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Primeira Apresentação Pequena Biografia de Bertrand de Jouvenel Nasceu em Paris em 1903 e faleceu em 1987, também em Paris. Foi filósofo ,economista, herdeiro de uma antiga família da nobreza francesa e fundador da Sociedade Mont Pelérin. Trecho do Prefácio ao Livro “Bertrand de Jouvenel” por Daniel J. Mahoney Bertrand de Jouvenel é um dos poucos pensadores políticos do século 20 que realmente importam, que são realmente merecedores de um contínuo respeito e atenção. No entanto, seu nome é praticamente desconhecido nos círculos intelectuais modernos, e seu trabalho nem se aproximou de ter o reconhecimento merecido. Esse livro é antes de tudo um ato de recuperação intelectual, um esforço para retificar a negligência a um dos maiores e mais humano dos pensadores do século passado. Um estudo do pensamento de Jouvenel implica necessariamente uma confrontação com a substância política e moral do século 20, já que esse “milieu político” apresentou a Jouvenel o material de sua reflexão. Desde o começo Jouvenel não se contentava somente em entender sua própria situação ou em antecipar “futuros possíveis” de nossa sociedades democráticas. Ele falava amplamente do “bem comum”, da “amizade”, e das “amenidade da vida”, até mesmo enquanto procurava entender as patologia intelectuais e políticas que tanto mancharam o século passado. Ele defendia as conquistas da moderna ordem liberal, mas era profundamente insatisfeito com o relato anêmico da natureza do homem e das motivações humanas que caracterizou as mais influentes correntes do pensamento moderno. Jouvenel recorreu a uma velha tradição de reflexão europeia que afirmava a natureza social do homem e reconhecia as inúmeras razões pelas quais um homem deve ser grato a seu patrimônio civilizacional. O filósofo político francês e cientista social era um liberal- conservador que mantinha uma posição moderada entre a nostalgia reacionária e as ilusões progressistas, um estudante do homem e da sociedade que nunca perdeu de vista as verdades que duram ou o caráter essencialmente dinâmico da civilização moderna. Jouvenel anteviu as diversas maneiras pelas quais as verdades e bens permanentes de nossa natureza podem ser sustentados em uma ordem social de permanente mudança. Contra reacionários e progressistas ele resistiu à tentação de colocar um ponto final em todas coisas. Não houve crítico mais penetrante do “mito da solução”, da ilusão perniciosa de que o problema político poderia ser resolvido permanentemente em vez de prudentemente navegado e avaliado. A conjunção única de erudição, sobriedade, urbanidade, e civilidade de Jouvenel tem muito a ensinar a uma era “pós-moderna” que esqueceu largamente as fundações intelectuais e morais do auto-controle, da moderação, e de uma deferência inteligente à sabedoria do passado. Ele permanece nosso contemporâneo principalmente por nunca ter se pautado pela preocupação em ser moderno e “atualizado” em suas posturas políticas.

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Primeira Apresentação

Pequena Biografia de Bertrand de Jouvenel

Nasceu em Paris em 1903 e faleceu em 1987, também em Paris. Foi filósofo ,economista,

herdeiro de uma antiga família da nobreza francesa e fundador da Sociedade Mont Pelérin.

Trecho do Prefácio ao Livro “Bertrand de Jouvenel” por Daniel J. Mahoney

Bertrand de Jouvenel é um dos poucos pensadores políticos do século 20 que realmente

importam, que são realmente merecedores de um contínuo respeito e atenção. No entanto,

seu nome é praticamente desconhecido nos círculos intelectuais modernos, e seu trabalho

nem se aproximou de ter o reconhecimento merecido. Esse livro é antes de tudo um ato de

recuperação intelectual, um esforço para retificar a negligência a um dos maiores e mais

humano dos pensadores do século passado. Um estudo do pensamento de Jouvenel

implica necessariamente uma confrontação com a substância política e moral do século 20,

já que esse “milieu político” apresentou a Jouvenel o material de sua reflexão. Desde o

começo Jouvenel não se contentava somente em entender sua própria situação ou em

antecipar “futuros possíveis” de nossa sociedades democráticas. Ele falava amplamente do

“bem comum”, da “amizade”, e das “amenidade da vida”, até mesmo enquanto procurava

entender as patologia intelectuais e políticas que tanto mancharam o século passado. Ele

defendia as conquistas da moderna ordem liberal, mas era profundamente insatisfeito com

o relato anêmico da natureza do homem e das motivações humanas que caracterizou as

mais influentes correntes do pensamento moderno.

Jouvenel recorreu a uma velha tradição de reflexão europeia que afirmava a natureza social

do homem e reconhecia as inúmeras razões pelas quais um homem deve ser grato a seu

patrimônio civilizacional. O filósofo político francês e cientista social era um liberal-

conservador que mantinha uma posição moderada entre a nostalgia reacionária e as ilusões

progressistas, um estudante do homem e da sociedade que nunca perdeu de vista as

verdades que duram ou o caráter essencialmente dinâmico da civilização moderna. Jouvenel

anteviu as diversas maneiras pelas quais as verdades e bens permanentes de nossa natureza

podem ser sustentados em uma ordem social de permanente mudança. Contra reacionários

e progressistas ele resistiu à tentação de colocar um ponto final em todas coisas. Não houve

crítico mais penetrante do “mito da solução”, da ilusão perniciosa de que o problema

político poderia ser resolvido permanentemente em vez de prudentemente navegado e

avaliado. A conjunção única de erudição, sobriedade, urbanidade, e civilidade de Jouvenel

tem muito a ensinar a uma era “pós-moderna” que esqueceu largamente as fundações

intelectuais e morais do auto-controle, da moderação, e de uma deferência inteligente à

sabedoria do passado. Ele permanece nosso contemporâneo principalmente por nunca ter

se pautado pela preocupação em ser moderno e “atualizado” em suas posturas políticas.

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Do Poder – O Minotauro apresentado

Imitação do totalitarismo e controles modernos

O pano de fundo sobre o qual Jouvenel escreve é o fim da Segunda Guerra Mundial. Nela

as populações tiveram todas as suas energias mobilizadas para o esforço de guerra; até

mesmo a partes mais lúdicas da vida só foram toleradas como combustível para a guerra.

A causa imediata da proporção monstruosa da guerra foi o fato de que países como Grã

Bretanha e Eua, onde ainda não existia o recrutamento obrigatório e os direitos do

individuo eram sagrados, terem que copiar as técnicas de mobilização total da Alemanha

para que não fossem arrasados como a França. Mas tal explicação não é suficiente: Por que

Napoleão ,Frederico II, Carlos XII, nunca conseguiram mobilizar o povo totalmente para a

guerra? A verdade é que eles simplesmente não tinham a capacidade para isso. A resposta

para a brutalidade da guerra moderna deve ser buscada na vastidão do controle, tanto

material quanto espiritual, de que os governos dispõem.

Limitações do Poder no passado

Nos tempos de Napoleão somente os homens em idade militar eram convocados para a

guerra e ainda assim somente metade deles e nos tempos de Luís XIV o recrutamento

obrigatório ainda era desconhecido. Mas se arranjarmos em ordem cronológica as guerras

dos últimos mil anos no Ocidente veremos um crescimento constante da participação da

sociedade civil nas guerras.

Ao regressarmos no tempo até os séculos 11 e 12, podemos contemplar o fato de que o rei

só podia contar com as tropas que seus vassalos conseguiam e que permaneciam em seu

serviço por no máximo 40 dias. Como ele podia sustentar operações de grande escala com

esse tipo de exército? Para isso são necessárias tropas mais disciplinadas e de longo prazo,

mas esse tipo de tropa precisa ser paga. Mas como o rei poderia pagar se os únicos recursos

imediatamente disponíveis para ele eram os de seus domínios privados? Ninguém

permitiria que ele impusesse qualquer tipo de taxa! A guerra naqueles dias era sempre algo

pequeno, pela simples razão de que o Poder também o era, pois não dispunha de dois

controles essenciais: o recrutamento obrigatório e o poder de imposição de taxas. O rei

precisava visitar todos os maiores centros populacionais do reino para pedir ajuda aos seus

cidadãos.

Foi somente ao fim da Guerra dos Cem Anos, quando o sacrifício havia se tornado uma

segunda-natureza, que o Poder conseguir impor uma taxa que permitiria a manutenção de

tropas permanentes.

Capacidade Legislativa

As crescentes atribuições civis da monarquia (que ela executou satisfatoriamente) passaram

a justificar a sua aquisição de uma capacidade legislativa - algo desconhecido durante a

Idade Média. E essa capacidade legislativa carregava em seu seio o poder de imposição de

tributos.

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A grande crise do século 17, caracterizada pelas revoluções na Inglaterra,em Nápoles e a

Fronda, marcou o embate entre as três principais monarquias ocidentais tentando aumentar

seus tributos e os povos que resistiam violentamente a essas tentativas. O crescimento dos

exércitos após esse esse período foi assustador: Carlos VII tinha a sua disposição 12.000

homens, Luís XVI 180.000 e o Imperador 240.000.

Os serviços do poder

Dizer que a monarquia somente aumentou os exércitos seria ridículo: ela estabeleceu a

ordem interna, protegeu o fraco contra o forte, elevou o nível de vida da comunidade e

conferiu grandes benefícios à indústria, comércio e agricultura. Mas essa mesma

competência gerou um controle natural sobre as atividades da nação e esse maior controle

se traduz imediatamente em uma maior capacidade para a guerra.

Uma barganha faustiana

Ao destruir o poder dos reis, os homens acreditavam estar se libertando exatamente desse

peso. É surpreendente ver que a taxação e o recrutamento obrigatório se tornarão mais

pesados com a queda das monarquias.

Taine: “Ali ela (a guerra na Europa Continental) se encontra com seu amigo de juventude,

seu irmão gêmeo – o sufrágio universal; ambos nascidos aproximadamente ao mesmo

tempo, um implicando o outro, de forma aberta e completamente, ambos os terríveis e

cegos guias ou mestres do futuro, um colocando nas mãos de cada adulto uma cédula

eleitoral, o outro pondo em suas costas uma mochila de soldado. Ao fim das Guerras

Napoleônicas 3.000.000 de homens estavam nos campos de batalha de Europa; a Primeira

Grande Guerra matou ou mutilou cinco vezes mais do que isso e na Segunda Guerra o

número chega a se tornar incontável.

Quando a população tinha os reis como seus mestres, ela não se cansava de reclamar dos

impostos, mas agora pagam o poder com suas próprias vidas! É como se um sucessor das

monarquias evanescentes tivesse levado a cabo de maneira ininterrupta os objetivos do

absolutismo.

Paul Viollet tinha consciência disso: “O Estado Moderno é somente o rei de outrora

trazendo a um fim triunfal seu trabalho incessante”.

A máscara do Poder, o Poder aberto a todos

Outrora o Poder se manifestava visualmente na figura do Rei, mas agora ele se mascara

sobre a anonimidade, afirma não ter existência por si mesmo, sendo somente o

instrumento impessoal e desapaixonado da vontade geral.

Mas a verdade é que a única coisa a mudar foi a facilidade de alteração das pessoas que

compõe o Poder. A abertura do Poder para todos os talentos ambiciosos torna a extensão

do poder muito mais simples. Sob o Ancien Regime, os espíritos mais elevados da sociedade,

que não tinham, como muito bem sabiam, nenhuma chance de partilhar do Poder,

rapidamente denunciavam qualquer avanço do Poder sobre a sociedade. Mas agora todos

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são potencialmente ministros e não desejam, portanto, prejudicar uma máquina que

aspiram controlar um dia.

Um poder grande e fraco

Essa competição pelo poder, aliada à rotação constante dos cargos, trouxe a baila um

Poder que é ao mesmo tempo grande e fraco. Mas é da natureza do Poder não permanecer

fraco. Sempre aparecem circunstâncias que fazem com que o próprio povo deseje ser

liderado por uma vontade poderosa.

“O tirano não derivaria sua legitimidade do plebiscito se a vontade geral já não tivesse sido

proclamada uma fonte suficiente da autoridade. A arma do partidarismo, com que ele se

consolida, é um rebento da competição pelo Poder. O caminho foi aberto pelo

condicionamento das mentes na infância pelo monopólio, mesmo que incompleto, da

educação. A opinião foi preparada para a tomada dos meios de produção pelo estado. Até

mesmo o regime policial, o atributo mais insuportável da tirania, cresceu à sombra da

democracia. O ancien régime dificilmente conhecia tal coisa.”

Relação entre a extensão do Poder em tempos de paz e a guerra

Se Hitler tivesse sucedido Maria Teresa no trono, alguém poderia supor que ele seria capaz

de forjar tantas armas de tirania? Não é mais possível acreditar que ao destruir Hitler e seu

regime nós atacamos a raiz do mal. Quanto mais departamentos da vida o Poder tomar

para si, maiores serão seus recursos para a guerra; quanto mais vistosos os serviços que ele

presta, mais imediatas serão as respostas a seus chamados.

Pois pergunta Jouvenel: “ Não está a vontade de Poder profundamente enraizada na

natureza humana, e as incríveis qualidades de liderança necessárias à manutenção de uma

máquina sempre crescente não terão quase sempre como companhia uma cobiça

conquistadora?”

A busca da segurança

O alimento mais importante do Poder é o desejo de segurança social dos homens. E a

busca dessa segurança absoluta é o ponto culminante da história ocidental dos últimos

séculos.

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Livro 1 – A Metafísica do Poder

A essência do Poder e o estudo de sua extensão

Como é possível a existência de um governo? Como tantos obedecem a tão poucos? Qual

o segredo da obediência civil? Por trás das diferentes formas de governo e de sociedade

resplandece uma só essência: o Poder. Não se trata de perguntar qual é a melhor forma de

governo, mas o que é a essência do Poder.

A história nos ensina que a obediência que tem um limite que o Poder deve respeitar, assim

como há um limite dos recursos que ele pode tomar da sociedade. Por exemplo, os reis

Capetianos não podiam impor a taxação direta e os Bourbon o serviço militar. O estudo

das sucessivas variações nos recursos do Poder durante a história considera a história do

Poder com referência à sua extensão – algo muito diferente das histórias usuais que

abordam as formas do poder.

Obediência às pequenas associações e à grande sociedade

Poucos pesquisadores voltaram sua atenção para a obediência de grandes massas a uns

poucos seres humanos. Qualquer um que tenha começado uma pequena sociedade visando

algum objetivo especial conhece muito bem a propensão de seus membros, mesmo que

tenham aderido por livre e espontânea vontade a algo que valorizam, de abandonarem a

sociedade. É surpreendente, portanto, a docilidade dos homens para com uma grande

sociedade.

O poder de coerção

Qual é a natureza da autoridade dos mandatários do Poder sobre nós? Será ela originária do

controle dos meios de coerção física? Mas para aplica-la é preciso o apoio de um grupo de

“capangas”. Temos que explicar, portanto, como eles conseguiram esse exército e o que

garante sua fidelidade.

Mas não é verdade que o Poder sempre tenha contado com um vasto aparato de coerção.

Roma, por exemplo, não teve oficiais permanentes por muito tempo; nenhum exército

permanente adentrava seus muros e os magistrados só dispunham de alguns lictores para

realizar suas vontades.

A participação

Seria, portanto, verdadeiro dizer que o Poder deve sua eficácia a sentimentos de

participação e não de medo? Estaríamos obedecendo a nós mesmos? Essa á explicação

favorita dos juristas; e tem sido apoiada pelo duplo sentido da palavra “estado”: ela pode

significar qualquer sociedade organizada com um governo autônomo, mas também a

máquina governamental dentro da sociedade. Dizer que a máquina governamental

comanda a sociedade é um truísmo; mas se o outro sentido for misturado com esse

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chegamos rapidamente à proposição não comprovada de que a sociedade comanda a si

mesma.

Nenhum dos dois

É fato que a autoridade já foi exercida por Poderes bastante distintos da sociedade, mas

que ainda assim eram obedecidos. Resta, portanto, que o comando do Poder sobre a

sociedade não é fruto somente da força ou da participação por si mesmas. Pode-se alegar

que há realmente dois Poderes de tipo diferente: o de poucos sobre muitos ( aristocracia e

monarquia), que se mantém somente pela força; e o da massa sobre si mesma, que se

mantém através da participação. Mas se fosse assim deveríamos encontrar o aparato

coercitivo em seu máximo nos períodos aristocráticos e monárquicos e em seu mínimo nas

democracias modernas. Sabemos que o contrário se deu!

O hábito da obediência e a história

Uma explicação promissora está no hábito da espécie. Encontramos o Poder no

nascimento da vida social, assim como o pai no nascimento do bebê. Essa antiguidade do

Poder faz com que sua autoridade se fundamente em sentimentos advindos de tempos

primitivos.

A sucessão de governos que regem a mesma sociedade no curso dos séculos pode ser

considerada como um só governo que faz contínuas conquistas. O poder é,portanto, algo

que o historiador entende e o lógico não.

A única explicação metafísica suficiente

A única abordagem sistemática que pode explicar todo Poder já existente é a da “Vontade

Divina”, no sentido que São Paulo dá: “Não outro poder que não Deus: todos os Poderes

advêm de Deus”. Todas as outras explicações metafísicas do Poder são inúteis, se é que

podem ser chamadas de metafísicas.

Insuficiência da explicação histórica e natureza x objetivos na crise da razão

Mas assim que o Poder excede os limites determinados pelo hábito a explicação histórica

cessa de ser completa. E quando um período de discussão se instala a razão nunca deixou

de seguir os mesmos dois passos, que correspondem ao lado teórico e ao lado prático do

intelecto humano. Pelo lado da teoria ela busca justificar a obediência como tal; no lado

prático ela abriu as portas para crenças, não importando se em causas finais ou eficientes,

que tornam um aumento da obediência possível. O poder deve ser obedecido, seja em

virtude de sua natureza ou de seus objetivos. E o que existe na prática é a crença humana

na legitimidade do Poder, a esperança em sua beneficência e a consciência de sua força.

Parece, portanto, que a obediência é fundamentalmente composta de crédito.

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O crédito

A importância do crédito para a expansão do Poder se dá principalmente através das

teorias que estimulam a imaginação a pensar sobre os limites da soberania. Nesse processo

é importante ressaltar que esses sistemas abstratos de pensamento podem ser úteis para o

Poder mesmo quando não atribuem a ele a soberania e o papel de agente do Bem Comum;

eles fizeram seu trabalho ao implantar a possibilidade dessas concepções nos corações e

mentes. A posição do Poder na sociedade é tal que só ele pode se aproveitar dessa

soberania em potência e também da função de agente do Bem Comum. Prossigamos,

portanto, ao estudo dessas teorias.

Teorias da Soberania

As teorias que estiveram mais voga no Ocidente são aquelas que justificam a autoridade

política por sua origem. Diz-se que a obediência é um dever devido à existência inegável de

“um direito último ao comando na Sociedade” chamado soberania. As teorias do Direito

Divino dos Reis e da Soberania, apesar de aparentemente opostos, provêm dessa idéia de

soberania. E por trás dessa concepção jurídica de um direito ao qual todos os outros devem

se submeter encontra-se uma concepção metafísica.

A limitação do Poder

Será que essas teorias agiram com uma disciplina sobre o Poder, ao forçar sua aliança com

um ser benevolente? Ou canalizaram seu curso, ao criar controles que o forçam a cumprir

suas promessas? Ou limitaram-no , ao restringir a parcela da soberania que ele possui?

Todos os autores da teoria da soberania trabalharam algum desses instrumentos restritivos,

mas no fim todos eles perderam seu desígnio original, tornando-se fontes de expansão do

Poder, ao fornecer-lhe a ajuda de um soberano invisível com o qual se identificar no tempo

devido. A teoria da soberania divina levou à monarquia absoluta; a da soberania popular à

supremacia parlamentar e finalmente a um absolutismo plebiscitário.

A soberania divina e o Poder medieval limitado

A concepção errônea de que a tese da origem divina do Poder criou uma monarquia

arbitrária e ilimitada na Idade Média é bastante comum nos tempos modernos. Mas não há

um grão de verdade nessa tese. O Poder era divido ( com a Curia Regis), limitado ( por

outras autoridades que eram autônomas em suas esferas) e, acima de tudo, não era

soberano.

O que é um poder soberano?

As características distintivas de um poder soberano são: a possessão de uma autoridade

legislativa; a capacidade de alterar como quiser as regras de conduta dos súditos; e estar

acima das leis enquanto legisla para outros.

A soberania divina contra o rei

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Durante séculos a soberania divina foi uma garantia da fraqueza do Poder e não de sua

força. A idéia do poder absoluto do rei só começa a ser associada a ela a partir do século

XVII. Se tomarmos a teoria da soberania divina durante seu florescimento entre os séculos

XI e XIV, o que encontramos? Que a fórmula “ Todo Poder vem de Deus” era repetida

como uma exortação para que o Poder obedecesse a Deus.

O rei consagrado da Idade Média era um Poder tão restrito e pouco arbitrário quanto

possamos conceber. A teoria da soberania divina favorecia tanto essa situação, que, para

escapar do controle da Igreja, reis e imperadores chegaram a buscar argumentos na tradição

dos juristas romanos que diziam que a soberania se originava do povo.

Marsílio de Pádua

Foi exatamente esse “truque” que caracterizou a obra de Marsílio de Pádua. Mas o que

permitiu que o Poder, depois de usar o povo contra Deus, pudesse jogar Deus contra o

povo? A crise das idéias europeias gerada pela Reforma Protestante. Agora cada rei podia

criar sua igreja nacional e tornar o direito divino um aliado do Poder. A teologia sempre

esteve muito longe de ser uma justificativa para o absolutismo e como prova disso temos o

fato de que os reis Stuart e os Bourbon, queimaram os tratados políticos dos Jesuítas

quando buscaram avançar suas prerrogativas. Roberto Belarmino dizia, por exemplo que

competia ao povo trocar uma monarquia por uma democracia, ou vice-versa. Já o rei Jaime

I dizia que a única coisa que um súdito poderia fazer perante uma injustiça real do rei era

fugir para bem longe de seu senhor.

Marsílio de Pádua concebe o povo como portador da autoridade legislativa suprema, mas

ele só é dotado dessa capacidade para repassá-la a um representante despótico.

Hobbes e a ausência de coerção

Hobbes define os estado de natureza, a liberdade primitiva, como a ausência de qualquer

coação exterior, definição esta que é mais adequada para um médico do que um jurista. A

submissão absoluta das soberanias individuais ao Estado é a condição de superação desse

estado de guerra de todos contra todos. Em Hobbes e Spinoza já encontramos a

extravagante suposição de que cada indivíduo é também um autor de cada ato do soberano:

se sofremos injustiças só temos nós mesmos a acusar.

Santo Agostinho x Hobbes/Espinoza

Quão diferente é a linguagem de Santo Agostinho: “... mas, conquanto que acreditemos em

Deus e tenhamos sido chamados a Seu reino, não fomos submetidos a qualquer homem

que deva buscar destruir a graça da vida eterna que Deus nos deu”.

Submissão de todos os direitos x bem dos súditos

A recepção por parte do soberano de todos os direitos individuais implica que ao indivíduo

não resta nada com que se opor a ele. A tese de Locke de que de que nem todos os direitos

foram entregues rendeu frutos políticos, mas não possui qualquer sentido lógico. A

manutenção de algumas prerrogativas é incompatível com a soberania absoluta.

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Partindo da tese de Hobbes-Espinoza, como é possível garantir que o soberano considere

somente o interesse de seus súditos? Certamente é bem menos terrível imaginar que essa

soberania seja distribuída coletivamente entre todos do que pertencendo a um só ou a

poucos.

Rousseau: a não-transmissibilidade da soberania

Na visão de Rousseau o processo tem dois estágios: primeiro os indivíduos se transformam

em um povo e depois dão a si mesmos um governo. No sistema anterior a criação e a

transmissão da soberania era simultânea, mas agora ela é criada para nunca ser transmitida.

Rousseau: A usurpação da soberania e o movimento “natural” do Poder

Rousseau não identificava o governo e o soberano e sabia muito bem que os agentes do

Poder formam uma corporação que tende a usurpar a soberania. Consequentemente,

quanto maior o elemento de usurpação em um governo, maior a amplitude de seus

poderes.

O que Rousseau não explica é a fonte de onde o Poder tira energia para efetuar essa

usurpação. Sua visão é de que o governo naturalmente tende a se mover de muitos para

poucos, ou da democracia para a aristocracia e desta para a monarquia, considerada por ele

como a forma final da sociedade. E a monarquia , ao se tornar tirânica, causa a morte do

corpo social. Mas não há nada na história que demonstre que esse movimento sucessivo

seja inevitável.

A fraqueza dessa teoria está em sua heterogeneidade. Ela tem o mérito de tratar o Poder

como uma entidade separada – um corpo que acumula força - , mas ainda pensa a

soberania , de maneira medieval, como um direito.

Como evitar a usurpação? O vigia do vigia

Ambas submetem o poder a regras. Mas o que impede esses mandatários de resumir em

sua própria pessoa a Soberania Divina ou a Vontade Geral? Há alguma maneira de evitar

essa usurpação? Foi dessa pergunta que surgiu a idéia da existência de um corpo que

vigiasse o Poder como representante da soberania.

A dualidade do poder e seu fim

Sob o regime da soberania divina esse corpo era a Igreja e sob o da soberania popular o

Parlamento. Toda a metafísica do Poder leva a essa dualidade, ao mesmo tempo que a

abomina.

Não podem existir duas vontades divinas ou populares; somente um desses corpos pode

ser um reflexo verdadeiro do soberano; a vontade que se opõe a ele é ,portanto, uma

rebelde a ser submetida. Ao fim da Idade Média a monarquia saiu vitoriosa.

Rousseau chegou a prever o que escapou a Montesquieu: a autoridade do Parlamento, que

crescia à custa do executivo e agia como um freio ao Poder, iria no final das contas

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dominar o executivo e se fundir com ele, reconstituindo um Poder que pode se arrogar a

soberania.

Ao disciplinar os súditos elas reforçam o Poder, mas podem limitar esse Poder, caso exista

um método prático de execução da tarefa de vigilância do representante da Soberania. Mas

é essa a grande dificuldade!

As precauções contra usurpação e o enfraquecimento do Poder

Esse perigo leva a uma multiplicação das precauções; o Poder e seu controlador são

desmontados em pequenos pedaços pela divisão das funções e a rápida sucessão dos

detentores de cargos. E isso significa fraqueza e desordem na administração da sociedade, o

que se torna intolerável com o tempo e faz com que os pedaços espalhados da soberania

sejam novamente reunidos.

Quanto maior a concepção do direito à soberania, no tempo em que sua monopolização

era considerada uma fantasia, maior a tirania.

A soberania popular pode levar a uma tirania maior do que a soberania divina: a última é

uma lei eterna, enquanto a primeira não tem qualquer tipo de estabilidade natural.

Teorias Orgânicas: a finalidade do poder, eclipse e ressurgimento

Teorias da soberania: justificativa do poder a partir de sua origem.

Mas e a finalidade do Poder? São Tomás, por exemplo, parece atribuir mais importância à

finalidade do que à origem. A discussão dos fins do poder era um corretivo para a idéia da

soberania nos pensamento católico medieval, mas sofreu um eclipse com a teorias da

soberania popular.

As teorias sobre a finalidade do Poder ressurgem no século 19, mas agora como uma força

favorável a sua expansão. Essa reversão se associa a uma nova visão da sociedade como um

organismo em desenvolvimento e não um agregado de indivíduos.

A concepção nominalista da sociedade

Até o século 19 não havia ocorrido a qualquer pensador ocidental a idéia da sociedade

como algo com existência fora dos indivíduos.

O cidadão romano, por exemplo, tinha pouca necessidade da palavra “estado”, pois não era

consciente de um ser transcendente à sociedade. A sociedade, para ele, consiste de homens

em associação que sempre podem se separar.

A soberania: contrapeso do nominalismo

Dada essa possibilidade de secessão era necessário um poderoso fator de junção para

sustentar a sociedade e é ai que a idéia de soberania se encaixava. A majestade conferida à

soberania se equilibrava perfeitamente com a independência dos indivíduos. Mas assim que

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a secessão se torna impossível o apoio que a teoria da soberania dá ao Poder se torna

excessivo e perigoso. Esse perigo permanece parcialmente contido enquanto as mentes

retêm a hipótese básica que o homem é a realidade e a sociedade uma convenção.

A concepção realista e a Nação

A metafísica só pode afirmar a realidade da sociedade, depois que ela tomou a forma de um

ser chamado Nação. E o fator causador dessa transformação foi a Revolução Francesa. A

partir dela a mobilização total para a guerra exige que a Nação seja um todo que vive uma

vida superior à de suas partes.

Hegel: a vanguarda revolucionária

Foi Hegel que formulou a primeira doutrina coerente desse novo fenômeno, concedendo à

nação um certificado de existência filosófica. Para ele a sociedade é o fim mais elevado de

todo indivíduo. O trabalho de Hegel só deu forma a uma crença que já aparecia

conscientemente em muitas mentes. A trocas dos direitos inamovíveis dos indivíduos por

uma moralidade social exaltada marca a transformação das especulações finalistas em

combustível para o Poder.

Rousseau distinguia entre a vontade de todos e a vontade geral; Hegel afirma que a vontade

geral é somente aquela que tende a realizar o uma vida coletiva mais elevada. Somente os

que estão conscientes dessa necessidade podem representar essa vontade. Está preparado o

caminho para a idéia de uma vanguarda revolucionária que guia a maioria até a perfeição do

Todo. É o trabalho dessa vanguarda fazer com que todos se sintam como membros de

uma totalidade e não mais como indivíduos.

Da Economia para a Biologia e vice versa

As mudanças sociais do século 19 geraram a idéia de que a especialização econômica leva a

uma maior felicidade e riqueza de todos.Platão afirmava a autarquia e a indiferenciação

condição da unidade social, já Hegel diz a característica principal do estado moderno era

uma diferenciação crescente abarcada por uma unidade cada vez mais rica.

A biologia avançou muito quando passou a ver todo organismo vivo como uma estrutura

de células. Um empréstimo da concepção da especialização do trabalho da economia

política trouxe a tona a idéia de que todas essas células teriam evoluído de uma célula

primitiva e simples.

Se a biologia via os organismos como sociedades, como o pensamento político poderia

deixar de ver as sociedades como organismos? Muitas vezes no passado o corpo político já

havia sido comparado ao corpo humano!

Mas essa metáfora é uma serva perigosa. O progresso das ciências naturais a invalidou e

mostrou que qualquer comparação da sociedade com um organismo só tem algum sentido

em relação a seres muito abaixo da escala de evolução humana.

Herbert Spencer, Thomas Huxley e Durkheim: o conflito entre o liberalismo e a

visão orgânica.

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Essa hipótese, como desenvolvida por Spencer, afirma que as sociedades primitivas do

presente são estágios da evolução pelos quais nós já passamos. Mas o que mais importa

aqui são as conclusões políticas tiradas desse sistema “organicista”.Spencer, um liberal-

conservador vitoriano, tinha como credo a restrição do Poder. E por isso mesmo se

alarmou com as conclusões coletivistas que Auguste Comte tirou da diferenciação social.

Thomas Huxley, o biólogo, já afirmava categoricamente a oposição do organicismo a

qualquer visão negativa da função estatal. Como órgão central, o estado deve adquirir um

controle cada vez maior de suas partes para que o organismo funcione harmonicamente.

Durkheim: A escala e as funções do órgão governamental devem aumentar

necessariamente com o desenvolvimento das sociedades. Ele chegou a afirmar enfim que

os sentimentos religiosos eram somente sentimentos de participação na sociedade – uma

premonição obscura de estarmos criando um ser maior do que nós mesmos.

As teorias da soberania subjugadas pelo Poder e sua incapacidade explicativa

Nas duas primeiras teorias, o Poder aparece como um centro de comando absoluto em

meio à multidão, na terceira como um fogo cristalizador e na última como um órgão em

um organismo em expansão.

As duas primeiras, fundadas como são em uma visão nominalista da sociedade possuem

uma certa aversão à absorção completa do homem: elas permitem a noção de direitos

subjetivos. A primeira delas, a da soberania divina, ao postular a existência de uma lei

divina eterna implica em um direito objetivo, enquanto nas teorias mais recentes é a própria

sociedade que forja as leis.

Conclusão: O Poder possui uma incrível força de atração que é capaz de dobrar até mesmo

os sistemas intelectuais concebidos para destruí-lo. Esqueçamos, portanto, essas belas

teorias que não nos ensinaram nada de essencial e procuremos desnudar o poder.

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Segunda Apresentação

Livro II – Origens do Poder

As sociedades primitivas como etapa evolutiva

- A figura do historiador aparece tardiamente na história, em sociedades já altamente

desenvolvidas: Tucídides é contemporâneo de Péricles, Tito Lívio de Augusto. Esse fato

dificulta bastante um estudo sobre as origens do Poder. Como superar esse obstáculo?

Muitos procuraram a resposta na etnologia, no estudo das sociedades primitivas de nossa

própria época.

- Heródoto e Tácito atestam o fato de que em todas as épocas os civilizados sentiram uma

grande curiosidade por seus vizinhos bárbaros e primitivos. Mas só muito posteriormente

surgiu a idéia de que as sociedades primitivas eram testemunhas retardatárias de nossa

própria evolução. Durante a primeira rodada de entusiasmo darwinista ninguém duvidava

que a evolução do clã até a democracia parlamentar poderia ser traçada tão certamente

quanto a do macaco até o homem de terno.

- Mas as reconstruções históricas de Durkheim, Engels e outros estão hoje defuntas; não há

mais certeza sobre a existência de uma sociedade primitiva original. A moda de procurar na

Austrália o arquétipo de uma comunidade atrasada que explique nossos sentimentos

religiosos se esvaiu.

Patriarcalismo: Rei x Senado

-A primeira autoridade a surgir em nossa vida é a paterna. Não será ela também a primeira

da sociedade? De Aristóteles até Rousseau e De Bonald encontramos a afirmação de que a

sociedade é uma agregação de famílias patriarcais.

- O crescimento das famílias em nações fez com que os patriarcas tomassem a posição de

reis. Outra e oposta suposição é de que os chefes de várias famílias se reuniram em

igualdade e criaram uma associação voluntária.

- De acordo com a hipótese adotada chega-se à conclusão de que o governo “natural” é o

monárquico ou o senatorial. Mas desde a crítica de Locke a Filmer que a autoridade

senatorial é considerada primordial.

- A sociedade apresenta, portanto, uma dualidade de poderes: de um lado o poder total do

chefe de família em sua casa e de outro o do conselho dos chefes de família reunidos em

igualdade fraternal.

Ataque à origem patriarcal do Poder

- Essa origem patriarcal do Poder foi rechaçada próximo a 1860, mais ou menos ao mesmo

tempo em que a revolução darwinista.

- Jouvenel chama essa alteração de “Período Iroquês”. Um etnologista americano, de nome

Morgan, observou que a herança entre esse povo era matrilinear e que as palavras “pai” e

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“mãe” também cobriam os tios paternos e tias maternas. Esse fenômeno foi encontrado

em diversas outras tribos americanas.

- Bachofen catalogou os costumes dos povos antigos e mostrou que a afiliação uterina da

criança seria uma norma geral entres esses povos. O casamento em grupos também foi

considerado um fato.

- Esses estudos estabeleceram, pelo menos, que existiam algumas sociedades com famílias

não patriarcais e que, portanto, a autoridade patriarcal não poderia ser o ponto de partida

para todo governo.

O Totemismo e o terror perante a natureza

- McLennan, em 1870, foi o primeiro a observar que grupos primitivos possuem o culto de

uma planta ou animal em particular: é o seu totem. Tudo foi alterado com isso: o paladino

de plumas e o filósofo nu, essas alucinações do século 18, foram substituídos por selvagens

aterrorizados pela natureza.

- Esses seres tinham como único recurso de proteção o grupo e a punição mais severa era o

banimento. Acreditavam que todos os acontecimentos naturais, benéficos ou maléficos,

eram frutos de um desígnio superior que poderia ser manipulado através do

comportamento e das cerimônias adequadas. Mas quem, senão os “Anciões”, sabia o que

fazer? E entre eles somente aqueles que tinham percepções mágicas. Esses são os homens

destinados ao comando, aqueles que sabiam negociar com os poderes invisíveis.

O rei sacrificial

- A teoria de Frazer: o rei sacrificial.

- O rei seria um intercessor dos deuses, a ser sacrificado ou deposto se não conseguisse

aplacar a fúria divina.

A autoridade oracular e os costumes

- O desenrolar dos estudos etnológicos tornou mais certa a visão de que as sociedades

primitivas não se encaixam nas categorias usuais de monarquia, aristocracia e democracia. É

absurdo supor uma democracia de selvagens, se reunindo para debater os prós e contras de

cada ação. Até mesmo o povo romano, um dos menos religiosos já existentes, considerava

o sacrifício e a consulta dos augúrios o precedente necessário de todo debate. As decisões

dos Anciões sempre tiveram a autoridade de um oráculo.

- Um exemplo dado por Summer Maine mostra a repugnância dos povos não civilizados a

decisões deliberativas: em sua passagem como funcionário civil na Índia ele viu o governo

construir canais de irrigação para as comunidades locais, ficando a cargo delas a

distribuição da água. E o que aconteceu? Ao fim da divisão os locais resolveram esquecer

que uma autoridade humana a havia feito! Eles se persuadiram de que uma porção da água

tinha sido dada a cada um por um costume antigo!

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Rituais de Iniciação, poderes mágicos e sociedades secretas

- Essa visão de mundo considera que cada ato da vida tem seu rito apropriado a ser

executado pelos Anciões. Será que os jovens da tribo poderiam questionar essa autoridade,

já que era através dela que eles chegavam à maturidade?

- Essa transição era sempre marcada por um rito iniciatório durante o qual o adolescente

era espancado e humilhado, só recebendo seu nome de adulto ao fim do processo.

- A existência ou a presunção dos poderes mágicos dos Anciões são confirmadas pelos

estudos de Frazer sobre a crença em várias partes do globo de que homens são capazes de

precipitar ou evitar a queda da chuva.

- O terror perante esse poder explica a incrível multiplicação de sociedades secretas entre

os selvagens. Todos desejavam se aproximar dos poderes ocultos com que o círculo central

dos Anciões se comunicava. O comando exercido pelo Poder mágico é o único conhecido

por esses povos primitivos.

A herança conservadora do Poder mágico

- O medo é o princípio por trás desse Poder e seu papel na sociedade é o da fixação dos

costumes. O Poder conquista de forma conservadora. Mesmo que esse tipo de arranjo

social desapareça é razoável pensar que suas influências ainda perdurem por muito tempo

nos corações e mentes.

- É uma tentação errônea imaginar que com o fim das monarquias sagradas toda associação

religiosa tenha se esvaído do novo Poder impessoal. A desobediência às leis, algo incrível

por si só, ainda carrega uma nota de desafio aos deuses e de um teste em relação a seu

poder.

- Pesquisando a história das revoluções encontraremos que toda queda de um regime foi

pressagiada por um desafio que permaneceu impune. O Poder antiquíssimo transferiu algo

ao mais moderno.

Capitulo V – O Advento do Guerreiro

O fim das explicações unilaterais e a vantagem do patriarcalismo

- Não há uma prova certa de que nossa sociedade passou pelo estágio que qualquer

comunidade selvagem atual atingiu. Ninguém diria categoricamente hoje que o totemismo

foi um estágio religioso atravessado por toda sociedade, sem exceção. E também não se

pode mais dizer que a filiação uterina sempre precedeu a paternal.

- O que é certo é que foram as sociedades organizadas de forma patriarcal, que eram as

menos inclinadas a preencher o universo de desígnios maléficos, as quais fundaram os

primeiros estados e sociedades historicamente organizadas. Nas sociedades avunculares os

filhos das mulheres jovens se tornam propriedade de um grupo que só pode se multiplicar

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em proporção a suas mulheres jovens, mas nas sociedades patriarcais são os filhos dos

homens jovens que se tornam propriedade grupal, e a taxa de crescimento aumenta

bastante se os homens jovens conseguem aumentar seu estoque de esposas, seja através da

guerra ou de outro meio.

A primeira revolução

- O grupo patriarcal se torna rapidamente mais poderoso do que o avuncular e também

mais unido. Mas para que essa ascendência patriarcal se realize o domínio dos anciões

precisa ser derrubado. Podemos chamar esse processo de a primeira revolução política.

- Qual o motivo que leva sociedades isoladas a entrarem em conflito umas com a outras?

Cada uma ocupa um pequeno espaço em um continente enorme.

- É ausência ou presença da vontade de poder que determinará essa situação. Um povo

belicoso procurará adquirir através da violência o gado e as mulheres que a natureza lhe

negou. Toda a história é marcada pelo desejo do homem em ter mais do aquilo que está em

seu alcance imediato e os principais construtores da civilização material são os povos com

espírito de conquista.

- Consideremos o caso dos aborígenes australianos, que têm como maior forma de riqueza

suas mulheres, as quais são monopolizadas pelos poderosos e mágicos Anciões, e tomemo-

la como exemplo de uma situação paradigmática das primeiras tribos. Se um grupo de

jovens excluídos decidir se rebelar e abandonar a aldeia em busca de guerra e pilhagem

pode conseguir voltar com esposas e riquezas que alterarão completamente o status quo da

tribo. Um lento acúmulo dessas situações pode levar a uma completa deposição do

Anciões, que se enriquecem através do monopólio da riqueza da tribo, enquanto os jovens

contribuem para a vida comunitária com novas riquezas pilhadas. Os guerreiros mais

ousados são aqueles que mais podem praticar as virtudes aristocráticas da hospitalidade e

da generosidade. Eles acabam entrando nas sociedades secretas a partir das festas tribais e

terminam dominando-as.

- Os guerreiros vitoriosos não devem nada a uma família maternal e a autoridade absoluta

do pai passa a se fundamentar no status inferior das mulheres raptadas.

Poligamia, escravidão e culto familiar: fundamentos do poder patriarcal

- Estamos tentando adivinhar, mas algo é certo: a coragem na guerra se tornou um

princípio de diferenciação social depois da ascensão da família patriarcal. A terra é

relativamente abundante e, portanto, a maior riqueza é a força de trabalho, composta

primeiramente de esposas e depois de escravos. Somente em uma data tardia, depois da

instituição da monogamia, foi que a guerra passou a extinguir a raça dos guerreiros. Mas

nas sociedades poligâmicas são os clãs guerreiros que se multiplicam rapidamente,

enquanto os fracos se reproduzem lentamente e dão origem à primeira plebe, que por sua

vez dará origem aos primeiros grupos de clientes livres anexados aos clãs poderosos.

- A invenção da escravidão enriqueceu esses clãs ainda mais e os transformou também em

uma plutocracia. Devemos lembrar que a escravidão foi um avanço para os conquistados

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do sexo masculino, pois antes todos eram exterminados. Essa deve ser considerada a

primeira Rev. Industrial da humanidade.

- Cada um desses clãs é também uma citadela da religião, com seu próprio culto.

Novamente a dualidade do poder: Rex X Dux

- Depois desse crescimento inicial da sociedade, qual a ligação restante entre as famílias

poderosas? O senado dos chefes de clãs é o “cimento” federativo e o rei o símbolo militar,

o chefe dos exércitos conquistadores. O senado, além de ser um conselho administrativo, é

também um herdeiro das qualidades místicas do conselho de Anciões.

- Existe uma dualidade inerente à realeza. Entre os diversos povos aparecem dois

personagens: um é essencialmente um sacerdote e outro o diretor das forças da nação. Um

chefe militar é somente um homem entre homens e qualquer poder além desse advém de

um encargo religioso.

- O rei de caráter religioso é prisioneiro de tabus rigorosos. Tudo nele é veneração, mas seu

posto é na verdade expiatório, e ele um prisioneiro e vítima de seu papel místico. Podemos

deduzir que em algum momento o chefe dos exércitos se sinta tentado em usurpar as

vantagens desse cargo, sem carregar suas responsabilidades. Mas é exatamente aí que reside

o caráter duplo do Poder real , o qual é transmitido a todos os Poderes sucessores.

Rei x Aristocracia

- Em certo ponto do desenvolvimento histórico aparece um rei ambicioso, que decide

estender suas prerrogativas às custas dos chefes de clãs. O projeto desse rei acabou

derrotado em Roma e na Grécia, mas a história foi muito diferente no Oriente.

- Esse rei se apoia na massa plebéia que vive longe do topo da pirâmide social e também

em elementos aristocráticos frustrados. É esse impulso de dominação que faz o Poder

adotar duas táticas: a diminuição da desigualdade social e o crescimento e centralização da

autoridade pública.

A monarquia, tamanho da sociedade e o culto comum

- A possibilidade de sucesso da investida monárquica cresce conjuntamente com a

sociedade, devido à diminuição da coesão dos patrícios. As sociedades como a romana e

grega escaparam dessa dominação por não serem grandes o suficiente, pouco heterogêneas

ou carentes de um braço religioso que sustentasse o rei.

- O exemplo de Alexandre, o Grande e dos Sultões Otomanos mostra que as populações

conquistadas são o apoio ideal para um rei que deseja conquistar sua própria aristocracia.

- Esse rei transformado em monarca oferece à massa de seus súditos um deus para todos.

Os críticos modernos se equivocam muito quando imaginam que os governantes egípcios

impuseram a seus súditos humilhados o culto de um deus que era na verdade o próprio

governante. Um culto em comum com os nobres era a maior dignidade que o soberano

poderia conceder a seus governados.

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- É assim que o monarca consegue erguer um governo estável e permanente, dotado de

uma burocracia, um exército, uma polícia, um código tributário e tudo o mais que

designamos pelo nome “estado”.

Uma só vontade x Repúblicas antigas

- Esse aparato estatal ainda permanece sendo considerado uma só vontade, mesmo depois

da derrocada da monarquia em prol de uma pessoa abstrata.

- É por isso que temos dificuldade em compreender uma república antiga; pois nelas toda

ação depende de um concurso de vontades e não existe um aparato estatal.

- A aristocracia dos clãs sofre de uma mentalidade dividida: ao mesmo tempo em que tenta

manter seu status de igualdade com o rei, também ama sua posição de autoridade em

relação aos outros membros da comunidade.

- Foi essa mentalidade que gerou a revolução que extinguiu a monarquia grega e romana.

Considerar essas revoluções como igualitárias demonstra uma profunda ignorância da

estrutura social dos tempos antigos. Que paradoxo que a cidade aristocrática por

excelência, Esparta, tenha se tornado objeto de admiração para os homens da Revolução

Francesa. O “povo” antigo era composto somente de patrícios.

- Na cidade antiga não existiam cargos públicos lotado com um staff permanente; o

método de escolha era a eleição por um período curto, usualmente um ano. Como um

regime dessa natureza podia funcionar? Apenas através da coesão moral e da inter-

disponibilidade dos cidadãos privados para o exercício dos cargos públicos. Xenofonte diz

que essas cidades eram governadas pelos costumes.

- A crise entre o rei e os chefes de clãs é o momento decisivo do início da história de um

povo. Em uma república o sentimento dominante é o de associação em comum e na

monarquia o de serem todos possuídos em comum.

- É esse sentimento de possessão em comum que dá nascimento a essa idéia complexa

chamado estado. A derrocada do rei acaba não importando, pois a idéia de um aparato que

paira acima da sociedade permanece, e é ela que justifica a incapacidade de compreender a

cidadania antiga que o cidadão moderno tem.

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Livro III – Sobre a Natureza do Poder

Capítulo VI – A Dialética do Comando

Abaixo com a identidade entre estado e sociedade

- Ao vermos o estado tão emaranhado na sociedade trememos até mesmo perante a

possibilidade de seu desaparecimento e acreditamos que esse aparato só ter sido feito para a

sociedade.

- É por isso que os juristas identificam a nação com o estado, deixando de levar em conta o

fenômeno recorrente da captura do aparato estatal para fins particulares. Mas desde que

essa possibilidade seja admitida, a identidade inicial entre sociedade e estado cai por terra.

- Não é verdadeiro dizer que o Poder desaparece quando seu incumbente age fora de suas

atribuições e, portanto, esse respeito a uma ordenação não pode ser algo essencial ao

Poder. Essa essência é na verdade uma só coisa: o comando.

Questões de método

- O ponto de partida dessa demonstração é um conceito abstrato claramente definido, e o

objetivo é desvendar uma realidade complexa através de uma abordagem lógica em

sucessivos estágios. Mas não devemos esperar uma cópia da disciplina estrita das ciências

exatas.

- O objeto em foco é somente o Poder em grandes formações sociais, o qual consiste,

como já visto, em um comando que tem existência independente.

Uma só força na origem das grandes comunidades

- A idéia de que os governantes tenham sido convencidos a liderar pelos súditos é

altamente improvável, já que implica na idéia de que uma formação social sem comando já

é uma comunidade. Mas a história mostra que a existência de uma comunidade depende da

imposição de uma só força, de um só comando.

A nação, heroína de melodrama

- Essa relação entre comando e sociedade foi obscurecida pela metafísica nacionalista do

século 19. A história se torna uma novela sobre a nação personificada como a heroína de

um melodrama, sempre erguendo no momento necessário seu campeão.

- Uma “consciência coletiva” é conhecida desde a antiguidade, mas ela sempre teve limites

geográficos bastante estreitos. É um grande erro imaginar que as grandes formações

políticas são produtos naturais da sociabilidade humana; elas devem sua existência ao

instinto de dominação.

- Não caiamos na bobagem de acreditar que a energia criadora das nações é um ectoplasma

que surge das profundezas do homem em meio à massa.

Os conquistadores

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- É sempre a conquista , seja interna ou externa, que produz as grandes sociedades. É daí

que deriva o conteúdo psicológico das noções antigas de uma capital e de uma nobreza.

- Mesmo os romanos, esses ilustres unificadores, não eram muito diferentes de um bando

de invasores truculentos no começo. Santo Agostinho não tinha ilusões sobre isso: “O que

são as propriedades de um ladrão senão pequenos reinos?”.

- Um Poder dessa natureza não detém qualquer pretensão de legitimidade, não persegue

qualquer fim justo e tem como objetivo vivar à custa das populações submetidas.

- É interessante observar que quando os conquistadores são mais civilizados e não

escravizam os povos dominados, eles acabam por exterminar essas populações que não

tem qualquer utilidade para eles. Os locais tiveram um destino muito melhor sob os

espanhóis que os escravizavam, do que sob o domínio inglês, por exemplo. Os romanos

agiam da mesma forma: eles datavam da conquista da Macedônia a possibilidade de viver

inteiramente a partir dos tributos das províncias conquistadas.

Crescimento e destruição do Poder

-Que fenômeno imoral vocês podem dizer! Mas aqui surge um caso admirável da vingança

do tempo: o egoísmo do comando leva a sua própria destruição. Quanto mais a sociedade

dominadora expande suas conquistas, mais inadequada se torna sua força para se defender

e governar. É por isso que os Espartanos limitaram suas conquistas.

- O fenômeno de Esparta nos apresenta o fato que confronta o Poder em sua forma pura:

fundado na força, ele precisa sustentar essa força com relação razoáveis com a massa

dominada.

Transição para a Monarquia: os meios

- Como esse poder conquistador se transforma em uma monarquia? O rei deixa de

considerar como o chefe de um bando vitorioso e manipula os recursos dos povos

conquistados para destruir seus associados, os quais são reduzidos ao nível de súditos.

- Ele já avança muito ao conseguir atrair para o seu serviço alguns de seus súditos, para

quem o contraste entre essa nova situação e a tirania anterior é determinante.

- No fim o monarca coroa seus esforços manipulando as tradições de cada um dos grupos

que constitui o todo. Assim o fez Alexandre ao se intitular filho de Hórus.

- Assim é demarcado um processo lógico de transição para uma monarquia nacional, no

qual o Poder ainda continua sendo o comando que sempre foi. Mas não seria falso dizer

que esse sistema de comando deve sua existência à proteção concedida aos derrotados, à

habilidade em tornar a obediência popular e à prosperidade gerada através dos recursos

extraídos da massa.

O Poder Egoísta-Social

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- A conquista da autoridade nunca cessa, mas seu caminho passa inevitavelmente pela

prestação de serviços.

- E então vemos o espetáculo de um comando que só enxerga seus próprios fins, mas que

termina se preocupando com o bem comum. Os mesmos tiranos que deixaram as

Pirâmides como prova de deu terrível egoísmo, também regularam o curso do Nilo e

fertilizaram os campos dos felás.

- Supor que o domínio da maioria só se dê em uma democracia é uma ilusão fantástica. O

rei, um indivíduo solitário, precisa muito mais do apoio geral do que qualquer outra forma

de governo. E como o hábito geralmente produz afeição, o rei também passa a se motivar e

enfim a agir por afeição.

O retorno do Rex: a exaltação dos humildes

- O princípio místico do rex retorna triunfalmente. O Poder se move do parasitismo para a

simbiose. O monarca é, claramente, o destruidor da república de conquistadores e o

construtor da nação, o que explica os julgamentos ambíguos que foram lançados sobre os

imperadores romanos.

- O Poder, no começo de sua carreira, destrói os grandes e exalta os humildes.

A formação da nação

- Como a consciência nacional pode ser formada? A resposta é que a pessoa do monarca

funciona como um centro de cristalização.

- Os inúmeros títulos que um Filipe II carregava nos parecem ridículos, mas eles eram as

insígnias de seu poder perante populações as mais diversas. No devido tempo o monarca as

fundirá, e as divergências espirituais serão resolvidas na unidade corpórea da pessoa do rei.

- A nação é um produto do trono. Os homens se tornam compatriotas através da aliança a

um só homem. É por isso que os povos formados nos moldes monárquicos só conseguem

enxergar a nação como uma pessoa. Os romanos não detinham esse conceito; foi somente

com a figura dos imperadores que surgiu algo capaz de absorver a adoração religiosa dos

povos separados.

A Cidade do Comando

- A cidade do comando: uma nova formação da cidade baseada na presença dos

funcionários e da corte do monarca. Essa nova cidade continuar a representar um Poder

distinto da sociedade, uma elite governante; a grande diferença é que agora essa elite está

mais bem equipada para o governo e a execução de serviços essenciais.

- Esses serviços, fundamentais para a massa da humanidade, quase nos fazem esquecer que

o Poder é em essência um egoísmo dominador. Mas na prática o Poder parece ter trocado

sua natureza e se transmutado em um ente social.

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A imolação do cordeiro

- E é exatamente nesse momento que um grito de natureza profundamente social se lança

contra o Poder. Essa reclamação só pode tomar forma quando o Poder tiver terminado seu

trabalho de unificação espiritual e a nação se tornado um todo consciente. Quanto mais

forte a sensação de unidade, maior a oposição ao Poder que a gerou, o qual passa ser visto

como uma imposição.

- Então, esse poder arbitrário, estrangeiro e explorador é derrubado no exato momento em

que deixava de ser arbitrário, estrangeiro e explorador.

Demonstração lógica da dualidade do Poder

- Jouvenel afirma que não tentou cobrir todas as formas históricas possíveis de evolução do

Poder, mas que demonstrou logicamente que a hipótese de um Poder baseado na pura

força e exploração termina se transformando em um Poder social.

- O próximo passo lógico é buscar eliminar qualquer possibilidade de retorno à sua

natureza primitiva, torna ele essencialmente em algo social.

- Há dois caminhos possíveis: um é lógico e impraticável, o outro parece fácil , mas não

atinge o objetivo desejado.

- O primeiro é a destruição do Poder nascido da dominação e a constituição de uma

república baseada no concurso de vontades, sem qualquer tipo de soberania.

- O segundo é o que efetivamente acontece: a deposição do monarca ao mesmo tempo em

que a estrutura completa do estado monárquico é preservada, com a substituição da pessoa

do monarca por um personagem ideal.

- Para manter a forma estritamente lógica da investigação, suponhamos que esse legado

tenha sido completamente removido, e que um novo Poder seja constituído pela e para a

sociedade.

- Assim que o fim social deixar de ser perseguidos por todos em comum e se tornar o

apanágio de um grupo diferenciado, então o grupo responsável se tornará uma elite, que

tem vida e interesses próprios.

- É por isso que os romanos conseguiram por tanto tempo votar suas leis em praça pública:

sua parte no trato era somente a ratificação daquilo que tinha sido determinado em

conjunto pelos magistrados e pelo Senado. Os mesmos métodos são reproduzidos

atualmente nas reuniões de acionistas de uma empresa.

- O exercício da autoridade soberana traz consigo um sentimento de superioridade, que

transforma os iguais em desiguais.

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O egoísmo da natureza humana

- Dualidade essencial do Poder: egoísmo x altruísmo.

- Os súditos acusam o Poder, seja em uma monarquia ou em uma república, de um vício

que faz parte da natureza humana: o egoísmo.

- Nos postulamos no princípio um Poder essencialmente egoísta e vimos que ele adquire

uma natureza social. Vimos também que que um Poder que é inicialmente social pode

adquirir uma natureza egoísta.

Abstrações como imagens

- É absurdo tentar identificar em todo Poder histórico uma combinação de duas

substâncias quimicamente puras, o egoísmo e o sentido social.

- Toda ciência nascente necessita de conceitos abstratos, mas não deve se perder de vista

que essas idéias são sínteses de imagens e que não podem nunca atingir um estado de

precisão exata.

- Por exemplo, os gastos luxuriosos das aristocracias em obras de arte geraram grandes

dádivas para a humanidade, enquanto a taxação moderna, pretensamente altruísta, guarda

paralelos marcantes com o favorecimento de grupos por um monarca.

A verdadeira natureza do egoísmo do Poder

- Devemos notar que o princípio egoísta toma sua forma mais bárbara exatamente quando

o Poder troca de mãos.

- Não devemos ter uma visão muito estreita e esquálida do egoísmo governamental. O líder

de qualquer grupo o percebe quase como uma expansão física de si mesmo. Sua natureza se

altera com essa expansão. A prudência pessoal e a avareza que associamos com o egoísmo

é raramente vista no líder, no governante. Dentro dessa perspectiva, o líder facilmente se

persuade de que seus fins são sociais e que sua única ambição é servir o Todo.

- E quantas vezes não acontece de os objetivos sociais serem realmente atingidos e a

mentira altruística sobre as motivações do Poder parecer ser verdadeira.

- Em meio aos pensadores essa mentira não faz mais do que evitar que uma ciência política

digna do nome apareça; mas quando ela chega à multidão, torna-se a causa dos grandes

distúrbios que desolam nossa era e ameaçam a sobrevivência da civilização.

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A falácia do Poder Mau

- A multidão, passiva civicamente e ativa emocionalmente, acredita que os abusos do Poder

são o estigma de um Poder mau que deve ser trocado por outro inteiramente justo e

beneficente.

- Mas toda troca de regime é uma reprodução, em maior ou menor escala, de uma invasão

bárbara.

- O crédito dado a qualquer Poder novo permite que ele faça acréscimos importantes ao

maquinário estatal. E a esperança continuada de extirpar todo traço de egoísmo do Poder

terminar por forjar meios mais terríveis de coerção para o próximo egoísmo.

- Portanto, não podemos chamar de ciência política aquilo que não reconhece a dualidade

essencial do Poder : o princípio egoísta não pode ser expurgado!

Capítulo VII – O Caráter Expansionista do Poder

O princípio egoísta: fundamento da vida

- A quimera da eliminação do egoísmo do Poder foi perseguida infatigavelmente por mente

cujo alcance limitado só igualado por suas boas intenções. Sem o princípio egoísta o Poder

careceria da força interna que o permite realizar suas funções.

- É essa quimera que induz o crescimento de um Poder sem limites, um crescimento

estimulado por exterioridades cada vez mais altruísticas, mas cuja motivação real é o desejo

de dominação.

- Na ordem da natureza sempre morre aquilo que não é animado por um amor de si brutal

e intenso. O Poder também só pode manter através do amor intenso e brutal que os

governantes têm por sua autoridade.

- A história rejeita os heróis da poesia, o generoso Carlos, o doce Alexius, e o bonachão

Carlos Eduardo. É como Lutero disse: “Deus não deu uma pluma aos governantes, mas

uma espada”.

Novamente a extensão do ego

- O Poder se alimenta dos prazeres que sua prática concede. E os maiores não são os luxos

que a massa concebe como o maior problema, mas aqueles advindos da extensão do ego,

do prazer intoxicante de sentir que através de uma canetada, de uma ordem, cidades,

rodovias e vidas inteiras se erguem.

- Se o Poder tem uma longa duração, como em uma monarquia, esse prazer se intensifica

até o ponto em que o incumbente se identifica com qualquer ferida recebida pelo corpo

social. Mas um Poder transiente e precário tende a tornar a nação o instrumento de um

destino pessoal, de um egoísmo que não é absorvido pelo todo. A vulgaridade e a

superficialidade passam a dominar os mandatários do Poder.

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- O depósito daquele egoísmo sublimado passa a ser a os oficiais permanentes do serviço

públicos, que consideram a máquina pública como uma propriedade sua. E é isso que

preserva o Poder nas sociedades modernas.

- A extensão do ego dos governantes levou a uma das teorias mais absurdas da economia

política. Da tese de que os egoísmos econômicos individuais levam ao bem comum,

chegamos à de que o mesmo deve se aplicar ao egoísmo dos governos. A ciência política

precisa expurgar desses sofismas que estendem indefinidamente conceitos além dos limites

em que são válidos.

Legitimidade do Poder, o “Bem Comum” e o egoísmo saudável

- O Poder legítimo é aquele em que os interesses do Poder e da sociedade chegaram a uma

acomodação devido ao longo convívio.

- Assim que o Poder se concebe exclusivamente como o agente do Bem Comum, ele deve

formar uma imagem clara do que é isso. Mas a mera tentativa desse esboço é suficiente

para mostrar a insuficiência da inteligência humana para tal tarefa.

- É notável que os maiores erros políticos advenham de avaliações errôneas do bem

comum, erros que o egoísmo poderia ter ajudado a corrigir.

- No nosso próprio tempo podemos ver que um egoísmo saudável poderia dissuadir um

Poder ambicioso de perseguições raciais que inevitavelmente produziriam uma indignação

universal e uma imensa coalização de inimigos.

O expansionismo do egoísmo e o crescimento interno do Poder

- O Poder pode prestar imensos serviços à sociedade; mas também pode causar danos

incorrigíveis. O primeiro elemento(altruísmo) serve para dar recursos ao Poder e o outro

tenacidade(egoísmo).

- Todo egoísmo tende naturalmente a expansão. O crescimento externo do Poder tem

gerado inúmeros comentários, mas o interno não. Pouco se fala da visão que o Poder tem

da massa governada como um investimento, um bloco de granito a ser moldado. Essa

visão se manifesta nos crescentes orçamentos e regulamentações.

- A grande justificativa da expansão do Poder foram as guerras, que permitem a ele extrair

cada vez mais da sociedade.

Os poderes intermediários e a aliança do Poder com o individualismo

- É um erro muito grande imaginar que só existe um Poder na sociedade, a autoridade

governamental. Existem inúmeras autoridades sociais, que são ao mesmo tempo seus

sustentáculos e rivais.

- Essas autoridades governamentais não são mais dotadas de uma natureza angélica do que

o Poder.

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- É por isso que o crescimento do Poder parece ser para os indivíduos não um contínuo

ataque a liberdade, mas uma libertação de todas as pequenas tiranias a que estavam

submetidos. Eles vêem o avanço do estado como um avanço do indivíduo.

A arbitrariedade do Poder e o desejo de uniformidade

- O poder só pode realizar milagres e grandes obras se tiver algum grau de arbitrariedade. É

o poder de agir acima das regras que caracteriza a beneficência do Poder e que é uma fonte

de esperança para todos os desejos egoístas, mas também para os de justiça e altruísmo.

- No reino da natureza não há nada que possa satisfazer as paixões primitivas do homem.

Ele admira tudo que pode se transformado em uma uniformidade, por estar desconcertado

com a infinita variedade da natureza.

- É um jogo, onde o homem imagina como seria o universo se ele pudesse reconstruí-lo.

Todo intelectual que imagina uma ordem mais simples é um servo do Poder. Pois a ordem

existente é sempre complexa e depende de uma teia incrível de sentimentos, autoridades e

ajustes.

- O pensamento especulativo tende a negligenciar uma multidão de fatores secundários que

compõe uma ordem e por isso leva inevitavelmente a um aumento da autoridade central,

além de sempre perturbar essa mesma autoridade, gerando uma nova que tomará a forma

mais concentrada possível.

O crítico da ordem

- O crítico da ordem está sempre tomado por imagens do belo, do harmonioso, do justo e

revoltado com a realidade social. Foi nas favelas de Nápoles que Campanella, o

dominicano, teve seu sonho da Cidade do Sol, geometricamente perfeita e purificada de

todos os vícios.

- Essas repúblicas fantasiosas produziam encantamento enquanto eram sonhos

irrealizáveis, mas hoje olhamos para elas e lá não encontramos qualquer liberdade.

- O pensamento se regozija com a ordem, pois é inteligência; e concebe a ordem como algo

simples, pois é humano. Mas sempre que tenta realizar essa ordem, ela toma forma

selvagem de um Savonarola ou um Calvino, ou da submissão de Auguste Comte ao Czar

Nicolas e de Diderot a Catarina, a Grande.

- O pensamento, sempre sonhando com uma ordem simples e rígida, é uma eterna

conspiração a favor do Poder.

- Como um egoísta proclamado o Poder encontra a resistência de todos os interesses

sociais particulares que deve harmonizar. Mas se ele se proclama altruísta e portador de um

ideal recebe o sacrifício desses interesses em prol da grande causa maior.

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Capítulo VIII – Da Rivalidade Política

Roma x Ocidente – Monismo x Pluralismo

- O desenvolvimento da história ocidental renega uma constante da história: os povos

civilizados sempre tenderam a uma desmilitarização. E o grande motivo está no pluralismo

de nossa civilização em contraste com o monismo do Império Romano, por exemplo.

- A multiplicidade das nações poderosa inaugura uma possibilidade temível: a de que uma

potência competidora aumente sua capacidade de extração de recursos da população,

praticamente forçando que as outras façam o mesmo em defesa própria.

O regime aristocrático

- O regime que mais impõe limites para a guerra é o aristocrático, apesar de seu tom militar.

É que a guerra é restrita a classe dominante e somente a ela. É transição para um exército

do rei que abre as portas para a guerra total.

Rivalidade Internacional x Submissão Interna

- A guerra se alimenta do Poder, e o Poder da guerra.

- Nos tempos modernos vimos as consequências terríveis do bloqueio à Alemanha na

Primeira Guerra Mundial.

- Porque essa rivalidade entre as nações não é controlada por uma rivalidade interna dos

poderes intermediários com o Poder? É simplesmente porque de antemão assumimos a

identidade entre nação e Poder.

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Terceira Apresentação

Livro IV – O Estado como uma Revolução Permanente

Capítulo IX – O Poder, destruidor da ordem social.

Revisão: o poder e as autoridades intermediárias

O poder é autoridade e busca mais autoridade; é força e busca mais força. Deparamos-nos

no princípio desse livro com o avanço constante do Estado sobre a sociedade. Esse

panorama também nos fez levantar duas questões: O que tornou possível esse avanço? E

por que esse avanço foi tão pouco notado?

Sabemos que cada avanço da autoridade estatal implica em uma diminuição da liberdade de

cada cidadão e que cada aumento da riqueza pública significa uma redução da renda de

todos. Um perigo tão óbvio deveria ter despertado uma oposição unânime e insuperável.

Por que isso não aconteceu e, pelo contrário, o movimento da história foi interpretado com

uma libertação progressiva do indivíduo?

É que, como já vimos, existem autoridades sociais diferentes do Poder, e o relacionamento

com essas autoridades intermediárias pode afetar mais a vida dos indivíduos, que valorizam

então o rebaixamento de seus senhores acima da sua própria elevação. Somente em uma

sociedade idealmente simples isso não ocorreria! Entre iguais a autoridade sempre tem

muita dificuldade em se levantar!

A natureza niveladora do estado

São os poderosos da sociedade, os primeiros detentores e canalizadores da força e da

inteligência da massa, que se tornam os inimigos naturais e as vítimas predestinadas do

Poder. O estado não é nivelador somente quando vai se tornando democrático; faz parte

de sua natureza o ser. O povo comum, os dependentes e trabalhadores acolhem com

alegria seu papel de destruição secular e, portanto, a sua virulência só torna visível quando

já é muito tarde.

Essa concepção do estado se opõe à visão popular, mas também às de Montesquieu ou

Marx. A nobreza, diz o primeiro, é impelida a defender o trono; o estado, afirma o último,

é um instrumento de dominação de uma classe por outra.

Frente a tais argumentos é preciso entender que o Poder só se associou e defendeu a

aristocracia enquanto isso foi estritamente necessário para sua ascensão. De onde mais o rei

feudal poderia ter tirado um exército e como poderiam os industriais pagar seus tributos se

os trabalhadores abandonassem seus postos? Mesmo nos nossos dias ainda podemos

assistir esse esforço de dar com uma mão o que se retira com a outra: o estado protege o

direito à herança, mas corrói a substância do que é legado, ou seja, ele protege a ordem

existente a partir de seus órgãos, mas continua minando-a através da legislação.

A maquinaria do estado é realmente conservadora; se olhamos o estado como um Ser

constituído é só isso que vemos, mas se vemos a sua dinâmica, seu funcionamento como

um ser vivo, enxergamo-lo como o destruidor das autoridades sociais. Por exemplo: o

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estado moderno alimenta uma vasta burocracia; não é visível o declínio correspondente na

qualidade do staff do empregador?

E quanto mais vigoroso um Poder particular, menor a possibilidade de uma investida

aristocrática através da tomada do governo e da máquina estatal. Foi exatamente a situação

contrária de um Poder tímido que Marx e Montesquieu vivenciaram.

A contraofensiva social

A contraofensiva das autoridades sociais não pode ser compreendida se não percebermos

que a destruição das aristocracias existentes implica na criação de uma estatocracia, de um

staff, que terá interesses próprios e uma capacidade de transferir poder do estado para a

sociedade. Além disso, os “ácidos estatocráticos” não consomem todas as forças que

liberam; na Inglaterra, por exemplo, quando a ambição de Henrique VIII se abateu sobre

as autoridades eclesiásticas, a maior parte do espólio dos mosteiros caiu na mão de quem

pudesse toma-lo no momento. E foi esse espólio que fundou as fortunas do nascente

capitalismo inglês.

Jouvenel irá fazer o seguinte nos próximos capítulos: ilustrar através de três exemplos o

desafio que é feito ao Poder pelas células independentes da sociedade; demonstrar o

objetivo final da ofensiva estatocrata e apresenta-la em ação, mostrando os estágios de seu

desenvolvimento e os fatores que a apoiam e a obstaculizam.

A autoridade mediadora na antiguidade

Como já visto, a primeira organização social ampla é o clã. Uma autoridade política mais

elevada age estabelecendo coesão e ordem entre eles, mas durante muito tempo é incapaz

de estender seu poder ate o interior dos clãs. Até mesmo o assassinato de um membro não

levava a uma intervenção do Poder; o rei só se interessava e podia agir, e somente como

pacificador, quando o assassino e a vítima eram membros de clãs diferentes. É notória a

idéia de que o estupro de Lucrécia foi suficiente a para desencadear uma revolução em

Roma.

Mas não será sempre uma tentação substituir essa autoridade mediadora por uma

obediência direta dos membros do clã? O rei pode estar certo de obter o apoio de todos

que desejam escapar do duro domínio do patriarcado. Henry Maine fez do centro de sua

exposição da evolução do Direito Romano a constante redução do pátrio poder.

No Medievo

Vimos então como o Poder político se comporta perante um sistema de clãs que o

antecede; veremos como ele se relaciona com aquele que é seu contemporâneo, como a

aristocracia feudal européia.

Na fundação dos estados europeus encontramos sempre algo semelhante a um ato de

pirataria. A cada homem seu pedaço no butim; e então cada soldado saqueador se

transforma em um barão. Um bárbaro como Clóvis não podia entender o imenso aparato

do Império tardio; ali ele só podia ver um imenso instrumento de sucção da riqueza social e

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por isso essa vasta estrutura foi retalhada entre seus companheiros de butim e

consequentemente destruída. E o bárbaro, ou qualquer ser humano, tem a tendência de

confundir uma função com uma propriedade, fenômeno que logo fez com que os senhores

de terra, representantes do rei conquistador, se transformassem em senhores absolutos de

suas regiões.

A célula baronial sequestra os recursos que o rei deveria ter para administrar a vastidão de

terras sob seu braço armado. Logo, a única coisa que o rei pode fazer é tentar retomar esses

recursos e ele o faz criando cidades próximas a essas células, para as quais tentar atrair os

melhores elementos da população. O Poder, sem dúvida, passa a proteger mais e mais os

súditos dos barões, mas isso porque ele se torna também cada vez mais ambicioso.

Um exemplo dessa ambição é o incrível aumento das desvalorizações da moeda. Os reis

franceses, por exemplo, necessitavam de grande quantidade de metais preciosos para a

guerra e maneira que tinham de atrair esses recursos era o de aumentar o preço pago por

eles. Mas como o faziam? Cunhavam moedas com menor peso, mas menor valor nominal

e, portanto, faziam o valor da moeda flutuar com suas necessidades militares. Como a

aristocracia vivia dos tributos fixos pagos pelos lavradores, cada rodada de desvalorização

significava um empobrecimento dela e um enriquecimento dos últimos. O resultado foi que

ao fim da monarquia os nobres, apesar de possuírem domínios enormes, só conseguiam

extrair deles uma pequena renda e foram obrigados a mendigar pensões ao Poder.

A aristocracia capitalista

Destruída a aristocracia feudal, o estado moderno traz junto consigo o nascimento de uma

aristocracia capitalista. O Poder vê com bons olhos a ascensão da riqueza enquanto ainda

está em luta com a nobreza; os reis são os melhores amigos dos mercadores, banqueiros e

manufatureiros. E é importante lembrar que, por exemplo, o dono de navios não é o chefe

de uma gangue de marinheiros em disputa com o Poder; no momento necessário ele

poderá inclusive ceder seus recursos para a guerra e outras incursões do Poder.

Mas a destruição de toda eminência faz com que no fim desse processo a dominação

financeira reine sozinha, chegando inclusive a criar cidades – fábrica onde o industrial era a

fonte da lei. E como o Poder tem inveja de qualquer outro comando, mesmo que pequeno,

ele não poderia tolerar essa independência. Se não conhecêssemos as agressões anteriores

às aristocracias poderíamos crer que essa nova guerra seja característica do estado socialista

moderno. Todos os governos modernos selaram uma aliança natural com os trabalhadores

súditos desse novo poder financeiro.

Era certo que os anticapitalistas iriam ocupar os cargos públicos do estado burguês, assim

como os opositores do feudalismo ocuparam-nos no estado monárquico. A nacionalização

da indústria não difere em nada do confisco da riqueza dos monastérios por Henrique

VIII. E essa nova guerra é vencida com ajuda de um novo tipo de “feudo”: os sindicatos.

Mas o que o Poder faz com essa nova autoridade social? Ou a subjuga completamente,

como na Rússia, ou então permite que o governo se torne uma propriedade desses feudos

sindicais.

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Devemos agora nos perguntar: onde leve essa guerra incessante que o Poder move contra

todas as autoridades que a sociedade lança contra ele?

“Onde isso irá terminar? Na destruição de todo comando para o benefício de um só – o

estado. Na liberdade absoluta do homem perante a família e qualquer autoridade social,

uma liberdade que tem como preço a completa submissão ao estado. Na igualdade

completa entre todos os cidadãos, paga com o aviltamento igualitário perante o senhor

absoluto – o estado. No desaparecimento de toda limitação que não emane do estado, e na

negação de qualquer superioridade que não seja aprovada pelo estado. Em uma palavra,

termina na atomização da sociedade, na ruptura de todo laço privado ligando homem a

homem, cujo único laço é agora a servidão comum ao estado. Os extremos do

individualismo e do socialismo se encontram: esse era o seu curso predestinado.”

Essa ordenação da vida para a qual todo Poder tende, pode excluir a liberdade, mas

devemos lembrar que em muitos momentos os homens só desejam viver tranquilamente,

mesmo que sob uma tutela completa. Mas, ao contrário, vemos no Império Romano que

esse Poder unificado pode se tornar muito seguro e garantido, a ponto de aliviar seu peso

sobre a sociedade e garantir alguma medida de liberdade pessoal.

Algo muito diferente se dá quando a força do Poder está inversamente relacionada com sua

extensão, como é o caso hoje. Nesse tipo de sociedade uma autoridade imperial também

prevalecerá inevitavelmente, mas ele tomará uma natureza igualitária e anti-libertária,

chegando a algo muito semelhante ao Egito Antigo descrito por Jacques Pirenne.

A onipotência burocrática contra o Poder

O desenvolvimento do estado termina, portanto, na destruição da hierarquia social. Mas

isso significa que não existem mais pessoas privilegiadas? É claro que não, pois a

onipotência burocrática transforma os funcionários do estado em novas eminências.

Sobre esse fenômeno temos o testemunho do historiador Michael Rostovtzev:

“As reformas de Diocleciano e Constantino, ao implementarem uma política de espoliação

sistemática dos lucros do Estado, tornaram toda atividade produtiva impossível. A razão

não é que não existissem mais grandes fortunas: pelo contrário, sua constituição se tornou

ainda mais fácil. Mas a base dessa riqueza não era mais a energia criativa, ou a descoberta e

disponibilização de novas fontes de riqueza, ou a melhoria e desenvolvimento da

agricultura, indústria e comércio. Era , ao contrário, a exploração astuciosa das posições

privilegiadas no Estado, usadas para despojar o povo e o Estado. Os oficiais, grandes e

pequenos, se tornaram ricos através da fraude e da corrupção”

Mas logo que essas novas células independentes se compõe, o Poder retoma sua trajetória

de expansão e destruição. Será que esse processo tem algum sentido último?

Aparentemente não; a continuidade dele é que dá à vida social seu ritmo próprio. No auge

da evolução do Estado e do igualitarismo voltamos a escutar um questionamento sobre as

vantagens e desvantagens do estado despótico sobre uma sociedade de autoridades

independentes e vice versa. Essa pergunta não admite uma resposta exata.

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A verdade é que a condição de um súdito depende muito menos da natureza de seu senhor

em particular do que da rivalidade existente entre todos os senhores. Trabalhadores

esfolados por um empregador envolvido em uma imensa rivalidade internacional podem

ganhar muito ao adentrarem o serviço de um estado pacífico, mas se houver guerra eles

irão certamente relembrar os bons e velhos tempos sob a batuta do mais duro empregador.

Capítulo X – O Poder e o Povo Comum

Absolutismo e Igualdade

Como já visto anteriormente, existe uma aliança natural entre a paixão pelo absolutismo e a

paixão pela igualdade. E a aristocracia, sempre e em qualquer lugar, se opõe à ascensão de

um Poder independente da sociedade, dotado de uma administração permanente, de um

exército e do poder de tributação. A história da França testemunha eloquentemente esse

embate.

A formação do estado francês

Era realmente um Poder aquilo que Hugo Capeto tomou para si em 987 d.C? Parecia-se

muito mais com a presidência de um grupo de repúblicas aristocráticas fracamente unidas,

ou para melhor dizer, uma federação de barões. O rei não podia governar sem os barões, já

que eram eles que organizavam a defesa do território contra os bárbaros, tendo a riqueza e

a energia do país como sua propriedade privada.

Plebeus a serviço do Poder

O Poder se desenvolveu lentamente fazendo com que plebeus ocupassem posições antes

estritamente reservadas aos nobres nos tribunais e assembleias. Os advogados plebeus que

se sentavam no conselho do rei se inspiravam no Direito Romano, sempre favorável a uma

autoridade central.

Assim que os suíços reviveram a formação grega de batalha conhecida como “porco-

espinho”, as tropas regulares se viram aptas a derrotar a cavalaria, abrindo espaço para

monarquias absolutas sustentadas em mercenários plebeus. Nas outras áreas, como nas

finanças, a preferência pelos plebeus se estabeleceu ainda mais cedo.

Isso contradiz frontalmente a crença popular de que uma monarquia emprega os nobres e

exclui o povo comum. Vemos que o exato oposto se dá. O Poder europeu mais total

conhecido durante os dias do Ancién Regime era o dos turcos otomanos. E onde seu

grande senhor buscava soldados fiéis e servidores? Seus janissários foram recrutados entre

os súditos cristãos!

E que fenômeno é ascensão da burocracia plebéia no resto da Europa! O amor do cargo

ataca e destrói qualquer resquício aristocrático, mesmo quando sua preservação seria do

maior interesse da sociedade.

Augustin Thierry tem o seguinte a dizer:

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“Por um período de seis séculos, do séc.12 até o 18, as histórias do Terceiro Estado e da

realeza estiveram inextricavelmente ligadas.... da ascensão de Luís, o Gordo até a morte de

Luís XIV, cada passo decisivo no avanço das classes plebéias até a liberdade, bem estar ,

iluminação e importância social, corresponde, na lista dos reinados, ao nome de um grande

rei ou um grande ministro”

E o Duque de Saint Simon tinha o seguinte a dizer do Cardeal Mazarin, um desses grandes

ministros:

“Um estrangeiro vindo dos resíduos do povo, um homem sem responsabilidade a sem

qualquer outro deus que não sua própria grandeza e poder, não tem qualquer cuidado com

a nação que ele governa senão naquilo que ele mesmo é afetado. Ele despreza suas leis, seu

gênio, seus interesses; desrespeita suas regras e formas; ele só pensa em subjugar e

confundir a todos, em urdir que todos sejam plebeus”

A resistência aristocrática

É muito difícil construir um Poder agressivo com aristocratas. O cuidado com os interesses

familiares, a solidariedade de classe, as influências educacionais, tudo contribui para

dissuadi-los de entregar a independência e fortuna de seus pares ao estado. A resistência é,

portanto, um função aristocrática.

De Bonald não estava errado quando disse:

“A nobreza preserva os súditos da opressão simplesmente por sua existência. Um poder é

despótico quando pode alterar, destruir e depor a seu bel-prazer; um Poder que pode depor

a seu bel prazer é um Poder ilimitado. A Nobreza determina um limite para o Poder, pois a

monarquia não pode obliterar uma nobreza que vive o seu lado, que é a filha, como ela

mesma, da constituição e que é , de novo com ela mesma, ligada à sociedade por laços

indissolúveis....”

Aristocracia na França e na Inglaterra

A grande diferença entre as aristocracias da França e da Inglaterra reside na maneira como

conduziram essa resistência. A reação na França foi violenta, desordenada e brutal,

impedindo que o Terceiro Estado visse na aristocracia uma defesa contra a futura

dominação estatal. Mesmo quando começaram atuando conjuntamente, como na Fronda,

logo a aristocracia perdia esse apoio por ser incapaz de dar a sua revolta uma aparência de

defesa do interesse geral. A aristocracia sabia muito bem como trabalhar unida; e o

principal motivo é o fato de que lá o Parlamento permaneceu um órgão seu, em vez de ser

entregue a advogados plebeus. Eles conseguiram transmitir aos camponeses livres o

sentimento de que eram também aristocratas em pequena escala, com interesses ligados aos

nobres, enquanto na França esses mesmos camponeses consideravam os nobres como

pequenos tiranos, às vezes muito piores do que o grande.

Além disso, a aristocracia inglesa sempre esteve aberta a inclusão de novos elementos,

vindos principalmente dos grandes negócios. Era simplesmente uma classe de grandes

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proprietários, que controlava a economia ao ponto de impedir qualquer tentativa de

desvalorização monetária.

Já na França os aristocratas consideravam que a única forma de reconquistar o terreno

perdido com Mazarin era invadir os cargos estatais, expulsando os plebeus. Esse projeto

insensato, alimentado pela idéias utópicas de Fénelon, foi levado a frente pelo próprio

Duque da Burgúndia. Ele já começa por esquecer que existia uma nova aristocracia: a

nobreza de toga. Também errou ao acreditar que a função da aristocracia era governar e

não servir com um limite ao governo. A reação de 1715 realmente enfraqueceu o Poder,

mas quem se aproveitou disso foi principalmente a nobreza de toga, infinitamente melhor

qualificada do que a nobreza frívola e enfraquecida.

E a investida da nobreza sobre os cargos estatais acabou levando os plebeus que os

ocupavam para o lado jacobino.

Capítulo XI – O Poder e as Crenças

Os costumes seculares e a tribo primitiva

O comportamento dos indivíduos é regido por um “diretor invisível” que determina suas

ações desde dentro e não por forças externas. Os antigos demonstravam reconhecer isso na

importância que davam aos costumes seculares de um povo para um bom governo. E é por

isso que sempre mantinham os estrangeiros afastados.

Esses costumes seculares agem como uma forte limitação ao Poder, pois ele também

dificilmente pode romper com esse fator permanente. A proposição de que “a superstição

é um apoio do despotismo”, tão cara ao século 18, deve ser melhor examinada.

Os pensadores racionalistas acreditavam que o homem primitivo era um agente

completamente livre que só seguia seus caprichos e vontades. Logo, todo proibição e regra

de conduta deve ter sua origem no estado e na religião. Hoje conhecemos o ridículo dessa

posição: tudo nos selvagens é tabu e conformismo. A legislação, a livre disposição das

regras da sociedade, é um fruto da modernidade.

Entre os esquimós da Groelândia, por exemplo, a mera provocação sarcástica ao homem

que ofende a ordem pública é suficiente para leva-lo ao exílio nas montanhas durante um

longo tempo.

As grandes sociedades e o livro sagrado

É a fusão de diversas comunidades com costumes diferentes - um fenômeno recente na

história da humanidade - que produz um novo tipo de realidade social. Nessa marcha para

a civilização todo povo teve seu livro divino, um sistema de leis e imagens que abrem para

ele novos caminhos de desenvolvimento frutíferos. No caso dos grandes povos históricos

esses livros são tão admiráveis, que mesmo um homem de pouca religião não poderá deixar

de ver ali a mão da Providência.

É esse encaixe nas necessidades das grandes sociedades que fez com que alguns

concebessem que esses livros foram produzidos por homens sábios que tinham exatamente

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esse fim em mente. É esse erro que inaugura a pressuposição de que o Poder é o autor da

lei, quando, pelo contrário, ele está desde o princípio submetido a ela. Maine observa que

nas antigas escrituras indianas não havia qualquer tipo de punição delegada ao estado; a

punição era obra de Deus ,da própria alma individual arrependida e a da sociedade que o

expulsava devido ao temor de Deus. O mito de Édipo expressa essa situação com uma

força incomparável. Na esfera da lei, Deus é o legislador, o juiz e o administrador.

Separação entre os dois tipos de leis

Era somente na última função que o homem tinha alguma participação a princípio. Um

Poder que adquire as outras capacidades é muito diferente daquele que encontra uma lei

definida por uma autoridade sobrenatural. Como vemos no Cristianismo e no Islamismo, é

somente o próprio Deus que pode corrigir uma lei corrompida. Todas as grandes

civilizações foram constituídas sobre uma lei divina dada à sociedade e isso se deu até

mesmo com os romanos e gregos, alguns dos povos menos religiosos da história. Ihering

demonstra que as ordenações civis e as instituições de Roma eram a exata reprodução de

ordenações antigas e instituições que tinham um caráter sagrado.

Há originalmente, portanto, dois tipos de leis: os comandos de Deus e as pequenas

regulações que os homens criam para disciplinar a infinita variedade de situações concretas

que a complexidade crescente da sociedade gera. Esse tipo de legislação é somente um tipo

de jurisprudência, de casuística a partir da Lei maior.

Mas o crescimento da sociedade coloca cada vez mais essas duas esferas em disputa,

gerando uma distinção mais radical entre uma lei humana e outra divina. É preciso

enfatizar que a lei humana se torna preponderante principalmente através de uma

deficiência do senso religioso, uma limitação dos deuses ocidentais a um círculo muito

limitado de interesses. Sendo muito pouco místicos, os romanos foram o primeiro povo a

efetuar a cisão completa.

A partir daí podemos distinguir entre dois tipos de leis: uma lei objetiva, composta de duras

normas de conduta de caráter religioso e uma lei utilitária, advinda dos crescentes conflitos

entre os particulares. A esfera dessas duas leis varia com o caráter dos deuses. Se forem

egoístas e sedentos de sacrifícios, a esfera da pura lei humana cresce muito. Quanto mais

exaltada e justa a imagem dos deuses ou de Deus, mais a lei humana deverá ser subjugada

pelos princípios gerais da realidade, como vemos um São Tomás de Aquino afirmar.

Abundam os relatos medievais onde reis se arrependeram de ofensas à lei maior

simplesmente devido a um grande peso na consciência - muito mais do que os

historiadores racionalistas admitem.

A lei Divina não deve ser confundida com o costume, mas muitas vezes eles acabam

misturados na prática. Os comportamentos tradicionais, mesmo sem conteúdo religioso,

acabam incorporados na religião. Essa associação constante dará ao “corpus juris” um

nítido caráter de disciplina social ao Poder.

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As assembleias populares, o Poder e a Revolução Racionalista

A idéia de um absolutismo primitivo, onde o rei e magistrados criavam novas regras a todo

momento, é, portanto, um puro mito. Também não é verdade que as assembleias

populares fossem um limite à liberdade dos governantes: elas sempre foram convocadas,

pelo contrário, para permitir um aumento dessa liberdade; mesmo em 1789 os Estados-

gerais foram convocados pelo Poder para quebrar resistências a reformas consideradas

necessárias. É das instituições representativas que surge a idéia de se colocar em questão a

todo momento as leis e as condutas dos homens e seu triunfo se dá com a crise racionalista

que , mais dia menos dia, acontece em toda civilização.

O contato frequente com povos diferentes passa do desprezo, do ridículo, para a atenção e

a admiração, fazendo despertar a idéia nas mentes inferiores de que o justo e o injusto são

meramente questões de geografia. Em mentes superiores, como os missionários Jesuítas na

China, esse contato gera a elevação até um patamar superior onde as leis se encontram, mas

infelizmente a sociedade dispõe de poucos indivíduos dessa natureza.

O trabalho dos filósofos superficiais consiste em destruir a noção de qualquer elemento de

fixidez, de uma lei natural e uma moral objetiva. E ainda nos conclamam a aceitar a

narrativa de que a “superstição” era um apoio do trono e a investida racionalista um

enfraquecimento dele.

“Podemos deixar de notar a coincidência entre a crise das crenças entre o século 16 e 18 e a

elevação das monarquias absolutistas durante o mesmo período? Não está claro que elas

devem essa elevação a essa quebra das crenças? Não é essa a conclusão: de que o grande

período do racionalismo também foi o dos déspotas iluminados e livres-pensadores, todos

certos do caráter convencional de todas as instituições, todos persuadidos de que poderiam

e deveriam transformar os costumes de seu povo para torna-los condizentes com a razão,

todos estendendo prodigiosamente suas burocracias para o avanço de seus desígnios, e sua

polícia para esmagar a oposição ? “

A destruição do que os racionalistas chamam de “superstição” é maior conquista do Poder.

Todas as limitações que eles inventaram, como a religião natural de Rousseau e a ética

natural de Voltaire, caíram por terra rapidamente.

“É claro que elas estavam destinadas a cair. Pois , assim que o homem é declarado a

“medida de todas as coisas”, não há mais o verdadeiro , o bom e o justo, mas somente

opiniões de igual validade cujo confronto só pode ser resolvido pela força militar e judicial;

e cada força entroniza em sua hora do triunfo um verdadeiro, um belo e um justo que irá

durar tanto quanto ela”

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Livro V – A face do Poder se altera, mas não a sua natureza.

Capítulo XII – Sobre as Revoluções

Não há liberdade nas revoluções

Ao olhar para as revoluções nós sempre prestamos atenção aos gritos de “Liberdade” e não

percebemos que ainda não existiu uma revolução sequer que redundasse em um aumento

do poder. Antes do dilúvio reinavam Carlos I, Luís XVI e Nicolai II, depois Cromwell,

Napoleão e Stálin.

Esses tiranos não consequências fortuitas da tempestade revolucionária, mas seu fim

predestinado. O ciclo começa com a derrubada de um Poder inadequado à mercê da

sociedade e termina com a consolidação de um ainda mais absoluto.

A Revolução Inglesa começou levantando a bandeira dos direitos de propriedade aviltados,

em uma resistência contra uma pequena tributação, mas logo impôs um tributo sobre a

terra dez vezes mais pesado, sem contar o confisco sistemático da Igreja e das propriedades

privadas. A Revolução Francesa liberou os camponeses das obrigações feudais, mas os

enviou ao campo de batalha com colunas móveis que matavam os refratários. Da

Revolução Russa nem precisamos falar!

Abandonemos a lenda da libertação dos opressores. A população se levantou contra um

Luís XIV? Não, mas contra o bondoso Luís XVI, que não permitiu que a sua guarda suíça

atirasse contra as hordas desgovernadas. Contra um Pedro, o Grande? Não, mas sim contra

um Nicolai II, que não ousou vingar até mesmo o seu amado Rasputin. Contra Henrique

VIII? Não, mas sim contra Carlos I, que vivia modestamente e sem ocasionar perigo a uma

barata. Esses reis não caíram devido à sua tirania, mas à fraqueza. Os povos não erguem

matadouros para punir o despotismo, mas como uma punição biológica da fraqueza. E é

verdade que o Poder amolecido é um inimigo do Povo: ele permite que qualquer

autoridade existente se aproprie da riqueza e explore a sociedade.

E quanto mais longe for a aniquilação da aristocracia, maior a tirania a ser implementada.

É isso que explica fundamentalmente as diferença entre a Revolução na Inglaterra, França e

Rússia.

Identidade entre monarquia e democracia

Há uma identidade profunda entre o estado democrático e o monárquico. A função do

primeiro é destruir as últimas barreiras sociais que obstaculizavam os projetos do último.

Os oficiais da monarquia francesa, por exemplo, tinham somente uma política constante: a

de Richelieu e Mazarin; que consistia na luta, já iniciada por Luís XI, contra os Habsburgo.

E qual foi o resultado da Revolução sobre esta política? A guerra contra a Áustria. Contra a

Prússia também, mas logo a França estava buscando uma aliança com ela.

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O que enfraqueceu formidavelmente o Poder antes da Revolução foi a incrível coalizão da

nobreza de toga com a de berço. Ela se encarnou no Parlamento e trouxe junto consigo a

nobreza, o clero, as províncias: o único partido do rei era o povo.

Em 1788 a administração se encontrava limitada por todos os lados e o trabalho da

Revolução seria o de libertá-la e restaurar a monarquia absoluta sem o rei. Desde o

princípio a Assembleia Constituinte buscou destruir privilégios que nenhum rei havia

ousado tocar.

É como disse Mirabeau:

“A idéia de transformar todos os cidadãos em uma só classe agradaria Richelieu, pois uma

igualdade de nessa natureza facilita o trabalho do Poder”

Foi Robespierre que exclamou:

“Quanto ao equilíbrio dos poderes, nos nós deixamos enganar nos passado por seu

prestígio, mas porque levar em conta agora instrumentos que foram desenhados para

equilibrar a autoridade de tiranos? É a tirania que deve ser extirpada: o objetivo do povo

não dever ser o de encontrar algum espaço para respirar entre as brigas de seus senhores,

mas o de tomarem em suas mãos a garantia de seus direitos”

Em outras palavras: Quando o Poder era controlado por outros, nos favorecíamos sua

limitação, mas agora que é nosso, ele nunca pode ser grande o suficiente.

O geometrismo, Napoleão e os Direitos Individuais

A verdadeira encarnação desse novo Poder foi o abade Sieyés, inspirador das seguintes

palavras de Napoleão: “A Revolução acabou; seus princípios estão fixados na minha

pessoa. O governo em exercício é o representante do povo soberano. Não pode existir

qualquer oposição ao soberano”

A criação de um Napoleão foi o objetivo da Revolução desde o dia em que ambição do

Duque de Orléans e a vaidade de Lafayette a colocaram em marcha. A ditadura dos

prefeitos, um traço constante da sociedade francesa daí por diante, foi obra do pensamento

geométrico de Sieyés, que concebeu a idéia de dividir o país em vinte e quatro retângulos

idênticos, divididos em nove comunas idênticas, que seriam por sua vez subdividas em

nove cantões idênticos. O plano não se realizou, mas foi a inspiração dos criadores dos

departamentos, base da ditadura napoleônica.

E como ficaram os direitos individuais depois da Revolução? A sua destruição é evidente

na vida judiciária do país. O judiciário do ancién regime era subordinado a um Parlamento;

um ente cioso de sua liberdade e guardião das virtudes aristocráticas romanas. Tocqueville

foi testemunha da independência desse judiciário, capaz de afrontar o próprio rei.

Comparado a isso, o que podemos dizer dos tribunais do terror revolucionário, sem

qualquer possibilidade de defesa dos acusados?

Em 1790, a Assembléia emitiu uma instrução transformando qualquer ato judiciário que

impedisse a administração inconstitucional e sem efeito. Essa subordinação do Judiciário

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ao governo foi uma condição que a Revolução legou à sociedade moderna, onde ela ainda

atua.

Os abusos da Revolução Russa são tantos e tão manifestos que não precisam nem ser

mencionados. Em última instância as Revoluções não feitas para o homem, mas para o

Poder.

Capítulo XIII – Imperium e Democracia

Democracia: teoria x prática

O que chamamos de Democracia é a conquista da Cidade do Comando construída pela

monarquia por novos donos, mas devemos lembrar que as associações emocionais desse

regime com a lei e a liberdade indicam que algo diferente e mais amplo do que uma mera

mudança de soberano era buscado. E o objetivo central era a domesticação completa do

Minotauro, tornando obsoletas as instituições sociais e religiosas que acorrentavam o

monstro.

A história do da doutrina democrática fornece um exemplo marcante de um sistema

intelectual derrotado pelas influências sociais. Concebida como uma fundação para a

liberdade, ela abre o caminho para a tirania.

Essa doutrina começa afirmando a identidade entre a liberdade humana e a estrita

observância a um sistema de leis. É preciso então definir de onde a lei vem e quem a

enunciará. Como não podiam alegar a fixidez divina da lei medieval, esses “libertários”

tiveram que considerar que a lei era “feita”. Há de existir uma autoridade legislativa. Mas

como entender o que é isso? A solução foi buscada, como indicado por Montesquieu, na

cultura gótica, onde a assembléia dos nobres detinha um imenso poder perante o rei. Nesse

sistema o rei representava a nação como um todo e a assembléia os interesses particulares

articulados. O que escapou a todos foi a diferença entre o Parlamento moderno, dotado de

capacidade legislativa e representante de todos, e as assembleias góticas que eram uma mera

superposição de diferentes interesses. O Parlamento passa a ser, portanto, o sucessor do rei

na representação do interesse geral. E no fim o princípio de legalidade iria justificar uma

liberdade total para uma aristocracia parlamentar, que se torna o novo “príncipe”. Isso

elimina a liberdade de todo o resto da sociedade, além acabar com a segurança e

estabilidade das leis devido à guerra dos partidos.

Era isso que Rousseau queria evitar a todo curso, já que havia presenciado essas

consequências terríveis em sua cidade natal, Genebra. E sua solução era o método romano

de legislar: o povo devia meramente ratificar ou vetar a lei proposta pelo Executivo. Mas

tudo o que o mundo moderno preservou de Rousseau foi a idéia mágica da soberania

popular, separada da assembleia ratificadora. Mas como pode uma lei que varia com a

mudança dos volúveis sentimentos populares ser o fundamento da liberdade?

Contraste entre França, Eua e Inglaterra e o Imperium parlamentar

O destino de uma nação depois que essa idéia for afirmada dependerá do desenvolvimento

do Minotauro até o momento. Existe um claro contraste entre Inglaterra, Eua e França.

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A evolução do século 19, continuada no século 20, nos apresenta três fatos importante em

relação ao imperium:

1) A sua conquista pelo parlamento.

2) A tomada do parlamento pelos plebeus.

3) A aceitação geral da tese democrática de que o povo deve governar.

Assim constituído o Parlamento se tornou o novo instrumento de ascensão social dos

plebeus, como antes o era o serviço ao rei. Mas durante muito tempo a escolha dos

representantes pelo povo foi surpreendentemente boa: eles escolhiam os defensores dos

interesses locais contra o Poder. Foi posteriormente que o caráter restritivo da instituição

foi confrontado pelo absolutismo da soberania popular, estimulado pela própria

magistratura e pelo corpo legislativo. Eles não viam que com isso renunciavam a qualquer

noção de império da lei.

Capítulo XIV – A democracia totalitária

O princípio libertário

A liberdade concreta sempre foi fruto de uma luta aguerrida de certos homens e era

garantida por privilégios extraídos da autoridade. O princípio libertário é, por definição,

indiferente a qualquer forma de Poder. O que importa é o reconhecimento de que em todo

homem existe um orgulho e uma dignidade que no momento só um grupo de aristocratas é

capaz de defender e sustentar.

A concentração sobre a forma de governo é um erro antevisto por Montesquieu:

“É uma marca da democracia que ela apareça a todos como a realização dos desejos do

povo, e por isso homens supuseram que os governos democrático eram o habitat natural

da liberdade: eles confundiram o poder do povo com a liberdade do povo”

O princípio libertário exige vigilância constante e nunca pode repousar em um determinado

arranjo de governo. E o maior perigo oferecido pela modernidade é idéia do todo social

encarnado na democracia, uma idéia alienígena no Ocidente e um recuo até certas

concepções gregas. Mas a cidade-estado grega estava muito mais próxima de ser um todo

verdadeiro através da educação do que as formações políticas modernas. Esse “todo”

moderno só deseja destruir todo formação e tradição particular existente. Tocqueville foi

um espectador aterrorizado dessa situação:

“As antigas autoridades locais desaparecem sem reavivamento ou substituição e em todos

os lugares o governo central as sucede na direção dos assuntos. A Alemanha toda, até

mesmo toda a Europa, apresenta a mesma imagem. Por todos os lados os homens estão

abandonando as a liberdade da Idade Média, não para entrar em uma versão moderna da

liberdade, mas para retornar ao despotismo antigo; pois a centralização não é nada mais do

que uma versão atualizada da administração vista no Império Romano”.

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As formações menores

A hostilidade dos governos democráticos à formação de comunidades menores é

inconsistente com a alegação de ser um governo constituído pelo povo, já que um governo

que obedece a essa descrição tem muito mais chances de sucesso em pequenas formações.

A democracia moderna só tem ligação com o povo através do tênue fio das eleições gerais.

Prova do totalitarismo democrático é a conotação que a palavra “interesse particular”

ganhou nesses regimes. A submissão dessas dignidades particulares ao interesse geral é uma

grande derrota da liberdade e da sociedade. O corporativismo que aqui e acolá pulula nas

democracias tem seus males, mas é um fenômeno natural, um corretivo necessário à

concepção totalitária do interesse geral. Mas esse corporativismo tende a enfraquecer o

Poder e gerar uma revolta que irá inevitavelmente lançar o Poder nas mãos de um tirano

que não aceitará esse tipo de manipulação. A fraqueza do Poder Democrático, aliada a sua

extensão, leva inevitavelmente ao autoritarismo.

Das grandes assembléias até o triunfo do Partido

É loucura imaginar que as assembleias modernas podem atuar de forma competente como

o antigo Senado romano. Eles não são compostas a partir de uma seleção cuidadosa, de

uma longa experiência e da estabilidade característica daquela instituição romana. E o

fundamento dessas qualidades era o lazer cultivado que os senadores podiam desfrutar; só

quem tinha tempo para pensar nos assuntos públicos poderia ser considerado um cidadão.

Vemos até mesmo em Rousseau e Sieyès uma nostalgia pela facilidade de desenvolvimento

de uma opinião iluminada que a escravidão permitia ao homem livre. Uma forma de emular

essa possibilidade nas repúblicas é o voto restrito a certas parcelas da população, livres e

dotadas de propriedade e capacidade de defesa, mas, como sabemos, esse sistema nunca

resistiu aos avanços da democracia totalitária.

Enquanto o povo ainda se preocupa com as qualidades pessoais dos representantes o voto

majoritário ainda pode preservar uma elite de personalidades independentes como

representantes. Mas o avanço do grupo, do partido, exigindo fidelidade total, elimina

rapidamente essas personalidades, causando a degradação brutal da qualidade das

assembleias.

A máquina política é provavelmente a maior descoberta do século 19; e o crédito deve ser

dado a um americano, Martin Van Buren. Elas rapidamente asseguraram para si mesmas a

seleção dos candidatos, sempre feita a sua própria imagem. E elas não escolhem homens

como um Jefferson ou um Catão.

Estudo da máquina política: M. Ostrogorski – apelo constante às emoções, palavras de

ordem.

O avanço dos partidos expulsa qualquer autoridade real dos parlamentos e transforma os

debates em um circo para macacos. E a competição dessas ridículas máquinas partidárias

sempre termina na ditadura de um só partido. Os cidadãos amam esse partido forte, e só

percebem a destruição da liberdade quando já é muito tarde.

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Recapitulemos o processo:

No começo o objetivo era a liberdade e seu sustentáculo o império da lei. Esse sistema só

podia durar enquanto houvesse uma veneração religiosa pela lei. Assim que a lei toma o

caráter de regulações momentâneas, ela se torna o alvo das disputas políticas. A partir daí

todos os interesses particulares buscam manipular a lei a seu favor, transformando-as na

expressão da paixão do momento. Como a única maneira de se controlar o legislativo agora

é o executivo, os partidos se organizam para a tomada dele e crescem ininterruptamente em

coesão e violência. Essas facções são estados dentro do estado, e a cada mudança a

sociedade passa por verdadeiros terremotos em sua estrutura. No fim a população passa a

desprezar essa anarquia e encontra uma consolação inglória na paz do despotismo.

Quarta Apresentação

Livro VI – Poder Ilimitado ou Limitado?

Capítulo XV – O Poder Limitado

Os dois aspectos do Poder

O poder tem sempre dois aspectos:

- Ele é uma necessidade social, devido à ordem que impõe e a harmonia que cria.

Permitindo ao homem uma vida melhor. É esse aspecto que levou autores como Hobbes,

Ihering, Kant e Hegel a acreditar que tudo que pudesse salvaguardar a autoridade estatal era

bom.

-É também uma ameaça social, que busca extrair as forças da sociedade para seus próprios

fins.

É uma condição básica de toda ciência política ver o Poder sob esses dois ângulos.

A doutrina da limitação do Poder

A doutrina da limitação do Poder é uma prova de que como as paixões envolvidas no tema

podem impedir o surgimento de uma verdadeira ciência política. E para entender a origem

dessa doutrina, quase um truísmo no século 19, precisamos retornar à Idade Média. O que

encontramos lá é um complexo de autoridades que se limitavam umas as outras. Mesmo o

rei vivia sob a atmosfera de uma autoridade divina que o limitava absolutamente.

Já vimos como o Poder cresceu destruindo essas autoridades, assumindo até mesmo um

poder legislativo. Nos séculos 17 e 18 o estado já controlava a situação, mas esse

crescimento do Poder o torna mais instável, já que ele passa a incomodar mais e mais

interesses.

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Pesos e contrapesos

Essa instabilidade produz uma luta cada vez mais violenta pelo Estado, que leva

naturalmente alguns a pensar que o correto seria acabar com a possibilidade de exercício de

um Poder tão vasto de forma exclusiva. Foram os juristas do século 18, capitaneados por

John Locke, que estabeleceram uma doutrina do direito natural com esse fim. A solução

estaria na criação de uma legislação de caráter universal, distante de qualquer interesse

particular manipulável. Montesquieu demonstrou a importâncias dos pesos e contrapesos,

da divisão do Poder.

Essa é um objetivo muito difícil de atingir em um país no qual a autoridade pública

depende de uma máquina centralizada, como é o caso nos estados europeus modernos. Já

vimos que o mesmo não se dava nas repúblicas antigas. Mas os cientistas políticos do

século 18 estavam familiarizados com a história romana desde a infância e consideravam a

limitação das autoridades algo natural.

O que é um contrapeso? Claramente deve ser uma autoridade social, como a aristocracia

inglesa do tempo de Montesquieu.

Montesquieu viveu em um momento de pausa nos ataques da monarquia a essas

autoridades e aproveitou-o para denunciar o perigo deles. Somente a guerra entre várias

autoridades pode criar um equilíbrio social saudável.

Outro elemento fundamental era o desenvolvimento do judiciário através da venda dos

cargos, que se tornavam independentes do estado. Restava espalhar por todos os lados a

ênfase na lei natural, no costume e nos contratos que caracterizava o judiciário inglês.

O Poder “bom”

Os autores do século 18 não se preocuparam com a formação do Poder e do direito: já

tinham uma solução na hereditariedade e em uma origem transcendental. Foi aí que o

ocorreu o grande terremoto iniciado por Rousseau e Mably, a soberania popular e sua

triunfante Revolução. Basta dizer que na Convenção Montesquieu era abertamente

ridicularizado. O Poder que crescia era “bom” e, portanto, não precisava ser limitado; o

problema fundamental era a origem do Poder. E assim o absolutismo foi concretizado por

aqueles que professaram destruí-lo.

O fim da lei natural

A Revolução foi acompanhada por aquilo que Tocqueville chama de “um desejo universal

e apaixonado por cargos públicos”, que eram uma “ indústria não –produtiva , que

perturba o país sem fertilizá-lo”. Esse crescimento é natural na sociedade moderna: a

posição de súdito é muito frágil nela e adentrar a máquina é o único modo efetivo de

proteção. A Revolução ainda levou as idéias de Hobbes a cabo: a lei natural foi destruída e

o estado se tornou a fonte geradora das leis.

Não há mais autoridade que não a exercida pelo Estado, nem lei fora da lei formulada pelo

Estado.

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Montesquieu já tinha previsto esse erro da confusão do Poder do povo com sua liberdade.

E nos regimes revolucionários até mesmo o Poder do povo era uma ficção que escondia a

tirania parlamentar.

A Restauração

Ao fim desse processo chegamos à Restauração; seus pensadores receberam a lição de vinte

e cinco anos de despotismo e arbitrariedade e acabaram por redescobrir o princípio da

limitação do Poder. Segundo Benjamin Constant: “há armas que são muito pesadas para as

mãos do homem”.

Mas como colocar isso em prática? Como foi que a onipotência se ergueu? Destruindo em

nome da massa, uma existência fictícia, os vários grupos cuja vida era uma realidade.

O caminho lógico depois disso era a restauração dos poderes intermediários e locais. Mas

os donos do Poder não queriam abandonar os imensos recursos que a Revolução e o

Império haviam colocado à sua disposição. Em 1814 os departamentos franceses pareciam

bem mais governáveis ao Duque d’Angoulême do que as antigas províncias, que eram uma

verdadeira confusão de liberdades. E o desejo de se abancar no estado continuava o

mesmo entre os advogados e potenciais membros da burocracia. É como Odilon Barrot

disse:

“Quanto mais amplos os limites do Poder, mais pessoas aspirarão a ele. A vida vai até onde

há vida, e quando todo o estoque de vitalidade de uma nação está concentrado no governo,

é meramente natural que todo homem busque um lugar nele”.

Separação formal dos poderes

As tendências do tempo e a tentação de seguir o caminho mais curto transformaram o

princípio da limitação do Poder em uma mera separação formal dos poderes. E assim

passamos a acreditar que a existência de um Executivo, de uma câmara alta e uma baixa

deixaria tudo muito bem. O modelo era inglês, mas que grande distância separava a história

do Parlamento lá e na França! Os nobres ingleses ainda eram os representantes

parlamentares e poderosos senhores de terra e riquezas. A representação parlamentar era

realmente um órgão de verdadeiras forças sociais, que mais pressionavam o Poder de todos

os lados do que o equilibravam.

Os novos Césares

O mero recitar dessa história inglesa mostra como foi arbitrária a introdução desse sistema

na França. Em sua história o Poder central e as autoridades sociais nunca tiveram um lugar

de encontro; o imperium centralizado sempre viveu em um vitorioso isolamento. Cada

pedaço do imperium , repartido como no modelo inglês, se considerava apto a restaurar o

poder absoluto do Parlamento Revolucionário. Agiam como Augusto e César, que sempre

consideraram seus territórios iniciais como uma base para a conquista do Império sem

divisões.

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A usurpação cada vez maior da monarquia e os apelos constantes do povo ao Parlamento

explodiram na Revolução de 1848. E retornou novamente a ilusão da primeira revolução: o

Poder fundado em um bom princípio é infinitamente beneficente. Nas palavras de

Lamartine:

“Um Poder forte e centralizado como esse é verdadeiramente perigoso onde o governo e o

povo não são um, mas deixa de sê-lo quando o governo é meramente a nação em ação, isso

e nada mais.”

Opor, como a Segunda República fez, uma assembléia eleita pelo povo a um presidente

eleito pelo povo não é a organização de um equilíbrio social, mas somente a introdução

uma disputa entre homens investidos da mesma autoridade. Aqui cabe a profecia de

Sismondi:

“Onde quer que se reconheça que todo poder emana do povo, então aqueles que o

recebem mais diretamente do povo e aqueles com o maior número de eleitores estão

fadados ,por essa razão, a considerar seu poder mais legítimo”

A representação social

É digno de nota que o Senado na França tem resistido aos ataques da câmara baixa, por ser

uma verdadeira reflexão de uma força social, as oligarquias do campo. Nos Eua ,o Senado,

que não é eleito pelo sufrágio universal, também é o órgão mais capacitado a fazer frente

ao Presidente.

Essa resistência só pode continuar enquanto a assembleia tenha um poder social forte

como seu fundamento. Na própria Inglaterra, a Câmara dos Lordes foi se tornando

irrelevante juntamente com a queda da aristocracia durante o final do século 19/começo do

século 20.

Um movimento inevitável?

Esse tipo de equilíbrio social refinado pode ser sustentado por um legislador de visão? Ou

será que uma situação que só se dá em determinados momentos da evolução histórica, e

principalmente naqueles em que um movimento ascendente encontra um descendente?

Isso pode acontecer, por exemplo, quando um poder central se ergue entre autoridades

sociais antes ilimitadas, ou quando poderes sociais renovam sua força contra um poder

central em declínio.

A liberdade dependeria, nessa segunda hipótese, da incapacidade real de um Poder se

impor absolutamente. Ele não pode sobreviver quando a família, a comuna ou o

empregador tem autonomia total, mas também não quando o estado adquire uma

soberania absoluta. Isso explicaria o incrível declínio do status do indivíduo nos séculos 19

e 20 como um movimento brusco entre esses dois extremos.

Uma lei

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Podemos enunciar quase como uma lei o seguinte: A oposição evocada pelo Poder só será

forte o suficiente para limitá-lo no caso de um Poder de caráter minoritário. Um Poder da

maioria pode evoluir até o absolutismo por si mesmo; esse absolutismo revela, por sua

mera existência, a mentira na alma desse Poder – apesar de se dizer “povo”, ele nunca

deixou de ser Poder.

Capítulo XVI – O Poder e a Lei

A lei acima do estado e a (i)lógica positivista

A supremacia da lei deve ser o tema central da ciência política; mas tal só pode se dar onde

existe uma lei anterior e superior ao estado. E as mesmas forças que destruíram as

autoridades sociais tiraram da lei sua autonomia.

O que é a lei? Diz-se que a autoridade política deve ser justa, agindo em conformidade

com a lei. Mas também nos é dito que a lei não é nada mais do que a epítome das regras

ditadas pela própria autoridade política. Andamos em círculos, já que isso torna a

autoridade que faz as leis sempre justa por definição. E até mesmo Kant chegou a esse tipo

de conclusão!

A lógica é implacável: As leis são a única fonte do direito. Portanto, tudo que está em uma

lei é um direito, e não há remédio contra as leis. Aceite isso e logo buscar uma proteção

contra o Poder na lei se tornará uma ilusão. A lei é, como os juristas dizem, positiva.

Assembléia dos Erros

Estamos num ponto em que uma série de correntes do erro se encontram: Hobbes, Kant ,

Rousseau, Helvetius, Bentham e Destut de Tracy se reúnem em sua imensa influência, só

comparável à moderação de seus entendimentos.

Hobbes: tosco demais para merecer muitos comentários.

Rousseau e Kant (autoridade legislativa do povo como um todo), por exemplo, foram

incapazes de perceber que a ilimitada capacidade legislativa do povo era incompatível com

os direitos humanos inalienáveis que tanto amavam!

O erro dos utilitaristas e hedonistas é mais grosseiro. Nada, segundo Helvetius, é bom ou

mau em si mesmo. A primeira coisa a se fazer é banir o preconceito arcaico de uma

moralidade objetiva e adotar a nova ciência da utilidade: “o maior bem para o maior

número”. A partir desse ponto só duas coisas podem prevalecer: ou uma monstruosa

criação de lei ou uma sociedade planejada por um senhor absoluto que sabe impor sua

vontade.

Lei x legislação: o declínio do catolicismo

Devemos afirmar a verdade de que o dilúvio da legislação moderna não cria uma só lei

verdadeira. Esse dilúvio é fundamentalmente anti social, pois deriva de uma concepção

falsa e mortal da sociedade.

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Uma lei verdadeira depende de uma fé comum, de uma profunda comunidade de

sentimentos, que se transformam em uma ética reconhecida e uma lei inviolável. O Poder

não atingir nada disso por si mesmo.

E é por isso que o crescimento do Poder coincide perfeitamente com o enfraquecimento

da fé Católica, e também, em menor escala, com a perda da crença nos direitos individuais

naturais.

“O homem moderno, sem um ser superior, sem ancestrais, sem crenças e costumes,

encontra-se completamente indefeso perante a promessa brilhante que aparece perante ele,

de um estado melhor de coisas a ser atingido, de um maior bem estar social a ser realizado

através da legislação, que, apesar de ofender uma lei ultrapassada, é inspirada pela lei

superior do presente!”

A Suprema Corte: o novo tribuno da plebe

Como evitar que o influxo da legislação destrua a supremacia lei? A solução que John

Marshall, o jurista americano, conseguiu aprovar nos Eua em 1803, foi a criação de uma

autoridade concreta, a Suprema Corte. Tentativa semelhante foi feita na França, mas até

hoje seus propositores são ridicularizados por desejar inscrever “princípios imortais” acima

da toda poderosa legislatura.

De que adianta ao cidadão ser protegido pelo juiz de um agente do Poder sem base jurídica

se o agente puder retornar no outro dia em nome da nova lei? É esse o perigo controlado

pela Suprema Corte.

Essa função de restrição dos agentes do Poder já era a do tribuno da plebe da antiga Roma.

E é nesse poder do Judiciário que se sustentou a liberdade inglesa e americana. Os juízes

dos países anglo-saxões tem o poder direto de intervir nas ações do agente público, assim

como fazem tradicionalmente nas relações entre agentes privados. Mas na França o Poder

político está acima da lei ordinária; esse foi um trabalho executado pela Revolução

Francesa.

Mas o fato é que a opinião pública moderna também tem se voltado contra essa antiga

instituição jurídica na Inglaterra e nos Eua. Como diz Jouvenel:

“A opinião pública moderna, que apreende todas as coisas em termos de uma simplicidade

enganadora, se recusa a permitir que a opinião de uns poucos homens aja como um freio

independente à aquilo que a opinião da sociedade como um todo exige. Isso é visto como

um pecado contra o princípio da soberania popular”

Enquanto o assunto for encarado sob a ótica da opinião de uns poucos contra a de muitos

estamos no terreno do erro. Pois o que existe de um lado é uma emoção passageira,

facilmente manipulada pelo governo e pelos partidos, e de outro as verdades da justiça, que

não admitem volubilidade

.

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A justiça só pode resistir se tiver fundamentos eternos

Essas verdades só podem ser defendidas se forem eternas. E aí reside o grande erro da

Suprema Corte Americana: ela buscou defender-se do oportunismo político com princípios

que também participavam desse mesmo oportunismo.

Os pais da Constituição eram proprietários independentes e legislavam para proprietários

independentes. No momento do eclipse da Suprema o Poder contava com o apoio de uma

massa de proletários que sofriam sob o peso uma concepção monstruosamente distorcida

dos direitos de propriedade. Um erro similar cometem aqueles que dizem que a lei

fundamental deve seguir o movimento das idéias, pois há sim um elemento imutável na lei.

Precisamos retornar a Aristóteles, São Tomás e Montesquieu; neles há uma substância

inexistente no pensador que “segue o movimento das idéias”.

“Podemos deixar de ver que o delírio legislativo, como ocorrido nas últimas duas ou três

gerações, ao acostumar as mentes à idéia de que as regras e noções fundamentais são

infinitamente modificáveis, criou condições altamente favoráveis para o déspota? “

A lei perdeu sua alma e se tornou uma selva.

Capítulo XVII – As raízes aristocráticas da liberdade

Voto x Liberdade

Por dois séculos a humanidade europeia tem buscado a liberdade e encontrou a autoridade

estatal mais grandiosa já vista em toda a história. Quando nos perguntamos onde está a

liberdade, a resposta que recebemos é um dedo apontado em direção uma máquina de

votação. Mas a liberdade é algo muito diferente. Sua essência reside na não sujeição da

vontade a outras vontades humanas; em ter nossa vontade reinando sobre nossas ações, e

sendo limitada somente quando prejudica os requisitos básicos e indispensáveis da vida em

sociedade.

Não foi como um elemento da felicidade do individuo que os espíritos mais elevados

louvaram a liberdade, mas porque ela consagra a dignidade da personalidade e evita que o

ser humano se torne um mero instrumento da autoridade. Por que então essa elevada

intenção foi distorcida?

O homem livre: legado da antiguidade

A liberdade não é uma invenção recente; bem ao contrário, ela faz parte de nossa mais

antiga herança intelectual. Formamos uma idéia “instintiva” da liberdade, mas ela é na

realidade um retorno à memória coletiva dos dias do homem livre. Esse homem não é uma

fantasia filosófica como o homem em seu estado da natureza, tendo realmente existido

naquelas sociedades não invadidas pelo Poder. Tornamo-nos tão acostumados ao Poder

que acreditamos dever nossa liberdade a ele, mas historicamente a liberdade é uma

conquista, que ganhou o nome de direito subjetivo a partir de um ato de auto asserção.

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As famílias poderosas

A liberdade pode ser encontrada entre os grupos mais antigos dos povos indo-europeus.

Ela é um direito subjetivo que só pertence àqueles que são capazes de defendê-la: aos

membros de certas famílias viris, compostas de irmãos que se defendem e vingam as

ofensas recebidas.

Foram essas famílias poderosas, ciosas de sua independência e assíduas aos assuntos de

interesse comum, que deram o tom às primeiras instituições libertárias. A vida nas cidades

progressivamente desintegrou os clãs, mas ainda podemos ver na antiga lei romana um

feroz espírito de independência.

Roma patrícia: uma sociedade sem Poder

A Roma patrícia é um exemplo claro de que uma sociedade pode sobreviver muito bem

sem um Poder a ditar os atos dos indivíduos. Ela nos oferece o espetáculo de uma

seriedade contínua e um decoro que só sofreu um declínio depois de séculos; e a desordem

se instalou exatamente no momento em as regras começaram a se multiplicar. Por que

então a autonomia individual não gerou os frutos anárquicos que nos acostumamos a

esperar? Três palavras: responsabilidade, ritual e tradição.

Gravidade e solenidade: fundamentos da liberdade

O homem romano era livre para fazer o que quisesse, mas se dissesse uma palavra

garantindo o pagamento de certa quantia e não o cumprisse logo o veríamos como o

escravo de seu credor. Um mundo onde as consequências dos erros podiam ser tão duras

tanto requeria como formava naturezas viris. Os homens meditavam longamente suas

ações e cada uma delas tinha um aspecto cerimonial. Tudo podia ser feito, desde a venda

de um filho ou sua substituição na herança por um estranho, mas o ritual devia ser

observado. No auge da Roma republicana esse ritual era estrito ao extremo; e fazia todos

verem que suas decisões e atos eram coisas graves e solenes. É como Ihering disse:

“A era da liberdade em sua máxima floração assistiu ao reino do rigor mais inflexível em

relação à forma. A forma perdeu sua severidade ao mesmo tempo em que a liberdade

começou a se rebaixar insensivelmente e, quando a liberdade foi completamente esmagada

e mantida sempre sob a pressão incessante do regime dos Césares, as formas e fórmulas da

lei antiga foram enterradas sob sua ruína. Clama à nossa atenção ver a forma desaparecer

assim, ao mesmo tempo em que o soberano se sentava tranquilamente no trono,

proclamando abertamente e sem subterfúgios o ser o princípio supremo da lei pública. Mas

mais do que isso, a época dos imperadores Bizantinos, a oração fúnebre que eles

pronunciaram sobre a morte da forma, seu desprezo e crítica não dissimulados a ela, nos

fazem reconhecer a conexão que existe entre forma e liberdade. Com efeito, a forma é o

freio que limita os excessos daqueles que da liberdade passa à licenciosidade: ela dirige,

controla e protege a liberdade. Formas fixas são a escola da disciplina e da ordem e ,

portanto, da liberdade; elas são um baluarte contra os ataques externos; elas podem ser

quebradas, mas nunca se curvam. O povo que valoriza realmente a liberdade sabe

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instintivamente o valor da forma; ele compreende que ela não é um jugo externo, mas a

defensora de sua liberdade.”

A impressão precoce por um pai temido e venerado do culto dos ancestrais, uma educação

severa e uniforme, a formação de centros comuns de treinamento para os adolescentes, o

espetáculo precoce do comportamento que produzia respeito, tudo isso condicionava o

homem livre a certos modos de comportamento.

“A razão pela qual Plutarco constitui uma leitura tão elevada é o fato de que todos os seus

personagens, do melhor aos pior, cumprem sua parte sem qualquer tipo de vulgaridade ou

mediocridade. Não é surpreendente que eles forneceram à tragédia a maior parte de seus

heróis, pois mesmo enquanto vivos, elas já estavam de certa forma no palco, treinados para

interpretar certos personagens e fixos em seus papéis pelas expectativas rigorosas da

plateia... O clima de opinião quando a República estava no seu auge era o de uma sociedade

pequena e privilegiada, livre de todo trabalho manual e preocupação sórdida e nutridos

desde o berço com lendas de atos heróicos; uma só traição desse ideal e as portas se

fechavam para sempre ao ofensor.”

A liberdade não faz parte da natureza de todo homem

O sistema da liberdade dependia do pressuposto de que o homem usaria sua liberdade de

certa forma. Esse pressuposto não se baseava em considerações sobre a natureza abstrata

do homem, mas nas virtudes de uma classe específica.

O homem livre é um homem de tipo particular e tem, se aceitarmos Aristóteles, um uma

forma particular de natureza. É a essa natureza que os privilégios da liberdade estão ligados.

Os homens livres são capazes, como um corpo, de governar os outros e de concordar entre

si mesmos, e seu orgulho repousa simultaneamente na majestade de suas pessoas e da

cidade. Homens dessa raça, fossem espartanos ou romanos, nunca se submeteriam à

escravidão, viesse ela de dentro ou de fora. Eles são a alma da República. Mas e o resto?

Liberdade e Escravidão

É bastante estranho que os filósofos da Revolução tenham formado suas concepções de

uma sociedade livre a partir de uma sociedade onde a maioria não era livre.

A liberdade do mundo antigo dependia de uma diferenciação social que os espíritos

modernos consideram profundamente chocante. Em Atenas havia cerca de 15 a 20.000

homens livres, contra 400.000 escravos. Disse Aristóteles:

“A utilidade dos escravos diverge pouco da dos animais, pois o serviço corpóreo para as

necessidades da vida é buscado nos dois”

E Cícero:

“O nome de homem é geralmente concedido, mas é realmente conquistado somente por

aqueles que cultivam o conhecimento”

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A liberdade pela metade e a emancipação

Mesmo assim, a cidade antiga, onde grande classe de homens livres se sustentava sobre um

oceano de escravos, é uma importante etapa da generalização da liberdade. A liberdade

plena pertencia a alguns poucos, mas muitos desfrutavam daquilo que Mommsen chamava

de liberdade pela metade. E essa crescente massa plebéia naturalmente pressionou a

aristocracia privilegiada para que a liberdade fosse ainda mais difundida.

A partir de um processo altamente complexo, nós podemos aqui distinguir três formas

principais de emancipação: a “incorporação”, “ a assimilação diferencial” e a “contra-

organização”.

Incorporação

É certo que durante os primórdios de Roma famílias inteiras foram admitidas ao patriciado,

como foi o caso durante a anexação de Alba; mas isso logo deixou de acontecer e somente

a admissão de indivíduos continuou revigorando a aristocracia.

Assimilação Diferencial

O resultado foi que as famílias plebeias viris, em vez de reforçarem a aristocracia,

permaneceram parte da plebe, fornecendo seus líderes e iniciando um longo período de

guerra aberta contra a aristocracia. Essa investida plebeia foi vitoriosa e essas famílias viris,

agora portadoras de cargos e honrarias, se juntaram ao patriciado em uma nova classe

governante: a nobilitas que presidiu Roma na hora mais gloriosa de sua história. A plebe

ganhou muitos direitos nessa luta, mas que não eram os direitos patrícios, por isso o termo

“assimilação diferencial”.

O espírito da lei também se alterou. O comportamento se torna menos previsível no caso

de uma multidão de homens cujas vontades receberam menos condicionamento. Um

caráter mais fraco, de homens que não tinham desfrutado de uma completa autonomia

dentro da lei, não podia ser submetido às mesmas consequências cruéis que os erros, agora

mais frequentes, ocasionavam. Foi necessário adaptar e humanizar a lei e os regulamentos

se multiplicaram. E não só isso: a lei antiga se exercia sem a necessidade de um aparato de

coerção, mas agora a justiça tem que ser aplicada de forma soberana e não mediadora. A

liberdade perdeu sua antiga dureza, mas ainda assim permaneceu dominante por um bom

tempo.

A contra-organização

De acordo com a lei não existia mais uma plebe, mas ela de fato continuava a existir. Com

Roma se tornando a rainha do mundo, fortunas prodigiosas foram conquistadas, protegidas

pela inviolabilidade da lei assim como o antigo pedaço de terra do camponês. O homem do

povo passou, portanto, a dar mais importância à participação no poder público do que a

seu status de homem livre, pois com a primeira tinha muito mais chances de melhorar sua

situação participando do tesouro público. E assim o povo se voltou contra a liberdade, e o

tribunato e o plebiscito seriam seus instrumentos.

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O tribuno tinha um poder arbitrário necessário a sua função de proteção de uma plebe sem

direitos; ele deveria ter logicamente desaparecido quando a plebe recebeu seus direitos. Mas

ele continuou vivo, sendo apoiado e manipulado pelo Senado, como um instrumento de

controle dos magistrados muito independentes e de concentração absoluta da autoridade

pública. O Senado permitiu que os tribunos unissem a plebe e a organizassem através dos

plebi scita, resoluções que no fim ganharam o status de leis. Foi assim que a autoridade

legislativa se ergueu em Roma e também foi o tribuno que acostumou a plebe à idéia de um

salvador que restabeleceria o equilíbrio social. Mário e César seriam seus sucessores, e os

imperadores tiveram imensa facilidade em dominar as ruínas da República e da liberdade.

E quem foram os homens que tentaram estancar esse processo? Os homens livres da velha

escola. A adaga de Brutus, tão cara ao coração jacobino, foi manejada por uma mão

aristocrática.

A responsabilidade dos grandes

O sistema da liberdade só poderia funcionar enquanto não se estendesse além de homens

cuja tradição se adequava a ele. Ele cessou de funcionar quando incluiu homens que só

podiam ver na liberdade a autoridade política.

Até aqui a responsabilidade é das massas, mas a dos grandes é tão grande quanto. Eles

deixaram de ser patrícios austeros e se transformaram em capitalistas gananciosos,

enriquecidos pela pilhagem de províncias inteiras e pela usura.

A participação política e a propriedade

Vemos que Tibério Graco estava certo em tentar limitar as grandes propriedades e

multiplicar as pequenas, reforçando os laços perigosamente relaxados da sociedade. Ao

fazê-lo ele se deparou com uma verdade fundamental – aquilo que pode ser chamado de o

verdadeiro segredo da liberdade: um regime libertário – em que os direitos subjetivos são

invioláveis - não pode ser mantido se maioria dos membros da sociedade que tomam parte

na política não estão preocupados em mantê-los. E eles só podem se interessar se tem

realmente algo a perder com sua queda.

Essa condição de interesse da classe política só pode durar “enquanto as condições

materiais de vida se desenrolem em uma cadeia ininterrupta do mais alto ao mais baixo,

uma cadeia em que os vários níveis não estão muito longe uns dos outros.” Ela foi

destruída quando no fim da estrutura social encontramos uma massa sem propriedade e em

seu topo uma plutocracia insolente.

Tibério Graco x Caio Graco: embate paradigmático

Chegamos ao ponto em que em uma imensa massa de indivíduos fracos e isolados tinha,

em sua forma coletiva, uma grande influência sobre os assuntos públicos. Há dois

caminhos abertos aos líderes populares dessa massa. O primeiro é o de Tibério Graco, que

queria espalhar o espírito cidadão através da disseminação da propriedade. O segundo é o

de seu irmão Caio Graco que, impressionado pelo fracasso do irmão, decidiu que a única

forma de diminuir a distância monstruosa entre os grandes e o homem ordinário era a

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criação de um imenso poder tutelar e assistencialista acima de ambos. O resultado não foi

uma generalização da liberdade, mas a transformação da maior parte dos homens em

dependentes da autoridade pública.

Não há República onde os cidadãos não se revezem indistintamente no exercício dos

cargos públicos e não tem qualquer interesse em aumentar a carga que todos devem

carregar.

Há um paralelo interessante entre os dois Roosevelts na história americana recente.

Theodore quis lutar contra uma plutocracia que estava transformando todos os cidadãos

em assalariados, enquanto Franklin tomou essa situação com um fato concluído e decidiu

construir uma estrutura de Poder muito semelhante a dos imperadores romanos. Esse

fenômeno também lança uma luz sobre toda a história política da Europa.

Uma importante classe de homens livres já pode ser distinguida nas trevas merovíngias.

Mas eles se tornaram dependentes da proteção feudal e o começo da Idade Média pode ser

visto como um conjunto de repúblicas em que a cidadania era a prerrogativa de

pouquíssimos notáveis. Como é que essa massa, que nada tinha a perder, poderia deixar de

apoiar o rei em seu esforço de destruição dos laços feudais?

França x Inglaterra

É aqui que os historiadores se embaraçam na disputa entre monarquia e aristocracia. Como

eles podem pagar um tributo aos esforços autoritários do rei, que salvaram os homens da

servidão feudal, ao mesmo tempo em que cantam aos quatro cantos suas tendências

libertárias? Somente na Inglaterra a peculiaridade de sua história política evita esse

desconforto ao historiador. Lá a autoridade da Coroa sempre foi forte o suficiente para

evitar que a classe de homens livres fosse totalmente dominada pelos senhores, assim como

os senhores sempre foram fortes o suficiente para evitar que a Coroa subjugasse a todos.

John Stuart Mill, em uma passagem famosa, contrastou os temperamentos políticos da

França e da Inglaterra:

“Há dois estados das inclinações, intrinsicamente muito diferentes, mas que tem algo em

comum, por virtude do que eles frequentemente se combinam na direção em que impelem

os esforços dos indivíduos e das nações; um é o desejo de exercício do poder sobre os

outros; o outro é a repulsa a ter um poder exercido sobre si. As diferenças entre diferentes

porções da humanidade quanto à força relativa dessas duas disposições é um dos elementos

mais importante em sua história.”

E J.S Mill, mal escondendo seu intuito, veste a carapuça nos franceses:

“Há nações em que a paixão pelo governo dos outros é tão mais forte do que o desejo de

independência pessoal, que, pela mera sombra da primeira, eles estão dispostos a sacrificar

a outra por completo. Cada um dos seus se dispõe, como o soldado particular em um

exército, a abdicar de sua liberdade pessoal de ação em prol de seu general, desde que o

exército triunfe vitoriosamente, e ele seja capaz de se lisonjear como um membro da horda

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conquistadora, apesar de que a noção de que ele tem qualquer participação no domínio dos

conquistados ser uma ilusão.

Um governo estritamente limitado em seus poderes e atribuições, obrigado a afastar suas

mãos de uma excessiva intromissão, e a deixar que a maior parte das coisas siga seu curso

sem assumir o papel de guardião ou diretor, não é do gosto desse povo; a seus olhos o

possuidor da autoridade nunca pode tomar muito para si mesmo, desde que a autoridade

em si mesma esteja submetida à competição. Um indivíduo mediano entre eles prefere a

chance, não importa quão distante ou improvável, de exercer algum pedaço do poder sobre

seus concidadãos, do que a certeza, para ele e os outros, de não ter um poder desnecessário

exercido sobre eles.

Esses são os elementos de um povo arrivista; no qual o curso da política é determinado

principalmente pela caça aos cargos; onde só se preocupa com a igualdade e nunca com a

Liberdade; onde a disputa dos partidos políticos são somente brigas para decidir se o poder

de se intrometer em tudo deve pertencer a uma classe ou outra, talvez somente a um ou

outro tipo de homem público; onde a idéia entretida da democracia é somente a da

abertura dos cargos para a competição de todos em vez de poucos; onde, quanto mais

populares as instituições, mais inumeráveis as posições criadas e mais monstruoso o

excesso de governo exercido por todos sobre cada um, e pelo executivo sobre todos”

Em contraste, os ingleses são muito ciosos de qualquer tentativa de exercício de um poder

sobre eles, que não seja sancionado por um longo costume e sua própria opinião do que é

certo, mas dão muita pouca importância ao exercício do poder sobre outrem; nenhum

outro povo é tão apaixonado pela resistência à autoridade quando ela sai de seus limites

prescritos.”

Na medida em que isso é verdadeiro, a explicação está no fato de que aristocracia na

Inglaterra sempre representou e liderou a classe média nacional. Na França essa classe se

reuniu sob o estandarte do rei. E é por isso que o cidadão inglês foi durante muito tempo

tão intocável quanto um nobre medieval, enquanto o cidadão francês se tornou para

sempre o súdito de uma monarquia absolutista, fosse ela pessoal ou impessoal.

Na Revolução Inglesa de 1689 a massa invocava a tradição da Magna Carta; na francesa de

1789 muitos louvores a Richelieu foram cantados; ele foi canonizado como “um homem

das montanhas e um Jacobino”. Mas mesmo nos países onde existe essa orientação

autoridade popular para os direitos individuais, mais dia menos dia, ela se volta para o

Poder, por causas muito semelhantes às vistas em Roma.

O Cesarismo

Luís Napoleão, Bismarck e Disraeli, todos eles entenderam isso perfeitamente: ao

expandirem a franquia eleitoral, ao mesmo tempo em que a propriedade se tornava um

privilégio de poucos, sabiam que estavam abrindo o caminho para um novo Cesarismo.

Napoleão III sabia o que fazia quando estendeu o voto e favoreceu a concentração da

riqueza e a desigualdade social.

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“Só três coisas interessam ao Cesarismo. Primeiro, que aqueles que são os mais velhos

portadores da liberdade na sociedade percam seu crédito moral e se tornem incapazes de

transmitir àqueles que entrem na herança dessa liberdade um orgulho desse status pessoal

embaraçoso para o Poder. Tocqueville comentou o papel exercido nesse sentido na França

pela completa extirpação da nobreza antiga. O segundo fato necessário ao Cesarismo é que

uma nova classe capitalista surja, sem autoridade moral e possuidora de uma riqueza

extrema que a separa de seus concidadãos. Por último, há o terceiro elemento, que é a

união de força política e fraqueza social em uma classe dependente.

Apesar de acumularem tesouro após tesouro e se verem como mais poderosos, esses

“aristocratas” capitalistas, ao despertarem o ressentimento social, desqualificam-se

eternamente como líderes contra os avanços do Poder. E, enquanto isso, a debilidade da

multidão encontra um repouso natural no estado onipotente.

Dessa forma é removido o único obstáculo que o Cesarismo teme – um movimento de

resistência libertária, emanando de um povo com direitos subjetivos a defender e sob a

liderança natural de homens eminentes, cuja reputação os qualifica e que não são

desqualificados pela insolência da riqueza”.

Quinta Apresentação

Capítulo XVIII – Liberdade ou Segurança

A “Liberdade Crescente”

No século 19 a história ocidental foi interpretada como a história da liberdade crescente.

Esse empreendimento teria duas fases: a destruição dos senhores particulares e

transformação do estado que pairava acima de todos em um servo do povo.

O processo de libertação material teria sido acompanhado de uma libertação espiritual dos

imperativos do credo e da conduta; o homem se livra dessas superstições e passa a confiar

em seu próprio julgamento.

Mas o observador moderno se depara com uma realidade muito diferente: o Poder, que

parecia redesenhado para servir a sociedade, é na verdade seu senhor. Só encontramos

paralelo para essa concentração do poder político no Egito Antigo.

“No topo de nossa sociedade estão os regentes que, para harmonizar a ação, estão sempre

atentos à harmonização do pensamento. Na base está uma multidão que é, no fim das

contas, obediente, crédula e trabalhadora, que recebe abnegadamente do soberano suas

ordens, sua fé e seu pão diário, e que vive e um estado de servidão a um senhor que é

imensuravelmente distante e impessoal”

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A liberdade: um bem precioso

Parece que toda sociedade que evoluiu até um estado de liberdade individual tende a

abruptamente voltar atrás no exato momento em que o está conquistando. Por quê?

As coisas mais caras são normalmente as menos necessárias. A liberdade é uma dessas

coisas, tão preciosa e frágil quanto as melhores obras de arte, sendo poucos aqueles que

sabem o seu verdadeiro valor. Ela só é buscada quando os desejos primários do homem

estão satisfeitos.

A liberdade é secundária e a segurança primária, como descobrimos em todos os

momentos de crise. É por isso que a idéia de segurança merece um exame mais detido. Mas

sua complexidade torna o seu oposto, a insegurança, bem mais compreensível.

Ela pode ser definida como a ansiedade que nos domina quando somos ameaçados com

um desastre. Mas o que é um desastre? Para alguns a mera perda de dinheiro e para outros

nem mesmo a própria morte. O que implica que a “ocorrência” de desastres é menor se

estivermos perante almas grandiosas. Um homem saudável as subestimas e um nervoso as

superestimas.

O fato é que nunca houve um tempo em que há sociedade não estivesse divida entre

aqueles que se sentem insuficientemente protegidos e os que não se sentem

suficientemente livres. Os primeiros são os “securitários” e os últimos os “libertários”.

Podemos esperar que um país onde o espírito dos homens seja mais orgulhoso e os

temperamentos mais saudáveis tenha uma elevada população de libertários. Mas se o

caráter é rebaixado por uma educação afeminada ou se a vida toma novas formas geradoras

de ansiedade sem que os riscos verdadeiros cresçam, podemos também esperar que a

população de securitários cresça. E se os riscos reais de ocorrências terríveis forem

subitamente aumentados, quase toda a sociedade se tornará securitária.

É isso que explica a facilidade com que os homens livres do século 8 a 10 a.C entregaram

sua liberdade. Os poucos que posteriormente ousaram abandonar os domínios do senhor

feudal acabaram fundando as fortunas e a dinastias do patriciado mercantil.

A própria história da inteligência mostra como a feudalização se segue à insegurança. Toda

a classe intelectual se abrigou no seio da Igreja depois do fim do Império Romano. No

século 18 ainda encontramos homens como Condillac e Sieyés protegidos ali.

A distribuição de securitários e libertários tende a se aproximar ao máximo das divisões de

classe em uma sociedade em formação ou que passou por uma completa reviravolta. Os

mais audaciosos chegam ao topo, produzindo uma grande desigualdade; mas esta

desigualdade produz um equilíbrio social, pois as liberdades desfrutadas são adequadas aos

riscos tomados. Esse equilíbrio é rapidamente distorcido pela tendência humana a

transformar em direitos subjetivos hereditários aquilo que uma geração conquistou com

suas próprias mãos.

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Determinados eventos podem retardar essa degradação: em Esparta as classes altas foram

capazes de produzir continuamente homens viris através de treinamento e do exclusivismo;

em Roma e na Inglaterra a aristocracia se abriu à infusão de energia nova através da

elevação dos membros mais viris da plebe; mas o exemplo mais contundente de renovação

se deu na Idade Média, até o tempo de São Luís. Qualquer servo corajoso e distinto podia

se tornar um cavaleiro e um proprietário de terras. Essa é a origem da verdadeira nobreza

feudal. O Poder também pode ser um caminho para a distinção social, mas ele é de todos

os meios o menos adaptado ao reavivamento das virtudes libertárias.

Uma aristocracia securitária

Um corpo de oficiais, de funcionários públicos, não existe no começo de uma sociedade,

pois aí não pode existir uma autoridade política distinta da social. Assim que o Poder

decide se voltar contra as autoridades aristocráticas uma nova possibilidade de liberdade se

abre para os servos: uma liberdade incompleta e parcial, advinda da intervenção de outrem,

mas adequada ao temperamento securitário.

Outro fenômeno importante é a progressiva invasão dos estratos superiores pelos oficiais,

que com isso tendem a se voltar contra o Poder que os elevou. Mas esses novos

aristocratas não são como os de outrora: uma coisa é se elevar por sua própria conta e

risco, outra devido ao favor de um senhor. Podem existir exceções, mas o Império

Romano tardio, por exemplo, nos forneceu exemplos suficientes de que o funcionário é

somente um homem liberto que não perdeu as características de um escravo.

Paralelamente a essa invasão a aristocracia de outrora também decai e os elementos

securitários passam a predominar, sendo este um dos espetáculos mais deprimentes da

história. Os privilegiados, cujo papel é proteger os outros com seu próprio prestígio e

energia, decidem que eles mesmos devem ser protegidos. E só há um ente acima deles: o

estado. Uma geração de mercadores prudentes, por exemplo, procura junto ao rei os

direitos exclusivos de proteção em uma costa distante, quando seus ancestrais teriam

afastados os intrusos com sua própria artilharia.

Como podem homens cuja autoridade depende do Poder opor a ele a independência

orgulhosa que distinguiu honrosamente a aristocracia antiga? É aqui que as noções de

aristocracia e liberdade se separam.

A classe média

Os descendentes das aspirações libertárias são a classe média, definida como aqueles que

têm suficiente autoridade social para não necessitar de qualquer tipo de proteção especial,

mas que, por outro lado, não tem poder suficiente para tornar sua liberdade opressiva para

outros.

Quando um Poder se considera seguramente estabelecido e a sociedade atinge certa

prosperidade material, chegou a hora da classe média como principal elemento da

sociedade. Ela se alia ao Poder para disciplinar uma aristocracia desordenada, mas também

é a aliada natural da aristocracia contra um Poder que tente diminuir a liberdade. Sabemos

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que a proletarização dessa classe em Roma, por ocasião de sucessivas guerras, marcou o

fim da República. Assistimos a algo semelhante nos tempos modernos.

Liberdade para todos e a irresponsabilidade da massa

Essa nova classe livre pode buscar limitar o acesso a essa liberdade, concedendo um

patamar razoável de segurança às classes mais baixas, ou estender essa liberdade a todos.

Nos séculos 18 e 19 ela escolheu o segundo caminho.

Mas há um corolário fatal aí: ao dividir a liberdade adequada a si mesma com todos, ela

retirou das classes mais baixas os meios de proteção que ela mesma não precisava. Um

exemplo claro disso é a relação entre a liberdade de contratar e a responsabilidade

trabalhista do empregador. Esse equívoco abriu espaço para o desenvolvimento de todo

um corpo de legislação securitária, algo que será provavelmente sempre necessário à

maioria dos homens.

A responsabilidade dos grandes

Esse abandono das obrigações da liberdade foi pouco percebido, pois do outro lado da

pirâmide social o mesmo fenômeno ocorria, sem que a desculpa da necessidade pudesse ser

alegada.

Se uma aristocracia se falsifica quando abandona suas responsabilidades e riscos, não há

aristocracia mais falsa do que a capitalista. Ela deixou de ser um grupo de burgueses

independentes, que colocavam o seu nome e o seu sangue nos negócios, para se tornar uma

elite pequena que, agindo através do sistema financeiro e da legislação de responsabilidade

limitada, controlava empreendimentos gigantes e regulava quase toda a atividade

econômica. Uma aristocracia de fato, mas que sempre buscou divorciar o comando, que

sempre exerceu, da responsabilidade e do risco, que repassou à massa de acionistas e ao

estado. Todo método de evasão de riscos foi buscado por essa nova aristocracia; e as

grandes crises financeiras sempre foram um pretexto para que implorassem ao Poder em

nome do interesse geral.

O medo como fator dominante da modernidade

No período entre as guerras os proletários encontraram uma miserável segurança no seguro

desemprego e os aristocratas também buscaram sua segurança em um apoio estatal mais

“substancioso”. Entre eles se encontrava a classe média, já bastante proletarizada pela

inflação.

A inflação destruiu completamente as virtudes austeras da burguesia pregressa; ela beneficia

o devedor e prejudica o assalariado e o poupador. E todos perceberam que no meio dessa

tempestade existiam algumas ocupações protegidas. O empregado público encontrava-se

confortável e seguro com sua pensão. As empresas públicas aumentavam seus lucros

devido ao monopólio das atividades. E como não havia espaço para todos, o desejo natural

de todo homem passou a ser a inclusão de sua própria atividade no rol dos protegidos.

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A característica psicológica essencial de nossa era é a predominância do medo sobre a

autoconfiança; nele se encontram o trabalhador e o banqueiro, com sua riqueza

seguramente investida em títulos do governo. Franklin Roosevelt chegou a dizer que “os

novos direitos do homem” eram o direito do trabalhador a um emprego com salário estável

e o direito do produtor a vender quantidades estáveis de bens a um preço estável.

É nos dito que esses “direitos” completam os antigos, mas eles na verdade se contradizem

e revogam uns aos outros. Se o estado deve garantir as consequências da ação de um

homem, ele também deve controlar suas atividades.

“A mente do homem precisa, como seu coração, de objetos de afeição; eles o levam às

mesmas evasões. Tudo que ele deseja ver em qualquer fenômeno são aqueles aspectos que

o lisonjeiam e exaltam, e não os que o ofendem e mortificam. Ele dissocia aquilo que a vida

fez inseparável, louva a causa e condena a consequência, aplaude os fins e repudia os

meios, afirma uma idéia e nega seu corolário. Os Direitos do Homem nos enchem de

exaltação; mas a ferocidade burguesa da sociedade dos dias de Luís Felipe, sua indiferença

ao homem desempregado e sua crueldade com o falido ofende nossa sensibilidade. E então

nos recusamos a ver em tudo isso meramente dois aspectos intimamente ligados do mesmo

espírito”

E esse espírito era o da plenitude da liberdade juntamente com a plenitude dos riscos. Mas

logo todos se amedrontaram perante essa situação e segurança se tornou o objetivo de

todos; mas resta o fato de que ela precisa ser paga.

A segurança e o estado autoritário

Quais são as provas de que aqueles que buscam a segurança social produzem um estado

autoritário?

Uma das grandes provas históricas está na semelhança dos governos de Hitler e Roosevelt,

mesmo partindo de situações sociais absolutamente heterogêneas. Em tempos de segurança

os homens parecem encontrar na sociedade os meios de elevação, mas em tempos de

confusão social enviam esses mesmos homens aos braços do Poder.

Para fazer tudo, o Poder deve ser senhor de tudo. Os especialistas esperam que ele planeje

todos os mecanismos sociais a partir da razão objetiva, quando ele não é nada mais que um

caldeirão borbulhante de desejos subjetivos.

O Novo Homem

Assim que a religião perde seu império sobre o espírito do homem, o objetivo consagrado

da vida humana se torna a felicidade. Os cientistas, por sua vez, reduziram o homem a mais

um animal, cabendo ao estado aperfeiçoar a espécie.

Sob as lentes da ciência, o comportamento humano parece passível de muitas melhorias

que aumentariam a felicidade individual e o progresso social. Que mundo terrível é esse em

que as crianças crescem como grama selvagem!

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Mas existe um perigo terrível nessa concepção. Só um homem que buscou a verdade

reconhece a vastidão do conhecimento necessário para a avaliação dos efeitos de uma só

intervenção sobre toda a sociedade humana e a dificuldade de se conectar diferentes ramos

do conhecimento.

Se não existem os sábios capazes de compreender intelectualmente os limites do

conhecimento, a sabedoria mundana das aristocracias antigas também poderia nos proteger

desses entusiasmos que desejam ser construtivos, mas que terminam sendo incendiários.

Mas por todos os lados vemos os assuntos públicos serem entregues a uma classe que

acredita em verdades dúbias com o mesmo fanatismo dos Hussitas e dos Anabatistas.

“A fé foi retirada da cena política, mas sem qualquer efeito. A aspiração religiosa é natural

ao homem, tanto que ele investe seus interesses e opiniões com o halo dos cultos idólatras:

ele entrega seus anéis de ouro a qualquer Aarão que faça um deus para ele.”

Reunião do poder espiritual e do temporal

E é assim que o novo Minotauro une em sua pessoa os poderes espiritual e temporal,

reunindo aquilo que a civilização ocidental sempre manteve separado. E era nessa

separação que provavelmente residia o segredo de seu incrível sucesso.

“É impressionante quão pouca consciência temos da velocidade com que nos movemos

para esse tipo de regime. Com esse novo fim as disputas políticas ganham uma nova

aspereza e crueldade. Os homens sentem em seus ossos que não há mais espaço para

aquilo que já foi chamado de “vida privada”.

O sucesso do Minotauro em moldar as vidas dos indivíduos é tal que a fuga se torna

impossível; não há, portanto, salvação senão em sua tomada. As palavras “eu viverei desse

modo” são supérfluas agora; o que deve ser dito é, “ para viver de uma certa maneira eu

devo tomar o controle da grande máquina e usá-la da maneira que melhor me aprouver.”

Capítulo XIX – Ordem ou Protetorado Social

As revoluções e golpes de estado de nossa época são somente episódios insignificantes que

marcam o advento do protetorado social. Trata-se de erguer um imenso patriarcado, ou

melhor, um matriarcado, pois essa nova autoridade coletiva deve ser animada por instintos

maternais. E as condições presentes tornam essa transição inevitável.

O Liberalismo

A escola liberal nos diz que não competem ao estado as funções que ele hoje exerce com

entusiasmo; elas fogem de sua esfera normal de competência. Essa linguagem por si só já

nos mostra que estamos deixando o campo da análise do Poder como um fenômeno para

um estudo ético do estado.

E como é que os liberais definem a “esfera normal de competência do estado”? A

manutenção da ordem interna e a defesa externa. Mas o que determina isso? A natureza da

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sociedade, que se reúne exatamente por esses motivos. Mas quem disse que preciso

subscrever a sua noção de sociedade? Por que um trabalhador assalariado não pode dizer

que é da esfera normal do estado garantir uma renda estável em função de um trabalho

estável?

O que resta da “esfera normal” do liberal? Se a aceitarmos ainda temos o problema da

vizinhança que pode dispor de todos os recursos da nação; não é obrigação do nosso

estado fazer o mesmo para nos defender? E o que resta da “ordem interna” quando vemos

multidões de desempregados e famintos?

Jouvenel não tem prazer em destruir o ponto de vista liberal. Mas o grande erro dessa

escola foi ter tomado posições insustentáveis e irrelevantes para as necessidades e paixões

dos homens. A imagem que fazem do Poder não corresponde à realidade de qualquer

tempo ou país: o Poder nunca considerou território proibido o domínio dos interesses

econômicos e sociais.

Uma crítica possível

Isso não quer dizer que outro ponto de vista crítico não seja possível. Tomemos

emprestados elementos da teologia para estabelecê-lo. Sempre que a inteligência humana se

volta para seu objeto essencial, o conhecimento de Deus, ela forma naturalmente duas

concepções antitéticas: uma Providência miraculosa e uma Sabedoria suprema.

Essas concepções, se aplicadas a um governo humano, redundam em duas formas: o

legalismo e o providencialismo, ou o que os Chineses chamavam de “governo pelas leis” e

“governo pelos homens”. É claro que as leis naturais da sociedade e as leis morais não

obedecem à regularidade rígida e mecânica que podemos abstrair da natureza. Como um

governo por leis é um ideal sempre inatingível, ele sempre deixará margem para o desejo de

um poder arbitrário que possa organizar a vida à revelia da lei insuficiente. E é isso que

explica o fato de que sucessivas sociedades que quase atingiram o ideal do governo pelas

leis logo retrocederam rapidamente até o governo arbitrário e a servidão dos súditos. Já

vimos as diversas causas que podem gerar essa decadência: utilitarismo, positivismo,

multiplicação indefinida de leis que são na verdade comandos subjetivos.

Pode alguém negar que essa é a tendência geral de nosso tempo? Jouvenel afirma não saber

de onde vem a idéia de que os homens odeiam o despotismo; a ele parece que eles o amam.

E isso é comprovado pelo gana com que tentam a sorte em jogos de azar, loterias e o amor

que possuem pelo ganho fácil e arbitrário. O poder arbitrário é uma loteria desse tipo: há

prêmios para os sortudos.

Os males são reais e insolúveis no sistema legislativo moderno

Mas os males que o protetorado social afirma minorar são bastante reais. Há de fato um

desequilíbrio entre as partes em uma economia industrial moderna. Os ajustes necessários

são impossíveis a partir do sistema legal, pois exigiriam leis advindas de um estudo

iluminado e de muita meditação; sabemos que a atividade legislativa moderna não é nada

mais do que a reunião confusa de interesses do momento e paixões cegas. Essas pretensas

leis são meramente atos governamentais, sua arbitrariedade muito mal disfarçada. E esse

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poder arbitrário, completamente instável e movido pelas paixões da massa, constitui um

despotismo nunca visto no Ocidente. Os constantes clamores por ordem terminam criando

uma desordem em escala gigante, pois sempre agem através desse monstro arbitrário e

desgovernado.

Jouvenel diz que poderia encerrar a investigação por aqui, mas ainda é importante atacar a

loucura moderna de buscar a solução das desordens particulares em uma desordem geral.

A confiança e a ordem espontânea

Toda a existência humana se fundamenta na confiança. É admirável a regularidade com que

serviços nos são prestados, garantindo nossa segurança e bem estar. Fazemos nossa parte,

mas o segredo está no arranjo entre todas elas.

Assim que meditamos sobre essa organização harmônica percebemos que o “Cada um por

todos e todos por um” não é o mote de uma Utopia improvável, mas a fórmula da

existência da sociedade. A verdadeira imagem da ordem social é da conjunção miraculosa

de milhões de trajetórias separadas. Uma irregularidade sequer nesse processo pode

acarretar um caos social completo.

O problema começa quando os homens tentam entender como isso é possível. Pois a

primeira resposta que surge na mente de todos os homens é a ação de uma só vontade, que

é logo identificada como um grande e sábio professor humano que teria ensinado cada

sociedade a se organizar. É nesse ponto que o mito se transforma em uma falsa história.

Passamos do apego rígido à ordem do ancestral sábio à noção de que qualquer mudança é

possível, já que tudo foi fruto de um desígnio humano. O que equilibrou essa

transformação foi o desenvolvimento do direito natural, que a partir de uma analogia com a

natureza projeta a existência de leis naturais da sociedade humana. Esses dois pontos de

vista, o voluntarista e o quietista, dão vida às concepções ordinárias de socialismo e

liberalismo, que nem merecem ser discutidas.

Egoísmo x Crenças

Contemplemos a trajetória de um homem na sociedade. O que a explica? Segundo a escola

de Hobbes e Helvétius é o egoísmo! Eles foram atraídos a essa hipótese por um desejo,

típico de gênios científicos, de encontrar na ordem moral um único princípio que

correspondesse ao de energia na ordem física. Mas mesmo essa escola precisou postular o

princípio da repressão para explicar a contenção dos seres humanos em sociedade; era

preciso um egoísmo mais calculado e iluminado.

Mas nem o cálculo mais preciso, nem o medo da punição, podem determinar

profundamente as ações concretas de um homem. Suas ações são governadas por

sentimentos e crenças. O homem é um animal feito para a vida em sociedade e a

consciência inteligente de nossos interesses e o medo da punição são somente forças

complementares que impedem a aberração ocasional. Geralmente nos comportamos como

bons vizinhos e cooperadores escrupulosos. O que podemos chamar de hereditariedade

social opera com muito mais força do que qualquer herança física; alguns dos maiores

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homens terminaram suas vidas repetindo gestos e fórmulas que encontraram na história e

na poesia.

Disso segue que qualquer distúrbio dos conceitos de conduta correta coloca a harmonia

social em perigo e isso está sempre acontecendo em sociedades que se desenvolvem e

atraem novos elementos.

Nessas sociedades a decadência do sentimento religioso, juntamente com a crise

racionalista, acaba por demonstrar que meros costumes sociais nunca conseguirão

substituir o que foi perdido. Chegamos ao reino da anarquia intelectual, que pode ser ainda

mais acentuado pela corrupção das classes governantes.

A percepção da complexidade do problema nos deixa ainda mais surpreso com o grau de

ajustamento que um automatismo camuflado parece induzir. Mas mesmo esse incrível

poder se torna insuficiente quando os mecanismos sociais perdem todo traço de virtude.

A insuficiência da explicação econômica

Esses mecanismos são ainda muito pouco conhecidos, apesar daqueles que acreditam que

os economistas descreveram minuciosamente o delicado equilíbrio dessas forças. A

verdade é que esse problema se encontra quase que completamente fora do domínio da

Economia. Os economistas podem explicar a forma como uma demanda crescente por

automóveis diminui progressivamente a demanda por cavalos e carruagens e como a nova

indústria absorve os trabalhadores da antiga; mas quando esse processo de adaptação

quantitativa termina, ainda resta o problema infinitamente mais substancial da adaptação

qualitativa. Entre um mestre seleiro trabalhando em sua oficina na Paris antiga e seu filho

perdido na multidão anônima e cosmopolita de trabalhadores da Citroen, vivendo em um

subúrbio, houve uma transformação prodigiosa dos costumes, das crenças e dos

sentimentos, uma transformação que não pode deixar de influência toda a sociedade e até

mesmo a relação entre oferta e demanda.

O que permite à economia política ser uma ciência é o fato de que ela olha para vida social

como o curso regular de uma e somente uma energia, sempre homogênea e mensurável em

unidades de valor. E é exatamente esse recorte que a impede de explicar o todo da

realidade social. Ela justifica o mercado acionário como uma máquina reguladora útil, mas

não se preocupa com o tipo de temperamento que ele atrai e o tipo de caráter que

desenvolve. É uma ciência valiosa, mas agarrada uma falsa psicologia, que vê os homens

como uma massa física controlada pela força mecânica do interesse próprio.

É isso que torna o ponto de vista do economista o pior de todos para o discernimento das

desarmonias sociais: elas devem se transformar primeiro em adaptações quantitativas para

receber sua atenção.

O desenraizamento, a casuística e as elites inovadoras

O fenômeno do desenraizamento é o mesmo no caso de um lavrador jogado em uma

fábrica ou de um pequeno empregado transformado em um grande especulador. Não é

somente a mudança repentina que gera problemas, mas principalmente o fato do homem

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desenraizado ser transferido para novas funções sem qualquer concepção do que é justo e

direito ali. Eles retêm, é claro, algumas idéias morais que aprenderam na infância. Mas a

casuística, a aplicação de princípios gerais a situações particulares, é uma arte difícil e aberta

somente para uns poucos.

Caberia aos criadores da nova situação, às elites inovadoras, guiadas quando necessárias

pelas autoridades espirituais, criar um código de comportamento e conceito de conduta

correta que harmonizem a nova função com a ordem da sociedade. Toda função tem sua

lei de cavalheirismo e sua obrigação de liderança. Mas na sociedade moderna os inovadores

não elaboraram essas leis, nem estavam conscientes de suas responsabilidades.

O homem que incentivou a emissão de ações de pequeno valor nominal, por exemplo,

tornou possível a conexão entre a poupança pequena e média e os grandes

empreendimentos. O papel desse financista é muito benéfico se inclui duas condições: o

investimento em empresas benéficas à comunidade e a preocupação com a segurança dos

poupadores.

A irresponsabilidade das elites modernas

Mas o que temos visto é uma crescente irresponsabilidade nessa categoria particular da

sociedade. Os anais do capitalismo mostram inúmeros casos de novas emissões de ações

que são somente formas de se roubar os acionistas através, por exemplo, da venda de

novas ações a um preço muito superior ao verdadeiro(diluir as ações), o que provoca uma

queda exagerada nos preços das ações, que são por sua vez compradas a uma baixo preço

pelo emissor.

E eles justificam sua indiferença a partir de duas falácias: o lucro como índice máximo da

utilidade social de uma empresa e a igualdade contratual entre o emissor de novas ações e

os investidores.

Podemos olhar também para o industrial que abandona qualquer responsabilidade que não

seja o salário em relação a sua massa de empregados. E também para o proprietário de

jornais populares que nunca se vê como um propagador de opiniões e um construtor e

destruidor de conceito de conduta corretos. Ainda poderíamos falar do publicitário e

continuar indefinidamente esse elenco de elites que não assumem suas responsabilidades

como tais.

As autoridades espirituais e sociais

Um problema ainda mais importante é a ausência de autoridades espirituais e sociais. É

uma pura perda de tempo pregar regras para operadores de bolsas de valores inspiradas na

vida dos lavradores do patriarcalismo.

A tarefa daqueles que são na prática governantes, líderes, empregadores, gerentes,etc,

deveria ser a de orientar o destino de seus governados. Mas as palavras “governantes” e

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“líderes” não podem ser aplicadas a eles; o falso dogma da igualdade, tão lisonjeiro aos

fracos, resulta na prática em uma libertinagem dos fortes.

Nunca na história a elevação social trouxe consigo tão poucas obrigações ou a desigualdade

real se mostrou tão opressiva quanto nesses tempos de igualdade mandatória. E tudo isso é

culpa de um pensamento estúpido que se nega a ver na sociedade qualquer coisa além do

indivíduo e do estado. Há razões intelectuais para isso (a imitação das ciências físicas por

parte das ciências sociais), mas também políticas: o estado e o indivíduo emergiram

triunfantes de sua longa guerra contra as autoridades sociais.

E como eles dividiram o espólio entre si? Ou o indivíduo tomaria todos os benefícios para

si – a solução individualista – ou o estado se tornaria o herdeiro das funções das

autoridades banidas – a solução estatista.

O século 19 buscou a primeira dessas soluções. Já vimos como isso abriu o caminho para

novas autoridades sociais , cuja ocultação permitiu uma irresponsabilidade sem igual. E

também vimos heresias bolorentas regressando como os partidos radicais da modernidade

e usurpando o trono da autoridade espiritual. O retorno triunfal do Poder se fez necessário.

A ocultação das elites produz a libertinagem geral

Sempre existiu e sempre existirão líderes de grupos, como o barão feudal e o capitão de

indústrias. E entre esses líderes há sempre aqueles que ditam o ritmo a enunciam os

padrões de comportamento: os anciões, cuja responsabilidade é exatamente dar o exemplo.

É uma metafísica desvairada aquela que nega a existência desses homens e os trata como

cidadãos ordinários. Ela não consegue suprimir sua autoridade e influência, mas somente

eximí-los da honrosa disciplina que os tornava servos do bem comum. Quando o interesse

se torna o único princípio da ação, os mesmos homens que deveriam assegurar a ordem se

tornam os disseminadores do caos.

É a partir daí a ordem só pode ser restaurada se o Poder formular até o mais mínimo

detalhe as regras de conduta de cada função particular. Mas a repressão só seria

completamente efetiva se tivéssemos mais policiais do que cidadãos. A propaganda e a

direção das consciências provaram ser um meio mais eficaz, mas que produz uma coesão

social de um tipo muito mais duro e primitivo do que a da sociedade destruída pela

Revolução.

Por não sabermos preservar e depois restaurar a harmonia delicada e orgânica de uma

sociedade altamente civilizada, estamos retornando às formas de coesão da tribo primitiva.

Voltamos aos totens e tabus, produtos de emoções descontroladas, mas que acarretam o

rótulo de inimigo do povo se ofendidos.

O que diriam os nossos livre-pensadores?

O que diriam os individualistas e livre-pensadores dos séculos 18 e 19 se vissem os ídolos

que os homens devem adorar hoje e as botas a que devem se curvar se desejam evitar a

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perseguição? A superstição que professoram derrotar não pareceria o cume do iluminismo

comparado com o que temos hoje?

Mas foi sua metafísica imbecil, a qual se recusava a ver algo além do estado e do indíviduo,

que produziu o mundo moderno. Tocqueville, Comte, Taine e muitos outros profetizaram

o coletivismo futuro, mas em vão.

“Cassandras inúteis! E por que tão inúteis? Talvez as sociedades sejam governadas em sua

marcha por leis que ignoramos. Sabemos se era o seu o seu destino evitar os erros mortais

que se abateram sobre elas? Ou será que foram levadas até eles pelo mesmo dinamismo

que as ergueu ao topo? Será que as estações de flores e frutos não são atingidas à custa da

destruição das formas em que sua força estava armazenada? Depois dos fogos de artifício, a

escuridão de uma massa informe, destinada ao despotismo ou à anarquia.”