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M SflM A NAOWEEIS At SER HQMENAGE ADt): ' ' 'dOèíTINPA VIVO" ..•¦ ; "*l O cineasta não quis abandonar os seus trintas aderir, ainda que simbolicamente, a uma terrível ¦WstQ,ria ,dé amor com um crime monta, digno dêborrar de medo a sua própria sombra. É esta a história de "Tabu". Entre o presente de Portugal eo seu passado colonialista. Entre o presente e o passado .do^çiinema. Um filme das nossas vidas

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MSflM A NAOWEEIS At0È SER HQMENAGE ADt): ' '

'dOèíTINPA VIVO" ..•¦ ; "*lO cineasta não quis abandonar os seus trintas .¦

aderir, ainda que simbolicamente, a uma terrível¦WstQ,ria ,dé amor com um crime dé monta, dignodêborrar de medo a sua própria sombra. É estaa história de "Tabu". Entre o presente de Portugale o seu passado colonialista. Entre o presentee o passado .do^çiinema. Um filme das nossas vidas

"TVjHti"I CLJJ U. é um dos mais belos filmes da

história do cinema contemporâneo. Conquistou emBerlim o Prémio Alfred Bauer, dias antes de MiguelGomes completar 40 anos. Filme romântico e sibili-

no, crença pura no poder do cinematógrafo, "Ta-bu" torna Gomes, a par de um Wes Anderson e de

um Apichatpong Weerasethakul, num dos cineas-

tas mais importantes da sua geração. No cinema

português, que agora atravessa horrível período de

estagnação, para esse grupo de cineastas que há dé-

cadas são franco-atiradores, Gomes é dos que maisinveste na pontaria. Certeiro no tiro, é também a

grande esperança, como no título português do fil-

me de John Ford sobre Lincoln. O cinema portu-guês não ganhava um galardão oficial num dos trêsmaiores festivais de cinema do mundo desde o Pré-

mio do Júri (Carmes 1999) atribuído a "A Carta", de

Manoel de Oliveira. Convém, contudo, não cair ago-ra no entusiasmo de levar tudo a reboque de "Ta-bu". É que cem filmes portugueses foram antes fei-

tos sem chegar a este nível. Cem outros provavel-mente se farão até o nível ser de novo atingido.

História de um amor louco em diálogo entre o

presente de Portugal e o seu passado colonialista,"Tabu" gera também uma ponte entre o presentee o passado do cinema. Foi rodado em Lisboa e nodistrito do Gurué, na província da Zambézia, em

Moçambique. A preto e branco, no formato do ci-

nema mudo (1:1,33), em película de 35mm e de

l6mm da Kodak. Numa coprodução que envolveu

Portugal, Alemanha, França e Brasil. E é um filme

apaixonante: começa com o prólogo de um explo-rador, melancólica criatura que, sob chuva e sol

escaldante, percorre a savana antes de dizer adeus

à vida por um desgosto de amor, atirando-se ao

rio, para as mandíbulas de um crocodilo. Vemos

depois o espectro da esposa com o animal aos pés:

foi certamente num crocodilo que o explorador se

transformou. "Tabu" não tarda, portanto, a abrir a

porta aos seus fantasmas.

O filme divide-se em duas partes: "Paraíso Perdi-do" e "Paraíso". Na primeira, em Lisboa, descobri-

mos (numa sala de cinema) uma senhora bondosa,de nome Pilar (Teresa Madruga), a quem o mundo

teima em não retribuir a bondade. Pilar é vizinha e

confidente de Aurora (Lavra Soveral), idosa viciada

no jogo, que vive com Santa (Isabel Cardoso), a sua

empregada africana. Aurora acredita que Santa, queestá a aprender a ler com o "Robinson Crusoe", lhe

fez uma macumba. Na verdade, o que Aurora sente

é o seu fim: morre logo depois, no dia de Ano Novo,com o desejo de ver um homem, Gian-Luca Ventura

(Henrique Espírito Santo). Será Ventura aquele quenos conta a segunda parte do filme. Ana Moreiratoma agora o lugar de Aurora na juventude e Cario-

to Cotta o lugar de Ventura. Descobrimos então a

paixão daqueles dois amantes, numa antiga colónia

portuguesa em África, no início dos anos 60. Uma

paixão maldita que vai longe de mais e coincidirá

com o início do fim de um império. Arranca o "Paraí-so" de um filme que "começa na ressaca e acaba nabebedeira". A história de uma 'África nossa': febril

para os que a viveram, tabu para os que a deixaram.Pilar é a personagem que vê o filme que há dentrodo filme e que lança o prólogo de "Tabu". Qual é a

sua importância? A Pilar tem muitos pontos em

comum com uma pessoa da minha família que melevava ao cinema quando eu era criança. Uma se-

nhora solteira, católica, que um dia me conta umahistória: a de uma vizinha, sua amiga, que se quei-xava da empregada africana que com ela vivia. Avizinha era paranóica: acreditava que a empregadalhe fazia macumbas e a fechava no quarto à noite.

Já a empregada olhava torto para a minha familiar,pois julgava-a intrometida. Achei que aquela dispu-ta entre vizinhas era divertida e muito peculiar. O

argumento de "Tabu" partiu daqui. Mal sabia eu,então, que acabaria por fazer um filme em África.

Pilar só tem presente e é com ela que descobri-mos as duas partes do filme. Já a sua confidente,Aurora, só tem passado. E se o presente de Pilar,

que é cinzento e algo resignado, fosse o presentedo cinema? E se o passado de Aurora, que é apai-xonado e febril, fosse o passado do cinema? O

que interessa saber aqui é de que maneira tenta o

filme operar um diálogo entre estes dois tempos.É interessante falarmos disso, porque acho que aPilar não se vê como uma personagem de cinema,mas é verdade que as ações são determinadas pelo

presente. O que existe é um desejo de passado a queeu poderia chamar um desejo de ficção. Houve umacoisa que pedi à Teresa Madruga sempre que ela

estava a fazer contracena: que olhasse para tudo e

todos como uma espectadora de cinema, com o arpasmado de um espectador que vê algo que não per-tence à ordem da sua realidade. Isso materializa-se

depois na segunda parte do filme. Já à Lavra Sove-

ral pedi que se comportasse como uma antiga diva:

ela está sempre a mudar de roupa, impõe a sua lógi-

ca, é-nos apresentada num monólogo que conta umsonho. Uma das indicações que dava à Lavra eraesta: "Um bocadinho mais de Vincent Price!" Que-ria que ela sentisse o artifício e o gozo da representa-ção e que espantasse a sua vizinha. Mais tarde sabe-

remos que a senilidade da Aurora está ligada a ou-

tra coisa: a um sentimento de culpa. Ela tem sanguenas mãos. E a Pilar lida com a culpa dos outros. Já a

Santa, que é o oposto da Pilar, lê o "Robinson Cru-soe". Manifesta, também ela, um desejo de ficção.Estacionemos nesse desejo: quando é que ele lhe

surgiu? Não sei se isto é importante, mas há ummomento: foi quando vi "Os Salteadores da ArcaPerdida". Tinha 12 anos. Descobri que gostava de

cinema e que os filmes iam passar a fazer parte da

minha vida. No liceu, estava em economia, tinhamás notas, mas continuava a ver filmes. Morava noAreeiro e frequentava o cinema Alfa: uma vizinhatrabalhava lá e guardava-me bilhetes. Era uma al-

tura em que as pessoas iam massivamente ao cine-

ma. Lembro-me de que, à segunda-feira, havia fi-

las no Alfa até à bomba de gasolina da Avenida

Gago Coutinho. Mas nunca fui beato da cinefilia,

que pode ser uma doença. Como aqueles loucos

que gostam de espetar alfinetes em borboletas...

Seguiu-se a Escola de Cinema. Porque a econo-

mia não me dizia nada. Fui parar à Escola de Cine-

ma, que ainda era no Bairro Alto, passei lá três

anos fantásticos, mas de cinema, sinceramente,não aprendi grande coisa. Por culpa minha?, dos

professores? De ambos... A minha descrença nos

modelos pedagógicos foi muito rápida. Tudo o quesaía da boca dos docentes parecia-me aborrecido,funcional e muito pouco sincero. No terceiro ano

já estava 'queimado' na Escola: era visto como umelemento perigoso. Não cheguei a fazer o estágiode fim de curso e, sem diploma, percebi que nãotinha perspetivas de trabalho. Mais tarde, umaamiga convidou-me a experimentar a crítica numnovo semanário, o "Já", que surgiu nos anos 90 e

durou poucos meses. Passei então a escrever no"Público". A crítica foi a minha verdadeira escola:

nem tanto pelo que produzi, mas pela disciplina de

me ver obrigado a pensar e a escrever sobre o quevia. Fui crítico durante quatro anos, entre 1996 e

2000. Saí no momento certo. Já tinha então feito a

minha primeira curta, "Entretanto", cujo subsídio

permitiu o início da atividade da produtora O Som

e a Fúria, com a qual ainda hoje trabalho.Mas a insurreição deu frutos. Pois deu. Permi-tiu-me ser mais generoso com o cinema e pensar

que cada filme deve ser feito como se fosse o primei-ro e o último. Cada filme deve desafiar o anterior.

Permitiu-me admitir um lado inconsciente do cine-

ma, em que a verdade se rege por um princípio do

prazer — a regra das minhas rodagens é essa: "Isto

tem de dar prazer." Tenho a sorte de ter uma equi-

pa estável que acredita nesse princípio. Mesmo queaquilo seja tudo mentira, é preciso acreditar nasmentiras. Na curta seguinte, "Inventário de Natal",filmei animais do presépio e crianças a brincar num

quarto escuro. E aprendi a organizar o caos: crian-

ças e animais são os elementos mais caóticos do

cinema.A partir de "A Cara que Mereces" adotou um pro-cesso de filmes em duas partes, que repetiu em

"Aquele Querido Mês de Agosto" e que "Tabu"volta a usar. Uma vez mais, procurei uma relaçãocinematográfica com o mundo real, inventando

um mundo paralelo que não obedece às mesmasleis. É por isso que tendo outra vez a fazer nascer a

meio do filme outra lógica de funcionamento, comoutras regras.Também o "Tabu" de Murnau, o último filme dele,tinha dois capítulos, "Paraíso" e "Paraíso Perdi-do", que o seu filme inverte. Porquê? Sinto que há

no cinema europeu uma corrente forte ligada ao rea-lismo e, ainda pior, ao naturalismo, que me interessa

muito pouco. Uma das coisas que queria recuperar é

algo que hoje pode ser visto como uma ideia obsole-

ta: oposições binárias. O cinema mudo, em especialo de Murnau, está cheio delas: cidade/campo em

"Aurora"; dia/noite em "Nosferatu"; paraíso/paraísoperdido em "Tabu". E, ao contrário do que fiz em

"Agosto", em que as duas partes rimavam e se com-

plementavam, em "Tabu" segui uma lógica oposta:

passar da velhice para a juventude, da solidão para o

amor. Inverti os episódios e explico porquê: o "Paraí-

so Perdido" da primeira parte é o tempo da culpa

vaga, do desconforto sem causa específica que se ma-terializa no "Paraíso" da segunda parte. Este filme

começa pela ressaca e acaba na bebedeira.

"Tabu" dialoga organicamente com um passadocolonialista português, com o que fomos e o quesomos, numa ligação afetiva e subterrânea. Istotrouxe-lhe dificuldades? "Tabu" é um filme sobre

a passagem do tempo, sobre coisas que desaparece-ram e só podem existir enquanto memórias e fan-

tasmas que o cinema admite. De repente, voltamos

50 anos atrás no tempo para uma sociedade colo-

nialista e para um tempo de excessos e paixõesproibidas que vão longe de mais. O que eu sinto em

relação à ficção portuguesa, seja em que área for, é

que existe ainda um cuidado particular em ficcio-

nar o tempo colonialista. A questão é sensível, está

ainda demasiado próxima de nós. Há cicatrizes

que deixaram marcas na vida de muita gente. Porisso quis escapar-me de uma ficção exemplar e pe-dagógica que só lidasse com arquétipos.Tem alguma relação pessoal com África? Não. Aminha mãe nasceu em Angola, mas veio para Lis-

boa estudar nos anos 60. Eu nasci em 1972, não vivi

o tempo da guerra colonial, e por isso julgo podertratá-lo como um imaginário. É óbvio que eu sei

que, quando chamo "Paraíso" à segunda parte do

filme, numa altura em que a Aurora faz jogging pe-la casa enquanto os criados varrem o chão, estou a

criar uma distância irónica em relação ao colonialis-

mo. E sinto que essa ironia pode conviver com uma

sensação de perda das personagens, que vivem fe-

brilmente, inconscientes do sistema político em

que estão inseridas. Todos os meus filmes lidamcom uma sensação de perda. A minha curta favori-

ta, "31", terminava com uma bandeira portuguesa a

descer da haste e um título muito presente nos dias

que correm: "Silenciosamente, algo se movia sob a

pilha de escombros." É óbvio que para Portugal,nos anos 60, o império colonial estava a prazo. Tão

a prazo como uma história de amor parecida com o

"África Minha". Só que, em "Tabu", a 'minha MerylStreep', Aurora, está 'de balão' e não pode mais dei-

xar de lidar com a realidade. "Tabu" é uma efabula-

ção que não deve nada à realidade histórica mas

que eu acho justa com essa realidade: uma mulherestá grávida, e essa gravidez é uma bomba-relógio.E, no momento mais doloroso para as personagens,

passamos sem transição para o tempo da guerracolonial e para o início do colapso do império.Voltando à ressaca e à bebedeira: alguma vez des-confiou que poderia acabar por chegar a um filmetão romântico como "Tabu"? Bom, há o romantis-

mo dos Nibelungos, pesado e grave, e o do Dia dos

Namorados... A exacerbação dos sentimentos não

me interessa muito, tenho algum pudor. É por isso

que digo que faço filmes afetivos, mas não senti-

mentais. Procuro no cinema um lado emocional

que me permite evocar coisas que não existem na

realidade. O próprio cinema entra aqui em jogo,

porque o que eu tento estabelecer é um pacto de

crença entre uma ficção e um espectador. Até queeste possa admitir, por exemplo, que aquele croco-

dilo, que foi testemunha de tudo desde a origemdos tempos, é uma melancólica criatura. Tentoevocar uma memória do cinema sem citações au-

tossuficientes, sem digestão enciclopédica. O cine-

ma não precisa de ser homenageado: continua vi-

vo. Prefiro antes tentar passar em "Tabu" a sensa-

ção que tive quando vi esses filmes e distribuir essa

memória, de uma forma difusa. As coisas são irre-

petíveis, não podes filmar e dizer: "Eis aqui um

plano de Murnau." Podes, contudo, arriscar fazer

um plano que sabes que vem da sensação do filmedo Murnau que viste e que agora devolves com atua assinatura. Não é possível fazer um filme mu-do em 2012 como se estivéssemos em 1927.Na segunda parte de "Tabu", os diálogos são aboli-dos. Não por um piscar de olho ao cinema mudo,mas por necessidade estrutural: os diálogos vãocontra o tabu do título, ou não? Vão. Porque eu

queria dialogar com o passado a partir de uma ideia

de fim, que não é o fim do cinema, mas o fim de umaideia de cinema: morre uma pessoa, o que existe

dela é uma memória, e a memória vai permitir ao

filme resgatar uma sociedade extinta mas que ainda

recordamos. Também fizemos isto a partir de umamatéria — a película de 35mm a preto e branco — e,

entretanto, a Kodak declarou insolvência. A primei-ra parte do filme é muito dialogada. Na segunda, só

a palavra em offé expressa. Porque a palavra já não

existe, ou, se existe, é enquanto elemento espectral.Como é que dirigiu os atores de uma parte do

filme a outra? Na primeira parte, a palavra é o eixo

central, e a direção de atores foi mais convencional,com ensaios intensivos durante algumas semanas.

Na segunda parte, tudo o que pedi foi à Ana Morei-ra que aprendesse a disparar uma carabina e ao

Carloto Cotta que praticasse bateria. Na segunda

parte, deitei o guião fora. Mais uma vez, não tive

dinheiro para filmar o que estava escrito, com casa-

mentos minhotos em África com cento e tal figuran-tes brancos e uma noiva carregada de ouro em cimade um elefante. Onde filmámos, não havia elefan-

tes. E os poucos brancos que havia restringiam-se

quase aos elementos da equipa. Em Moçambique,formámos um pequeno grupo dentro da equipa a

que chamámos Comité Central: a coargumentistaMariana Ricardo, que tinha acabado de ver o guiãoser rasgado, o Teimo Churro, anotador e montador,o Bruno Lourenço, assistente de realização, e eu.

Tinha o dito comité por missão diária inventar ummenu de cenas possíveis que não estavam desenvol-

vidas para filmar no dia seguinte. Foi um trabalhode escrita sem nada escrito, só ficavam as ideias.

Por vezes, havia cartões pendurados na parede comfrases estranhíssimas que os atores depois liam sem

perceber. Eles foram de uma generosidade extre-

ma. Deixaram-se levar cegamente pelo comité.Inventou-se um PREC... Há sempre um PREC nos

meus filmes, mesmo quando se segue um guião.Mais ou menos revolucionária, há sempre qual-

quer coisa que está em curso.Às vezes, os seus filmes dão a sensação de se-

rem escritos como canções. Quando faço um filme

começo por colecionar coisas que não estão associa-

das a um conceito racional mas que sinto que podemvir a fazer parte da mesma família. Pode ser um espa-

ço, um livro, a ideia de um diálogo, uma canção... Foiassim que descobri, por acaso, o Centro Comercialdo Cacem, onde o Ventura vai contar a história de

Aurora: é um espaço que está coberto de palmeirasde plástico e que materializa o desejo de outro espa-

ço. Vim a descobrir que, naquela zona, instalaram-se

muitos retornados de África depois do 25 de abril.Estas coisas vão-se acumulando e acabam por dar

origem ao arranque de um filme e a uma respostaemocional da minha parte. Que vem, é verdade, mui-

tas vezes da música. Quando era pequeno, a minhamãe sossegava-me com um disco de bossa nova do

João Gilberto: eu ficava quietinho a ouvir.

Impressionou-me muito aquele longo travellingem que os amantes, Aurora e Ventura, caminham

na savana, de mão dada, e depois olham para a

câmara. Gostava que o comentasse. Foi, de facto,

um travelling muito longo, muito maior do que o

que se vê no filme, e um dos últimos planos inventa-

dos pelo comité. Chamámos-lhe teenage love. Na

montagem, não sabia quando é que o iria colocar no

filme. Esse plano é uma tentativa de voltar a acredi-

tar num amor inocente e num território perdido,até ao momento em que eles olham para a câmara.

Pedi aos atores que o fizessem com uma neutralida-de total. Como se estivessem a perguntar ao especta-dor: "Mas vocês ainda acreditam nisto?, nesta cami-

nhada?, neste amor?, ou não?" O meu objetivo é quea resposta seja sim e não. Que eles nos digam: "Não

esqueçam, isto já não é possível, esta história é ape-nas a materialização dos vossos desejos." E que di-

gam também, em simultâneo: "Mas sim, afinal ain-da é possível, ainda nos podemos emocionar, por-

que foi este o pacto que estabelecemos convosco."

Como na canção "Hello Goodbye", dos Beatles?Acho que é mais um goodbye. Mas é um goodbye

que investe tudo o que tem no hello. A

QUEM TOMAAS NUVENSDE ASSALTO?

De "Tabu", não se contará mais nada.

Às vezes é melhor ficarmos por um só

aspeto, obsessão que ficou desde quevimos o filme pela primeira vez: porqueolham Ventura e Aurora para a câmara

(foto acima)? Porquê? Será que Aurora

e Ventura, na segunda parte do filme,

vêem a câmara? Ou esqueceram-sedela e também do que eles são, do que

representam? Aurora, de resto, não

gostava de cinema, diz-nos o filme... 0

que eles são nessa segunda parte,sabemos nós, é um relato em off dito

pelo velho Ventura quando Aurora jáestá morta. De repente, vemo-nos

perante um filme que se atreve a desco-

brir monstruosas figuras nas nuvens e

que vai olhar um passado até à extin-

ção do seu olhar, até à cegueira, ousan-

do construir nesse terreno de trevas os

alicerces de uma ficção. Não se instalam

às tantas os amantes numa casa aban-

donada, olhando o fogo e tentando ler

nele os sinais do destino? Se a segunda

parte de "Tabu" parece estar 'ausente',

quase como se saísse, milagrosamente,do campo da câmara, se essa parteadmite figurar o que foi esquecido e

corre o risco de acreditar em crocodilos

cúpidos (ou no poder do fogo), é porque

Miguel Gomes manifesta aqui um dese-

jo: abandonar a história do cinema para

a reencontrar pela originalidade dos

seus artifícios, Tocar nessa história

como se fosse uma novela de aventu-

ras lida pela primeira vez (como o "Ro-

binson Crusoe", lido por Santa). Ousar

figurar um amor entre o viver e o

morrer que, afinal, só depende do que

mais importa: do investimento de cada

VENTURA E AURORA NA SEGUNDA PARTE DE "TABU": PORQUE OLHAM ELES PARA A CÂMARA?

espectador no filme. Esta é a provoca-

ção maior de "Tabu": inocente e impene-trável. Aurora e Ventura olham para a

câmara, uma, duas vezes, num travel-

ling de dia e num plano fixo de noite,

iluminado por uma fogueira. Olham um

a um para cada espectador da sala, lá

onde estamos, sozinhos, a tentar com-

preender esse fenómeno cinematográfi-co que é a vida. "Tabu" assim permane-cerá. Escondido no mistério das suas

personagens, que nada já podem dizer,

só recordar, e em simultâneo presente

por nós, pelo que testemunhamos

delas, pelo que ficcionamos com elas.

Muito poucos filmes conseguiram cap-tar esta sensação de tempo. E lá para o

fim também nos dirão: "Se a memória

dos homens é limitada, já a do mundo é

eterna e a ela ninguém poderá esca-

par," Uma indicação se deixa a quemdecidir acreditar no seu papel nesta

aventura. Não vem de nós, mas de um

excerto relido por acaso de "Titânia", da

pluma de Cesariny: "Ser fantasma não é

como já vem nos filmes. A coisa é

outra. Mais esquisita. Maior, Para que

venha o fantasma basta abrir uma

porta. Para que passe o fantasma basta

olhar de repente. É um negócio de olhos

e portas. Entra-se para brincar e sai-se

morto. Foi destino? É acaso? As portasé que sabem. Entrai, saí, ficai, fazei

como souberdes; mas saudai com

reverência essa fronteira máxima!" F.F.

TABU

de Miguel Gomes

(Portugal/Alemanha/França/Brasil)

com Ana Moreira, Carloto Cotta,

Lavra Soveral, Teresa Madruga,

Isabel Cardoso, Henrique Espírito Santo

Drama M/12

E O PARAÍSOAQUI TÃO PERTOComo outros filmes de Miguel Gomes,

"Tabu" obedece a uma estrutura bipo-lar que, cortando a ação ao meio, põedois termos em contraste, no caso: o

presente (o tempo perdido do quotidia-no) e o passado (o tempo reencontra-do da memória). Trata-se não de uma

divisão mas de uma dobra do filme

sobre si, onde o segundo termo operacomo espelho distorcido do primeiro,

como o lugar da revelação dos seus

segredos: como se, ao jeito de um

arqueólogo, Gomes escavasse para

expor as camadas de sentido que as

aparências recobrem. Ora, aqui, a se-

quência que assegura o raccord entre

dois mundos traduz bem o alcance

desse gesto arqueológico. Falamos

daquela em que, num centro comercial

de bairro decorado com motivos tropi-cais, Ventura inicia o relato da sua

incursão pela África colonial dos anos

60. Genial pelo modo como faz coexis-

tir o presente e o passado, preparando

a reemergência de uma imagem que a

personagem guardava em silêncio, a

sequência inaugura um processo de

rememoração ficcionada que implica

não o regresso literal a outro tempomas a descoberta no presente de um

passado que a ele fica ancorado (com

uma narração em off que nos remete

sempre para o 'agora')- Mais: esse

tempo reencontrado a que aqui se

chama África é, para Gomes, o próprio

cinema, entendido como uma possibili-dade de regresso criativo a um passa-do que também pode ser o seu. Prova

disso? A segunda vez que vemos Pilar

a ver um filme, olhos marejados de

lágrimas e rosto recortado pelos refle-

xos da luz. O que vê ela? Não sabemos.

Sabemos, sim, é que, nesse momento,ela ouve uma canção que voltaremos a

ouvir adiante, quando a sua persona-

gem tiver já saído de cena. O que

significa que, naquele instante, Pilar

estava já, sem o saber, em pleno paraí-

so, fitando essa memória viva à qual

Gomes tem o hábito de chamar cinema.

Vasco Baptista Marques

ENTRETANTO

LUÍS URBANO (À ESQ.), EM MOÇAMBIQUE, DURANTE A RODAGEM DE "TABU"

No rescaldo do sucesso de "Tabu", Luís

Urbano realinha o futuro de O Som e a

Fúria, a produtora que Sandro Aguilar e

João Figueiras fundaram em 1998 —

aquando da primeira curta de Miguel

Gomes, "Entretanto". O economista, de

43 anos, chegou à O Som e a Fúria em

2005 (com a saída de João Figueiras),

mas o início do seu percurso também

está intimamente ligado ao formato

'curta'. Esteve no início do Festival

Curtas Vila do Conde. Em 1996, fundou

a cooperativa que viria a organizar o

festival em novos moldes e, em 1998,criou a Agência da Curta Metragem.

Agora, com um corte de 100% no

sector (não haverá concursos), com o

Instituto do Cinema e Audiovisual sem

tesouraria para cumprir contratos

firmados com cineastas e produtoras

em anos anteriores (O Som e a Fúria

tem filmes de Sandro Aguilar, Ivo Ferrei-

ra e João Nicolau nessa situação), o

adiamento de uma nova Lei do Cinema

(na semana passada, o secretário de

Estado alargou pela quarta vez o perío-do de discussão), Luís Urbano esperater meios para sobreviver no deserto.

É verdade que "Tabu" já é o filme

português mais vendido de sempre no

mundo (a 18 países, além dos quatro

que coproduzem), mas os valores

obtidos não irão chegar para investir

em novas produções. A ideia é manter

a produtora, vender mais filmes, em

catálogo, nomeadamente a televisões,

para mais tarde intensificar a produção0u... fechar. E é por isso que o formato

da curta se volta a impor. A solução

permitirá que Gomes não fique parado

e que o sucesso de "Tabu" seja rentabi-

lizado através da captação de capitais

no estrangeiro. Outra possibilidade de

continuar a trabalhar virá do Brasil —

onde Manoel de Oliveira voltará a

filmar com O Som e a Fúria. O cineasta

terminou "O Gebo e a Sombra" e prepa-ra-se para avançar para o seu segundofilme com a produtora ("Igreja do Dia-

bo", adaptação de Machado de Assis).

O mais curioso é que a ligação entre

Oliveira e a produtora não foi realizada

através de Portugal, mas por recomen-

dação feita ao cineasta por um produ-tor espanhol. "O que torna equilibrada a

nossa relação com Manoel de Oliveira é

o facto de O Som e a Fúria já ter um

nome antes dele, embora estivesse

obviamente ligada a uma nova geraçãode cineastas portugueses. Depois,

nunca poderíamos dizer não à experiên-cia de produzir Oliveira: se não fosse

ele e a geração dos anos 60, o cinema

português não existia." O filme de

Oliveira será todo rodado no Brasil e só

o nome do cineasta permitirá que

existam atores portugueses ou que a

equipa seja nacional. Neste caso, a

língua não está em causa, será a portu-

guesa, mas se fosse financiado em

França "seria falado em língua france-sa". É por isso que Urbano quer desmis-

tificar as coproduções: "Pode ser uma

solução interessante, mas nunca parafazer um cinema português, feito em

Portugal, falado em português e que

seja o espelho do universo do autor,

como é o caso de Miguel Gomes, que

consegue uma interpretação universa-

lista mas que tem na base uma maté-

ria-prima portuguesa. A ameaça que

pende sobre o cinema é real. 'Tabu' não

seria o mesmo se fosse feito noutro

lugar. O imaginário é português."Cristina Margato