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Presidência da República Casa Civil Secretaria de Administração Diretoria de Gestão de Pessoas Coordenação – Geral de Documentação e Informação Coordenação de Biblioteca

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Presidência da República

Casa Civil Secretaria de Administração Diretoria de Gestão de Pessoas Coordenação – Geral de Documentação e Informação Coordenação de Biblioteca

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23 DE SETEMBROSEDE DA ONUNOVA IORQUE-EUA

PRONUNCIAMENTO DO PRESIDENTEJOSÉ SARNEY, POR OCASIÃO DAABERTURA DO DEBATE-GERAL DAXL ASSEMBLÉ1A-GERAL DA ONU

Esta Tribuna impõe respeito e dignidade.

É a mais alta na comunidade das nações, ondegrandes e pequenos ficam menores, porque maior é acarga da história do gênero humano exercida pela tarefaque é o barro do seu trabalho — a Paz —, pelos proble-mas que a desafiam, pelo esforço de transformar discor-dâncias em solidariedade.

Há quarenta anos tem o meu País, o Brasil, o privi-légio de abrir o Debate-Geral da Organização das Na-ções Unidas.

É com trêmula emoção que exerço essa prerrogati-va.

Pesam-me graves problemas, responsabilidadesimensas.

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Recorro a versos do maior poeta de minha terra pa-ra definir minha comoção. A poesia não é incômodanem anacrônica no cenário dos grandes debates:

«Que tempo de viver-se!»«... Que sonho raroSerá mais puro e belo e mais profundodo que esta viva máquina do Mundo?»É com esse sentimento do Mundo que falo em nome

de uma das maiores nações do Globo, complexa e pu-jante sociedade, a oitava economia do Ocidente, país decontrastes e de grandezas: o Brasil dos vários brasis, emque a opulência e a pobreza, o árido e o fértil, a seca ea inundação fazem uma geografia de amostragens opos-tas, abrigando num vasto continente um povo unificadoque soube construir uma democracia racial e uma unida-de de cultura que é a força invencível do seu destino.

Homem simples, nasci e vivi numa das regiões maiscastigadas da Terra, o populoso e pobre Nordeste brasi-leiro.

Percorro há trinta anos uma carreira política, masfoi no bojo de uma tragédia e espanto, de forma abrup-ta e inesperada, que assumi a chefia da Nação.

Presidente da República, orgulho-me de ser um es-critor em que o gosto da palavra não confinou o espíritona expressão da obra estética. Dela fiz um elemento deidentificação profunda com o povo, para viver os an-seios do Homem e da sociedade.

A Literatura e a Política são vertentes a obrigaruma visão social e humanista do Universo. Não possoconceber a busca das conquistas materiais sem um subs-

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trato do espírito que possa dar à aventura humana a di-mensão das coisas eternas.

Tenho fé, e malsinado o homem que tiver vergonhade pensar na Terra sem a companhia de Deus.

O Brasil acaba de sair de uma longa noite. Não temolhos vermelhos de pesadelo. Traz nos lábios um gestoaberto de confiança e um canto de amor à liberdade.Quem é prisioneiro do passado não enxerga o futuro.Moisés não ficou de costas para a Terra da Promissão.

O instrumento de nossa viagem do autoritarismopara a democracia foi a capacidade de conciliar e de en-tender, sem violência e sem traumatismos.

Nossa determinação, coragem e resignação foramtão fortes que suportamos a perda de nosso herói, Tan-credo Neves, na noite em que clareavam os nossos céusem festa os fogos da vitória. O nosso sofrimento foitansformado em força e obstinação para fazer do seusonho o nosso sonho, e não nos dispersarmos.

Mais forte do que a morte foram os valores da mu-dança. Estes valores projetamos no campo das classessociais, abolindo distâncias e barreiras, numa patrióticaconvivência de todas as correntes de idéias, na busca doideal efetivo de justiça, de conciliação e da consolidaçãoinstitucional do poder civil.

Consideramos que a visão do social é a própria sei-va do liberalismo moderno: a liberdade que se ocupacom as condições reais de vida, com a realização com-pleta da felicidade individual, com a universalidade dasfranquias e do direito de ser livre.

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Estou nesta tribuna para homenagear as NaçõesUnidas, no seu aniversário de 40 anos. O Brasil esteveno seu nascimento, está agora, estará no futuro, paradefender o espírito da Organização. Esse espírito não éservir como arma dos fortes, mas como a voz dos fra-cos. Dos que não têm exércitos, nem arsenais, nem vetoa impor ou a anular decisões.

Estou aqui para dizer que o Brasil não deseja maisque sua voz seja tímida. Deseja ser ouvido sem aspira-ções de hegemonia, mas com determinação de presença.Não pregaremos ao Mundo o que não falarmos dentrode nossa fronteira. Estamos reconciliados. A nossa forçapassou a ser a coerência. Nosso discurso interno é igualao nosso chamamento internacional. E desejamos, ago-ra, revigorar, com redobrada afirmação, nossa presençano debate das nações. Uma política externa independen-te, dinâmica e voltada para a solução das questões inter-nacionais de conteúdo social.

Não seremos prisioneiros de grandes potências nemescravos de pequenos conflitos.

Há quarenta anos, nossos fundadores estabelece-ram, sobre os estertores da guerra e as ruínas da opres-são, os fundamentos do edifício da paz, o concerto dasnações e a ilimitada cooperação entre os povos. As po-tências da Terra e os países emergentes foram convoca-dos a liquidar a exploração colonial. Proclamaram aoUniverso o valor dos princípios democráticos de igualda-de e justiça. Condenaram o racismo e a intolerância. Le-gitimaram o direito universal à saúde, ao bem-estar e àeducação. Reafirmaram a dignidade do trabalho e o po-der aprimorado da cultura.

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Hoje, tendo vivido sem guerra generalizada o dobrodo tempo que a Humanidade viveu entre um e outroconflito mundial, podemos dizer que o papel da ONUnem sempre foi reconhecido; seu desempenho quasenunca foi suficiente. Porém sua ação, longe de ter sidoinútil, foi, é e continuará a ser necessária.

Os seus fundadores estavam certos!Senhor Presidente,Em nome do Brasil, saúdo Vossa Excelência por

sua expressiva eleição para a Presidência da Quadragé-sima Sessão da Assembléia-Geral das Nações Unidas. Con-gratulo-me com os representantes dos Estados-Membrosaqui reunidos, que comemoram quatro décadas na vi-da ativa desta egrégia Organização. Dirijo meus since-ros cumprimentos ao Senhor Secretário-Geral, Embai-xador Javier Pérez de Cuéllar, de cujo talento e experi-ência diplomática nós os latino-americanos tanto nos or-gulhamos.

Senhor Presidente,É natural que minha primeira abordagem seja a

América Latina. América Latina cujo esforço extraordi-nário de criar uma ordem democrática é o mais sur-preendente e comovedor fato político ocorrido nestesanos, e que passa indiferente aos olhos descuidados docentro do poder mundial. Poucos examinam o amadure-cimento institucional da região, o drama e a conquista.Sem ajuda e envolvimentos, temperados apenas com aforça de convicções, enfrentamos a ameaça da tentaçãototalitária e a ganância dos que só vêem com os olhosda exploração. Saímos sincronizados, num movimento

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solidário, para a floração de instituições livres. Opta-mos, como um todo, em caráter irreversível, pelo trinô-mio: sociedade aberta, instituições livres, economia di-nâmica. É com base nessa tríplice definição democráticaque exercitaremos o diálogo, procuraremos ser a ponteentre o Oriente e o Ocidente, o Norte e o Sul, velhas enovas culturas, regimes e ideologias.

Gandhi, O Mahatma, disse que a verdadeira missãodo homem da lei, é lançar uma ponte sobre o abismoque separa os adversários. A ONU é a lei; nós somoshomens dessa lei.

Há ventos novos em nosso Continente, que revigo-ram a nossa tradição democrática, refletida ern compro-missos que antecedem a criação da ONU.

Assim é que somos paladinos do princípio da auto-determinação dos povos e do dever de não-intervenção,da solução pacífica de controvérsias, da distensão nasrelações Leste-Oeste, refratários ao antagonismo agudoda política de blocos, defensores do primado da nego-ciação sobre as perigosas demonstrações de força.

Com o espírito democrático milhamos, há tantosanos, pelo desarmamento, e recusamos, por precária,violenta e irracional, a idéia de uma paz sustentada peloequilíbrio dos arsenais atômicos.

O Brasil acredita que não há tergiversação possívelface a esses ideais, nem qualquer concessão que admitasua suspensão, em qualquer nível, em nome do que querque seja!

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E é também por fidelidade ao credo universalista dademocracia que somos anti-racistas. Profunda, entra-nhada e intransigentemente anti-racistas.

O Brasil, Senhores, é um grande país mestiço que seorgulha de sua identidade. Várias das mais altas expres-sões criadoras da nossa cultura provieram da mescla ra-cial, da mútua fertilização das etnias. A maior e maiscompleta sensibilidade literária que produzimos até hoje— Machado de Assis — era um mestiço. Como mestiçosforam, nas artes plásticas, o grande escultor barroco, oAleijadiiiho, e, na música, o universal Vila-Lobos. Re-cordo o quanto o Brasil deve, na sua cultura popular,ao gênio negro e ao espírito ameríndio.

No Brasil, a discriminação racial não é só ilegítima— é ilegal, é crime previsto nas leis penais. Por isso nosrepugna a recrudescência do conflito racial ditado pelaintolerância racista, ou a persistência de configuraçõescoloniais. Reitero solenemente nossa total condenaçãoao apartheid e nosso apoio sem reservas à emancipaçãoimediata da Namíbia, sob a égide das Nações Unidas.

Não concebemos que a ONU comemore sua idadeda razão sem uma ofensiva em regra contra os resíduosdo racismo na Terra.

Como Presidente do meu País, renovei há poucassemanas a proibição de exportar petróleo e derivados,armas e munições, licenças e patentes para a África doSul, bem como suspendi as atividades de intercâmbiocultural, artístico ou desportivo com o Governo de Pre-tória.

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O racismo é contra a Humanidade e contra o futu-ro.

O racismo, um colonialismo diferente, amoral eperverso não pode manchar a página de ouro da desco-lonização.

Mais do que as hecatombes dos conflitos mundiais,mais do que o confronto estéril da Guerra Fria, a desco-lonização ficará como a grande contribuição do SéculoXX à História da Humanidade.

O êxito da descolonização foi fruto de uma vontadeinternacional. Esse caminho, a busca de soluções con-sensuais, há de permitir superar a frustação que hojesentimos diante dos desafios da corrida armamentista,da multiplicação de tensões e conflitos.

Senhor Presidente,Os direitos humanos adquirem uma dimensão fun-

damental, estreitamente ligada à própria prática da con-vivência e do pluralismo.

O mundo que os idealizadores da Liga das Naçõesnão puderam ver nascer, e cuja edificação ainda espera-mos, é um mundo de respeito aos direitos da pessoa hu-mana, que as Nações Unidas procuram promover atra-vés dos Pactos Internacionais de Direitos Humanos.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos é,sem dúvida, o mais importante documento firmado peloHomem na História contemporânea. E ela nasceu noberço das Nações Unidas.

Com orgulho e confiança, trago a esta Assembléia adecisão de aderir aos Pactos Internacionais das Nações

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Unidas sobre Direitos Civis e Políticos e sobre DireitosEconômicos, Sociais e Culturais, e à Convenção contraa Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desu-manos ou Degradantes. Com essas decisões e povo bra-sileiro dá um passo na afirmação democrática do seuEstado e reitera, perante si mesmo e perante toda a co-munidade internacional, o compromisso solene com osprincípios da Carta da ONU e com a promoção da dig-nidade humana.

Nessa tarefa, destaco a promoção dos direitos daMulher, que no Brasil acaba de ganhar impulso com acriação do Conselho Nacional de Defesa dos Direitos daMulher. A decisiva participação da Mulher na transfor-mação por que passa a sociedade brasileira articula-se,em nível mundial, com o extraordinário movimento deafirmação feminina, cujo impacto vem renovando emprofundidade as relações humanas deste fim de século.

Estamos numa encruzilhada das muitas que marca-ram estes 40 anos de existência da ONU. Os povos perce-bem que as concessões feitas às realidades do poder sãouma avenida de uma só mão. Apenas a vontade conjun-ta da maioria pode recompor, numa atitude nova, o pa-norama emoliente criado pela confrontação e pelos me-canismos do poder.

Senhor Presidente, Senhores Delegados,«Nem tudo é Este ou Oeste nas Nações Unidas. O

Mundo possui outros pontos cardeais», dizia há 22 anos,o Embaixador Araújo Castro, representante do Brasilnesta Assembléia-Geral. O Brasil reconhece nas relaçõesinternacionais muitos aspectos negativos mas procura

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perceber o Mundo de uma perspectiva rica e multiface-tada.

Exploremos este tempo para a cooperação é a ciên-cia; nele, as naturais diferenças não são empecilho paraa convivência. Os espaços celestes sempre foram a ima-gem mais pura da paz. Preservemos os infinitos céus co-mo fronteira que as armas não devem violar.

Os brasileiros acreditam em valores como o respeitoà individualidade de cada país e a responsabilidade soli-dária perante os impasses e dilemas deste fim de século.

Vemos com aflição que inúmeros conflitos afetampaíses em desenvolvimento, paralisando esforços de pro-gresso. Esses conflitos agravam as difíceis condiçõescriadas pela persistência de uma ordem internacional in-justa e colocam mais distante o ideal de paz e seguran-ça. A transferência, para o cenário de muitos desses con-flitos, de temas do choque Leste/Oeste agrega um ele-mento poderoso de dilaceração e mascara suas verdadei-ras causas.

Temos exemplos à nossa volta.

O Brasil junta-se aos demais países latino-ame-ricanos para proclamar a necessidade urgente de umasolução política, duradoura e estável, para os embatesque rasgam a América Central.

Por essa razão, devota o Brasil todo o seu apoio àiniciativa de Contadora, que traduz o sentimento daAmérica Latina na busca de uma solução que preserve apaz e o entendimento no Continente e corresponda àvontade dos povos centro-americanos.

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Meu governo juntou-se a três países irmãos na cria-ção do Grupo de Apoio a Contadora, para traduzir emprovidências concretas o amplo respaldo que aquela ini-ciativa vem recebendo.

O caráter político e profundamente ético de Conta-dora é a resposta latino-americana às teses da confronta-ção; é um amparo ao diálogo onde existe radicalização;é um convite à negociação onde existe a ameaça do usode força; e é uma vigorosa defesa da autodeterminaçãoe da não-ingerência contra as tentativas de internaciona-lização do conflito.

O Brasil sente-se ligado por laços de grande amiza-de a todos os povos do Oriente Médio. A sociedade bra-sileira consterna-se com o clima desolador do Líbano ereconhece o direito de todos os povos do Oriente Médio,inclusive Israel, de viver em paz, dentro de fronteiras in-ternacionalmente reconhecidas. Deseja ver concretizadaa criação de um Estado nacional palestino, aspiraçãodeste sofrido e grande povo, a evacuação dos territóriosárabes ocupados e o acatamento das Resoluções das Na-ções Unidas sobre a região.

Ligado ao Irã e ao Iraque por laços de amizade ecooperação crescente, o Brasil exorta esses dois países aencaminharem suas divergências pela via pacífica e ne-gociada.

Preocupam-nos o Afeganistão e o Campuchéia.Não haverá fim para a violência nesses países enquantopersistir a presença de tropas estrangeiras e não foremreconhecidos expressamente os direitos de seus povos àlivre manifestação de sua vontade.

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É nosso dever ainda exigir visão e postura construti-vas sobre a questão das Malvinas. Desde 1833, o Brasilapoia a justa reivindicação argentina da soberania sobreas Ilhas Malvinas, encarecendo uma solução negociadacomo única forma de resolver o problema.

O Brasil fará todos os esforços que estiverem a seualcance para preservar o Atlântico Sul como área depaz, afastada da corrida armamentista, da presença dearmas nucleares e de qualquer forma de confrontooriunda de outras regiões.

Firmemente empenhado no esforço de proscrever asarmas nucleares do Continente, o Brasil assinou e ratifi-cou o Tratado de Tlatelolco, cujo objetivo pioneiro foitransformar a América Latina na primeira zona desnu-clearizada em território habitado pelo Homem. A desnu-clearização da América Latina deve ser o primeiro passode um novo impulso para deter a acumulação vertical ehorizontal das armas nucleares, liberando-se o milhão emeio de dólares desperdiçados cada minuto pela corridaarmamentista para o combate à fome, à doença, à igno-rância e à miséria.

A maratona armamentista é uma síndrome do malque ameaça a lucidez, um hiato negro da consciênciahumana.

Vivemos uma nova Revolução Científica que, a ca-da momento, transforma o Mundo sob nossos olhos.Dominar os avanços que se sucedem vertiginosamentenos setores de ponta da Ciência e da Tecnologia passoua ser questão vital de sobrevivência. No plano de traba-lho a que a ONU deve dedicar seus próximos anos, te-

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mos de inserir uma estratégia para que o Mundo não sefragmente em blocos tecnológicos fechados, mas colo-que o conhecimento técnico e científico a serviço das ne-cessidades básicas de todos os homens.

Senhor Presidente,Estes são os problemas visíveis. Mas há um outro,

maior, que permeia as relações internacionais e que insi-diosamente ameaça a todos, pobres e ricos. Os pobres,pela desestabilização; os ricos, pela insegurança; e todospelo desmoronamento, se a nossa postura for de imobi-lidade.

Desejo falar do problema econômico, que concentrasua virulência no Terceiro Mundo, em particular naAmérica Latina.

Esmagados sob o peso de enorme dívida externa,vivem os países da região um quadro de graves dificul-dades, cujas repercussões internas se traduzem em reces-são, desemprego, inflação, aumento da miséria e violên-cia. Apanhados por uma conjugação viciosa de fatoreseconômicos — alta dos juros internacionais, queda dospreços dos produtos primários e seletividade de merca-dos nos países desenvolvidos — enfrentamos uma crisesó comparável à que atingiu as economias de mercadono início dos anos trinta.

A carga da dívida externa impõe uma política eco-nômica voltada para obtenção de saldos comerciais des-tinados ao pagamento dos juros. Os organismos interna-cionais propõem políticas de ajustamentos inadequados.Essa rota conduz à recessão, ao desemprego e à renún-cia da capacidade de crescer. Essa política debilita as li-

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deranças civis, torna explosiva a crise social, ameaça asinstituições, compromete a ordem e, conseqüentemente,é uma ameaça às estruturas democráticas. Para aumen-tar nossas dificuldades, os mercados dos países desen-volvidos fecham-se às nossas exportações. Multiplicam-se as barreiras protecionistas e somos injustamenteacusados de práticas desleais de comércio.

Confunde-se mesmo o protecionismo com que seprocura cercar setores obsoletos dos países desenvolvi-dos com o legítimo direito dos países em desenvolvimen-to de criarem condições propícias e transitórias para ainstalação de indústrias nascentes que absorvam tecnolo-gias modernas indispensáveis à sustentação do nossocrescimento, exercendo, assim, a nossa soberania e inde-pendência.

E o paradoxo é que todo nosso esforço se faz, jus-tamente para transferir divisas para os mesmos centrosque nos atacam e discriminam. Vivemos assim entre aameaça do protecionismo e o fantasma da inadimplên-cia.

Fazemos um esforço extraordinário para competir.Nossas empresas exportam com escassos lucros e nossamão-de-obra recebe baixa remuneração. É triste confes-sar que o nosso salário-mínimo é de 50 dólares mensais.

Para completar o quadro de nossas dificuldades, te-mos a obrigação de manter uma balança comercial supe-ravitária para pagar, em quatro anos, juros de cerca de50 bilhões de dólares.

Esta é a situação de um país que tem potencialida-des, uma pauta diversificada de exportações que vai de

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produtos primários a derivados de petróleo, produtos in-dustrializados, máquinas e até aviões. Podemos avaliaro impacto destes fatores em outros países sem as nosssascondições.

Nossa tradição é cumprir os compromissos exter-nos. Mas temos o dever de alertar o Mundo de que oquadro existente tem que ser reestudado. Necessita deoutro ordenamento. Porque é injusto. E tudo o que levao germe da injutiça, do absurdo, não sobrevive.

O Brasil não deseja fazer da dívida uma questãoideológica, não deseja que ela se transforme num temade confrontação Norte/Sul, Leste/Oeste. O Brasil é umpaís de arraigados ideais cristãos e ocidentais. Nós acre-ditamos que em qualquer lugar do Mundo em que a li-berdade de iniciativa entrou em colapso, a liberdade de-sapareceu. Acreditamos no poder criativo da economiade mercado, através da competição. Assim não nos mo-ve, ao denunciar esta ordem, qualquer motivação políti-ca. Desejamos única e exclusivamente defender os nos-sos mais sagrados interesses. E esse dever nós o cumpri-remos, exortando a comunidade internacional a pro-curar conosco a solução. E essa solução não pode serexclusivamente a das leis de mercado.

Senhor Presidente,

Ao final da Segunda Guerra Mundial, as potênciasvitoriosas tiveram a compreensão de que era essencial àpaz a criação de um reordenamento internacional disci-plinado, que regulasse as relações econômicas e financei-ras entre as Nações.

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Fundamental para a instituição dessa ordem econô-mica foi a percepção de que a reconstrução da Europaera indispensável para a estabilidade e para a própria se-gurança internacional. O êxito do programa de recons-trução da Europa demonstra a capacidade de realizaçãodos projetos de cooperação entre as nações, quandoconcebidos com uma visão ampla de reciprocidade dosinteresses e uma consciência clara da ligação entre osproblemas políticos e os econômicos.

Vivemos hoje uma situação que reclama, novamen-te, visão criativa e renovadora. Os pilares da ordem vi-gente encontram-se desgastados e obsoletos. É necessá-rio que se discutam medidas concretas para adequar aordem econômica internacional às realidades de hoje.

Depois da prosperidade, quando veio a recessão,passou a reinar mais a selva predatória de Hobbes doque a fecunda anarquia harmoniosa de Adam Smith.

O endividamento da América Latina não é mais umproblema de caráter regional, tal o seu impacto na esta-bilidade dos mecanismos financeiros do mundo ociden-tal. A consciência desse problema levou à formação doConsenso de Cartagena, manifestação solidária dospaíses latino-americanos mais afetados pelo problema dadívida externa, em busca de uma solução pela via dodiálogo e do entendimento.

É imperioso, do ponto-de-vista latino-americano,que a crise do endividamento seja negociada em sua di-mensão política. Agora, como há quarenta anos, é pre-ciso que os governos dos países credores conscientizem-se da ocorrência de uma situação excepcional, cuja solu-ção transcende a simples ação das forças econômicas.

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Ao conclamar os líderes das nações industrializadasa uma ação política concentrada para solucionar o pro-blema dos débitos externos, faço-o com a serenidade deum país que não tem medido esforços para cumprir comrigor seus compromissos internacionais.

Temos feito um esforço gigantesco. Mas, mesmo apersistir nossa trajetória atual de crescimento, somenteem 1990 teremos recuperado a renda per capita que jáhavíamos alcançado em 1980.

Nosso povo chegou ao limite do suportável. É im-possível solicitar sacrifícios adicionais de uma populaçãodepauperada como a nossa. Ao contrário, temos que ga-rantir aos brasileiros que as oportunidades de empregoestarão aumentando nos próximos anos.

Nossa vulnerabilidade à elevação das taxas de jurosinternacionais é tão alta que todo o resultado acumula-do vai desmoronar se taxas escorchantes voltarem a serpraticadas.

Maiores serão as dificuldades para formarmos umasociedade liberal e pluralista, se não mantivermos e am-pliarmos nossos contatos com o Exterior. A crise dadívida externa, no entanto, vem forçando nossa econo-mia a um processo de isolamento e de autarquia, atraduzir-se em possibilidades mínimas de importação eem ligações débeis e insatisfatórias com o mercado fi-nanceiro internacional. Não desejamos o isolamento e aautarquia, temos o direito de esperar de nossos parceirosinternacionais formas equitativas e justas de cooperação,que aceitem democraticamente uma partilha concreta deresponsabilidade. Não podemos ficar apenas na retórica

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do ajustamento da economia, supondo que o sacrifício étudo que deve fazer um devedor do Terceiro Mundo pa-ra equacionar suas contas externas. Esta visão estreitaesquece estarmos tratando de populações que têm direitoa um padrão sério de sobrevivência e de países comlegítimas aspirações nacionais. Ou conscientizamo-nosde que a solução da dívida externa é uma tarefa conjun-ta de credores e devedores, ou arriscamo-nos a atear fo-go no barril de pólvora que ameaça o Continente.

Esse quadro justifica o caldeirão social da AméricaLatina, indefesa diante das seduções messiânicas e de-magógicas, do canto das ideologias totalitárias e presa aurna injusta situação, fruto de erros acumulados no pas-sado.

É um milagre que o clarão que ilumina a AméricaLatina, neste instante, seja o facho da liberdade e da de-mocracia e não o da convulsão.

A posição do Brasil está tomada. A dívida não nosleva à dúvida. Optamos por crescer sem recessão, semnos submetermos a ajustamentos que signifiquem renún-cia ao desenvolvimento.

O Brasil não pagará a dívida externa nem com a re-cessão, nem com o desemprego, nem com a fome. Te-mos consciência de que, a pagar essa conta, com estesaltos custos sociais e econômicos, teríamos em seguidade abdicar da liberdade, porque débito pago com misé-ria é conta paga com a democracia.

Assim, desejo afirmar com toda a seriedade e fir-meza: não há solução fora de uma reformulação pro-funda das estruturas econômicas internacionais.

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Por último, Senhor Presidente, devo falar da paz, oideal maior do Homem.

Mas, o que é paz?Será somente a ausência da guerra, da guerra entre

as nações, da guerra entre os homens? Ou paz é algomais transcendental que significa a libertação do Ho-mem de todas as formas de violência, de todos os seusconflitos?

Acredito que deva ser um estado de espírito interiorprojetado pelo Homem como uma conduta para todasas nações. Mas realisticamente sabemos que passarãomuitas gerações, antes de essa viagem chegar a esse porto.

É diferente a realidade que nos sustenta. A matériade nosso trabalho é a dura paisagem de nosso tempo: apaisagem da violência, dos egoísmos, da retaliação, dadependência, do atraso, da servidão, da guerra nuclear,das doenças, da fome, do desnível cultural, dos atenta-dos ecológicos, da poluição, do terrorismo, da ganância,da exploração.

A paz hoje ainda não é paz, é a dissimulação daguerra. O primeiro caminho da paz é a liberdade. E aorganização política da liberdade é a democracia. Os po-vos livres não se guerreiam; não haverá guerra entre po-vos democráticos que decidem do seu próprio destinosem a submissão a autoritarismos pessoais e a fanatis-mos ideológicos.

Guerra e democracia, guerra e liberdade são termosincompatíveis. Clausewitz assinalou que só existiriaguerra quando existissem estados soberanos. Da mesmaforma, podemos afirmar que prevalecem as soluções

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pacíficas e consensuais quando existem nações livres edemocraticamente desenvolvidas, instituições permanen-tes, poderes funcionando, povo decidindo. Assim, a me-lhor maneira de a ONU trabalhar pela paz é trabalharpela democracia. Nós do Brasil temos esse exemplo.Saímos do conflito pela democracia. No dia em que opovo sentiu que ele decidia, não decidiu pela violência.Decidiu pelo diálogo, pela negociação.

Estamos chegando ao fim do Século. A tarefa dasNações Unidas tem sido a de administrar conflitos cir-cunstanciais. É hora de reagirmos com vigor a esse pa-pel residual, restituindo à Organização as prerrogativas edireitos que decorrem da responsabilidade solidária detodos os povos em matéria de paz e segurança. A priori-dade da quinta década de vida da ONU deve ser umprograma de revitalização com os seguintes objetivos:

— contribuir para superar as tensões da renovadaconfrontação bipolar entre os dois blocos de Poder;

— criar uma nova ordem econômica inspirada nodesenvolvimento e na justiça social;

— explorar todo o potencial de negociação da Or-ganização para encaminhar soluções aos conflitos regio-nais que se multiplicam no Terceiro Mundo;

— recuperar uma função central nas negociaçõespara a redução, controle e eliminação de armamentos,com ênfase nos de maior poder destrutivo.

Mas a liberdade não se esgota no exercício de umbem político. No bem-estar de cada um de nós está em-butida uma grande dívida social, uma dívida moral comtodas as populações pobres do Mundo inteiro que parti-

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cipam do gênero humano a quem chamamos de irmãos,mas que tratamos como se não o fossem.

O sentido da liberdade, para o homem contemporâ-neo, não é somente a ausência de coerção ou de interfe-rência. É a perspectiva de uma vida feliz, para si e paraos seus. Daí a concepção de liberdade que se preocupaconcretamente com as condições reais da vida livre e seesmera em promover a mais ampla igualdade de oportu-nidades. O homem moderno é alguém que vivência nopresente o sonho de Jefferson: a procura, pessoal e cole-tiva, da felicidade.

A equalização de oportunidades é o alimento da li-berdade social, para que o mercado sirva aos homensem vez de os homens serem servos do mercado. Sem di-versidade de valores e múltiplas formas de vida não vi-ceja a liberdade, que se estiola no privilégio e se afogana opressão.

Senhor Presidente,

Churchill e Roosevelt, em Hyde Park, pouco antesda criação da ONU, tiveram um diálogo. PerguntouRoosevelt como a paz poderia ser assegurada. Respon-deu Churchill:

— Com a aliança anglo-americana.Ponderou Roosevelt:— Não. É com a melhoria das condições de vida

em todo o Mundo.Para que haja paz, repito, tem de haver democracia

e liberdade. Liberdade contra a fome.

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O Mundo não pode ter paz enquanto existir umaboca faminta em qualquer lugar da Terra, uma criançamorrendo sem leite, um ser humano agonizando pelafalta de pão. O século que virá será o século da sociali-zação dos alimentos. A imagem da Mater Dolorosa dosdesertos africanos nos humilha. Os alimentos não po-dem continuar sendo apenas mercadorias especulativasdas bolsas. A Ciência e a Técnica estão aí, através daengenharia genética, anunciando uma nova era de abun-dância. A Humanidade, que foi capaz de romper as bar-reiras da Terra e partir para as estrelas longínquas, nãopode ser incapaz de extirpar a fome. O que se necessitaé de uma vontade mundial, é de uma decisão sem vetos.É urgente um plano de paz pela extinção da fome.

O Brasil, que vive o paradoxo de ser grande produ-tor de alimentos, enquanto luta para eliminar de seu ter-ritório os bolsões de fome, está disposto a participarcom entusiasmo de um esforço de mobilização da comu-nidade internacional para eliminar esse flagelo antes dofim do Século. Este desafio poderá ser a oportunidadepara que a ONU e suas agências superem o descréditodo multilateralismo, demonstrando sua eficácia e valida-de.

Para isso, o Homem tem que ter uma visão huma-nista da Política, senão ele só enxergará e só semearámísseis e ogivas nucleares.

A conquista dos mares deu ao Homem o humanis-mo renascentista.

A conquista do Cosmo amplia nossa vista para umasolidão infinita. O Mundo ficou maior e menor. Temos

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de ser solidários nesta viagem em que todos os homensestão condenados à grande sedução da vida. O novo hu-manismo deve estar centrado na solidariedade e na paz.A paz só existe com a liberdade; a liberdade, com a de-mocracia; e a democracia, quando olharmos pelos segre-gados, pelos famintos, pelos desempregados. Quandoamarmos, nas nações pobres, as regiões mais pobres;nas nações ricas, os homens pobres; nas nações mais po-bres, os mais pobres homens.

Há quarenta anos trabalhávamos sobre os escom-bros claros de uma guerra; hoje devemos trabalhar paraevitar os escombros da guerra anônima que é a fome.

A miséria é negação da vida.Esta a grande missão do Homem: transformar a vi-

da, transformando o Mundo. Estamos avistando o Sécu-lo XXI.

Olhemos os novos tempos com olhos de amor à Na-tureza, com olhos de caçadores de sonhos.

Tenhamos a coragem de proclamar: liberdade e pazsão o fim da miséria, da fome.

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