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(Des) Apontamentos sobre a Base Nacional Curricular Comum (BNCC) a partir de uma tese sobre consensos e assimetrias nas políticas curriculares para a disciplina História no Brasil Kleber Luiz Gavião Machado de Souza 1 [email protected] “Toda pedagogia cínica, isto é, consciente de si enquanto manipulação, mentira ou passatempo fútil, destruiria a si mesma: ninguém pode ensinar verdadeiramente se não ensina alguma coisa que seja verdadeira e válida aos seus próprios olhos" (FORQUIN, 1993, p.9). Desde os anos de 1960, no contexto da agitação cultural e institucional que marcou a crítica aos sistemas de ensino no velho mundo e posteriormente no Brasil, a questão dos conteúdos escolares (sua natureza, utilidade, interesse e valor intrínseco) nunca deixou de ser uma temática cara aos vários atores sociais que disputam os sentidos para a formação de crianças e jovens. Conforme Jean Claude Forquin (1993), tal crise está ligada principalmente a perda da centralidade da transmissão dos conteúdos enquanto aquisição de uma “cultura geral”. Assim, “o círculo dos saberes formadores, aquilo que os Gregos chamavam o ‘enkuklios paidéia’, perdeu seu centro e seu equilíbrio” (FORQUIN, 1993, p.10). A transmissão cultural da educação deixou de objetivar a formação do “homem cultivado” e passa a ser a difusão da memória viva de uma sociedade e do conjunto de qualidades, competências, disposições que se considera desejáveis para a manutenção da mesma (FORQUIN, 1993, p.11). No Brasil, estamos mais uma vez em um momento crítico de reconfiguração dos currículos no Brasil, de reconstrução do significado dos conteúdos escolares materializado nas discussões que envolvem a definição de uma Base Nacional Curricular Comum (BNCC) para a Educação Básica. Especificamente, entre os pesquisadores do ensino de história, cuja problemática tornou-se muito mais aguda devido ao desconforto gerado pela primeira versão do documento (já sufocada), o debate tem se reproduzido em diversos canais institucionais, como eventos 1 Doutor em Educação pelo Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PPGED/UFRN) e professor de História no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte campus São Paulo do Potengi (IFRN/SPP).

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(Des) Apontamentos sobre a Base Nacional Curricular Comum (BNCC) a partir

de uma tese sobre consensos e assimetrias nas políticas curriculares para a

disciplina História no Brasil

Kleber Luiz Gavião Machado de Souza1 [email protected]

“Toda pedagogia cínica, isto é, consciente de si enquanto manipulação,

mentira ou passatempo fútil, destruiria a si mesma: ninguém pode ensinar

verdadeiramente se não ensina alguma coisa que seja verdadeira e válida

aos seus próprios olhos" (FORQUIN, 1993, p.9).

Desde os anos de 1960, no contexto da agitação cultural e institucional que

marcou a crítica aos sistemas de ensino no velho mundo e posteriormente no Brasil,

a questão dos conteúdos escolares (sua natureza, utilidade, interesse e valor

intrínseco) nunca deixou de ser uma temática cara aos vários atores sociais que

disputam os sentidos para a formação de crianças e jovens.

Conforme Jean Claude Forquin (1993), tal crise está ligada principalmente a

perda da centralidade da transmissão dos conteúdos enquanto aquisição de uma

“cultura geral”. Assim, “o círculo dos saberes formadores, aquilo que os Gregos

chamavam o ‘enkuklios paidéia’, perdeu seu centro e seu equilíbrio” (FORQUIN, 1993,

p.10). A transmissão cultural da educação deixou de objetivar a formação do “homem

cultivado” e passa a ser a difusão da memória viva de uma sociedade e do conjunto

de qualidades, competências, disposições que se considera desejáveis para a

manutenção da mesma (FORQUIN, 1993, p.11).

No Brasil, estamos mais uma vez em um momento crítico de reconfiguração

dos currículos no Brasil, de reconstrução do significado dos conteúdos escolares

materializado nas discussões que envolvem a definição de uma Base Nacional

Curricular Comum (BNCC) para a Educação Básica. Especificamente, entre os

pesquisadores do ensino de história, cuja problemática tornou-se muito mais aguda

devido ao desconforto gerado pela primeira versão do documento (já sufocada), o

debate tem se reproduzido em diversos canais institucionais, como eventos

1 Doutor em Educação pelo Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PPGED/UFRN) e professor de História no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte campus São Paulo do Potengi (IFRN/SPP).

organizados por associações corporativas, blogs especializados, produções

acadêmicas, listas de e-mails, e fóruns de discussão e grupos de trabalho.

Atualmente, não faltam informações atualizadas para um debate qualitativo

sobre a relevância em torno do estabelecimento de mínimos curriculares

democraticamente estabelecidos. Este breve ensaio busca refletir sobre alguns

aspectos que envolveram a construção da BNCC de História e alguns dos argumentos

contrários à sua efetivação que circulam no debate público através da análise das

falas de três personagens da intelectualidade brasileira que opinaram diretamente

sobre a questão: o filósofo e ex-ministro da Educação Renato Janine Ribeiro e os

historiadores Ronaldo Vainfas e Mary del Priore.

As conjecturas aqui expostas são fruto de reflexões paralelas efetuadas no

percurso de escrita da minha tese de doutorado sobre os consensos e assimetrias

nas políticas curriculares da disciplina História entre os anos de 1998 a 20122. A

escrita do texto se deu no período em que a polêmica em torno da BNCC estava viva

e pulsante, quando mobilizava a imprensa e as discussões sobre a história ensinada.

Assim, as opiniões desses autores serão intercaladas com algumas reflexões feitas

no percurso desse trabalho.

Entretanto, o presente texto possui um gosto relativamente amargo, primeiro

por estar sendo publicado de forma tardia devido a uma série de imprevistos que me

impediam de dedicar-me integralmente a essa escrita. Em segundo lugar, pelo fato de

que tão rápido quanto surgiu a efervescência em torno do assunto, já começa a dar

sinais de enfraquecimento, visto que uma segunda versão da BNCC de história foi

misteriosamente publicada e não gerou nem de perto o grau de mobilização da

primeira. Por fim, a sensação ao escrever esse texto é a de que perdi “o bonde da

2 A pesquisa intitulada Consensos e assimetrias nas políticas curriculares para a disciplina história no ensino médio brasileiro (1998- 2012) foi desenvolvida durante o período de estudos como aluno do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PPGED/UFRN), cujo objetivo é investigar os consensos e assimetrias entre conceitos, competências e habilidades históricas presentes no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e no Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) em comparação com às prescrições contidas nos Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (PCNEM). Assim, busco contribuir com alguns subsídios para a discussão a partir da triangulação entre três políticas educacionais voltadas para o ensino de História (SOUZA, 2016). A investigação limitou-se a análise dos conteúdos conceituais e das competências e habilidades presentes nas três políticas educacionais citadas enquanto diferentes instâncias de objetivação do currículo de História para o Ensino Médio. A tese que subsidia este artigo é um estudo comparativo dos conhecimentos que se deve saber e as capacidades que se deve desenvolver de acordo com os PCNEM, ENEM e PNLD, buscando as dissonâncias entre saber-fazer da disciplina História no estudo de três políticas educacionais.

história”, sensação reforçada pelo consenso (estranhamente conveniente) de que o

avanço do Escola Sem Partido teria obliterado a discussão sobre a BNCC enquanto

problema “menos urgente”. Na verdade, considero que a questão do crescimento do

ESP e a celeuma em torno da BNCC não estão desligadas.

Nas discussões sobre a implementação da BNCC, a componente História tem

sido alvo de duras críticas por parte de setores da intelectualidade brasileira e algumas

corporações profissionais. Algumas dessas críticas estão baseadas, a meu ver, na

incompreensão da noção de currículo, que, por sua vez, está assentada em um

entendimento raso sobre o conceito de ideologia (o que abre espaço para a ideia de

que se pode construir uma política do conhecimento lastreada apenas por escolhas

técnicas) e no desconhecimento sobre a produção em ensino de história no Brasil.

Tais incompreensões dificultam um debate qualitativo, fazendo com que grandes

nomes da historiografia brasileira divulguem simplificações explicativas sobre a

questão.

Não compreender a natureza seletiva e conflituosa do currículo ou querer

dobrar a sua complexidade a caprichos críticos não é por si um problema e nem é a

intenção aqui afirmar que existe uma única definição para o termo, mas é importante

esclarecer alguns pontos que podem nos ajudar a não fornecer “munição” a

movimentos conservadores que se baseiam em premissas semelhantes, como é o

caso do ESP, por exemplo.

O conceito de ideologia merece uma atenção especial nesse debate. Uma

maior precisão no seu entendimento parece ser um dos núcleos dessa discussão.

Apesar de óbvio, é necessário afirmar que há vários entendimentos para o conceito.

Terry Eagleton, por exemplo, teórico dos Estudos Culturais lista nada menos que 16

interpretações do termo, que se sobrepõem muitas vezes às noções de “cultura”,

“visão de mundo”, “alienação”, “representações”, etc. (MAGALHÃES, 2016, p.103).

É um conceito difícil de precisar, mas que na atual discussão sobre a BNCC

tem sido reduzida a acepção que se naturalizou no século XIX através do marxismo,

onde ideologia seria um sistema de produção de ideias descoladas da realidade

concreta, elaborada pelos grupos dominantes e que serve para legitimar no plano

cultural a dominação econômica desses sobre outros.

Entretanto, existe um consenso de que essa concepção é datada e que

nenhuma sociedade está desprovida de crenças e valores que subsidiam a

construção da ideologia. É possível existirem ideologias dentro das ideologias. O

ápice dessa restrição de significado é a acusação tautológica de que algo ou alguém

dentro do plano da cultura pode ser ideológico, ou seja, que suas concepções estão

descoladas da realidade objetiva e que pode existir uma análise das condições que

seja neutra (SILVA e SILVA, 2010, p.207). Dentro dos referenciais da Escola de

Frankfurt, ideologia diz respeito a uma

organização de opiniões, atitudes e valores um modo de pensamento do homem e da sociedade. Podemos falar de uma ideologia total do indivíduo ou de uma ideologia com relação a diferentes aspectos da vida social: economia, religião, grupos minoritários e assim por diante. As ideologias têm uma existência independente em relação à qualquer indivíduo; e aqueles que existem em uma determinada época são resultado ao mesmo tempo de processos históricos e eventos sociais contemporâneos. Essas ideologias têm diferentes graus de apelo para diferentes indivíduos, pois isso depende das necessidades individuais e do grau em que essas necessidades estão sendo satisfeitas ou frustradas (ADORNO, 1989, p.2).

O filósofo Renato Janine Ribeiro pode fornecer um exemplo prático do que

estamos falando enquanto exemplo das incompreensões a que me refiro. Em sua

rápida trajetória como ministro da Educação teve de enfrentar a complicada questão

da BNCC e, durante a polêmica gerada pela primeira versão para a disciplina História,

expôs uma posição, a meu ver, embaraçosa.

Em sua conta em uma rede social, à época em que o debate sobre a temática

incendiava as discussões na imprensa e já desligado da função de ministro, Janine

Ribeiro afirmou:

O que eu pensava para a base comum em História era que ela tratasse da história do Brasil e do mundo, sendo que esta não se deveria limitar ao Ocidente e seus precursores, mas incluir - desde a Antiguidade - a Ásia, bem como a África e a América pré-colombiana. Primeiro de tudo, uma história não eurocêntrica. Segundo, uma história que não se concentrasse, como era costume muito, muito tempo atrás, nos reis e grandes homens, mas tratasse de tudo o que a disciplina foi estudando nas últimas décadas - mentalidades, economia, rebeliões, cultura. O documento entregue, porém, na sua primeira versão ignorava quase por completo o que não fosse Brasil e África. Pedi que o revissem3.

Em um dos trechos afirma:

3Disponível:<https://www.facebook.com/renato.janineribeiro/posts/1170416659639795?__mref=mess

age_bubble>.

Finalmente: na transmissão do cargo, ontem, deixei claro que pretendia, da base de História, que desse um ensinamento crítico, "mas sem descambar para a ideologia". É direito de todo jovem saber o trajeto histórico do mundo. Precisa aprender sobre a Renascença, as revoluções, muita coisa.

Ainda na mesma postagem, ao expor parte da “caixa preta” da formulação da

base curricular, aponta para o que ele considerou à época a solução mais lúcida para

a problemática de construção de direitos mínimos de aprendizagem: os livros

didáticos.

Pedi ao FNDE os livros didáticos mais solicitados. Examinei-os. Vi que começavam geralmente no 6.o ano do Fundamental com a Antiguidade, mas nunca se confinavam às "raízes do Ocidente" e sim iam para os outros continentes etc. etc. Não se bastavam nos reis, mas mostravam rebeliões, divergências etc. Eles me pareceram muito razoáveis. Mas o grupo que elaborava a base não entendia assim. Não havia sequência histórica. Queriam partir do presente para ver o passado. No caso do Brasil, p ex [sic], propunham a certa altura estudar revoluções com participação de escravos ou índios. E deixavam de lado a Inconfidência Mineira! Certamente, porque o espírito dela era bem pouco abolicionista. Solicitei expressamente que ela fosse incluída. Você pode até discordar dos inconfidentes, criticá-los, mas tem que conhecê-los.

A fala do ex-ministro é rica em mal-entendidos. O que podemos interpretar

dela? Um primeiro aspecto é que ao acusar a primeira versão da base curricular de

ser ideológica, Janine Ribeiro não explica como um currículo nacional pode sustentar-

se sem uma ideologia, ou seja, (usando os vários sentidos que o termo pode ter) sem

uma visão de sociedade e de mundo, sem operar uma seleção no interior da cultura.

Essa pretensão de neutralidade, baseada em uma noção difusa de ideologia,

muito interessa a movimentos de caráter conservador que tem reivindicado (e com

expressivo êxito) a proposição de currículos para a Educação Básica. É o caso do

movimento Escola sem Partido4, que tem proposto, através de um movimento

4 A expressão batiza não apenas o projeto de lei, mas também o nome de um movimento, de caráter

abertamente autoritário, liderado pelo Procurador do Estado de São Paulo, Miguel Nagib e que tem

feito investidas contra o trabalho docente em vários estados brasileiros. No site do ESP

(www.escolasempartido.org) o movimento se define como “uma iniciativa conjunta de estudantes e pais

preocupados com o grau de contaminação político-ideológica das escolas brasileiras, em todos os

níveis: do ensino básico ao superior”. Já no site que divulga o “programa escola sem partido”

(http://www.programaescolasempartido.org/), o movimento se define como um projeto de lei (ou seja,

não é um movimento, apesar de agirem como um nas redes sociais) que torna obrigatória a afixação

bastante organizado e com grande representação política, uma “descontaminação

ideológica” dos currículos escolares através da supressão de qualquer abordagem

nos conteúdos que vá de encontro aos valores familiares do aluno. De forma geral,

ideologia para o ESP é pura e simplesmente falsificação de uma realidade objetiva

que existe enquanto coisa em si, algo que cria uma névoa sobre nossa visão, e o seu

contrário é a neutralidade, ou seja, existem pessoas “neutras”, que enxergam sem os

óculos da ideologia e pessoas ideológicas, que usam lentes “fundo de garrafa”.

Maniqueísmo puro e uma simplificação brutal da noção de ideologia.

Entretanto, quando falamos que um currículo de história é “ideológico demais”,

ou seja, que deve existir um limite axiologicamente saudável no grau de envolvimento

dos conteúdos históricos com um projeto de sociedade através da educação escolar,

indiretamente, acabamos coadunando com essa prerrogativa conservadora proposta

pelo ESP. É um “fogo amigo” desnecessário ao debate.

Não se trata, obviamente, de defender que o proselitismo e a desonestidade

intelectual na interpretação da experiência histórica tenham caminho aberto na

formação dos jovens - até por que na elaboração de currículos em suas diferentes

instâncias de objetivação, existem mecanismos de avaliação referendados pela

comunidade de especialistas - mas também não se deve cair na sedução fácil de que

é possível uma escolha de conteúdos que formem uma narrativa que não privilegie

“essa” ou “aquela” visão de mundo.

Sobre o “descambar para a ideologia”, as assertivas de Sonia Regina Miranda

e Yara Cristina Alvim (2014) são bastante pertinentes. Elas afirmam que setores da

sociedade ainda alimentam a ideia de História enquanto relato objetivo dos

acontecimentos e da ciência em geral como sinônimo de objetividade e verdade,

em todas as escolas de nível fundamental e médio de um cartaz com 6 deveres do professor, todos

eles relacionados a não interferência do mesmo na educação moral e formação político-ideológica dos

alunos. O seu único objetivo seria, portanto “[...] informar e conscientizar os estudantes sobre os direitos

que correspondem àqueles deveres, a fim de que eles mesmos possam exercer a defesa desses

direitos, já que dentro das salas de aula ninguém mais poderá fazer isso por eles”.

O grande objetivo do ESP é a aprovação do PL nº 867/2015 que visa incluir entre as diretrizes e bases

da educação nacional, o "Programa Escola sem Partido", que é um apensado dos 11 projetos de lei

que tramitam atualmente no Brasil ligados ao ESP e que visam combater a “contaminação ideológica”

através da supressão de temas como “política”, “gênero”, “diversidade sexual” etc.

esquecendo que a História é conhecimento plural e multiperspectivado mesmo que

em torno de um método comum.

Antes de tudo, trata-se de um olhar sobre a verdade como saber acabado e unívoco e, ao lado disso, um olhar sobre o saber histórico como uma narrativa que apresenta uma seleção de fatos reais e verdadeiros, constituídos a partir de uma operação pautada na busca da exatidão (ALVIM e MIRANDA, 2014, p.394).

Ainda na fala de Janine Ribeiro, é difícil enxergar como “direito de saber” um

currículo cuja gama de conteúdos que, quando ameaçados de perder a centralidade,

tem a sua volta imediatamente exigida e tendo como parâmetro de razoabilidade umas

das formas de seleção curricular mais eivadas pela tradição, como é o caso dos livros

didáticos. É difícil enxergar também como direito um trajeto histórico cujo ponto de

partida está previamente definido, ou seja, onde qualquer narrativa sobre a

experiência brasileira precisa começar pelos pontos de partida já consagrados pela

tradição escolar.

Outras duas questões surgem da leitura do trecho: Se os livros didáticos são

tão razoáveis, por que elaborar uma base curricular? Se os inconfidentes (e outros

conteúdos podem servir de exemplo) são tão imprescindíveis, por que o ex-ministro

não gastou algumas linhas em sua defesa? Será mesmo que os livros didáticos podem

ser utilizados como parâmetro para a construção de um currículo nacional? Acredito

na verdade que eles sejam parte do problema na problemática questão da entrada e

saída de conteúdos.

Não custa reforçar que se a educação é um esforço voluntário de comunicação,

transmissão e aquisição de conhecimentos, competências, crenças, hábitos e valores

enquanto conteúdo” da educação “a escola não ensina senão uma parte

extremamente restrita de tudo o que constitui a experiência coletiva”, ou seja, no

interior da seleção cultural operada pelo currículo, nem tudo é de igual utilidade

(FORQUIN, 1993, p. 10-15).

O currículo expressa um “projeto seletivo da cultura, cultural, social, política e

administrativamente condicionado, que preenche a atividade escolar e que se torna

realidade dentro das condições da escola tal como se acha configurada”

(SACRISTÁN, 2000, p34). Não é composto apenas de conteúdos, mas também de

finalidade e saberes culturais estruturado a partir de “chaves psicopedagógicas”

dentro de um projeto socializador, formativo e cultural da escola (SACRISTÁN, 2000,

p.17-20).

Assim, partindo desses pressupostos, sempre que se diz que um conteúdo

histórico é importante e não deve ser retirado, é no mínimo coerente explicar qual é o

seu valor intrínseco na construção no projeto formativo da cultura que constitui o

currículo. Tais assertivas nos ajudam a definir uma noção de currículo distante dos

preciosismos que envolvem a seleção de conteúdos na forma como está expresso no

depoimento de Janine Ribeiro.

Seguindo com os comentadores, partimos para o segundo exemplo. Em um

artigo intitulado a nova face do autoritarismo5, o historiador Ronaldo Vainfas faz uma

dura crítica a possibilidade de uma base curricular, ao afirmar que a proposta da

BNCC é fruto do autoritarismo “lulopetista” que pretende fazer uma história

doutrinadora que jogaria fora a grande conquista do ensino de história no Brasil: os

Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN). Estes seriam responsáveis por garantir a

interdisciplinaridade e ao mesmo tempo a especificidade do conhecimento histórico:

a diacronia e as particularidades. Além disso, afirma que a ideia de uma base comum

“é, por si mesmo, discutível, ao presumir uma uniformidade de conhecimentos

desejáveis, sobretudo em História, para um país gigantesco e diverso”.

Quanto a natureza dos conteúdos selecionados na primeira versão, afirma que:

A disciplina História prevista pelo regime lulopetista estabelece para o fundamental I o ensino de sujeitos, grupos sociais, comunidades, lugares de vivências e, por fim, o dos “mundos brasileiros”. Conceitos abstratos e anódinos, impossíveis de serem ensinados a crianças, salvo como doutrina. Os primeiros dois anos do fundamental II prosseguem nesta linha abstrata de “processos e sujeitos”.

Mais uma fala rica em incompreensões, não apenas sobre a noção de currículo

que esboçamos anteriormente, mas sobre as próprias possibilidades de

aprendizagem histórica esboçadas pelas de pesquisa em ensino de História no Brasil

nas últimas décadas. Vamos comentar ponto a ponto.

Primeiramente, o aspecto que chama atenção na fala do autor é a redução do

problema da BNCC a uma questão de legendas partidárias, de lulopetismos e

chavismos, ou seja, de ideologias descoladas da realidade (mais uma vez aparece a

5. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/opiniao/nova-face-do-autoritarismo-18225777#ixzz3wEeEUGt7>.

noção de ideologia enquanto sistema de ideias que turvam a visão das condições

objetivas). Baseado no conceito de currículo enquanto uma construção social que

expressa o conflito entre os diversos atores e os valores dominantes, a concepção de

Vainfas é uma interpretação reducionista da gama de fatores que influenciam em sua

constituição.

A lógica de argumentação do autor é a personalização das políticas

educacionais, ou seja, desconsidera as contradições que constituem a elaboração das

políticas públicas, o conflito de interesses inerentes a sua elaboração, as assimetrias

e relações de força e o caráter aberto de seus documentos, que permitem

interpretações e reinterpretações que geram significados diversos do esperado (BALL

e MAINARDES, 2011)

O que assusta é a semelhança discursiva com os argumentos que tem sido

utilizado por movimentos conservadores a exemplo do Escola sem Partido, que em

vários momentos do debate público tem reduzido a complexa problemática do caráter

político do ato pedagógico a uma mera questão de legendas, ou seja, para o ESP

política é sinônimo de partido e, mais rasteiramente ainda, de um partido específico:

o Partido dos Trabalhadores (PT).

Outro ponto que merece destaque na fala é que o suposto legado dos PCN não

é consensual. Enquanto política curricular, os PCN tornaram-se o típico exemplo de

documentos educacionais que possuem pouca influência no cotidiano docente,

ocasionada principalmente pela recusa dos profissionais de ensino a proposta. A

literatura da área reforça essa distinção ao enxergar nos PCN documentos descolados

da prática efetiva do professor e portadores do discurso da mudança, do otimismo e

da lógica dicotômica velho/novo veiculado no discurso dos burocratas e técnicos

governamentais (SOUZA, 2016, p.30)6.

Além disso, existe um outro problema fundamental nesses documentos, que é

a miscelânea de lugares comuns do ensino de história, resultaram em jargões como

6 Para Itamar Freitas (2010), várias críticas podem ser atribuídas aos PCN de História, como a falta de diálogo com as entidades de classe, a ineficiência do Estado em circular o documento, a linguagem do texto que dificultou a compreensão do professorado, etc. Porém, independentemente das razões de descontentamento, o desinteresse e/ou desconhecimento por parte dos profissionais de ensino gerou um empobrecimento do debate e das possibilidades de avanço para a melhoria da educação escolar no Brasil. Como consequência disso, os livros didáticos, os planos de ensino de empresas especializadas e algumas práticas pedagógicas cristalizadas ganharam força de diretriz curricular na experiência brasileira (FREITAS, 2010,157-158).

“construção do conhecimento”, “realidade do aluno”, “conteúdos com utilidade para a

vida prática”, entre outras ideias que, de tão repetidas, “não pertencem mais a um

autor, fazem parte do senso comum do discurso sobre a escola” (OLIVEIRA, 2011,

p.140).

Do ponto de vista historiográfico, os PCN advogam a ideia de uma correlação

entre os pressupostos teóricos e metodológicos da História Nova com as concepções

de ensino de história elencadas acima. Há uma adaptação dos arquétipos franceses

para a disciplina mesmo considerando que, dos autores citados na bibliografia do

documento, apenas um dedique-se as questões do ensino. A maioria dos

historiadores convocados a fornecer remédios tem concepções de ensino que

destoam totalmente do que é apregoado nos parâmetros (OLIVEIRA, 2011, p. 141-

155).

Especificamente, no documento para o Ensino Médio (PCNEM), a nossa

pesquisa demonstrou que algumas dessas mesmas conclusões levantadas pela

autora se reproduzem. Tal concepção historiográfica não seria um problema se

dialogasse com o modelo pedagógico das competências e habilidades (SOUZA,

2016).

Mas, se é tão impossível adotar uma vulgata histórica nacionalmente válida,

por que o nome de Vainfas figura enquanto autor de coleções didáticas em dois dos

três guias de História para o Ensino Médio (2012 e 2015)? Se é tão difícil a tarefa de

prescrever um currículo mínimo de história, tão pouco seria factível a possibilidade de

escrever um livro didático, visto que enquanto uma forma de seleção curricular,

contém também uma gama de conteúdos minimamente aceitos pela comunidade

científica.

Em nosso estudo de doutoramento, por exemplo, ao fazer o levantamento do

quantitativo de conteúdos e conceitos históricos abordados nas coleções analisadas7,

visualizamos uma situação assustadora, que é a grande quantidade de conteúdos

conceituais que um aluno do Ensino Médio deve ter em conta até o fim da sua

formação. Assim, antes de uma categorização prévia, ou seja, sem qualquer tentativa

de aglutinação de particulares históricos em categorias mais abrangentes, foi possível

7 A tese analisou cinco coleções didáticas do PNLD 2012 para o Ensino Médio: História: das cavernas ao terceiro milênio (181 conceitos), História geral e Brasil (137 conceitos), História Global: Brasil e Geral (153 conceitos), Ser protagonista história (188 conceitos) e Por dentro da História (269 conceitos). Encontram-se desde de categorias mais abrangentes como democracia, Governo e escravidão até experiência históricas mais pontuais.

perceber nas coleções didáticas que a viagem histórica feita nos bancos escolares

(das cavernas ao terceiro milênio, reproduzindo um título didático famoso), inclui uma

extensiva quantidade de conteúdos conceituais substantivos que ultrapassam a casa

das centenas.

Conjecturo então ser no mínimo contraditório desabonar a possibilidade de

elaboração de um currículo mínimo tendo participado duas vezes da escrita de um

“currículo máximo”, que é como os livros do ensino médio se apresentam hoje visto a

extensa gama de conteúdos conceituais que passeiam em suas páginas. O que pode

explicar isso?

Talvez o fato de que a vulgata presente no livro didático tenha se naturalizado

como algo comum, pré-existente, etérea, que prescinde de grandes explicações já

que é legitimada pela força de tradições seculares, que não demanda grandes

escolhas epistemológicas, não requer esforços dispendiosos na reconfiguração da

narrativa dos livros e nem exige escolhas arriscadas ao aumentar ou diminuir o peso

de determinadas experiências históricas. É cômodo e a interferência do estado é um

agente invasor desse equilíbrio.

Mas Vainfas não está sozinho, alguns referenciais críticos do currículo também

abonam esse pensamento sobre a impossibilidade de consenso sobre mínimos

curriculares. Um exemplo ilustre na discussão que mostra que não é apenas entre os

historiadores que essa concepção se reproduz é o caso de Michael Apple (2011). Para

o autor, por trás das tentativas de implantação de um currículo nacional encontra-se

uma “perigosa investida ideológica”. A possível coesão social que um currículo

nacional poderia proporcionar é entendida pelo autor, na verdade, como mais um fator

na criação de novos ou mesmo reeditados antagonismos sociais em nome da

nostalgia em torno de uma unidade cultural via escolarização (APPLE, 2011, p. 74-

95). Para Apple, parece não haver solução. Mesmo que bem-intencionadas, qualquer

discussão semelhante nunca será capaz de prover soluções sobre o reconhecimento

das diferenças étnicas e culturais de um país. Qualquer iniciativa de traduzir a

diversidade em políticas curriculares é uma forma de tentar suprimi-la.

Outro aspecto que salta aos olhos é assertiva de que conceitos mais abstratos

como o de “sujeito” e “processo” não podem ser apreendidos, salvo como doutrina.

Mas surge a pergunta: por que não podem ser ensinados? As crianças do ensino

fundamental são incapazes de aprender noções mais abstratas em história? A

diacronia é o único caminho para se compreender o tempo?

Não. Essa ideia é desabonada pelos estudos em ensino de História no país,

principalmente aqueles que estão filiados a perspectiva da Educação Histórica, que,

surgida do intercâmbio entre pesquisadores do Brasil, Portugal e Inglaterra e baseada

nas assertivas da Teoria da História de Rüsen, afirmam que crianças situadas na faixa

escolar correspondente ao ensino fundamental I e II são sim capazes sim de aprender

noções mais abstratas sobre a História (OLIVEIRA e COSTA, 2007, p. 10-14).

O cerne é a compreensão do que os alunos entendem sobre o que é a História

e a necessidade de mostrar que ela é um conhecimento específico com regras

próprias de construção. Umas das linhas de investigação da Educação Histórica

aborda a forma como as crianças compreendem os conceitos metahistóricos ou de

“segunda ordem”, através do trabalho com as noções de: narrativa, evidência

histórica, inferência, consciência histórica, causalidade, processo histórico, fonte,

sujeito, etc.

Os conceitos metahistóricos dizem respeito ao aprendizado das ferramentas

de construção do passado, ou seja, uma meta-história que permite aos alunos “um

controle maior do próprio aprendizado e uma relação mais intensa e crítica dos

passados que possam orientar suas ações” (MEDEIROS, 2006, p.84) e estão ligados

“a natureza intrínseca do próprio saber” (BARCA, 2006, p.108).

Portanto, a fala de Vainfas demonstra extrema parcialidade na acusação de

que mínimos de aprendizagem nacionalmente válidos são inviáveis, visto que, o

mesmo enquanto produtor de obras didáticas tem de operar um tipo de seleção que,

se comparado ao caráter enciclopédico das obras didáticas, é tão ou mais surreal que

a construção de uma BNCC. Além disso, demonstra desconhecimento sobre as atuais

perspectivas de aprendizagem históricas construídas pela pesquisa em ensino de

história no país, afirmando arbitrariamente os limites conceituais de aprendizagem dos

alunos.

Outro artigo de opinião bastante interessante de ser comentado é o de Mary

Del Priore, historiadora largamente conhecidas pelo seu trabalho na perspectiva da

História das Mulheres e por sua produção de romances históricos que a levam a

divulgação da história do Brasil ao público leigo.

A autora inicia o seu texto, intitulado Novos currículos, velhos problemas?8,

afirmando a sua contrariedade em relação a diminuição do espaço destinado a alguns

conteúdos canônicos da experiência ocidental, como o Renascimento e a História

Antiga, e a centralidade dos mundos ameríndio, africanos e afro-brasileiros feito pela

BNCC. Em um exercício de comparação entre realidades bastante distintas, Del Priore

afirma que uma boa reforma acontece de verdade é nos currículos franceses, onde

pessoas do porte de Fernand Braudel Jacques Le Goff balizam a inserção das

temáticas atuais da historiografia nos currículos. O elogio se dá também ao modus

operandi da discussão:

Como são feitos? De forma bem diferente da nossa. O Ministério da Educação reúne um grupo de trabalho com representantes da Academia, inspetores de ensino, pedagogos e professores do ensino médio. Uma vez o projeto elaborado, ele é apresentado a professores do ensino superior, associações de especialistas, sindicatos e ainda submetido a uma consulta geral aos professores do Ensino Médio.

Mas para a autora, o problema não está na seleção de conteúdos, mas sim em

sua exequibilidade intelectual por parte dos professores, visto que,

O maior problema desta carta de intenções não é a diversidade de temas, os novos campos e abordagens historiográficas. Toda a abertura é positiva. O problema é QUEM vai ensiná-los. Quantos africanólogos do porte de Alberto da Costa e Silva temos no Brasil? Os estudos universitários sobre a África são extremamente recentes, e lembro-me que, quando, com Renato Venâncio escrevi “Ancestrais – uma história da África Atlântica” tive que me valer quase que exclusivamente de bibliotecas estrangeiras. Onde a bibliografia acessível sobre maias, incas e, por que não, os povos da Ilha de Páscoa? Falamos, por acaso, espanhol para ler os autores latino-americanos especialistas de tais culturas?

Continuando, a autora afirma ainda os aspectos ideológicos que podem se

sobressair a partir das incoerências de uma BNCC:

E na história dos afro-descendentes, vão se lembrar da “ascensão dos mulatos”, de sua mobilidade social tema tão visível nos séculos XVIII e XIX, ou vão continuar insistindo na dobradinha senhores carrascos e escravos vítimas?

Encerra dizendo que o problema crucial da BNCC é o professor que a executaria:

8 Disponível em: <http://historiahoje.com/novo-curriculo-velhos-problemas/>

O problema, insisto, não é O QUÊ. Mas POR QUEM e COMO é dada a nossa história: com desamor crescente. Com desconhecimento crescente. Com desinteresse agudo por parte de quem leciona e, infelizmente, de quem aprende! Uma tristeza. E nunca é demais lembrar, o panfletarismo barato encontra um terreno fértil entre os professores que não querem nem ensinar, nem se aperfeiçoar. A esses eu imploro: escolham outra profissão.

O primeiro contraponto que pode ser colocado é a minha dificuldade em

enxergar no processo de construção do currículo francês grandes diferenças ao

sistema de consulta dos pares efetuado no território brasileiro, apesar da forma

acelerada como o processo foi conduzido. Entretanto, Del Priore não informa as

especificidades desse processo em um país territorialmente menor que o Brasil e com

questões étnicas historicamente diferentes das nossas. Uma breve leitura sobre a

experiência francesa pode ser útil nesse ponto. Não cabe aqui. A posição da autora

soa como puro idealismo em torno de arquétipos franceses. Não é demais lembrar

que as concepções de ensino de história de alguns dos grandes nomes historiografia

francesa da História Nova reproduzem posicionamentos que soariam conservadores

e destoantes da forma como os pressupostos dos Annales foram incorporados ao

ensino de história no Brasil (OLIVEIRA, 2011).

Um outro ponto é o elitismo intelectual que subjaz a análise, que coloca a

produção acadêmica de ponta em posição privilegiada em relação ao conhecimento

escolar, desprezando que o ensino de uma disciplina mobiliza uma série de outros

saberes e demandas que extrapolam o puro e simples domínio da ponta de lança da

pesquisa historiográfica. De acordo com Del Piore, o estudo qualitativo da África nos

bancos escolares só pode existir se intelectuais do porte de Alberto da Costa e Silva

estiverem replicados em cada departamento de história ou então se os professores

da educação básica aprendessem outras línguas e se dispusessem a viajar para

outros países em missões expedicionárias na busca da literatura mais recente sobre

as temáticas que ensinam. Entretanto, presume, que os professores são, em geral,

descrentes de sua profissão, desconhecedores da historiografia, preguiçosos e

potencialmente panfletários.

Me pergunto se o mesmo tipo de raciocínio poderia ser aplicado a outros tantos

conteúdos que permanecem nos currículos brasileiros sem grandes contestações.

Seria necessário então egiptólogos para ensinar Egito de forma mais completa?

Grego antigo ou latim nas escolas para leitura dos textos clássicos? Bons

medievalistas ao nível de Jacques Le Goff e Alain Guerreau para podermos ensinar

uma Idade Média de qualidade? Disso também surgem os questionamentos: se

existirem, quem garante que estarão interessados em pensar a produção e seleção

dos conteúdos escolares? Quem garante que irão querer formar professores de

história? Quem garante que irão abraçar a escola básica?

Assim, a questão mais candente nos argumentos da autora é a proposição de

que a escola deve estar submissa aos imperativos da historiografia acadêmica ou, no

mínimo, que ela deve incorporar as novidades da produção da historiográfica como

antídoto aos problemas do currículo e da formação de professores. Entretanto, essa

lógica de transposição automática ignora que as finalidades da disciplina que

São produzidas em meio ao jogo de interesses do Estado, da corporação de professores, pais de alunos, dos movimentos sociais que refletem nas decisões do Congresso Nacional. São traduzidas em conceitos chave como formação para a cidadania e construção de identidades (individuais, de gênero, étnicas, locais e nacionais) e expostos em Parâmetros Curriculares e programas estaduais e municipais, e nos projetos pedagógicos de cada instituição escolar (FREITAS, 2009, p. 27).

Conclusões

O objetivo do presente texto foi o de ensaiar algumas reflexões acerca da

questão da BNCC a partir da fala de alguns personagens da intelectualidade brasileira

que alimentaram o debate na opinião pública, debatendo algumas das concepções de

currículo, ideologia e ensino de história presentes em suas falas. Partimos do

pressuposto de que algumas das posições defendidas no debate público estão ligadas

as incompreensões existentes sobre as especificidades do conhecimento escolar

construído nas disciplinas escolares e das políticas curriculares.

Acredito que seja necessário um exercício de reflexão sobre as reformas

curriculares anteriores no Brasil, de forma a se pensar os prejuízos inerentes a

ausência de currículos sistêmicos para a educação básica, como por exemplo, a

existência de parâmetros curriculares enquanto formalidades necessárias a existência

de uma política do conhecimento, mas sem efetividade prática; a continuidade da

seleção dos conteúdos baseada no caráter enciclopédico do livro didático; e a

preponderância de exames de escala (como o ENEM) enquanto currículos

“democraticamente impostos” pela demanda de acesso ao ensino superior.

Referências

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