preconceito linguistico

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‘’É preciso saber gramática para falar e escrever bem”. É difícil encontrar alguém que não concorde com a declaração acima. Ela vive na ponta da língua da grande maioria dos professores de português e está formulada em muitos compêndios gramaticais, como a já citada Gramática de Cipro e Infante, cujas primeiríssimas palavras são: “A Gramática é instrumento fundamental para o domínio do padrão culto da língua”. É muito comum, também, os pais de alunos cobrarem dos professores o ensino dos “pontos” de gramática tais como eles próprios os aprenderam em seu tempo de escola. E não faltam casos de pais que protestaram veementemente contra professores e escolas que, tentando adotar uma prática de ensino da língua menos conservadora, não seguiam rigorosamente “o que está nas gramáticas”. Conheço gente que tirou seus filhos de uma escola porque o livro didático ali adotado não ensinava coisas “indispensáveis” como “antônimos”,”coletivos” e “análise sintática”... Por que aquela declaração é um mito? Porque, como nos diz Mário Perini em So- frendo a gramática (p. 50), “não existe um grão de evidência em favor disso; toda a evi- dência disponível é em contrário”.Afinal, se fosse assim, todos os gramáticos seriam grandes escritores (o que está longe de ser verdade), e os bons escritores seriam especi- alistas em gramática. Ora, os escritores são os primeiros a dizer que gramática não é com eles! Rubem Braga, indiscutivelmente um dos grandes de nossa literatura, escreveu uma crônica deliciosa a esse respeito chamada “Nascer no Cairo, ser fêmea de cupim”. Carlos Drummond de Andrade (preciso de adjetivos para qualificá-lo?), no poema “Aula de Português” também dá testemunho de sua perturbação diante do “mistério” das “figuras de gramática, esquipáticas”, que compõem “o amazonas de minha ignorância”. Drummond ignorante? E o que dizer de Machado de Assis que, ao abrir a gramática de um sobrinho, se espantou com sua própria “ignorância” por “não ter entendido nada”? Esse e outros casos são citados por Celso Pedro Luft em Língua e liberdade (pp. 23-25). E esse mesmo autor nos diz (p. 21): Um ensino gramaticalista abafa justamente os talentos naturais, incute insegurança na linguagem, gera aversão ao estudo do idioma, medo à expressão livre e autêntica de si mesmo. Mário Perini, no livro que citamos acima, chama a atenção para a “propaganda enganosa “contida no mito de que é preciso ensinar gramática para aprimorar o desem- penho lingüístico dos alunos: Quando justificamos o ensino de gramática dizendo que é para que os alunos ve- nham a escrever (ou ler, ou falar) melhor, estamos prometendo uma mercadoria que não podemos entregar. Os alunos percebem isso com bastante clareza, embora talvez não o possam explicitar; e esse é um dos fatores do descrédito da disciplina entre eles. E Sírio Possenti, já citado, lembra-nos que as primeiras gramáticas do Ocidente, as gregas, só foram elaboradas no século II a.C., mas que muito antes disso já existira na Grécia uma literatura ampla e diversificada, que exerce influência até hoje em toda a cultura ocidental. A Ilíada e a Odisséia já eram conhecidas no século VI a.C., Platão escreveu seus fascinantes Diálogos entre os séculos V e IV a.C., na mesma época do grande dramaturgo Ésquilo, verdadeiro criador da tragédia grega. Que gramática eles consultaram? Nenhuma. Como puderam então escrever e falar tão bem sua língua? O que aconteceu, ao longo do tempo, foi uma inversão da realidade histórica. As gramáticas foram escritas precisamente para descrever e fixar como “regras” e “padrões” as manifestações lingüísticas usadas espontaneamente pelos escritores considerados dignos de admiração, modelos a ser imitados. Ou seja, a gramática normativa é decorrên- cia da língua, é subordinada a ela, dependente dela. Como a gramática, porém, passou a

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  • preciso saber gramtica para falar e escrever bem.

    difcil encontrar algum que no concorde com a declarao acima. Ela vive naponta da lngua da grande maioria dos professores de portugus e est formulada emmuitos compndios gramaticais, como a j citada Gramtica de Cipro e Infante, cujasprimeirssimas palavras so: A Gramtica instrumento fundamental para o domnio dopadro culto da lngua.

    muito comum, tambm, os pais de alunos cobrarem dos professores o ensino dospontos de gramtica tais como eles prprios os aprenderam em seu tempo de escola. Eno faltam casos de pais que protestaram veementemente contra professores e escolasque, tentando adotar uma prtica de ensino da lngua menos conservadora, no seguiamrigorosamente o que est nas gramticas. Conheo gente que tirou seus filhos de umaescola porque o livro didtico ali adotado no ensinava coisas indispensveis comoantnimos,coletivos e anlise sinttica...

    Por que aquela declarao um mito? Porque, como nos diz Mrio Perini em So-frendo a gramtica (p. 50), no existe um gro de evidncia em favor disso; toda a evi-dncia disponvel em contrrio.Afinal, se fosse assim, todos os gramticos seriamgrandes escritores (o que est longe de ser verdade), e os bons escritores seriam especi-alistas em gramtica.

    Ora, os escritores so os primeiros a dizer que gramtica no com eles! RubemBraga, indiscutivelmente um dos grandes de nossa literatura, escreveu uma crnicadeliciosa a esse respeito chamada Nascer no Cairo, ser fmea de cupim.

    Carlos Drummond de Andrade (preciso de adjetivos para qualific-lo?), no poemaAula de Portugus tambm d testemunho de sua perturbao diante do mistrio dasfiguras de gramtica, esquipticas, que compem o amazonas de minha ignorncia.Drummond ignorante?

    E o que dizer de Machado de Assis que, ao abrir a gramtica de um sobrinho, seespantou com sua prpria ignorncia por no ter entendido nada? Esse e outros casosso citados por Celso Pedro Luft em Lngua e liberdade (pp. 23-25). E esse mesmo autornos diz (p. 21):

    Um ensino gramaticalista abafa justamente os talentos naturais, incute inseguranana linguagem, gera averso ao estudo do idioma, medo expresso livre e autntica desi mesmo.

    Mrio Perini, no livro que citamos acima, chama a ateno para a propagandaenganosa contida no mito de que preciso ensinar gramtica para aprimorar o desem-penho lingstico dos alunos:

    Quando justificamos o ensino de gramtica dizendo que para que os alunos ve-nham a escrever (ou ler, ou falar) melhor, estamos prometendo uma mercadoria que nopodemos entregar. Os alunos percebem isso com bastante clareza, embora talvez no opossam explicitar; e esse um dos fatores do descrdito da disciplina entre eles.

    E Srio Possenti, j citado, lembra-nos que as primeiras gramticas do Ocidente, asgregas, s foram elaboradas no sculo II a.C., mas que muito antes disso j existira naGrcia uma literatura ampla e diversificada, que exerce influncia at hoje em toda acultura ocidental. A Ilada e a Odissia j eram conhecidas no sculo VI a.C., Platoescreveu seus fascinantes Dilogos entre os sculos V e IV a.C., na mesma poca dogrande dramaturgo squilo, verdadeiro criador da tragdia grega. Que gramtica elesconsultaram? Nenhuma. Como puderam ento escrever e falar to bem sua lngua?

    O que aconteceu, ao longo do tempo, foi uma inverso da realidade histrica. Asgramticas foram escritas precisamente para descrever e fixar como regras e padresas manifestaes lingsticas usadas espontaneamente pelos escritores consideradosdignos de admirao, modelos a ser imitados. Ou seja, a gramtica normativa decorrn-cia da lngua, subordinada a ela, dependente dela. Como a gramtica, porm, passou a

  • ser um instrumento de poder e de controle, surgiu essa concepo de que os falantes eescritores da lngua que precisam da gramtica, como se ela fosse uma espcie defonte mstica invisvel da qual emana a lngua bonita, correta e pura. A lngua passoua ser subordinada e dependente da gramtica. O que no est na gramtica normativano portugus. E os compndios gramaticais se transformaram em livros sagrados,cujos dogmas e cnones tm de ser obedecidos risca para no se cometer nenhumaheresia.

    O resultado dessa inverso dos fatos histricos visvel, por exemplo, na Gramticade Cipro e Infante que, na p. 16, afirma:

    A Gramtica normativa estabelece a norma culta, ou seja, o padro lingstico quesocialmente considerado modelar [...] As lnguas que tm forma escrita, como o casodo portugus, necessitam da Gramtica normativa para que se garanta a existncia deum padro lingstico uniforme [...].

    Ora, no a gramtica normativa que estabelece a norma culta. A norma cultasimplesmente existe como tal. A tarefa de uma gramtica seria, isso sim, definir, identifi-car e localizar os falantes cultos, coletar a lngua usada por eles e descrever essa lnguade forma clara, objetiva e com critrios tericos e metodolgicos coerentes. Sem isso nopodemos confiar em gramticas como a de Domingos Paschoal Cegalla, que afirmasimplesmente:

    Este livro pretende ser uma Gramtica Normativa da Lngua Portuguesa do Brasil,conforme a falam e escrevem as pessoas cultas na poca atual. [Novssima gramtica dalngua portuguesa, p. XIX].

    Mas quem so essas pessoas cultas na poca atual? Com que critrios o autor asclassificou de cultas? Com que metodologia precisa identificou o modo como elas fa-lam e escrevem? Pois disso precisamente que mais necessitamos hoje no Brasil: dadescrio detalhada e realista da norma culta objetiva, com base em coletas confiveisque se utilizem dos recursos tecnolgicos mais avanados, para que ela sirva de base aoensino/aprendizagem na escola, e no mais uma norma fictcia que se inspira num ideallingstico inatingvel, baseado no uso literrio, artstico, particular e exclusivo dos gran-des escritores Afinal, um instrutor de auto-escola quer formar bons motoristas, e nocampees internacionais de Frmula l. Um professor de portugus quer formar bonsusurios da lngua escrita e falada, e no provveis candidatos ao Prmio Nobel deliteratura!

    Por outro lado, no a gramtica normativa que vai garantir a existncia de umpadro lingstico uniforme. Esse padro lingstico (que pode chegar a certo grau deuniformidade, mas nunca ser totalmente uniforme, pois usado por seres humanos quenunca ho de ser criaturas fsica, psicolgica e socialmente idnticas), como j dissemos,existe na sociedade, independentemente de haver ou no livros que o descrevam.

    As plantas s existem porque os livros de botnica as descrevem? claro que no.Os continentes s passaram a existir depois que os primeiros cartgrafos desenharamseus mapas? Difcil acreditar. A Terra s passou a ser esfrica depois que as primeirasfotografias tiradas do espao mostraram-na assim? No. Sem os livros de receitas nohaveria culinria? Eu sei muito bem que no: a melhor cozinheira que conheo, capaz depreparar centenas de pratos diferentes, os mais sofisticados, uma pernambucana dequase oitenta .ms, cem por cento analfabeta.

    Esse mito est ligado milenar confuso que se faz entre lngua e gramticanormativa. Mas preciso desfaz-la. No h por que confundir o todo com a parte. Lem-bra-se do que eu falei na abertura do livro sobre a gramtica normativa ser um igap?Acho que vale a pena repetir aqui. Na Amaznia, igap uma grande poa de guaestagnada s margens de um rio, sobretudo depois da cheia. Acho uma boa metforapara a gramtica normativa. Como eu disse, enquanto a lngua um rio caudaloso, longoe largo, que nunca se detm em seu curso, a gramtica normativa apenas um igap,

  • uma grande poa de gua parada, um charco, um brejo, um terreno alagadio, margemda lngua. Enquanto a gua do rio/lngua, por estar em movimento, se renova incessante-mente, a gua do igap/gramtica normativa envelhece e s se renovar quando vier aprxima cheia.

    a mesma coisa que nos explica, em termos cientficos, Luiz Carlos Cagliari emAlfabetizao & lingstica: A gramtica normativa foi num primeiro momento uma gram-tica descritiva de um dialeto de uma lngua. Depois a sociedade fez dela um corpo de leispara reger o uso da linguagem.

    Por sua prpria natureza, uma gramtica normativa est condenada ao fracasso, jque a linguagem um fenmeno dnmico e as lnguas mudam com o tempo; e, paracontinuar sendo a expresso do poder social demonstrado por um dialeto, a gramticanormativa deveria mudar.

    Se no o ensino/estudo da gramtica que vai garantir a formao de bons usuri-os da lngua, o que vai garanti-la? Existe muito debate a respeito entre os lingistas e ospedagogos. O certo que eles so praticamente unnimes em combater aquele mito. Hlugar para a gramtica na escola? Parece que sim. Mas tambm parece ser um lugarbastante diferente do que lhe era atribudo na prtica tradicional de ensino da lngua. Naterceira parte deste livro, tentarei expor algumas opinies a respeito. De todo modo,algumas pessoas muito competentes j explicaram tudo isso melhor do que eu seriacapaz. Por isso, ao leitor e leitora interessados nesse tema recomendo a leitura, entreoutros, dos j citados Sofrendo a gramtica, de Mrio Perini, Por que (no) ensinar gra-mtica na escola, de Srio Possenti, e Lngua e Liberdade, de Celso Pedro Luft, e tambmLinguagem, lngua e fala, de Ernani Terra; Contradies no ensino de portugus, de RosaVirgnia Mattos e Silva, e Gramtica na escola, de Maria Helena de Moura Neves. Esseslivros nos ajudam a compreender melhor os mecanismos de excluso que agem por trsda imposio das normas gramaticais conservadoras no ensino da lngua e de que modopoderamos, em nossa prtica pedaggica, tentar desmont-los.

    [Captulo extrado do livro Preconceito Lingstico - o que , como se faz, de MarcosBagno, Edies Loyola, 1999]