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Enquanto discutimos, o mundo aquece Apesar de todo o cepticismo e da ignorância de alguns líderes mundiais, as alterações climáticas são uma realidade. Mas talvez seja preciso que o ambiente prejudique mais o crescimento económico para levarmos o problema a sério Andrea Cunha Freitas cia? No que diz res- peito ao clima, o mundo está actual- mente a enfrentar as dois "castigos" ao mesmo tempo. Mas o problema é que ainda não dói. A per- cepção da maioria das pessoas coincide com o consen- so científico sobre estarmos a sen- tir os efeitos das alterações climáticas e de os seres humanos serem o seu principal agente causador. Porém, algures neste caminho, população, decisores e cientistas deixam de ca- minhar juntos. Até que ponto esta- mos mesmo preocupados com as alterações climáticas e com os cená- rios anunciados para 2100? Afinal, em 2100 não estaremos para ver. Muitos acreditam que a tecnolo- gia vai resolver os problemas do clima que hoje nos preocupam. E essa é uma perigosa percepção que, na rea- lidade, nos pode tramar. Esqueça as previsões para 2100 e modelos do clima concebidos por cientistas das mais reputadas organi- zações do mundo. Recorde apenas o tempo nos últimos dias. Esta semana os dias estarão mais cinzentos, mas, em Fevereiro, as temperaturas em

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Page 1: Press Review page - ULisboa · Portugal ultrapassaram os 25 graus em várias cidades, muito acima da média para a altura do ano, e o inusi- tado Verão foi estranhamente bem acolhido

Enquantodiscutimos,o mundoaqueceApesar de todo o cepticismo e da ignorância de algunslíderes mundiais, as alterações climáticas são uma realidade.Mas talvez seja preciso que o ambiente prejudique maiso crescimento económico para levarmos o problema a sério

Andrea Cunha Freitas

cia? No que diz res-

peito ao clima, omundo está actual-mente a enfrentar as

dois "castigos" aomesmo tempo. Maso problema é queainda não dói. A per-cepção da maioria

das pessoas coincide com o consen-so científico sobre estarmos já a sen-tir os efeitos das alterações climáticas

e de os seres humanos serem o seu

principal agente causador. Porém,algures neste caminho, população,decisores e cientistas deixam de ca-minhar juntos. Até que ponto esta-mos mesmo preocupados com as

alterações climáticas e com os cená-rios anunciados para 2100? Afinal,em 2100 já não estaremos cá para

ver. Muitos acreditam que a tecnolo-

gia vai resolver os problemas do clima

que hoje nos preocupam. E essa é

uma perigosa percepção que, na rea-lidade, nos pode tramar.

Esqueça as previsões para 2100 e

modelos do clima concebidos porcientistas das mais reputadas organi-zações do mundo. Recorde apenas o

tempo nos últimos dias. Esta semanaos dias estarão mais cinzentos, mas,em Fevereiro, as temperaturas em

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Portugal ultrapassaram os 25 grausem várias cidades, muito acima damédia para a altura do ano, e o inusi-tado Verão foi estranhamente bemacolhido em pleno Inverno. Sabebem, é certo, mas não é normal. Umdias antes, em Janeiro, os EUA atra-vessaram uma das piores vagas defrio de todos os tempos com tempe-raturas mínimas de 40 graus negati-vos e num dos seus insensatos desa-

bafos, o Presidente norte-americanoDonald Trump tweetou para o mun-do: "Mas o que é que se passa com o

Aquecimento Global? Volta depressa,por favor, precisamos de ti!" O mun-do, que ainda lhe presta atenção,respondeu com indignação e factos.O "tal" aquecimento estaria naqueleexacto momento atrapalhado a sufo-

car a Austrália com mais de 40 grausCelsius positivos em muitas cidades.Por todo o lado, os cientistas foramchamados a comentar o fenómenoclaramente associado às alteraçõesclimáticas. 0 aquecimento global é

uma das manifestações das alteraçõesclimáticas. Como os fenómenos extre-mos também são. Ou seja, como as

vagas de frio também são. Ou osincêndios ou os furacões ou as inun-

dações ou as secas.

Portugueses preocupados?Mas deixemos o mau exemplo dos

EUA, que tem servido para reconfor-tar muitos líderes mundiais com acerteza de que há pior do que nãofazer nada. No final do ano passado,foram divulgados os resultados do

Inquérito Social Europeu sobre alte-

rações climáticas e energia. O docu-mento destaca Portugal: "A preocu-pação com as alterações climáticas é

particularmente elevada em Portugal,Espanha e Alemanha, sendo que Por-

tugal é único país onde mais de 50%da população refere estar muito ouextremamente preocupada com aquestão." Os portugueses voltam aser chamados quando se fala na preo-cupação com a acessibilidade da

energia mostrando que só são ultra-

passados por Espanha (com 70%) nainquietude de 68% dos inquiridossobre este tema.

Apesar disso, o Eurobarómetrodivulgado no final de Fevereiro deste

ano refere que as preocupações dos

portugueses com o ambiente, climae energia ficam bem abaixo dos 14%

da média europeia, registando ape-nas 3%. Em que ficamos? "Pois, nãosei explicar", responde o físico FilipeDuarte Santos, especialista em alte-

rações climáticas da Faculdade deCiências da Universidade de Lisboa e

presidente do Conselho Nacional doAmbiente e do Desenvolvimento Sus-

tentável (CNADS).Os especialistas dizem que a per-

cepção das pessoas está muito rela-cionada com o que acontece porperto. Mais do que as imagens decatástrofes longínquas, para o cida-dão comum importa o que aconteceà nossa porta. Mas o tempo que faz

hoje na nossa cidade é algo muitodiferente do clima, avisa Filipe Duar-te Santos. "Temos uma percepçãomuito imediatista e uma memóriacurta sobre o tempo, queremos queeste fim-de-semana esteja sol porque

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temos planos, um agricultor já vai

querer que chova porque está preo-cupado com a sementeira que fez",exemplifica. O clima é outra história,mede-se com instrumentos e obser-

vações cuidadosas e analisa-se emperíodos de 30 anos. "Através de inú-meros dados relativos ao historial demilhões de anos da temperatura e da

composição da atmosfera, os cientis-

tas sabem que a mudança que esta-mos a presenciar não tem preceden-tes", garante Francisco Ferreira,presidente da associação ambienta-lista Zero.

A metáfora do sapo a ferverMas a percepção das pessoas estaráassim tão distante da narrativa doscientistas? "Estamos a falar de um

fenómeno global que se manifesta deformas muito diferentes em diferen-tes partes do mundo. Há lugares, porexemplo, onde está a chover mais do

que no passado. E as pessoas acabam

por ter apenas a percepção do que se

passa no sítio onde estão", diz FilipeDuarte Santos. Ler numa notícia queos EUA tiritam de frio enquanto os

australianos derretem à sombra não

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é suficiente para convencer as pes-soas, defende o físico. O clima é

influenciado por muitos factores,agentes extraterrestres e terrestres,naturais ou antropogénicos (causados

pelas actividades humanas), queinteragem uns com os outros de for-mas diferentes em diferentes locais.

Por isso, conclui Filipe Duarte San-tos: "As pessoas não têm noção da

gravidade do que se está a passar. Não

percebem que estamos num proces-so que não está controlado, estamosa modificar a composição da atmos-fera. A narrativa científica identificouesse problema e as consequências.Mas são efeitos que não são imedia-tos, é um processo relativamentelento. Não parece ser uma catástrofedramática para a maior parte das pes-soas do mundo." Pelo menos, porenquanto.

Francisco Ferreira alinha no mes-mo discurso. "A situação actual é mais

grave do que a percepção comum,mas tal é compreensível na medidaem que a resiliência do clima leva a

que a tradução do aquecimento glo-bal em impactes e consequências quepoderão ser dramáticas demora o seu

tempo", diz. Um estudo divulgado nofinal de Fevereiro na revista científicaPNAS analisou mais de dois milmilhões de publicações nas redessociais e encontrou o efeito do "sapoa ferver", ou seja, as pessoas estão ahabituar-se às temperaturas histori-camente extremas. Reza a história(um mito, já que cientificamente a

experiência não se comprova) queum sapo colocado em água quentereage e salta fora do recipiente, masse o colocarmos na água fria e formos

aquecendo a água progressivamente,ele ficará parado, a cozer lentamente.O sapo seríamos nós, claro. Ao quetudo indica, a nossa curta memóriaem relação ao clima guarda apenas o

que se passou nos últimos dois a oitoanos e, assim, acaba por normalizaras condições extremas que vivemos.

A água (ainda) não está a ferver,mas também não sabemos como des-

ligar o lume. E a preocupação quepode existir em muitas pessoas esbar-

ra numa certa impotência, defende

Filipe Duarte Santos. Fala-se, porexemplo, na urgência de fazer umatransição energética, de deixarmos

de consumir combustíveis fosseis,mas ainda não há alternativa. "Comoé que me desloco? Tenho o meu car-

ro, é muito confortável, tenho gasoli-na em vários postos espalhados pelasestradas fora. A questão ultrapassa a

maior parte das pessoas. E essa maior

parte desliga-se", constata o físico.Paulo Santos, professor na Facul-

dade de Ciências da Universidade doPorto, é um dos autores de um estudorelacionado com as percepções dosestudantes universitários portugue-ses sobre mudanças climáticas. O

mais grave, diz, é "a inconsistênciaentre as atitudes e a percepção queanunciam, desde o cidadão ao deci-sor". Mais de 120 estudantes foraminquiridos em 2015 e 99% disseram

que acreditavam que as alteraçõesclimáticas estavam mesmo a aconte-cer. No entanto, apenas 44% afirma-ram estar muito preocupados com o

tema, 74% defenderam que as acções

para mitigar os efeitos das alteraçõesclimáticas devem ser tomadas pelosgovernos e 34% respondeu que nãofazia nada para travar o fenómeno.

O movimento pela "justiça climáti-ca" iniciado recentemente pelajovemactivista sueca Greta Thunberg podeser um sinal de mudança ou apenasuma moda passageira. GretaThunberg, de 16 anos, iniciou - sozi-nha - uma greve estudantil pelo clima

que a tornou um fenómeno mun-dial. Mas será que esta atitude maiscombativa vai durar e vai mudar algu-ma coisa?

No dia-a-dia das pessoas encontra-mos uma crónica miopia. Temos con-tas para pagar agora, no final deste

mês, e, por isso, é difícil ficar muitoinquieto com um planeta aflito em2100. Até lá, logo se verá. Muitos apos-tam na inovação e desenvolvimento

tecnológico que (cruzem-se todos osdedos das mãos e dos pés) será capazde desencantar uma solução milagro-sa para o problema das alteraçõesclimáticas. Se um dia correremos orisco de ver desaparecer as nuvens e

com isso a temperatura aumentarsignificativamente, como refere umestudo publicado há poucos dias narevista Nature Geoscience, hão-de apa-recer cientistas fazedores de nuvens.Se os oceanos mudarem de cor e o

planeta Terra visto do espaço tam-

bém, havemos de conseguir forçar oazul. A jogada é arriscada. Porque nãohá plano B ou, como anunciam osambientalistas e activistas, não háplaneta B. "A perspectiva de surgiremtecnologias que nos permitam ate-nuar o ritmo do aquecimento globalé ainda muito incerta e com custosmuito elevados, o que nos leva a terde fazer apostas mais estruturantes",afirma Francisco Ferreira.

A época do egoísmoDepois, há muitas pessoas que des-

cansam a cabeça na almofada dopoder e dever dos decisores políticos.Afinal, tivemos (com mais ou menosambição) o Acordo de Paris de 2015,com os líderes mundiais a concordarna urgência de salvar o planeta ereduzir as emissões de dióxido decarbono (CO2) para a atmosfera. O

Acordo de Paris tem por objectivonão aumentar a temperatura média

global do planeta em mais de dois

graus Celsius relativamente aoperíodo pré-industrial (cerca de

1850). Neste momento, já se aumen-tou essa temperatura em 0,87graus Celsius. Portanto, só temosmais um grau Celsius.

Em 2018 as emissões de CO2 conti-

nuaram a aumentar e as concentra-ções de CO2 na atmosfera aumenta-ram em média cerca de 2,3 partes pormilhão, para atingir cerca de 407 par-tes por milhão ao longo do ano. Ou

seja, 45 % acima dos níveis pré-indus-triais. O ar está cada vez mais pesadoe o planeta cada vez mais ofegante."Estamos numa verdadeira emergên-cia climática ao estarmos a atingirníveis de dióxido de carbono naatmosfera que são inéditos, a estabe-lecermos recordes de temperatura oua olharmos para as últimas décadascomo as mais quentes desde que há

medições fiáveis da temperatura",insiste Francisco Ferreira.

É verdade que o clima tem varia-

ções desde que a Terra existe. Ao

longo de milhões de anos, há épocasgeladas que alternam com períodostórridos. É, portanto, um caminhonatural? Não. A rapidez das mudan-

ças climáticas nos últimos cem anosnão tem precedentes.

Mas ainda não o sentimos na pele."Estamos numa época em que o que

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conta são os nossos interesses pes-soais. É a época do egoísmo", reageFilipe Duarte Santos. E nos nossosinteresses pessoais não cabe a velhahistória de preservar o futuro dos

nossos netos? "Isso cabe, mas de umamaneira muito abstracta. É aí queentra a convicção errada de que quan-do os nossos netos tiverem a nossaidade o mundo vai estar muito melhordo que agora, as tecnologias e a ciên-cia vão evoluir extraordinariamentee isto que parecia um problema difi-cílimo de resolver afinal resolve-semuito facilmente", diz o físico, resu-mindo que "este é o discurso da eco-nomia neoclássica ou, se preferir,neoliberal".

Por falar em economia, o físicolembra ainda que o ambiente é sem-

pre considerado como um "empeci-lho" ao desenvolvimento. Mas, avisa,"o que estamos a fazer em termos de

degradação ambiental, exploração derecursos e alterações climáticas jáestá a ter um impacto negativo sobreo crescimento económico". As alte-

rações climáticas já custam caro."Mas é preciso que custe muito mais."Só com essa percepção vamos teroutra realidade.

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