindo sobre o futuro.

Esta manhã fez terminar um longo inverno. Chamado a reconhecer o seu corpo, os meus olhos não deixavam de fixar os seus lábios, esperando uma resposta.

Acreditar que, já frio por dentro, me pudesse finalmente responder e chamar-me para junto de si, aconchegando-me num espaço algures entre o seu torso e braço mais perto, onde poderia ter ficado durante todos estes anos, sem a preocupação de acordar ou a vontade de aspirar algum ar.

Acabo por concluir que toda a obsessão tem um pouco de morte e que todo o desejo seja igualmente fatal. A única fonte de razão pela qual existimos: um enorme desejo de morrer, de nos, finalmente, completarmos

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em energia. E tu, pai remoto, amaste o desejo e não o seu objeto, temeste o medo e não os seus jogos, perdendo tudo, agora que estás em silêncio.

Somos quase “nadas”, prisioneiros lânguidos em busca de absolvição, pois, por nada termos que absolver, acreditamos que a culpa jaz em nada, em nada ser, atrasando-nos assim ao som de uma hora d’ontem que se encontra virada a um espelho, arcaicamente posicionado, olhando para trás. E como nada temos, nada vemos para cantar, deitamo-nos embalados por esse relógio.

Por nada sermos, não veremos nada, ignorando assim o cheiro das flores. Morremos por nada e quase nada fomos … sabe o que é dito: “O homem é uma síntese de infinito e de finito, de temporal e de eterno, de liberdade e de necessidade, é em suma uma síntese”.

Poderei levantar-me agora, doutor? O céu encerrou-se e com ele todas as vozes correram para o seu descanso, talvez seja a hora de me levantar e caminhar pela chuva oblíqua até casa.

Poderei vê-lo noutra altura? Sinto que não tive tempo para falar sobre mim.

Daniel Rio

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Mais do que uma capa

Ao entrar numa simples biblioteca municipal o que pensa encontrar? Livros, mesas, cadeiras, a tradicional bibliotecária idosa que se esconde atrás do seu balcão, enquanto tenta manter o silêncio com o seu incessante “shhh…”. Bem, nesta biblioteca é precisamente isso que vai encontrar.

Em 1956, em plena ditadura, Felicidade, uma jovem apaixonada pela Literatura Portuguesa, aceita um emprego na recém-constituída Biblioteca Municipal da pacata vila de Sintra. Aí, aos 22 anos de idade, obtém aos poucos todo o conhecimento de uma vida.

É nessa altura lançado o polémico livro, Uma viajante no tempo, por Jorge Macedo, que retrata a vida de uma mulher do século XXI que embarcava numa viagem à descoberta da liberdade e igualdade, direitos considerados naturais e inalienáveis. Encontrando-se com grandes nomes como Voltaire, Montesquieu e Rousseau, tenta desenvolver um novo tipo de governo que se oponha à ditadura.

Contendo um tópico sensível para a época que se vivia no país, o livro foi produzido com uma capa dura e negra com letras douradas e sem qualquer vestígio de ilustração. Felicidade conseguiu um exemplar antes das autoridades obterem conhecimento do livro.

Infelizmente, após descoberto, o livro foi rapidamente retirado de forma a abafar qualquer sentimento de revolta na população, sendo as restantes cópias destruídas, excetuando a cópia pessoal de Felicidade, que a guardou e estimou, doando-a à biblioteca, após o 25 de abril de 1974.

Agora, em 2015, com 81 anos, Felicidade, permanecendo ainda na sua tão adorada biblioteca, é a tradicional bibliotecária, escondendo-se atrás da sua grande secretária e mantendo o silêncio, acompanhada apenas pelos livros.

Depois de tantos anos, a sua biblioteca torna-se apenas mais uma, sendo o seu título e estatuto entregue a uma nova biblioteca na capital. Contudo, apesar do peso dos anos, Felicidade procura ajuda para manter a sua biblioteca no seu estado original. Vê-se, então, obrigada a contratar uma rapariga de 22 anos, sem qualquer experiência, formação ou paixão pela Literatura.

Camila, a nova empregada, era uma jovem de pele e olhos claros que contrastavam com o seu cabelo negro, tinha poucos interesses na vida, porque sempre lhe fora facilitada. Com o ensino secundário concluído e sem quaisquer perspetivas para o futuro, Camila candidatou-se ao emprego na biblioteca com o único objetivo de ganhar dinheiro até encontrar um papel na indústria cinematográfica.

Durante a sua primeira semana no trabalho é lançado o livro que se

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tornaria o preferido de Camila, Para sempre…, por Tiffany MacAdams. O novo best-seller, que tomou o mundo de surpresa com uma das mais bonitas ilustrações na sua capa, contava a história de um romance proibido entre duas criaturas sobrenaturais. Havia-se tornado o maior fenómeno literário desde a saga Crepúsculo e, tal como este, seria adaptado para o grande ecrã com estrelas já conhecidas do público.

Ao longo das semanas seguintes seria o livro mais requisitado da biblioteca. E após vários pedidos tanto dos leitores como de Camila, Felicidade adquire mais cópias, colocando-as diretamente ao lado da sua tão adorada cópia de, Uma viajante no tempo, que não deixava a prateleira há mais de 20 anos.

Sempre que é requisitado um livro ele passa pelas mãos de Felicidade e, quando devolvido, passa de novo por ela. Durante estas intermináveis semanas, Felicidade faz os possíveis para que os leitores se interessem por outros temas ou livros da biblioteca, mas, infelizmente, todos os jovens que entram dirigem-se ao mesmo livro.

- Quem será que vêm buscar desta vez? - pensam os inúmeros livros espalhados pelas enormes prateleiras da biblioteca.

- Quem pensam que poderia ser? – diz o exemplar mais antigo. – É aquele livro infernal outra vez. É referente a quê?

- É um romance sobrenatural entre duas criaturas de espécies rivais, – diz a mais recente comédia romântica.

- O quê? Outro? Mas já não havia um assim.

- Não vejo qual é o problema de nos levarem. Vejam!, eu sou um de 6 exemplares e sou o único aqui esta semana. Mas pelos vistos até eu me vou embora, – defende-se a última cópia de Para sempre…, sendo levado pela jovem que acabara de entrar.

- Não se preocupem com isso. Não é a primeira vez que isto acontece. Além disso, muitos de vocês são clássicos, nunca vão deixar de vos levar, – relembra Uma viajante no tempo, tentando acalmar os outros.

- Mas não consigo compreender porque é que levam um livro como aquele quando tu estás mesmo ao lado.

- Não me incomoda. Eu percebo que não sou um livro desta época e que os jovens desta altura não tenham interesse em ler-me, ao contrário do outro livro, porque a minha história não se aplica à sua vida. Além disso, eu não tenho uma capa tão apelativa como a deles. Sou todo em preto com letras douradas e não tenho uma única imagem e não é isso que os jovens querem ler.

- Como é que durante tantos anos ninguém te pegou? Só porque não tens uma capa bonita? Eles nem sequer sabem a tua história…

- Mas num mundo de tantos livros coloridos, como é que queres que

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reparem em mim?

É então que entra outra jovem e se dirige à prateleira. Quando não encontra o livro desejado encaminha-se para o balcão de informação. Lá depara-se com Felicidade que lhe pergunta o que deseja.

- Eu estava à procura daquele novo livro, o Para sempre....

- O último exemplar acabou de ser requisitado. Talvez amanhã devolvam algum.

- Como é que não tem mais? Francamente, numa biblioteca destas… Achei que tinham muitos livros!

- Talvez tenhamos mais lá dentro que ainda não foram registados, - intervém Camila, que tinha voltado da hora de almoço e se deparou com a situação

- Ah, não. Não se incomode. Eu posso voltar noutro dia, - diz a jovem dirigindo- se para a porta.

- Não percebo por que falam assim comigo. Não havia nada que eu pudesse fazer.

- Porque é que achas? Quer dizer, é um bocado óbvio.

É nesse momento que Felicidade decide: porquê lutar contra o inevitável? Ninguém a respeitava há anos. Quando era jovem e bonita, era vista como uma ajuda muito prestável, como a alegria da biblioteca, como agora é Camila. Agora, sem a sua beleza e com apenas os seus livros não passava de uma velha rabugenta que não gostava do seu trabalho, ou assim pensavam os outros.

A única razão pela qual Felicidade permanecera na biblioteca tanto tempo, fora o seu amor pelos livros e pelo seu trabalho, mas já nem isso lhe dava motivação para ir trabalhar todas as manhãs.

Hoje, para além do seu conhecimento, leva o seu livro favorito, pois este seria o último dia que qualquer um deles entraria naquela biblioteca. Com esta decisão tomada dirige-se a uma prateleira de onde retira Uma viajante no tempo e, olhando-o com carinho, diz:

- Desculpa todos estes anos passados na prateleira. A partir de hoje nunca mais ganharás pó. Nunca mais serás posto de lado.

Enquanto se afastava da prateleira levando o seu livro na mão, os outros livros perguntam-lhe:

- Onde vais? Vais embora? Vais deixar-nos?

- Já não há lugar para mim aqui. Não sou um clássico intemporal, não sou uma comédia ou um romance atual. Vou para onde gostam de mim, para onde me querem. Vou para casa.

Adriana Assis-Rosa e Sofia Silva

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Três camas

O motociclo desliza suavemente ao longo da autoestrada, numa tarde de outono nublada, mas seca. Aquele que a conduz dirige-se para casa depois de uma tarde de trabalho monótono no escritório dormente do grande prédio cinzento da empresa onde trabalha. Não estará particularmente cansado, mas precisa de um fim de semana sossegado.

Algumas centenas de metros atrás de si, um camionista embriagado começa a cabecear.

Ficara tetraplégico há alguns anos atrás, num acidente de trabalho. A engrenagem prendera o cabelo – que, na altura, usava pelo meio das costas – e arrastara todo o corpo atrás, quebrando o pescoço na cervical. Os neurologistas advertiram-no, assim que o viram, de que seria muito difícil vir a recuperar os braços e pernas.

Ficaria numa cama até ao último dia.

Na noite gélida, ela tenta captar a atenção dos faróis que passam velozmente no bairro. Trabalha nisto há apenas alguns meses, e ainda não domina a arte de fazer parar um carro e se debruçar pela janela do passageiro, para depois entrar e, daí a alguns minutos, passar em média meia hora numa cama de lençóis sujos, com um colchão velho e barulhento. No fim, receberá o dinheiro que estipulara ainda no caminho.

Não era exatamente um sonho, mas não estava a passar fome.

O camião desgovernado esmaga as pernas do motociclista, do meio do fémur para baixo. A queda demonstra a ineficácia do capacete usado e que queria substituir brevemente – demasiado tarde. O traumatismo craniano retira-lhe os sentidos, que só vai recuperar depois de três dias. Os paramédicos não tinham dúvidas: ficou em coma, gravemente ferido.

Era uma ideia que tinha considerado diversas vezes. Na sua incapacidade mórbida e perpétua, não conseguia comer pela própria mão; não conseguia ler um livro, jornal ou revista; não conseguia sequer limpar-se depois das necessidades fisiológicas. A cama 38 do hospital era a sua casa. Os seus dias eram dolorosamente ocupados com programas de televisão, estações de rádio que transmitiam apenas uma dúzia de canções ao longo de todo o dia, ou familiares condescendentes que desprezavam aquele estado. Ele próprio começava a acreditar na eutanásia.

Pelas quatro horas da madrugada, as notas estragadas que tem na carteira parecem-lhe receita suficiente para uma noite. Dorida, caminha alguns quarteirões até casa. Os sapatos de salto alto são-lhe mais dolorosos que carvão em brasa. Precisa desesperadamente de se lavar. Começara a ter repulsa do próprio corpo na semana anterior. Agora, não passa da sua ferramenta de trabalho.

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O camionista morre quase instantaneamente, com estilhaços do para-brisas nos olhos, nas faces mal barbeadas, nos braços, no tronco. A ambulância demora menos de um quarto de hora a chegar ao hospital mais próximo. Felizmente, ele não tem uma paragem cardiorrespiratória durante a viagem, e os seus sinais vitais estão estáveis, quando entra no bloco operatório das urgências. Tem a perna direita quebrada em cinco pontos, e o tendão do joelho rasgado; a esquerda está partida em mais um, mas os tendões estão intactos.

Na tarde de sábado, um canal generalista decide transmitir um filme, no qual uma pugilista sofre um golpe desleal da adversária e fica, tal como ele, tetraplégica. Tenta o suicídio mordendo a língua, sem sucesso; mais tarde, convence o seu mentor a desligar-lhe os sistemas de suporte de vida.

Inspirador. Valia a pena tentar. Ao menos descobriria o que acontece depois.

Depois de operado, veio ocupar a cama 37. O 38 estranhou toda aquela movimentação e manteve-se acordado até os enfermeiros irem para outra sala, durante a noite, para tentar descobrir quem era aquele homem que vira, pelo canto do olho, dormir profundamente, imóvel, estático, mas vivo.

Ela dormiu até depois da hora de almoço. O seu corpo ainda lhe doía. Almoça uma sopa sensaborona e resolve ir visitar um avô à casa da terceira idade. Quando sai, ao início da noite, despe as calças num beco sossegado e veste a minissaia. Tem de fazer mais dinheiro, de modo a conseguir pagar a renda do apartamento com um quarto e uma casa de banho onde vive há um mês. Teve azar logo no primeiro cliente da noite.

Reunida toda a coragem que o seu corpo para sempre imóvel guarda, ele espera que os enfermeiros almocem – para que demorem mais tempo até se aperceber de que algum dos pacientes das camas 35 a 40 está a perder os batimentos cardíacos; para que demorem mais tempo a salvá-lo (sabe que é inevitável que tentem, mesmo não querendo). Por isso, quando fica sozinho com o 37 em coma e com a idosa que dorme uma sesta da 35, coloca, devagar, a língua entre os incisivos. Morde violentamente. Enquanto sente o sangue a jorrar-lhe dentro da boca, que se esforça por manter fechada, pergunta-se se doerá muito. Será como adormecer? Acontece depressa ou é mais moroso? A máquina ao seu lado começa a apitar. Uma luz acende-se no painel pendurado ao lado da janela da sala dos enfermeiros.

Os sonhos são velozes, indistintos. Nem sequer se apercebeu do acidente, e pergunta-se porque estará a dormir, quando a sua última memória é uma curva de autoestrada, no caminho para casa.

Logo no carro, o cliente começara a ser demasiado atrevido: pousara-lhe a mão na perna e fora subindo. Ela manteve-se impávida. Na chegada ao motel barato, foi um tudo nada deseducado a fazer o check-in. Deu-lhe

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uma palmada assim que chegaram ao quarto, e rasgou-lhe a saia e a roupa interior, impaciente. Ela começou a sentir-se mais desconfortável do que o habitual. E agora, estava a forçar a entrada, enquanto uma lágrima começava a escorrer. Não podia acabar bem.

Estranhamente, quando começou a sentir uma sonolência difusa no corpo, os enfermeiros ainda não tinham aparecido. Só daí a alguns minutos – quando o sangue deixara de escorrer da língua dividida em duas, quando uma doçura lhe invadira a mente, quando os seus olhos estavam quase fechados – apareceu uma equipa de médicos, munidos de um ventilador, um desfibrilhador e mais algumas ferramentas. O que lhe restava de consciência ainda lhe permitiu praguejar, num sussurro. Chegaram a tempo.

Os sonhos eram agora mais lânguidos, menos ecléticos. Nenhum deles lhe dissera ainda por que estrava a dormir há tanto tempo.

À medida que sangra, recebe chapadas violentas por todo o corpo com pequenos gemidos.

«Por favor», murmurava, «deixe-me, não me mate. Não me mate.»

E ele continua a penetrá-la violentamente, e a agredi-la, e a gritar:

«És uma porca, não mereces viver! Vocês metem-me nojo! Nojo!»

Não tinha sonhos tão agradáveis há mais de um ano. Acordou suavemente, como se o próprio sol viesse entrar pela janela e aquecê-lo com delicadeza. Pensou em espreguiçar-se – e rapidamente se lembrou de quem era, do seu estado, de onde estava. Gritou um impropério para a manhã. O 37 acorda, sobressaltado. Era domingo.

«O que é que se passa? O que é este tubo? Onde é que…»

Compreendeu rapidamente. Os enfermeiros acorreram num ápice, explicaram-lhe que tinha tido um acidente muito grave, que tinha as pernas engessadas, que ia ser muito difícil voltar a andar. Que tinha estado em coma.

Não fora um sono. Fora um sono apenas inferior ao sono eterno.

Sem sequer se vestir, quando reparou que a mulher que agrediu durante a hora anterior estava fria e inerte, correu para a noite chuvosa. Deixou a porta aberta. De manhã, a empregada da limpeza encontrou-a a respirar, mas severamente ferida. Tirou o telemóvel do bolso e marcou três dígitos: 1. 1. 2.

Não teve coragem de falar com o 37 durante todo o dia. Só de madrugada, quando ouviu a sua respiração a alterar-se repentinamente (o que já sabia significar que despertara), ousou:

«Olá.»

Esperou alguns momentos que ele identificasse a origem da voz. Respondeu:

«Já sabes o que é que se passou comigo?»

Como o vira a entrar no quarto, na noite de sexta-feira, pôde elucidá-

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lo.

«E tu? Porque é que estás aqui?»

Não teve intenção, mas pôs o 38 a chorar; ouviu como ficara tetraplégico num acidente, e como tentara o suicídio.

«Obrigado», disse apenas o 37.

«Porquê?»

«Por estares acordado ao meu lado.»

Ela esteve pouco mais de uma hora no bloco operatório. Passou a noite nos cuidados intensivos; de manhã, foi transferida para a cama 39, ainda a dormir um sono escuro, sem sonhos. Acordou enquanto uma enfermeira alimentava o homem à sua esquerda.

«Bom dia», disse o homem da cama 37, ao vê-la soerguer-se na cama.

«Quem é você? Onde estou?»

«Relaxe», ordenou a enfermeira. Outro auxiliar entrou no quarto e veio cuidar dela.

Nessa noite:

«Então, porque é que estão aqui?», perguntou ela.

«Sou tetraplégico. Tentei suicidar-me no sábado.»

«Tive um acidente na sexta-feira. Estive em coma até ontem.»

«Oh.»

Silêncio.

Daí a alguns minutos:

«Sou – melhor, era uma prostituta. Fui violada por um cliente. Este hospital salvou-me a vida.»

«E a minha.»

«E eu quase acabei com a minha.»

A senhora da 35 tossiu e virou-se para o outro lado, inquieta. Esperaram alguns segundos.

«Obrigado por estarem ao meu lado», disse o tetraplégico.

«Obrigado, eu também», disse o acidentado.

«Obrigada, por terem esperado por mim», disse a (ex-)prostituta.

E adormeceram, pela primeira vez em muito tempo, otimistas. Ansiosos por ver o que o dia seguinte trazia.

Vivos.

Bruno Bento

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Espelhos

O mar é apenas aquilo que cada homem vê. Cada homem vê um mar diferente pois que ao ver o mar, vê mais a cor do seu ser que o esbatido azul-marinho. Somos espelhos andantes: refletimo-nos em nós, nos outros e no mundo. Infinidade de espelhos. Infinito mar. Infinitos nós. Infinitos em nós.

O céu permanecia no seu esbatido tom de azul. As nuvens agracia-vam-no com o seu delicado branco toque, fundindo-se com ele lá no distinto horizonte longínquo. O sol ia-se recolhendo ao seu canto, escondendo a face àquele lado do mar e do mundo, cumprimentando o outro. Corria uma leve fria brisa de fim de tarde de março, soprando os cabelos e refrescando as faces para que estas pedissem um abraço de conforto que fizesse lembrar agosto.

No topo da falésia, um Homem sentado observava o eterno mar. Viam--se ao longe barcos de pesca voltar ao porto seguro. Pequenos e cansados, os barcos e os homens regressavam para o seu descanso. A tarde ia cessando. A noite anunciava a sua chegada, pedindo que se recolhessem os corpos a casa. O Homem, no topo da falésia, pensava.

Olhou o longo mar e no seu azul uniforme e mudo encontrou as respos-tas às questões que perguntava sem saber que o fazia. Pensou-se ali sozinho na falésia, viu o mar enorme que se estendia diante de si e concluiu que a sua vida era apenas um grão de areia entre um vasto areal, soprado no vento incerto de um pôr-do-sol quente. Soube então que o futuro era como aquele tão incertamente certo horizonte: tão definido, tão tenebroso, tão certo e tão longínquo.

Pensou na sua efémera posição no universo. As flores dançavam ao som das ondas e ao ritmo do vento. Ele andava ao som da mente e ao ritmo da vida. Mas que o ritmo da vida cansa. Sopro único intenso e contínuo que tão rapidamente perde o fôlego. Presto Agitato de tempero fervoroso e curta duração. Queria viver sem se esbater, pensou. Viver sem marca porque a marca, como ele, também se esbatia face à força do tempo que tudo vence e tudo faz passar.

Passeava perto dele uma jovem rapariga, mergulhada também no pen-samento. Que mísero infortúnio: tinham sido criados tão cientes, tão com-pletos na perceção, mas tão distantes uns dos outros. “Como ilhéu deserto isolado por um largo mar, a nossa mente permanece sozinha contra o mun-do”, pensou na sua inspiração reflexiva. “Ainda que pequenos barcos frágeis à nossa costa venham encontrar guarida, depressa voltam, como lobos-do-mar que são, para o seu verdadeiro lugar, longe do nosso ser e da nossa confiança e para lá do nosso mundo. Para um mar que não é nosso. Só deles.”

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O sol escondera-se por completo. O vento continuava o seu frio mas ternurento sopro. O branco das nuvens sob a metamorfose do fim do dia dava lugar ao calmo cinzento. O mar, sempre o mesmo, permanecia. Quantos olhos tinham já aquele mar visto? Quantos olhos tinham já, ao ver a própria retina imensa refletida no imenso mar, encontrado as respostas às perguntas que não julgavam perguntar? Quantos vezes havia o mar mudo gritado para dentro do ser dos homens solitários, que por ali se passeavam, verdades que ninguém por si só decifrava? O mar, triste e só, refletia-se em nós. Como nós, sós e tristes, nele.

Sentado na falésia, o Homem, já com as costas doridas do duro assen-to de pensador natural, viu a tarde cessar.

Com a altiva onda que à costa chegava, mostrou-se-lhe a derradeira proposição de que não havia significado para a vida e tolo seria quem o pro-curasse. A vida era aquilo que cada um via. Víamos todos diferente.

Estava noite cerrada. O mar cansara-se de o refletir. O Homem cansa-ra-se de ser refletido. Como os pequenos barcos frágeis e esbatidos, o Ho-mem voltou ao Lar, cansado da descoberta.

Miguel Marôco

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O Relógio

As pessoas chamavam-me cuidadoso, perfecionista e calmo. Podia di-zer-se que era uma pessoa com bens e não tinha muitos problemas financei-ros. Todos viam-me como um homem inteligente e poderoso. Eram caracte-rísticas que eu não podia negar à minha personalidade.

Nasci e cresci no seio de pessoas que me ensinaram a sentir superior aos outros. Não era ser manhoso como uma raposa, mas manipulador como alguém que sabe o que quer e o que tem. Vivia numa soberana casa, nos ar-redores de Londres, uma terra em que só se vê o sol nos dias de mau-humor, porque é o único local no mundo onde vive a escuridão. E posso afirmar que é muito complicado abraçar as sombras na terra onde apareceste no mundo.

Como é horrível pensar numa criança a nascer e ser obrigada a ser amiga da doce e cruel escuridão! Ser arrastada para a podridão, para o des-conhecido e fazer amigos com monstros que nunca tornarão serão humanos, por mais esperanças que tenham. Depois, tornam-se crianças da noite – algo que se pode encontrar em qualquer beco ou esquina – a serem desprezadas pela sociedade. A serem olhadas de lado e dominadas só pelo prazer, dor e solidão. Eu nunca cedi a essas tentações.

Apesar de o meu coração estar preenchido pelo orgulho, havia alguém que o guardava com carinho. Theresa, uma mulher que me encantou com os seus olhos claros, que me recordava o mar revolto no meio de uma tem-pestade inquietante, à espera que o pior esteja para vir, e com os seus lábios vermelhos e carnudos, lembrando-me uma rosa cheia de vida a desabrochar.

Éramos recém-casados quando comprámos uma poderosa casa com linhas vitorianas. Ela amou-a no momento em que lhe pousou os olhos e eu, louco de amor, não resisti a satisfazer-lhe o desejo.

Porém, por pertencer a uma classe social elevada, fui obrigado a con-vidar o nosso vizinho. Arrependo-me dessa decisão, sendo ela a causa de eu estar a escrever isto num estado lastimável.

O vizinho apresentou-se como Robert McWood e era um mercador rico. Era um homem calmo e alegre, com um fino bigode, que parecia ter sido desenhado a carvão, e tinha uma cara rechonchuda, tornando os seus olhos pequenos e mais escuros, como os de um rato.

Oh! Como o recordar do seu nome me traz uma onda de raiva pela alma, e aqueles ínfimos olhos, que, quando pousavam em mim, me faziam arrepiar!

Porém, a minha mulher, calma como era, abriu o coração, sem repa-rar no quão perturbadores os olhos dele eram. Desde aí foi considerado um “amigo” da família. Um homem que viajava muito, devido aos negócios, e partilhava a casa com a mulher, que ele desprezava e de quem abusava. Nunca criei laços fortes com ele, não se podia considerar «uma flor que se

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cheire». Mas, se fosse mesmo uma flor, apenas cheiraria a corrupção, abuso e falsidade.

Certo dia, no primeiro ano em que comemorei os laços criados entre mim e Theresa, ele bateu à porta de entrada. Tinha chegado de um longa viagem à Suíça, onde se lembrou de nós, enquanto olhava para a montra de uma relojoaria, tendo-nos comprado um relógio de pé, feito de madeira de carvalho, com ponteiros banhados a prata.

Desde aí, Theresa não foi a única a fazer-me companhia na sala. O som contínuo do relógio deixava-me desconfortável. Feria-me os ouvidos, de tão alto que soava, e viciava os meus pensamentos, de tão redundante o som se tornava. À noite, parecia um lamento de uma alma angustiada. Por toda a casa ouviam-se as lamúrias daquele monstro. Era um desafio tentar dormir com o ruído dos seus tormentos.

Tinha avisado a minha doce amada que aquele relógio era demasia-do inquietante para ser um relógio normal, mas ela não acreditou em mim. Dizia que era paranoia minha, só por ter sido oferecido por aquele patife. Com o sangue a borbulhar nos meus ouvidos, comecei a sair mais vezes de casa. Tornei-me alguém que nunca sonhei ser. O álcool começou a nadar tão naturalmente nas minhas veias, como um salmão num ribeiro. As saídas tor-naram-se tão frequentes, que a minha alma ficou enfraquecida, passando, assim, a conhecer-me como uma das crianças da noite.

A minha vida desmoronava. Não suportava a ideia de ser uma fraca e pobre alma a vaguear na noite, sem destino. Com o desespero no sangue, descontrolava-me muito facilmente. Tudo por causa daquela criatura, filha da obscuridade e dona das trevas.

Uma noite, tinha chegado a casa, depois de uma série de obscenas atividades e olhei para o relógio. A madeira polida e tratada, com as marcas da árvore enorme e esbelta que antes fora; os ponteiros a movimentarem-se tão lentamente como um espírito a tornar-se negro e horrendo a cada dia. E aquele pêndulo… Oh! Que tormenta! Objeto criado pelas próprias mãos do Diabo! Na casa outrora tão silenciosa, nem vivalma se ouvia, agora propa-gavam-se aqueles ecos suplicantes das oscilações daquele pêndulo. Só de pensar que aquilo é o meu criador, que me tornou neste monstro, nesta besta que deambula nas ruas, nesta pessoa igual às outras.

Não podia aceitar tal coisa! Num surto de cólera, peguei no machado, que repousava num monte

de lenha recém-cortada, e, num movimento pesado, mas rápido, quebrei o vidro que protegia o relógio e aquele horrível pêndulo. Agora, está tão des-protegido como eu! Mas não era o suficiente. Ele tinha que desaparecer, ser queimado… morrer!

Quando ia levantar o machado para partir o relógio ao meio, senti dois corpos a abraçarem os meus braços como se estivessem a impedir-me de

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fazer o que eu era obrigado a fazer. Duas das minhas criadas seguravam-me, tentando acalmar-me e afirmando que eu estava bêbado e com sono. Como se elas soubessem! Elas não sabem nada! Não têm noção daquilo que estão a proteger!

- Larguem-me! Deixem-me acabar com esta tortura a que chamam re-lógio! - berrei, criando um eco pela casa, como o relógio fazia a cada segundo que passava.

No dia seguinte, despedia-as sem terem tempo de pôr o pequeno-al-moço na mesa. Elas não podiam dizer a ninguém o que tinham visto naquela noite, por isso ofereci-lhes uma quantia generosa de dinheiro, que nenhuma pessoa seria capaz de recusar. O que as pessoas fazem pelo dinheiro torna a humanidade corrupta e incapaz de ter pensamentos próprios!

Nessa noite, quando ia a sair de casa, a minha querida amada disse--me que estava à espera de bebé e pediu-me, com lágrimas nos seus belos olhos, que ficasse em casa apenas nessa noite. Virei-lhe as costas e a última imagem que vi dela foi estar ajoelhada à frente da porta a sussurrar o meu nome.

Se eu soubesse o que iria acontecer a seguir, não teria feito o que fiz.Quando cheguei a casa, o meu coração ficou aos pulos. A porta tinha

sido arrombada, a mobília fora remexida e a maior parte desaparecera, a minha querida amada estava deitada numa manta vermelha, com um buraco enorme na barriga com a mesma cor.

Toquei-lhe levemente nos seus suaves e negros cabelos, com os dedos trémulos de emoção. Não podia estar a acontecer. Theresa… Minha querida e doce Theresa… Que criatura lhe fez isto? Quem lhe deu o eterno sono tão cedo?

Olhei para a destruição que me rodeava. Tudo remexido, derrubado, rasgado e desaparecido, como se um furacão tivesse decidido passar por aquela casa vitoriana. Desviei o olhar para um canto da sala e foi então que vi um pedaço de madeira impecável, sem nenhum arranhão e a gemer a cada segundo que passava. Não tinham roubado o relógio. Por mais que olhasse para a minha casa, aquele canto foi o único intacto. Atravessei a sala, a cada passo o som aumentava e pousei uma mão coberta de sangue sobre ele.

O pêndulo oscilava naturalmente, como se nada fosse. Como se fosse uma noite tal como as outras, em que eu saía de casa e voltava com uma gar-rafa vazia na mão. Como se pegar no corpo sem vida da minha doce mulher fosse natural. Como se rezar a um Deus em que não acreditava fosse natural. Como se chorar silenciosamente por uma alma destruída que nunca mais vai voltar fosse natural. Nada disso era natural na minha rotina, mas para ele era. Saberia o relógio como eu me sentia? O sofrimento penetrava nos meus pensamentos até aparecer uma ideia infalível para me vingar pela minha querida esposa. Seria ele capaz de ler os meus pensamentos e comentar o

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quão perfeito crime eu iria cometer?Semanas mais tarde, depois das visitas familiares e cerimónias de luto,

convidei o Sr. McWood a jantar na minha casa. Tinha pedido às novas criadas que fizessem o jantar mais cedo e de seguida despedi-as. Iniciara o plano e não podia voltar atrás.

O meu convidado entrou e cumprimentamo-nos, de acordo com a nos-sa classe social. Com pêsames e lamentos, jantámos até o homem ficar de tez rosada, devido à garrafa de vinho do Porto que bebera. Sem ele ter tem-po de perceber o que se passava, peguei no machado de lenha e despreguei a cabeça dele do seu corpo. Sem modéstias, nem cortesias, concluí o plano com toda a calma. Arrastei o corpo para a sala e incendiei a vivenda.

As chamas lamberam o chão, as paredes e a mobília. Penetraram nas janelas, no teto e fizeram contraste com o céu negro sem estrelas.

Era isto que devia ter feito há muito. Queimar o monstro e o seu cria-dor. Queimar a fonte dos meus desassossegos, da minha loucura, da minha perda. Agora tudo desaparecera. As noites cheias de êxtase, os prazeres, os ecos, o relógio… Saberia eu que, na primeira página do jornal, iria aparecer uma fotografia dos restos da minha casa e a sua “morte”? O que não iria sa-ber era o comentário sobre como tudo fora destruído, exceto um relógio de pé, de madeira, em perfeitas condições, rodeado pelas cinzas.

Mafalda Sebastião

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Pressão para ser perfeito

Todos nós somos forçados a agir ou a sentirmo-nos de uma determina-da maneira, dependendo do sítio onde estamos. A sociedade adora ditar cer-tas “regras” de como nos devemos comportar, de como nos devemos vestir, de como devemos ser, no fundo. Essa pressão para se ser perfeito é sentida por todos nós, mesmo que muitas das vezes nem tenhamos noção disso. Este sentimento está sempre presente nas nossas mentes; nós não só podemos ser melhores, como TEMOS que ser melhores. Isto faz-nos ser exigentes con-nosco próprios, sendo que pode acabar por levar a extremos.

Durante séculos, a mulher tem sido posta sob a pressão de se apre-sentar de uma determinada forma. Tudo começa na adolescência. É esperado delas que tenham o chamado “corpo ideal”. Nesta idade os seus corpos estão a mudar, as hormonas a alterarem-se e, com isto, a luta para se ambientar na sociedade a tornar-se cada vez mais árdua. Todos os dias vemos revistas repletas de pessoas que aparentam ser o modelo perfeito para a sociedade. A nós só nos cabe aceitá-lo.

Tal como as mulheres, a sociedade também coloca uma certa pressão nos homens para terem um determinado aspeto ou comportamento. A única diferença entre ambos é que os homens têm tendência a esconder as suas inseguranças, criando-se a ilusão de que os homens não as têm, ou, se têm, não as devem mostrar.

– Leva isto em consideração. Se uma rapariga estivesse visivelmente indignada devido às suas inseguranças, como reagirias? Será que lhe mostra-rias empatia, compaixão, tentarias confortá-la? Agora compara essa reação com aquela que um rapaz receberia se estivesse na mesma situação. Prova-velmente acabaria por ser ridicularizado por isso ou mostrar-se-iam indife-rentes em relação ao mesmo.

À medida que eles vão crescendo é-lhes dito que não faz mal sentirem--se miseráveis, desde que não o mostrem à frente das pessoas, porque isso faz deles fracos.

Desde o momento em que nasces ficas marcado com um género par-ticular. Desde os nossos primeiros anos de idade que ouvimos: “Azul é para os meninos, rosa é para as meninas” ou “Carros é para os meninos, bonecas é para as meninas”. A separação entre géneros começa desde cedo e vai-se acentuando cada vez mais ao longo das nossas vidas. É sentida a necessidade de satisfazer estas normas e o pior é que, muitas das vezes, nem sequer nos questionamos do porquê de o fazermos e apenas nos limitamos a cumpri-las.

Nenhum de nós tem, nem deve ter, que se conformar com essas nor-mas. Não devemos comportar-nos como robôs programados pela sociedade. Estas regras que a sociedade implementa são tão traiçoeiras que acabam por nos dizer para sermos nós próprios, mas não tanto ao ponto de sermos muito

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diferentes dos outros, pois o facto de se ser diferente é visto como algo nega-tivo. A sociedade receia a diferença, receia o desconhecido, receia tudo aquilo com que não está familiarizada. Assim, acaba por rejeitar algumas pessoas porque é mais fácil tratá-las como membros de um grupo do que propriamen-te enquanto seres individuais que somos.

A sociedade tem que parar de dar ordens, de determinar o caminho de cada um e permitir-nos, a nós, desenhar o nosso próprio caminho. Nós vi-vemos num país em que temos liberdade para ser quem queremos ser, mas, mesmo assim, continuamos a ser julgados por aquilo que escolhemos ser.

É ridículo todo o conceito de perfeição que se foi criando ao longo dos séculos, porque a única condição de beleza que devia existir é o amor que sentimos por nós próprios e aquilo que nos faz sentir bem, em vez de algo que irá ser julgado e comentado pelos outros.

Dito isto, fui pesquisar o verdadeiro significado da palavra “perfeição”. Aquilo que encontrei foi o seguinte: Perfeito: “Aquele que não tem defeitos, que é isento de falhas, que reúne todas as qualidades, alguém que não erra, o ideal”. Gostava que todos conseguissem decifrar as mentiras e cenários impossíveis que se escondem por detrás destas palavras, mas, infelizmente, não é esse o caso.

Todos nos encontramos nesta corrida, lado a lado, para ver quem al-cança em primeiro lugar a tão desejada meta que é a perfeição, mesmo que essa meta seja inatingível. Já o famoso poeta Fernando Pessoa / Bernardo Soares o dizia: Adoramos a perfeição, porque não a podemos ter; repugna--la-íamos se a tivéssemos. O perfeito é desumano porque o humano é im-perfeito.

Nicole Rodrigues Sjöholm

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Uma parede para não voar - história identitária humana

O Homem é um animal que morre [eterno profanador

[procurando a metamorfose. O Homem, é uma luz que pensa por gestos

[ponto na caverna [descobrindo movimento,

[caçador experimental que se põe de pé para ver mais.

A arte iluminou a caverna, mas o Homem saiu em busca de animais (maiores do que uma cor). Só os Shamans ficam para contemplar a alucina-ção, condenados a um corpo que não se alimenta de imaterialidades.

O Homem quer ser guerreiro. Mata para agarrar um destino que es-capa.

Os Shamans estão a morrer, mas o espírito místico parece ter sobre-vivido. Linhagens póstumas protagonizarão algo nunca antes visto. Serão Oráculos, descobridores dos números e dos elementos (aproximação ao destino que o homem tanto deseja).

Fragmentam-se as hostes: escravos, cidadãos, imperadores… O Ho-mem é, no fundo, uma mistura de perspetivas pouco acertadas. Oráculos são seres com a cabeça cheia de relâmpagos que desprezam acontecimen-tos de explicação exata, liderarão o Homem, remando contra a maré.

Alguns guerreiros descobrem o poder da linguagem, chegou a hora da primeira torre pós-Babel, alicerçada numa filosofia quase funcional.

O Homem ergue a civilização para destruir os bárbaros. Pode agora proceder ao extermínio dos construtores dissidentes sem temer a moral. Só os Druidas ousam questionar a teologia humana, há muito inventada.

Acabada a experiência linguística, Roma é o centro. Os Oráculos de-sapareceram da Terra, mas deixaram rasto. Nunca um Imperador chegara tão longe (em termos de geografia apocalítica) …

Depois do apogeu, a civilização está a ruir. Lá se vão os anos de des-lumbramento imperial. Druidas, que foram Oráculos, são agora Mestres de Alquimia.

O mundo vê nascer uma nova humanidade, que tudo faz para se destruir. O Homem é uma voz multifacetada, acusando um estereotipado pensamento lógico.

O Homem escolhe as trevas como habitação. Gosta de ser embalado por cânticos que muitos julgam celestes. Há demasiada morte, mas a partir de agora é sempre a aumentar.

Acabadas as experiências linguísticas, um novo Homem monopoliza

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a espiritualidade. Oh! Mente tão boazinha praticando crimes condenáveis, contra os quais ergue armas. O Homem está, de facto, confuso, mas da confusão falaremos mais tarde.

Os Alquimistas descobriram a pedra filosofal, mas o Homem destruiu--a.

A Alquimia está a morrer. Nascem os países. O que são na verdade? Ninguém sabe, mas pare-

ce que são bons. O Homem é um nacionalista inconsciente. Há mais guer-ra, mas calma, o Homem já não mata para sobreviver, mata, agora, para defender a suprema entidade que se esconde nos céus sem ser vista… Os Druidas bem nos avisaram, essa coisa da teologia não inspira confiança.

Um punhado de loucos começa a tecer a nova revolução. O Homem é um corpo a descobrir. A Alquimia foi extinta, mas os Antropólogos, herdei-ros da mística fascinante, parecem conseguir superar as grandes questões do seu tempo. O Homem é um eterno conflito, um corpo que se arrasta entre o progresso e a estagnação, o bem e o mal, a vida e a morte… Todas elas questões inúteis.

- Talvez o valor da vida esteja nesta inutilidade (pensará o Homem quando se aperceber da dimensão de tudo).

A História é uma luta que não se ganha nem se perde. Os Antropólo-gos não resistem, mas a sua vontade de mudança inspirará uma geração de Navegadores. O Homem é a descoberta do mundo, mas não sabe sê-lo com dignidade. Para completar o destino destruirá a nunca antes vista diversida-de etnológica, que se alastra pelo globo.

Os Antropólogos morreram e os Navegadores perderam a força ini-cial. O Homem mata para ser melhor, mas continua o mesmo de sempre. O Homem ainda não percebeu que também é morte.

Os Navegadores desaparecem quando deixa de haver um ponto novo a descobrir. A circunferência terrestre nunca será compreendida, mas o Ho-mem gosta dela assim

[desenhada à sua imagem.O Homem é um império global. Felizmente, há quem deseje conhecer mais. Luzes iluminam as almas

mundanas do Velho Continente (insaciável devorador de manjares canibais). Não é o Homem que quer conhecer, é o novo descobridor, o Cientista Ilumi-nado.

A ciência revela o seu fulgor revolucionário, o Homem é uma peça da indústria.

- RRRRR ZZZZ FFFFF – diz ele rodopiando ciclicamente.O campo mudou: [Animais não são homens, mas o Homem ainda é animal. O novo Homem está a fumar sentado no sofá. O novo Homem gosta do chá de Ceilão que vem do Oriente.O novo Homem é cosmopolita.

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O novo Homem não quer ser cosmopolita.O novo Homem adora salas escuras. O Homem também é noite.Nenhum Homem se quer sujeitar à unidade. O Homem é múltiplo e

assim será para sempre. O mundo não é mais do que um conjunto de con-flitos

[equilibrados, na generalidade.Na Era dos impérios a contestação é inevitável. Liberdade? Parece

interessante, mas só para quem a merece. Os bárbaros precisam de civiliza-ção.

O Homem ascende na ciência, mas a ciência é-lhe mortífera. O Ho-mem quer ser mais, mas não pode, teme a morte. Nasce o sonho vanguar-dista, novos artistas descobrem os alicerces da revolução.

O Homem está louco (mais louco). A vida passa cada vez mais rápi-do, apesar de haver mais tempo.

O Homem está doente.

A febre capitalista conforta-o.O Homem não está satisfeito.O Senhor das barbas vai teorizando práticas justíssimas que farão

muito mal.Os Artistas projetam o mundo numa explosão sem precedentes.

Concretiza-se a proposta revolucionária, que vinha sendo construída há demasiado tempo. O Homem pensa que esta é a última revolução, mas está enganado. Por momentos o Homem não sabe o que é.

Os novos Artistas são o cérebro do Homem, mas o Homem não gosta de pensar.

O Homem está cada vez mais confuso.O novo Homem poderá ser um suicida, ou velocista (das duas, uma).

A máquina do mundo gira a um ritmo alucinante e parece pronta para redo-brar os motores (o Homem só sabe acelerar…).

É preciso matar mais, a civilização não existiria sem carnificina e o Homem deixaria de ser o que sempre foi. Chegou o tempo da Grande Guer-ra.

Os Artistas fugiram, são agora viajantes sem pátria que vagueiam pelo mundo em busca de algo. Os Artistas são Exilados. A indiferença é a descoberta do seu século.

O Homem é uma fábrica de carnificina, laboratórios de morte são a nova moda global.

O Homem fez duas guerras catastróficas, por agora está satisfeito. Começou uma nova Era, os Exilados desapareceram. Erguem-se os

“Beats”, novos sensacionistas que apuram o gosto pela irreverência.Os “Beats” dizem que o Homem pode fazer sexo e fumar marijuana.

A sociedade está escandalizada. Os “Beats” dizem mal do capital e do prole-tariado.

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- Beats são conspiradores que “comem crianças ao pequeno-almo-ço”… – respondem os jornais. O Homem tem medo (mas o medo sempre foi coisa humana).

Foram-se os 60’, acabaram as revoluções. Depois de tanta mudança o Homem continua igual. Escolares desembainham definições afiadas que, não sendo fatais, mutilam almas desprovidas de ideais próprios. Poetas re-negados lutam contra a linguagem do seu tempo, servida em moldes indus-triais. São eles os últimos visionários.

O Homem folheia o catálogo do alheamento em busca de aventuras sintéticas. O Homem nunca esteve tão confuso, mas considera-se cada vez mais senhor do seu destino.

A História é uma imagem manipulável, mas o Homem ainda não se apercebeu disso (só os poetas sabem falar do Tempo). O Homem é sempre mais. O Homem é História e Tempo. O Homem acredita no progresso e o progresso está a destrui-lo.

O que é o Homem? Todos sabem, mas ninguém quer responder.O Homem é um animal que morre.O Homem é um animal civilizado.…- Existe uma resposta múltipla ao problema contemporâneo – afirma

um dos poetas que estão na sala. Para ele o Homem é energia na ausência de tudo. Um ser possuidor

de motores orgânicos onde se operam revoluções. O sentido propulsor da humanidade, é o único mecanismo a desco-

brir. Só ele trará a iluminação final, a transformação definitiva:- Para o centro, procuremos a última superação – conclui o primeiro

poeta.O número dois vê o Homem como um ponto na escuridão. A luz é

uma ferramenta, mas o mundo não acaba. O Homem está isolado num cír-culo, vivendo a expectativa de novas descobertas - inúteis:

- Só queremos ver escuro, mas o círculo luminoso reúne qualidades a descobrir. Olhemos o círculo iluminado – diz o número dois.

O terceiro fervilha por dentro. Para ele a noite é a única descoberta. O Homem está moribundo e o fim não pode ser evitado:

- Preparemos a morte do Homem – Grita ele.Os poetas viram no Homem a possibilidade

[de haver mais do que um corpo destruidor de criançasOs poetas estão a morrer, e o Homem

[é a ultima possibilidade.

Afonso Fragoso de Matos

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fotografia - Principiar | Joana Figueiredo

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10.2. Viagem

Lar

O ano é 2068 e a terra está a morrer. Onde outrora, em tempos lon-gínquos que eu nunca vi, havia natureza verde e vida, resta apenas o fumo, a fome e o medo daqueles que não poderão escapar a esta anunciada cala-midade. Sempre foi assim a raça humana: nem sempre fazemos o que de-vemos nem sempre sabemos o que devemos fazer. A Terra por tanto tempo, gradualmente a morrer, e todos nós sem nada fazer, surdos para os que com palavras assustadoras descreviam o assustador futuro, perdidos na social incerteza segura de nunca nada de mal poder de facto acontecer.

Não nos resta senão viajar, fugir daqui e ir para longe, sem qualquer destino palpável. Navegar, navegar e nunca findar no espaço, que é tão vas-to e tão vazio, à procura de um qualquer lugar em que possamos, por fim, descansar. Viveremos nas naus, sem nunca mais ver a lua à noite, o sol de madrugada a nascer, sem ouvir cantar os pássaros ou cheirar a maresia na costa a bater; viveremos fechados, sintéticos, robóticos, limpos e enfadados à procura daquilo que já houve e que talvez nunca, de novo, haverá: um lar.

Os antigos modernos, ao irem à Lua, sonharam explorar todo este imenso universo e sabê-lo bem e completamente, mas, se obrigatórias fos-sem as suas jornadas, não teriam o mesmo prazer em tomá-las. Não parti-mos valentemente à descoberta, mas fugimos, não como quem se dá ao luxo da escolha, mas como quem se perde na vida e não pode senão obedecer; não lançamos os curiosos à aventura, mas caímos todos forçosamente nela.

Viajar só é agradável se por todo o percurso se tiver qualquer sítio onde voltar. Ninguém viaja eternamente, por mais que lhe seja natural, e todos procuramos voltar a um qualquer porto seguro que seja nosso.

Talvez seja esta a nossa derradeira natureza: viajar. Crescer num mun-do e partir em seguida para outro, nunca estancando a corrente que é a vida, continuamente em mudança. Hoje a Terra, amanhã a Via Láctea, depois mis-térios que não consigo sequer figurar. Talvez não seja, no entanto, de todo da nossa natureza a viagem, mas é, por certo, da natureza da viagem des-vendar-nos, descobrir-nos e revelar-nos para lá daquilo que os autorretratos ilustram, alumiar os refúgios que à nossa luz permanecem obscuros, como se cada novo lugar pudesse refletir-nos de formas diferentes, ainda que sejamos sempre o mesmo corpo e a mesma mente.

Que perigos e guerras nos esperam? Que mistérios estelares nos aguardam? Que Monstros, que feras, que perdições? Nunca o poderei dizer e se vos contar não poderei senão mentir, ninguém o pode contar, ninguém o

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pode saber, a viagem é incerta, incerto é o local, incerta é a chegada, incertos são os meios e mais que tudo isto, incertos somos nós.

Enfim, o nosso lar deixamos, que, não tendo ele sido feito para nós, fomos nós feitos para ele e a ele o destruímos. Assim, partimos à descoberta: do infinito e de quem somos, que menos mistério não o é.

Miguel Marôco

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A Ilha

Engolia o mar aquilo que conhecera.Tinha 18 anos quando deixei a ilha. Minha mãe sempre me elogiou o

engenho. Dizia que o continente tinha portas para o mundo, e que sabia de-masiado das coisas da natureza e da matemática para ficar. Por isso, parti.

As malas, com a vida toda dentro, pesavam muito nos braços - con-sequências do conforto e da segurança de quem nunca teve de ter pressa de crescer. A mãe, o pai, a Carla e a Avó Zinda foram deixar-me ao porto. Foi a primeira e última vez que vi meu pai chorar. Feitas as despedidas, a Carli-nha atirou-se para o chão. Gritava, desalmada; não percebia por que é que o mano tinha de ir embora. Tomei-a de novo nos braços, beijei-lhe a testa e apertei-a contra o peito.

“É só ir e voltar”, disse-lhe. “Vais ver que é num ”stante”. Sorri. Os adultos sorriram de volta um sorriso triste, de quem, sem

brilho nos olhos e com a inocência já tragada pela idade, sabia das imprati-calidades da vida e que há coisas que são maiores que nós. Nunca mais vi a avó Zinda.

Acenei ao entrar. Os lenços brancos e as petúnias a ponto cruz dan-çavam nervosamente nas mãos das mulheres. Corrido o batel com os sacos pelos braços, suados do esforço, afundei-me pouco fundo na poltrona mal almofadada, mas que fora tudo para o que o dinheiro chegara. Estava grato pela oportunidade. Afastei a cortina para deixar entrar a luz do sol singela de Primavera. Lá ao longe, a Flor do Oceano, já recoberta de nuvens, ia sendo devolvida ao horizonte.

Engolia o mar aquilo que conhecera.*

Levei dois dias a chegar a Portimão e mais um a Lisboa. Arranjei um quarto perto do centro e um trabalho numa casa de pasto. Feitas as provas, ingressei na Universidade Técnica de Lisboa e passei a apanhar a camionete todas as manhãs. Durante muito tempo, estranhei a carreira - o correr dos edifícios pela janela que ocupava toda a lateral era-me tão alienígena. Ti-nham cafés, quiosques e modista, mas não eram como os da ilha. Não tinham o senhor Manuel, nem o seu rico bolo de mel. Não tinham a menina Antunes, nem as revistas da bola, nem as cadernetas de cromos de que tanto gostava em moço. Não tinham a dona Emília, abençoada seja, que fez as bainhas de todas a calças que tinha. A camionete andava e sentia-me a natureza ficar para trás.

Inevitavelmente, a camionete andava. No primeiro dia, cheguei tarde. Saí em paragem falsa e errei por Lisboa em busca de atalho que me emen-dasse o lapso. Quando finalmente me encontrei na sala, 23 minutos e 12 segundos após o prometido, fui de novo levado a sair. O professor rompeu

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em gritos, acusou-me – “palerma do arquipélago” –, de desrespeito, de in-solência, de retardo profundo das funções cognitivas; ordenou-me que de-saparecesse. Sem nada para lhe pedir para além de perdão, saí pela porta e fechei-a. Agoniado e encarnado, perdido de vergonha e de raiva, puxei as lágrimas todas para dentro, por dentro, até uma, malvada, se escapar por entre os meus dedos e pela face abaixo. Em Lisboa, não chovia naquele Se-tembro. Sem aguaceiro que me escondesse o rosto, busquei onde me escon-der, eu, mas não tinha remédio - não conhecia aquele lugar. Fui até ao pátio para me desfazer do nervoso e esperar pela próxima aula. No dia seguinte, o professor não se recordava de mim.

A paz e a calma reinstalar-se-iam com o tempo. Não obstante a mul-tidão incessante da capital, a solidão tardou em deixar-me. O desejo de fa-miliaridade, saciei-o com meias subsituições. Troquei o Parque de Santa Ca-tarina pelo Eduardo VII, a maresia pelo ar quente e sulfatado de Lisboa. A poncha, troquei-a pela ginjinha, e os arraiais pelas festas académicas. Longe dos amigos, arranjei colegas, e longe do peito de mãe, procurei os seios das moças.

Não sendo suficiente, chegou. Acostumei-me. A vida é diferente do lado de cá, mas após 35 anos, vive-se bem um Inverno sem neve. Formei-me engenheiro naval. Por nunca me ter casado, nenhuma proposta de emprego caía longe de mais. Tive a oportunidade de conhecer o Reino Unido, os Países Baixos e a Noruega, e voltei apenas definitivamente quando os ossos e as articulações não resistiam mais à oscilação climática, o ora frio, ora quente dos mares da Europa. Cresci com cada itinerário, uma expansão centrífuga, cor colocada sobre cor, mas a mais vibrante reside ainda no meu cerne.

Talvez volte para a Madeira quando chegar à reforma.

Joana Simões Figueiredo

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O Mariposa

Ele entra no pub com o casaco pendurado no braço. Eram oito horas, a noite já havia caído e ainda fazia imenso calor.

O estabelecimento parecia algo saído de um western. Salpicados pelo espaço amplo havia simples conjuntos de mesas redondas rodeadas de ban-cos e cadeiras. Da entrada ao balcão descansava um tapete encarnado de tecido rasca, mas bem tratado, estilo passerelle, onde passariam os casais e grupos de amigos antes de escolherem os sítios onde se sentariam. O chão era de madeira castanha e de brilho velho que condizia com a mobília disper-sa. No centro estava o grande balcão com uns bancos solitários alinhados e fixos no chão. Senta-se num deles, esperando que alguém o viesse atender.

Detetou um cheiro, não imediato, suave mas abundante. Não pairava no ar, mas estava gravado nas paredes, de todos os anos de fumadores que passaram por ali, – charuto de filtro de baunilha.

«Se calhar vim muito cedo, este sítio está completamente vazio.» - pensou, olhando em redor.

Uma luz palpitante capta a sua atenção no canto da sala. Inclina-se para trás para ver melhor. No canto repousava uma mesa acompanhada de um só banco contra a parede e a lâmpada por cima piscava, incessantemente.

A baixa luminosidade néon do bar confortava-o, misturada com a fraca luz dourada das lâmpadas normais, no entanto aquela luz irrequieta deixa-va-o nervoso.

Alguém surge da cozinha, trazendo copos tilintantes num grande ta-buleiro – o bartender - um senhor de idade muito aprumado, com franja encaracolada e curta dividida para os lados e um cuidado bigode grosso e pontiagudo. Apesar da aparência idosa e porte não muito grande, o ancião tinha uma estatura alta e elegante, pelo que envergava uma camisa branca enrolada pelos cotovelos e um tratado colete escuro.

Pousa os copos e pergunta sério:- Boa noite cavalheiro, vai desejar algo?- Boa noite. Uma cerveja, pode ser?!Serve-lhe uma cerveja.- Noite calma, não? – pergunta o bartender, fazendo conversa.- Aqui parece que sim, mas de caminho para cá passei por um acidente

de carro… - bebe um golo da bebida, – pelo que vi acho que morreram duas pessoas…

O senhor olha para ele quando ia agarrar um copo para abrilhantar, demonstrando um pouco de surpresa.

- Que má sorte. – comenta sério.- É verdade. – Dá mais um trago refrescante.Nas prateleiras do topo, por detrás do balcão, algo azul e pequeno

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capta a sua atenção. Uma borboleta azul néon e preta esvoaçava presa num grande frasco de vidro; a seu lado outras tantas em frascos diferentes. Re-corda-se que lera sobre elas nessa tarde, no jornal.

- Ah que engraçado… este é aquele pub conhecido pelas borboletas…- «O Mariposa». É verdade. Estas são as «Papillons Affligés» ou então,

em português, as «Borboletas de Luto».- É isso mesmo!- São muito raras. Costumam encontrar-se em cima das campas dos

mortos ou perto de coisas mortas. Dizem «chorar» aqueles que morreram sozinhos.

- Que animal tão estranho! – diz o outro.- E belo! – Acrescenta o senhor.A luz do canto era uma presença constante no extremo do seu campo

de visão, e já o incomodava.-O senhor não se importa?... – pergunta apontando para lá.-Esteja à vontade. – Esboçou um pequeno sorriso, enquanto prosse-

guia a abrilhantar os copos.Desenrolou a lâmpada e limpou o contacto à camisola antes de a voltar

a enroscar. A lâmpada acende com a luz clara e quieta para, segundos depois, voltar a palpitar.

Ele desanima e volta a sentar-se.- Não há problema, essa luz parece que tem vida própria. De qualquer

maneira, ninguém se senta ali.- Pois, de facto é um canto um pouco sombrio.- E não só. Há uma história curiosa sobre aquele lugar.O outro levanta as sobrancelhas interessado enquanto bebia da cane-

ca.- Foi num inverno chuvoso, há muito tempo, mas recordo-me perfei-

tamente. Uma senhora de casaco de pelo escuro, com um vestido vermelho lindíssimo, chegou a este bar e a primeira coisa que fez foi tentar arranjar a luz, tal como você. E eu fui o primeiro que a serviu, da primeira vez que veio.

…A luz finalmente acalmou-se, já se poderia sentar no seu canto isolado

e com boa luz. Pôs o casaco nas costas da cadeira e sacou de um cigarro.-Vai desejar alguma coisa minha senhora...? – engoliu saliva após os

olhos da estonteantemente bela mulher encontrarem os seus.Ela sorriu, expirando longamente um bafo de fumo.…- Já não me lembro do que pediu, mas recordo que ficou a fumar e

a beber, olhando para o vazio ou para a chuva, pensativa. À primeira vista parecia tão só. Mas sei que não esperava ninguém. Vinha de propósito para estar só com os seus pensamentos. Durante muitas semanas vinha todas as quintas-feiras de noite. Fazia sempre o mesmo; beber um copo e fumar; ves-

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tida sempre da mesma forma.- Que mulher peculiar!- Sem dúvida. Mas na altura, logo que eu e os meus companheiros nos

apercebemos de que ela vinha todas as semanas pontualmente, era sempre uma algazarra para ver quem a servia, ou ficava de serviço. Em pouco tem-po, ela ficou conhecida nas redondezas pela «Mulher de vestido vermelho» e inventavam-se as histórias mais fantasmagóricas sobre ela…

- Que tipo de histórias?- Oh! Lembro-me lá. Eram absurdas. Era simplesmente uma mulher

misteriosa e reservada, no entanto encantadora. Mas, pouco se sabia da mu-lher. Acho que nunca ninguém se chegou a sentar com ela ou a trocar mais do que dois dedos de conversa. Parecia simpática, mas queria ser deixada em paz. Tanto que chegar aqui ao pub era já contar com a sua presença, como se fosse a favorita peça decorativa que alguém punha na sua sala. Ao mesmo tempo que servia para dar um toque especial a uma habitação comum, era o centro das atenções.

Olhou o canto, agora obscurecido, e mesmo nunca tendo conhecido ou visto a mulher, a sua ausência estava presente. Como se ela fizesse parte do pub.

- O que é que lhe aconteceu? Ele abandonara a sua caneca metade vazia, que repousava a seu lado,

também intrigado pela peculiar mulher.- Tempo depois ela deixou de pedir bebidas. Chegava e não falava com

ninguém. Ficava simplesmente no seu canto a fumar e a olhar melancolica-mente pela janela e ninguém se atrevia a incomodá-la, até ao momento em que se ia embora.

O outro olhava-o com o olhar franzido, ouvindo atentamente.- E nunca mais me esqueço do último dia em que a vi, foi também a

última vez que veio cá, coincidindo com o primeiro aniversário de um terrível incidente.

…O bar estava movimentado e barulhento e alguém lhe pedira para com-

prar uma das borboletas. Então, ao pegar num dos frascos, este escorrega--lhe por entre os dedos, estilhaçando-se no chão, permitindo ao bichinho escapatória.

- Matty és um desastre! – comenta um dos seus colegas.- Para onde é que ela foi?!- Porque é que não te fazes de morto, a ver se ela vem ter contigo?Um cliente no balcão alerta-os a dizer que estava no canto.Ele salta o balcão com um copo na mão, vê onde pousara a borboleta

e para incrédulo; pousara no ombro nu da notória mulher, hoje vestida de preto, como se estivesse de luto. Ele aproxima-se e o mundo parece ficar silencioso perante o acontecimento. A mulher mete o indicador debaixo da

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mariposa. Com o bichinho pousado no dedo, põe-no ao nível dos olhos. Olha a pacífica criatura que parecia não ter medo dela.

- O bichinho parece gostar de mim. – sopra-o gentilmente do dedo e ela volta a pousar nele.

- Uh… lamento imenso o incómodo, minha senhora.Ela levanta-se séria sem o olhar e pousa a borboleta em cima do jornal.- Tenha o resto de uma boa noite. – vira-se e caminha para fora do

estabelecimento.Ele esperou que, ela ao passar, uma fragância a seguisse, talvez algo

suave, doce mas discreta, algo que combinasse com as suas feições seduto-ras e belas de caráter reservado. Mas não, nenhum cheiro emanou dela, nem o ar se agitou com a sua passagem, era como se ela fosse apenas uma bela miragem.

Matty segue-a com os olhos querendo dizer algo, não sabendo bem o quê. Esticou o braço com intenção de lhe dar um pequeno toque, mas não a alcançou.

De repente lembra-se da borboleta, por isso vira-se e captura-a pren-dendo-a dentro de um copo. Esta descansava na primeira página do jornal, em cima da imagem da notícia que dizia «Suicídio na Ponte Xavier faz hoje um ano - uma mulher desconhecida fora vista no ano passado a atirar-se da ponte da vila deixando para trás o seu casaco e sapatos. O corpo nunca fora encontrado».

Voltou-se para a porta do pub por onde ela acabara de sair e repara que não era sua imaginação o mundo ter ficado em silêncio – todo o pub fi-cara mudo naquele momento.

…- E ela nunca mais voltou?- Nunca mais. – confirma o bartender. E sabe o que é mais estranho?

Estas borboletas detestam os vivos e por isso é que são tão raras, porque nem com os da sua espécie gostam de estar.

Olhou-as na prateleira de cima, palpitantes, e depois para o canto som-brio, com um pequeno nó no estômago.

- Ah! o senhor está a contar-me uma história…- Não, meu caro. – sorriu. - A mulher foi tão real como eu e este velho

balcão. Ambos a vimos.Entre os dois forma-se um estranho silêncio.A luz do canto para o movimento inquietante de acender-apagar, fican-

do acesa e quieta, capturando a atenção deles os dois.Ouve-se alguém entrar no pub.

Sara Guerra

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Sem título

Sentada no banco ferrugento e frio ao toque, ela contemplava as pes-soas que estavam na estação. Sem contar com ela, havia três naquele espaço sombrio e deserto. De pé, elas contemplavam a linha do comboio, desejosas para que este aparecesse. As pontas dos sapatos de cada uma estavam sus-pensas na extremidade da plataforma, criando uma certa ansiedade à meni-na, como se um pequeno movimento brusco, uma pequena brisa, um peque-no espirro, pudesse fazê-los cair, perturbando o caminho do comboio.

Ao contrário delas, ela estava paciente. Não se revelava desejosa, es-perançosa, ansiosa para que o comboio aparecesse por detrás da pequena colina que tapava o resto do caminho do comboio, que se encontrava a norte. Ou a sul, interrompendo um vasto campo de pequenas flores brancas, rode-ando umas linhas de ferro, como uma grande cicatriz por sarar, tornando a sua visão um tanto calma e angustiante.

Apesar da delicadeza das pequenas flores brancas, como estrelas ca-ídas do céu, a sua beleza era escura, sem cor, sem entusiasmo. A menina olhou para o céu, a causa desse asqueroso efeito. Nuvens escuras como breu faziam com que o céu azul e o sol escaldante fossem apenas algo retirado de uma fantasia, de um sonho do qual não se quer acordar, pois, se o fizermos, saberemos que nunca mais veremos essa paisagem repousada por detrás das nossas retinas. Deste modo, era impossível, para a menina, saber se aquele momento fazia parte de uma noite preguiçosa ou de uma manhã adormecida. Sombras alastravam como fariam numa noite, e a luz suspirava pelas nuvens, quase opacas, como o início de uma tempestade numa tarde de agosto. Uma pequena voz na cabeça de menina avisava que ia chover, colocando-a ansiosa pelo facto de a estação não possuir telheiros. No entanto, outra, posicionada no outro lado da sua mente, dizia que as nuvens iriam passar, deixando os raios de sol repousarem nela, aquecendo-a.

Um som estridente sussurrou nos pequenos ouvidos da menina, dei-xando os seus pensamentos fugir com o vento.

Era o aviso do comboio a chegar, vindo do norte. Entusiasmada, embora desconhecendo a origem desse sentimento, a

menina colocou-se entre as três pessoas, pronta para entrar no que parasse à sua frente. Claro que seria um velho comboio, rabugento, queixando-se das rodas pouco oleadas por cima dos carris. Mas não. Pelo menos um comboio não era. À sua frente, repousando na vista da criança, uma carruagem, sem maquinista, parou suavemente, como se tivesse todo o tempo do mundo. Sem ter tempo para pensar, ela sentiu a pequena multidão a entrar, com al-guma rispidez e rapidez, à sua volta, obrigando-a igualmente a entrar. Num momento, estava na plataforma, de cabeça ligeiramente inclinada como um pequeno cão com as suas pequenas dúvidas acerca dos truques que lhe estão

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a ensinar e, no outro, estavam as portas de uma carruagem, com uma certa idade, a fecharem-se por trás das suas costas.

Com uma certa calma, a menina observou a carruagem, identificando, instantaneamente, as três pessoas, de cabeças baixas, irreconhecíveis. Era apenas uma carruagem normal, aborrecida, apesar da ausência de um moto-rista, tornando, assim, a causa de ansiedade da menina.

Contudo, as três pessoas, claramente mais velhas do que ela, estavam calmas, não tendo quaisquer problemas quanto à causa da ansiedade da menina. Aliás, estavam tão calmas que nem olhavam para as janelas, para cada um, para a própria menina. Pareciam desconectadas, desligadas do que estava a acontecer, como se se quisessem raspar a si próprias do mundo, deixando apenas um pequeno relevo, irrelevante para algo tão grandioso e detalhado como o próprio mundo.

Procurando obter alguma paz e sossego, a menina sentou-se numa das pequenas cadeiras vermelhas, encostadas perto da porta por onde entrou. Respirando fundo, varrendo tudo o que passava pela sua pequena e inocente cabeça, começou a olhar para a janela, a qual revelava uma paisagem com-pletamente diferente à da estação. Um campo repleto de flores secas por dentro tornou-se num conjunto de diversos prados, repletos de campos bem cultivados, contendo abóboras, vinhas, castanheiras vestidas de folhas de co-res quentes, e heras, devorando as cercas que dividiam cada um dos campos. O céu, desconcentrante, tornou-se num de um final de uma tarde nublada de setembro, cobrindo a paisagem com uma luz quente e cansada.

Um som celestial choveu em cima dela, assustando-a por breves mo-mentos. Olhou para a origem do som e verificou um sino atado por vários fios, todos entrelaçados no teto, todos eles, por fim, desmaiando por cima das paredes.

A carruagem começou a abrandar, estacionou ao lado da plataforma de uma pequena aldeia, que preenchia parte da paisagem alaranjada e inóspita com movimento. Crianças, homens e mulheres andavam e corriam, alegres por estarem ali com as pessoas que conhecem e que amam, criando memó-rias, criando acontecimentos, criando instantes preciosos, que nunca irão esquecer.

À sua frente, a porta abriu-se e um dos adultos que a acompanhou naquela viagem posicionou-se diante desta, pronto para sair.

- Desculpe, mas para onde vai? – perguntou a menina, curiosa.O velho de sobretudo, com um ar cansado e com olhos vidrados na

plataforma à sua frente, respondeu sem hesitar:- Vou para onde me faz feliz.Sem esperar pela resposta da menina, o velho homem, apesar de frágil

e carrancudo, saiu rapidamente da carruagem, pronto para pousar os pés na plataforma daquela pequena aldeia. Como a reação de um pardal, ouvindo

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o mais pequeno som, a carruagem arrancou, não largando a mais pequena nuvem de fumo.

Ela tentou ver, através da janela, com quem é que o velho homem se iria encontrar, mas a sua visão, com a velocidade da carruagem a prejudicá--la, apenas conseguiu captar duas pequenas crianças, talvez da mesma idade dela, agarradas uma à outra, como se já não se vissem há vidas.

Ela queria questionar onde estaria o velho, mas a paisagem, repenti-namente, mudou, fazendo desaparecer aquele pequeno quadro de abóboras e da pequena aldeia, tal como os seus pensamentos. Em vez, traços citadinos pingavam por colinas de erva seca, tornando a paisagem baseada em montes acastanhados, salpicados de tratores ferrugentos, bicicletas velhas desfaleci-das no chão e uma pequena loja de penhores. Em comparação com as outras paisagens, o céu estava escuro, apesar de a cor escura ser de um tom de uma madrugada de fevereiro. Com esse efeito, a visão da pequena parecia tenebrosa, tornando-se um tanto asfixiante, como se aquela paisagem, por mais caminhos que percorrêssemos, nos levasse a um beco sem saída.

O pequeno sino voltou a tocar. Os pequenos pensamentos da criança voltaram a abandoná-la e a carruagem, com cuidado, abrandou, parando ao lado de uma estação engolida por pessoas. Apesar do horizonte abandonado que acompanhou a carruagem durante a viagem, a estação mostrava que aquela localidade era enorme, tal como aquela estação, tal como aquele mar de pessoas apressadas, pacientes, alegres e insatisfeitas. Quando a carrua-gem estacionou ao lado da estação, um dos adultos levantou-se, posicionan-do-se perto da porta, paciente, para que esta se abrisse.

- Desculpe, para onde vai? – questionou a menina, agora incerta de que a resposta do adulto lhe mataria a curiosidade.

Um homem, com um impermeável por cima de um fato e gravata ver-melha com uns padrões, observou-a, perguntando-se se aquela menina já estava naquele lugar antes de ele se levantar.

- Para onde me faz feliz, ora! A voz ríspida do homem atravessou o corpo da menina, arrepiando-

-a. Antes que ela pudesse dizer algo, ele saiu, em passo de corrida, engo-

lido pela multidão, notando uma diferença enorme entre o homem e o mar de pessoas, ou seja, o facto de ele saber qual era o seu destino.

A menina queria saber para onde ele ia, agora que tinha saído do transporte, mas, tal como antes, a carruagem arrancou, fazendo com que aquela paisagem fosse engolida pela linha do horizonte atrás dela.

Ela ajeitou-se no banco, um pouco inquieta. Só restava ela e uma outra figura, naquela carruagem, percorrendo um destino sem conhecer o caminho. Ou talvez haja um destino, pelo menos para a pessoa desconhecida, porque a menina nunca tinha pensado no destino dela, nunca pensou no momento

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em que iria puxar um daqueles cordéis que ligavam ao sino, fazendo-o retinir. Nunca pensou na hipótese de haver um caminho para ela, ligando-a a um destino óbvio, do qual ela estaria à espera. Nunca questionou o que tem de ser questionado no início de uma viagem.

Algo cintilante, no outro lado da janela, despertou a sua curiosidade de criança. O prado seco tinha desaparecido, ficando, em seu lugar, uma cordi-lheira e um grande lago cristalino, perturbando uma manta de prado verde, espalhados pelo horizonte. O lago brilhava, tal como o cume das montanhas, cobertas de neve branca, como que acabada de cair. Contudo, o céu estava escuro, como um céu de uma tempestade no meio do mar, levando a menina a interrogar-se de onde provinha aquele brilho dado pelo lago desconcentran-te e pelo gelo arrepiante.

O som, agora desconfortável para a menina, gritou por toda a carru-agem e, nesse momento, a menina conseguiu ver, no meio do verde, perto das linhas de ferro, uma plataforma de madeira improvisada. Apesar de esta estar localizada no meio do desconhecido e abandonado, uma mulher, de vestido branco, realçando o seu longo cabelo preto, esperava, de pé, que a carruagem parasse. Como que em resposta, a última figura levantou-se, po-sicionando-se no mesmo sítio dos outros dois adultos.

- Por favor, diga-me para onde vai. – disse a menina, não perdendo a esperança de ouvir uma resposta que fizesse sentido à sua jovem men-te.

Uma velha levantou o capuz do seu poncho de lã violeta, revelando uma cara alegre, ansiosa e divertida, como se o tempo que esperou para que aquele momento acontecesse valesse a pena.

- Para onde é que achas que vou? – respondeu a velha mulher, com um sorriso quente que revelava alegria e conforto.

A menina hesitou, não sabendo o que dizer. Ela não sabia a resposta, foi por isso que perguntou à mulher para onde ela ia. Como é que a pobre menina saberia? Como é que a menina poderia responder àquela pergunta, a qual foi a resposta à sua pergunta?!

As portas abriram. A mulher, não esperando pela resposta da menina, saiu. As portas fecharam. E a carruagem arrancou. Mas, antes disso, a meni-na desviou os olhos para a plataforma improvisada, deparando-se com duas mulheres, ambas com o mesmo cabelo preto, a rirem e a abraçarem-se uma à outra, como se a chegada da velha fosse esperada há muito.

Sem esperar pela reação e pelas ideias e pensamentos que se criavam dentro da criança, a carruagem fez mudar aquele plano vazio e frio para um completamente diferente dos outros. Era uma paisagem indiferente. Uma paisagem típica, uma paisagem quotidiana, uma paisagem que não transmite quaisquer sentimentos ao público.

Mas não era a paisagem que a incomodava. Não era a carruagem vazia

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que a incomodava. Não era o som das rodas a chiar que a incomodava. Ela sentia um peso por cima de si, vindo do sino. Sentia que aquele sino cairia sobre ela a qualquer altura e que a marcaria, a feriria, apesar de ele não ser maior do que um punho. Sentia-se a afundar no assento, mergulhando-a num mar de inquietação e desconhecimento. Ela não sabia para onde ir, não sabia quando deveria tocar o sino, não sabia se a carruagem pararia se ela não tocasse. Não sabia o que devia fazer.

Devagarinho, tentou concentrar-se na sua respiração.Com calma, fechou os olhos, bloqueando tudo à sua volta. Tornando a

paisagem escura, não conseguindo ver um palmo.Ela não via nada, não sentia nada, não ouvia nada.No meio do desconhecido, um sino começou a tocar.

Mafalda Sebastião

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Viagem Sentimental

Penso que estou finalmente preparado para vos falar de um certo sen-timento que me levou a passar tanto pela melhor, como pela pior experiência da minha vida. À primeira leitura parece um pouco “cliché” ou até mesmo la-mechas demais, certo?! Na verdade, posso-vos assegurar que é mesmo disso que se trata, de uma história lamechas, a fim de vos conseguir transmitir de que maneira o dito sentimento tanto vos pode fazer a pessoa mais feliz do mundo, como vos pode fazer infelizes, como vos pode magoar psicologica-mente, ou usando um termo mais adolescente, por dentro.

Provavelmente já devem ter assumido que vos vou falar de uma his-tória de amor. Mas além de ser muito mais que uma simples história, vou ter de começar por vos contar que é a minha.

Ainda me lembro daquele dia como se tivesse sido ontem. Tinha aca-bado de mudar de turma e era o primeiro dia de aulas. Começara extrema-mente bem… pois cheguei vinte minutos atrasado depois de uma larga pro-cura pela minha sala de aula! Após uma curta, porém mortífera humilhação por uma reduzida turma de humanidades, por fim consegui dirigir-me à sala correta com a ajuda de um muito atencioso e simpático funcionário. Entrei pela porta com a vergonha em si a encarregar-se de fazer o seu trabalho em mim depois do sucedido, e na terceira mesa da fila do meio lá estava ela. Foi a primeira vez que a olhei nos olhos, e ela já se ria de mim, depois de ter esclarecido à professora a razão do meu tremendo atraso, bem como a toda a turma. Decidi reagir com um falso sorriso a cobrir-me a face como forma de mostrar a minha cortesia altamente formal, que se seguiu pela minha imedia-ta procura por um lugar vazio para me sentar. Alguns minutos depois voltei a pôr os meus pequenos olhos castanhos sobre ela, enquanto a professora a esclarecia em relação a uma dúvida.

Dois dias depois fomos devidamente apresentados por um amigo em comum. Penso que nunca estive tão nervoso perante uma rapariga em todo o meu decurso amoroso, uma rapariga que nem conhecia na altura. Depois dos comuns dois beijinhos, imediatamente fiquei sem palavras e sem reação para um simples “como estás?”... Tudo isto devido a um único e perfeito sorriso que ela me mandou sem qualquer intenção de me afetar com a reação que tive. Foi a partir desse inesquecível momento que começou a minha história de amor, que nos começámos por conhecer melhor, apaixonámo-nos perdida-mente como nunca teríamos feito antes nas nossas vidas.

Houve um dia simplesmente espetacular que tenho de vos contar obri-gatoriamente. Nunca me irei fartar de contar esse dia. Já era inverno e as chuvas bem como o frio já caíam sobre a Terra naquela altura. Tínhamos combinado estar juntos no sábado daquela semana, pois era o único dia em que ambos estaríamos livres e a meteorologia estaria do nosso lado. Eram apenas dez da manhã e eu já estava a caminho da casa dela, pois a sua mãe desejava conhecer o famoso rapaz de quem a sua filha tanto falava, acaban-do eu por ser convidado para um tradicional almoço de sábado em família,

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mesmo não fazendo parte dela. Mais uma vez voltei a ficar supernervoso, po-rém desta vez por uma outra razão: conhecer os pais da rapariga com quem namoras é o derradeiro pesadelo de qualquer adolescente possuidor do órgão sexual masculino. Cumprimentos, beijinhos, conversas durante a refeição e despedidas se passaram naquelas poucas horas, que seriam seguidas de uma boleia por parte da mãe dela para Lisboa, pois ficou decidido que passaríamos o dia na capital.

Pouco me lembro dos pormenores a ponto de vos conseguir contar, mas certamente nunca me esquecerei daquele dia. Passeamos pela cidade no decorrer de uma tarde, visitamos o enorme Parque Eduardo VII enquanto nos deliciávamos com um gelado, e acabamos a tarde a visitar o Jardim Zoo-lógico, pois fora-me dito por parte dela há algumas semanas atrás que sentia imensas saudades do Zoo! Pouco depois das oito horas da noite, levei-a a jantar a um restaurante que considerava razoavelmente barato e românti-co para miúdos de 16 anos apaixonados, a fim de lhe conseguir dar aquele famoso jantar romântico e amoroso com que todas as raparigas sonham. Toda a noite ela não soltou uma única palavra em relação ao meu “puro ato de amor” e eu comecei a pensar que todo o trabalho, esforço e dinheiro te-riam sido em vão e que podia apenas tê-la levado a um mero e insignificante restaurante de , que o seu comportamento e reação teriam sido idênticos. Apenas alguns segundos depois de abandonarmos o restaurante, a soltar enormes gargalhadas reagindo instintivamente a piadas e histórias contadas, iria vir a descobrir que estava altamente enganado e errado, pois ela saltou para os meus braços e apertou-me com tanta força como se o chão estivesse a desaparecer e eu fosse o seu porto seguro e exclamou com pura felicidade a correr-lhe as veias:

- Obrigado, obrigado, mil vezes obrigado por este dia, amo-te muito! Desta vez eu não fiquei sem reação e sem palavras. Desta vez eu abra-

cei-a de volta e disse que a amava. De repente senti-me feliz como nunca antes. Já namorávamos há algum tempo, mas naquele momento senti-me diferente.

E pronto, penso que a partir daqui poderei falar de uma forma mais abrangente e geral. Estávamos apaixonados e, tal como todas as outras pes-soas que o estão, queríamos permanecer assim, felizes e sem problemas. E acreditem que o fomos realmente, até chegarem os inevitáveis problemas, e é praticamente até aqui que o amor nos faz a pessoa mais feliz do mundo.

Fazia cerca de 10 meses e meio que estávamos juntos, e foi a partir desta altura que a parte “pessoa mais feliz do mundo” se tornou um pouco mais relativa. Os erros e discussões tinham começado há poucas semanas e por esta altura já ambos estávamos saturados e com vontade de fazer algo em relação à situação. Até que um mês depois, um mês cheio de conversas sérias e discussões, decidimos mutuamente que estava na hora de acabar-mos, que todas as discussões e distúrbios tinham sido um sinal do Universo de que talvez não estivéssemos destinados a permanecer juntos e felizes. E aqui, sim, entra a parte “destruir totalmente por dentro”.

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Passaram semanas e as saudades, a dor e a tristeza pareciam não diminuir de todo e foi necessário muito esforço e más e boas decisões para ambos ultrapassarmos esta fase. A verdade é que meses se passaram e ainda não trocamos nem uma única palavra depois daquele dia horrível.

Posso sem qualquer dúvida afirmar que foram os piores meses que já vivi, nunca me senti tão magoado e tão em baixo, até que um dia acordei e pensei para mim mesmo que já chegava de sofrer por uma rapariga, que estava na hora de agir por mim e seguir em frente com a minha vida. Então, por maiores que fossem as saudades de todos os momentos e brincadeiras, com uma enorme ajuda e apoio de uma das melhores amigas que tenho, fi-nalmente consegui chegar a um estado em que consigo realmente estar feliz e animado. Já era tempo de voltar a sentir-me bem comigo próprio. Ainda hoje lamento o facto de a amizade não ter permanecido entre nós, de não nos conseguirmos ter resolvido na altura para no mínimo ficarmos amigos, pelo menos assim que ambos melhorássemos. Por momentos pensei em ten-tarmos outra vez, mas antes de acabarmos prometemos um ao outro que ficaríamos amigos independentemente do que sucedesse, tal como todos os outros casais, e nem essa promessa conseguimos manter, muito menos dar-mos outra oportunidade ao que tínhamos. Rapidamente tirei essa ideia da minha cabeça.

Onde quero chegar com tudo isto é que, para além de terem sido os melhores 11 meses de sempre enquanto a tinha ao meu lado, também foram os piores quatro quando acabámos e nos afastámos da pior maneira possível. Verdade seja dita, no início pareceu-me verdadeiramente ter encontrado a melhor rapariga deste planeta, aliás, a única que existe mesmo e, sim, fui mesmo feliz como nunca, mas infelizmente tivemos de lutar contra obstácu-los que nos derrotaram de uma maneira bruta. Indo ao objetivo de toda a história, o amor não é só o que vemos nos filmes tradicionais de romance e drama do famoso Nicholas Sparks, altamente adorado por casais apaixona-dos de morte que gostam e desejam ver filmes tristes que contam histórias de amor a fim de fortalecerem o que quer que seja daquilo que partilham ao chorar abraçados num sofá enquanto comem pipocas ou qualquer outro tipo de snack, mas também é, e na maior parte das vezes, o sentimento mais cruel possível e capaz de deixar alguém de coração partido sem qualquer rumo de vida depois de meses ou anos de felicidade. Se realmente leram tudo isto, apenas vos aconselho a escolher com muito cuidado a quem se vão entregar totalmente de coração e alma e, antes de darem o passo seguinte, tenham a certeza de que pode mesmo resultar e de que podem ser mesmo felizes, pois o resto estará nas mãos do destino, se é que acreditam neste. Para aqueles que já encontraram a sua alma gémea, desejo-vos o melhor possível e peço--vos que nunca parem de dar valor total a essa pessoa que decidiram amar. Por fim, aproveitem ao máximo todos os momentos e segurem-se bem, pois encontrar alguém com quem podemos contar, amar e confiar tudo o que te-mos é mais difícil do que parece.

Bernardo Silvestre

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um conto … a condição humana

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divulgação

11. Divulgação

7 mil milhões de outros

Até 8 de Fevereiro pudemos encontrar no Museu da Electricidade o mundo. Um projecto iniciado em 2003 pelo jornalista Yann Arthus-Bertrand, que inclui seis mil entrevistas filmadas em 84 países. O projecto deu origem a várias exposições, incluindo a de Lisboa, mas passando também pelo Museu das Caraíbas em Baranquilla, por A Galeria em Seoul, pelo Grand Palais em Paris. Também espalhados por todo o mundo, os entrevistados responderam às mesmas perguntas, sendo o resultado uma deslumbrante miscelânea de visões sobre a vida.

“Todos no planeta somos incapacitados de uma maneira ou de outra, espiritualmente, fisicamente ou mentalmente. Eu fiquei com a parte fácil”. Estas são as palavras do indonésio Bruno, que afirma ter feito mais desde que está numa cadeira de rodas do que fora dela e que partilha connosco a sua maneira de viver, dando valor ao que se tem. Esta é apenas uma entre os milhares de histórias que podemos ouvir através do sítio do projecto (http://www.7billionothers.org/) e que pudemos ver projectadas em grande no Museu da Electricidade. A exposição aborda temas universais que passam pelo amor, pela agricultura, pela igualdade/desigualdade de género, pela educação, pelo sentido da vida e pela morte. Esta variedade de temas permite detectar os traços que separam as várias culturas e pessoas, mas também aqueles que as unem. A procura por um sentido, pelo amor, pela ascensão, pela liberdade é abordada por quase todos os entrevistados, independentemente de serem portugueses ou tibetanos. Todos falam do que perderam e do que ganharam e daquilo que a vida lhes ensinou.

Aquilo que, para mim, mais sobressaiu na exposição foi o facto de não haver um interlocutor. As entrevistas são projectadas sem estarem seguidas por comentários ou respostas. Desta maneira o expectador pode ter as suas próprias e livres opiniões sobre o que vê e o que ouve, podendo deixar-se levar pelas imagens e palavras daqueles que lhe são tão distantes e simulta-neamente tão próximos.

É muito difícil não sair de uma exposição assim comovido e até com uma nova prespectiva de vida e destes 7 mil milhões de outros que nos rodeiam. O que é ser-se humano, afinal? O que nos aproxima e o que nos afasta? Aquilo que para mim, jovem portuguesa de dezoito anos não faz sen-tido poderá fazer para uma senhora cambojana de oitenta. Ver estes vídeos é também tomar consciência da imensidão do mundo e do quão minúsculos nós somos como indivíduos, bem como da quantidade de “outros” com outras visões e outros sonhos. É descobrir amigos e inimigos, modelos a seguir em pessoas que nunca antes vimos e que no entanto nos inspiram com as suas palavras.44

Maria Bénard da Costa Lindley Cintra

(44) Este texto foi escrito com a grafia anterior ao Novo Acordo Ortográfico.

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fotografia - Cyclus | Joana Figueiredo

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fotografia - Porto | Martim Alexandre

Nenhuma arte simula a vida como o cinema. Todavia, não é uma vida. Também não é propriamente uma arte. Porque é uma acumulação, uma síntese de todas as artes. O cinema não existiria sem a pintura, sem a literatura, sem a dança, sem a música, sem o som, sem a imagem, tudo isto é um conjunto de todas as artes, de todas sem exceção.

Manoel de Oliveira in Vitruvius, 2004

Nada é verdadeiramente satisfatório. Mesmo a arte a que um artista é vocacionado, e sobre a qual e para a qual vive, está sempre aquém do seu desejo. Nunca atinge aquele nível, aquele andar que desejaria. Está sempre a tentar, a aproximar-se do limite das possibilidades. No fundo, do absoluto. Um absoluto que se não atinge, [que se] ignora mesmo. A única coisa que sabemos ao certo é: ninguém nasce senão para morrer.

Manoel de Oliveira in 'Selecções do Reader's Digest, 2005

E termino por aqui. Escrevi, … disse muita coisa…, não terei falado de tudo, porque nem tudo vem à memória, mas fica o essencial, …. Enfim, falar de nós próprios não é tarefa fácil, é preciso uma predisposição muito particular e nem todos os momentos nos servem. De mim, propriamente dito, disse pouco, porque de mim também sei pouco. Para falar de mim, nada melhor do que os meus filmes…

Manoel de Oliveira(excerto de autobiografia inédita)

in Jornal de Letras Artes e Ideias, abril, 2015

Manoel de Oliveira1908-2015

… se mesmo nenhuma obra está absolutamente concluída, cada criação muda, altera,esclarece, confirma, exalta, recria ou cria de antemão todas as outras.

Se as criações não são algo adquirido,não é apenas porque, como todas as coisas, passam,é também porque têm quase toda a vida à sua frente.

Merleau-Ponty, in O olho e o espírito