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PRISCILA SCHACHT CARDOZO

QUEM NÃO PODE COM MACUMBA, NÃO CARREGA PATUÁ!

O surgimento da Umbanda

e suas influências kardecistas e africanas

no Brasil (1920 - 1960)

Trabalho de Conclusão do Curso, apresentado para obtenção do grau de graduada no Curso de História da Universidade do Extremo Sul Catarinense, UNESC, em novembro de 2006.

Orientador: Antônio Luiz MirandaCo-Orientador: Ivan de Souza Ribeiro

Esta publicação da Anarquistas Contra o Racismo Edições pode ser divulgada, copiada suas partes, desde que citada a fonte.ACR Edições – Abri de 2017.

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Quem é Priscila Schacht Cardozo

Mestra em Saúde Coletiva pela Universidade do Extremo Sul Catarinense - Unesc, possui

graduação bacharel em Serviço Social pelo Centro Universitário Leonardo da Vinci

(2012) e graduação em História (bacharel/licenciatura) pela Universidade do Extremo

Sul Catarinense (2006). Pós graduada em Gestão em Saúde (UFSC) e pós graduada em

Educação, Diversidade e Redes de Proteção Social (UNESC - Bolsista UNIEDU).

Trabalhou como assistente social na Secretaria de Assistência Social de Balneário Rincao

(CRAS e Setor de Habitação), e atualmente atua como assistente social na ABADEUS

(captação de recursos e setor de habitação) e tem militância política na ONG ACR -

Anarquistas Contra o Racismo (direitos humanos), conselheira no Conselho Municipal

de Saúde de Criciúma (2015-2017), integrante da Grupo de Apoio e Estudos à Adoção de

Criciúma, Conselheira no Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial de

Criciúma (2015-2017). Tem experiência na área de saúde mental, atenção psicossocial,

direitos humanos (diversidade sexual, negritude, pessoa com deficiência, luta

antimanicomial), serviços socioassistenciais (CRAS, CREAS), rede intersetorial, controle

social, mobilização comunitária, gestão, monitoramento e avaliação de projetos.

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Ao meu companheiro Ivan de Souza Ribeiro.

À minha mãe de santo “Mãe Zeli” (Ialorixá

Maria Zelir Roecker Orácio).

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AGRADECIMENTOS

Agradeço ao meu companheiro Ivan de Souza Ribeiro pela co-orientação neste

trabalho; por sempre estar disposto a participar desta construção, pelos tantos incentivos para

que fosse possível esta pesquisa. Muito obrigada!

Agradeço, em especial, à “Mãe Zeli” por ter aberto as portas de seu terreiro; ter me

iniciado na religião; ter depositado total confiança neste trabalho e pelos incansáveis

incentivos ao desenvolvimento desta pesquisa. Muito obrigada!

Agradeço a D. Antoninha (in memorian) pela inspiração. Declaro minha admiração em

seu empenho de uma vida toda dedicada à religião; pela sua simpatia e simplicidade; pela sua

paciência e pela força enquanto mulher, negra e yalorixá. Muito obrigada!

Agradeço a professora e amiga Edelu Kawahala por tantos materiais emprestados (sem

data de devolução!!!); pela confiança, pela paciência e pelas longas horas de conversa, contos

e causos sobre as religiões africanas.

Agradeço a Sonete Terezinha do Canto, pela inspiração e referência enquanto força e

garra na luta anti-racista em todos os seus âmbitos!

Lembro aqui algumas pessoas importantes durante minha graduação: Déia (Andréia

Gerônimo) ex-secretária do Departamento de História que com toda sua paciência e dedicação

sempre esteve presente nestes quatro anos de graduação; alguns “sauros” (formados) da

História da Unesc: Wagner (pelo exemplo de ‘seja vc mesmo!’) Charlene e Anselmo (pela

caminhada dentro do antigo Movimento Estudantil).

Agradeço em especial a duas amigas historiadoras: Stelinha Zuanazzi (minha

companheira de bares, conversas, desabafos durante a graduação - saudades !!!) e a Cibeli dos

Anjos Bueno (amiga de toda a vida! – longe ou perto!)

Agradeço ao Profº Nivaldo Goulart que durante toda a graduação só fez crescer minha

paixão pela História do Brasil; também pelos incentivos incessantes à leitura! E também ao

Profº João Batista Bittencourt pelo exemplo de dedicação e competência como historiador.

Muito obrigada! Ao “Lê Mirande” (Antônio Luis Miranda) que sempre confiou em meu

trabalho, orientador, amigo e incentivador.

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Eu vou, eu vou,

Eu vou mandar chamar meu povo

Eu vou, eu vou,

Eu vou mandar chamar meu povo

Vou mandar chamar meu povo

Lá nas sete encruzilhadas

Vou mandar chamar meu povo

Sem exu não se faz nada!

Alupandê omobijá ! Exu ê!

Laroiê ! (oh dono da força!)

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RESUMO

A partir do surgimento da Umbanda no Brasil, nos anos 20, esta pesquisa discorre sobre a construção e fortalecimento desta religião que tendo matrizes tão distintas quanto múltiplas recebeu influências de várias delas, tais como: kardecistas, africanas, católicas, indígenas, dentre outras. Os caminhos percorridos a partir destas influências, as permanentes tentativas de afastamento da Umbanda de sua matriz africana e as várias tendências que resistem a este afastamento, resistindo inclusive as sistemáticas perseguições que constantemente se recrudescem. Nesta pesquisa busca-se entender as formas de resistência construídas pelos praticantes desta religião para poder continuar a manifestar suas crenças. O período abordado na pesquisa de 1920 a 1960 engloba o período crucial em que a religião é implantada no Brasil e coincide com as mudanças culturais e políticas perpetradas pelos políticos gestores do Brasil a partir dos anos 40.

Palavras-chave: Umbanda. Macumba. Quimbanda Religiões-afro brasileiras. Negros/as.

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SUMÁRIO

Introdução ............................................................................................................................. 091 Cristianização e sincretismo nas religiões afro-brasileiras ................................................ 122 O surgimento da Umbanda ................................................................................................... 163 Influências kardecistas e africanas na Umbanda................................................................... 244 Conclusão ............................................................................................................................. 355 Referências bibliográficas .................................................................................................... 386 Bibliografia complementar ................................................................................................... 40

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INTRODUÇÃO

Tem-se por objetivo nesta pesquisa entender como deu-se a formação da Umbanda, a

partir da década de 20, e o processo de influências kardecistas e africanas a partir da década

de 40 até 1960. Esta pesquisa terá como fonte principal a pesquisa bibliográfica a partir de

vários autores/as que debruçaram e se debruçam a várias décadas buscando entender como se

deu o processo de formação da mais popular religião afro-brasileira, no caso a Umbanda.

A idéia central da pesquisa que ora é apresentada deu-se início a partir de meu contato

com as religiões de matrizes africanas em Criciúma no ano de 2003 e minha iniciação na

Umbanda (como filha-de-santo) em 2005 e também projetos de pesquisa aos quais participei

em 2005 a cerca da temática. Outro ponto fundamental para a construção desta pesquisa foi o

de perceber que ao longo de minha vida acadêmica pouco, ou quase nunca, percebi a presença

de temas como religiões e culturas africanas, serem tratados com a devida importância no

currículo como um todo. Quando sempre a esfera econômica se sob pôs a outros aspectos,

tanto pelos acadêmicos como pelos professores.

No entanto, reconstruir o processo histórico da instalação das religiões de matriz

africanas não é, contudo, uma tarefa fácil. Primeiro, porque sendo religiões originárias de

segmentos marginalizados em nossa sociedade (como negros, índios e pobres em geral) sendo

perseguidos durante muito tempo (e até hoje!), há poucos documentos ou registros históricos

sobre elas. E, entre esses, os mais freqüentes são os produzidos pelos órgãos ou instituições

que combateram essas religiões e as apresentam de forma preconceituosa ou pouco

esclarecedora de suas reais características.

As religiões de matrizes africanas são detentoras de muitas particularidades, tratam-se

de religiões cujos princípios e práticas de doutrinas são, em geral, estabelecidas e transmitidas

oralmente. Não há nelas livros sagrados que registrem suas doutrinas de forma unificada ou

sua história.

Ao lado destas dificuldades, ainda existe o preconceito e a discriminação religiosa. As

religiões de matrizes africanas por serem religiões de transe, de sacrifício animal e de culto

aos espíritos (portanto, distanciados do modelo oficial de religiosidade dominante em nossa

sociedade), têm sido associados a certos esteriótipos como “magia negra”, “coisa do diabo”,

“macumba”, por apresentarem geralmente uma ética que não se baseia na visão dualista do

bem e do mal estabelecida pelas religiões cristãs, segundo Vagner Gonçalves:9

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[esteriótipos] reforçados pelos primeiros estudiosos do assunto que, influenciados pelo pensamento evolucionista do século passado (cujo modelo de religião “superior” era o monoteísmo cristão), viam as religiões de transe como formas “primitivas” ou “atrasadas” de cultura1.

Este trabalho será arquitetado em três partes principais: no primeiro capítulo será

baseado na idéia do sincretismo e cristianização as religiões afro-brasileiras; no segundo

capítulo será trabalhado com a questão histórica da formação e instalação da Umbanda no

Brasil na década de 1920; no terceiro capítulo será analisada as influências kardecistas e

africanas na Umbanda na década de 1940 a 1960.

A escolha a Umbanda como manifestação religiosa a ser analisada deu-se tendo em

vista minha inquietação diante da bibliografia produzida a cerca do assunto, e de meu contato

com a Umbanda em Criciúma, onde percebe-se vários tipos de Umbanda e a discriminação da

sociedade em relação a Quimbanda e aos Exus e Pomba-Giras.

No entanto, quando utilizado o termo “religiões de matriz africana” será com o intuito

de designar todas as religiões que tem sua formação na África e foram introduzidas no Brasil.

Optou-se por este termo, pois denominar individualmente as religiões de origem africanas

estabelecidas no Brasil é um tanto quanto difícil, tendo em vista que cada região geográfica

tem denominação própria para uma mesma religião, por exemplo: Candomblé na Bahia,

Nação no Rio Grande do Sul e Xangô em Pernambuco, são matrizes do Candomblé da África

com cerimônias semelhantes as da África e que no Brasil absorveram costumes e hábitos

locais, realizando assim uma resignificação mantendo suas bases fundamentais.

Os principais autores a serem pesquisados durante este trabalho foram: Ortiz,

Tramonte e Magnani. Pois acredito que estes expressam as idéias que gostaria de trazer a

público acerca do tema. Ortiz, em sua obra “A morte branca do feiticeiro negro” traz a tona a

questão do embranquecimento da Umbanda durante sua formação no Brasil, já Tramonte

(“Com a Bandeira de Oxalá”) trará a discussão da Umbanda para o cenário catarinense, e

Magnani (“Umbanda”) faz sua crítica bastante ferrenha acerca do embranquecimento e das

origens da Umbanda no Brasil.

Tenho plena certeza de que este trabalho é apenas uma introdução à discussão sobre as

religiões de matrizes africanas na academia, pois devido ao tempo e as condições em que

foram escritas estas páginas fica aqui apenas um painel da discriminação e preconceito que o

1 SILVA, Vagner Gonçalves. Candomblé e Umbanda. São Paulo: Editora Ática, 1994. p.13.

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povo-de-santo sofre ao cultuar suas crenças e principalmente, fica o convite para uma viagem

em tamanha riqueza cultural que estas manifestações religiosas trazem!

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1 CRISTIANIZAÇÃO E SINCRETISMO NAS RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS

Quem tem sangue de cabocloEu quero ver balancear

Balanciei caboclo balanciaOkè caboclo, Oké Arô

O tráfico de africanos para o Brasil, a partir do século XVI, e a sua “catolicização”

forçada, tiveram conseqüências profundas para os negros escravizados e seus descendentes no

Brasil. Durante o processo do estabelecimento das religiões africanas no Brasil o autor

Berkenbrock, defende três processos importantes: perda, adaptação e criação de novos

elementos constituintes das religiões africanas em solo brasileiro. No que se refere ao

processo de perdas dentro das religiões africanas, o autor salienta, a perda de relacionamento

entre a religião e a sociedade. Tendo em vista que em um primeiro momento a religião

africana tratava-se de algo proibido, pelo fato de que a permissão e a livre prática de

manifestações religiosas por parte dos escravos poderia sob vários aspectos comprometer o

controle efetivo sobre a “mercadoria”, uma vez que das práticas religiosas poder-se-iam

reconstruir formas diversas de resistências, o que efetivamente ocorreu mesmo com a

proibição. Segundo Berkenbrock “eles eram agora culturas exclusivas de uma determinada

classe social, culturas de um grupo dentro da sociedade brasileira. [...] de cultura da totalidade

na África, eles passaram agora a cultura de parcialidade no Brasil2”. Um exemplo simples

deste fato é que:

Em África, cada orixá estava originalmente relacionado a uma cidade ou a uma nação inteira. Eles constituíam uma série de cultos regionais e nacionais [...] Mais tarde, os orixás viajaram para outras regiões africanas, levados por pessoas no curso de suas migrações. Se os indivíduos que se congregavam formavam um grande grupo, a adoração do orixá era estendida para abarcar a totalidade dessa família, e alguns ‘olorixá’, sacerdotes do orixá, assumiam a responsabilidade do culto em nome do grupo inteiro. Se alguém se estabelecia somente com sua família de esposa e filhos o orixá assumia um caráter mais privado. Quando o africano foi transportado para o Brasil, o orixá assumiu um caráter individual, ligado ao destino do escravo, agora separado de seu grupo familiar originário.3

2 BERKENBROCK, Volney J. A experiência dos orixás: um estudo sobre a experiência religiosa no candomblé. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998. p.1113 VERGER, 1981. IN: SEGATO, Rita Laura. Santos e Daimones p.67 (ver bibliografía completa)

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Em relação às adaptações religiosas, o autor destaca, as várias práticas sincréticas

que as religiões africanas sofreram em solo brasileiro. Em primeiro lugar o sincretismo das

religiões existentes em África que chegaram aqui, dentro da vasta diversidade étnica e

religiosa lá existente, segundo o autor “religiões africanas, que já na África tinham muitos

aspectos em comum, aproximaram-se umas das outras ainda mais no Brasil, chegando muitas

vezes a fundir-se4”. Berkenbrock também destaca o sincretismo com as religiões cristãs e a

acolhida de expressões espirituais indígenas nas religiões afro-brasileiras exemplificando que

“os primeiros contatos entre índios e africanos foram feitos através de escravos fugitivos que

encontraram refúgio com os índios5”.

O autor levanta também algumas questões pertinentes quanto à releitura das

religiões africanas que aqui chegaram. Ele argumenta que “o processo de adaptação das

religiões afro-brasileiras não ocorreu apenas em nível de sincretismo, houve também um

processo de seleção dos Orixás, de modo que alguns foram esquecidos e outros receberam

uma outra importância6”. Percebe-se também forte influência geográfica nesta seleção, pois

muitos orixás que tinham certa ligação com determinados elementos da natureza, em África,

tinham maior ou menos importância no Brasil: por exemplo, o orixá Ogum, que está

relacionado com a guerra, foi ganhando com o tempo maior importância, no Brasil entre os

escravizados, talvez pela sua ligação com a resistência escrava existente no Brasil.

Acerca das criações de novos elementos religiosos o autor ressalta a importância

da reorganização religiosa que ocorreu no Brasil. Em África as diversas expressões religiosas,

em sua maioria, eram baseadas na organização dos clãs e as organizações familiares

existentes, e aqui onde os africanos foram distribuídos em grupos distintos à religião, trouxe

uma outra forma de organização social e familiar, quando a religião cria laços familiares pelo

vinculo espiritual, onde surgem as mães-de-santo, pais-de-santo, irmãos-de-santo, filha-de-

santo... Fortalecendo também desta maneira o sentimento de pertencimento a determinado

grupo religioso.

É de suma importância a análise realizada pelo autor quando o mesmo que escreve

que:

O processo de sincretismo entre religiões africanas e o catolicismo [...] não é, porém, uma rua de mão-única. O cristianismo católico no Brasil também

4 BERKENBROCK, Volney J. A experiência dos orixás: um estudo sobre a experiência religiosa no Candomblé. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997, p. 114.5 Ibiden, p.115.6 Ibiden

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recebeu influências de elementos advindos de religiões africanas. Claro que estas influências são mais sutis que na direção inversa e ocorreram mais a nível pessoal que institucional. Elas tinham início já na educação dos filhos dos senhores de escravos. A mãe-preta certamente não contava histórias de ninar para os filhos do senhor sobre anjos da guarda; é mais provável que contava histórias do marinheiro Calunga que casara com a rainha do mar.[...] Esta influência de elementos africanos faz-se sentir sobretudo ao nível do catolicismo popular, onde os limites entre devoção aos santos e culto aos Orixás às vezes não são tão nítidos.7

E atualmente, esta influência africana no seio católico é perceptível quando nos

deparamos com as missas afro dentro do cristianismo; onde negros/as cultuam os santos

católicos à moda africana, com tambores, muita dança, muita cor, muita alegria....

Nestas “trocas” o autor ainda ressalta que “a mistura de negros e brancos na

sociedade e também em matrimônios mistos levaram tanto a uma ‘des-africanização’ dos

negros e da população mestiça, como a uma ‘africanização’ da sociedade e cultura brasileira”.

Reforçando desta forma a idéia de autor de mão de duas vias, no que tange ao sincretismo

católico.

Tramonte, utilizando-se da obra de Braga8 cita que:

Certo é que o negro soube criar e soube valer-se de situações sociais e culturais que lhe permitiram, de alguma maneira, alcançar resultados práticos, necessários à consolidação de alguns de seus interesses fundamentais [...] Toda vez que interessou aos propósitos de suas reinvidicações sociais o negro soube, com extrema competência aproveitar-se da situação social em que vivia. Conduziu seu projeto maior de ascensão social com habilidade, sabendo negociar, aproveitando das raras ocasiões favoráveis, para sedimentar bases sólidas que ainda servem de substrato às diferentes frentes de luta...9

A relação entre a Igreja católica e os cultos de possessão, bem como a Umbanda,

nunca foi amigável. Desde muito cedo na História destacam-se as perseguições, as fogueiras,

os rótulos etc... Sobre esta questão o autor Mario Teixeira de Sá Junior escreve que:

A década de 1960 traria uma mudança no discurso da Igreja em relação ao cultos mediúnicos. O símbolo dessa mudança é o Vaticano II. De práticas satânicas, passando por doença psíquica, os cultos de possessão passaria a ser vistos como expressões da religiosidade popular. Como tais deveriam ser tratadas como ovelhas desgarradas do rebanho do senhor, expressões

7 Ibiden, p. 118.8 BRAGA, Júlio. Repressão e resistência nos candomblés da Bahia. Salvador: EDUFBA, 1995.9 Tramonete citando Braga p. 100-101

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de uma religiosidade popular, que deveriam ser esclarecidas para que fosse possível o seu retorno à verdadeira religião: a católica.10

Ainda hoje em pleno século XXI a Igreja Católica sofre um retrocesso no processo de

ecumenismo, iniciado nos anos 80. No conflito com outras religiões o discurso católico de

que: o catolicismo respeita todas as manifestações religiosas; frase muito utilizada por suas

lideranças sofre uma baixa quando é comumente completada com a expressão de que embora

o catolicismo respeite todas as manifestações religiosas somente através do catolicismo

apostólico romano é que chega-se á Deus. Tendo o catolicismo nas ultimas décadas perdido

muitos seguidores para diversas outras religiões a reorganização da mesma a partir de práticas

como as verificadas pela Renovação Carismática é a expressão cabal da tentativa de reação

dos católicos face a perda de fiéis. Lembrando que a Renovação Carismática junto com as

Igrejas Evangélicas são as principais movimentações religiosas de perseguição às práticas do

povo-de-santo, no caso Umbandistas.

10 JUNIOR, Mario Teixeira de Sá. A invenção da alva nação umbandista: a relação entre a produção historiográfica brasileira e a sua influência na produção dos intelectuais da Umbanda (1840 – 1960). Dourados: 2004 p. 39

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2 O SURGIMENTO DA UMBANDA

Ai não me toque na espada de OgumAi não me toque na machada de Xangô

Ai me toque na flecha de OxossiQue lá nas matas ele é rei é caçador

Ogunhê!

Para muitos estudiosos da Umbanda, enquanto manifestação religiosa, é fruto de

fortes sincretismos: africano, kardecista, católico, indígena, etc.. No entanto, faz-se necessário

distinguir tais influências quando iniciado o processo de institucionalização do culto. Embora

as influências sejam várias, tais como as citadas, durante a formação da Umbanda identifica-

se o berço africano em solo brasileiro como base de construção.

Segundo Magnani, Umbanda é um culto afro-brasileiro herdeiro da Cabula de

origem da etnia africana Bantu.

No Rio de Janeiro, até o término da primeira década do século XIX, conservou-se a diferenciação por nações: as de origem sudanesa, principalmente nagôs, possuíam seus candomblés; as bantos, a cabula. [...] as religiões dos bantos eram mais permeáveis à influência de outros cultos: dos candomblés nagôs, a cabula banto assimila a estrutura do culto e alguns orixás; em contato com outras crenças e ritos adota os caboclos catimbozeiros, práticas mágicas européias e muçulmanas, os santos católicos e, finalmente, sofre o influxo do espiritismo, que fora introduzido no Brasil por volta da segunda metade do século XIX. Está surgindo a macumba, descrita por Arthur Ramos como o sincretismo jeje, nagô, muçulmano, banto, caboclo, espírita e católico.11

A Macumba após o contato com o kardecismo, foi bifurcando-se em dois cultos

(Umbanda e Quimbanda), devido a divergências referentes aos cultos, no Rio de Janeiro na

década de 30 (aproximadamente 1934 após a publicação do ensaio “O Negro na Música

Brasileira” de Luciano Gallet12) surgirá a Umbanda.

Sobre o termo Macumba, Magani cita Carneiro para exemplificar:

11 MAGNANI, José Guilherme Cantos. Umbanda. São Paulo: Editora Ática, 1986, p.21.12 Luciano Gallet que foi compositor, professor, pianista, regente e folclorista. Nasceu no Rio de Janeiro em 28.06.1893 e faleceu nesta cidade em 29.10.1931. Brasileiro de ascendência francesa, situou o seu maior interesse no folclore índio e negro, estudando a sua influência na música brasileira, de que resultou, além de outras obras, Estudos de folclore, publicado postumamente por Mário de Andrade. Atuou como pianista em pequena orquestra de salão, mesmo sem ter estudos aprofundados de música, período em que freqüentou cafés, cinemas e concertos, o que o pôs em contato com o meio musical.

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Antes de dançar, os jongueiros executam movimentos especiais pedindo a bênção dos cumbas velhos, palavra que significa jongueiro experimentado, de acordo com essa explicação de um preto centenário: “cumba é jongueiro ruim, que tem parte com o demônio, que faz feitiçaria, que faz macumba, reunião de cumbas”. O jongo, dança semi-religiosa, precedeu, no Centro-Sul, o modelo nagô. Como talvez corresponde à partícula ba ou ma que, nas línguas do grupo banto, se antepõe aos substantivos para a formação do plural, com provável assimilação do adjetivo feminino má.13

O autor ainda relata que a Macumba desse período era ritualmente simples, e

muito próximo da estrutura do culto praticado pela etnia Bantu na África. Descreve que

invocavam os mortos e os antepassados tribais, acreditavam na transmigração das almas, o

que no Brasil os aproximará da doutrina kardecista. No entanto o que se percebe atualmente é

o emprego do termo Macumba de forma pejorativa e preconceituosa, na generalização de

todas as manifestações afro-brasileiras, desconsiderando as especificidades de cada uma

delas.

Sobre o fortalecimento, difusão e bifurcação da Macumba no Rio de Janeiro, o

autor escreve:

A crescente difusão da Macumba entre a população pobre do Rio de Janeiro (negra ou branca) se deu pela conjugação da marginalização imposta no re-ordenamento urbano (“Belle-èpoque”) e pela solução de problemas por parte das entidades espirituais que a Ciência oficial e a medicina branca não conseguiam resolver. Neste ínterim a Macumba passa a atrair os homens brancos da classe média com maior escolaridade, conhecimentos e práticas da doutrina kardecista. Neste momento a estrutura ritual e doutrinária da Macumba entra em crise. Os neófitos, impregnados de padrões mentais e valores euro-brasileiros, começaram a questionar a Macumba, criticando e procurando esvazia-la de seus traços africanos, de sua práticas rituais, repugnantes à sensibilidade branca (uso de sangue animal, pólvora, punhais, cachaças, etc..)14”

Desta forma inicia-se o processo de “embranquecimento” da Macumba, onde

dentro desta estrutura religiosa nascem dois grupos: a Umbanda e a Quimbanda. A Umbanda

com fortes elementos do kardecismo e a Quimbanda fortalecendo seus elementos africanos e

“macumbeiros”. Desta forma:

[...] cabe investigar porque os brancos de classe média de intrusos passaram a galgar a chefia dos terreiros de Macumba. Sabe-se que uma das formas de

13 Magnani citando Carneiro p.2214 XAVIER, Charles Odevan. Kardecismo versus Macumba. Site conultado em 30.08.2006 – www.midiaindependente.org/es/blue/2003/12/269417.shtml

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poder e opressão é a alegação da escolaridade. Ou seja, em um ambiente de provável baixa-estima que caracterizava os pobres negros e brancos não-escolarizados, o ingresso do branco remediado que sabe usar a norma padrão da Língua Portuguesa, resultará no branqueamento compulsório e autoritário da Macumba. Entretanto, à medida que os brancos escolarizados passaram a dominar e impor seus parâmetros à Macumba suscitou-se forte resistência e oposição da parte dos negros fiéis às antigas tradições. O atrito entre o apego aos valores tradicionais negros e o esforço “civilizador” e “branqueador” produziu uma cisão interna no culto. Os negros e terreiros fiéis às tradições ancestrais da Macumba, deram origem ao que se passou a ser chamado de “Quimbanda” pela ala Kardecista da antiga Macumba. E esta ala kardecista remanescente passou a se nomear de “Umbanda”15.

Ainda acerca da influência do kardecismo, Magnani escreve:

É desse conjunto heterogêneo – ao mesmo tempo sinal e uma das respostas às dificuldades de negros, mulatos, imigrantes e brancos pobres em seu processo de construção de novas redes sociais numa sociedade em rápida transformação – que surgirá a Umbanda, na década de 20 no Rio de Janeiro. Elementos de classe média (profissionais liberais, militares, funcionários públicos) egressos do espiritismo kardecista, voltam-se para esses cultos, apropriando-se de seus ritos, impondo-lhes uma nova estrutura e juntando-se no interior de um novo discurso. Dão início, enfim, a seu processo de institucionalização16.

Assim, o termo Umbanda, segundo vários autores, é originário de “Ki-mbanda”

(termo quimbundo) que quer dizer o feiticeiro, o curandeiro. “O termo ‘mbanda’, acrescido do

prefixo ‘u’ – umbanda – significa a arte mágica da cura, orienta e adivinha, ou simplesmente,

magia”17.

Além desta versão para o surgimento da Umbanda existem ainda autores, como

Zacharias18, que hipotetizam sobre o assunto.

....devido ao fato de a Umbanda ser um fenômeno religioso brasileiro, diferente do Candomblé, podemos levantar a hipótese de que a inspiração nacionalista, trazendo o resgate cultural de segmentos marginalizados da

15 XAVIER, Charles Odevan. Kardecismo versus Macumba. Site conultado em 30.08.2006 – www.midiaindependente.org/es/blue/2003/12/269417.shtml16 MAGNANI, José Guilherme Cantos. Umbanda. São Paulo: Editora Ática, 1986 p. 22-2317 CACCIATORE, O. G. Dicionário de cultos afro-brasileiros, Rio de Janeiro, Editora Forense Universitária, 1977. IN: ZACHARIAS, José Jorge de Morais. ORI AXÉ: a dimensão arquétipa dos orixás. p.30. São Paulo: Vetor, 1998.18 ZACHARIAS, José Jorge de Morais. ORI AXÉ: a dimensão arquétipa dos orixás. p.30. São Paulo: Vetor, 1998.

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sociedade brasileira, como o índio, o negro escravo e o caboclo, tenha de certa forma contribuído para a constituição do pensamento umbandista.19

Sobre o surgimento da Umbanda o autor escreve:

...em 1907 um grupo de kardecista de Niterói manifestou profunda insatisfação com esta postura européia e elitista do Kardecismo, e com a proibição da invocação de “caboclos” e “pretos velhos”. Este grupo passou a freqüentar roças de Candomblé, provavelmente de rito Angola, e ficaram maravilhados com a riqueza do ritual e simbólica presentes nestes rituais, além da evidente contextualização na cultura popular brasileira. Imbuídos deste novo referencial [...] e sob a inspiração do médium Zélio Fernandino de Moraes, fundaram em 15 de novembro de 1907 a Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade, o primeiro terreiro oficial de Umbanda.[...] Ao que evidências históricas indicam, o termo “Umbanda” começa a ser utilizado para designar este culto somente em 1936 e 1940.20

Segundo Tramonte este mesmo Sr. Zélio Fernandino de Moraes “rapaz branco e de

posses teria recebido um aviso do Caboclo das Sete Encruzilhadas de que estava nascendo

uma nova religião, definindo suas características principais” 21.

Em Santa Catarina, Tramonte escreve que:

É difícil precisar exatamente qual teria sido o primeiro terreiro aberto ao público na região que mais tarde se denominaria Grande Florianópolis. Entretanto, há praticamente um consenso em torno da informação de que o primeiro Centro de Umbanda de Florianópolis teria sido o Centro Espírita São Jorge, da mãe-de-santo Malvina Ayroso de Barros (1910 / 1988).22

O referido terreiro, fundado em 1947 e registrado oficialmente em 1953, foi o mais

importante da região e ainda está em funcionamento, embora com suas atividades reduzidas.

Em todo o Brasil foram muitas as dificuldades encontradas pela Umbanda para

que fosse possível seu firmamento no meio religioso do país. Tendo em vista que grande parte

da população adepta à Umbanda provinha das classes econômicas mais baixas, e neste mesmo

19 Ibiden, p. 32.20 ZACHARIAS, José Jorge de Morais. ORI AXÉ: a dimensão arquétipa dos orixás. São Paulo: Vetor, 1998. p.3321 TRAMONTE, Cristiana. Com a bandeira de Oxalá - Trajetórias, práticas e concepções das religiões afro-brasileiras na Grande Florianópolis. Itajaí: Lunardelli, 2000. p. 7422 Ibiden, p. 75.

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período (década de 1930-1940) o acesso desta população à saúde ainda era precário. Assim,

tendo a Umbanda uma forte influência indígena, esta população buscará no culto umbandista

a cura de doenças as quais a medicina da época não dava conta. Desta forma um dos embates

que os umbandistas encontrarão será com a comunidade médica que não admitirá estas

práticas, e atribuirá ao culto, doenças mentais, segundo Magnani:

O discurso médico não deixa por menos, atribuindo ao espiritismo, ao lado da sífilis e do alcoolismo, o aumento nas taxas de doenças mentais: “os casos de doenças mentais provocadas pelo espiritismo vêm aumentando consideravelmente nos últimos tempos, é raro o dia em que não me é dado observar pelo menos um, no Instituto de Neuropatologia em que funciona a clínica a Faculdade de Medicina. A sífilis, o alcoolismo, o espiritismo são fatores que concorrem em 90% dos casos de alienação mental. [...] Entre os males sociais que se apontam em nosso país como grandes fatores de loucura, está o espiritismo grosseiro que se desenvolve num terreno adubado pela ignorância e pelas supertições – em meio profundamente tarado [...] É um mal que se alastra não somente nas camas inferiores – incapazes de controle e resistência – senão que se estende alcançando as camadas superiores da sociedade23

A principal “doença” da época, a loucura, será associada diretamente á

Umbanda, ou como ainda hoje costuma-se referir “é muita de macumba”:

Em vários depoimentos colhidos para este trabalho, os entrevistados relataram seu ingresso na Umbanda – uma grande porcentagem deles aí adentrou porque estava agindo “como louco”, “ficando louco de fato” ou “sendo visto como louco”. Os desequilíbrios mentais, al como considerados pelo conhecimento médico psiquiátrico hegemônico, são companheiros constantes das religiões afro-brasileiras.24

Durante o I Congresso Brasileiro do espiritismo de Umbanda, no Rio de Janeiro

em 1941, foi publicado um artigo intitulado “A Medicina em face do espiritismo” que diz:

Ora, estudando-se à luz do espiritismo [...] talvez possamos desvendar este véu misterioso, oculto atrás da ciência oficial, e chegarmos a conclusões mais lógicas do ponto de vista espiritual, principalmente no que diz respeito à Linha Branca de Umbanda, onde os indivíduos, com tendências diversas, quando açoitados pela dôr [sic] procuram as Tendas, outros para lá são levados por circunstâncias especiais, e é ali, que eles deixam nos terreiros, as

23 MAGNANI, José Guilherme Cantos. Umbanda. São Paulo: Editora Ática, 1986. p.2824 TRAMONTE, Cristiana. Com a bandeira de Oxalá - Trajetórias, Práticas e Concepções das Religiões Afro-Brasileiras na Grande Florianópolis. Itajaí: Lunardelli, 2000. p.67

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suas misérias, pelos efeitos que produzem os banhos de fluídos, verdadeiros banhos de purificação, segundo o grande chefe Ogum Timbiri.25

Assim é possível perceber que quando o autor cita “Linha Branca de Umbanda”

considera uma Umbanda ligada a uma linha mais “pura”, vinculada diretamente ao

kardecismo, e que supostamente teria as condições possíveis de cura do indivíduo.

Constituindo, desta forma, quase que uma “ciência espiritual”, contrapondo-se a uma ciência

médica. Desta forma, desqualificando a mediunidade e colocando o acesso pleno à religião

condicionado ao estudo científico e filosófico, o que as camadas mais pobres (principalmente

negros/as marginalizados) não teriam acesso:

E a ciência, estribada nas idéias materialistas, atribue [sic] sempre o maior número de loucos ao espiritismo. Em parte estou de pleno acordo. Primeiro, porque, grande número das pessoas que praticam o espiritismo, não estudam através da ciência, a sua origem, as suas bases, para melhor conhecerem a verdadeira doutrina, sem contudo se apaixonarem pelas grandezas que ali encerram. Segundo, porque, para o indivíduo estudar a doutrina espírita, precisa ter capacidade de assimilar, com raciocínio lógico, os ensinamentos filosóficos espírtias, que encerram a doutrina, observar os fenômenos espíritas, visto que estes são muito complexos, de acordo com as modalidades dos Guias e do ambiente. [...] Todavia, não é preciso somente a inteligência, é necessário que sejamos puros, ou quasi [sic] puros, que não existam os desejos mundanos, nem to pouco a vaidade.

Em Florianópolis, a respeito da repressão sofrida ao culto umbandista, Tramonte

analisando a obra da autora Maggie26 traz a informação:

Maggie (1992) aponta que os termos macumba ou candomblé começam a ser utilizados a partir de 1928 no Rio de Janeiro. Como se vê, apenas uma década depois, o termo já é utilizado também em Florianópolis. Se levarmos em conta as dificuldades de comunicação da época, vemos que, quando se tratava de repressão às práticas religiosas de negros e pobres as informações caminhavam com rapidez. A autora aponta que a macumba e o candomblé cariocas serão duramente perseguidos por serem bastante africanizados e considerados como magia, charlatanismo, loucura e crime. A umbanda e o espiritismo conseguiriam maior legitimação perante a opinião pública. Tal legitimação não ocorreu com a Umbanda em Florianópolis. Está será, ao longo de sua história, duramente perseguida como os candomblés e macumbas cariocas e o candomblé baiano, talvez por manter traços bastante africanizados, num contexto de forte caracterização étnica européia [..] 27

25 Congresso p.168-16926 Maggie, Yvonne. Medo do Feitiço: relações entre poder e magia no Brasil. RJ: Arquivo Nacional. 199227 TRAMONTE, Cristiana. Com a bandeira de Oxalá - Trajetórias, Práticas e Concepções das Religiões Afro-Brasileiras na Grande Florianópolis. Itajaí: Lunardelli, 2000. p.65.

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Durante o período do estado Novo (1937/1941) ocorrerão as repressões maiores

por parte da polícia e do Estado. Em Florianópolis, Tramonte traz artigos publicados em

jornais da época que expressam esta repressão:

[...] já em 1938 a imprensa solicitava à Polícia providências no sentido de proibir o funcionamento de “antros, onde criaturas ignorantes, se dizendo pitonisas, lêem a sorte as cartas e passam receitas que podem comprometer vidas [A Gazeta; 18/03/1938] O argumento é de que o serviço de Saúde Pública de Florianópolis seria capaz de oferecer serviços eficientes à população. Mais uma vez, [...] é a prática da saúde popular o pretexto para o qual apelarão os interesses dominantes para justificar a violência sobre estas.28

Tendo como exemplo a cidade de Florianópolis, Tramonte analisando obras de

outros autores conclui que:

Analisando a cidade de Florianópolis no primeiro período getulista (1930-45), Campos (1992)29 informa como desencadearam-se dispositivos de controle sobre o corpo e a mente dos habitantes urbanos de Santa Catarina. Para ela, o saneamento proposto durante os dez anos do governo Nereu Ramos tinha conotações físicas e morais. Pobreza, vadiagem, loucura e crime passam a ser vistos como elementos interrelacionados e ameaçadores à nova sociedade que se quer moderna, racional e voltada para o trabalho neste contexto saneador e higienizador.30

E conclui demonstrando a visão do Estado e dos gestores governamentais da

época, em Florianópolis, sob os cultos afro-brasileiros na época:

Pode-se imaginar em que medida as práticas de saúde afro-brasileiras representavam um desafio. Em primeiro lugar porque para os adeptos destas, a “loucura” poderia ser apenas uma “mediunidade” que necessitava aflorar e ser desenvolvida; em segundo lugar, pobreza para este grupo significava a herança da escravidão e da sociedade moderna do século XX preparada para a marginalização do negro; a vadiagem era resultado da exclusão do mercado de trabalho que atingia a brancos e negros pobres, especialmente estes; e por último “crime” era tudo aquilo que a legislação considerava como tal e para

28 Ibiden, p.6629 CAMPOS, Cynthia Machado. Controle e normatização das condutas em Santa Catarina (1930 – 1940) Tese de mestrado. SP:PUC, 199230 TRAMONTE, Cristiana. Com a bandeira de Oxalá - Trajetórias, Práticas e Concepções das Religiões Afro-Brasileiras na Grande Florianópolis. Itajaí: Lunardelli, 2000. p.67

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tanto, benzedores, curandeiros e feiticeiros eram criminosos em potencial, passíveis de prisão de todo tipo de violência física e simbólica[...]31

Logo, assim como desde que desembarcaram no Brasil os primeiros africanos

escravizados, a Umbanda desde que se constituiu enquanto religião sofreu e sofre repressão,

tentativas de cooptação, vinculação com vadiagem, inferioridade, charlatanismo e loucura.

A repressão, conforme se pode ver pelo citado acima, era uma constante. A

criminalização da mesma com os pais e mães-de-santo muitas vezes sendo acusados de

charlatanismo e os cultos sendo invadidos pelos órgãos repressores e os presentes sendo

espancados e presos era parte da rotina. As tentativas de cooptação, como se descreve neste

trabalho, foram e são violentas, desde a tentativa de branqueamento com a eliminação de

elementos referenciais de matriz africana; do sincretismo com o catolicismo ora como forma

de manter viva a religião, e ora tendo sido assimilada completamente e desta forma ter a

conversão dos umbandistas; à práticas somente católicas e à ação discriminatória, virulenta e

policialesca das religiões evangélicas que viam nas práticas umbandistas apenas o culto ao

mal, aos demônios do imaginário católico. Todos esses vieses geraram uma perseguição

constante à Umbanda que a despeito de todas estas manteve-se e mantém suas práticas

religiosas.

31 TRAMONTE, Cristiana. Com a bandeira de Oxalá - Trajetórias, Práticas e Concepções das Religiões Afro-Brasileiras na Grande Florianópolis. Itajaí: Lunardelli, 2000 p. 67-68

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3 INFLUÊNCIAS KARDECISTAS E AFRICANAS NA UMBANDA

Xangô, XangôMeu pai vem em ajudar

Venha tirar a malvada da macumbaQue seu filho abençoado não pode tirar

Diante da diversidade lingüística e cultural dos negros introduzidos no Brasil,

somadas à política de evitar a concentração de negros escravos oriundos de uma mesma etnia

nas mesmas propriedades escravistas, ou mesmo em regiões próximas, e até mesmo em

navios negreiros, tentou-se desta forma impedir a formação de núcleos solidários que

cultivassem as expressões culturais, organizacionais e religiosas africanas, buscando com isso

dificultar ao máximo a organização de focos de referências. Hoje se percebe o fracasso desta

tentativa, quando em nosso cotidiano são perceptíveis elementos da cultura africana (embora

não nomeados como tais): feijoada, congada, bumba-meu-boi, cocada...; termos em nossa

linguagem: caçula, cochilo, banguelo...32

Comparativamente a outros Estados do Brasil, o Estado de Santa Catarina pouco

comercializou escravos, o que não significa que não ocorreu escravidão no Estado, uma vez

que independente de quantidade a instituição escravagista e nefasta seja na escravização de

um, dois ou milhares de negros, estes que aqui chegavam provinham do estado do Rio de

Janeiro e proximidades e não diretamente da África. Chegando aqui era dado um primeiro

nome a estes negros, nome este em português, e o nome de sua localidade na África como

sobrenome, permitindo apenas uma precaríssima identificação para fins de comercialização

nos mercados negreiros: Francisco Angola, Angélica Conga... além dos chamados

simplesmente “mulatos” ou “crioulos”, nascidos nesta terra, como: Ana Crioula, Pedro

Mulato...

Dentre estas manifestações afro-brasileiras, em meu trabalho, a Umbanda será a

escolhida como tema central. A escolha foi realizada a partir do meu contato com a Umbanda

(como filha-de-santo e pesquisadora) e a inquietação diante das leituras realizadas sobre o

tema onde alguns autores percebem a Umbanda como uma religião de matriz africana com

manifestações de resistência negra diante do sincretismo que ocorreu nestes processos de

assimilação e outros autores que identificam a Umbanda como uma religião branca, elitizada

e que desvirtua das raízes africanas. Sob este tema Prandi escreve:

32 AGUILLERA, Sandra Mara. A influência africana na Língua Portuguesa. In: LIMA, Ivan Costa; ROMÃO, Jeruse, SILVEIRA, Sônia Maria. Os negros, os conteúdos escolares e a diversidade cultural. Florianópolis: NEN (Núcleo de Estudos Negros), 1998. p.23

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No Estado do Rio de Janeiro, cerca de 1920, foi fundado o primeiro centro de umbanda, que teria nascido como dissidência de um kardecismo que rejeitava a presença de guias negros e caboclos, considerados pelos espíritas mais ortodoxos como espíritos inferiores. De Niterói, esse centro foi se instalar numa área central do Rio em 1938. Logo seguiu-se a formação de muitos outros centros desse espiritismo de umbanda, os quais, em 1941, com o patrocínio da União Espírita Brasileira, promoveram no Rio o Primeiro Congresso de Umbanda, congresso ao qual compareceram umbandistas de São Paulo. 33

O Primeiro Congresso Brasileiro do Espiritismo de Umbanda, que aconteceu no

Rio de Janeiro de 19 a 26 de outubro de 1941, defendia a idéia da formação da Umbanda

enquanto oriunda da África, mas uma África concebida por estudiosos como África “branca”

(ao norte do continente africano): “Umbanda veio da África, não há dúvida, mas da África

Oriental, ou seja, do Egito, da terra milenária dos Faraós, do Vale dos reis e das Cidades

Sepultadas na areia do deserto ou na lama do Nilo”34.

Concebe-se desta forma que a Umbanda surge no seio da “inteligência” e de uma

cultura “civilizada”. Descreve ainda que:

O barbarismo afro de que se mostram impregnados os ecos chegados até nós, dessa grande linha iniciática do passado, se deve a deturpações a que se acham naturalmente sujeitas as tradições verbais, melhormente quando, além da distância a vencer no tempo e no espaço, teem elas de atravessar méis e idades em absoluto inadaptados à grandeza e à luz refulgente dos seus ensinamentos. Com a Umbanda foi isto o que se deu.35

Desqualificando desta forma a tradição oral africana e subjulgando-a à uma cultura

letrada. Estes escritos exprimem de forma explícita a visão inicial do kardecismo sob a

Umbanda: como uma cultura “bárbara” que necessitará da intelectualidade kardecista e branca

para emergir como religião. O referido Congresso aconteceu no seio da comunidade espírita

que neste período é composta por umbandistas e kardecistas, pois até “1966 a Umbanda não

era considerada pelo IBGE como uma religião, mas como um conjunto de crenças

supersticiosas. Seus adeptos eram classificados como kardecistas”36.

33 PRANDI, Reginaldo. As religiões negras do Brasil: para uma sociologia dos cultos afro-brasileiros. Revista USP. SP: dez/fev 1995/1996. p. 6-734 Primeiro Congresso Brasileiro p. 11435 ibiden, p.114.36 ORTIZ, Renato. A morte branca do feiticeiro negro: umbanda, integração de uma religião numa sociedade de classes. Petrópolis: Vozes, 1978, p. 50.

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Outro fator de embranquecimento da Umbanda serão algumas linhagens de culto

que irão introduzir em seus rituais a psicografia. Conforme Leite:

Eis um exemplo atualíssimo, colhido de um folhetim umbandista de um setor de Brasília, intitulado O Caminho, Ano I – Número I, ano 2001, do Centro de Umbanda Caminhos de Luz: ‘A Umbanda vem diversificando cada vez mais os tipos de trabalhos mediúnicos, fato possibilitado por meio do estudo crescente da doutrina e da educação mediúnica dos integrantes da corrente. A psicografia, ao ser firmar dentro da doutrina, tem gerado uma literatura que possibilita uma maior divulgação e entendimento dentro da Umbanda.37

Ora, como já foi citado anteriormente, a Umbanda trabalha com espíritos de

pessoas que viveram em situações de marginalização social: cosmes (crianças de rua), pretos-

velhos e pretas-velhas (negros/as escravizados), caboclos (indígenas), etc.. Povos que em sua

grande maioria riam ágrafos. Assim, a psicografia, extraída do kardecismo, não é possível de

ser realizada dentre os umbandistas, pois o kardecismo trabalha com espíritos

“intelectualizados”, ditos espíritos de luz: médicos, profissionais liberais, artistas, intelectuais,

etc... O autor ainda segue escrevendo:

Em números subseqüentes do referido Boletim informativo, encontram-se diversas provas do evolucionismo doutrinário de setores da Umbanda, embora continuando com os orixás, rituais, etc A tendência, porém, é de aproximação do espiritismo oficial com boas ascendências kardecistas.38

Observa-se o autor afirma existir um evolucionismo religioso e que, portanto o

espiritismo kardecistas estaria no topo desta pirâmide religiosa ao passo que o espiritismo

umbandistas estaria na base piramidal. Ressalta que o fato de algumas linhas de Umbanda

trabalharem com orixás, como uma marca africana, seria um atraso, mas a tendência é

“melhorar”... pela ótica do autor através da aproximação com o kardecismo e afastamento

africano. Após várias citações, nesta mesma linha de pensamento, o autor conclui:

A tendência da nova Umbanda é se distanciar de suas raízes, ao correr do tempo, assumindo feições ecléticas, mediúnicas, da magia, psicografia, astrologia,

37 LEITE, Elias. Maria e Iemanjá: no sincretismo afro-brasileiro (simbiose e arquétipo). São Paulo: Editora Ave-Maria, 2003 p.47-48.38 Ibiden, p.48

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esoterismo, etc. Fatores esses, que passam a atrair as camadas mais altas da sociedade, uma espécie de ecumenismo espiritualista, de acordo com a mentalidade pluralista, globalizantes e descomprometida vigente.39

O autor acredita que ao longo do tempo a Umbanda deixará de ser intitulada e

concebida como uma religião e será tida como um catalisador de manifestações espirituais,

que tudo aceita, sem critério algum. Segundo Bairrão:

Promove como que uma sacralização do social e humano brasileiro e uma re-invenção constante, que ofendem a nostalgia de metafísica e a paixão pelo estático. Não apresenta dogmas nem codificações. As suas doutrinas são suficientemente sérias para não se levarem muito a sério [...] esta recepção de influências, não se pense acontecimentos passivo. A riqueza do fenômeno cultural umbandista, que tudo incorpora e utiliza, desde lendas e práticas indígenas até a retórica da Nova Era, não é compatível com uma absorção amorfa. Artisticamente, o Outro suposto autor da macumba combina velhos elementos em novos padrões estético-religiosos.40

Em contra partida existem autores que trabalham defendendo a Umbanda como

uma forma de resistência negra e reafirmando a forte influência africana no culto umbandista,

tais como Magnani que afirma:

O processo de apropriação de elementos e de sua reelaboração numa nova estrutura, que caracterizou a formação da Umbanda, não se realizou [...] sem conflitos. Contudo, além dos ataques por parte da Igreja, imprensa, instituições médicas, polícia, etc. houve resistências no interior do próprio movimento umbandistas. A ação ‘civilizatória’ iniciada pelos primeiros umbandistas, de origem kardecistas, foi contestada por outros adeptos, que a consideram uma deturpação.41

Exemplificando esta resistência o autor relata duas situações: descreve uma sessão

de umbanda mais influenciada pelo kardecismo e outra pela africanidade.

À medida que se aproxima do pólo mais ‘ocidentalizado’ [...] são mais claros os efeitos da depuração kardecista: desaparecem os atabaques, pontos cantados e riscados, substituídos por palmas, preces e música suave, havendo

39 Ibiden, p.5040 BAIRRÃO, José Francisco Miguel Henriques. Subterrâneos da submissão: sentidos do mal no imaginário umbandista. São Paulo: USP, 2002. p.58-5941 MAGNANI, José Guilherme Cantos. Umbanda. São Paulo: Editora Ática, 1986.p.41.

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uma predileção especial pela Ave Maria [...], os desencarnados descem pela força das orações e concentração dos médiuns – o transe é suave – e não pedem fumo ou bebidas alcoólicas, como as entidades dos terreiros populares. Os participantes vestem-se de branco, o ambiente é discreto e desprovido de folhas, velhas, estátuas de gesso; quando muito, uma imagem de Cristo representando Oxalá. Tudo muito organizado, os horários seguidos risca; no limite, estamos diante de uma mesa-branca kardecista, onde só descem espíritos evoluídos de médicos, padres, cientistas.42

Na sessão umbandista influenciada mais pela africanidade, o autor descreve:

Atraídos pelo som dos atabaques, do agogô e do adjá, e pelos pontos cantados e riscados, os espíritos provocam em seus cavalos um transe que atualiza não suas vidas individuais anteriores, mas esteriótipos representados pela dança, postura corporal, linguajar e adereços. Cavalgado pelo preto-velho, o médium curva-se até o solo: é muito velho, tem dificuldade para andar. Arrasta os pés até seu banquinho, resmungando palavras em nagô e quimbundo, onde pita seu cachimbo de barro e ouve, pacientemente, as queixas e sofrimentos dos consulentes.43

Desta forma fica extremamente nítidas as diferentes influências que a Umbanda

sofrerá e como este fato influenciará veemente em seus rituais, público que procura a religião,

etc. Vem do kardecismo uma cerimônia mais contida, utilizando-se até mesmo de música

clássica ou som de pianos em seus rituais. Na Umbanda mais africanizada percebe-se a

ligação que o africano tem com a terra, quando todos os filhos-de-santo permanecem

descalços durante as sessões; os laços de solidariedade e familiares que se constituem entre

mãe-de-santo e irmãos-de-santo formando uma “família africana”.

Tomando como referência dois pólos extremos – os terreiros mais próximos das tradições afro-indígenas e, de outro, os centros influenciados pelo kardecismo vemos, naqueles, o pulsar do imaginário, a estrutura aberta a inovações e acréscimos; nestes, o código, a norma, a instituição.44

Tenho que aqui também registrar as outras influências que a Umbanda sofre,

embora não seja o tema central deste trabalho, mas é notável a presença indígena, cigana, um

sincretismo com várias nações africanas, etc. No entanto, na citação acima, o autor ressalta as

42 MAGNANI, José Guilherme Cantos. Umbanda. São Paulo: Editora Ática, 1986. p.44.43 Ibiden, p.4444 Ibiden, p.48.

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diferenças nos cultos umbandistas mais influenciados pelo kardecismo referente as aflições

pessoais que serão diagnosticados através do poder da mente: “ um discurso científico

procurará as inter-relações entre as perturbações nervosas e fatores espirituais e mostrará a

eficácia energética dos passes”45; sob a influência afro-indígena esses males “serão explicados

em termos de encosto, demandas ou creditados a transgressões de tabus e negligências

espirituais”46

Outro aspecto que diferenciará “as Umbandas” será a presença do Exu e da

Pomba-Gira nos rituais. Tidos como espíritos sem luz, sofredores pelo kardecismo; os exus e

pomba-giras sob a influência africana serão tidos como seres de luz, que fazem a abertura dos

caminhos. Birman, como o povo-de-santo, define os exus como:

Os exus são referidos habitualmente como ‘povo da rua’. E é interessante essa forma de denomina-los, podemos retirar daí algumas associações. Povo de rua lembra facilmente a massa anônima que circula pela cidade, os trabalhadores, as pessoas comuns que ocupam o espaço público nas suas idas e vindas.47

E será a presença do Exu e da Pomba-Gira nos rituais umbandistas que dará inicio

a um “outro culto”, a Quimbanda, tendo como base fundadora a partir das divergências

existentes entre os adeptos da Umbanda, que seguiam mais a linha kardecista do culto. E

sobre este tema as divergências são muitas, mesmo atualmente entre o povo-de-santo.

Segundo Ortiz:

[...] a esta divisão dicotômica entre Bem-Mal, reino das luzes-reino das trevas, corresponde, dentro do universo religioso, uma nova separação: 1) Umbanda – prática do Bem; 2) Quimbanda – prática do Mal. A Umbanda se opõe desta forma à Quimbanda, que opera (em princípio) exclusivamente com espíritos imperfeitos que se situam nos confins da escola espiritual. Entretanto o Mal é um dado da realidade, ele representa uma dimensão importante da vida quotidiana; o pensamento umbandista deve portanto leva-lo em consideração.48

45 Ibiden, p.4946 Ibidem, p.49.47 Briman, p.42.48 ORTIZ, Renato. A morte branca do feiticeiro negro: umbanda, integração de uma religião numa sociedade de classes. Petrópolis: Vozes, 1978, p. 80

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Esta questão da dicotomia dentro da Umbanda na discussão entre os conceitos de

“bem” e “mal” traz o enfrentamento a partir das cosmos visões de matrizes africanas e

judaico-cristãs.

Na cosmo visão africana o conceito de mal e bem não são antagônicos mas sim

estão contidos no mesmo; logo uma pessoa, um orixá e mesmo o mundo e si é visto como

portadores simultâneos destes conceitos, em equilíbrio, podendo no caso de um praticante das

religiões de matrizes africanas de um orixá ou entidade “trabalhar” para um “lado” ou para

outro tendo o entendimento que ao faze-lo está apenas confrontando ou opondo-se práticas já

desencadeadas por um oponente, ou seja, não pode-se analisar o conceito de bem ou mal na

Umbanda pelo olhar ocidental de matriz judaico-cristã. Nestas cosmos visões o bem e o mal

são extremamente antagônicos e não dialogativos, o conceito de que os bons vão para o céu se

os maus vão para o inferno dão a tônica discordando desta forma da cosmovisão africana,

assim como o conceito de pecado, culpa e piedade.

O autor coloca a Quimbanda como uma outra religião, antagônica a Umbanda,

embora afirme que o mal é necessário no intuito de defender-se contra os “feitiços”, já Prandi

inclui o Exu e a Pomba-Gira como parte da Umbanda:

A umbanda é a religião dos caboclos, boiadeiros, pretos velhos, ciganas, exus, pombagiras, marinheiros, crianças. Perdidos e abandonados na vida, marginalizados no além, mas todos eles com uma mesma tarefa religiosa e mágica que lhes foi dada pela religião de uma sociedade fundada na máxima heterogeneidade social: trabalhar pela felicidade do homem sofredor.49

Assim como o povo de santo, atualmente, Prandi inclui esta classe tão

marginalizada e mal vista (mais comumente equiparada com o diabo) como parte integrante e

atuante da Umbanda. Segundo Bairrão:

A vivência popular do diabo não o associa propriamente a uma instância metafísica do mal, salvaguardando-o como representante e advogado de bens e prazeres pessoais e imediatos que, por razões o mais das vezes incompreendida, são proibidos em função de interesses alheios aos do indivíduo (embora habitualmente legitimados em função do “seu” bem). Por vezes os interesses de distintas pessoas ou grupos são antagônicos e é neste caso que o bem alheio poder ser entendido como um mal pessoal (nunca um Mal absoluto). É o papel de oposição a essa expropriação de bens pessoais,

49 PRANDI, Reginaldo. As religiões negras do Brasil: para uma sociologia dos cultos afro-brasileiros. Revista USP. SP: dez/fev 1995/1996. p. 70

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afetivos e de todo o tipo, que o “compadre” exu está destinado a cumprir na umbanda.50.

A partir da citação acima, com a qual concordo, a Umbanda ao ter dentro de seu

oráculo segmentos de praticamente todas os grupos excluídos da sociedade ela passa a ser

uma religião catalisadora dos grupos marginalizados pela sociedade, superando desta forma

os “filtros” construídos, por exemplo, pelo kardecismo que ao “trabalhar” com espíritos de

“luz” e “evoluídos” segundo a visão dos mesmos, reproduz um processo de exclusão muito

comum na sociedade brasileira, como um todo onde representantes dos marginalizados não

são muito bem vistos pela sociedade, sendo muitas vezes alijados da condição de cidadãos.

Outro fator que pode-se diagnosticar como exemplo de inclusão da Umbanda é o

fato de que é uma das principais religiões onde a comunidade GLBT (Gays, Lésbicas,

Bissexuais, Transgêneros e Travestis) tem acesso, sendo esta recebida e respeitada como em

nenhuma outra religião e os trejeitos afeminados ou masculinizados não são fatores de

perseguição, o que faz da Umbanda uma das religiões preferidas deste público.

Ou seja, o “Mal” umbandista teria a conotação não do mal pelo mal, mas sim do

mal pela defesa do bem. Reafirmando a idéia de Ortiz (citada acima). O local onde são

reverenciados os Exus e Pomba-Giras geralmente são as encruzilhadas, mas também os

cemitérios, assim: “a ‘rua’ representa igualmente um valor de metáfora: significa o que se

opõe ‘à margem’ dos valores familiares, mas dos quais estes também dependem para que

possam subsistir com firmeza e vitalidade (a sexualidade, por exemplo)51”.

O trabalho de Bairrão foi realizado através de entrevistas realizadas com Exus e

Pomba-Giras de terreiros paulistanos, sendo assim, o autor conclui que “as suas histórias

imaginais correspondem a este modelo: lidaram com armas. Podem ter sido generais

sanguinários, advogados de criminosos ou meros larápios. Caminhavam pelas ruas... alguns

reportam-se aos caminhos dos mortos (Tranca-Rua das Almas). 52” Ainda sobre os “nomes” e

características que representam estas entidades o autor escreve:

Personagem falante e muito tradicional na Umbanda, a sua composição permite diferentes combinatórias. Podem ser Tranca-Rua das Encruzilhadas, das Sete Encruzilhadas (“Sete Encruzilhadas” que, tomadas isoladamente, definem um outro tipo e classe de exus ou caboclos), Tranca-Ruas das

50 BAIRRÃO, José Francisco Miguel Henrique. Subterrâneo da submissão: sentidos do mal imaginário umbandista. SP: USP, 2002. p.6051 ibiden, p.6352 ibiden p.64

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Almas, Tranca-Tudo, Trancas qualquer lugar em que se encontrem uma pluralidade de caminhos... (ou seja, se façam escolhas, haja liberdade). [...] Talvez por isso sejam tão necessários e tradicionalmente populares, uma vez que a experiência do trancado, do impedido, é típica não apenas da vivência psicológica, como também da realidade política que circunscreve a vida dos brasileiros. Abrir e guardar caminhos é muito precioso. Há o maior cuidado no trato ritual com esta linha, à qual é atribuído este papel crucial.53

Como exemplo da composição da figura do Exu, suas principais características e

sua “função” nas religiões de matrizes africanas como um todo, será transcrita parte de uma

lenda de Exu, intitulada “Quem tem razão?”54:

Num Reno da África moravam Opê e Okocha, dois vizinhos muito amigos. Tão amigos que resolveram não separar suas terras com uma cerca. Um caminho de plantas baixas e flores marcavam onde começava e acabava o terreno de cada um. [..] Perto dali, morava Exu, um feiticeiro muito esperto, que tomava conta das estradas e gostava de fazer brincadeiras e pregar peças nas pessoas. O povo da região fazia oferendas para ele, uma maneira de agradar Exu. Naquele dia, cada um em sua terra, Opê e Okocha viram que o feiticeiro vinha ao longe, mas conversavam tão animados que não deram importância à presença dele. [...] A conversa estava tão animada que eles não perceberam quando o feiticeiro se aproximou. Nem sequer notaram sua presença. Exu, que havia nascido primeiro, achava que tinha de ser sempre o primeiro e gostava de ser tratado com a distinção, resolveu pregar uma peça nos dois lavradores. [...] Rapidamente, como é do seu jeito, Exu vestiu-se de duas cores diferente. O lado esquerdo de verde e o lado direito de vermelho. E, caminhando pela trilha que dividia os dois terrenos, ele passou entre os dois vizinhos. [...] “Bom dia senhor das estradas!”, saudou Opê. “Bom dia, senhor das encruzilhadas!”, saudou Okocha. Depois que Exu se afastou, os dois comentaram: “Opê, você viu que roupa bonita o feiticeiro estava usando, toda vermelha?”. “Você quer dizer verde, não é?”, discordou Opê [...] A discórdia estava semeada. Os dois amigos agora pareciam dois inimigos. [...] Atacaram-se, esmurraram-se, até que os dois caíram desfalecidos cad um em sua terra.Exu, que tudo via, resolveu passar novamente entre eles. Como vinha do lado contrário, Opê e Okocha puderam ver que o feiticeiro estava vestido de duas cores, uma de cada lado. O feiticeiro satisfeito e pensou que agora os dois aprenderiam a nota a presença dele e saúda-lo em primeiro lugar. É por isso que, nas casas-de-santo, Exu é sempre o primeiro a ser homenageado, e só depois é feita a saudação para toso os orixás.

Sendo assim, o autor conclui que “a esquerda umbandista não guarda o mal

metafísico. Apenas o pessoal e socialmente ‘mal dito’: a sensualidade, a revolta, a crítica

53 ibiden p.6454 CHAIB, Lídia. Ogum: o rei de muitas faces e outras histórias dos orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p.14-15.

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mordaz, as falas inconvenientes, a falta de hipocrisia, o prazer sem mordaças. 55” Fugindo a

todos os padrões sociais e espirituais os Exus e Pomba-Giras vem remexendo em conceitos

alicerçados sob uma cultura cristã, onde a contrição será a regra maior. Daí vêm a assimilação

do Exu com o Diabo, quando ele traz à tona todo o “mal” trancafiado dentro de cada um, as

suas vontades mais sórdidas, mediante a visão cristã.

O lugar da esquerda é, no panteão umbandista, o de um guardião de um miolo precioso: a irredutibilidade individual e a liberdade. Encarna um sentido social de resistência e de vitalidade. Os exus não são maus, embora assim possam ser (mal) vistos. São a resposta ao Mal como expropriação de si em prol de um bem do outro. Vozes proféticas dos interesses materiais e pessoais, estes mensageiros tem o valor de sinal psicológico de reconhecimento e de admissão de si. 56

Mais uma vez vemos valores africanos expressos na Umbanda fazendo

enfrentamento direto com os valores cristão expressos na nossa sociedade. Face ao controle

da sociedade, controle este exercido a partir de controles morais e condenação a partir do

conceito de culpa, o Exu enquanto uma entidade “libertária” não reconhece toda essa prática

repressiva sendo desta forma um “defensor” e estimulador de práticas que reforçam a

sensualidade e a liberdade, uma vez que pertencentes aos chamados “povos de rua” o mesmo

tem a liberdade como premissa da sua existência, onde paredes e templos não o contém sendo

ele freqüentador das esquinas, encruzilhadas, cemitérios e lugares afins, tanto quanto os

grupos sociais discriminados que com ele se identificam, como no caso das prostitutas que

são identificadas como pomba-giras.

O autor conclui que:

Desta forma a umbanda e a sua ‘esquerda’ são uma excelente oportunidade para refletir formas sociais de cognição e alternativas de resistência étnica e cultural. [...] o culto conjuga saber popular, uma prática de cura e de feridas históricas e de mazelas da memória, e uma ética implícita às suas ‘magias’. A umbanda constitui-se em ocasião ímpar para aprender com os setores populares a relativizar o psicologismo e o individualismo. Ensina a revitalizar o ‘morto’ e a questionar a estaticidade da tradição. Consagra o humano, pondo no seu panteão a totalidade das suas sutilezas, agradáveis ou nem tanto. Prova-se testemunho de uma ética singular e social, de vocação universal, a partir do presente cotidiano. Uma ética que propugna um sentido de inclusão psicológica e social, politicamente indócil a tentativas históricas e teóricas de manipulação.

55 BAIRRÃO, José Francisco Miguel Henriques. Subterrâneos da submissão: sentidos do mal no imaginário umbandista. São Paulo: USP, 2002 .p.6456 ibiden p.64.

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E por ter esta postura é que a Umbanda muitas vezes enfrenta a ação branqueadora e

elitizada do kardecismo, uma vez que na sua ação busca afastar espíritos não evoluídos e

“trabalhar” apenas com os espíritos de luz construindo uma espécie de segregação espiritual.

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CONCLUSÃO

Lá na África tem Um tambor a chamar

A Pomba-Gira vai emboraMas ela torna a voltar

As religiões afro-brasileiras são indicadoras de comportamentos, hábitos, danças,

comidas, rituais... Enfim de uma maneira negra de ser, onde é estabelecida uma ética própria.

Imprime formas de relações sociais, organizações e hierarquias, estimula a vida comunal.

Estabelece padrões estéticos próprios e formas específicas de comunicação e de acesso ao

riquíssimo sistema simbólico, pleno de sabedoria.

Ao término deste trabalho, concluo que na verdade existem Umbandas e não somente

uma Umbanda, única e verdadeira. O fato dos rituais umbandistas não seguirem um manual, e

serem baseados na oralidade e na ancestralidade, os torna extremamente ricos em elementos e

simbologias dando a cada terreiro uma Umbanda diferente, embora conserve alguns

elementos básicos que a caracterizam como Umbanda.

Cada terreiro tem como base fundamental o terreiro onde a mãe-de-santo foi iniciada,

ou seja, baseado na ancestralidade. Desta forma algumas Umbandas são mais africanizadas,

outras nem tanto. Não sou adepta da nomenclatura: Linha Branca ou Linha Pura. Penso que

todas as Umbandas, de um modo ou de outro, são cruzadas: seja entre si, seja com o

kardecismo, seja com o catolicismo, etc. Atualmente ainda é utilizado o termo Umbanda Pura,

a Umbanda Verdadeira, mas não creio. Todas de uma forma ou de outra sofrem influências, e,

portanto não são puras.

Alusivo a questão das influências kardecistas e africanas, tema central deste

trabalho penso que as influências ritualistas kardecistas na Umbanda, de certa forma,

contribuíram na construção da mesma. No entanto o que discordo veementemente é o fato do

kardecismo classificar as pessoas e suas habilidade a partir de seu grau de instrução, de sua

escolaridade, ou seja, para ser Umbandista você tem que estudar, ler, teorizar. Na verdade a

Umbanda vive e sobrevive muito mais das conversas e ensinamentos no cotidiano do que em

palestras ou livros, o que também penso que seja válido, desde que sob medida. Sendo que

escolhi este tema como pesquisa acreditando que é necessário adentrar a academia para

desmistificar os preconceitos e discriminações existentes, não para criar uma nova Umbanda

ou dizer que rituais estão certos ou errados, visto que a vida escolar dos adeptos umbandista

quase sempre não é muito longa.

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É inegável a importância dos terreiros, seja Macumba, Umbanda ou Quimbanda, para

a sociedade brasileira, embora algumas pessoas ainda desacreditem de tal fato, segundo

Junior:

[...], não seria possível excluir a importância que a macumba possuía no imaginário cultural brasileiro; ela já fazia parte da nossa cultura. Ela ocupava, e ainda ocupa, um papel de destaque em uma sociedade que historicamente, reservou os direitos de acesso ao mundo da ordem como um privilégio aos mais abastados. Nessa realidade, a macumba se coloca como uma instituição capaz de resolver questões e de estabelecer pontes entre essas duas realidades. Quantos pedidos de empregos foram realizados nesses terreiros. Quantas pessoas doentes buscaram a cura para seus males nesses espaços. Quantas injustiças foram transformadas em trabalhos de magia, que buscavam sanar, o suposto erro, resgatando uma justiça social. Quanta respeitabilidade um líder religioso merecia de seu meio social e quantos benefícios ele poderia obter com essa inserção no mundo branco 57

Ora, atualmente muitas pessoas de alto prestígio político e social, buscam os

terreiros como meio de solucionar problemas cotidianos; buscam para sanar a curiosidade do

futuro; buscam sim, para o mal do outro; e mesmo sendo freqüentadores destes terreiros,

diante de sua posição social são “obrigados” a estacionar seus carros importados duas ruas

acima da rua do terreiro, ou pegar carona com algum filho-de-santo no intuito de não ser

reconhecido nestas “macumbas”? Mas o resultado todos querem.....

Onde as instituições do império e da república nascente não estiverem presentes, por lá rufaram os tambores, clamando aos guias e orixás um lugar no mundo, transformando essa expressão religiosa em instrumental que tornasse os seus participes sujeitos de sua própria história. Por certo, alguns “protetores encarnados” – policiais, políticos, funcionários públicos, “senhoras enluvadas”, etc... -, em muitos momentos, ofertaram uma mãozinha aos “protetores desencarnados”. A Macumba era assim, já citada, “amante atriz”, da elite “enluvada” do mundo da ordem.58

Outro assunto bastante pertinente nesta pesquisa foi à constatação de que a

presença do Exu e da Pomba-Gira será ponto crucial para a bifurcação da Macumba em

Umbanda e Quimbanda, pois pela influência kardecista os Exus não serão bem-vindos e para

tanto a Quimbanda irá acolher-los. Mas o que se percebe no dia-a-dia do terreiro é que os 57 JUNIOR, alva nação umbanidtsa, p.55.58 ibiden p. 56

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Exus não são apartados dos cultos umbandistas, pois muitos autores os quais pesquisei sobre

o assunto colocam a Umbanda como religião antagônica a Quimbanda, o que discordo, pois

os Exus também fazem parte as cerimônias, trabalhos e rituais umbandistas, incluindo assim o

panteão de guias cultuados e respeitados pela Umbanda. Não creio que Umbanda e

Quimbanda sejam religiões distintas, penso que uma complementa a outra.

Em suma, as religiões de origem africana ocupavam e ocupam o lugar mais

relevante no processo de preservação cultural da população negra, apesar das adversidades. A

religião foi e é a fonte e guardiã dos valores espirituais da visão de mundo que propulsionava

à vontade de viver dos negros escravizados que muitas vezes não tinham onde se apoiar

moralmente e espiritualmente.

Através da religião, o/a negro/a mantém integra sua personalidade frente às mais

adversas situações, nas situações em que viveu e vive grande parcela da população negra:

quando cada orixá representa uma arma na vida cotidiana.

A religião negra constitui-se, assim, num ponto de resistência de luta dos negros,

em busca de sua afirmação e identidade, quando proclamam: Negros sim, e com muito

orgulho!

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