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Primeira Apresentação
Pequena Biografia de Bertrand de Jouvenel
Nasceu em Paris em 1903 e faleceu em 1987, também em Paris. Foi filósofo ,economista,
herdeiro de uma antiga família da nobreza francesa e fundador da Sociedade Mont Pelérin.
Trecho do Prefácio ao Livro “Bertrand de Jouvenel” por Daniel J. Mahoney
Bertrand de Jouvenel é um dos poucos pensadores políticos do século 20 que realmente
importam, que são realmente merecedores de um contínuo respeito e atenção. No entanto,
seu nome é praticamente desconhecido nos círculos intelectuais modernos, e seu trabalho
nem se aproximou de ter o reconhecimento merecido. Esse livro é antes de tudo um ato de
recuperação intelectual, um esforço para retificar a negligência a um dos maiores e mais
humano dos pensadores do século passado. Um estudo do pensamento de Jouvenel
implica necessariamente uma confrontação com a substância política e moral do século 20,
já que esse “milieu político” apresentou a Jouvenel o material de sua reflexão. Desde o
começo Jouvenel não se contentava somente em entender sua própria situação ou em
antecipar “futuros possíveis” de nossa sociedades democráticas. Ele falava amplamente do
“bem comum”, da “amizade”, e das “amenidade da vida”, até mesmo enquanto procurava
entender as patologia intelectuais e políticas que tanto mancharam o século passado. Ele
defendia as conquistas da moderna ordem liberal, mas era profundamente insatisfeito com
o relato anêmico da natureza do homem e das motivações humanas que caracterizou as
mais influentes correntes do pensamento moderno.
Jouvenel recorreu a uma velha tradição de reflexão europeia que afirmava a natureza social
do homem e reconhecia as inúmeras razões pelas quais um homem deve ser grato a seu
patrimônio civilizacional. O filósofo político francês e cientista social era um liberal-
conservador que mantinha uma posição moderada entre a nostalgia reacionária e as ilusões
progressistas, um estudante do homem e da sociedade que nunca perdeu de vista as
verdades que duram ou o caráter essencialmente dinâmico da civilização moderna. Jouvenel
anteviu as diversas maneiras pelas quais as verdades e bens permanentes de nossa natureza
podem ser sustentados em uma ordem social de permanente mudança. Contra reacionários
e progressistas ele resistiu à tentação de colocar um ponto final em todas coisas. Não houve
crítico mais penetrante do “mito da solução”, da ilusão perniciosa de que o problema
político poderia ser resolvido permanentemente em vez de prudentemente navegado e
avaliado. A conjunção única de erudição, sobriedade, urbanidade, e civilidade de Jouvenel
tem muito a ensinar a uma era “pós-moderna” que esqueceu largamente as fundações
intelectuais e morais do auto-controle, da moderação, e de uma deferência inteligente à
sabedoria do passado. Ele permanece nosso contemporâneo principalmente por nunca ter
se pautado pela preocupação em ser moderno e “atualizado” em suas posturas políticas.
Do Poder – O Minotauro apresentado
Imitação do totalitarismo e controles modernos
O pano de fundo sobre o qual Jouvenel escreve é o fim da Segunda Guerra Mundial. Nela
as populações tiveram todas as suas energias mobilizadas para o esforço de guerra; até
mesmo a partes mais lúdicas da vida só foram toleradas como combustível para a guerra.
A causa imediata da proporção monstruosa da guerra foi o fato de que países como Grã
Bretanha e Eua, onde ainda não existia o recrutamento obrigatório e os direitos do
individuo eram sagrados, terem que copiar as técnicas de mobilização total da Alemanha
para que não fossem arrasados como a França. Mas tal explicação não é suficiente: Por que
Napoleão ,Frederico II, Carlos XII, nunca conseguiram mobilizar o povo totalmente para a
guerra? A verdade é que eles simplesmente não tinham a capacidade para isso. A resposta
para a brutalidade da guerra moderna deve ser buscada na vastidão do controle, tanto
material quanto espiritual, de que os governos dispõem.
Limitações do Poder no passado
Nos tempos de Napoleão somente os homens em idade militar eram convocados para a
guerra e ainda assim somente metade deles e nos tempos de Luís XIV o recrutamento
obrigatório ainda era desconhecido. Mas se arranjarmos em ordem cronológica as guerras
dos últimos mil anos no Ocidente veremos um crescimento constante da participação da
sociedade civil nas guerras.
Ao regressarmos no tempo até os séculos 11 e 12, podemos contemplar o fato de que o rei
só podia contar com as tropas que seus vassalos conseguiam e que permaneciam em seu
serviço por no máximo 40 dias. Como ele podia sustentar operações de grande escala com
esse tipo de exército? Para isso são necessárias tropas mais disciplinadas e de longo prazo,
mas esse tipo de tropa precisa ser paga. Mas como o rei poderia pagar se os únicos recursos
imediatamente disponíveis para ele eram os de seus domínios privados? Ninguém
permitiria que ele impusesse qualquer tipo de taxa! A guerra naqueles dias era sempre algo
pequeno, pela simples razão de que o Poder também o era, pois não dispunha de dois
controles essenciais: o recrutamento obrigatório e o poder de imposição de taxas. O rei
precisava visitar todos os maiores centros populacionais do reino para pedir ajuda aos seus
cidadãos.
Foi somente ao fim da Guerra dos Cem Anos, quando o sacrifício havia se tornado uma
segunda-natureza, que o Poder conseguir impor uma taxa que permitiria a manutenção de
tropas permanentes.
Capacidade Legislativa
As crescentes atribuições civis da monarquia (que ela executou satisfatoriamente) passaram
a justificar a sua aquisição de uma capacidade legislativa - algo desconhecido durante a
Idade Média. E essa capacidade legislativa carregava em seu seio o poder de imposição de
tributos.
A grande crise do século 17, caracterizada pelas revoluções na Inglaterra,em Nápoles e a
Fronda, marcou o embate entre as três principais monarquias ocidentais tentando aumentar
seus tributos e os povos que resistiam violentamente a essas tentativas. O crescimento dos
exércitos após esse esse período foi assustador: Carlos VII tinha a sua disposição 12.000
homens, Luís XVI 180.000 e o Imperador 240.000.
Os serviços do poder
Dizer que a monarquia somente aumentou os exércitos seria ridículo: ela estabeleceu a
ordem interna, protegeu o fraco contra o forte, elevou o nível de vida da comunidade e
conferiu grandes benefícios à indústria, comércio e agricultura. Mas essa mesma
competência gerou um controle natural sobre as atividades da nação e esse maior controle
se traduz imediatamente em uma maior capacidade para a guerra.
Uma barganha faustiana
Ao destruir o poder dos reis, os homens acreditavam estar se libertando exatamente desse
peso. É surpreendente ver que a taxação e o recrutamento obrigatório se tornarão mais
pesados com a queda das monarquias.
Taine: “Ali ela (a guerra na Europa Continental) se encontra com seu amigo de juventude,
seu irmão gêmeo – o sufrágio universal; ambos nascidos aproximadamente ao mesmo
tempo, um implicando o outro, de forma aberta e completamente, ambos os terríveis e
cegos guias ou mestres do futuro, um colocando nas mãos de cada adulto uma cédula
eleitoral, o outro pondo em suas costas uma mochila de soldado. Ao fim das Guerras
Napoleônicas 3.000.000 de homens estavam nos campos de batalha de Europa; a Primeira
Grande Guerra matou ou mutilou cinco vezes mais do que isso e na Segunda Guerra o
número chega a se tornar incontável.
Quando a população tinha os reis como seus mestres, ela não se cansava de reclamar dos
impostos, mas agora pagam o poder com suas próprias vidas! É como se um sucessor das
monarquias evanescentes tivesse levado a cabo de maneira ininterrupta os objetivos do
absolutismo.
Paul Viollet tinha consciência disso: “O Estado Moderno é somente o rei de outrora
trazendo a um fim triunfal seu trabalho incessante”.
A máscara do Poder, o Poder aberto a todos
Outrora o Poder se manifestava visualmente na figura do Rei, mas agora ele se mascara
sobre a anonimidade, afirma não ter existência por si mesmo, sendo somente o
instrumento impessoal e desapaixonado da vontade geral.
Mas a verdade é que a única coisa a mudar foi a facilidade de alteração das pessoas que
compõe o Poder. A abertura do Poder para todos os talentos ambiciosos torna a extensão
do poder muito mais simples. Sob o Ancien Regime, os espíritos mais elevados da sociedade,
que não tinham, como muito bem sabiam, nenhuma chance de partilhar do Poder,
rapidamente denunciavam qualquer avanço do Poder sobre a sociedade. Mas agora todos
são potencialmente ministros e não desejam, portanto, prejudicar uma máquina que
aspiram controlar um dia.
Um poder grande e fraco
Essa competição pelo poder, aliada à rotação constante dos cargos, trouxe a baila um
Poder que é ao mesmo tempo grande e fraco. Mas é da natureza do Poder não permanecer
fraco. Sempre aparecem circunstâncias que fazem com que o próprio povo deseje ser
liderado por uma vontade poderosa.
“O tirano não derivaria sua legitimidade do plebiscito se a vontade geral já não tivesse sido
proclamada uma fonte suficiente da autoridade. A arma do partidarismo, com que ele se
consolida, é um rebento da competição pelo Poder. O caminho foi aberto pelo
condicionamento das mentes na infância pelo monopólio, mesmo que incompleto, da
educação. A opinião foi preparada para a tomada dos meios de produção pelo estado. Até
mesmo o regime policial, o atributo mais insuportável da tirania, cresceu à sombra da
democracia. O ancien régime dificilmente conhecia tal coisa.”
Relação entre a extensão do Poder em tempos de paz e a guerra
Se Hitler tivesse sucedido Maria Teresa no trono, alguém poderia supor que ele seria capaz
de forjar tantas armas de tirania? Não é mais possível acreditar que ao destruir Hitler e seu
regime nós atacamos a raiz do mal. Quanto mais departamentos da vida o Poder tomar
para si, maiores serão seus recursos para a guerra; quanto mais vistosos os serviços que ele
presta, mais imediatas serão as respostas a seus chamados.
Pois pergunta Jouvenel: “ Não está a vontade de Poder profundamente enraizada na
natureza humana, e as incríveis qualidades de liderança necessárias à manutenção de uma
máquina sempre crescente não terão quase sempre como companhia uma cobiça
conquistadora?”
A busca da segurança
O alimento mais importante do Poder é o desejo de segurança social dos homens. E a
busca dessa segurança absoluta é o ponto culminante da história ocidental dos últimos
séculos.
Livro 1 – A Metafísica do Poder
A essência do Poder e o estudo de sua extensão
Como é possível a existência de um governo? Como tantos obedecem a tão poucos? Qual
o segredo da obediência civil? Por trás das diferentes formas de governo e de sociedade
resplandece uma só essência: o Poder. Não se trata de perguntar qual é a melhor forma de
governo, mas o que é a essência do Poder.
A história nos ensina que a obediência que tem um limite que o Poder deve respeitar, assim
como há um limite dos recursos que ele pode tomar da sociedade. Por exemplo, os reis
Capetianos não podiam impor a taxação direta e os Bourbon o serviço militar. O estudo
das sucessivas variações nos recursos do Poder durante a história considera a história do
Poder com referência à sua extensão – algo muito diferente das histórias usuais que
abordam as formas do poder.
Obediência às pequenas associações e à grande sociedade
Poucos pesquisadores voltaram sua atenção para a obediência de grandes massas a uns
poucos seres humanos. Qualquer um que tenha começado uma pequena sociedade visando
algum objetivo especial conhece muito bem a propensão de seus membros, mesmo que
tenham aderido por livre e espontânea vontade a algo que valorizam, de abandonarem a
sociedade. É surpreendente, portanto, a docilidade dos homens para com uma grande
sociedade.
O poder de coerção
Qual é a natureza da autoridade dos mandatários do Poder sobre nós? Será ela originária do
controle dos meios de coerção física? Mas para aplica-la é preciso o apoio de um grupo de
“capangas”. Temos que explicar, portanto, como eles conseguiram esse exército e o que
garante sua fidelidade.
Mas não é verdade que o Poder sempre tenha contado com um vasto aparato de coerção.
Roma, por exemplo, não teve oficiais permanentes por muito tempo; nenhum exército
permanente adentrava seus muros e os magistrados só dispunham de alguns lictores para
realizar suas vontades.
A participação
Seria, portanto, verdadeiro dizer que o Poder deve sua eficácia a sentimentos de
participação e não de medo? Estaríamos obedecendo a nós mesmos? Essa á explicação
favorita dos juristas; e tem sido apoiada pelo duplo sentido da palavra “estado”: ela pode
significar qualquer sociedade organizada com um governo autônomo, mas também a
máquina governamental dentro da sociedade. Dizer que a máquina governamental
comanda a sociedade é um truísmo; mas se o outro sentido for misturado com esse
chegamos rapidamente à proposição não comprovada de que a sociedade comanda a si
mesma.
Nenhum dos dois
É fato que a autoridade já foi exercida por Poderes bastante distintos da sociedade, mas
que ainda assim eram obedecidos. Resta, portanto, que o comando do Poder sobre a
sociedade não é fruto somente da força ou da participação por si mesmas. Pode-se alegar
que há realmente dois Poderes de tipo diferente: o de poucos sobre muitos ( aristocracia e
monarquia), que se mantém somente pela força; e o da massa sobre si mesma, que se
mantém através da participação. Mas se fosse assim deveríamos encontrar o aparato
coercitivo em seu máximo nos períodos aristocráticos e monárquicos e em seu mínimo nas
democracias modernas. Sabemos que o contrário se deu!
O hábito da obediência e a história
Uma explicação promissora está no hábito da espécie. Encontramos o Poder no
nascimento da vida social, assim como o pai no nascimento do bebê. Essa antiguidade do
Poder faz com que sua autoridade se fundamente em sentimentos advindos de tempos
primitivos.
A sucessão de governos que regem a mesma sociedade no curso dos séculos pode ser
considerada como um só governo que faz contínuas conquistas. O poder é,portanto, algo
que o historiador entende e o lógico não.
A única explicação metafísica suficiente
A única abordagem sistemática que pode explicar todo Poder já existente é a da “Vontade
Divina”, no sentido que São Paulo dá: “Não outro poder que não Deus: todos os Poderes
advêm de Deus”. Todas as outras explicações metafísicas do Poder são inúteis, se é que
podem ser chamadas de metafísicas.
Insuficiência da explicação histórica e natureza x objetivos na crise da razão
Mas assim que o Poder excede os limites determinados pelo hábito a explicação histórica
cessa de ser completa. E quando um período de discussão se instala a razão nunca deixou
de seguir os mesmos dois passos, que correspondem ao lado teórico e ao lado prático do
intelecto humano. Pelo lado da teoria ela busca justificar a obediência como tal; no lado
prático ela abriu as portas para crenças, não importando se em causas finais ou eficientes,
que tornam um aumento da obediência possível. O poder deve ser obedecido, seja em
virtude de sua natureza ou de seus objetivos. E o que existe na prática é a crença humana
na legitimidade do Poder, a esperança em sua beneficência e a consciência de sua força.
Parece, portanto, que a obediência é fundamentalmente composta de crédito.
O crédito
A importância do crédito para a expansão do Poder se dá principalmente através das
teorias que estimulam a imaginação a pensar sobre os limites da soberania. Nesse processo
é importante ressaltar que esses sistemas abstratos de pensamento podem ser úteis para o
Poder mesmo quando não atribuem a ele a soberania e o papel de agente do Bem Comum;
eles fizeram seu trabalho ao implantar a possibilidade dessas concepções nos corações e
mentes. A posição do Poder na sociedade é tal que só ele pode se aproveitar dessa
soberania em potência e também da função de agente do Bem Comum. Prossigamos,
portanto, ao estudo dessas teorias.
Teorias da Soberania
As teorias que estiveram mais voga no Ocidente são aquelas que justificam a autoridade
política por sua origem. Diz-se que a obediência é um dever devido à existência inegável de
“um direito último ao comando na Sociedade” chamado soberania. As teorias do Direito
Divino dos Reis e da Soberania, apesar de aparentemente opostos, provêm dessa idéia de
soberania. E por trás dessa concepção jurídica de um direito ao qual todos os outros devem
se submeter encontra-se uma concepção metafísica.
A limitação do Poder
Será que essas teorias agiram com uma disciplina sobre o Poder, ao forçar sua aliança com
um ser benevolente? Ou canalizaram seu curso, ao criar controles que o forçam a cumprir
suas promessas? Ou limitaram-no , ao restringir a parcela da soberania que ele possui?
Todos os autores da teoria da soberania trabalharam algum desses instrumentos restritivos,
mas no fim todos eles perderam seu desígnio original, tornando-se fontes de expansão do
Poder, ao fornecer-lhe a ajuda de um soberano invisível com o qual se identificar no tempo
devido. A teoria da soberania divina levou à monarquia absoluta; a da soberania popular à
supremacia parlamentar e finalmente a um absolutismo plebiscitário.
A soberania divina e o Poder medieval limitado
A concepção errônea de que a tese da origem divina do Poder criou uma monarquia
arbitrária e ilimitada na Idade Média é bastante comum nos tempos modernos. Mas não há
um grão de verdade nessa tese. O Poder era divido ( com a Curia Regis), limitado ( por
outras autoridades que eram autônomas em suas esferas) e, acima de tudo, não era
soberano.
O que é um poder soberano?
As características distintivas de um poder soberano são: a possessão de uma autoridade
legislativa; a capacidade de alterar como quiser as regras de conduta dos súditos; e estar
acima das leis enquanto legisla para outros.
A soberania divina contra o rei
Durante séculos a soberania divina foi uma garantia da fraqueza do Poder e não de sua
força. A idéia do poder absoluto do rei só começa a ser associada a ela a partir do século
XVII. Se tomarmos a teoria da soberania divina durante seu florescimento entre os séculos
XI e XIV, o que encontramos? Que a fórmula “ Todo Poder vem de Deus” era repetida
como uma exortação para que o Poder obedecesse a Deus.
O rei consagrado da Idade Média era um Poder tão restrito e pouco arbitrário quanto
possamos conceber. A teoria da soberania divina favorecia tanto essa situação, que, para
escapar do controle da Igreja, reis e imperadores chegaram a buscar argumentos na tradição
dos juristas romanos que diziam que a soberania se originava do povo.
Marsílio de Pádua
Foi exatamente esse “truque” que caracterizou a obra de Marsílio de Pádua. Mas o que
permitiu que o Poder, depois de usar o povo contra Deus, pudesse jogar Deus contra o
povo? A crise das idéias europeias gerada pela Reforma Protestante. Agora cada rei podia
criar sua igreja nacional e tornar o direito divino um aliado do Poder. A teologia sempre
esteve muito longe de ser uma justificativa para o absolutismo e como prova disso temos o
fato de que os reis Stuart e os Bourbon, queimaram os tratados políticos dos Jesuítas
quando buscaram avançar suas prerrogativas. Roberto Belarmino dizia, por exemplo que
competia ao povo trocar uma monarquia por uma democracia, ou vice-versa. Já o rei Jaime
I dizia que a única coisa que um súdito poderia fazer perante uma injustiça real do rei era
fugir para bem longe de seu senhor.
Marsílio de Pádua concebe o povo como portador da autoridade legislativa suprema, mas
ele só é dotado dessa capacidade para repassá-la a um representante despótico.
Hobbes e a ausência de coerção
Hobbes define os estado de natureza, a liberdade primitiva, como a ausência de qualquer
coação exterior, definição esta que é mais adequada para um médico do que um jurista. A
submissão absoluta das soberanias individuais ao Estado é a condição de superação desse
estado de guerra de todos contra todos. Em Hobbes e Spinoza já encontramos a
extravagante suposição de que cada indivíduo é também um autor de cada ato do soberano:
se sofremos injustiças só temos nós mesmos a acusar.
Santo Agostinho x Hobbes/Espinoza
Quão diferente é a linguagem de Santo Agostinho: “... mas, conquanto que acreditemos em
Deus e tenhamos sido chamados a Seu reino, não fomos submetidos a qualquer homem
que deva buscar destruir a graça da vida eterna que Deus nos deu”.
Submissão de todos os direitos x bem dos súditos
A recepção por parte do soberano de todos os direitos individuais implica que ao indivíduo
não resta nada com que se opor a ele. A tese de Locke de que de que nem todos os direitos
foram entregues rendeu frutos políticos, mas não possui qualquer sentido lógico. A
manutenção de algumas prerrogativas é incompatível com a soberania absoluta.
Partindo da tese de Hobbes-Espinoza, como é possível garantir que o soberano considere
somente o interesse de seus súditos? Certamente é bem menos terrível imaginar que essa
soberania seja distribuída coletivamente entre todos do que pertencendo a um só ou a
poucos.
Rousseau: a não-transmissibilidade da soberania
Na visão de Rousseau o processo tem dois estágios: primeiro os indivíduos se transformam
em um povo e depois dão a si mesmos um governo. No sistema anterior a criação e a
transmissão da soberania era simultânea, mas agora ela é criada para nunca ser transmitida.
Rousseau: A usurpação da soberania e o movimento “natural” do Poder
Rousseau não identificava o governo e o soberano e sabia muito bem que os agentes do
Poder formam uma corporação que tende a usurpar a soberania. Consequentemente,
quanto maior o elemento de usurpação em um governo, maior a amplitude de seus
poderes.
O que Rousseau não explica é a fonte de onde o Poder tira energia para efetuar essa
usurpação. Sua visão é de que o governo naturalmente tende a se mover de muitos para
poucos, ou da democracia para a aristocracia e desta para a monarquia, considerada por ele
como a forma final da sociedade. E a monarquia , ao se tornar tirânica, causa a morte do
corpo social. Mas não há nada na história que demonstre que esse movimento sucessivo
seja inevitável.
A fraqueza dessa teoria está em sua heterogeneidade. Ela tem o mérito de tratar o Poder
como uma entidade separada – um corpo que acumula força - , mas ainda pensa a
soberania , de maneira medieval, como um direito.
Como evitar a usurpação? O vigia do vigia
Ambas submetem o poder a regras. Mas o que impede esses mandatários de resumir em
sua própria pessoa a Soberania Divina ou a Vontade Geral? Há alguma maneira de evitar
essa usurpação? Foi dessa pergunta que surgiu a idéia da existência de um corpo que
vigiasse o Poder como representante da soberania.
A dualidade do poder e seu fim
Sob o regime da soberania divina esse corpo era a Igreja e sob o da soberania popular o
Parlamento. Toda a metafísica do Poder leva a essa dualidade, ao mesmo tempo que a
abomina.
Não podem existir duas vontades divinas ou populares; somente um desses corpos pode
ser um reflexo verdadeiro do soberano; a vontade que se opõe a ele é ,portanto, uma
rebelde a ser submetida. Ao fim da Idade Média a monarquia saiu vitoriosa.
Rousseau chegou a prever o que escapou a Montesquieu: a autoridade do Parlamento, que
crescia à custa do executivo e agia como um freio ao Poder, iria no final das contas
dominar o executivo e se fundir com ele, reconstituindo um Poder que pode se arrogar a
soberania.
Ao disciplinar os súditos elas reforçam o Poder, mas podem limitar esse Poder, caso exista
um método prático de execução da tarefa de vigilância do representante da Soberania. Mas
é essa a grande dificuldade!
As precauções contra usurpação e o enfraquecimento do Poder
Esse perigo leva a uma multiplicação das precauções; o Poder e seu controlador são
desmontados em pequenos pedaços pela divisão das funções e a rápida sucessão dos
detentores de cargos. E isso significa fraqueza e desordem na administração da sociedade, o
que se torna intolerável com o tempo e faz com que os pedaços espalhados da soberania
sejam novamente reunidos.
Quanto maior a concepção do direito à soberania, no tempo em que sua monopolização
era considerada uma fantasia, maior a tirania.
A soberania popular pode levar a uma tirania maior do que a soberania divina: a última é
uma lei eterna, enquanto a primeira não tem qualquer tipo de estabilidade natural.
Teorias Orgânicas: a finalidade do poder, eclipse e ressurgimento
Teorias da soberania: justificativa do poder a partir de sua origem.
Mas e a finalidade do Poder? São Tomás, por exemplo, parece atribuir mais importância à
finalidade do que à origem. A discussão dos fins do poder era um corretivo para a idéia da
soberania nos pensamento católico medieval, mas sofreu um eclipse com a teorias da
soberania popular.
As teorias sobre a finalidade do Poder ressurgem no século 19, mas agora como uma força
favorável a sua expansão. Essa reversão se associa a uma nova visão da sociedade como um
organismo em desenvolvimento e não um agregado de indivíduos.
A concepção nominalista da sociedade
Até o século 19 não havia ocorrido a qualquer pensador ocidental a idéia da sociedade
como algo com existência fora dos indivíduos.
O cidadão romano, por exemplo, tinha pouca necessidade da palavra “estado”, pois não era
consciente de um ser transcendente à sociedade. A sociedade, para ele, consiste de homens
em associação que sempre podem se separar.
A soberania: contrapeso do nominalismo
Dada essa possibilidade de secessão era necessário um poderoso fator de junção para
sustentar a sociedade e é ai que a idéia de soberania se encaixava. A majestade conferida à
soberania se equilibrava perfeitamente com a independência dos indivíduos. Mas assim que
a secessão se torna impossível o apoio que a teoria da soberania dá ao Poder se torna
excessivo e perigoso. Esse perigo permanece parcialmente contido enquanto as mentes
retêm a hipótese básica que o homem é a realidade e a sociedade uma convenção.
A concepção realista e a Nação
A metafísica só pode afirmar a realidade da sociedade, depois que ela tomou a forma de um
ser chamado Nação. E o fator causador dessa transformação foi a Revolução Francesa. A
partir dela a mobilização total para a guerra exige que a Nação seja um todo que vive uma
vida superior à de suas partes.
Hegel: a vanguarda revolucionária
Foi Hegel que formulou a primeira doutrina coerente desse novo fenômeno, concedendo à
nação um certificado de existência filosófica. Para ele a sociedade é o fim mais elevado de
todo indivíduo. O trabalho de Hegel só deu forma a uma crença que já aparecia
conscientemente em muitas mentes. A trocas dos direitos inamovíveis dos indivíduos por
uma moralidade social exaltada marca a transformação das especulações finalistas em
combustível para o Poder.
Rousseau distinguia entre a vontade de todos e a vontade geral; Hegel afirma que a vontade
geral é somente aquela que tende a realizar o uma vida coletiva mais elevada. Somente os
que estão conscientes dessa necessidade podem representar essa vontade. Está preparado o
caminho para a idéia de uma vanguarda revolucionária que guia a maioria até a perfeição do
Todo. É o trabalho dessa vanguarda fazer com que todos se sintam como membros de
uma totalidade e não mais como indivíduos.
Da Economia para a Biologia e vice versa
As mudanças sociais do século 19 geraram a idéia de que a especialização econômica leva a
uma maior felicidade e riqueza de todos.Platão afirmava a autarquia e a indiferenciação
condição da unidade social, já Hegel diz a característica principal do estado moderno era
uma diferenciação crescente abarcada por uma unidade cada vez mais rica.
A biologia avançou muito quando passou a ver todo organismo vivo como uma estrutura
de células. Um empréstimo da concepção da especialização do trabalho da economia
política trouxe a tona a idéia de que todas essas células teriam evoluído de uma célula
primitiva e simples.
Se a biologia via os organismos como sociedades, como o pensamento político poderia
deixar de ver as sociedades como organismos? Muitas vezes no passado o corpo político já
havia sido comparado ao corpo humano!
Mas essa metáfora é uma serva perigosa. O progresso das ciências naturais a invalidou e
mostrou que qualquer comparação da sociedade com um organismo só tem algum sentido
em relação a seres muito abaixo da escala de evolução humana.
Herbert Spencer, Thomas Huxley e Durkheim: o conflito entre o liberalismo e a
visão orgânica.
Essa hipótese, como desenvolvida por Spencer, afirma que as sociedades primitivas do
presente são estágios da evolução pelos quais nós já passamos. Mas o que mais importa
aqui são as conclusões políticas tiradas desse sistema “organicista”.Spencer, um liberal-
conservador vitoriano, tinha como credo a restrição do Poder. E por isso mesmo se
alarmou com as conclusões coletivistas que Auguste Comte tirou da diferenciação social.
Thomas Huxley, o biólogo, já afirmava categoricamente a oposição do organicismo a
qualquer visão negativa da função estatal. Como órgão central, o estado deve adquirir um
controle cada vez maior de suas partes para que o organismo funcione harmonicamente.
Durkheim: A escala e as funções do órgão governamental devem aumentar
necessariamente com o desenvolvimento das sociedades. Ele chegou a afirmar enfim que
os sentimentos religiosos eram somente sentimentos de participação na sociedade – uma
premonição obscura de estarmos criando um ser maior do que nós mesmos.
As teorias da soberania subjugadas pelo Poder e sua incapacidade explicativa
Nas duas primeiras teorias, o Poder aparece como um centro de comando absoluto em
meio à multidão, na terceira como um fogo cristalizador e na última como um órgão em
um organismo em expansão.
As duas primeiras, fundadas como são em uma visão nominalista da sociedade possuem
uma certa aversão à absorção completa do homem: elas permitem a noção de direitos
subjetivos. A primeira delas, a da soberania divina, ao postular a existência de uma lei
divina eterna implica em um direito objetivo, enquanto nas teorias mais recentes é a própria
sociedade que forja as leis.
Conclusão: O Poder possui uma incrível força de atração que é capaz de dobrar até mesmo
os sistemas intelectuais concebidos para destruí-lo. Esqueçamos, portanto, essas belas
teorias que não nos ensinaram nada de essencial e procuremos desnudar o poder.
Segunda Apresentação
Livro II – Origens do Poder
As sociedades primitivas como etapa evolutiva
- A figura do historiador aparece tardiamente na história, em sociedades já altamente
desenvolvidas: Tucídides é contemporâneo de Péricles, Tito Lívio de Augusto. Esse fato
dificulta bastante um estudo sobre as origens do Poder. Como superar esse obstáculo?
Muitos procuraram a resposta na etnologia, no estudo das sociedades primitivas de nossa
própria época.
- Heródoto e Tácito atestam o fato de que em todas as épocas os civilizados sentiram uma
grande curiosidade por seus vizinhos bárbaros e primitivos. Mas só muito posteriormente
surgiu a idéia de que as sociedades primitivas eram testemunhas retardatárias de nossa
própria evolução. Durante a primeira rodada de entusiasmo darwinista ninguém duvidava
que a evolução do clã até a democracia parlamentar poderia ser traçada tão certamente
quanto a do macaco até o homem de terno.
- Mas as reconstruções históricas de Durkheim, Engels e outros estão hoje defuntas; não há
mais certeza sobre a existência de uma sociedade primitiva original. A moda de procurar na
Austrália o arquétipo de uma comunidade atrasada que explique nossos sentimentos
religiosos se esvaiu.
Patriarcalismo: Rei x Senado
-A primeira autoridade a surgir em nossa vida é a paterna. Não será ela também a primeira
da sociedade? De Aristóteles até Rousseau e De Bonald encontramos a afirmação de que a
sociedade é uma agregação de famílias patriarcais.
- O crescimento das famílias em nações fez com que os patriarcas tomassem a posição de
reis. Outra e oposta suposição é de que os chefes de várias famílias se reuniram em
igualdade e criaram uma associação voluntária.
- De acordo com a hipótese adotada chega-se à conclusão de que o governo “natural” é o
monárquico ou o senatorial. Mas desde a crítica de Locke a Filmer que a autoridade
senatorial é considerada primordial.
- A sociedade apresenta, portanto, uma dualidade de poderes: de um lado o poder total do
chefe de família em sua casa e de outro o do conselho dos chefes de família reunidos em
igualdade fraternal.
Ataque à origem patriarcal do Poder
- Essa origem patriarcal do Poder foi rechaçada próximo a 1860, mais ou menos ao mesmo
tempo em que a revolução darwinista.
- Jouvenel chama essa alteração de “Período Iroquês”. Um etnologista americano, de nome
Morgan, observou que a herança entre esse povo era matrilinear e que as palavras “pai” e
“mãe” também cobriam os tios paternos e tias maternas. Esse fenômeno foi encontrado
em diversas outras tribos americanas.
- Bachofen catalogou os costumes dos povos antigos e mostrou que a afiliação uterina da
criança seria uma norma geral entres esses povos. O casamento em grupos também foi
considerado um fato.
- Esses estudos estabeleceram, pelo menos, que existiam algumas sociedades com famílias
não patriarcais e que, portanto, a autoridade patriarcal não poderia ser o ponto de partida
para todo governo.
O Totemismo e o terror perante a natureza
- McLennan, em 1870, foi o primeiro a observar que grupos primitivos possuem o culto de
uma planta ou animal em particular: é o seu totem. Tudo foi alterado com isso: o paladino
de plumas e o filósofo nu, essas alucinações do século 18, foram substituídos por selvagens
aterrorizados pela natureza.
- Esses seres tinham como único recurso de proteção o grupo e a punição mais severa era o
banimento. Acreditavam que todos os acontecimentos naturais, benéficos ou maléficos,
eram frutos de um desígnio superior que poderia ser manipulado através do
comportamento e das cerimônias adequadas. Mas quem, senão os “Anciões”, sabia o que
fazer? E entre eles somente aqueles que tinham percepções mágicas. Esses são os homens
destinados ao comando, aqueles que sabiam negociar com os poderes invisíveis.
O rei sacrificial
- A teoria de Frazer: o rei sacrificial.
- O rei seria um intercessor dos deuses, a ser sacrificado ou deposto se não conseguisse
aplacar a fúria divina.
A autoridade oracular e os costumes
- O desenrolar dos estudos etnológicos tornou mais certa a visão de que as sociedades
primitivas não se encaixam nas categorias usuais de monarquia, aristocracia e democracia. É
absurdo supor uma democracia de selvagens, se reunindo para debater os prós e contras de
cada ação. Até mesmo o povo romano, um dos menos religiosos já existentes, considerava
o sacrifício e a consulta dos augúrios o precedente necessário de todo debate. As decisões
dos Anciões sempre tiveram a autoridade de um oráculo.
- Um exemplo dado por Summer Maine mostra a repugnância dos povos não civilizados a
decisões deliberativas: em sua passagem como funcionário civil na Índia ele viu o governo
construir canais de irrigação para as comunidades locais, ficando a cargo delas a
distribuição da água. E o que aconteceu? Ao fim da divisão os locais resolveram esquecer
que uma autoridade humana a havia feito! Eles se persuadiram de que uma porção da água
tinha sido dada a cada um por um costume antigo!
Rituais de Iniciação, poderes mágicos e sociedades secretas
- Essa visão de mundo considera que cada ato da vida tem seu rito apropriado a ser
executado pelos Anciões. Será que os jovens da tribo poderiam questionar essa autoridade,
já que era através dela que eles chegavam à maturidade?
- Essa transição era sempre marcada por um rito iniciatório durante o qual o adolescente
era espancado e humilhado, só recebendo seu nome de adulto ao fim do processo.
- A existência ou a presunção dos poderes mágicos dos Anciões são confirmadas pelos
estudos de Frazer sobre a crença em várias partes do globo de que homens são capazes de
precipitar ou evitar a queda da chuva.
- O terror perante esse poder explica a incrível multiplicação de sociedades secretas entre
os selvagens. Todos desejavam se aproximar dos poderes ocultos com que o círculo central
dos Anciões se comunicava. O comando exercido pelo Poder mágico é o único conhecido
por esses povos primitivos.
A herança conservadora do Poder mágico
- O medo é o princípio por trás desse Poder e seu papel na sociedade é o da fixação dos
costumes. O Poder conquista de forma conservadora. Mesmo que esse tipo de arranjo
social desapareça é razoável pensar que suas influências ainda perdurem por muito tempo
nos corações e mentes.
- É uma tentação errônea imaginar que com o fim das monarquias sagradas toda associação
religiosa tenha se esvaído do novo Poder impessoal. A desobediência às leis, algo incrível
por si só, ainda carrega uma nota de desafio aos deuses e de um teste em relação a seu
poder.
- Pesquisando a história das revoluções encontraremos que toda queda de um regime foi
pressagiada por um desafio que permaneceu impune. O Poder antiquíssimo transferiu algo
ao mais moderno.
Capitulo V – O Advento do Guerreiro
O fim das explicações unilaterais e a vantagem do patriarcalismo
- Não há uma prova certa de que nossa sociedade passou pelo estágio que qualquer
comunidade selvagem atual atingiu. Ninguém diria categoricamente hoje que o totemismo
foi um estágio religioso atravessado por toda sociedade, sem exceção. E também não se
pode mais dizer que a filiação uterina sempre precedeu a paternal.
- O que é certo é que foram as sociedades organizadas de forma patriarcal, que eram as
menos inclinadas a preencher o universo de desígnios maléficos, as quais fundaram os
primeiros estados e sociedades historicamente organizadas. Nas sociedades avunculares os
filhos das mulheres jovens se tornam propriedade de um grupo que só pode se multiplicar
em proporção a suas mulheres jovens, mas nas sociedades patriarcais são os filhos dos
homens jovens que se tornam propriedade grupal, e a taxa de crescimento aumenta
bastante se os homens jovens conseguem aumentar seu estoque de esposas, seja através da
guerra ou de outro meio.
A primeira revolução
- O grupo patriarcal se torna rapidamente mais poderoso do que o avuncular e também
mais unido. Mas para que essa ascendência patriarcal se realize o domínio dos anciões
precisa ser derrubado. Podemos chamar esse processo de a primeira revolução política.
- Qual o motivo que leva sociedades isoladas a entrarem em conflito umas com a outras?
Cada uma ocupa um pequeno espaço em um continente enorme.
- É ausência ou presença da vontade de poder que determinará essa situação. Um povo
belicoso procurará adquirir através da violência o gado e as mulheres que a natureza lhe
negou. Toda a história é marcada pelo desejo do homem em ter mais do aquilo que está em
seu alcance imediato e os principais construtores da civilização material são os povos com
espírito de conquista.
- Consideremos o caso dos aborígenes australianos, que têm como maior forma de riqueza
suas mulheres, as quais são monopolizadas pelos poderosos e mágicos Anciões, e tomemo-
la como exemplo de uma situação paradigmática das primeiras tribos. Se um grupo de
jovens excluídos decidir se rebelar e abandonar a aldeia em busca de guerra e pilhagem
pode conseguir voltar com esposas e riquezas que alterarão completamente o status quo da
tribo. Um lento acúmulo dessas situações pode levar a uma completa deposição do
Anciões, que se enriquecem através do monopólio da riqueza da tribo, enquanto os jovens
contribuem para a vida comunitária com novas riquezas pilhadas. Os guerreiros mais
ousados são aqueles que mais podem praticar as virtudes aristocráticas da hospitalidade e
da generosidade. Eles acabam entrando nas sociedades secretas a partir das festas tribais e
terminam dominando-as.
- Os guerreiros vitoriosos não devem nada a uma família maternal e a autoridade absoluta
do pai passa a se fundamentar no status inferior das mulheres raptadas.
Poligamia, escravidão e culto familiar: fundamentos do poder patriarcal
- Estamos tentando adivinhar, mas algo é certo: a coragem na guerra se tornou um
princípio de diferenciação social depois da ascensão da família patriarcal. A terra é
relativamente abundante e, portanto, a maior riqueza é a força de trabalho, composta
primeiramente de esposas e depois de escravos. Somente em uma data tardia, depois da
instituição da monogamia, foi que a guerra passou a extinguir a raça dos guerreiros. Mas
nas sociedades poligâmicas são os clãs guerreiros que se multiplicam rapidamente,
enquanto os fracos se reproduzem lentamente e dão origem à primeira plebe, que por sua
vez dará origem aos primeiros grupos de clientes livres anexados aos clãs poderosos.
- A invenção da escravidão enriqueceu esses clãs ainda mais e os transformou também em
uma plutocracia. Devemos lembrar que a escravidão foi um avanço para os conquistados
do sexo masculino, pois antes todos eram exterminados. Essa deve ser considerada a
primeira Rev. Industrial da humanidade.
- Cada um desses clãs é também uma citadela da religião, com seu próprio culto.
Novamente a dualidade do poder: Rex X Dux
- Depois desse crescimento inicial da sociedade, qual a ligação restante entre as famílias
poderosas? O senado dos chefes de clãs é o “cimento” federativo e o rei o símbolo militar,
o chefe dos exércitos conquistadores. O senado, além de ser um conselho administrativo, é
também um herdeiro das qualidades místicas do conselho de Anciões.
- Existe uma dualidade inerente à realeza. Entre os diversos povos aparecem dois
personagens: um é essencialmente um sacerdote e outro o diretor das forças da nação. Um
chefe militar é somente um homem entre homens e qualquer poder além desse advém de
um encargo religioso.
- O rei de caráter religioso é prisioneiro de tabus rigorosos. Tudo nele é veneração, mas seu
posto é na verdade expiatório, e ele um prisioneiro e vítima de seu papel místico. Podemos
deduzir que em algum momento o chefe dos exércitos se sinta tentado em usurpar as
vantagens desse cargo, sem carregar suas responsabilidades. Mas é exatamente aí que reside
o caráter duplo do Poder real , o qual é transmitido a todos os Poderes sucessores.
Rei x Aristocracia
- Em certo ponto do desenvolvimento histórico aparece um rei ambicioso, que decide
estender suas prerrogativas às custas dos chefes de clãs. O projeto desse rei acabou
derrotado em Roma e na Grécia, mas a história foi muito diferente no Oriente.
- Esse rei se apoia na massa plebéia que vive longe do topo da pirâmide social e também
em elementos aristocráticos frustrados. É esse impulso de dominação que faz o Poder
adotar duas táticas: a diminuição da desigualdade social e o crescimento e centralização da
autoridade pública.
A monarquia, tamanho da sociedade e o culto comum
- A possibilidade de sucesso da investida monárquica cresce conjuntamente com a
sociedade, devido à diminuição da coesão dos patrícios. As sociedades como a romana e
grega escaparam dessa dominação por não serem grandes o suficiente, pouco heterogêneas
ou carentes de um braço religioso que sustentasse o rei.
- O exemplo de Alexandre, o Grande e dos Sultões Otomanos mostra que as populações
conquistadas são o apoio ideal para um rei que deseja conquistar sua própria aristocracia.
- Esse rei transformado em monarca oferece à massa de seus súditos um deus para todos.
Os críticos modernos se equivocam muito quando imaginam que os governantes egípcios
impuseram a seus súditos humilhados o culto de um deus que era na verdade o próprio
governante. Um culto em comum com os nobres era a maior dignidade que o soberano
poderia conceder a seus governados.
- É assim que o monarca consegue erguer um governo estável e permanente, dotado de
uma burocracia, um exército, uma polícia, um código tributário e tudo o mais que
designamos pelo nome “estado”.
Uma só vontade x Repúblicas antigas
- Esse aparato estatal ainda permanece sendo considerado uma só vontade, mesmo depois
da derrocada da monarquia em prol de uma pessoa abstrata.
- É por isso que temos dificuldade em compreender uma república antiga; pois nelas toda
ação depende de um concurso de vontades e não existe um aparato estatal.
- A aristocracia dos clãs sofre de uma mentalidade dividida: ao mesmo tempo em que tenta
manter seu status de igualdade com o rei, também ama sua posição de autoridade em
relação aos outros membros da comunidade.
- Foi essa mentalidade que gerou a revolução que extinguiu a monarquia grega e romana.
Considerar essas revoluções como igualitárias demonstra uma profunda ignorância da
estrutura social dos tempos antigos. Que paradoxo que a cidade aristocrática por
excelência, Esparta, tenha se tornado objeto de admiração para os homens da Revolução
Francesa. O “povo” antigo era composto somente de patrícios.
- Na cidade antiga não existiam cargos públicos lotado com um staff permanente; o
método de escolha era a eleição por um período curto, usualmente um ano. Como um
regime dessa natureza podia funcionar? Apenas através da coesão moral e da inter-
disponibilidade dos cidadãos privados para o exercício dos cargos públicos. Xenofonte diz
que essas cidades eram governadas pelos costumes.
- A crise entre o rei e os chefes de clãs é o momento decisivo do início da história de um
povo. Em uma república o sentimento dominante é o de associação em comum e na
monarquia o de serem todos possuídos em comum.
- É esse sentimento de possessão em comum que dá nascimento a essa idéia complexa
chamado estado. A derrocada do rei acaba não importando, pois a idéia de um aparato que
paira acima da sociedade permanece, e é ela que justifica a incapacidade de compreender a
cidadania antiga que o cidadão moderno tem.
Livro III – Sobre a Natureza do Poder
Capítulo VI – A Dialética do Comando
Abaixo com a identidade entre estado e sociedade
- Ao vermos o estado tão emaranhado na sociedade trememos até mesmo perante a
possibilidade de seu desaparecimento e acreditamos que esse aparato só ter sido feito para a
sociedade.
- É por isso que os juristas identificam a nação com o estado, deixando de levar em conta o
fenômeno recorrente da captura do aparato estatal para fins particulares. Mas desde que
essa possibilidade seja admitida, a identidade inicial entre sociedade e estado cai por terra.
- Não é verdadeiro dizer que o Poder desaparece quando seu incumbente age fora de suas
atribuições e, portanto, esse respeito a uma ordenação não pode ser algo essencial ao
Poder. Essa essência é na verdade uma só coisa: o comando.
Questões de método
- O ponto de partida dessa demonstração é um conceito abstrato claramente definido, e o
objetivo é desvendar uma realidade complexa através de uma abordagem lógica em
sucessivos estágios. Mas não devemos esperar uma cópia da disciplina estrita das ciências
exatas.
- O objeto em foco é somente o Poder em grandes formações sociais, o qual consiste,
como já visto, em um comando que tem existência independente.
Uma só força na origem das grandes comunidades
- A idéia de que os governantes tenham sido convencidos a liderar pelos súditos é
altamente improvável, já que implica na idéia de que uma formação social sem comando já
é uma comunidade. Mas a história mostra que a existência de uma comunidade depende da
imposição de uma só força, de um só comando.
A nação, heroína de melodrama
- Essa relação entre comando e sociedade foi obscurecida pela metafísica nacionalista do
século 19. A história se torna uma novela sobre a nação personificada como a heroína de
um melodrama, sempre erguendo no momento necessário seu campeão.
- Uma “consciência coletiva” é conhecida desde a antiguidade, mas ela sempre teve limites
geográficos bastante estreitos. É um grande erro imaginar que as grandes formações
políticas são produtos naturais da sociabilidade humana; elas devem sua existência ao
instinto de dominação.
- Não caiamos na bobagem de acreditar que a energia criadora das nações é um ectoplasma
que surge das profundezas do homem em meio à massa.
Os conquistadores
- É sempre a conquista , seja interna ou externa, que produz as grandes sociedades. É daí
que deriva o conteúdo psicológico das noções antigas de uma capital e de uma nobreza.
- Mesmo os romanos, esses ilustres unificadores, não eram muito diferentes de um bando
de invasores truculentos no começo. Santo Agostinho não tinha ilusões sobre isso: “O que
são as propriedades de um ladrão senão pequenos reinos?”.
- Um Poder dessa natureza não detém qualquer pretensão de legitimidade, não persegue
qualquer fim justo e tem como objetivo vivar à custa das populações submetidas.
- É interessante observar que quando os conquistadores são mais civilizados e não
escravizam os povos dominados, eles acabam por exterminar essas populações que não
tem qualquer utilidade para eles. Os locais tiveram um destino muito melhor sob os
espanhóis que os escravizavam, do que sob o domínio inglês, por exemplo. Os romanos
agiam da mesma forma: eles datavam da conquista da Macedônia a possibilidade de viver
inteiramente a partir dos tributos das províncias conquistadas.
Crescimento e destruição do Poder
-Que fenômeno imoral vocês podem dizer! Mas aqui surge um caso admirável da vingança
do tempo: o egoísmo do comando leva a sua própria destruição. Quanto mais a sociedade
dominadora expande suas conquistas, mais inadequada se torna sua força para se defender
e governar. É por isso que os Espartanos limitaram suas conquistas.
- O fenômeno de Esparta nos apresenta o fato que confronta o Poder em sua forma pura:
fundado na força, ele precisa sustentar essa força com relação razoáveis com a massa
dominada.
Transição para a Monarquia: os meios
- Como esse poder conquistador se transforma em uma monarquia? O rei deixa de
considerar como o chefe de um bando vitorioso e manipula os recursos dos povos
conquistados para destruir seus associados, os quais são reduzidos ao nível de súditos.
- Ele já avança muito ao conseguir atrair para o seu serviço alguns de seus súditos, para
quem o contraste entre essa nova situação e a tirania anterior é determinante.
- No fim o monarca coroa seus esforços manipulando as tradições de cada um dos grupos
que constitui o todo. Assim o fez Alexandre ao se intitular filho de Hórus.
- Assim é demarcado um processo lógico de transição para uma monarquia nacional, no
qual o Poder ainda continua sendo o comando que sempre foi. Mas não seria falso dizer
que esse sistema de comando deve sua existência à proteção concedida aos derrotados, à
habilidade em tornar a obediência popular e à prosperidade gerada através dos recursos
extraídos da massa.
O Poder Egoísta-Social
- A conquista da autoridade nunca cessa, mas seu caminho passa inevitavelmente pela
prestação de serviços.
- E então vemos o espetáculo de um comando que só enxerga seus próprios fins, mas que
termina se preocupando com o bem comum. Os mesmos tiranos que deixaram as
Pirâmides como prova de deu terrível egoísmo, também regularam o curso do Nilo e
fertilizaram os campos dos felás.
- Supor que o domínio da maioria só se dê em uma democracia é uma ilusão fantástica. O
rei, um indivíduo solitário, precisa muito mais do apoio geral do que qualquer outra forma
de governo. E como o hábito geralmente produz afeição, o rei também passa a se motivar e
enfim a agir por afeição.
O retorno do Rex: a exaltação dos humildes
- O princípio místico do rex retorna triunfalmente. O Poder se move do parasitismo para a
simbiose. O monarca é, claramente, o destruidor da república de conquistadores e o
construtor da nação, o que explica os julgamentos ambíguos que foram lançados sobre os
imperadores romanos.
- O Poder, no começo de sua carreira, destrói os grandes e exalta os humildes.
A formação da nação
- Como a consciência nacional pode ser formada? A resposta é que a pessoa do monarca
funciona como um centro de cristalização.
- Os inúmeros títulos que um Filipe II carregava nos parecem ridículos, mas eles eram as
insígnias de seu poder perante populações as mais diversas. No devido tempo o monarca as
fundirá, e as divergências espirituais serão resolvidas na unidade corpórea da pessoa do rei.
- A nação é um produto do trono. Os homens se tornam compatriotas através da aliança a
um só homem. É por isso que os povos formados nos moldes monárquicos só conseguem
enxergar a nação como uma pessoa. Os romanos não detinham esse conceito; foi somente
com a figura dos imperadores que surgiu algo capaz de absorver a adoração religiosa dos
povos separados.
A Cidade do Comando
- A cidade do comando: uma nova formação da cidade baseada na presença dos
funcionários e da corte do monarca. Essa nova cidade continuar a representar um Poder
distinto da sociedade, uma elite governante; a grande diferença é que agora essa elite está
mais bem equipada para o governo e a execução de serviços essenciais.
- Esses serviços, fundamentais para a massa da humanidade, quase nos fazem esquecer que
o Poder é em essência um egoísmo dominador. Mas na prática o Poder parece ter trocado
sua natureza e se transmutado em um ente social.
A imolação do cordeiro
- E é exatamente nesse momento que um grito de natureza profundamente social se lança
contra o Poder. Essa reclamação só pode tomar forma quando o Poder tiver terminado seu
trabalho de unificação espiritual e a nação se tornado um todo consciente. Quanto mais
forte a sensação de unidade, maior a oposição ao Poder que a gerou, o qual passa ser visto
como uma imposição.
- Então, esse poder arbitrário, estrangeiro e explorador é derrubado no exato momento em
que deixava de ser arbitrário, estrangeiro e explorador.
Demonstração lógica da dualidade do Poder
- Jouvenel afirma que não tentou cobrir todas as formas históricas possíveis de evolução do
Poder, mas que demonstrou logicamente que a hipótese de um Poder baseado na pura
força e exploração termina se transformando em um Poder social.
- O próximo passo lógico é buscar eliminar qualquer possibilidade de retorno à sua
natureza primitiva, torna ele essencialmente em algo social.
- Há dois caminhos possíveis: um é lógico e impraticável, o outro parece fácil , mas não
atinge o objetivo desejado.
- O primeiro é a destruição do Poder nascido da dominação e a constituição de uma
república baseada no concurso de vontades, sem qualquer tipo de soberania.
- O segundo é o que efetivamente acontece: a deposição do monarca ao mesmo tempo em
que a estrutura completa do estado monárquico é preservada, com a substituição da pessoa
do monarca por um personagem ideal.
- Para manter a forma estritamente lógica da investigação, suponhamos que esse legado
tenha sido completamente removido, e que um novo Poder seja constituído pela e para a
sociedade.
- Assim que o fim social deixar de ser perseguidos por todos em comum e se tornar o
apanágio de um grupo diferenciado, então o grupo responsável se tornará uma elite, que
tem vida e interesses próprios.
- É por isso que os romanos conseguiram por tanto tempo votar suas leis em praça pública:
sua parte no trato era somente a ratificação daquilo que tinha sido determinado em
conjunto pelos magistrados e pelo Senado. Os mesmos métodos são reproduzidos
atualmente nas reuniões de acionistas de uma empresa.
- O exercício da autoridade soberana traz consigo um sentimento de superioridade, que
transforma os iguais em desiguais.
O egoísmo da natureza humana
- Dualidade essencial do Poder: egoísmo x altruísmo.
- Os súditos acusam o Poder, seja em uma monarquia ou em uma república, de um vício
que faz parte da natureza humana: o egoísmo.
- Nos postulamos no princípio um Poder essencialmente egoísta e vimos que ele adquire
uma natureza social. Vimos também que que um Poder que é inicialmente social pode
adquirir uma natureza egoísta.
Abstrações como imagens
- É absurdo tentar identificar em todo Poder histórico uma combinação de duas
substâncias quimicamente puras, o egoísmo e o sentido social.
- Toda ciência nascente necessita de conceitos abstratos, mas não deve se perder de vista
que essas idéias são sínteses de imagens e que não podem nunca atingir um estado de
precisão exata.
- Por exemplo, os gastos luxuriosos das aristocracias em obras de arte geraram grandes
dádivas para a humanidade, enquanto a taxação moderna, pretensamente altruísta, guarda
paralelos marcantes com o favorecimento de grupos por um monarca.
A verdadeira natureza do egoísmo do Poder
- Devemos notar que o princípio egoísta toma sua forma mais bárbara exatamente quando
o Poder troca de mãos.
- Não devemos ter uma visão muito estreita e esquálida do egoísmo governamental. O líder
de qualquer grupo o percebe quase como uma expansão física de si mesmo. Sua natureza se
altera com essa expansão. A prudência pessoal e a avareza que associamos com o egoísmo
é raramente vista no líder, no governante. Dentro dessa perspectiva, o líder facilmente se
persuade de que seus fins são sociais e que sua única ambição é servir o Todo.
- E quantas vezes não acontece de os objetivos sociais serem realmente atingidos e a
mentira altruística sobre as motivações do Poder parecer ser verdadeira.
- Em meio aos pensadores essa mentira não faz mais do que evitar que uma ciência política
digna do nome apareça; mas quando ela chega à multidão, torna-se a causa dos grandes
distúrbios que desolam nossa era e ameaçam a sobrevivência da civilização.
A falácia do Poder Mau
- A multidão, passiva civicamente e ativa emocionalmente, acredita que os abusos do Poder
são o estigma de um Poder mau que deve ser trocado por outro inteiramente justo e
beneficente.
- Mas toda troca de regime é uma reprodução, em maior ou menor escala, de uma invasão
bárbara.
- O crédito dado a qualquer Poder novo permite que ele faça acréscimos importantes ao
maquinário estatal. E a esperança continuada de extirpar todo traço de egoísmo do Poder
terminar por forjar meios mais terríveis de coerção para o próximo egoísmo.
- Portanto, não podemos chamar de ciência política aquilo que não reconhece a dualidade
essencial do Poder : o princípio egoísta não pode ser expurgado!
Capítulo VII – O Caráter Expansionista do Poder
O princípio egoísta: fundamento da vida
- A quimera da eliminação do egoísmo do Poder foi perseguida infatigavelmente por mente
cujo alcance limitado só igualado por suas boas intenções. Sem o princípio egoísta o Poder
careceria da força interna que o permite realizar suas funções.
- É essa quimera que induz o crescimento de um Poder sem limites, um crescimento
estimulado por exterioridades cada vez mais altruísticas, mas cuja motivação real é o desejo
de dominação.
- Na ordem da natureza sempre morre aquilo que não é animado por um amor de si brutal
e intenso. O Poder também só pode manter através do amor intenso e brutal que os
governantes têm por sua autoridade.
- A história rejeita os heróis da poesia, o generoso Carlos, o doce Alexius, e o bonachão
Carlos Eduardo. É como Lutero disse: “Deus não deu uma pluma aos governantes, mas
uma espada”.
Novamente a extensão do ego
- O Poder se alimenta dos prazeres que sua prática concede. E os maiores não são os luxos
que a massa concebe como o maior problema, mas aqueles advindos da extensão do ego,
do prazer intoxicante de sentir que através de uma canetada, de uma ordem, cidades,
rodovias e vidas inteiras se erguem.
- Se o Poder tem uma longa duração, como em uma monarquia, esse prazer se intensifica
até o ponto em que o incumbente se identifica com qualquer ferida recebida pelo corpo
social. Mas um Poder transiente e precário tende a tornar a nação o instrumento de um
destino pessoal, de um egoísmo que não é absorvido pelo todo. A vulgaridade e a
superficialidade passam a dominar os mandatários do Poder.
- O depósito daquele egoísmo sublimado passa a ser a os oficiais permanentes do serviço
públicos, que consideram a máquina pública como uma propriedade sua. E é isso que
preserva o Poder nas sociedades modernas.
- A extensão do ego dos governantes levou a uma das teorias mais absurdas da economia
política. Da tese de que os egoísmos econômicos individuais levam ao bem comum,
chegamos à de que o mesmo deve se aplicar ao egoísmo dos governos. A ciência política
precisa expurgar desses sofismas que estendem indefinidamente conceitos além dos limites
em que são válidos.
Legitimidade do Poder, o “Bem Comum” e o egoísmo saudável
- O Poder legítimo é aquele em que os interesses do Poder e da sociedade chegaram a uma
acomodação devido ao longo convívio.
- Assim que o Poder se concebe exclusivamente como o agente do Bem Comum, ele deve
formar uma imagem clara do que é isso. Mas a mera tentativa desse esboço é suficiente
para mostrar a insuficiência da inteligência humana para tal tarefa.
- É notável que os maiores erros políticos advenham de avaliações errôneas do bem
comum, erros que o egoísmo poderia ter ajudado a corrigir.
- No nosso próprio tempo podemos ver que um egoísmo saudável poderia dissuadir um
Poder ambicioso de perseguições raciais que inevitavelmente produziriam uma indignação
universal e uma imensa coalização de inimigos.
O expansionismo do egoísmo e o crescimento interno do Poder
- O Poder pode prestar imensos serviços à sociedade; mas também pode causar danos
incorrigíveis. O primeiro elemento(altruísmo) serve para dar recursos ao Poder e o outro
tenacidade(egoísmo).
- Todo egoísmo tende naturalmente a expansão. O crescimento externo do Poder tem
gerado inúmeros comentários, mas o interno não. Pouco se fala da visão que o Poder tem
da massa governada como um investimento, um bloco de granito a ser moldado. Essa
visão se manifesta nos crescentes orçamentos e regulamentações.
- A grande justificativa da expansão do Poder foram as guerras, que permitem a ele extrair
cada vez mais da sociedade.
Os poderes intermediários e a aliança do Poder com o individualismo
- É um erro muito grande imaginar que só existe um Poder na sociedade, a autoridade
governamental. Existem inúmeras autoridades sociais, que são ao mesmo tempo seus
sustentáculos e rivais.
- Essas autoridades governamentais não são mais dotadas de uma natureza angélica do que
o Poder.
- É por isso que o crescimento do Poder parece ser para os indivíduos não um contínuo
ataque a liberdade, mas uma libertação de todas as pequenas tiranias a que estavam
submetidos. Eles vêem o avanço do estado como um avanço do indivíduo.
A arbitrariedade do Poder e o desejo de uniformidade
- O poder só pode realizar milagres e grandes obras se tiver algum grau de arbitrariedade. É
o poder de agir acima das regras que caracteriza a beneficência do Poder e que é uma fonte
de esperança para todos os desejos egoístas, mas também para os de justiça e altruísmo.
- No reino da natureza não há nada que possa satisfazer as paixões primitivas do homem.
Ele admira tudo que pode se transformado em uma uniformidade, por estar desconcertado
com a infinita variedade da natureza.
- É um jogo, onde o homem imagina como seria o universo se ele pudesse reconstruí-lo.
Todo intelectual que imagina uma ordem mais simples é um servo do Poder. Pois a ordem
existente é sempre complexa e depende de uma teia incrível de sentimentos, autoridades e
ajustes.
- O pensamento especulativo tende a negligenciar uma multidão de fatores secundários que
compõe uma ordem e por isso leva inevitavelmente a um aumento da autoridade central,
além de sempre perturbar essa mesma autoridade, gerando uma nova que tomará a forma
mais concentrada possível.
O crítico da ordem
- O crítico da ordem está sempre tomado por imagens do belo, do harmonioso, do justo e
revoltado com a realidade social. Foi nas favelas de Nápoles que Campanella, o
dominicano, teve seu sonho da Cidade do Sol, geometricamente perfeita e purificada de
todos os vícios.
- Essas repúblicas fantasiosas produziam encantamento enquanto eram sonhos
irrealizáveis, mas hoje olhamos para elas e lá não encontramos qualquer liberdade.
- O pensamento se regozija com a ordem, pois é inteligência; e concebe a ordem como algo
simples, pois é humano. Mas sempre que tenta realizar essa ordem, ela toma forma
selvagem de um Savonarola ou um Calvino, ou da submissão de Auguste Comte ao Czar
Nicolas e de Diderot a Catarina, a Grande.
- O pensamento, sempre sonhando com uma ordem simples e rígida, é uma eterna
conspiração a favor do Poder.
- Como um egoísta proclamado o Poder encontra a resistência de todos os interesses
sociais particulares que deve harmonizar. Mas se ele se proclama altruísta e portador de um
ideal recebe o sacrifício desses interesses em prol da grande causa maior.
Capítulo VIII – Da Rivalidade Política
Roma x Ocidente – Monismo x Pluralismo
- O desenvolvimento da história ocidental renega uma constante da história: os povos
civilizados sempre tenderam a uma desmilitarização. E o grande motivo está no pluralismo
de nossa civilização em contraste com o monismo do Império Romano, por exemplo.
- A multiplicidade das nações poderosa inaugura uma possibilidade temível: a de que uma
potência competidora aumente sua capacidade de extração de recursos da população,
praticamente forçando que as outras façam o mesmo em defesa própria.
O regime aristocrático
- O regime que mais impõe limites para a guerra é o aristocrático, apesar de seu tom militar.
É que a guerra é restrita a classe dominante e somente a ela. É transição para um exército
do rei que abre as portas para a guerra total.
Rivalidade Internacional x Submissão Interna
- A guerra se alimenta do Poder, e o Poder da guerra.
- Nos tempos modernos vimos as consequências terríveis do bloqueio à Alemanha na
Primeira Guerra Mundial.
- Porque essa rivalidade entre as nações não é controlada por uma rivalidade interna dos
poderes intermediários com o Poder? É simplesmente porque de antemão assumimos a
identidade entre nação e Poder.
Terceira Apresentação
Livro IV – O Estado como uma Revolução Permanente
Capítulo IX – O Poder, destruidor da ordem social.
Revisão: o poder e as autoridades intermediárias
O poder é autoridade e busca mais autoridade; é força e busca mais força. Deparamos-nos
no princípio desse livro com o avanço constante do Estado sobre a sociedade. Esse
panorama também nos fez levantar duas questões: O que tornou possível esse avanço? E
por que esse avanço foi tão pouco notado?
Sabemos que cada avanço da autoridade estatal implica em uma diminuição da liberdade de
cada cidadão e que cada aumento da riqueza pública significa uma redução da renda de
todos. Um perigo tão óbvio deveria ter despertado uma oposição unânime e insuperável.
Por que isso não aconteceu e, pelo contrário, o movimento da história foi interpretado com
uma libertação progressiva do indivíduo?
É que, como já vimos, existem autoridades sociais diferentes do Poder, e o relacionamento
com essas autoridades intermediárias pode afetar mais a vida dos indivíduos, que valorizam
então o rebaixamento de seus senhores acima da sua própria elevação. Somente em uma
sociedade idealmente simples isso não ocorreria! Entre iguais a autoridade sempre tem
muita dificuldade em se levantar!
A natureza niveladora do estado
São os poderosos da sociedade, os primeiros detentores e canalizadores da força e da
inteligência da massa, que se tornam os inimigos naturais e as vítimas predestinadas do
Poder. O estado não é nivelador somente quando vai se tornando democrático; faz parte
de sua natureza o ser. O povo comum, os dependentes e trabalhadores acolhem com
alegria seu papel de destruição secular e, portanto, a sua virulência só torna visível quando
já é muito tarde.
Essa concepção do estado se opõe à visão popular, mas também às de Montesquieu ou
Marx. A nobreza, diz o primeiro, é impelida a defender o trono; o estado, afirma o último,
é um instrumento de dominação de uma classe por outra.
Frente a tais argumentos é preciso entender que o Poder só se associou e defendeu a
aristocracia enquanto isso foi estritamente necessário para sua ascensão. De onde mais o rei
feudal poderia ter tirado um exército e como poderiam os industriais pagar seus tributos se
os trabalhadores abandonassem seus postos? Mesmo nos nossos dias ainda podemos
assistir esse esforço de dar com uma mão o que se retira com a outra: o estado protege o
direito à herança, mas corrói a substância do que é legado, ou seja, ele protege a ordem
existente a partir de seus órgãos, mas continua minando-a através da legislação.
A maquinaria do estado é realmente conservadora; se olhamos o estado como um Ser
constituído é só isso que vemos, mas se vemos a sua dinâmica, seu funcionamento como
um ser vivo, enxergamo-lo como o destruidor das autoridades sociais. Por exemplo: o
estado moderno alimenta uma vasta burocracia; não é visível o declínio correspondente na
qualidade do staff do empregador?
E quanto mais vigoroso um Poder particular, menor a possibilidade de uma investida
aristocrática através da tomada do governo e da máquina estatal. Foi exatamente a situação
contrária de um Poder tímido que Marx e Montesquieu vivenciaram.
A contraofensiva social
A contraofensiva das autoridades sociais não pode ser compreendida se não percebermos
que a destruição das aristocracias existentes implica na criação de uma estatocracia, de um
staff, que terá interesses próprios e uma capacidade de transferir poder do estado para a
sociedade. Além disso, os “ácidos estatocráticos” não consomem todas as forças que
liberam; na Inglaterra, por exemplo, quando a ambição de Henrique VIII se abateu sobre
as autoridades eclesiásticas, a maior parte do espólio dos mosteiros caiu na mão de quem
pudesse toma-lo no momento. E foi esse espólio que fundou as fortunas do nascente
capitalismo inglês.
Jouvenel irá fazer o seguinte nos próximos capítulos: ilustrar através de três exemplos o
desafio que é feito ao Poder pelas células independentes da sociedade; demonstrar o
objetivo final da ofensiva estatocrata e apresenta-la em ação, mostrando os estágios de seu
desenvolvimento e os fatores que a apoiam e a obstaculizam.
A autoridade mediadora na antiguidade
Como já visto, a primeira organização social ampla é o clã. Uma autoridade política mais
elevada age estabelecendo coesão e ordem entre eles, mas durante muito tempo é incapaz
de estender seu poder ate o interior dos clãs. Até mesmo o assassinato de um membro não
levava a uma intervenção do Poder; o rei só se interessava e podia agir, e somente como
pacificador, quando o assassino e a vítima eram membros de clãs diferentes. É notória a
idéia de que o estupro de Lucrécia foi suficiente a para desencadear uma revolução em
Roma.
Mas não será sempre uma tentação substituir essa autoridade mediadora por uma
obediência direta dos membros do clã? O rei pode estar certo de obter o apoio de todos
que desejam escapar do duro domínio do patriarcado. Henry Maine fez do centro de sua
exposição da evolução do Direito Romano a constante redução do pátrio poder.
No Medievo
Vimos então como o Poder político se comporta perante um sistema de clãs que o
antecede; veremos como ele se relaciona com aquele que é seu contemporâneo, como a
aristocracia feudal européia.
Na fundação dos estados europeus encontramos sempre algo semelhante a um ato de
pirataria. A cada homem seu pedaço no butim; e então cada soldado saqueador se
transforma em um barão. Um bárbaro como Clóvis não podia entender o imenso aparato
do Império tardio; ali ele só podia ver um imenso instrumento de sucção da riqueza social e
por isso essa vasta estrutura foi retalhada entre seus companheiros de butim e
consequentemente destruída. E o bárbaro, ou qualquer ser humano, tem a tendência de
confundir uma função com uma propriedade, fenômeno que logo fez com que os senhores
de terra, representantes do rei conquistador, se transformassem em senhores absolutos de
suas regiões.
A célula baronial sequestra os recursos que o rei deveria ter para administrar a vastidão de
terras sob seu braço armado. Logo, a única coisa que o rei pode fazer é tentar retomar esses
recursos e ele o faz criando cidades próximas a essas células, para as quais tentar atrair os
melhores elementos da população. O Poder, sem dúvida, passa a proteger mais e mais os
súditos dos barões, mas isso porque ele se torna também cada vez mais ambicioso.
Um exemplo dessa ambição é o incrível aumento das desvalorizações da moeda. Os reis
franceses, por exemplo, necessitavam de grande quantidade de metais preciosos para a
guerra e maneira que tinham de atrair esses recursos era o de aumentar o preço pago por
eles. Mas como o faziam? Cunhavam moedas com menor peso, mas menor valor nominal
e, portanto, faziam o valor da moeda flutuar com suas necessidades militares. Como a
aristocracia vivia dos tributos fixos pagos pelos lavradores, cada rodada de desvalorização
significava um empobrecimento dela e um enriquecimento dos últimos. O resultado foi que
ao fim da monarquia os nobres, apesar de possuírem domínios enormes, só conseguiam
extrair deles uma pequena renda e foram obrigados a mendigar pensões ao Poder.
A aristocracia capitalista
Destruída a aristocracia feudal, o estado moderno traz junto consigo o nascimento de uma
aristocracia capitalista. O Poder vê com bons olhos a ascensão da riqueza enquanto ainda
está em luta com a nobreza; os reis são os melhores amigos dos mercadores, banqueiros e
manufatureiros. E é importante lembrar que, por exemplo, o dono de navios não é o chefe
de uma gangue de marinheiros em disputa com o Poder; no momento necessário ele
poderá inclusive ceder seus recursos para a guerra e outras incursões do Poder.
Mas a destruição de toda eminência faz com que no fim desse processo a dominação
financeira reine sozinha, chegando inclusive a criar cidades – fábrica onde o industrial era a
fonte da lei. E como o Poder tem inveja de qualquer outro comando, mesmo que pequeno,
ele não poderia tolerar essa independência. Se não conhecêssemos as agressões anteriores
às aristocracias poderíamos crer que essa nova guerra seja característica do estado socialista
moderno. Todos os governos modernos selaram uma aliança natural com os trabalhadores
súditos desse novo poder financeiro.
Era certo que os anticapitalistas iriam ocupar os cargos públicos do estado burguês, assim
como os opositores do feudalismo ocuparam-nos no estado monárquico. A nacionalização
da indústria não difere em nada do confisco da riqueza dos monastérios por Henrique
VIII. E essa nova guerra é vencida com ajuda de um novo tipo de “feudo”: os sindicatos.
Mas o que o Poder faz com essa nova autoridade social? Ou a subjuga completamente,
como na Rússia, ou então permite que o governo se torne uma propriedade desses feudos
sindicais.
Devemos agora nos perguntar: onde leve essa guerra incessante que o Poder move contra
todas as autoridades que a sociedade lança contra ele?
“Onde isso irá terminar? Na destruição de todo comando para o benefício de um só – o
estado. Na liberdade absoluta do homem perante a família e qualquer autoridade social,
uma liberdade que tem como preço a completa submissão ao estado. Na igualdade
completa entre todos os cidadãos, paga com o aviltamento igualitário perante o senhor
absoluto – o estado. No desaparecimento de toda limitação que não emane do estado, e na
negação de qualquer superioridade que não seja aprovada pelo estado. Em uma palavra,
termina na atomização da sociedade, na ruptura de todo laço privado ligando homem a
homem, cujo único laço é agora a servidão comum ao estado. Os extremos do
individualismo e do socialismo se encontram: esse era o seu curso predestinado.”
Essa ordenação da vida para a qual todo Poder tende, pode excluir a liberdade, mas
devemos lembrar que em muitos momentos os homens só desejam viver tranquilamente,
mesmo que sob uma tutela completa. Mas, ao contrário, vemos no Império Romano que
esse Poder unificado pode se tornar muito seguro e garantido, a ponto de aliviar seu peso
sobre a sociedade e garantir alguma medida de liberdade pessoal.
Algo muito diferente se dá quando a força do Poder está inversamente relacionada com sua
extensão, como é o caso hoje. Nesse tipo de sociedade uma autoridade imperial também
prevalecerá inevitavelmente, mas ele tomará uma natureza igualitária e anti-libertária,
chegando a algo muito semelhante ao Egito Antigo descrito por Jacques Pirenne.
A onipotência burocrática contra o Poder
O desenvolvimento do estado termina, portanto, na destruição da hierarquia social. Mas
isso significa que não existem mais pessoas privilegiadas? É claro que não, pois a
onipotência burocrática transforma os funcionários do estado em novas eminências.
Sobre esse fenômeno temos o testemunho do historiador Michael Rostovtzev:
“As reformas de Diocleciano e Constantino, ao implementarem uma política de espoliação
sistemática dos lucros do Estado, tornaram toda atividade produtiva impossível. A razão
não é que não existissem mais grandes fortunas: pelo contrário, sua constituição se tornou
ainda mais fácil. Mas a base dessa riqueza não era mais a energia criativa, ou a descoberta e
disponibilização de novas fontes de riqueza, ou a melhoria e desenvolvimento da
agricultura, indústria e comércio. Era , ao contrário, a exploração astuciosa das posições
privilegiadas no Estado, usadas para despojar o povo e o Estado. Os oficiais, grandes e
pequenos, se tornaram ricos através da fraude e da corrupção”
Mas logo que essas novas células independentes se compõe, o Poder retoma sua trajetória
de expansão e destruição. Será que esse processo tem algum sentido último?
Aparentemente não; a continuidade dele é que dá à vida social seu ritmo próprio. No auge
da evolução do Estado e do igualitarismo voltamos a escutar um questionamento sobre as
vantagens e desvantagens do estado despótico sobre uma sociedade de autoridades
independentes e vice versa. Essa pergunta não admite uma resposta exata.
A verdade é que a condição de um súdito depende muito menos da natureza de seu senhor
em particular do que da rivalidade existente entre todos os senhores. Trabalhadores
esfolados por um empregador envolvido em uma imensa rivalidade internacional podem
ganhar muito ao adentrarem o serviço de um estado pacífico, mas se houver guerra eles
irão certamente relembrar os bons e velhos tempos sob a batuta do mais duro empregador.
Capítulo X – O Poder e o Povo Comum
Absolutismo e Igualdade
Como já visto anteriormente, existe uma aliança natural entre a paixão pelo absolutismo e a
paixão pela igualdade. E a aristocracia, sempre e em qualquer lugar, se opõe à ascensão de
um Poder independente da sociedade, dotado de uma administração permanente, de um
exército e do poder de tributação. A história da França testemunha eloquentemente esse
embate.
A formação do estado francês
Era realmente um Poder aquilo que Hugo Capeto tomou para si em 987 d.C? Parecia-se
muito mais com a presidência de um grupo de repúblicas aristocráticas fracamente unidas,
ou para melhor dizer, uma federação de barões. O rei não podia governar sem os barões, já
que eram eles que organizavam a defesa do território contra os bárbaros, tendo a riqueza e
a energia do país como sua propriedade privada.
Plebeus a serviço do Poder
O Poder se desenvolveu lentamente fazendo com que plebeus ocupassem posições antes
estritamente reservadas aos nobres nos tribunais e assembleias. Os advogados plebeus que
se sentavam no conselho do rei se inspiravam no Direito Romano, sempre favorável a uma
autoridade central.
Assim que os suíços reviveram a formação grega de batalha conhecida como “porco-
espinho”, as tropas regulares se viram aptas a derrotar a cavalaria, abrindo espaço para
monarquias absolutas sustentadas em mercenários plebeus. Nas outras áreas, como nas
finanças, a preferência pelos plebeus se estabeleceu ainda mais cedo.
Isso contradiz frontalmente a crença popular de que uma monarquia emprega os nobres e
exclui o povo comum. Vemos que o exato oposto se dá. O Poder europeu mais total
conhecido durante os dias do Ancién Regime era o dos turcos otomanos. E onde seu
grande senhor buscava soldados fiéis e servidores? Seus janissários foram recrutados entre
os súditos cristãos!
E que fenômeno é ascensão da burocracia plebéia no resto da Europa! O amor do cargo
ataca e destrói qualquer resquício aristocrático, mesmo quando sua preservação seria do
maior interesse da sociedade.
Augustin Thierry tem o seguinte a dizer:
“Por um período de seis séculos, do séc.12 até o 18, as histórias do Terceiro Estado e da
realeza estiveram inextricavelmente ligadas.... da ascensão de Luís, o Gordo até a morte de
Luís XIV, cada passo decisivo no avanço das classes plebéias até a liberdade, bem estar ,
iluminação e importância social, corresponde, na lista dos reinados, ao nome de um grande
rei ou um grande ministro”
E o Duque de Saint Simon tinha o seguinte a dizer do Cardeal Mazarin, um desses grandes
ministros:
“Um estrangeiro vindo dos resíduos do povo, um homem sem responsabilidade a sem
qualquer outro deus que não sua própria grandeza e poder, não tem qualquer cuidado com
a nação que ele governa senão naquilo que ele mesmo é afetado. Ele despreza suas leis, seu
gênio, seus interesses; desrespeita suas regras e formas; ele só pensa em subjugar e
confundir a todos, em urdir que todos sejam plebeus”
A resistência aristocrática
É muito difícil construir um Poder agressivo com aristocratas. O cuidado com os interesses
familiares, a solidariedade de classe, as influências educacionais, tudo contribui para
dissuadi-los de entregar a independência e fortuna de seus pares ao estado. A resistência é,
portanto, um função aristocrática.
De Bonald não estava errado quando disse:
“A nobreza preserva os súditos da opressão simplesmente por sua existência. Um poder é
despótico quando pode alterar, destruir e depor a seu bel-prazer; um Poder que pode depor
a seu bel prazer é um Poder ilimitado. A Nobreza determina um limite para o Poder, pois a
monarquia não pode obliterar uma nobreza que vive o seu lado, que é a filha, como ela
mesma, da constituição e que é , de novo com ela mesma, ligada à sociedade por laços
indissolúveis....”
Aristocracia na França e na Inglaterra
A grande diferença entre as aristocracias da França e da Inglaterra reside na maneira como
conduziram essa resistência. A reação na França foi violenta, desordenada e brutal,
impedindo que o Terceiro Estado visse na aristocracia uma defesa contra a futura
dominação estatal. Mesmo quando começaram atuando conjuntamente, como na Fronda,
logo a aristocracia perdia esse apoio por ser incapaz de dar a sua revolta uma aparência de
defesa do interesse geral. A aristocracia sabia muito bem como trabalhar unida; e o
principal motivo é o fato de que lá o Parlamento permaneceu um órgão seu, em vez de ser
entregue a advogados plebeus. Eles conseguiram transmitir aos camponeses livres o
sentimento de que eram também aristocratas em pequena escala, com interesses ligados aos
nobres, enquanto na França esses mesmos camponeses consideravam os nobres como
pequenos tiranos, às vezes muito piores do que o grande.
Além disso, a aristocracia inglesa sempre esteve aberta a inclusão de novos elementos,
vindos principalmente dos grandes negócios. Era simplesmente uma classe de grandes
proprietários, que controlava a economia ao ponto de impedir qualquer tentativa de
desvalorização monetária.
Já na França os aristocratas consideravam que a única forma de reconquistar o terreno
perdido com Mazarin era invadir os cargos estatais, expulsando os plebeus. Esse projeto
insensato, alimentado pela idéias utópicas de Fénelon, foi levado a frente pelo próprio
Duque da Burgúndia. Ele já começa por esquecer que existia uma nova aristocracia: a
nobreza de toga. Também errou ao acreditar que a função da aristocracia era governar e
não servir com um limite ao governo. A reação de 1715 realmente enfraqueceu o Poder,
mas quem se aproveitou disso foi principalmente a nobreza de toga, infinitamente melhor
qualificada do que a nobreza frívola e enfraquecida.
E a investida da nobreza sobre os cargos estatais acabou levando os plebeus que os
ocupavam para o lado jacobino.
Capítulo XI – O Poder e as Crenças
Os costumes seculares e a tribo primitiva
O comportamento dos indivíduos é regido por um “diretor invisível” que determina suas
ações desde dentro e não por forças externas. Os antigos demonstravam reconhecer isso na
importância que davam aos costumes seculares de um povo para um bom governo. E é por
isso que sempre mantinham os estrangeiros afastados.
Esses costumes seculares agem como uma forte limitação ao Poder, pois ele também
dificilmente pode romper com esse fator permanente. A proposição de que “a superstição
é um apoio do despotismo”, tão cara ao século 18, deve ser melhor examinada.
Os pensadores racionalistas acreditavam que o homem primitivo era um agente
completamente livre que só seguia seus caprichos e vontades. Logo, todo proibição e regra
de conduta deve ter sua origem no estado e na religião. Hoje conhecemos o ridículo dessa
posição: tudo nos selvagens é tabu e conformismo. A legislação, a livre disposição das
regras da sociedade, é um fruto da modernidade.
Entre os esquimós da Groelândia, por exemplo, a mera provocação sarcástica ao homem
que ofende a ordem pública é suficiente para leva-lo ao exílio nas montanhas durante um
longo tempo.
As grandes sociedades e o livro sagrado
É a fusão de diversas comunidades com costumes diferentes - um fenômeno recente na
história da humanidade - que produz um novo tipo de realidade social. Nessa marcha para
a civilização todo povo teve seu livro divino, um sistema de leis e imagens que abrem para
ele novos caminhos de desenvolvimento frutíferos. No caso dos grandes povos históricos
esses livros são tão admiráveis, que mesmo um homem de pouca religião não poderá deixar
de ver ali a mão da Providência.
É esse encaixe nas necessidades das grandes sociedades que fez com que alguns
concebessem que esses livros foram produzidos por homens sábios que tinham exatamente
esse fim em mente. É esse erro que inaugura a pressuposição de que o Poder é o autor da
lei, quando, pelo contrário, ele está desde o princípio submetido a ela. Maine observa que
nas antigas escrituras indianas não havia qualquer tipo de punição delegada ao estado; a
punição era obra de Deus ,da própria alma individual arrependida e a da sociedade que o
expulsava devido ao temor de Deus. O mito de Édipo expressa essa situação com uma
força incomparável. Na esfera da lei, Deus é o legislador, o juiz e o administrador.
Separação entre os dois tipos de leis
Era somente na última função que o homem tinha alguma participação a princípio. Um
Poder que adquire as outras capacidades é muito diferente daquele que encontra uma lei
definida por uma autoridade sobrenatural. Como vemos no Cristianismo e no Islamismo, é
somente o próprio Deus que pode corrigir uma lei corrompida. Todas as grandes
civilizações foram constituídas sobre uma lei divina dada à sociedade e isso se deu até
mesmo com os romanos e gregos, alguns dos povos menos religiosos da história. Ihering
demonstra que as ordenações civis e as instituições de Roma eram a exata reprodução de
ordenações antigas e instituições que tinham um caráter sagrado.
Há originalmente, portanto, dois tipos de leis: os comandos de Deus e as pequenas
regulações que os homens criam para disciplinar a infinita variedade de situações concretas
que a complexidade crescente da sociedade gera. Esse tipo de legislação é somente um tipo
de jurisprudência, de casuística a partir da Lei maior.
Mas o crescimento da sociedade coloca cada vez mais essas duas esferas em disputa,
gerando uma distinção mais radical entre uma lei humana e outra divina. É preciso
enfatizar que a lei humana se torna preponderante principalmente através de uma
deficiência do senso religioso, uma limitação dos deuses ocidentais a um círculo muito
limitado de interesses. Sendo muito pouco místicos, os romanos foram o primeiro povo a
efetuar a cisão completa.
A partir daí podemos distinguir entre dois tipos de leis: uma lei objetiva, composta de duras
normas de conduta de caráter religioso e uma lei utilitária, advinda dos crescentes conflitos
entre os particulares. A esfera dessas duas leis varia com o caráter dos deuses. Se forem
egoístas e sedentos de sacrifícios, a esfera da pura lei humana cresce muito. Quanto mais
exaltada e justa a imagem dos deuses ou de Deus, mais a lei humana deverá ser subjugada
pelos princípios gerais da realidade, como vemos um São Tomás de Aquino afirmar.
Abundam os relatos medievais onde reis se arrependeram de ofensas à lei maior
simplesmente devido a um grande peso na consciência - muito mais do que os
historiadores racionalistas admitem.
A lei Divina não deve ser confundida com o costume, mas muitas vezes eles acabam
misturados na prática. Os comportamentos tradicionais, mesmo sem conteúdo religioso,
acabam incorporados na religião. Essa associação constante dará ao “corpus juris” um
nítido caráter de disciplina social ao Poder.
As assembleias populares, o Poder e a Revolução Racionalista
A idéia de um absolutismo primitivo, onde o rei e magistrados criavam novas regras a todo
momento, é, portanto, um puro mito. Também não é verdade que as assembleias
populares fossem um limite à liberdade dos governantes: elas sempre foram convocadas,
pelo contrário, para permitir um aumento dessa liberdade; mesmo em 1789 os Estados-
gerais foram convocados pelo Poder para quebrar resistências a reformas consideradas
necessárias. É das instituições representativas que surge a idéia de se colocar em questão a
todo momento as leis e as condutas dos homens e seu triunfo se dá com a crise racionalista
que , mais dia menos dia, acontece em toda civilização.
O contato frequente com povos diferentes passa do desprezo, do ridículo, para a atenção e
a admiração, fazendo despertar a idéia nas mentes inferiores de que o justo e o injusto são
meramente questões de geografia. Em mentes superiores, como os missionários Jesuítas na
China, esse contato gera a elevação até um patamar superior onde as leis se encontram, mas
infelizmente a sociedade dispõe de poucos indivíduos dessa natureza.
O trabalho dos filósofos superficiais consiste em destruir a noção de qualquer elemento de
fixidez, de uma lei natural e uma moral objetiva. E ainda nos conclamam a aceitar a
narrativa de que a “superstição” era um apoio do trono e a investida racionalista um
enfraquecimento dele.
“Podemos deixar de notar a coincidência entre a crise das crenças entre o século 16 e 18 e a
elevação das monarquias absolutistas durante o mesmo período? Não está claro que elas
devem essa elevação a essa quebra das crenças? Não é essa a conclusão: de que o grande
período do racionalismo também foi o dos déspotas iluminados e livres-pensadores, todos
certos do caráter convencional de todas as instituições, todos persuadidos de que poderiam
e deveriam transformar os costumes de seu povo para torna-los condizentes com a razão,
todos estendendo prodigiosamente suas burocracias para o avanço de seus desígnios, e sua
polícia para esmagar a oposição ? “
A destruição do que os racionalistas chamam de “superstição” é maior conquista do Poder.
Todas as limitações que eles inventaram, como a religião natural de Rousseau e a ética
natural de Voltaire, caíram por terra rapidamente.
“É claro que elas estavam destinadas a cair. Pois , assim que o homem é declarado a
“medida de todas as coisas”, não há mais o verdadeiro , o bom e o justo, mas somente
opiniões de igual validade cujo confronto só pode ser resolvido pela força militar e judicial;
e cada força entroniza em sua hora do triunfo um verdadeiro, um belo e um justo que irá
durar tanto quanto ela”
Livro V – A face do Poder se altera, mas não a sua natureza.
Capítulo XII – Sobre as Revoluções
Não há liberdade nas revoluções
Ao olhar para as revoluções nós sempre prestamos atenção aos gritos de “Liberdade” e não
percebemos que ainda não existiu uma revolução sequer que redundasse em um aumento
do poder. Antes do dilúvio reinavam Carlos I, Luís XVI e Nicolai II, depois Cromwell,
Napoleão e Stálin.
Esses tiranos não consequências fortuitas da tempestade revolucionária, mas seu fim
predestinado. O ciclo começa com a derrubada de um Poder inadequado à mercê da
sociedade e termina com a consolidação de um ainda mais absoluto.
A Revolução Inglesa começou levantando a bandeira dos direitos de propriedade aviltados,
em uma resistência contra uma pequena tributação, mas logo impôs um tributo sobre a
terra dez vezes mais pesado, sem contar o confisco sistemático da Igreja e das propriedades
privadas. A Revolução Francesa liberou os camponeses das obrigações feudais, mas os
enviou ao campo de batalha com colunas móveis que matavam os refratários. Da
Revolução Russa nem precisamos falar!
Abandonemos a lenda da libertação dos opressores. A população se levantou contra um
Luís XIV? Não, mas contra o bondoso Luís XVI, que não permitiu que a sua guarda suíça
atirasse contra as hordas desgovernadas. Contra um Pedro, o Grande? Não, mas sim contra
um Nicolai II, que não ousou vingar até mesmo o seu amado Rasputin. Contra Henrique
VIII? Não, mas sim contra Carlos I, que vivia modestamente e sem ocasionar perigo a uma
barata. Esses reis não caíram devido à sua tirania, mas à fraqueza. Os povos não erguem
matadouros para punir o despotismo, mas como uma punição biológica da fraqueza. E é
verdade que o Poder amolecido é um inimigo do Povo: ele permite que qualquer
autoridade existente se aproprie da riqueza e explore a sociedade.
E quanto mais longe for a aniquilação da aristocracia, maior a tirania a ser implementada.
É isso que explica fundamentalmente as diferença entre a Revolução na Inglaterra, França e
Rússia.
Identidade entre monarquia e democracia
Há uma identidade profunda entre o estado democrático e o monárquico. A função do
primeiro é destruir as últimas barreiras sociais que obstaculizavam os projetos do último.
Os oficiais da monarquia francesa, por exemplo, tinham somente uma política constante: a
de Richelieu e Mazarin; que consistia na luta, já iniciada por Luís XI, contra os Habsburgo.
E qual foi o resultado da Revolução sobre esta política? A guerra contra a Áustria. Contra a
Prússia também, mas logo a França estava buscando uma aliança com ela.
O que enfraqueceu formidavelmente o Poder antes da Revolução foi a incrível coalizão da
nobreza de toga com a de berço. Ela se encarnou no Parlamento e trouxe junto consigo a
nobreza, o clero, as províncias: o único partido do rei era o povo.
Em 1788 a administração se encontrava limitada por todos os lados e o trabalho da
Revolução seria o de libertá-la e restaurar a monarquia absoluta sem o rei. Desde o
princípio a Assembleia Constituinte buscou destruir privilégios que nenhum rei havia
ousado tocar.
É como disse Mirabeau:
“A idéia de transformar todos os cidadãos em uma só classe agradaria Richelieu, pois uma
igualdade de nessa natureza facilita o trabalho do Poder”
Foi Robespierre que exclamou:
“Quanto ao equilíbrio dos poderes, nos nós deixamos enganar nos passado por seu
prestígio, mas porque levar em conta agora instrumentos que foram desenhados para
equilibrar a autoridade de tiranos? É a tirania que deve ser extirpada: o objetivo do povo
não dever ser o de encontrar algum espaço para respirar entre as brigas de seus senhores,
mas o de tomarem em suas mãos a garantia de seus direitos”
Em outras palavras: Quando o Poder era controlado por outros, nos favorecíamos sua
limitação, mas agora que é nosso, ele nunca pode ser grande o suficiente.
O geometrismo, Napoleão e os Direitos Individuais
A verdadeira encarnação desse novo Poder foi o abade Sieyés, inspirador das seguintes
palavras de Napoleão: “A Revolução acabou; seus princípios estão fixados na minha
pessoa. O governo em exercício é o representante do povo soberano. Não pode existir
qualquer oposição ao soberano”
A criação de um Napoleão foi o objetivo da Revolução desde o dia em que ambição do
Duque de Orléans e a vaidade de Lafayette a colocaram em marcha. A ditadura dos
prefeitos, um traço constante da sociedade francesa daí por diante, foi obra do pensamento
geométrico de Sieyés, que concebeu a idéia de dividir o país em vinte e quatro retângulos
idênticos, divididos em nove comunas idênticas, que seriam por sua vez subdividas em
nove cantões idênticos. O plano não se realizou, mas foi a inspiração dos criadores dos
departamentos, base da ditadura napoleônica.
E como ficaram os direitos individuais depois da Revolução? A sua destruição é evidente
na vida judiciária do país. O judiciário do ancién regime era subordinado a um Parlamento;
um ente cioso de sua liberdade e guardião das virtudes aristocráticas romanas. Tocqueville
foi testemunha da independência desse judiciário, capaz de afrontar o próprio rei.
Comparado a isso, o que podemos dizer dos tribunais do terror revolucionário, sem
qualquer possibilidade de defesa dos acusados?
Em 1790, a Assembléia emitiu uma instrução transformando qualquer ato judiciário que
impedisse a administração inconstitucional e sem efeito. Essa subordinação do Judiciário
ao governo foi uma condição que a Revolução legou à sociedade moderna, onde ela ainda
atua.
Os abusos da Revolução Russa são tantos e tão manifestos que não precisam nem ser
mencionados. Em última instância as Revoluções não feitas para o homem, mas para o
Poder.
Capítulo XIII – Imperium e Democracia
Democracia: teoria x prática
O que chamamos de Democracia é a conquista da Cidade do Comando construída pela
monarquia por novos donos, mas devemos lembrar que as associações emocionais desse
regime com a lei e a liberdade indicam que algo diferente e mais amplo do que uma mera
mudança de soberano era buscado. E o objetivo central era a domesticação completa do
Minotauro, tornando obsoletas as instituições sociais e religiosas que acorrentavam o
monstro.
A história do da doutrina democrática fornece um exemplo marcante de um sistema
intelectual derrotado pelas influências sociais. Concebida como uma fundação para a
liberdade, ela abre o caminho para a tirania.
Essa doutrina começa afirmando a identidade entre a liberdade humana e a estrita
observância a um sistema de leis. É preciso então definir de onde a lei vem e quem a
enunciará. Como não podiam alegar a fixidez divina da lei medieval, esses “libertários”
tiveram que considerar que a lei era “feita”. Há de existir uma autoridade legislativa. Mas
como entender o que é isso? A solução foi buscada, como indicado por Montesquieu, na
cultura gótica, onde a assembléia dos nobres detinha um imenso poder perante o rei. Nesse
sistema o rei representava a nação como um todo e a assembléia os interesses particulares
articulados. O que escapou a todos foi a diferença entre o Parlamento moderno, dotado de
capacidade legislativa e representante de todos, e as assembleias góticas que eram uma mera
superposição de diferentes interesses. O Parlamento passa a ser, portanto, o sucessor do rei
na representação do interesse geral. E no fim o princípio de legalidade iria justificar uma
liberdade total para uma aristocracia parlamentar, que se torna o novo “príncipe”. Isso
elimina a liberdade de todo o resto da sociedade, além acabar com a segurança e
estabilidade das leis devido à guerra dos partidos.
Era isso que Rousseau queria evitar a todo curso, já que havia presenciado essas
consequências terríveis em sua cidade natal, Genebra. E sua solução era o método romano
de legislar: o povo devia meramente ratificar ou vetar a lei proposta pelo Executivo. Mas
tudo o que o mundo moderno preservou de Rousseau foi a idéia mágica da soberania
popular, separada da assembleia ratificadora. Mas como pode uma lei que varia com a
mudança dos volúveis sentimentos populares ser o fundamento da liberdade?
Contraste entre França, Eua e Inglaterra e o Imperium parlamentar
O destino de uma nação depois que essa idéia for afirmada dependerá do desenvolvimento
do Minotauro até o momento. Existe um claro contraste entre Inglaterra, Eua e França.
A evolução do século 19, continuada no século 20, nos apresenta três fatos importante em
relação ao imperium:
1) A sua conquista pelo parlamento.
2) A tomada do parlamento pelos plebeus.
3) A aceitação geral da tese democrática de que o povo deve governar.
Assim constituído o Parlamento se tornou o novo instrumento de ascensão social dos
plebeus, como antes o era o serviço ao rei. Mas durante muito tempo a escolha dos
representantes pelo povo foi surpreendentemente boa: eles escolhiam os defensores dos
interesses locais contra o Poder. Foi posteriormente que o caráter restritivo da instituição
foi confrontado pelo absolutismo da soberania popular, estimulado pela própria
magistratura e pelo corpo legislativo. Eles não viam que com isso renunciavam a qualquer
noção de império da lei.
Capítulo XIV – A democracia totalitária
O princípio libertário
A liberdade concreta sempre foi fruto de uma luta aguerrida de certos homens e era
garantida por privilégios extraídos da autoridade. O princípio libertário é, por definição,
indiferente a qualquer forma de Poder. O que importa é o reconhecimento de que em todo
homem existe um orgulho e uma dignidade que no momento só um grupo de aristocratas é
capaz de defender e sustentar.
A concentração sobre a forma de governo é um erro antevisto por Montesquieu:
“É uma marca da democracia que ela apareça a todos como a realização dos desejos do
povo, e por isso homens supuseram que os governos democrático eram o habitat natural
da liberdade: eles confundiram o poder do povo com a liberdade do povo”
O princípio libertário exige vigilância constante e nunca pode repousar em um determinado
arranjo de governo. E o maior perigo oferecido pela modernidade é idéia do todo social
encarnado na democracia, uma idéia alienígena no Ocidente e um recuo até certas
concepções gregas. Mas a cidade-estado grega estava muito mais próxima de ser um todo
verdadeiro através da educação do que as formações políticas modernas. Esse “todo”
moderno só deseja destruir todo formação e tradição particular existente. Tocqueville foi
um espectador aterrorizado dessa situação:
“As antigas autoridades locais desaparecem sem reavivamento ou substituição e em todos
os lugares o governo central as sucede na direção dos assuntos. A Alemanha toda, até
mesmo toda a Europa, apresenta a mesma imagem. Por todos os lados os homens estão
abandonando as a liberdade da Idade Média, não para entrar em uma versão moderna da
liberdade, mas para retornar ao despotismo antigo; pois a centralização não é nada mais do
que uma versão atualizada da administração vista no Império Romano”.
As formações menores
A hostilidade dos governos democráticos à formação de comunidades menores é
inconsistente com a alegação de ser um governo constituído pelo povo, já que um governo
que obedece a essa descrição tem muito mais chances de sucesso em pequenas formações.
A democracia moderna só tem ligação com o povo através do tênue fio das eleições gerais.
Prova do totalitarismo democrático é a conotação que a palavra “interesse particular”
ganhou nesses regimes. A submissão dessas dignidades particulares ao interesse geral é uma
grande derrota da liberdade e da sociedade. O corporativismo que aqui e acolá pulula nas
democracias tem seus males, mas é um fenômeno natural, um corretivo necessário à
concepção totalitária do interesse geral. Mas esse corporativismo tende a enfraquecer o
Poder e gerar uma revolta que irá inevitavelmente lançar o Poder nas mãos de um tirano
que não aceitará esse tipo de manipulação. A fraqueza do Poder Democrático, aliada a sua
extensão, leva inevitavelmente ao autoritarismo.
Das grandes assembléias até o triunfo do Partido
É loucura imaginar que as assembleias modernas podem atuar de forma competente como
o antigo Senado romano. Eles não são compostas a partir de uma seleção cuidadosa, de
uma longa experiência e da estabilidade característica daquela instituição romana. E o
fundamento dessas qualidades era o lazer cultivado que os senadores podiam desfrutar; só
quem tinha tempo para pensar nos assuntos públicos poderia ser considerado um cidadão.
Vemos até mesmo em Rousseau e Sieyès uma nostalgia pela facilidade de desenvolvimento
de uma opinião iluminada que a escravidão permitia ao homem livre. Uma forma de emular
essa possibilidade nas repúblicas é o voto restrito a certas parcelas da população, livres e
dotadas de propriedade e capacidade de defesa, mas, como sabemos, esse sistema nunca
resistiu aos avanços da democracia totalitária.
Enquanto o povo ainda se preocupa com as qualidades pessoais dos representantes o voto
majoritário ainda pode preservar uma elite de personalidades independentes como
representantes. Mas o avanço do grupo, do partido, exigindo fidelidade total, elimina
rapidamente essas personalidades, causando a degradação brutal da qualidade das
assembleias.
A máquina política é provavelmente a maior descoberta do século 19; e o crédito deve ser
dado a um americano, Martin Van Buren. Elas rapidamente asseguraram para si mesmas a
seleção dos candidatos, sempre feita a sua própria imagem. E elas não escolhem homens
como um Jefferson ou um Catão.
Estudo da máquina política: M. Ostrogorski – apelo constante às emoções, palavras de
ordem.
O avanço dos partidos expulsa qualquer autoridade real dos parlamentos e transforma os
debates em um circo para macacos. E a competição dessas ridículas máquinas partidárias
sempre termina na ditadura de um só partido. Os cidadãos amam esse partido forte, e só
percebem a destruição da liberdade quando já é muito tarde.
Recapitulemos o processo:
No começo o objetivo era a liberdade e seu sustentáculo o império da lei. Esse sistema só
podia durar enquanto houvesse uma veneração religiosa pela lei. Assim que a lei toma o
caráter de regulações momentâneas, ela se torna o alvo das disputas políticas. A partir daí
todos os interesses particulares buscam manipular a lei a seu favor, transformando-as na
expressão da paixão do momento. Como a única maneira de se controlar o legislativo agora
é o executivo, os partidos se organizam para a tomada dele e crescem ininterruptamente em
coesão e violência. Essas facções são estados dentro do estado, e a cada mudança a
sociedade passa por verdadeiros terremotos em sua estrutura. No fim a população passa a
desprezar essa anarquia e encontra uma consolação inglória na paz do despotismo.
Quarta Apresentação
Livro VI – Poder Ilimitado ou Limitado?
Capítulo XV – O Poder Limitado
Os dois aspectos do Poder
O poder tem sempre dois aspectos:
- Ele é uma necessidade social, devido à ordem que impõe e a harmonia que cria.
Permitindo ao homem uma vida melhor. É esse aspecto que levou autores como Hobbes,
Ihering, Kant e Hegel a acreditar que tudo que pudesse salvaguardar a autoridade estatal era
bom.
-É também uma ameaça social, que busca extrair as forças da sociedade para seus próprios
fins.
É uma condição básica de toda ciência política ver o Poder sob esses dois ângulos.
A doutrina da limitação do Poder
A doutrina da limitação do Poder é uma prova de que como as paixões envolvidas no tema
podem impedir o surgimento de uma verdadeira ciência política. E para entender a origem
dessa doutrina, quase um truísmo no século 19, precisamos retornar à Idade Média. O que
encontramos lá é um complexo de autoridades que se limitavam umas as outras. Mesmo o
rei vivia sob a atmosfera de uma autoridade divina que o limitava absolutamente.
Já vimos como o Poder cresceu destruindo essas autoridades, assumindo até mesmo um
poder legislativo. Nos séculos 17 e 18 o estado já controlava a situação, mas esse
crescimento do Poder o torna mais instável, já que ele passa a incomodar mais e mais
interesses.
Pesos e contrapesos
Essa instabilidade produz uma luta cada vez mais violenta pelo Estado, que leva
naturalmente alguns a pensar que o correto seria acabar com a possibilidade de exercício de
um Poder tão vasto de forma exclusiva. Foram os juristas do século 18, capitaneados por
John Locke, que estabeleceram uma doutrina do direito natural com esse fim. A solução
estaria na criação de uma legislação de caráter universal, distante de qualquer interesse
particular manipulável. Montesquieu demonstrou a importâncias dos pesos e contrapesos,
da divisão do Poder.
Essa é um objetivo muito difícil de atingir em um país no qual a autoridade pública
depende de uma máquina centralizada, como é o caso nos estados europeus modernos. Já
vimos que o mesmo não se dava nas repúblicas antigas. Mas os cientistas políticos do
século 18 estavam familiarizados com a história romana desde a infância e consideravam a
limitação das autoridades algo natural.
O que é um contrapeso? Claramente deve ser uma autoridade social, como a aristocracia
inglesa do tempo de Montesquieu.
Montesquieu viveu em um momento de pausa nos ataques da monarquia a essas
autoridades e aproveitou-o para denunciar o perigo deles. Somente a guerra entre várias
autoridades pode criar um equilíbrio social saudável.
Outro elemento fundamental era o desenvolvimento do judiciário através da venda dos
cargos, que se tornavam independentes do estado. Restava espalhar por todos os lados a
ênfase na lei natural, no costume e nos contratos que caracterizava o judiciário inglês.
O Poder “bom”
Os autores do século 18 não se preocuparam com a formação do Poder e do direito: já
tinham uma solução na hereditariedade e em uma origem transcendental. Foi aí que o
ocorreu o grande terremoto iniciado por Rousseau e Mably, a soberania popular e sua
triunfante Revolução. Basta dizer que na Convenção Montesquieu era abertamente
ridicularizado. O Poder que crescia era “bom” e, portanto, não precisava ser limitado; o
problema fundamental era a origem do Poder. E assim o absolutismo foi concretizado por
aqueles que professaram destruí-lo.
O fim da lei natural
A Revolução foi acompanhada por aquilo que Tocqueville chama de “um desejo universal
e apaixonado por cargos públicos”, que eram uma “ indústria não –produtiva , que
perturba o país sem fertilizá-lo”. Esse crescimento é natural na sociedade moderna: a
posição de súdito é muito frágil nela e adentrar a máquina é o único modo efetivo de
proteção. A Revolução ainda levou as idéias de Hobbes a cabo: a lei natural foi destruída e
o estado se tornou a fonte geradora das leis.
Não há mais autoridade que não a exercida pelo Estado, nem lei fora da lei formulada pelo
Estado.
Montesquieu já tinha previsto esse erro da confusão do Poder do povo com sua liberdade.
E nos regimes revolucionários até mesmo o Poder do povo era uma ficção que escondia a
tirania parlamentar.
A Restauração
Ao fim desse processo chegamos à Restauração; seus pensadores receberam a lição de vinte
e cinco anos de despotismo e arbitrariedade e acabaram por redescobrir o princípio da
limitação do Poder. Segundo Benjamin Constant: “há armas que são muito pesadas para as
mãos do homem”.
Mas como colocar isso em prática? Como foi que a onipotência se ergueu? Destruindo em
nome da massa, uma existência fictícia, os vários grupos cuja vida era uma realidade.
O caminho lógico depois disso era a restauração dos poderes intermediários e locais. Mas
os donos do Poder não queriam abandonar os imensos recursos que a Revolução e o
Império haviam colocado à sua disposição. Em 1814 os departamentos franceses pareciam
bem mais governáveis ao Duque d’Angoulême do que as antigas províncias, que eram uma
verdadeira confusão de liberdades. E o desejo de se abancar no estado continuava o
mesmo entre os advogados e potenciais membros da burocracia. É como Odilon Barrot
disse:
“Quanto mais amplos os limites do Poder, mais pessoas aspirarão a ele. A vida vai até onde
há vida, e quando todo o estoque de vitalidade de uma nação está concentrado no governo,
é meramente natural que todo homem busque um lugar nele”.
Separação formal dos poderes
As tendências do tempo e a tentação de seguir o caminho mais curto transformaram o
princípio da limitação do Poder em uma mera separação formal dos poderes. E assim
passamos a acreditar que a existência de um Executivo, de uma câmara alta e uma baixa
deixaria tudo muito bem. O modelo era inglês, mas que grande distância separava a história
do Parlamento lá e na França! Os nobres ingleses ainda eram os representantes
parlamentares e poderosos senhores de terra e riquezas. A representação parlamentar era
realmente um órgão de verdadeiras forças sociais, que mais pressionavam o Poder de todos
os lados do que o equilibravam.
Os novos Césares
O mero recitar dessa história inglesa mostra como foi arbitrária a introdução desse sistema
na França. Em sua história o Poder central e as autoridades sociais nunca tiveram um lugar
de encontro; o imperium centralizado sempre viveu em um vitorioso isolamento. Cada
pedaço do imperium , repartido como no modelo inglês, se considerava apto a restaurar o
poder absoluto do Parlamento Revolucionário. Agiam como Augusto e César, que sempre
consideraram seus territórios iniciais como uma base para a conquista do Império sem
divisões.
A usurpação cada vez maior da monarquia e os apelos constantes do povo ao Parlamento
explodiram na Revolução de 1848. E retornou novamente a ilusão da primeira revolução: o
Poder fundado em um bom princípio é infinitamente beneficente. Nas palavras de
Lamartine:
“Um Poder forte e centralizado como esse é verdadeiramente perigoso onde o governo e o
povo não são um, mas deixa de sê-lo quando o governo é meramente a nação em ação, isso
e nada mais.”
Opor, como a Segunda República fez, uma assembléia eleita pelo povo a um presidente
eleito pelo povo não é a organização de um equilíbrio social, mas somente a introdução
uma disputa entre homens investidos da mesma autoridade. Aqui cabe a profecia de
Sismondi:
“Onde quer que se reconheça que todo poder emana do povo, então aqueles que o
recebem mais diretamente do povo e aqueles com o maior número de eleitores estão
fadados ,por essa razão, a considerar seu poder mais legítimo”
A representação social
É digno de nota que o Senado na França tem resistido aos ataques da câmara baixa, por ser
uma verdadeira reflexão de uma força social, as oligarquias do campo. Nos Eua ,o Senado,
que não é eleito pelo sufrágio universal, também é o órgão mais capacitado a fazer frente
ao Presidente.
Essa resistência só pode continuar enquanto a assembleia tenha um poder social forte
como seu fundamento. Na própria Inglaterra, a Câmara dos Lordes foi se tornando
irrelevante juntamente com a queda da aristocracia durante o final do século 19/começo do
século 20.
Um movimento inevitável?
Esse tipo de equilíbrio social refinado pode ser sustentado por um legislador de visão? Ou
será que uma situação que só se dá em determinados momentos da evolução histórica, e
principalmente naqueles em que um movimento ascendente encontra um descendente?
Isso pode acontecer, por exemplo, quando um poder central se ergue entre autoridades
sociais antes ilimitadas, ou quando poderes sociais renovam sua força contra um poder
central em declínio.
A liberdade dependeria, nessa segunda hipótese, da incapacidade real de um Poder se
impor absolutamente. Ele não pode sobreviver quando a família, a comuna ou o
empregador tem autonomia total, mas também não quando o estado adquire uma
soberania absoluta. Isso explicaria o incrível declínio do status do indivíduo nos séculos 19
e 20 como um movimento brusco entre esses dois extremos.
Uma lei
Podemos enunciar quase como uma lei o seguinte: A oposição evocada pelo Poder só será
forte o suficiente para limitá-lo no caso de um Poder de caráter minoritário. Um Poder da
maioria pode evoluir até o absolutismo por si mesmo; esse absolutismo revela, por sua
mera existência, a mentira na alma desse Poder – apesar de se dizer “povo”, ele nunca
deixou de ser Poder.
Capítulo XVI – O Poder e a Lei
A lei acima do estado e a (i)lógica positivista
A supremacia da lei deve ser o tema central da ciência política; mas tal só pode se dar onde
existe uma lei anterior e superior ao estado. E as mesmas forças que destruíram as
autoridades sociais tiraram da lei sua autonomia.
O que é a lei? Diz-se que a autoridade política deve ser justa, agindo em conformidade
com a lei. Mas também nos é dito que a lei não é nada mais do que a epítome das regras
ditadas pela própria autoridade política. Andamos em círculos, já que isso torna a
autoridade que faz as leis sempre justa por definição. E até mesmo Kant chegou a esse tipo
de conclusão!
A lógica é implacável: As leis são a única fonte do direito. Portanto, tudo que está em uma
lei é um direito, e não há remédio contra as leis. Aceite isso e logo buscar uma proteção
contra o Poder na lei se tornará uma ilusão. A lei é, como os juristas dizem, positiva.
Assembléia dos Erros
Estamos num ponto em que uma série de correntes do erro se encontram: Hobbes, Kant ,
Rousseau, Helvetius, Bentham e Destut de Tracy se reúnem em sua imensa influência, só
comparável à moderação de seus entendimentos.
Hobbes: tosco demais para merecer muitos comentários.
Rousseau e Kant (autoridade legislativa do povo como um todo), por exemplo, foram
incapazes de perceber que a ilimitada capacidade legislativa do povo era incompatível com
os direitos humanos inalienáveis que tanto amavam!
O erro dos utilitaristas e hedonistas é mais grosseiro. Nada, segundo Helvetius, é bom ou
mau em si mesmo. A primeira coisa a se fazer é banir o preconceito arcaico de uma
moralidade objetiva e adotar a nova ciência da utilidade: “o maior bem para o maior
número”. A partir desse ponto só duas coisas podem prevalecer: ou uma monstruosa
criação de lei ou uma sociedade planejada por um senhor absoluto que sabe impor sua
vontade.
Lei x legislação: o declínio do catolicismo
Devemos afirmar a verdade de que o dilúvio da legislação moderna não cria uma só lei
verdadeira. Esse dilúvio é fundamentalmente anti social, pois deriva de uma concepção
falsa e mortal da sociedade.
Uma lei verdadeira depende de uma fé comum, de uma profunda comunidade de
sentimentos, que se transformam em uma ética reconhecida e uma lei inviolável. O Poder
não atingir nada disso por si mesmo.
E é por isso que o crescimento do Poder coincide perfeitamente com o enfraquecimento
da fé Católica, e também, em menor escala, com a perda da crença nos direitos individuais
naturais.
“O homem moderno, sem um ser superior, sem ancestrais, sem crenças e costumes,
encontra-se completamente indefeso perante a promessa brilhante que aparece perante ele,
de um estado melhor de coisas a ser atingido, de um maior bem estar social a ser realizado
através da legislação, que, apesar de ofender uma lei ultrapassada, é inspirada pela lei
superior do presente!”
A Suprema Corte: o novo tribuno da plebe
Como evitar que o influxo da legislação destrua a supremacia lei? A solução que John
Marshall, o jurista americano, conseguiu aprovar nos Eua em 1803, foi a criação de uma
autoridade concreta, a Suprema Corte. Tentativa semelhante foi feita na França, mas até
hoje seus propositores são ridicularizados por desejar inscrever “princípios imortais” acima
da toda poderosa legislatura.
De que adianta ao cidadão ser protegido pelo juiz de um agente do Poder sem base jurídica
se o agente puder retornar no outro dia em nome da nova lei? É esse o perigo controlado
pela Suprema Corte.
Essa função de restrição dos agentes do Poder já era a do tribuno da plebe da antiga Roma.
E é nesse poder do Judiciário que se sustentou a liberdade inglesa e americana. Os juízes
dos países anglo-saxões tem o poder direto de intervir nas ações do agente público, assim
como fazem tradicionalmente nas relações entre agentes privados. Mas na França o Poder
político está acima da lei ordinária; esse foi um trabalho executado pela Revolução
Francesa.
Mas o fato é que a opinião pública moderna também tem se voltado contra essa antiga
instituição jurídica na Inglaterra e nos Eua. Como diz Jouvenel:
“A opinião pública moderna, que apreende todas as coisas em termos de uma simplicidade
enganadora, se recusa a permitir que a opinião de uns poucos homens aja como um freio
independente à aquilo que a opinião da sociedade como um todo exige. Isso é visto como
um pecado contra o princípio da soberania popular”
Enquanto o assunto for encarado sob a ótica da opinião de uns poucos contra a de muitos
estamos no terreno do erro. Pois o que existe de um lado é uma emoção passageira,
facilmente manipulada pelo governo e pelos partidos, e de outro as verdades da justiça, que
não admitem volubilidade
.
A justiça só pode resistir se tiver fundamentos eternos
Essas verdades só podem ser defendidas se forem eternas. E aí reside o grande erro da
Suprema Corte Americana: ela buscou defender-se do oportunismo político com princípios
que também participavam desse mesmo oportunismo.
Os pais da Constituição eram proprietários independentes e legislavam para proprietários
independentes. No momento do eclipse da Suprema o Poder contava com o apoio de uma
massa de proletários que sofriam sob o peso uma concepção monstruosamente distorcida
dos direitos de propriedade. Um erro similar cometem aqueles que dizem que a lei
fundamental deve seguir o movimento das idéias, pois há sim um elemento imutável na lei.
Precisamos retornar a Aristóteles, São Tomás e Montesquieu; neles há uma substância
inexistente no pensador que “segue o movimento das idéias”.
“Podemos deixar de ver que o delírio legislativo, como ocorrido nas últimas duas ou três
gerações, ao acostumar as mentes à idéia de que as regras e noções fundamentais são
infinitamente modificáveis, criou condições altamente favoráveis para o déspota? “
A lei perdeu sua alma e se tornou uma selva.
Capítulo XVII – As raízes aristocráticas da liberdade
Voto x Liberdade
Por dois séculos a humanidade europeia tem buscado a liberdade e encontrou a autoridade
estatal mais grandiosa já vista em toda a história. Quando nos perguntamos onde está a
liberdade, a resposta que recebemos é um dedo apontado em direção uma máquina de
votação. Mas a liberdade é algo muito diferente. Sua essência reside na não sujeição da
vontade a outras vontades humanas; em ter nossa vontade reinando sobre nossas ações, e
sendo limitada somente quando prejudica os requisitos básicos e indispensáveis da vida em
sociedade.
Não foi como um elemento da felicidade do individuo que os espíritos mais elevados
louvaram a liberdade, mas porque ela consagra a dignidade da personalidade e evita que o
ser humano se torne um mero instrumento da autoridade. Por que então essa elevada
intenção foi distorcida?
O homem livre: legado da antiguidade
A liberdade não é uma invenção recente; bem ao contrário, ela faz parte de nossa mais
antiga herança intelectual. Formamos uma idéia “instintiva” da liberdade, mas ela é na
realidade um retorno à memória coletiva dos dias do homem livre. Esse homem não é uma
fantasia filosófica como o homem em seu estado da natureza, tendo realmente existido
naquelas sociedades não invadidas pelo Poder. Tornamo-nos tão acostumados ao Poder
que acreditamos dever nossa liberdade a ele, mas historicamente a liberdade é uma
conquista, que ganhou o nome de direito subjetivo a partir de um ato de auto asserção.
As famílias poderosas
A liberdade pode ser encontrada entre os grupos mais antigos dos povos indo-europeus.
Ela é um direito subjetivo que só pertence àqueles que são capazes de defendê-la: aos
membros de certas famílias viris, compostas de irmãos que se defendem e vingam as
ofensas recebidas.
Foram essas famílias poderosas, ciosas de sua independência e assíduas aos assuntos de
interesse comum, que deram o tom às primeiras instituições libertárias. A vida nas cidades
progressivamente desintegrou os clãs, mas ainda podemos ver na antiga lei romana um
feroz espírito de independência.
Roma patrícia: uma sociedade sem Poder
A Roma patrícia é um exemplo claro de que uma sociedade pode sobreviver muito bem
sem um Poder a ditar os atos dos indivíduos. Ela nos oferece o espetáculo de uma
seriedade contínua e um decoro que só sofreu um declínio depois de séculos; e a desordem
se instalou exatamente no momento em as regras começaram a se multiplicar. Por que
então a autonomia individual não gerou os frutos anárquicos que nos acostumamos a
esperar? Três palavras: responsabilidade, ritual e tradição.
Gravidade e solenidade: fundamentos da liberdade
O homem romano era livre para fazer o que quisesse, mas se dissesse uma palavra
garantindo o pagamento de certa quantia e não o cumprisse logo o veríamos como o
escravo de seu credor. Um mundo onde as consequências dos erros podiam ser tão duras
tanto requeria como formava naturezas viris. Os homens meditavam longamente suas
ações e cada uma delas tinha um aspecto cerimonial. Tudo podia ser feito, desde a venda
de um filho ou sua substituição na herança por um estranho, mas o ritual devia ser
observado. No auge da Roma republicana esse ritual era estrito ao extremo; e fazia todos
verem que suas decisões e atos eram coisas graves e solenes. É como Ihering disse:
“A era da liberdade em sua máxima floração assistiu ao reino do rigor mais inflexível em
relação à forma. A forma perdeu sua severidade ao mesmo tempo em que a liberdade
começou a se rebaixar insensivelmente e, quando a liberdade foi completamente esmagada
e mantida sempre sob a pressão incessante do regime dos Césares, as formas e fórmulas da
lei antiga foram enterradas sob sua ruína. Clama à nossa atenção ver a forma desaparecer
assim, ao mesmo tempo em que o soberano se sentava tranquilamente no trono,
proclamando abertamente e sem subterfúgios o ser o princípio supremo da lei pública. Mas
mais do que isso, a época dos imperadores Bizantinos, a oração fúnebre que eles
pronunciaram sobre a morte da forma, seu desprezo e crítica não dissimulados a ela, nos
fazem reconhecer a conexão que existe entre forma e liberdade. Com efeito, a forma é o
freio que limita os excessos daqueles que da liberdade passa à licenciosidade: ela dirige,
controla e protege a liberdade. Formas fixas são a escola da disciplina e da ordem e ,
portanto, da liberdade; elas são um baluarte contra os ataques externos; elas podem ser
quebradas, mas nunca se curvam. O povo que valoriza realmente a liberdade sabe
instintivamente o valor da forma; ele compreende que ela não é um jugo externo, mas a
defensora de sua liberdade.”
A impressão precoce por um pai temido e venerado do culto dos ancestrais, uma educação
severa e uniforme, a formação de centros comuns de treinamento para os adolescentes, o
espetáculo precoce do comportamento que produzia respeito, tudo isso condicionava o
homem livre a certos modos de comportamento.
“A razão pela qual Plutarco constitui uma leitura tão elevada é o fato de que todos os seus
personagens, do melhor aos pior, cumprem sua parte sem qualquer tipo de vulgaridade ou
mediocridade. Não é surpreendente que eles forneceram à tragédia a maior parte de seus
heróis, pois mesmo enquanto vivos, elas já estavam de certa forma no palco, treinados para
interpretar certos personagens e fixos em seus papéis pelas expectativas rigorosas da
plateia... O clima de opinião quando a República estava no seu auge era o de uma sociedade
pequena e privilegiada, livre de todo trabalho manual e preocupação sórdida e nutridos
desde o berço com lendas de atos heróicos; uma só traição desse ideal e as portas se
fechavam para sempre ao ofensor.”
A liberdade não faz parte da natureza de todo homem
O sistema da liberdade dependia do pressuposto de que o homem usaria sua liberdade de
certa forma. Esse pressuposto não se baseava em considerações sobre a natureza abstrata
do homem, mas nas virtudes de uma classe específica.
O homem livre é um homem de tipo particular e tem, se aceitarmos Aristóteles, um uma
forma particular de natureza. É a essa natureza que os privilégios da liberdade estão ligados.
Os homens livres são capazes, como um corpo, de governar os outros e de concordar entre
si mesmos, e seu orgulho repousa simultaneamente na majestade de suas pessoas e da
cidade. Homens dessa raça, fossem espartanos ou romanos, nunca se submeteriam à
escravidão, viesse ela de dentro ou de fora. Eles são a alma da República. Mas e o resto?
Liberdade e Escravidão
É bastante estranho que os filósofos da Revolução tenham formado suas concepções de
uma sociedade livre a partir de uma sociedade onde a maioria não era livre.
A liberdade do mundo antigo dependia de uma diferenciação social que os espíritos
modernos consideram profundamente chocante. Em Atenas havia cerca de 15 a 20.000
homens livres, contra 400.000 escravos. Disse Aristóteles:
“A utilidade dos escravos diverge pouco da dos animais, pois o serviço corpóreo para as
necessidades da vida é buscado nos dois”
E Cícero:
“O nome de homem é geralmente concedido, mas é realmente conquistado somente por
aqueles que cultivam o conhecimento”
A liberdade pela metade e a emancipação
Mesmo assim, a cidade antiga, onde grande classe de homens livres se sustentava sobre um
oceano de escravos, é uma importante etapa da generalização da liberdade. A liberdade
plena pertencia a alguns poucos, mas muitos desfrutavam daquilo que Mommsen chamava
de liberdade pela metade. E essa crescente massa plebéia naturalmente pressionou a
aristocracia privilegiada para que a liberdade fosse ainda mais difundida.
A partir de um processo altamente complexo, nós podemos aqui distinguir três formas
principais de emancipação: a “incorporação”, “ a assimilação diferencial” e a “contra-
organização”.
Incorporação
É certo que durante os primórdios de Roma famílias inteiras foram admitidas ao patriciado,
como foi o caso durante a anexação de Alba; mas isso logo deixou de acontecer e somente
a admissão de indivíduos continuou revigorando a aristocracia.
Assimilação Diferencial
O resultado foi que as famílias plebeias viris, em vez de reforçarem a aristocracia,
permaneceram parte da plebe, fornecendo seus líderes e iniciando um longo período de
guerra aberta contra a aristocracia. Essa investida plebeia foi vitoriosa e essas famílias viris,
agora portadoras de cargos e honrarias, se juntaram ao patriciado em uma nova classe
governante: a nobilitas que presidiu Roma na hora mais gloriosa de sua história. A plebe
ganhou muitos direitos nessa luta, mas que não eram os direitos patrícios, por isso o termo
“assimilação diferencial”.
O espírito da lei também se alterou. O comportamento se torna menos previsível no caso
de uma multidão de homens cujas vontades receberam menos condicionamento. Um
caráter mais fraco, de homens que não tinham desfrutado de uma completa autonomia
dentro da lei, não podia ser submetido às mesmas consequências cruéis que os erros, agora
mais frequentes, ocasionavam. Foi necessário adaptar e humanizar a lei e os regulamentos
se multiplicaram. E não só isso: a lei antiga se exercia sem a necessidade de um aparato de
coerção, mas agora a justiça tem que ser aplicada de forma soberana e não mediadora. A
liberdade perdeu sua antiga dureza, mas ainda assim permaneceu dominante por um bom
tempo.
A contra-organização
De acordo com a lei não existia mais uma plebe, mas ela de fato continuava a existir. Com
Roma se tornando a rainha do mundo, fortunas prodigiosas foram conquistadas, protegidas
pela inviolabilidade da lei assim como o antigo pedaço de terra do camponês. O homem do
povo passou, portanto, a dar mais importância à participação no poder público do que a
seu status de homem livre, pois com a primeira tinha muito mais chances de melhorar sua
situação participando do tesouro público. E assim o povo se voltou contra a liberdade, e o
tribunato e o plebiscito seriam seus instrumentos.
O tribuno tinha um poder arbitrário necessário a sua função de proteção de uma plebe sem
direitos; ele deveria ter logicamente desaparecido quando a plebe recebeu seus direitos. Mas
ele continuou vivo, sendo apoiado e manipulado pelo Senado, como um instrumento de
controle dos magistrados muito independentes e de concentração absoluta da autoridade
pública. O Senado permitiu que os tribunos unissem a plebe e a organizassem através dos
plebi scita, resoluções que no fim ganharam o status de leis. Foi assim que a autoridade
legislativa se ergueu em Roma e também foi o tribuno que acostumou a plebe à idéia de um
salvador que restabeleceria o equilíbrio social. Mário e César seriam seus sucessores, e os
imperadores tiveram imensa facilidade em dominar as ruínas da República e da liberdade.
E quem foram os homens que tentaram estancar esse processo? Os homens livres da velha
escola. A adaga de Brutus, tão cara ao coração jacobino, foi manejada por uma mão
aristocrática.
A responsabilidade dos grandes
O sistema da liberdade só poderia funcionar enquanto não se estendesse além de homens
cuja tradição se adequava a ele. Ele cessou de funcionar quando incluiu homens que só
podiam ver na liberdade a autoridade política.
Até aqui a responsabilidade é das massas, mas a dos grandes é tão grande quanto. Eles
deixaram de ser patrícios austeros e se transformaram em capitalistas gananciosos,
enriquecidos pela pilhagem de províncias inteiras e pela usura.
A participação política e a propriedade
Vemos que Tibério Graco estava certo em tentar limitar as grandes propriedades e
multiplicar as pequenas, reforçando os laços perigosamente relaxados da sociedade. Ao
fazê-lo ele se deparou com uma verdade fundamental – aquilo que pode ser chamado de o
verdadeiro segredo da liberdade: um regime libertário – em que os direitos subjetivos são
invioláveis - não pode ser mantido se maioria dos membros da sociedade que tomam parte
na política não estão preocupados em mantê-los. E eles só podem se interessar se tem
realmente algo a perder com sua queda.
Essa condição de interesse da classe política só pode durar “enquanto as condições
materiais de vida se desenrolem em uma cadeia ininterrupta do mais alto ao mais baixo,
uma cadeia em que os vários níveis não estão muito longe uns dos outros.” Ela foi
destruída quando no fim da estrutura social encontramos uma massa sem propriedade e em
seu topo uma plutocracia insolente.
Tibério Graco x Caio Graco: embate paradigmático
Chegamos ao ponto em que em uma imensa massa de indivíduos fracos e isolados tinha,
em sua forma coletiva, uma grande influência sobre os assuntos públicos. Há dois
caminhos abertos aos líderes populares dessa massa. O primeiro é o de Tibério Graco, que
queria espalhar o espírito cidadão através da disseminação da propriedade. O segundo é o
de seu irmão Caio Graco que, impressionado pelo fracasso do irmão, decidiu que a única
forma de diminuir a distância monstruosa entre os grandes e o homem ordinário era a
criação de um imenso poder tutelar e assistencialista acima de ambos. O resultado não foi
uma generalização da liberdade, mas a transformação da maior parte dos homens em
dependentes da autoridade pública.
Não há República onde os cidadãos não se revezem indistintamente no exercício dos
cargos públicos e não tem qualquer interesse em aumentar a carga que todos devem
carregar.
Há um paralelo interessante entre os dois Roosevelts na história americana recente.
Theodore quis lutar contra uma plutocracia que estava transformando todos os cidadãos
em assalariados, enquanto Franklin tomou essa situação com um fato concluído e decidiu
construir uma estrutura de Poder muito semelhante a dos imperadores romanos. Esse
fenômeno também lança uma luz sobre toda a história política da Europa.
Uma importante classe de homens livres já pode ser distinguida nas trevas merovíngias.
Mas eles se tornaram dependentes da proteção feudal e o começo da Idade Média pode ser
visto como um conjunto de repúblicas em que a cidadania era a prerrogativa de
pouquíssimos notáveis. Como é que essa massa, que nada tinha a perder, poderia deixar de
apoiar o rei em seu esforço de destruição dos laços feudais?
França x Inglaterra
É aqui que os historiadores se embaraçam na disputa entre monarquia e aristocracia. Como
eles podem pagar um tributo aos esforços autoritários do rei, que salvaram os homens da
servidão feudal, ao mesmo tempo em que cantam aos quatro cantos suas tendências
libertárias? Somente na Inglaterra a peculiaridade de sua história política evita esse
desconforto ao historiador. Lá a autoridade da Coroa sempre foi forte o suficiente para
evitar que a classe de homens livres fosse totalmente dominada pelos senhores, assim como
os senhores sempre foram fortes o suficiente para evitar que a Coroa subjugasse a todos.
John Stuart Mill, em uma passagem famosa, contrastou os temperamentos políticos da
França e da Inglaterra:
“Há dois estados das inclinações, intrinsicamente muito diferentes, mas que tem algo em
comum, por virtude do que eles frequentemente se combinam na direção em que impelem
os esforços dos indivíduos e das nações; um é o desejo de exercício do poder sobre os
outros; o outro é a repulsa a ter um poder exercido sobre si. As diferenças entre diferentes
porções da humanidade quanto à força relativa dessas duas disposições é um dos elementos
mais importante em sua história.”
E J.S Mill, mal escondendo seu intuito, veste a carapuça nos franceses:
“Há nações em que a paixão pelo governo dos outros é tão mais forte do que o desejo de
independência pessoal, que, pela mera sombra da primeira, eles estão dispostos a sacrificar
a outra por completo. Cada um dos seus se dispõe, como o soldado particular em um
exército, a abdicar de sua liberdade pessoal de ação em prol de seu general, desde que o
exército triunfe vitoriosamente, e ele seja capaz de se lisonjear como um membro da horda
conquistadora, apesar de que a noção de que ele tem qualquer participação no domínio dos
conquistados ser uma ilusão.
Um governo estritamente limitado em seus poderes e atribuições, obrigado a afastar suas
mãos de uma excessiva intromissão, e a deixar que a maior parte das coisas siga seu curso
sem assumir o papel de guardião ou diretor, não é do gosto desse povo; a seus olhos o
possuidor da autoridade nunca pode tomar muito para si mesmo, desde que a autoridade
em si mesma esteja submetida à competição. Um indivíduo mediano entre eles prefere a
chance, não importa quão distante ou improvável, de exercer algum pedaço do poder sobre
seus concidadãos, do que a certeza, para ele e os outros, de não ter um poder desnecessário
exercido sobre eles.
Esses são os elementos de um povo arrivista; no qual o curso da política é determinado
principalmente pela caça aos cargos; onde só se preocupa com a igualdade e nunca com a
Liberdade; onde a disputa dos partidos políticos são somente brigas para decidir se o poder
de se intrometer em tudo deve pertencer a uma classe ou outra, talvez somente a um ou
outro tipo de homem público; onde a idéia entretida da democracia é somente a da
abertura dos cargos para a competição de todos em vez de poucos; onde, quanto mais
populares as instituições, mais inumeráveis as posições criadas e mais monstruoso o
excesso de governo exercido por todos sobre cada um, e pelo executivo sobre todos”
Em contraste, os ingleses são muito ciosos de qualquer tentativa de exercício de um poder
sobre eles, que não seja sancionado por um longo costume e sua própria opinião do que é
certo, mas dão muita pouca importância ao exercício do poder sobre outrem; nenhum
outro povo é tão apaixonado pela resistência à autoridade quando ela sai de seus limites
prescritos.”
Na medida em que isso é verdadeiro, a explicação está no fato de que aristocracia na
Inglaterra sempre representou e liderou a classe média nacional. Na França essa classe se
reuniu sob o estandarte do rei. E é por isso que o cidadão inglês foi durante muito tempo
tão intocável quanto um nobre medieval, enquanto o cidadão francês se tornou para
sempre o súdito de uma monarquia absolutista, fosse ela pessoal ou impessoal.
Na Revolução Inglesa de 1689 a massa invocava a tradição da Magna Carta; na francesa de
1789 muitos louvores a Richelieu foram cantados; ele foi canonizado como “um homem
das montanhas e um Jacobino”. Mas mesmo nos países onde existe essa orientação
autoridade popular para os direitos individuais, mais dia menos dia, ela se volta para o
Poder, por causas muito semelhantes às vistas em Roma.
O Cesarismo
Luís Napoleão, Bismarck e Disraeli, todos eles entenderam isso perfeitamente: ao
expandirem a franquia eleitoral, ao mesmo tempo em que a propriedade se tornava um
privilégio de poucos, sabiam que estavam abrindo o caminho para um novo Cesarismo.
Napoleão III sabia o que fazia quando estendeu o voto e favoreceu a concentração da
riqueza e a desigualdade social.
“Só três coisas interessam ao Cesarismo. Primeiro, que aqueles que são os mais velhos
portadores da liberdade na sociedade percam seu crédito moral e se tornem incapazes de
transmitir àqueles que entrem na herança dessa liberdade um orgulho desse status pessoal
embaraçoso para o Poder. Tocqueville comentou o papel exercido nesse sentido na França
pela completa extirpação da nobreza antiga. O segundo fato necessário ao Cesarismo é que
uma nova classe capitalista surja, sem autoridade moral e possuidora de uma riqueza
extrema que a separa de seus concidadãos. Por último, há o terceiro elemento, que é a
união de força política e fraqueza social em uma classe dependente.
Apesar de acumularem tesouro após tesouro e se verem como mais poderosos, esses
“aristocratas” capitalistas, ao despertarem o ressentimento social, desqualificam-se
eternamente como líderes contra os avanços do Poder. E, enquanto isso, a debilidade da
multidão encontra um repouso natural no estado onipotente.
Dessa forma é removido o único obstáculo que o Cesarismo teme – um movimento de
resistência libertária, emanando de um povo com direitos subjetivos a defender e sob a
liderança natural de homens eminentes, cuja reputação os qualifica e que não são
desqualificados pela insolência da riqueza”.
Quinta Apresentação
Capítulo XVIII – Liberdade ou Segurança
A “Liberdade Crescente”
No século 19 a história ocidental foi interpretada como a história da liberdade crescente.
Esse empreendimento teria duas fases: a destruição dos senhores particulares e
transformação do estado que pairava acima de todos em um servo do povo.
O processo de libertação material teria sido acompanhado de uma libertação espiritual dos
imperativos do credo e da conduta; o homem se livra dessas superstições e passa a confiar
em seu próprio julgamento.
Mas o observador moderno se depara com uma realidade muito diferente: o Poder, que
parecia redesenhado para servir a sociedade, é na verdade seu senhor. Só encontramos
paralelo para essa concentração do poder político no Egito Antigo.
“No topo de nossa sociedade estão os regentes que, para harmonizar a ação, estão sempre
atentos à harmonização do pensamento. Na base está uma multidão que é, no fim das
contas, obediente, crédula e trabalhadora, que recebe abnegadamente do soberano suas
ordens, sua fé e seu pão diário, e que vive e um estado de servidão a um senhor que é
imensuravelmente distante e impessoal”
A liberdade: um bem precioso
Parece que toda sociedade que evoluiu até um estado de liberdade individual tende a
abruptamente voltar atrás no exato momento em que o está conquistando. Por quê?
As coisas mais caras são normalmente as menos necessárias. A liberdade é uma dessas
coisas, tão preciosa e frágil quanto as melhores obras de arte, sendo poucos aqueles que
sabem o seu verdadeiro valor. Ela só é buscada quando os desejos primários do homem
estão satisfeitos.
A liberdade é secundária e a segurança primária, como descobrimos em todos os
momentos de crise. É por isso que a idéia de segurança merece um exame mais detido. Mas
sua complexidade torna o seu oposto, a insegurança, bem mais compreensível.
Ela pode ser definida como a ansiedade que nos domina quando somos ameaçados com
um desastre. Mas o que é um desastre? Para alguns a mera perda de dinheiro e para outros
nem mesmo a própria morte. O que implica que a “ocorrência” de desastres é menor se
estivermos perante almas grandiosas. Um homem saudável as subestimas e um nervoso as
superestimas.
O fato é que nunca houve um tempo em que há sociedade não estivesse divida entre
aqueles que se sentem insuficientemente protegidos e os que não se sentem
suficientemente livres. Os primeiros são os “securitários” e os últimos os “libertários”.
Podemos esperar que um país onde o espírito dos homens seja mais orgulhoso e os
temperamentos mais saudáveis tenha uma elevada população de libertários. Mas se o
caráter é rebaixado por uma educação afeminada ou se a vida toma novas formas geradoras
de ansiedade sem que os riscos verdadeiros cresçam, podemos também esperar que a
população de securitários cresça. E se os riscos reais de ocorrências terríveis forem
subitamente aumentados, quase toda a sociedade se tornará securitária.
É isso que explica a facilidade com que os homens livres do século 8 a 10 a.C entregaram
sua liberdade. Os poucos que posteriormente ousaram abandonar os domínios do senhor
feudal acabaram fundando as fortunas e a dinastias do patriciado mercantil.
A própria história da inteligência mostra como a feudalização se segue à insegurança. Toda
a classe intelectual se abrigou no seio da Igreja depois do fim do Império Romano. No
século 18 ainda encontramos homens como Condillac e Sieyés protegidos ali.
A distribuição de securitários e libertários tende a se aproximar ao máximo das divisões de
classe em uma sociedade em formação ou que passou por uma completa reviravolta. Os
mais audaciosos chegam ao topo, produzindo uma grande desigualdade; mas esta
desigualdade produz um equilíbrio social, pois as liberdades desfrutadas são adequadas aos
riscos tomados. Esse equilíbrio é rapidamente distorcido pela tendência humana a
transformar em direitos subjetivos hereditários aquilo que uma geração conquistou com
suas próprias mãos.
Determinados eventos podem retardar essa degradação: em Esparta as classes altas foram
capazes de produzir continuamente homens viris através de treinamento e do exclusivismo;
em Roma e na Inglaterra a aristocracia se abriu à infusão de energia nova através da
elevação dos membros mais viris da plebe; mas o exemplo mais contundente de renovação
se deu na Idade Média, até o tempo de São Luís. Qualquer servo corajoso e distinto podia
se tornar um cavaleiro e um proprietário de terras. Essa é a origem da verdadeira nobreza
feudal. O Poder também pode ser um caminho para a distinção social, mas ele é de todos
os meios o menos adaptado ao reavivamento das virtudes libertárias.
Uma aristocracia securitária
Um corpo de oficiais, de funcionários públicos, não existe no começo de uma sociedade,
pois aí não pode existir uma autoridade política distinta da social. Assim que o Poder
decide se voltar contra as autoridades aristocráticas uma nova possibilidade de liberdade se
abre para os servos: uma liberdade incompleta e parcial, advinda da intervenção de outrem,
mas adequada ao temperamento securitário.
Outro fenômeno importante é a progressiva invasão dos estratos superiores pelos oficiais,
que com isso tendem a se voltar contra o Poder que os elevou. Mas esses novos
aristocratas não são como os de outrora: uma coisa é se elevar por sua própria conta e
risco, outra devido ao favor de um senhor. Podem existir exceções, mas o Império
Romano tardio, por exemplo, nos forneceu exemplos suficientes de que o funcionário é
somente um homem liberto que não perdeu as características de um escravo.
Paralelamente a essa invasão a aristocracia de outrora também decai e os elementos
securitários passam a predominar, sendo este um dos espetáculos mais deprimentes da
história. Os privilegiados, cujo papel é proteger os outros com seu próprio prestígio e
energia, decidem que eles mesmos devem ser protegidos. E só há um ente acima deles: o
estado. Uma geração de mercadores prudentes, por exemplo, procura junto ao rei os
direitos exclusivos de proteção em uma costa distante, quando seus ancestrais teriam
afastados os intrusos com sua própria artilharia.
Como podem homens cuja autoridade depende do Poder opor a ele a independência
orgulhosa que distinguiu honrosamente a aristocracia antiga? É aqui que as noções de
aristocracia e liberdade se separam.
A classe média
Os descendentes das aspirações libertárias são a classe média, definida como aqueles que
têm suficiente autoridade social para não necessitar de qualquer tipo de proteção especial,
mas que, por outro lado, não tem poder suficiente para tornar sua liberdade opressiva para
outros.
Quando um Poder se considera seguramente estabelecido e a sociedade atinge certa
prosperidade material, chegou a hora da classe média como principal elemento da
sociedade. Ela se alia ao Poder para disciplinar uma aristocracia desordenada, mas também
é a aliada natural da aristocracia contra um Poder que tente diminuir a liberdade. Sabemos
que a proletarização dessa classe em Roma, por ocasião de sucessivas guerras, marcou o
fim da República. Assistimos a algo semelhante nos tempos modernos.
Liberdade para todos e a irresponsabilidade da massa
Essa nova classe livre pode buscar limitar o acesso a essa liberdade, concedendo um
patamar razoável de segurança às classes mais baixas, ou estender essa liberdade a todos.
Nos séculos 18 e 19 ela escolheu o segundo caminho.
Mas há um corolário fatal aí: ao dividir a liberdade adequada a si mesma com todos, ela
retirou das classes mais baixas os meios de proteção que ela mesma não precisava. Um
exemplo claro disso é a relação entre a liberdade de contratar e a responsabilidade
trabalhista do empregador. Esse equívoco abriu espaço para o desenvolvimento de todo
um corpo de legislação securitária, algo que será provavelmente sempre necessário à
maioria dos homens.
A responsabilidade dos grandes
Esse abandono das obrigações da liberdade foi pouco percebido, pois do outro lado da
pirâmide social o mesmo fenômeno ocorria, sem que a desculpa da necessidade pudesse ser
alegada.
Se uma aristocracia se falsifica quando abandona suas responsabilidades e riscos, não há
aristocracia mais falsa do que a capitalista. Ela deixou de ser um grupo de burgueses
independentes, que colocavam o seu nome e o seu sangue nos negócios, para se tornar uma
elite pequena que, agindo através do sistema financeiro e da legislação de responsabilidade
limitada, controlava empreendimentos gigantes e regulava quase toda a atividade
econômica. Uma aristocracia de fato, mas que sempre buscou divorciar o comando, que
sempre exerceu, da responsabilidade e do risco, que repassou à massa de acionistas e ao
estado. Todo método de evasão de riscos foi buscado por essa nova aristocracia; e as
grandes crises financeiras sempre foram um pretexto para que implorassem ao Poder em
nome do interesse geral.
O medo como fator dominante da modernidade
No período entre as guerras os proletários encontraram uma miserável segurança no seguro
desemprego e os aristocratas também buscaram sua segurança em um apoio estatal mais
“substancioso”. Entre eles se encontrava a classe média, já bastante proletarizada pela
inflação.
A inflação destruiu completamente as virtudes austeras da burguesia pregressa; ela beneficia
o devedor e prejudica o assalariado e o poupador. E todos perceberam que no meio dessa
tempestade existiam algumas ocupações protegidas. O empregado público encontrava-se
confortável e seguro com sua pensão. As empresas públicas aumentavam seus lucros
devido ao monopólio das atividades. E como não havia espaço para todos, o desejo natural
de todo homem passou a ser a inclusão de sua própria atividade no rol dos protegidos.
A característica psicológica essencial de nossa era é a predominância do medo sobre a
autoconfiança; nele se encontram o trabalhador e o banqueiro, com sua riqueza
seguramente investida em títulos do governo. Franklin Roosevelt chegou a dizer que “os
novos direitos do homem” eram o direito do trabalhador a um emprego com salário estável
e o direito do produtor a vender quantidades estáveis de bens a um preço estável.
É nos dito que esses “direitos” completam os antigos, mas eles na verdade se contradizem
e revogam uns aos outros. Se o estado deve garantir as consequências da ação de um
homem, ele também deve controlar suas atividades.
“A mente do homem precisa, como seu coração, de objetos de afeição; eles o levam às
mesmas evasões. Tudo que ele deseja ver em qualquer fenômeno são aqueles aspectos que
o lisonjeiam e exaltam, e não os que o ofendem e mortificam. Ele dissocia aquilo que a vida
fez inseparável, louva a causa e condena a consequência, aplaude os fins e repudia os
meios, afirma uma idéia e nega seu corolário. Os Direitos do Homem nos enchem de
exaltação; mas a ferocidade burguesa da sociedade dos dias de Luís Felipe, sua indiferença
ao homem desempregado e sua crueldade com o falido ofende nossa sensibilidade. E então
nos recusamos a ver em tudo isso meramente dois aspectos intimamente ligados do mesmo
espírito”
E esse espírito era o da plenitude da liberdade juntamente com a plenitude dos riscos. Mas
logo todos se amedrontaram perante essa situação e segurança se tornou o objetivo de
todos; mas resta o fato de que ela precisa ser paga.
A segurança e o estado autoritário
Quais são as provas de que aqueles que buscam a segurança social produzem um estado
autoritário?
Uma das grandes provas históricas está na semelhança dos governos de Hitler e Roosevelt,
mesmo partindo de situações sociais absolutamente heterogêneas. Em tempos de segurança
os homens parecem encontrar na sociedade os meios de elevação, mas em tempos de
confusão social enviam esses mesmos homens aos braços do Poder.
Para fazer tudo, o Poder deve ser senhor de tudo. Os especialistas esperam que ele planeje
todos os mecanismos sociais a partir da razão objetiva, quando ele não é nada mais que um
caldeirão borbulhante de desejos subjetivos.
O Novo Homem
Assim que a religião perde seu império sobre o espírito do homem, o objetivo consagrado
da vida humana se torna a felicidade. Os cientistas, por sua vez, reduziram o homem a mais
um animal, cabendo ao estado aperfeiçoar a espécie.
Sob as lentes da ciência, o comportamento humano parece passível de muitas melhorias
que aumentariam a felicidade individual e o progresso social. Que mundo terrível é esse em
que as crianças crescem como grama selvagem!
Mas existe um perigo terrível nessa concepção. Só um homem que buscou a verdade
reconhece a vastidão do conhecimento necessário para a avaliação dos efeitos de uma só
intervenção sobre toda a sociedade humana e a dificuldade de se conectar diferentes ramos
do conhecimento.
Se não existem os sábios capazes de compreender intelectualmente os limites do
conhecimento, a sabedoria mundana das aristocracias antigas também poderia nos proteger
desses entusiasmos que desejam ser construtivos, mas que terminam sendo incendiários.
Mas por todos os lados vemos os assuntos públicos serem entregues a uma classe que
acredita em verdades dúbias com o mesmo fanatismo dos Hussitas e dos Anabatistas.
“A fé foi retirada da cena política, mas sem qualquer efeito. A aspiração religiosa é natural
ao homem, tanto que ele investe seus interesses e opiniões com o halo dos cultos idólatras:
ele entrega seus anéis de ouro a qualquer Aarão que faça um deus para ele.”
Reunião do poder espiritual e do temporal
E é assim que o novo Minotauro une em sua pessoa os poderes espiritual e temporal,
reunindo aquilo que a civilização ocidental sempre manteve separado. E era nessa
separação que provavelmente residia o segredo de seu incrível sucesso.
“É impressionante quão pouca consciência temos da velocidade com que nos movemos
para esse tipo de regime. Com esse novo fim as disputas políticas ganham uma nova
aspereza e crueldade. Os homens sentem em seus ossos que não há mais espaço para
aquilo que já foi chamado de “vida privada”.
O sucesso do Minotauro em moldar as vidas dos indivíduos é tal que a fuga se torna
impossível; não há, portanto, salvação senão em sua tomada. As palavras “eu viverei desse
modo” são supérfluas agora; o que deve ser dito é, “ para viver de uma certa maneira eu
devo tomar o controle da grande máquina e usá-la da maneira que melhor me aprouver.”
Capítulo XIX – Ordem ou Protetorado Social
As revoluções e golpes de estado de nossa época são somente episódios insignificantes que
marcam o advento do protetorado social. Trata-se de erguer um imenso patriarcado, ou
melhor, um matriarcado, pois essa nova autoridade coletiva deve ser animada por instintos
maternais. E as condições presentes tornam essa transição inevitável.
O Liberalismo
A escola liberal nos diz que não competem ao estado as funções que ele hoje exerce com
entusiasmo; elas fogem de sua esfera normal de competência. Essa linguagem por si só já
nos mostra que estamos deixando o campo da análise do Poder como um fenômeno para
um estudo ético do estado.
E como é que os liberais definem a “esfera normal de competência do estado”? A
manutenção da ordem interna e a defesa externa. Mas o que determina isso? A natureza da
sociedade, que se reúne exatamente por esses motivos. Mas quem disse que preciso
subscrever a sua noção de sociedade? Por que um trabalhador assalariado não pode dizer
que é da esfera normal do estado garantir uma renda estável em função de um trabalho
estável?
O que resta da “esfera normal” do liberal? Se a aceitarmos ainda temos o problema da
vizinhança que pode dispor de todos os recursos da nação; não é obrigação do nosso
estado fazer o mesmo para nos defender? E o que resta da “ordem interna” quando vemos
multidões de desempregados e famintos?
Jouvenel não tem prazer em destruir o ponto de vista liberal. Mas o grande erro dessa
escola foi ter tomado posições insustentáveis e irrelevantes para as necessidades e paixões
dos homens. A imagem que fazem do Poder não corresponde à realidade de qualquer
tempo ou país: o Poder nunca considerou território proibido o domínio dos interesses
econômicos e sociais.
Uma crítica possível
Isso não quer dizer que outro ponto de vista crítico não seja possível. Tomemos
emprestados elementos da teologia para estabelecê-lo. Sempre que a inteligência humana se
volta para seu objeto essencial, o conhecimento de Deus, ela forma naturalmente duas
concepções antitéticas: uma Providência miraculosa e uma Sabedoria suprema.
Essas concepções, se aplicadas a um governo humano, redundam em duas formas: o
legalismo e o providencialismo, ou o que os Chineses chamavam de “governo pelas leis” e
“governo pelos homens”. É claro que as leis naturais da sociedade e as leis morais não
obedecem à regularidade rígida e mecânica que podemos abstrair da natureza. Como um
governo por leis é um ideal sempre inatingível, ele sempre deixará margem para o desejo de
um poder arbitrário que possa organizar a vida à revelia da lei insuficiente. E é isso que
explica o fato de que sucessivas sociedades que quase atingiram o ideal do governo pelas
leis logo retrocederam rapidamente até o governo arbitrário e a servidão dos súditos. Já
vimos as diversas causas que podem gerar essa decadência: utilitarismo, positivismo,
multiplicação indefinida de leis que são na verdade comandos subjetivos.
Pode alguém negar que essa é a tendência geral de nosso tempo? Jouvenel afirma não saber
de onde vem a idéia de que os homens odeiam o despotismo; a ele parece que eles o amam.
E isso é comprovado pelo gana com que tentam a sorte em jogos de azar, loterias e o amor
que possuem pelo ganho fácil e arbitrário. O poder arbitrário é uma loteria desse tipo: há
prêmios para os sortudos.
Os males são reais e insolúveis no sistema legislativo moderno
Mas os males que o protetorado social afirma minorar são bastante reais. Há de fato um
desequilíbrio entre as partes em uma economia industrial moderna. Os ajustes necessários
são impossíveis a partir do sistema legal, pois exigiriam leis advindas de um estudo
iluminado e de muita meditação; sabemos que a atividade legislativa moderna não é nada
mais do que a reunião confusa de interesses do momento e paixões cegas. Essas pretensas
leis são meramente atos governamentais, sua arbitrariedade muito mal disfarçada. E esse
poder arbitrário, completamente instável e movido pelas paixões da massa, constitui um
despotismo nunca visto no Ocidente. Os constantes clamores por ordem terminam criando
uma desordem em escala gigante, pois sempre agem através desse monstro arbitrário e
desgovernado.
Jouvenel diz que poderia encerrar a investigação por aqui, mas ainda é importante atacar a
loucura moderna de buscar a solução das desordens particulares em uma desordem geral.
A confiança e a ordem espontânea
Toda a existência humana se fundamenta na confiança. É admirável a regularidade com que
serviços nos são prestados, garantindo nossa segurança e bem estar. Fazemos nossa parte,
mas o segredo está no arranjo entre todas elas.
Assim que meditamos sobre essa organização harmônica percebemos que o “Cada um por
todos e todos por um” não é o mote de uma Utopia improvável, mas a fórmula da
existência da sociedade. A verdadeira imagem da ordem social é da conjunção miraculosa
de milhões de trajetórias separadas. Uma irregularidade sequer nesse processo pode
acarretar um caos social completo.
O problema começa quando os homens tentam entender como isso é possível. Pois a
primeira resposta que surge na mente de todos os homens é a ação de uma só vontade, que
é logo identificada como um grande e sábio professor humano que teria ensinado cada
sociedade a se organizar. É nesse ponto que o mito se transforma em uma falsa história.
Passamos do apego rígido à ordem do ancestral sábio à noção de que qualquer mudança é
possível, já que tudo foi fruto de um desígnio humano. O que equilibrou essa
transformação foi o desenvolvimento do direito natural, que a partir de uma analogia com a
natureza projeta a existência de leis naturais da sociedade humana. Esses dois pontos de
vista, o voluntarista e o quietista, dão vida às concepções ordinárias de socialismo e
liberalismo, que nem merecem ser discutidas.
Egoísmo x Crenças
Contemplemos a trajetória de um homem na sociedade. O que a explica? Segundo a escola
de Hobbes e Helvétius é o egoísmo! Eles foram atraídos a essa hipótese por um desejo,
típico de gênios científicos, de encontrar na ordem moral um único princípio que
correspondesse ao de energia na ordem física. Mas mesmo essa escola precisou postular o
princípio da repressão para explicar a contenção dos seres humanos em sociedade; era
preciso um egoísmo mais calculado e iluminado.
Mas nem o cálculo mais preciso, nem o medo da punição, podem determinar
profundamente as ações concretas de um homem. Suas ações são governadas por
sentimentos e crenças. O homem é um animal feito para a vida em sociedade e a
consciência inteligente de nossos interesses e o medo da punição são somente forças
complementares que impedem a aberração ocasional. Geralmente nos comportamos como
bons vizinhos e cooperadores escrupulosos. O que podemos chamar de hereditariedade
social opera com muito mais força do que qualquer herança física; alguns dos maiores
homens terminaram suas vidas repetindo gestos e fórmulas que encontraram na história e
na poesia.
Disso segue que qualquer distúrbio dos conceitos de conduta correta coloca a harmonia
social em perigo e isso está sempre acontecendo em sociedades que se desenvolvem e
atraem novos elementos.
Nessas sociedades a decadência do sentimento religioso, juntamente com a crise
racionalista, acaba por demonstrar que meros costumes sociais nunca conseguirão
substituir o que foi perdido. Chegamos ao reino da anarquia intelectual, que pode ser ainda
mais acentuado pela corrupção das classes governantes.
A percepção da complexidade do problema nos deixa ainda mais surpreso com o grau de
ajustamento que um automatismo camuflado parece induzir. Mas mesmo esse incrível
poder se torna insuficiente quando os mecanismos sociais perdem todo traço de virtude.
A insuficiência da explicação econômica
Esses mecanismos são ainda muito pouco conhecidos, apesar daqueles que acreditam que
os economistas descreveram minuciosamente o delicado equilíbrio dessas forças. A
verdade é que esse problema se encontra quase que completamente fora do domínio da
Economia. Os economistas podem explicar a forma como uma demanda crescente por
automóveis diminui progressivamente a demanda por cavalos e carruagens e como a nova
indústria absorve os trabalhadores da antiga; mas quando esse processo de adaptação
quantitativa termina, ainda resta o problema infinitamente mais substancial da adaptação
qualitativa. Entre um mestre seleiro trabalhando em sua oficina na Paris antiga e seu filho
perdido na multidão anônima e cosmopolita de trabalhadores da Citroen, vivendo em um
subúrbio, houve uma transformação prodigiosa dos costumes, das crenças e dos
sentimentos, uma transformação que não pode deixar de influência toda a sociedade e até
mesmo a relação entre oferta e demanda.
O que permite à economia política ser uma ciência é o fato de que ela olha para vida social
como o curso regular de uma e somente uma energia, sempre homogênea e mensurável em
unidades de valor. E é exatamente esse recorte que a impede de explicar o todo da
realidade social. Ela justifica o mercado acionário como uma máquina reguladora útil, mas
não se preocupa com o tipo de temperamento que ele atrai e o tipo de caráter que
desenvolve. É uma ciência valiosa, mas agarrada uma falsa psicologia, que vê os homens
como uma massa física controlada pela força mecânica do interesse próprio.
É isso que torna o ponto de vista do economista o pior de todos para o discernimento das
desarmonias sociais: elas devem se transformar primeiro em adaptações quantitativas para
receber sua atenção.
O desenraizamento, a casuística e as elites inovadoras
O fenômeno do desenraizamento é o mesmo no caso de um lavrador jogado em uma
fábrica ou de um pequeno empregado transformado em um grande especulador. Não é
somente a mudança repentina que gera problemas, mas principalmente o fato do homem
desenraizado ser transferido para novas funções sem qualquer concepção do que é justo e
direito ali. Eles retêm, é claro, algumas idéias morais que aprenderam na infância. Mas a
casuística, a aplicação de princípios gerais a situações particulares, é uma arte difícil e aberta
somente para uns poucos.
Caberia aos criadores da nova situação, às elites inovadoras, guiadas quando necessárias
pelas autoridades espirituais, criar um código de comportamento e conceito de conduta
correta que harmonizem a nova função com a ordem da sociedade. Toda função tem sua
lei de cavalheirismo e sua obrigação de liderança. Mas na sociedade moderna os inovadores
não elaboraram essas leis, nem estavam conscientes de suas responsabilidades.
O homem que incentivou a emissão de ações de pequeno valor nominal, por exemplo,
tornou possível a conexão entre a poupança pequena e média e os grandes
empreendimentos. O papel desse financista é muito benéfico se inclui duas condições: o
investimento em empresas benéficas à comunidade e a preocupação com a segurança dos
poupadores.
A irresponsabilidade das elites modernas
Mas o que temos visto é uma crescente irresponsabilidade nessa categoria particular da
sociedade. Os anais do capitalismo mostram inúmeros casos de novas emissões de ações
que são somente formas de se roubar os acionistas através, por exemplo, da venda de
novas ações a um preço muito superior ao verdadeiro(diluir as ações), o que provoca uma
queda exagerada nos preços das ações, que são por sua vez compradas a uma baixo preço
pelo emissor.
E eles justificam sua indiferença a partir de duas falácias: o lucro como índice máximo da
utilidade social de uma empresa e a igualdade contratual entre o emissor de novas ações e
os investidores.
Podemos olhar também para o industrial que abandona qualquer responsabilidade que não
seja o salário em relação a sua massa de empregados. E também para o proprietário de
jornais populares que nunca se vê como um propagador de opiniões e um construtor e
destruidor de conceito de conduta corretos. Ainda poderíamos falar do publicitário e
continuar indefinidamente esse elenco de elites que não assumem suas responsabilidades
como tais.
As autoridades espirituais e sociais
Um problema ainda mais importante é a ausência de autoridades espirituais e sociais. É
uma pura perda de tempo pregar regras para operadores de bolsas de valores inspiradas na
vida dos lavradores do patriarcalismo.
A tarefa daqueles que são na prática governantes, líderes, empregadores, gerentes,etc,
deveria ser a de orientar o destino de seus governados. Mas as palavras “governantes” e
“líderes” não podem ser aplicadas a eles; o falso dogma da igualdade, tão lisonjeiro aos
fracos, resulta na prática em uma libertinagem dos fortes.
Nunca na história a elevação social trouxe consigo tão poucas obrigações ou a desigualdade
real se mostrou tão opressiva quanto nesses tempos de igualdade mandatória. E tudo isso é
culpa de um pensamento estúpido que se nega a ver na sociedade qualquer coisa além do
indivíduo e do estado. Há razões intelectuais para isso (a imitação das ciências físicas por
parte das ciências sociais), mas também políticas: o estado e o indivíduo emergiram
triunfantes de sua longa guerra contra as autoridades sociais.
E como eles dividiram o espólio entre si? Ou o indivíduo tomaria todos os benefícios para
si – a solução individualista – ou o estado se tornaria o herdeiro das funções das
autoridades banidas – a solução estatista.
O século 19 buscou a primeira dessas soluções. Já vimos como isso abriu o caminho para
novas autoridades sociais , cuja ocultação permitiu uma irresponsabilidade sem igual. E
também vimos heresias bolorentas regressando como os partidos radicais da modernidade
e usurpando o trono da autoridade espiritual. O retorno triunfal do Poder se fez necessário.
A ocultação das elites produz a libertinagem geral
Sempre existiu e sempre existirão líderes de grupos, como o barão feudal e o capitão de
indústrias. E entre esses líderes há sempre aqueles que ditam o ritmo a enunciam os
padrões de comportamento: os anciões, cuja responsabilidade é exatamente dar o exemplo.
É uma metafísica desvairada aquela que nega a existência desses homens e os trata como
cidadãos ordinários. Ela não consegue suprimir sua autoridade e influência, mas somente
eximí-los da honrosa disciplina que os tornava servos do bem comum. Quando o interesse
se torna o único princípio da ação, os mesmos homens que deveriam assegurar a ordem se
tornam os disseminadores do caos.
É a partir daí a ordem só pode ser restaurada se o Poder formular até o mais mínimo
detalhe as regras de conduta de cada função particular. Mas a repressão só seria
completamente efetiva se tivéssemos mais policiais do que cidadãos. A propaganda e a
direção das consciências provaram ser um meio mais eficaz, mas que produz uma coesão
social de um tipo muito mais duro e primitivo do que a da sociedade destruída pela
Revolução.
Por não sabermos preservar e depois restaurar a harmonia delicada e orgânica de uma
sociedade altamente civilizada, estamos retornando às formas de coesão da tribo primitiva.
Voltamos aos totens e tabus, produtos de emoções descontroladas, mas que acarretam o
rótulo de inimigo do povo se ofendidos.
O que diriam os nossos livre-pensadores?
O que diriam os individualistas e livre-pensadores dos séculos 18 e 19 se vissem os ídolos
que os homens devem adorar hoje e as botas a que devem se curvar se desejam evitar a
perseguição? A superstição que professoram derrotar não pareceria o cume do iluminismo
comparado com o que temos hoje?
Mas foi sua metafísica imbecil, a qual se recusava a ver algo além do estado e do indíviduo,
que produziu o mundo moderno. Tocqueville, Comte, Taine e muitos outros profetizaram
o coletivismo futuro, mas em vão.
“Cassandras inúteis! E por que tão inúteis? Talvez as sociedades sejam governadas em sua
marcha por leis que ignoramos. Sabemos se era o seu o seu destino evitar os erros mortais
que se abateram sobre elas? Ou será que foram levadas até eles pelo mesmo dinamismo
que as ergueu ao topo? Será que as estações de flores e frutos não são atingidas à custa da
destruição das formas em que sua força estava armazenada? Depois dos fogos de artifício, a
escuridão de uma massa informe, destinada ao despotismo ou à anarquia.”