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P894e

Copyright

by Presses Universitaires de France, 1981

Traduzido do original em franc•s

L

état, le pouvoir, le socialisme

-

ler édition

-

1978

CIP-Brasil. Catalogaç‹o-na-fonte

Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

ISBN-85-7038-017-8

Poulantzas, Nicos

O Estado, o poder, o socialismo

Nicos Poulantzas.

-

S‹o

Paulo:

Paz e Terra. 2000

(Biblioteca de Ci•ncias sociais; v. n. 19)

I. Socialismo I. T’tulo II. Série

80-0769

CDD-335

CDU-330.342.1S

EDI‚ Í ES GRAAL LTQA.

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2000

Impresso no Brasil I Printed in Brazil

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êNDICE

Advert•ncia ,..................................... 7

IN'I'RODU‚ Ì O 9

I

Sobre a Teoria do Estado 9

n. Os Aparelhos Ideol› gicos:

o Estado, repress‹o

+

ideologia?............................... 26

m.

O Estado, os poderes e as lutas 33

PRIMEIR P RTE

A MATERIALIDADE INSTIrUCIONAL DO ESTADO ...... 47

I.

O trabalho intelectual e o trabalho manual:

o saber e o poder 51

n. A individualizaç‹o 60

1

- A ossatura do Estado e as técnicas do poder 60

2

-

As ra’zes do totalitarismo 67

m. A

Lei 74

1

- Lei

e Terror 74

2

-

A Lei Moderna 84

IV.

A Naç‹o

91

1

- A matriz espacial: o Territ—io 98

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PRIMEIRA PARTE

A MATERIALIDADE

INSTITUCIONAL

DOESTADO

Podemos agora voltar ao nosso problema inicial: a materiali-

dade institucional do Estado como aparelho "especial" n‹o pode ser

reduzida a seu papel na dominaç‹o pol’tica. Deve ser, antes de mais

nada, procurada na relaç‹o do Estado com as relaç› es de produç‹o

e a divis‹o social do trabalho que elas implicam. Mas esta relaç‹o

'n‹o é de ordem epistemol—ica diferente da relaç‹o do Estado com

as classes sociais e a luta de classes. Colocar o Estado em relaç‹o

com as relaç› es de produç‹o e a divis‹o social do trabalho nada

mais

é

que o primeiro momento, certamente diferenciado, de um

único e mesmo processo: o de relacionar o Estado com o conjunto

do campo das lutas. ƒ isso que tentarei mostrar aqui com refer•ncia,

mais particularmente, ao Estado capitalista, sem reportar-me, de

maneira exaustiva, a an‡lises feitas em meus textos precedentes.

Contentar-me-ei em aprofundar e completar determinados pontos,

retificar outros, ˆ luz de an‡lises que somos, agora, capazes de fazer.

A questão que tentei responder j‡ em Poder politico

e

classes

sociais era a seguinte: Por que a burguesia disp› e, para sua domina-

ç‹o polí tica, deste aparelho de Estado absolutamente espec’fico que

é o Estado capitalista, este Estado representativo moderno, este Es-

tado nacional-popular de classe? De onde provém a ossatura mate-

rial primeira deste Estado? Minhas an‡lises j‡ se situavam na se-

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guinte direç‹o: esta materialidade baseia-se na separaç‹o relativa do

.

Estado e das relaç› es de produç‹o sob o capitalismo. O fundamen-

to desta separaç‹o, princí pio organizador das instituiç› es pr—rias

do Estado capitalista e de seus aparelhos (justiça, exército, adminis-

traç‹o, polí cia etc.), de seu centralismo, de sua burocracia, de suas

instituiç›es representativas (sufr‡gio universal, parlamento etc.), de

seu sistema jurí dico, consiste na especificidade das relaç› es de pro-

duç‹o capitalistas e na divis‹o social do trabalho a que induzem: se-

paraç‹o radical do trabalhador direto de seus meios e objeto do tra-

balho, na relaç‹o de posse no pr—rio processo de trabalho.

O que me parecera caracterí stico, então,

é

um traço permanen-

te da teoria marxista do Estado que persiste ainda hoje e que est‡

relacionado, ali‡s, ˆ s profundas ambigüidades do pensamento do pr—

prio Marx a esse respeito. A esmagadora maioria dos autores mar-

,

xistas que n‹o reduziam o Estado capitalista ˆ dominaç‹o polí tica

"ditadura" de uma burguesia-sujeito), e colocavam ent‹o a per-

tinente quest‹ o: "Por que este Estado precisamente e n‹o um outro

que corresponda ˆ dominaç‹o polí tica burguesa?", tentou encontrar

o fundamento deste Estado no dominio da circulaç‹ o do capital e

nas trocas mercantis generalizadas .

A linha geral dessas an‡lises

é suficientemente conhecida: trocas de mercadorias entre proprietá-

rios "privados"

-

esta propriedade privada considerada apenas a

n’vel jurí dico

-,

contrato de compra e venda da força-trabalho,

troca equivalente e valor de troca abstrato etc. Este seria o terreno

de emerg•ncia da igualdade e da liberdade "formais" e "abstratas",

part’culas isoladas da sociedade de troca

-

o indiv’duo

genérico-'

instauradas como "indiv’duos-pessoas" jurí dico-polí ticos, da lei e da,

regra jurí dica formal e abstrata como sistema de coes‹o dos comer-

ciantes que trocam. A separaç‹o relativa do Estado e da economia é

tomada como separaç‹o do Estado e da famosa "sociedade civil".

Esta sociedade civil, palco de necessidades e trocas entre indiv’duos

isolados seria representada em si como uma associaç‹o contratual de

sujeitos jurí dicos individualizados, sendo a separaç‹o da sociedade

civil e do Estado reduzida a um mecanismo ideol—ico localizado no

‰mago das relaç› es mercantis, ˆ fetichizaç‹o-reificaç‹o do Estado a

partir do famoso fetichismo da mercadoria. As variantes desta con-

cepç‹o s‹o numerosas, porém a trama continua sempre a mesma.

Esta concepç‹o foi tematizada principalmente pela escola marxista

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italiana (Galvanno della Volpe, U. Cerroni etc.), Ela permanece ex-

traordinariamente viva: basta mencionar os recentes trabalhos, a n—

maispr—imos, de Henri Lefebvre sobre o Estado.

Procurei demonstrar que esta concepç‹o

é

insuficiente e par-

cialmente falsa, porque ela procura o fundamento do Estado nas re-

laç› es de circulaç‹o e nas trocas mercantis (o que é de qualquer

forma uma posiç‹o pré-marxista) e n‹o nas relaç› es de produç‹o,

que t•m um lugar determinante no conjunto do ciclo de reproduç‹o

ampliada do capital. Esta concepç‹o empobrece consideravelmente

as pesquisas sobre o Estado. E o que é mais, ao levantar a quest‹o

da especificidade institucional do Estado capitalista, torna imposs’-

vel

a articulaç‹o entre esse Estado-sociedade civil e o Estado-luta de

classes: as classes sociais t•m elas mesmas seu fundamento nas re-

laç› es de produç‹o. N‹o que esta concepç‹o n‹o encerre certos me-

canismos institucionais importantes do Estado, pois o espaço de cir-

culaç‹o do capital tem ele pr—rio efeitos sobre o Estado: mas ela

omite o essencial. Ela tem assim uma conseqü•ncia suplementar:

n‹o deixa perceber certas caracterí sticas do Estado nos paí ses do

Leste que se assemelham ˆs do Estado capitalista, ainda que as rela-

ç› es mercantis aí tenham sofrido consider‡veis transformaç› es.

Ora. esta semelhança é devida, entre outras coisas, aos "aspectos ca-

pitalistas" que marcam o Estado nesses paí ses, pois marcam igual-

mente suas relaç› es de produç‹o e sua divis‹o social do trabalho. Os

~

trabalhadores n‹o det•m nem o controle nem o dom’nio dos proces-

sos de trabalho (relaç‹o de posse), nem o poder econômico real

. sobre os meios de trabalho (relaç‹o de propriedade econômica, di-

ferente de propriedade jurí dica): trata-se de uma estatizaç‹o e n‹o de

uma verdadeira socializaç‹o da produç‹o. No plano polí tico, trata-

se de uma ditadura sobre o proletariado.

Seja como for, a discuss‹o e pesquisa sobre o Estado e o poder,

na França e no estrangeiro t•m, desde então, avançado consideravel-

mente, de maneira tal que a conjuntura ideol—ico-te—ica mudou par-

cialmente. Porém certas an‡lises recentes, me parece, reproduzem os

inconvenientes e as defici•ncias daquelas que ataquei ˆ época. Criti-

cou-se muitas vezes minhas an‡lises sob a pecha de

politicismo:

ten-

tando estabelecer o espaço polí tico pr—rio do Estado e do poder ca-

pitalistas a partir "exclusivamente" das relaç› es de produç‹o, eu n‹o

teria dado suficiente atenç‹o ˆ s relaç› es do Estado e da economia.

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A quest‹o seria ent‹o relacionar o Estado com o que alguns de-

signam como a l—gica do capital,

ou seja, sua acumulaç‹o e repro-

duç‹o ampliada. Problem‡tica que desenvolveu-se particularmente

na Alemanha Federal sob a denominaç‹o de Ableitung, na Grã-Bre-

tanha e nos Estados Unidos sob a denominaç‹o de

Derivation,

e

sobre a qual atualmente se disp› e de determinados textos em fran-

c•s. Trata-se

de fazer "derivar", digamos deduzir, as instituiç› es

pr—rias do Estado capitalista das "categorias econômicas" da acu-

mulaç‹o do capital. Ora, essa problem‡tica recai numa concepç‹o

assaz tradicional do capital como entidade abstrata com l—ica

in-

trí nseca- as categorias econômicas -, e culmina em duas linhas

de pesquisa, insuficientes tanto uma como outra, para explicar a es-

pecificidade material desse Estado.

Ora

recai, como

J.

Hisrch de-

monstrou, precisamente no espaço das trocas e da circulaç‹o do ca-:

pital (troca equivalente, moeda, valor abstrato etc.), e deduz essa

especificidade dessas

"categoriasv.?

Ora ainda tenta deduzir esta es-

pecificidade e as transformaç› es hist—icas desse Estado,

de suas

funç› es econômicas em benefí cio da acumulaç‹ o ampliada do ca-

pital. Tend•ncia retomada igualmente na França e que se traduz,

particularmente para o atual Estado, em deduzir o conjunto de suas

transformaç› es institucionais de seu novo papel na superacumula-

ç‹o-desvalorizaç‹o do capital. Aqui também, esta linha de pesquisa

omite o essencial: certamente, ao me posicionar essencialmente con-

tra o economicismo, na época, eu desviara o bastão noutro sentido.

As funç› es econômicas (é preciso que se explique ainda o sentido

exato desse termo) t•m importantes efeitos em favor da acumulaç‹o

do capital, da acumulaç‹o primitiva ao capitalismo concorrencial e

o capitalismo monopolista atual, sobre a estruturaç‹o do Estado.

Isso ser‡ amplamente retomado na terceira parte deste texto, onde

mostrarei que elas s‹o essenciais para explicar a forma atual do

Estado, o estatismo autorit‡rio. Por ora, contudo, digo simplesmen-

te que essas funç› es n‹o s‹ o principais e n‹o permitem explicar, de

maneira exaustiva, as instituiç› es polí ticas. N‹o respondem ˆ ques-

t‹o fundamental: por que s‹ o elas preenchidas precisamente por esse

Estado muito particular que

é

o Estado representativo nacional-

popular, moderno e n‹o por um outro? Para colocar uma questão

aparentemente paradoxal: por que esse Estado n‹o se reproduz sob

sua forma de monarquia absolutista?

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,

Da. mesma maneira que n‹o se pode responder a esta quest‹o

pela referência exclusiva ˆ dominaç‹o pol’tica (ˆ natureza da bur-

guesia ou ˆ luta apenas polí tica burguesia/classe oper‡ria), n‹o se

pode responder pela refer•ncia

ˆ s

funç› es econômicas do Estado ou

a uma conjunç‹o das duas (funç› es econômicas + luta polí tica).

Mais exatamente, essas funç› es econômicas s‹o articuladas e basea-

das

nas'

relaç› es de produç‹o e em sua especificidade capitalista.

Estas constituem a base primeira da materialidade institucional do

Estado e de sua separaç‹o relativa da economia, que marca sua os-

satura como aparelho: s‹o a única base de partida poss’vel de uma

an‡lise das relaç› es do Estado com as classes e a luta de classes. As

transformaç› es do Estado estão ligadas, principalmente, ˆ s transfor-

maç› es das relaç› es de produç‹o capitalistas que induzem transfor-

maç› es desta separaç‹o e, da’, ˆs lutas de classes. ƒ a’ que se ins-

crevem as modificaç› es do papel e das atividades econômicas do

Estado que t•m, certamente, seus efeitos pr—rios sobre ele.

Linha de pesquisa que me orientara em

Poder polí tico e classes

sociais

porém que eu apontava os limites: esse texto, escrito antes de

maio de 1968 (publicado em maio de 68), enfatizando o papel da di-

vis‹o social

-

capitalista

-

do trabalho na medida precisamente em

.que tomava como base de partida as relaç› es de produç‹o, n‹o tra-

duzia ainda o alcance consider‡vel desta divis‹o. ƒ o maio de 68 e as

particularidades do movimento oper‡rio que se seguiu que far‹o sal-

tar toda uma série de bloqueios. Expus minhas deduç› es em

As

clas-

ses sociais no capitalismo hoje?

quanto ˆ importância da divis‹o so-

dai do trabalho na constituiç‹o das classes. Tentarei fazer aqui o

mesmo em relaç‹o ao Estado, tomando certos casos t’picos a tí tulo

de exemplo. Feito isso, cuidarei de tratar de quest› es te—icas funda-

mentais: centrar a perspectiva e o eixo da pesquisa para esta divis‹o

coloca novos problemas, porque considerar o Estado com esta divi-

s‹o n‹o é uma coisa simples, como sempre se vem acreditando.

I, O TRABALHO INTELEcruAL E O TRABALHO MANUAL:

O SABER E O PODER

Comecemos pela criaç‹o e o funcionamento do Estado bur-

gu•s na sua materialidade de aparelho. Aparelho especializado, cen-

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tralizado, de natureza especificamente polí tica, consistindo num

agrupamento de funç› es anônimas, impessoais e formalmente dis-

tintas do poder econômico, cujo agenciamento ap—a-se numa axio-

matizaç‹o de leis-regras que distribuem os domí nios da atividade,

de compet•ncia, e numa legitimidade baseada nesse corpo que

é

esse povo-naç‹o. Elementos que, todos eles, est‹o incorporados na

organizaç‹o dos aparelhos do Estado moderno. Estes se distinguem

dos aparelhos de Estado feudais, baseados em elos pessoais, na pro-

jeç‹o de todo poder sobre o poder econômico (o senhor desempe-

nhando ele mesmo o papel de juiz, de administrador, de chefe mili-

tar ao mesmo tempo que proprietário fundi‡rio), numa hierarquia.

composta de poderes estanques (a pir‰mide senhorial), cuja legiti-

midade decorre da soberania do corpo do chefe (rei-senhor) traçada

no corpo social. Especificidade portanto do Estado moderno que

est‡ ligado precisamente a esta separaç‹o relativa do polí tico e do

econômico, e a toda uma reorganizaç‹o de seus espaços e respecti-

vos campos, implicada na total espoliaç‹o do trabalhador direto nas

relaç› es de produç‹o capitalistas.

Essas relaç› es s‹o o solo de uma reorganizaç‹ o prodigiosa da

divis‹o social do trabalho

da qual elas s‹o consubstanciais, reorga-

nizaç‹o que distingue a mais-valia relativa e a reproduç‹o ampliada

do capital no est‡gio do "maquinismo" e da "grande indústria". Esta

divis‹o propriamente capitalista, sob todas as formas, representa' a

condiç‹o de possibilidade do Estado moderno. Estado que surge

assim em toda sua originalidade hist—ica: esse Estado constitui uma

efetiva ruptura em relaç‹o aos tipos de Estado pré-capitalistas (asi‡-

tico, escrav’sta, feudal), que n‹o basta para compreender exatamen-

te as concepç› es que fundamentam as relaç› es mercantis (concep-

ç› es estas que sempre existiram).

.

N‹o tomo aqui n‹o mais que um caso dessa divis‹o, qual seja

o

da divis‹o entre trabalho manual e trabalho intelectual. Esta divi-

s‹o n‹o pode ser concebida de maneira emp’rico-naturalista,

c0 D0

uma cis‹o entre os que trabalham com suas m‹os e os que trabalham

com sua cabeça: ela remete diretamente ˆs relaç› es polí tico-ideol—

gicas tais como ocorrem em determinadas relaç› es de produç‹o.

Ora, como Marx muito bem mostrou, h‡ uma especificidade desta

divis‹o no capitalismo, ligada ˆ espoliaç‹o completa do trabalhador

direto de seus meios de trabalho. O que tem como efeito:" a) a sepa-

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raç‹o caracterí stica dos elementos intelectuais e do trabalho realiza-

do pelo trabalhador direto, trabalho que, nesta distinç‹o do trabalho

intelectual (o saber) recobre assim a forma capitalista de trabalho

manual; b) a separaç‹o da ci•ncia do trabalho manual enquanto,

a

"serviço do capital", tende a tomar-se força produtiva direta; c) as

relaç› es particulares entre a ci•ncia-saber e as relaç› es ideol—icas,

ou seja a ideologia dominante, n‹o apenas no sentido de um saber

mais

ideologizado

que antes, nem simplesmente no sentido de

uma' utilizaç‹o polí tico-ideol—ica do saber pelo poder (isso sempre

aconteceu), mas no sentido de uma legitimaç‹o ideol—ica do poder

institu’do na modalidade da técnica cient’fica, ou seja, a legitimaç‹o

de um poder como decorrente de uma pr‡tica cient’fica racional; d)

as relaç› es org‰icas estabelecidas doravante entre o trabalho inte-

lectual assim separado do trabalho manual e as relaç› es de domina-

ç‹o polí ticas, em suma entre o

saber

e o

poder

capitalistas. O que

Marx demonstrara a respeito do despotismo da f‡brica e do papel da

ci•ncia no processo de produç‹o capitalista, ao analisar as relaç› es

da’ em diante org‰icas entre saber e poder, entre trabalho intelec-

tual (saber-ci•ncia investido na ideologia) e as relaç› es pol’ticas de

dominaç‹o, tais como existem e se reproduzem no processo de ex-

tors‹o da mais-valia.

Se esta separaç‹o capitalista, totalmente caracterí stica, entre

trabalho manual e trabalho intelectual é apenas um aspecto de uma

divis‹o social do trabalho mais geral, ela é decisiva no caso do Es-

átado. Uma das intuiç› es fundamentais dos cl‡ssicos do marxismo é

que o aspecto mais interessante, sem dúvida, da divis‹o social do

.

trabalho em relaç‹o

ˆ

emerg•ncia do Estado como aparelho "espe-

cial" consiste na divis‹o' entre trabalho manual e trabalho intelec-

tual.

O Estado encarna no conjunto de seus aparelhos.

isto é, n‹o

apenas em seus aparelhos ideol—icos mas igualmente em seus apa-

relhos repressivos ou econômicos,

o trabalho intelectual enquanto

afastado do trabalho manual: o que se torna evidente quando se sai

da

distinç‹o naturalista-positivista trabalho manual/trabalho inte-

lectual. E é no Estado capitalista que a relaç‹o org‰ica entre traba-

lho intelectual e dominaç‹o polí tica, entre saber e poder, se efetua

de maneira mais acabada. Esse Estado, afastado das relaç› es de

produç‹o, situa-se precisamente ao lado do trabalho intelectual ele

mesmo separado do trabalho manual: ele é o corol‡rio e o produto

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desta divis‹o, ao deter um papel pr—rio em sua constituiç‹o e sua

reproduç‹o.

Isso se traduz na pr—ria materialidade do Estado. Inicialmen-

te em sua especializaç‹o-separaç‹o dos aparelhos de Estado em re-

laç‹o aos processos de produç‹o: é principalmente por uma crista-

lizaç‹o do trabalho intelectual que esses aparelhos se afastam desse

processo. Esses aparelhos, em sua forma capitalista (exército, justi-

ça, administraç‹o, polí cia etc.), para n‹o citar os aparelhos ideol—

gicos, implicam exatamente

a

efetivaç‹o e o domí nio de um saber e

de um discurso (diretamente investidos na ideologia dominante ou

constitu’dos a partir de formaç› es ideol—icas dominantes) em que

as massas populares estão exclu’das. Aparelhos baseados em sua.

ossatura numa exclus‹o espec’fica e permanente das massas popu-

lares situadas ao lado do trabalho manual, que

aí s‹o subjugadas in-

diretamente pelo Estado. ƒ a monopolizaç‹o permanente do saber

por parte do Estado-s‡bio-Iocutor, por parte de seus aparelhos e de

seus agentes, que determina igualmente as funç› es de organizaç‹o

e de direç‹o do Estado, funç› es centralizadas em sua separaç‹o es-

pec’fica das massas: imagem do trabalho intelectual (saber-poder)

materializada em aparelhos, em face do trabalho manual tendencial-

mente polarizado em massas populares separadas e exclu’das des-

sas funç› es organizacionais. ƒ igualmente evidente que uma série

de instituiç› es da democracia representativa, dita indireta (partidos

polí ticos, parlamento etc.), em suma da relaç‹o Estado-massas, de-

pendem do mesmo mecanismo. Isto Gramsci pressentira, quando

via no papel geral de organizaç‹o do Estado capitalista a realizaç‹o

por excel•ncia de um trabalho intelectual separado de maneira ca-

racterí stica do trabalho manual.

ƒ

assim que Gramsci inclu’a os

agentes dos aparelhos de Estado, aí nclu’dos os aparelhos repressi-

vos (policiais, guardas, militares), entre os intelectuais (org‰icos e

tradicionais) em amplo sentido?

Esta relaç‹o saber-poder n‹o é mais que a ideologia e n‹o re-

presenta apenas a simples funç‹o de legitimaç‹o do Estado se bem

que a assegure, notadamente no terreno do pensamento polí tico ofi-

cial. Mesmo durante a transiç‹o do feudalismo para o capitalismo,

depois ao est‡gio do capitalismo concorrencial, ambos marcados

pela constituiç‹o do Estado burgu•s e pela domin‰cia, no seio da

ideologia burguesa, da ‡rea jurí dico-polí tica,esta (a polí tica, o direi-

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to), de Machiavel a Th. Morus até em suas conceitualizaç› es ulte-

riores, é explicitamente legitimada, na forma da técnica cient’fica e

sobre o modelo das

eptstemes apod’dicas,

como detentora de um

saber que ela op› e ˆquilo que designa como utopia. Isto ultrapassa,

ali‡s, o simples discurso oficial e estende-se a essas

formas primei-

ras de ideologia

produzidas pelo Estado, que garantem as relaç› es

internas ao aparelho (autolegitimaç‹ o interna) e a legitimaç‹o de

suas pr‡ticas para o exterior: legitimaç‹o das pr‡ticas do Estado e de

seus agentes como portadores de um saber particular, de uma racio-

nalidade intrí nseca. Tudo isto, ali‡s, n‹o faz mais que reforçar-se

atualmente, sob as formas particulares da relaç‹o ideologia-saber-

ci•ncia 'que implica a transformaç‹o da ideologia jurí dico-polí tica

em ideologia tecnocr‡tica.

Mas reafmno exatamente que essa relaç‹o saber-poder n‹o é

apenas de ordem da legitimaç‹o ideol—ica: a separaç‹o capitalista

do trabalho intelectual e do trabalho manual concerne também

ˆ

ci•ncia em si, e a engloba. A apropriaç‹o da ci•ncia pelo capital se

faz certamente na f‡brica, mas igualmente pelo Estado. Esse Estado

apresenta isso de particular quando tende a incorporar

a

pr—ria

ci•ncia organizando seu discurso, o que atualrnente

é

n’tido. N‹o se

trata de uma simples instrumentalizaç‹o da ci•ncia e de sua manipu-

laç‹o ao serviço do capital. O Estado capitalista arregimenta

a

pro-

duç‹o

da ci•ncia que se toma assim uma ci•ncia de Estado imbrica-

da, em sua textura intrí nseca, nos mecanismos de poder; o que,

é

sabido, n‹o vale tão-somente para as chamadas "ci•ncias humanas",

Mais genericamente, esse Estado reparte o trabalho intelectual por

toda uma série de circuitos e redes graças aos quais ele se substitui

ˆ

Igreja, submete-se e confí rma o

corpo de intelectuais-savants,

en-

quanto, na Idade Média, isso s—existia de maneira proteiforme. Os

intelectuais como corpo especializado e profissionalizado s‹o cons-

titu’dos em sua funcionalizaç‹o-mercenarizaç‹o pelo Estado moder-

no. Esses intelectuais portadores de saber-ci•ncia tomam-se funcio-

n‡rios (universidades, institutos, academias, diversas sociedades de

estudo) do Estado pelo pr—rio mecanismo que fez dos funcion‡rios

deste Estado intelectuais.

Se a relaç‹o saber-poder n‹o é de ordem apenas da legitima-

ç‹o,

é

igualmente, lembro, porque o discurso do Estado, cristaliza

em si essa relaç‹o; discurso que é, aqui, inteiramente espec’fico.

55

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N‹o se trata como para os Estados pré-capitalistas, de um discurso

de revelaç‹o, baseado na palavra (efetiva ou suposta) do Prí ncipe,

repetindo a inscriç‹o do corpo soberano no corpo social. Discurso

m’tico de sentido pr—rio, e que tende indevidamente a suprimir

pela narrativa

a

dist‰cia entre os começos do poder soberano e as

origens do mundo. O Estado capitalista n‹o funda sua legitimidade

em sua origem: ele comporta uma série de fundaç› es sucessivas na

soberania, constantemente renovada, do povo-naç‹o. Esse Estado

afirma assim um papel organizacional particular em relaç‹o ˆ s clas-

ses dominantes e um papel de regulaç‹o em face do conjunto da for-

,

maç‹o social: seu discurso é

um discurso da aç‹o. Um discurso da

estratégia e da t‡tica, imbricadas certamente

ˆ

ideologia dominante.

mas alimentada igualmente de uma ci•ncia-saber açambarcada pelo

Estado (os conhecimentos econômicos, polí ticos, hist—icos).

Esse discurso, se efetua por excel•ncia a junç‹o saber-poder,

n‹o tem unidade pr—ria e intrí nseca. Trata-se de um discurso seg-

ment‡rio e fragmentado segundo os objetivos estratégicos do poder

e as diversas classes ˆs quais ele se dirige. Tive oportunidade de ob-

servar que mesmo essa "linguagem totalitária" por excel•ncia, que

é o discurso fascista, apresenta uma série de deslocamentos, de tor-

ç‹o de sentido, de f—mulas id•nticas (do termo corporativismo, por

exemplo) segundo a diversidade dos objetivos ou das classes visa-

das. Esse discurso deve sempre ser compreendido e entendido,

mesmo que n‹ o deva ser de maneira uní voca e por todos: n‹o basta

que seja pronunciado de maneira encantat—ia. O que sup› e, através

dos diversos c—igos discursivos, uma sobrecodificaç‹o do Estado,

quadro referencial de homogeneizaç‹o de segmentos discursivos e

dos aparelhos que os cont•m, terreno de seu funcionamento diferen-

cial. Essa sobrecodificaç‹o est‡ inculcada, por destilaç‹o calculada,

no conjunto dos suspeitos.

ƒ

a unificaç‹o da lí ngua que instaura o

Estado capitalista ao produzir a lingua nacional e ao extinguir as ou-

tras. L’ngua nacional certamente necess‡ria para a criaç‹o de uma

economia e de um mercado nacional, porém, muito mais ainda, para

a funç‹o polí tica do Estado. Miss‹o portanto do Estado nacional de

organizar os procedimentos discursivos modelando a materialidade

do povo-naç‹o e criar a l’ngua, criaç‹o certamente situada nas trans-

formaç› es ideol—icas, mas que n‹o se reduz meramente a uma ope-

raç‹o ideol—ica.

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Essa relaç‹o saber-poder, fundamentada no trabalho intelec-

tual que o Estado cristaliza separando-o do trabalho manual, situa-

se na ossatura organizacional do Estado. O Estado retraça e repro-

duz em seu pr—rio corpo a divis‹o social do trabalho: ele é portanto

o decalque das relaç› es entre poder e saber tais como elas se repro-

duzem no seio do trabalho intelectual. De relaç› es hier‡rquicas,

centralizadas e disciplinares para relaç› es de escal› es e núcleos de

decis‹o/execuç‹o, de escal› es de delegaç‹o de autoridade para for-

mas de repartiç‹o-ocultamento do saber conforme esses escal› es

(segredo burocr‡tico) e para formas de qualificaç‹o e recrutamento

de agentes do Estado (qualificaç‹o escolar e recrutamento por con-

curso), a ossatura do Estado capitalista encarna, nos m’nimos deta-

lhes, a reproduç‹o induzida e interiorizada, no pr—rio seio do tra-

balho intelectual, da divis‹o capitalista entre o trabalho intelectual e

o trabalho manual. Nos seus menores detalhes: isso se propaga, por

exemplo, em toda a ritualidade material do Estado, por exemplo e

por mais que seja um detalhe, no caso da escrita.

N‹o h‡ dúvida de que sempre houve uma estreita relaç‹o entre

o Estado e a escrita, todo Estado representa uma certa forma de di-

vis‹o entre trabalho intelectual e trabalho manual. Mas o papel da

escrita é inteiramente particular no Estado capitalista, escrita que,

mais ainda que o discurso-fala representa aqui a articulaç‹o e a ven-

tilaç‹o saber-poder em seu seio. Do traço escrito, da nota, das rela-

ç› es com os arquivos, nada existe, sob certos aspectos, para esse Es-

tado, que n‹o seja escrita, e tudo que nele se faça deixa s~mpre uma

marca escrita em alguma parte. Ora, a escrita aqui é ’nte’ramente

diferente daquela nos Estados pré-capitalistas: n‹o é mais uma es-

crita de retranscriç‹o, puro decalque da fala (real ou suposta) do so-

berano, escrita de revelaç‹o e de memorializaç‹o, escrita monumen-

tal. Trata-se de uma escrita anônima, que n‹o repete um discurso

mas torna-se trajeto de um percurso, que traça os lugares e os dispo-

sitivos burocr‡ticos, percorre e figura o espaço centralizado-hier‡r-

quico deste Estado. Escrita que ao mesmo tempo espacializa e cria

espaços lineares e revers’veis nesta cadeia consecutiva e segmenta-

rizada que é a burocratizaç‹o. Papelada da organizaç‹o estatal mo-

dema que n‹o é simples detalhe pitoresco mas um traço material es-

sencial

ˆ

sua existência e funcionamento, cimento interno de seus

intelectuais-funcion‡rios, encarnando a relaç‹o deste Estado e do

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trabalho intelectual. Esse Estado n‹o monopoliza, n‹o retém para si

a escrita como no caso dos Estados pré-capitalistas ou da Igreja:

propaga-a (escolas) por necessidades muito concretas de formaç‹o

da força de trabalho. Mas, ao fazer isso, ele desdobra-a,

tanto mais

que

o

discurso-fala do Estado deve ser compreendido e entendido.

Tudo se passa como se nesse Estado de fala aberta e lí ngua nacional

unificada, o segredo em relaç‹o ˆs massas populares e a cristaliza-

ç‹o do saber-poder estivessem passados inteiramente na escrita do

Estado, cujo hermetismo com refer•ncia ˆs massas populares, ex-

clu’das dessa escrita, é assaz conhecido. Foi esse Estado que siste-

matizou, quando n‹o descobriu, a gram‡tica e

a

ortografia montan-

do-as em redes de poder.

Enfim, essa relaç‹o poder-saber se traduz por técnicas particu-

lares de exerc’cio do poder, por dispositivos precisos, inscritos na

trama do Estado, de distanciamento permanente das massas popula-

res dos centros de decis‹o: por uma série de rituais, de formas de

discurso, de modos estruturais de tematizaç‹o, de formulaç‹o e tra-

tamento dos problemas pelos aparelhos de Estado de maneira tal

(monopolizaç‹o do saber) que as massas populares (nesse sentido

trabalho manual) ficam de fato ˆ parte disso.

Certamente, n‹o se trata de reduzir a relaç‹o do Estado e das

relaç› es de produç‹o ˆ divis‹o trabalho intelectual/trabalho manual.

N‹o pretendo mais que ilustrar a direç‹o de pesquisa que nos faz

abandonar a esfera das relaç› es mercantis como fundamento do Es-

tado capitalista (nesse caso, pela burocracia como instância centra-

lizadora necess‡ria diante da anarquia concorrencial da sociedade

civil). Acrescento que, também nesse caso, o Estado n‹o é o simples

resultado

-da

divis‹o trabalho intelectual e trabalho manual funda-

mentada nas relaç› es de produç‹o. Ele trabalha ativamente para a

reproduç‹o desta divis‹o no pr—rio seio do processo de produç‹o

e, para além disso, no conjunto da sociedade, ao mesmo tempo por

aparelhos especiais que interv•m na qualificaç‹o-formaç‹o da força

de trabalho (escola, fam’lia, redes diversas de formaç‹o profissio-

nal) e pelo conjunto de seus aparelhos (partidos polí ticos burgueses

e pequeno-burgueses, sistema parlamentar, aparelhos culturais, im-

prensa, m’dias). Ele est‡ de antem‹o presente na constituiç‹o desta

divis‹o no seio das relaç› es de produç‹o: a divis‹o trabalho ma-

nuaVintelectual encarnada no despotismo de f‡brica remete ˆ s rela-

58

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ç› es polúicas de dominaç‹o/subordinaç‹o tais como existem nas re-

laç› es de exploraç‹o e dessa maneira, ˆ

presença do Estado nesses

últimos.

Observa-se também agora que essa relaç‹o saber-poder diz

respeito igualmente, por alguns de seus aspectos capitalistas, ao Es-

tado nos paí ses ditos de socialismo real, apesar das transformaç› es

que neles sofreram as relaç› es mercantis. A divis‹o do trabalho

in-

telectual e do trabalho manual, fundamentada nos "aspectos capita-

listas" de suas relaç› es de produç‹o, para além mesmo de uma esta-

tizaç‹o (distinta de uma verdadeira socializaç‹o) da economia, se

reproduz aí sob uma nova forma. Destaco apenas, ˆ guisa de indica-

ç‹o, pois então tudo isso se reveste de formas particulares e consi-

deravelmente diferentes que em nossas sociedades, por inúmeras ra-

z› es, inclusive pelas particularidades das classes sociais e da luta de

classes que distinguem esses paí ses.

Este relacionamento do Estado com a divis‹o trabalho intelec-

tual/trabalho manual, tal como est‡ implicada nas relaç› es de pro-

duç‹o capitalistas, n‹o é portanto sen‹o um primeiro passo para es-

tabelecer a relaç‹o do Estado com as classes e a luta de classes sob

o capitalismo. Este Estado, que representa o poder da burguesia, re-

mete ˆs particularidades da constituiç‹o desta classe como classe

dominante. Baseada num campo que implica a especializaç‹o carac-

terí stica das funç› es e do trabalho intelectual, a burguesia é a pri-

meira classe da hist—ia que tem necessidade, para se firmar como

classe dominante, de um corpo de

intelectuais org‰icos.

Estes, for-

malmente distintos dela embora arregimentados pelo Estado, n‹o

t•m um papel simplesmente instrumental (como foi o caso dos pa-

dres para a feudalidade) mas um papel de organizaç‹o de sua hege-

monia. N‹o é por acaso que a forma original da revoluç‹o burguesa

fosse, primeiramente, a de urna revoluç‹o ideol—ica: basta imagi-

nar o papel da ftlosofia das Luzes e o do aparelho ideol—ico-cultu-

ral da ediç‹o e da imprensa na organizaç‹o da burguesia.

Mais que isso: se todo Estado capitalista apresenta a mesma

ossatura material, essa se singulariza conforme as particularidades

da luta de classes,

da

organizaç‹o da burguesia e do corpo dos inte-

lectuais em cada Estado e paí s capitalista concretas. Nada mais claro

que

0

caso franc•s: a burguesia francesa, na trajet6ria do Estado ab-

solutista e através

das

formas da Revoluç‹o de 1789, conseguiu es-

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pecialmente sua organizaç‹o hegemônica e a criaç‹o, sob sua égide,

da unidade nacional, ao estabelecer estreitas ligaç› es com o corpo

de intelectuais de destaque. Ela garantiu seus préstimos permanen-

tes integrando-os estreitamente nos nichos institucionais do Estado

jacobinos e sabendo recompens‡-los, por v‡rias modalidades de pa-

gamento, pelos serviços prestados.

ƒ isso que caracteriza n‹o ape-

nas as instituiç› es culturais e os aparelhos ideol—icos deste Estado,

mas igualmente as not‡veis particularidades da "intelligentsia" fran-

cesa. Ligada ˆ s instituiç› es do Estado republicano que s‹o as redes

de seu poder delegado pela burguesia, ela foi, e continua a ser, ao

mesmo tempo uma "intelligentsia" refratária ˆ ideologia e ˆ s formas

de Estado facistas, e uma "’ntell’gentsia" maciçamente distanciada

das lutas populares, quando estas assumem formas radicais que

podem vir

a

colocar em questão seu pr—rio poder. Ela oscila per-

manentemente entre o antifacismo radical-republicano e a s’ndrome

dos Versalheses. Em nenhum outro lugar se pode encontrar, encar-

nados a tal ponto nos aparelhos de Estado, os fantasmas da "intell’-

gentsia": ora no conselho dos prí ncipes, ora, ou ao mesmo tempo,

influenciando as massas pelo alto, por cima de suas pr—rias organi-

zaç› es e via aparelhos de Estado (imprensa, instituiç› es culturais,

m’dias),

em suma a tentaç‹o do populismo elitista. A esta sede de

poder intelectual, estimulada pelo lugar destinado ˆ "intelligentsia"

no Estado franc•s, corresponde, por justo motivo (se é tentado a

dizer), o antiinteletualismo assaz conhecido do movimento oper‡rio

franc•s e de suas organizaç› es que, ele também, por sua vez, marca

com seu selo esse Estado, e a caracterí stica desconfiança das mas-

sas populares com relaç‹o aos aparelhos ideol—icos.

II. A INDIVIDUALIZA‚ Ì O

], A Ossatura do Estado e as Técnicas do Poder

A especializaç‹o e centralizaç‹o do Estado capitalista, seu fun-

cionamento hier‡rquico-burocr‡tico e suas instituiç› es eletivas im-

plicam uma atomizaç‹o e parcelarizaç‹o do corpo pol’tico nisso que

se designa de "indiv’duos", pessoas jurí dico-polí ticas,e de sujeitos

das liberdades. Esse Estado sup› e necessariamente uma organiza-

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ç‹o particular do espaço polí tico sobre o qual exerce o poder. O Es-

tado (centralizado, burocratizado etc.)

instaura

essa atomizaç‹o e

representa

(Estado representativo)

a

unidade do corpo (povo-

naç‹o),

fracionando-o

em mônadas formalmente equivalentes (so-

berania nacional, vontade popular). A materialidade desse Estado é,

sob certos aspectos, constitu’da como se devendo aplicar-se, atuar e

agir sobre um corpo social fracionado, homog•neo em sua divis‹o,

uniforme no isolamento de seus elementos, cont’nuo em sua atomi-

zaç‹o, desde o exército moderno ˆ administraç‹o, ˆ justiça, ˆ pris‹o,

ˆ

escola, aos mí dias etc.

-

a lista seria imensa.

Também nesse caso, esses fracionamentos n‹o surgem primei-

ramente das relaç› es entre possuidores de mercadorias na sociedade

civil em que as figuras primeiras seriam os indiv’duos-sujeitos das

relaç› es contratuais. Embora esse mecanismo de individualizaç‹o

esteja presente nas trocas mercantis generalizadas, sua base está em

outro ponto. ƒ preciso prevenir-se contra uma outra concepç‹o

igualmente falsa que emprega os mesmos pressupostos da ,primeira,

.embora chegue a resultados opostos. Ela também situa esse proces-

so unicamente nas relaç›es mercantis, e n‹o nas relaç› es de produ-

ç‹o-relaç› es de classe; evitando, porém, fundamentar o Estado nes-

sas relaç›es, termina por negar toda pertin•ncia da individualizaç‹o

na organizaç‹o do Estado capitalista, considerando-a como simples

apar•ncia mistificadora ligada ao fetichismo da mercadoria. Ora, a

individualizaç‹o é terrivelmente real; contudo, o fundamento dessa

instauraç‹o das mônadas sociais em indiv’duos-sujeitos na esfera da

circulaç‹o mercantil e da relaç‹o primeira do Estado com seus fra-

cionamentos encontra-se nas relaç› es de produç‹o e na divis‹o so-

cial do trabalho que estabelecem. O total desapossamento do traba-

lhador direto de seus meios de trabalho d‡ lugar ˆ emerg•ncia do

trabalhador "livre" e "nu", desligado da rede de laços (pessoais, es-

tatutários, territoriais) que antes o formavam na sociedade medieval.

Esse desapossamento imprime ao processo de trabalho uma estru-

tura determinada:

"Objetos de utilidade s—se transformam em mer-

cadorias porque s‹ o o produto de trabalhos privados executados in-

dependentemente uns dos outros." Trata-se de um modo de

articulaç‹o dos processos de trabalho que imp› e limites estruturais ˆ

depend•ncia real dos produtores introduzida pela socializaç‹o do

trabalho. Os trabalhos, num quadro imposto pelas relaç› es de produ-

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ç‹o, s‹o executados independentemente uns dos outros - trabalhos

privados

-,

quer dizer, sem que os produtores tenham de organizar

previamente sua cooperaç‹o; é ent‹o que predomina a lei do valor.

Evidentemente, essa estrutura das relaç› es de produç‹o e do

processo de trabalho n‹o cria diretamente as formas precisas

-

in-

dividualizaç‹o

-

que recobrem esse fracionamento. Ela induz um

quadro material referencial, das matrizes espaciais e temporais

que

s‹o os pressupostos da divis‹o social capitalista do trabalho, primei-

ramente no processo de produç‹o, no est‡gio que Marx chama de

mecanizaç‹o e da grande indústria. Esse quadro material primeiro é

o molde da atomizaç‹o e do fracionamento sociais incorporados nas

pr‡ticas do processo de trabalho. Ao mesmo tempo que pressuposto

das relaç›es de produç‹o e encarnaç‹o da divis‹o do trabalho, esse

quadro consiste na organizaç‹o de um espaço-tempo simultanea-

mente cont’nuo, homog•neo e parcelarizado, que é a base do taylo-

rismo. Um espaço esquadrinhado, segmentarizado e celular onde

cada parcela (indiv’duo) tem seu lugar, onde cada localizaç‹o corres-

ponde a uma parcela (indiv’duo), mas que deve apresentar-se como

homog•neo e uniforme. Um tempo linear, serial, repetitivo e cumu-

lativo, em que os diversos momentos integram-se uns aos outros,

orientando-se para um produto acabado - espaço-tempo materiali-

zado por excel•ncia na cadeia de produç‹o. Em suma, o indiv’duo,

bem mais que criaç‹o da ideologia polí tico-jurí dica engendrada pe-

las relaç› es mercantis, aparece aqui como o ponto de cristalizaç‹o

material, ponto focalizado no pr—rio corpo humano, de uma série de

pr‡ticas na divis‹o social do trabalho. A diferença da organizaç‹o na

Idade Média e no Capitalismo (individualizac‹o) corresponde a cor-

poreidades diferenciais. O desapossamento d—trabalhador de seus

meios de produç‹o no capitalismo, criando a força de trabalho como

base da mais-valia, desencadeia um processo pelo qual o corpo,

como j‡ mostrava Marx, torna-se simples "ap•ndice da m‡quina",

decomposto em "pequena quantidade de formas fundamentais nas

quais, apesar da diversidade dos instrumentos empregados, todo mo-

vimento produtivo do corpo humano deve realizar-se

...

7

ƒ

nessa individualizaç‹o que se escora a materialidade insti-

tucional do Estado capitalista. Ele inscreve em sua ossatura a re-

presentaç‹o da unidade (Estado representativo nacional) e a orga-

nizaç‹o-regulagem (centralismo hier‡rquico e burocr‡tico) dos

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fracionamentos constitutivos da realidade que é o

povo-naç‹ o.

Ao

mesmo tempo, os aparelhos do Estado s‹o moldados de

rnaneira

que exerçam o poder sobre esse conjunto assim constitu’do: reali-

zam o mesmo quadro material referencial,

ii

mesma matriz espaço-

tempo implicada nas relaç› es de produç‹o. A organizaç‹o interna

das redes e dispositivos burocr‡ticos sup› e esse quadro que torna

poss’vel o encadeamento de seus elementos, mesmo que esse qua-

dro se concretize de forma diferente na administraç‹o burocr‡tica

e no despotismo das f‡bricas, no taylorismo e cadeia de produç‹o:

reestruturaç‹o do espaço polí tico e substituiç‹o de estatutos, privi-

légios e outros laços pessoais pelo anonimato de uma organizaç‹o

de laços ao mesmo tempo cont’nuos, hornog•neos, lineares, eqüi-

distantes e segmentados, fracionados e compartimentados.

Ora, o Estado n‹ o é mero anotador dessa realidade econômi-

co-social; é fator constitutivo da organizaç‹o da divis‹o social do

trabalho, produzindo permanentemente fracionamento-individuali-

zaç‹o

social. Isso faz-se também pelos procedimentos ideol—icos:

o Estado consagra e institucionaliza a individualizaç‹o pela consti-

tuiç‹o das mônadas econômico-sociais em indlv’duos-pessoas-su-

jeitos jurí dicos e polí ticos. N‹o me refiro aqui ao discurso oficial da

filosofia polí tica, nem ao simples sistema jurí dico, mas ao conjunto

das pr‡ticas materiais do Estado (a ideologia n‹o est‡ apenas nas

idéias) e suas conseqü•ncias na esfera econômico-social. Ideologia

de individualizaç‹o que n‹o tem por

flnal’dade

apenas mascarar

e

ocultar as relaç› es de classe (o Estado capitalista jamais se apresen-

ta como Estado de classe), mas também a de contribuir ativamente

para as divis› es e isolamento (individualizaç‹o) das massas popula-

res. N‹o se trata apenas

da

ideologia constitu’da, sistematizada e

formulada pelos intelectuais org‰icos da burguesia, que nunca

passa de ideologia de segunda categoria, porém, muito mais, trata-

se de formas primeiras e "espontâneas" de ideologia secretadas pela

divis‹o social do trabalho, diretamente incorporadas aos aparelhos

de Estado e

ˆ s

pr‡ticas do poder.

O papel do Estado, porém, n‹o é o de inculcar a ideologia do-

minante, mesmo materializada em pr‡ticas; n‹o se trata simples-

mente da concretizaç‹o dos direitos e obrigaç› es, da distinç‹o pri-

vado e público etc. na vida cotidiana. O Estado contribui para

fabricar essa individualidade por um conjunto de

técnicas de saber

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(ci•ncia) e de pr‡ticas de poder, a que Foucault chamou de disci-

plinas ("que se pode caracterizar em poucas palavras dizendo que

s‹o uma modalidade do poder para o qual a diferença individual é

pertinente"), procedimento designado pelo termo normalizaç‹ o:

"Como a vigil‰cia,

a

normalizaç‹o toma-se um dos maiores instru-

mentos do poder no fim da era cl‡ssica. As marcas que significavam

status, privilégios, filiaç› es - tendem a ser substitu’das ou pelo

menos acrescidas, de um conjunto de graus de normalidade que s‹o

sinais de filiaç‹o em um corpo social homog•neo, mas que t•m em

si um papel de classificaç‹o, de hierarquizaç‹o e de distribuiç‹o de

lugares. De certa forma, o poder de normalizaç‹o obriga a homoge-

neidade, porém individualiza permitindo medir os desvios, determi-

nar os n’veis, fixar as especialidades e tomar úteis as diferenças,

ajustando-as umas ˆ s outras". Momento de normalizaç‹o "em que

nova tecnologia do poder e uma outra anatomia do corpo foram ela-

boradas", e que se cristaliza nessa forma modema do poder que Fou-

cault chama de panoptismo+ Processo no qual interv•m as formas

primeiras da ideologia dominante, j‡ materializadas em pr‡ticas es-

tatais; e ao contr‡rio do que pensa Foucault, que distingue radical-

mente inculcaç‹o ideol—ica e normalizaç‹o, considerando de certo

modo que a ideologia n‹o est‡ nas idéias e que todas as vezes que

se tratar de pr‡ticas ou de técnicas, n‹o pode ser mera quest‹o de

ideologia.

Portanto, esse mecanismo suplanta amplamente a inculcaç‹o

ideol—ica e também a simples repress‹o fí sica. Esse relacionamen-

to do Estado-poder e do corpo atesta a individualizaç‹o do corpo

social. ƒ certo que as relaç› es entre o Estado-poder e o corpo, ins-á

tituiç‹o polí tica investida pelo poder, cobrem um campo bem

amplo. Porém as relaç› es de constituiç‹o entre o Estado e as for-

mas precisas de coporeidade capitalista, em princ’pio, n‹o se ba-

seiam, conforme afirmam as an‡lises mil vezes repetidas com mais

ou menos sutilezas, sobre as relaç› es mercantis, sobre o corpo-mer-

cadoria da sociedade de consumo, sobre o corpo-espet‡culo inves-

tido pelos signos da troca, em suma, no fetichismo mercantil do cor-

po. A tecnologia pol’tica do corpo tem como base primeira o quadro

referencial das relaç› es de produç‹o e da divis‹o social do trabalho.

ƒ por esse caminho que se pode resolver com segurança o proble-

ma essencial para a teoria do Estado que é a individualizaç‹o do

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corpo social, solo origin‡rio das classes em sua especificidade capi-

talista. Essa individualizaç‹o n‹o é

a

realidade de um "indiv’duo

concreto", que surge na sociedade civil da mercadoria generalizada

e

que

propicia a formaç‹o de um Estado com base nesses indiv’-

duos, Estado nacional popular que se torna Estado de classe. Tam-

bém n‹o é

a

realidade genérica de um indiv’duo biol—ico sede

natural de desejos e alienado-reificado pelo Estado. Essa individua-

lizaç‹o constitui a figura material das relaç›es de produç‹o

e

da

divis‹o social do trabalho nos corpos capitalistas, e igualmente con-

seqü•ncia material das pr‡ticas e técnicas do Estado, criando e sub-

jugando o corpo (polí tico).

Nesse ponto as an‡lises de Foucault t•m grande import‰cia,

pois constituem an‡lise materialista de certas instituiç› es do poder.

Elas tanto confirmam as an‡lises marxistas, o que Foucault evita ver

ou dizer, como também enriquecem-nas em inúmeros pontos.

Sabe-se, certamente, que Foucault rejeita uma interpretaç‹o

que viria basear essa materialidade do poder, e por conseguinte do

Estado, especificamente nas relaç› es de produç‹o e na divis‹o so-

cial do trabalho. Foi Deleuze,? sobretudo, quem se encarregou de

explicar a diferença entre o pensamento de Foucault e o marxismo.

O quadro referencial do poder seria anterior a cada campo particu-

lar

que o concretiza, constituiria um "diagrama" (o

"panoptismo"

no

caso), uma "m‡quina

abstrata

imanente

a

cada campo particular.

N‹o se basearia no "econômico" pois é "toda a economia, por exem-

plo a oficina ou a f‡brica, que pressup› e esses mecanismos do

poder ..... Observaç› es que o pr—rio Foucault retomou

a

seu favor

em

A Vontade de Saber.

ƒ evidente que n‹o se pode atribuir grande importância a esse

aspecto do pensamento de Foucault, essas observaç› es pendem para

o idealismo. Seria f‡cil inferir que esses diagramas ou m‡quinas (de

onde e como aparecem?) assemelham-se estranhamente ˆs v‡rias es-

truturas mentais e outras categorias do mesmo g•nero, essa "causa

comum imanente" que seria o diagrama, e que n‹o passa, por mais

que se queira e apesar da heterogeneidade dos campos sobre os

quais insiste, da velha homologia estrutural do estruturalismo, fato

h‡ muito verificado por

Derrida.'?

Poder-se-ia, e com justiça, repro-

var Foucault, que, com sua posiç‹o, desemboca frequentemente em

an‡lises puramente descritivas e, com mais

freqü•ncia

ainda, em um

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neofuncionalismo que retoma os pressupostos epistemol—icos do

mais tradicional funcionalismo: "O dispositivo pan6ptico n‹ o é so-

mente uma v‡lvula, um intermediador entre um mecanismo de po-

der e uma funç‹o, é um modo de fazer funcionar relaç› es de poder

numa funç‹o, e uma funç‹o por suas relaç› es de poder"." J‡ havia

observado que Malinovski e Parsons

j‡

falavam disso.

A meu entender, acho que n‹o se deve atribuir grande impor-

t‰cia ao discurso epistemol—ico de segundo grau de Foucault.

Muitas de suas an‡lises s‹o n‹o somente compatí veis com o marxis-

mo, como, mais ainda, s—a partir dele podem ser compreendidas.

Porém sob duas condiç› es:

A

primeira:

ter uma concepç‹o justa do "econômico", no qual

se fundamenta a especificidade institucional do poder moderno,

quer dizer, abdicar da idéia de Foucault, que lhe permite relacionar

(isso lhe acontece) essa especificidade ˆ economia, ou seja, freqüen-

temente, rejeitar o marxismo e o fundamento material das institui-

ç› es na economia, Nos dois casos, ele n‹o trata nunca das relaç› es

de produç‹o e da divis‹o social do trabalho nelas implí citas. No pri-

meiro caso (refer•ncia

ˆ

economia para fundamentar as institui-

ç› es), Foucault busca o essencial em dados como o crescimento de-

mogr‡fico do século

xvm

ou as necessidades utilitárias da

"produç‹o modema" para "maximizar o rendimento". No segundo

caso (refer•ncia ˆ economia para refutar o marxismo), Foucault

volta justamente, é interessante notar, ˆ sociedade mercantil das re-

laç› es de troca e de circulaç‹o: "Diz-se freqüentemente que o mo-

delo de uma soc’edade que tivesse indiv’duos como seus elementos

constitutivos seria inspirada nas formas jurí dicas abstratas do con-

trato e da troca. A sociedade seria representada como associaç‹o

contratual de sujeitos jurí dicos isolados. Talvez ... N‹o se deve es-

quecer que existiu na mesma época uma técnica para constituir os

indiv’duos efetivamente como elementos correlativos de um poder

e de um saber". t2 Ora, é evidente que n‹o se pode, de modo 'algum,

relacionar a materialidade dos aparelhos de Estado e o "econômi-

cc ,

e Foucault erra quando tenta faz•-lo dessa maneira, se por isso

entendermos a demografia ou a simples revoluç‹o industrial, quer

dizer, a técnica produtiva. Também n‹o se pode faz•-lo, e

Fou-

cault est‡ totalmente certo, se tomamos somente ou principalmente

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a esfera de circulaç‹o e das trocas mercantis, o que um certo mar-

xismo tentou fazer durante muito tempo.

A segunda condiç‹ o:

compreender a relaç‹o do Estado com as

relaç› es de produç‹o e a divis‹o social do trabalho em toda a sua

complexidade, isto é, pelo dado fundamental que s‹o as matrizes es-

paciais e temporais cuja an‡lise desenvolverei quando tratar da

naç‹o. Essas matrizes primeiras, presentes na organizaç‹o material

e nas técnicas de exerc’cio do poder, ter‹o ent‹o uma explicaç‹o di-

ferente daquela do diagrama misterioso e quase metaf’sico de Fou-

cault, sobretudo na vers‹o apresentada por Deleuze-Guattari: a de

uma m‡quina original.

Urstaat,

Estado-Déspota ideal

-

abstrato

que acossa a hist—ia dos diversos Estados e poderes ˆ procura de

sua encarnaç‹o perfeita, na mais pura tradiç‹o espiritualista.

2. As Ra’zes do Totalitarismo

De qualquer forma, a individualizaç‹o do corpo social sobre o

qual se exerce o poder do Estado moderno conduz ˆ s relaç› es de

produç‹o e

ˆ

divis‹o social do trabalho capitalistas. O Estado de-

sempenha aqui um papel decisivo, que eu tinha chamado em

Poder

polí tico e classes sociais,

de "efeito de isolamento", Porém, embo-

ra assinalando que o efeito é "terrivelmente real", tendia a limitá-lo,

'no essencial, aos mecanismos da ideologia jurí dico-polí tica e ao

papel ideol—ico do Estado, ƒ agora que se pode ver (e a’ est‡ a con-

tribuiç‹o original de Foucault) que o papel do Estado traduz-se na

materialidade de suas técnicas de exercí cio do poder, consubstancial

ˆ

sua estrutura pr—ria: técnicas que moldam os sujeitos sobre os

quais se exerce o poder até mesmo em sua corporeidade. Aproveito

a ocasi‹o para adiantar um primeiro posicionamento do problema do

fenômeno inédito do

totalitarismo moderno

em que o fascismo é

apenas uma das faces. Esse problema s—pode ser elucidado por uma

série de abordagens sucessivas, que

j‡

fiz em

Poder politico

em ter-

mos que ainda me parecem v‡lidos, embora restritivos. O que eu

bem apreendia era que, no duplo movimento pelo qual o Estado mo-

derno cria individualizaç› es e privatizaç› es auto-representando-se

corno sua unidade e homogeneizaç‹o, em suma, no duplo movimen-

ta' de criaç‹o dos isolamentos (de que se comp› em o povo-naç‹o) e

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de representaç‹o de sua unidade (Estado nacional popular moder-

no), n‹ o pode, pela primeira vez na hist—ia, existir nenhum limite

de direito

e

de princí pio

ˆ

atividade e

ˆ

invas‹ o do Estado na esfe-

ra do individual-privado.

O individual-privado é uma criaç‹o do Es-

tado, concomitante ˆ sua separaç‹o relativa da sociedade como es-

paço público, o que n‹o somente indica que essa separaç‹o é aperias

uma forma espec’fica da presença do Estado nas relaç› es econômi-

co-sociais, como também uma onipresença do Estado jamais igua-

lada em suas relaç› es. Porém eu sempre via apenas a conseqü•ncia

material dos mecanismos ideol—icos. Apresentarei como exemplo

duas passagens, significativas porque mostram o problema porém

de maneira nitidamente limitativa.

O primeiro refere-se exatamente ao relacionamento desse fenô-

meno totalit‡rio com o princí pio de legitimidade do Estado moderno:

"O Estado capitalista, em especial, retira, na verdade, seu prin-

c’pio de legitimidade do princ’pio de que se considera unidade do

povo-naç‹o tomado como conjunto de entidades id•nticas, hom› ge-

nas e disparatadas, estabelecidas pelo Estado como indiv’duos-cida-

d‹os polí ticos.

ƒ

nisso que ele difere radicalmente de outras formas

de despotismo, do poder polí tico "absoluto", por exemplo, formal-

mente semelhante, exercidos por formas de tirania baseadas na legi-

timidade divino-sagrada. Essas formas, tais quais apresentavam-se

no Estado escravagista ou feudal, encerravam contudo o poder em,

limites rigorosamente regulados. Dizendo de outra maneira, é exa-

tamente o tipo de legitimidade do Estado capitalista, representando.

a unidade do povo-naç‹o, que permite um funcionamento espec’fi-

co do Estado considerado sob o termo de

totalitarismo .

O segundo no relacionamento do fenômeno totalit‡rio com a

ideologia pol’tica burguesa:

"A funç‹o particular de isolamento e coes‹o da ideologia polí -

tica burguesa conduz a uma not‡vel contradiç‹o interna, que foi por

vezes tematizada nas teorias do contrato social, pela distinç‹o e pela

relaç‹o entre o pacto de associaç‹o civil e o pacto de dominaç‹o po-

lí tica. Essa ideologia estabelece os agentes como indiv’duos - su-

jeitos, livres e iguais, que de certa forma ela imagina em estado pré-

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social, assim determinando o isolamento espec’fico sobre as rela-

ç› es sociais. Esse aspecto designado por "individualismo burgu•s"

é súficientemente conhecido. Esses indiv’duos-pessoas, assim indi-

vidualizados, num mesmo movimento te—ico, parecem s—poder uni-

ficarem-se e alcançar exist•ncia social na interpretaç‹o de sua exis-

t•ncia polí tica no Estado. O resultado é que a liberdade do' indiv’duo

parece logo evaporar-se diante da autoridade do Estado, que encar-

na a vontade de todos. Pode-se dizer que para a ideologia polí tica

burguesa n‹o pode haver nenhum limite de direito e de princ’pio

ˆ

atividade e ˆ usurpaç‹o do Estado na assim chamada esfera do indi-

vidual-privado. Enfim, essa esfera parece apenas desempenhar a

funç‹o de constituir um ponto de refer•ncia, que

é

também um

ponto de fuga,

ˆ

onipresença e onisci•ncia da inst‰cia polí tica.

Bem que isso

é

verdade, pois 'Hobbes aparece como a verdade ante-

cipada das teorias do contrato social, e em resumo, Hegel como o

ponto de chegada

-

nesse caso o assunto é bem complexo, porém

todos os assuntos te—icos o s‹o. Lembremo-nos do caso caracterí s-

tico de Rousseau para quem "o homem ser o mais independente pos-

s’vel de todos os outros homens e o mais dependente poss’vel do

Estado". O caso

é

ainda mais n’tido no exemplo cl‡ssico dos fisio-

cratas adeptos fervorosos da n‹o-intervenç‹o na economia e tam-

bém adeptos fervorosos do autoritarismo polí tico, pedindo realmen-

te o monarca absoluto, que representaria o interesse e a vontade de

todos. Isso é igualmente caracterí stico da ideologia polí tica liberal:

nada de mais exemplar a esse respeito do que a n’tida influ•ncia, e

tão mal conhecida, de Hobbes em Locke, na corrente cl‡ssica do

li-

beralismo polí tico ingl•s, o "utilitarismo" em

J.

Bentham, J. Mills e

sobretudo em

J.

Stuart

Mill .

Embora a meu ver os dados do problema permaneçam v‡lidos,

as raí zes de sua soluç‹o, no essencial, est‹o longe. A individualiza-

ç‹o e a privatizaç‹o do corpo social residem nas pr‡ticas e técnicas

de exerc’cio do poder de um Estado, que num mesmo movimento

totaliza essas mônadas divididas e incorpora em sua ossatura insti-

tucional a unidade. O privado é apenas a réplica do público, pois se

h‡ desdobramento, inscrito no Estado e j‡ presente nas relaç› es de

produç‹o e na divis‹o social do trabalho, é porque o Estado traça os

contornos. O individual-privado n‹o é um obst‡culo intrí nseco ˆ

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aç‹o

do Estado, mas um espaço que o Estado moderno constr— ao

percorr•-lo: é o que se transforma em horizonte infinitamente retr‡ ..

til, e passo a passo, ao longo da caminhada estatal. O individual-pri-

vado é parte integrante do campo estratégico do Estado moderno, é

o alvo que

o

Estado se d‡ como ponto de impacto de seu poder; em

suma, s—existe para esse Estado. O que é claro nessa visada, inatin-

g’vel em si, é que o indiv’duo privado, sujeito que tem supostamen-

te liberdades inalien‡veis, direitos do homem, um

habeas corpus em

que justamente o corpo é inteiramente modelado pelo Estado e tam-

bém pelo conjunto dos centros de privatizaç‹o. Tomando como

exemplo a

famllia

moderna, t’pico lugar privado, ela se estabelece

somente em concomit‰cia absoluta do público, que é o Estado mo-

derno; n‹o como o exterior intrí nsecode um espaço público de fron-

teiras rí gidas, porém como conjunto de pr‡ticas materiais do Estado

que molda o pai de fam’lia (trabalhador, educador, soldado ou fun-

cion‡rio), a criança-estudante no sentido moderno, e, é claro, sobre-

tudo a m‹e. A fam’lia e o Estado modernos n‹o formam dois espa-

ços (o privado e o público) eqüidistantes e distintos, limitando-se

mutuamente, em que um seria, segundo as an‡lises agora cl‡ssicas

da Escola de Frankfurt (Adorno, Marcuse etc.), a base da outra (a fa-

m’lia, do Estado). Embora essas duas instituiç› es n‹o sejam isomor-

fas e também n‹o mantenham relaç› es de homologia, nem por isso

deixam de fazer parte de uma única e mesma configuraç‹o, pois n‹o

é o espaço "exterior" da fam’lia que se fecha em face do Estado, e,

sim, o Estado, que, ao mesmo tempo que se constr— em público,

marca, por meio de divis› es m—eis que ele mesmo desloca, o lugar

designado ˆ fam’lia,

O Estado n‹o comporta nenhum limite de princ’pio e de direi-

to a suas usurpaç› es no privado: por mais paradoxal que pareça, é a

separaç‹o público-privado, por ele institu’da, que lhe abre perspec-

tiva ilimitada de poder. A’ est‹o as premissas do fenômeno totalit‡-

rio no sentido moderno, n‹o somente para as sociedades ocidentais,

mas. igualmente para os pa’ses do Leste. O Estado nesses pa’ses

toma as formas que se conhece, sem que, porém, tenha abolido o in-

div’duo como último obst‡culo em face do poder. Baseado nos "as-

pectos capitalistas" de suas relaç› es de produç‹o e divis‹o social do

trabalho, o processo de individualizaç‹o-isolamento desenvolve-se

plenamente, embora n‹o tome, longe disso, as mesmas formas (es-

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pecialmente jurfdico-pol’ticas) e n‹o ocorra segundo os processos

que conhecemos nas sociedades ocidentais. A distinç‹o que o Esta-

do cria entre o público e o privado (os trabalhadores estando sepa-

rados da esfera pública e do poder polí tico) também se desenvolve,

embora a estatizaç‹o atinja proporç› es consider‡veis. Ora, também

nesse caso, isso n‹o significa invas‹o pelo Estado de uma esfera pri-

vada de fronteiras intrinsecas que o Estado teria rompido, mas cor-

responde a um deslocamento mais amplo desse Estado no caminho

do Estado moderno e de sua materialidade pr—ria.

Claro que essas observaç› es s‹o apenas premissas; pois o in-

dividual-privado n‹o é um limite e sim o canal do poder do Estado

moderno, embora isso n‹o queira dizer que o poder n‹o tenha limi-

tes reais, mas, sim, que esses limites n‹o se prendem a qualquer na-

turalidade do individual-privado: dependem das lutas populares e

das relaç› es de força entre as classes, pois o Estado também é a con-

densaç‹o material e espec’fica de uma relaç‹o de força, que é uma

relaç‹o de classe. Esse individual-privado aparece igualmente como

resultante dessa relaç‹o de força e de sua condensaç‹o no Estado.

Embora o individual-privado n‹o tenha ess•ncia intrí nseca e, como

tal,

crie barreiras exteriores absolutas ao poder do Estado, limita o

poder como uma das figuras privilegiadas da relaç‹o de classe no

Estado nas sociedades modernas. Esse limite é conhecido: chama-se

democracia representativa, que, por mais mutilada que seja pelas

classes dominantes e pela materialidade do Estado, n‹o deixa de ser

uma marca no seio dessa materialidade das lutas e resist•ncias po-

pulares. N‹o sendo o único limite ao poder do Estado nem por isso

é menos importante. Provavelmente n‹o tem significaç‹o absoluta,

na medida em que nasce em terreno capitalista, porém permanece

uma barreira ao poder que sem dúvida conta enquanto o Estado e as

classes durarem. O mesmo ocorre quanto aos direitos do homem e

do cidad‹o, que n‹o s‹o uma conquista do indiv’duo em face do Es-

tado e, sim, conquista das classes oprimidas.

O individual-privado exprime em sua extens‹o ou diminuiç‹o

os avanços e recuos de suas lutas e resist•ncias quando tomam essa

forma polí tica. N‹o porque se autoformulem e assim fazendo um do-

mí nio fora do Estado, (individual-privado), mas porque situam-se no

pr—rio campo estratégico do Estado, que, em sua forma moderna,

existe como espaço público-privado. Esses direitos, tanto aqui como

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no Leste, podem servir de barragem a um poder, cujas raí zes totali-

t‡rias j‡ se encontram no processo de individualizaç‹o e na separa-

ç‹o instaurada entre o público e o privado pelo Estado moderno.

Da’ decorrem outras conseqü•ncias:

a) O totalitarismo moderno, na forma fascista ou outra qual-

quer, n‹o é mero "fenômeno" que se prende unicamente ˆ conjuntu-

ra da luta das classes. Tais conjunturas podem propiciar o apareci-

mento dos totalitarismos modernos, porque as raí zes do mal s‹o

mais profundas, instaladas no seio das relaç› es de produç‹o, da di-

vis‹o social do trabalho, da ossatura material do Estado.

b) Contrariamente a todas as ideologias antigas ou novas do

totalitarismo, a emerg•ncia efetiva das formas totalitárias do Esta-

do n‹o é um mero desabrochar desses germes e n‹o pode de modo

algum ser explicada dessa maneira, pois depende da luta de classes

em toda sua complexidade. De minha parte, é o que tentei explicar

em Fascisme et Dlctature'? e em

La

crise des dictatures.w mostran-

do que essas formas totalit‡rias, quer se trate de fascismo, ditadu-

ras militares ou bonapartismo, constituem nas sociedades ociden-

tais formas espec’ficas que designei por formas de Estado de

exceç‹o, bem diferentes das formas de Estado democr‡tico-parla-

mentares.

Essas observaç› es valem igualmente,

mutatis mutandis,

para

os aspectos totalit‡rios do poder nos paí ses do Leste, os quais tam-

bém n‹o podem ser explicados reportando-se unicamente ˆ s raí zes

do totalitarismo, que entretanto existem plenamente, e aos aspectos

capitalistas desses Estados. Somente uma an‡lise hist—ica minucio-

sa poderia faz•-lo, pois essa forma de Estado apresenta consider‡-

veis particularidades, o que ali‡s n‹o constitui exceç‹o, mas regra.

Sabe-se que essa an‡lise hist—ica começa a aparecer até mesmo na

França, e devo assinalar de Jean Ellenstein e de Charles Bettelheim,

embora de perspectivas diferentes, além das an‡lises tradicionais

das correntes trotskistas, que, a meu ver, embora insatisfat—ias,

muito nos ajudaram. Cito-as em conjunto, porque tratam-se de an‡-

lises que se referem especificamente ao método marxista.

ƒ

claro

que o marxismo sozinho n‹ o pode tudo explicar, porém gostaria que

nos mostrassem, entre os "antimarxistas" prim‡rios que atualmente

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defendem a idéia de que o marxismo n‹o pode explicar o que se

passa nos pa’ses do Leste, um único que tenha feito, ou mesmo ten-

tado, essa an‡lise hist—ica indispens‡vel.

Essa an‡lise que fundamenta

a

materialidade do Estado nas

relaç› es de produç‹o e na divis‹o social do trabalho, n‹o é hetero-

gena ou complementar a uma an‡lise dessa materialidade em ter-

mos de classes e luta de classes. No que concerne ˆ individualiza-

ç‹o do corpo social sobre o qual se exerce o poder, n‹o se trata de

"deduzir" a estrutura organizadora do Estado no processamento da

individualizaç‹o e de relacion‡-la em seguida com

a

luta de classes

e a dominaç‹o polí tica. Esse processamento, relacionado justamen-

te ao processo e

ˆ

divis‹o de trabalho capitalistas, é apenas

a

con-

figuraç‹o do terreno no qual se formam as classes sociais e a luta

de classes em sua especificidade capitalista. Contrariamente ˆs

classes-castas ou estados escravagistas e medievais, classes fecha-

das em que os agentes pertencem unicamente pela sua natureza -

no capitalismo, as classes s‹o "abertas", fundamentadas na reparti-

ç‹o e na circulaç‹o de agentes individualizados em seu meio, quer

se trate da burguesia, da classe oper‡ria ou das classes no campo.

Essas classes provocam um papel do Estado até ent‹o inédito, o de

distribuir-repartir os agentes individualizados através das classes,

de formar e preparar, de qualificar e subjugar os agentes, de tal

forma que possam ocupar

talou

qual lugar de classe

ˆ

qual n‹o

estão ligados por natureza ou nascimento; papel pr—rio da escola

e também do exército, da pris‹o ou da administraç‹o. O mecanismo

de individualizaç‹o j‡ é uma marca, na materialidade do Estado, da

especificidade das classes no capitalismo, pois as técnicas de exercí -

cio do poder na escola ou no exército (disciplinas de normalizaç‹o-

individualizaç‹o) s‹o consubstartciais a seu papel de preparaç‹o-dis-

tribuiç‹o-repartiç‹o dos agentes-indiv’duos entre as classes. Enfim,

essa individualizaç‹o traçada na corporeidade capitalista apresenta

sentido e modalidades diferentes segundo as diversas classes so-

ciais. Existe uma individualizaç‹o burguesa e uma individualizaç‹o

oper‡ria, um corpo burgu•s e um corpo oper‡rio, modalidades da

individualizaç‹o e da corporeidade capitalistas, assim como existe

uma fam’lia burguesa e uma fam’lia oper‡ria, modalidades da fam’-

lia capitalista fundamentada no processo de individualizaç‹o.

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ill.ALEI

1.

Lei e Terror

o terceiro exemplo ao qual chamo a atenç‹ o refere-se ao papel

da lei., pois ele nos interessa por v‡rias raz› es: permite especialmen-

te apresentar com precis‹o a questão da repress‹o no exerc’cio do

poder,

Ora, também deste ponto de vista o Estado capitalista repre-

senta uma verdadeira ruptura em relaç‹o aos Estados pré-capitalistas.

Primeiramente porque a lei s—tardiamente, com o Estado ca-

pitalista e sua constituiç‹o hist—ica, apresentou-se como limitaç‹o

do arb’trio estatal, até mesmo como barreira a uma certa forma de

exerc’cio da viol•ncia.

ƒ

esse "Estado de direito" que foi concebido

como oposto ao poder ilimitado, criando a ilus‹o do binômio Lei-

Terror. A lei e

a

regra estiveram sempre presentes na constituiç‹o do

poder: o Estado asi‡tico ou despótico, o Estado escravagista (Roma,

Atenas), o Estado feudal foram sempre fundamentados no direito

e

na lei, desde o direito babilônico e ass’rio ao direito grego e roma-

no até as formas jurí dicas medievais. Toda forma estatal, mesmo

a

mais sanguin‡ria, edificou-se sempre como organizaç‹o jurí dica, re-

presentou-se no direito e funcionou sob forma jurí dica: sabe-se

muito bem que assim foi com St‡lin e sua constituiç‹o de 1937, re-

putada como a "mais democr‡tica do mundo". Portanto nada mais

falso que uma presum’vel oposiç‹o entre o arb’trio, os abusos, a boa

vontade do pr’ncipe e o reino da lei. Essa vis‹o corresponde ˆ con-

cepç‹o jurí dico-legalista do Estado, a da filosofia polí tica do Esta-

do burgu•s estabelecido, contra a qual levantaram-se Marx e Max

Weber,

e

que n‹o passou desapercebida pelos te—icos da gestaç‹o

sangrenta do Estado, Maquiavel e Hobbes. De qualquer forma esta

suposta cis‹o entre lei e viol•ncia é falsa, sobretudo para o Estado

moderno. ƒ este Estado de direito, o Estado da lei por excel•ncia

que detém, ao contr‡rio dos Estados pré-capitalistas, o monop—io

da viol•ncia e do terror supremo, o monop—io da guerra.

A lei é parte integrante da ordem repressiva e da organizaç‹o

da vjol•nc’a exercida por todo Estado. O Estado edita a regra, pro-

nuncia

'a

lei, e por

instaura um primeiro campo de injunç› es, de

interditos, de censura, assim criando o terreno para a aplicaç‹o e o

objeto da viol•ncia. E mais, a lei organiza as leis de funcionamento

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da repress‹o f’sica, designa e gradua as modalidades, enquadra os

dispositivos que a exercem. A lei é, neste sentido, o c—digo da vio-

l•ncia pública organizada. A neglig•ncia do papel da lei na organi-

zaç‹o do poder é constante naqueles que ignoram o papel da repres-

s‹o fí sica no funcionamento do Estado; Foucault especialmente,

como se v• em sua última obra, A vontade de saber, seqü•ncia l—i-

ca de Peregrinaç› es em Vigiar e Punir.

Esquematizando, pode-se estabelecer a cadeia do racioc’nio de

Foucault da seguinte maneira: a) o binômio legalidade-terror é erra-

do, pois a lei sempre acompanhou o exerc’cio da viol•ncia e da re-

press‹o fí sica; b) o exercí cio do poder nas sociedades modernas ba-

seia-se muito menos na viol•ncia-repress‹o aberta do que nos

mecanismos, mais sutis e considerados "heter—enos" ˆ viol•ncia,

das disciplinas: "E se é verdade que o jurí dico pode servir para re-

presentar de maneira sem dúvida n‹o exaustiva um poder essencial-

mente baseado na antecipaç‹o e na morte, é totalmente heter—eno

aos novos processos de poder, que funcionam n‹o para o direito mas

para a técnica, n‹o para a lei mas para a normalizaç‹o, n‹o para

o

castigo e sim para o controle, e que se exercem em n’veis e formas

.

que ultrapassam o Estado e seus aparelhos".

J7

Exercí cio do poder

que implicaria, como o disse depois de Foucault.

R.

Castel, na pas-

sagem da autoridade-coerç‹o ˆ manipulaç‹o-persuas‹o," em uma

palavra, ˆ famosa "interiorizaç‹o" da repress‹o nas classes domina-

das. Daí se deduz inelutavelmente que h‡ em Foucault a subestima-

ç‹o do papel da lei, ao menos no exerc’cio do poder no seio das so-

, .

ciedades modernas, e também subestimaç‹o do papel do Estado,

acompanhada de desconhecimento do lugar, no Estado moderno,

dos aparelhos repressivos (exército, pol’cia, justiça etc.) enquanto

dispositivos de exerc’cio da viol•ncia f’sica. S‹o considerados so-

mente como peças do dispositivo disciplinar que molda a interiori-

zaç‹o da repress‹o pela normalizaç‹o.

O primeiro racioc’nio referente ˆ relaç‹o constitutiva entre a

lei e o exercí cio da viol•ncia é correto, porém o segundo est‡ erra-

do. Ali‡s, n‹o é exclusivo de Foucault, caracteriza igualmente uma

corrente de pensamento mais ampla, por sinal bem diferente de Fou-

cault. Esse racioc’nio tem raiz no par viol•ncia-consentimento, re-

press‹o-ideologia, que por muito tempo marcou as an‡lises do

poder. O leitmotiv é simples: o poder moderno n‹o se basearia na

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viol•ncia f’sica organizada mas na manipulaç‹ o ideol—ico-simb—

lica, na organizaç‹o do consentimento, na interiorizaç‹o da repres-

s‹o (o "tira" na cabeça). As origens dessa concepç‹o encontram-se

nas primeiras an‡lises da filosofia polí tico-jurí dica burguesa, que

justamente opunha viol•ncia e lei, por ver no Estado de direito e no

reino da lei a limitaç‹o intrí nseca da viol•ncia. Essa concepç‹o teve,

sob formas variadas, prolongamentos atuais: as an‡lises da escola de

Frankfurt - as famosas an‡lises de substituiç‹o da famí lia ˆ polí cia

como inst‰cia autorit‡ria - e de Marcuse e de P. Bourdieu sobre a

chamada viol•ncia simb—ica, o tema da interiorizaç‹o da repress‹o,

e em geral de uma "diminuiç‹o", digamos assim, da viol•ncia f’sica

no exerc’cio do poder tomaram-se lugar-comum. O que

é

essencial

aqui, é ao mesmo tempo a subestimaç‹o do papel da repress‹o, da

sujeiç‹o mort’fera e armada sobre o corpo, e a concepç‹o do poder

como binômio repress‹o-ideologia, constituindo esses dois termos

componentes-quantidades de soma zero. Diminuiç‹o ou retraç‹o da

viol•ncia f’sica s—poderia corresponder, no funcionamento e manu-

tenç‹o do poder, a uma acentuaç‹o ou aumento da inculcaç‹o ideo-

l—ica (viol•ncia simb—ica-interiorizaç‹o da repress‹o).

Basicamente

é

uma concepç‹o do poder pouco diferente, da

que prevalece em incont‡veis an‡lises, muito em voga atualmente,

que fundamenta o consenso no desejo das massas (as massas 'teriam

desejado o fascismo) ou no amor do Senhor. 19 T•m em comum.com

a corrente precedente o fato de ignorar o papel da viol•ncia f’sica or-

ganizada, reduzindo o poder ˆ repress‹o-interdito. Daí se deduz uma

subjetivaç‹o do exerc’cio do poder sob a forma de busca das "raz› es

de obedecer" no desejo ou no amor do Poder, que substituem o

papel, suprimido nas correntes precedentes, da ideologia como fator

de interiorizaç‹o da repress‹o. A lei nunca intervém aqui sob a

forma de codificadora da viol•ncia f’sica, mas como figura do Se-

nhor, que, s—por sua presença, enunciaç‹o ou discurso, induz o de-

sejo e o amor dos sujeitos. O binômio repress‹o-viol•ncia substitui-

se pelo binômio lei-amor, interdito-desejo, porém o papel da

viol•ncia na base do poder é sempre subestimado: s‰se consideram

as raz› es do consenso.

O que

é

inquietante nessas an‡lises n‹o

é

exatamente o fato de

apresentarem o problema do consenso ao poder, e sim que n‹o con-

siderem o papel da viol•ncia f’sica organizada na repress‹o, e que

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reduzam o poder ˆ repress‹o simb—ica ou interiorizada e ao interdi-

to. Assim n‹o podem apreender as raz› es materiais positivas (entre

outras concess› es do poder ˆ s massas) desse consenso e o funda-

mentam no amor-desejo da repress‹o, enquanto essas raz› es, além

da ideologia dominante, desempenham um papel decisivo. Por outro

lado, insistir na positividade do poder n‹o poderia significar ocultar

e a questão da repress‹o e o papel da ideologia que intervém no con-

sentimento. ƒ o que acontece com Foucault, que, diferenciando-se

das correntes precedentes ao demonstrar - e

é

esse seu mérito -

um dos aspectos das técnicas do poder que organizam materialmen-

te a submiss‹o dos dominados (as disciplinas de normalizaç‹o)

como outros, subestima constantemente, em suas an‡lises, o papel

da viol•ncia f’sica aberta, sendo a subestimaç‹o do papel da lei (n‹o

como indutora de amor-desejo mas justamente como codificadora

dessa viol•ncia) apenas um 'sintoma.

Onifuncionalidade das técnicas do poder que, em Foucault, ab-

sorve de imediato n‹o apenas o problema da viol•ncia f’sica, mas

também o do consentimento, que se toma um n‹o-problema, isto

é,

um problema n‹o tratado teoricamente, ou que cai nas an‡lises do

tipo "interiorizaç‹o da repress‹o". Quais s‹o, além das disciplinas

de normalizaç‹o, as "raz› es" do consentimento, que, entretanto n‹ o

impedem que sempre haja lutas? Se essas disciplinas bastassem para

explicar a submiss‹o,

por que permitiriam a exist•ncia das lutas?

Chega-se ˆ aporia nodal das an‡lises de Foucault, da qual voltarei a

falar: a aus•ncia de fundamento de suas famosas resist•ncias ao

poder que tanto lhe apraz. De fato, se deve haver viol•ncia f’sica or-

ganizada é pela mesma raz‹o que deve haver consentimento: porque

h‡ de iní cio e sempre lutas baseadas em primeiro lugar na explora-

ç‹o. Se essa realidade primeira e incontorn‡vel, que faz que as lutas

sejam sempre o fundamento do poder, for esquecida em favor de

uma vis‹o que faz do poder (a Lei, o Senhor) o fundamento das lu-

tas, ou de uma relaç‹o entre termos puramente equivalentes "poder-

resist•ncias", somos levados, ora a derivar o consentimento do amor

ou do desejo do poder, ora a ocultar o consentimento como proble-

ma. Nos dois casos escamoteia-se o papel da viol•ncia.

Na realidade qual é o papel da viol•ncia? O Estado capitalista,

ao contr‡rio dos Estados pré-capitalistas,

detém

o

monop—io da vio-

l•ncia fisica leg’tima. Cabe a

Max.

Weber o mérito de ter esclareci-

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do este ponto, mostrando que

a

legitimidade do Estado, que concen-

tra a força organizada, é

a

legitimidade "racional-legal" fundamen-

tada na lei:

a

acumulaç‹o prodigiosa de meios de coaç‹o corporal

pelo Estado capitalista acompanha seu car‡ter de Estado de direito.

O grau de viol•ncia f’sica aberta exercida nas diversas situaç› es de

poder "privado" exteriores ao Estado, da f‡brica ˆ s famosas micros-

situaç› es de poder. est‡ em regress‹o na exata medida em que o Es-

tado se reserva o monop—io da força f’sica leg’tima. Os Estados ca-

pitalistas europeus formaram-se quase sempre pela pacificaç‹o de

territ—ios devastados pelas guerras feudais. Com o poder polí tico

institucionalizado, que contudo detém o monop—io da viol•ncia.

nas circunst‰cias normais de dominaç‹o ela é menos usada do que

nos Estados pré-capitalistas. Se pusermos de lado:

a)

as formas, que

n‹o se pode esquecer, com a mem—ia curta e a leviandade europo-

centrista de nossos te—icos, de Estados capitalistas de exceç‹o (fas-

cismos, ditaduras militares etc.) que hoje infestam nosso mundo (os

te—icos s—se lembram da viol•ncia nos paí ses do Leste):

b)

os casos,

de terror supremo da guerra (Primeira Guerra Mundial, Segunda

Guerra Mundial, as outras ... e agora a nuclear: quem se preocupava

em dizer que o poder moderno n‹o mais funciona para a morte?); c)

a

conjuntura de exacerbaç‹o das lutas de classe, o emprego efetivo

da viol•ncia aberta fica relativamente limitado ao passado. Tudo' se

passa como se o Estado precisasse usar menos

a

força na medida em

que

detém o monop—io leg’timo.

Concluir que o poder e o dom’nio modernos n‹o mais se ba-

seiam na viol•ncia f’sica é a ilus‹o atual. Mesmo que essa viol•ncia

n‹o transpareça no exercí cio cotidiano do poder, como no passado,

ela

é

mais do que nunca

determinante.

Sua monopolizaç‹o pelo Es-

tado induz as formas de dom’nio nas quais os múltiplos procedimen-

tos de criaç‹o do consentimento desempenham o papel principal.

Para apreend•-lo devemos nos distanciar da metáfora anal—ica de

mera complementaridade entre viol•ncia e consentimento, calcada

na imagem do Centauro (metade-fera, metade-homem), de Maquia-

vel. A viol•ncia f’sica n‹ o existe somente lado a lado com consenti-

mento, como duas grandezas mensur‡veis e homog•neas que man-

t•m relaç› es invertidas, de tal como que maior consentimento

corresponderia a menos viol•ncia. Se a viol•ncia-terror tem sempre

um lugar determinante, isso n‹o se deve ao fato dela se manter cons-

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tantemente retraí da e s—se manifestar abertamente em situaç› es crí -

ticas.

A viol•ncia fí sica monopolizada pelo Estado sustenta perma-

nentemente as técnicas do poder e os mecanismos do consentimento,

est‡ inscrita na trama dos dispositivos disciplinares

e

ideol—gicos, e

molda a materialidade do corpo social sobre o qual age o dom’nio,

mesmo quando essa viol•ncia não se exerce diretamente,

Também n‹o se trata de substituir o binômio lei-terror, repres-

s‹o-ideologia, por um trinômio repress‹o-normalizaç‹o disciplinar-

ideologia, substituindo um terceiro termo numa relaç‹o de funciona-

mento inalterado: grandezas heterog•neas e distintas de uni poder

quantific‡vel ou modalidades de exerc’cio de um poder-ess•ncia.

Trata-se de apreender a organizaç‹o material do poder como relaç‹o

de classe em que a viol•ncia f’sica organizada é a condiç‹o de exis-

t•ncia e garantia de reproduç‹o. A colocaç‹o das técnicas do poder

capitalista, a constituiç‹o dos dispositivos disciplinares (o grande

"internamento"), a emerg•ncia das instituiç› es ideol—ico-culturais

(do Parlamento ao sufr‡gio universal e ˆ escola) pressup› em a mo-

nopolizaç‹o da viol•ncia pelo Estado, recoberta precisamente pelo

deslocamento da legitimidade para a legalidade e pelo reino da lei.

Esses te—icos a pressup› em tanto em sua genealogia hist—ica como

em sua exist•ncia e reproduç‹o. Para citar apenas um exemplo, o

exército nacional é consubstancial ao Parlamento e ˆ escola capita-

lista. Essa consubstancialidade repousa na materialidade institucio-

nal comum decorrente da divis‹o social do trabalho que seus apare-

lhos encarnam e também no fato de que o exército nacional,

justamente como peça do

monop—io

pelo Estado da viol•ncia f’sica

leg’tima, induz as formas de exist•ncia e de funcionamento de ins-

tituiç› es

-

parlamento, escola

-

nas quais a viol•ncia n‹o precisa

se atualizar como tal. A exist•ncia regular, a pr—ria constituiç‹o do

Parlamento como editor de leis é impens‡vel sem a instituiç‹o do

exército nacional moderno.

Enfim, falemos precisamente

da morte.

Como n‹o fazer con-

vergir as transformaç› es da maneira como se morre, mais prosaica-

mente no leito, o verdadeiro interdito que choca nas sociedades mo-

dernas, a morte e a perda pelos cidad‹ os "privados" de sua pr—ria

morte.P com o monop—io pelo Estado do terror público leg’timo?

O Estado n‹o funcionaria mais para a morte? Mesmo quando n‹o

executa (pena de morte), n‹o mata ou n‹o ameaça faz•-lo, mesmo

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quando impede de morrer, o Estado moderno gere a morte pois o

poder médico est‡ inscrito na lei modema.

A monopolizaç‹o pelo Estado da viol•ncia leg’tima permane-

ce o elemento determinante do poder, mesmo quando essa viol•ncia

n‹o

é

exercida direta e abertamente. Essa monopolizaç‹o est‡ na

base das novas formas de lutas sob o capitalismo, ˆs quais corres-

ponde o papel dos dispositivos de organizaç‹o do consentimento,

pois poder e lutas se atraem e se condicionam mutuamente. A con-

centraç‹o da força armada pelo Estado, o desarmamento e a desmi-

litarizaç‹o dos setores privados - condiç‹o para estabelecimento

da exploraç‹o capitalista - contribuem para deslocar a luta das

classes, de uma guerra civil permanente de conflitos armados peri—

dicos e regulares, para as novas formas de organizaç‹o polí tica e

sindical das massas populares, contra as quais a viol•ncia f’sica

aberta é, sabe-se, de efici•ncia relativa. Um povo "privado" da força

"pública" j‡ é um povo que n‹o vive mais o dom’nio polí tico sob a

forma de fatalidade natural e sagrada, um povo para o qual o mono-

p—io da viol•ncia pelo Estado s—é leg’timo na medida em que a re-

gulamentaç‹o jurí dica e a legalidade lhe permite esperar, e mesmo

permite formalmente e em princ’pio, o acesso ao poder. Enfim, o Es-

tado concentra a viol•ncia em seus corpos especializados, enquanto

ela cada vez mais é insuficiente para a reproduç‹o do dom’nio. Às

guerras privadas e aos conflitos armados sob forma de teodicéias re-

petitivas - incansavelmente colocadas na ordem do dia,

catarse

da

fatalidade do poder, guerras pacificadas pela concentraç‹o da-força

armada no Estado

-

sucede a permanente contestaç‹o polí tica ao

poder, conseqü•ncia da monopolizaç‹o da força f’sica pelo Estado.

Os mecanismos de organizaç‹o do consentimento instalam-se nos

postos avançados do poder: é o reino da lei capitalista que designa

este lugar aos mecanismos de consentimento, inclusive sob a forma

de inculcaç‹o ideol—ica, na exata medida em que encobre a mono-

polizaç‹o da força fí sica pelo Estado.

Embora o papel da lei (pois no ní vel geral em que me coloco

aqui n‹o faço distinç‹o entre lei e direito) mostre ser essencial no

exerc’cio do poder como organizador da repress‹o, da viol•ncia f’-

sica organizada, n‹o significa contudo que, nessa aç‹o, a l—ica da

lei seja puramente negativa, de rejeiç‹o, de barragem ou de obriga-

ç‹o de n‹o-manifestaç‹o e mutismo. O poder jamais é exclusiva-

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mente negativo, pois é algo mais que a lei. A lei em seu papel repres-

sivo comporta um aspecto de positividade elevado, pois a repress‹ o

jamais se identifica ˆ pura negatividade.

A lei n‹o passa de um con-

glomerado de interditos e de censura. Também é

a

lei, desde o direi-

to greco-romano, que emite injunç› es positivas, que pro’be ou deixa

fazer segundo a m‡xima de que é permitido o que n‹o é proibido

pela lei, mas que faz fazer, obriga

a

aç› es positivas em vista do

poder, obriga também a discursos dirigidos ao poder. A lei imp› e o

sil•ncio ou deixa dizer, é ela que freqüentemente obriga

a

dizer (a

prestar juramento, a denunciar etc.). No geral,

a

lei institucionaliza-

da nunca foi pura injunç‹o de abstenç‹o ou pura censura, de tal

modo que terí amos na organizaç‹o do Estado, de um lado a lei-cen-

sura-negatividade, e de outro lado "outra coisa" - aç‹o-positivi-

dade. Essa oposiç‹o é parcialmente errada na medida em que a lei

organiza o campo repressivo como repress‹o daquilo que se faz quan-

do a lei pro’be e também como repress‹o daquilo que n‹o se faz

quando a rei obriga que se faça. A lei sempre esteve na ordem so-

cial, no sentido em que aparece depois para pôr ordem num estado

natural preexistente, porque é constitutiva do campo pol’tico-social

como codificaç‹o de interditos e injunç› es positivas.

Portanto, a repress‹o jamais é pura negatividade: n‹o se esgo-

ta nem no exerc’cio efetivo da viol•ncia fí sica, nem em sua interio-

rizaç‹o. H‡ na repress‹o outra coisa da qual raramente se fala:

os

'mecanismos do medo.

Mecanismos materiais e nada subjetivados;

chamei-os de

teatralidade

do Estado moderno, verdadeiro Castelo

de Kafka. Teatralidade inscrita na lei modema, nos dédalos e labi-

rintos onde essa lei se materializa: que isso se baseie no monop—io

,

da viol•ncia leg’tima, é do lado Colônia Penal, sempre Kafka, que

devemos procurar como compreender.

Enfim, a lei detém um papel importante (positivo e negativo)

na organizaç‹o da repress‹o ao qual n‹o se limita; é igualmente efi-

caz nos dispositivos de criaç‹o do consentimento. Materializa a

ideologia dominante que a’ intervém mesmo que n‹o esgote as ra-

z› es do consentimento. A lei-regra, por meio de sua discursividade

e textura, oculta as realidades pol’tico-econômicas, comporta lacu-

nas e vazios estruturais, transp› e essas realidades para a cena polí -

tica por meio de um mecanismo pr—rio de ocultaç‹o-invers‹o. Tra-

duz assim a representaç‹o imagin‡ria da sociedade e do poder da

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classe dominante. A lei é. sob esse aspecto, e paralelamente a seu

lugar no dispositivo repressivo, um dos fatores importantes da orga-

nizaç‹o do consentimento das classes dominadas, embora a legitimi-

dade (o consentimento) n‹o se identifique nem se limite ˆ legalida-

de.

As classes dominadas encontram na lei uma barreira de exclus‹o

e igualmente a designaç‹o do lugar que devem ocupar. Lugar que é

também lugar de inserç‹o na rede polí tico-social, criadora de deve-

res-obrigaç› es e também de direitos, lugar cuja posse imagin‡ria

tem conseqü•ncias reais sobre os agentes.

Muitas das aç› es do Estado que ultrapassam seu papel repres-

sivo e ideol—ico, suas intervenç› es econômicas e sobretudo os com-

promissos materiais impostos pelas classes dominadas ˆ s classes do-

minantes, uma das raz› es do consentimento, v•m inscrever-se, no

corpo da lei, fazendo parte de sua estrutura interna. A lei apenas en-

gana ou encobre, reprime, obrigando a fazer ou proibindo. Também

organiza e sanciona direitos reais das classes dominadas (claro' que

investidos na ideologia dominante e que est‹o longe de corresponder

em sua aplicaç‹o ˆ sua forma jurí dica) e comporta os compromissos

materiais impostos pelas lutas populares ˆs classes dominantes.

N‹o

é

menos evidente, em oposiç‹o a toda concepç‹o jurí di-

co-legalista, e psicanal’tica também, tal como aparece em obras in-

teressantes como a de

P.

Legendre'"

que a ação, o papel do Estado

em muito ultrapassam a lei ou a regulamentaç‹ o jur’dica.

a) A aç‹o do Estado, seu funcionamento concreto nem sempre

toma a forma de lei-regra: existe sempre um conjunto de pr‡ticas e

técnicas estatais que escapa ˆ sistematizaç‹o e ˆ ordem jurí dicas.

Isso n‹o quer dizer que sejam "anômicas", arbitr‡rias, mas que obe-

decem a uma l—ica diferente da ordem jurí dica, ˆ l—ica da relaç‹o

de forças entre classes em luta cuja lei é apenas investimento a dis-

t‰cia e em registro espec’fico.

b) Frequentemente o Estado age transgredindo a lei-regra que

edita, desviando-se da lei ou agindo contra a pr—ria lei. Todo siste-

ma autoriza, em sua discursividade, delineado como vari‡vel da

regra do

jogo

que organiza, o n‹o-respeito pelo Estado-poder de sua

pr—ria lei. Chama-se a isso

raz‹ o de Estado,

que significa que a

legalidade é compensada por "ap•ndices" de ilegalidade, e que a ile-

galidade do Estado est‡ sempre inscrita na legalidade que institui: o

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stalinismo e os aspectos totalitários do poder nos pa’ses do Leste

n‹o se devem especialmente ˆ s "violaç› es da legalidade socialista".

Todo sistema jurí dico inclui a ilegalidade assim como comporta,

como parte integrante de seu discurso, vazios e brancos, "lacunas da

lei": n‹o se trata de simples descuidos ou cegueira causados pela

operaç‹o ideol—ica de ocultaç‹o que sustenta o direito, porém de

dispositivos expressamente previstos, brechas para permitir ir além

da lei, sem falar das violaç› es puras e simples que o Estado faz de

sua lei, que embora pareçam transgress› es selvagens, pois n‹o

foram previstas na lei, assim mesmo fazem parte do funcionamento

estrutural do Estado. Todo Estado é organizado em sua os satura ins-

titucional de modo a funcionar (e de modo

a

que as classes domi-

nantes funcionem) segundo a lei e contra a lei. Inúmeras leis n‹o te-

riam existido em sua forma precisa se, com o apoio do conjunto de

dispositivos estatais, uma taxa de violaç‹o das classes dominantes

n‹o houvesse sido descontada, isto é, inscrita nos dispositivos do

Estado. A ilegalidade

é

freqüentemente parte da lei, e mesmo quan-

do ilegalidade e legalidade s‹o distintas, n‹o englobam duas organi-

zaç› es separadas, espécie de Estado paralelo (ilegalidade) e de Es-

tado de direito (legalidade), e menos ainda uma distinç‹o entre

Estado ca—ico, um n‹o-Estado (ilegalidade) e um Estado (legalida-

de). Ilegalidade e legalidade fazem parte de uma única e mesma es-

trutura institucional.

No fundo, é assim que se deve entender

a

express‹o de Marx.

de que todo Estado é uma "ditadura" de classe. N‹o no sentido que

entendemos habitualmente de poder acima da lei, onde lei é consi-

derada como oposta ˆ viol•ncia e ˆ força: n‹o h‡ Estado, por mais

ditatorial que seja, sem lei, e a exist•ncia de lei e de legalidade ja-

mais impediu qualquer barb‡rie ou despotismo. H‡ que compreen-

der a express‹o na acepç‹o exata em que "ditadura" designa a orga-

nizaç‹o de todo Estado como ordem funcional única de legalidade e

de ilegalidade, de uma legalidade vazada por ilegalidade.

e) Enfim, a aç‹o do Estado sempre ultrapassa

a

lei pois o Esta-

do pode, dentro de certos limites, modificar sua pr—ria lei. O Es-

tado n‹o é a simples figura de alguma lei eterna, seja ela origin‡ria

de algum interdito universal ou de uma lei natural. Primado suposto

e, é o caso de se dizer, de direito da lei sobre o Estado que, :10 fundo,

é

a pr—ria base

da

concepç‹o jurí dica do Estado pela qual se expli-

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ca a coniv•ncia atual com a concepç‹o anal’tica (psicanal’tica) das

instituiç› es. Ora, se todo Estado é

consubstancial a uma lei, se ent‹o

na verdade a lei n‹o é uma criaç‹o utilit‡ria de um Estado pura força

prévia, é o Estado, numa sociedade dividida em classes e no seu as-

pecto de viol•ncia leg’tima, em suma, como detentor da força e da re-

press‹o f’sica, que sempre domina a lei. Pois se é verdade que a lei

organiza essa viol•ncia, n‹o h‡ nessa sociedade lei ou direito sem

aparelhagem que obrigue sua aplicaç‹o e assegure a efici•ncia, em

resumo, a exist•ncia social: a eficacidade da lei jamais é a do puro

discurso,

da

palavra e da regra emitida. Se n‹o h‡ viol•ncia sem lei,

a lei pressup› e sempre a força organizada a serviço do legiferante (o

braço secular). Mais prosaicamente: a força permanece na lei.

2, A Lei Moderna

Embora toda lei ou todo direito apresentem certas caracterí sti-

cas comuns, o direito capitalista

é

espec’fico no que forma um

sis-

tema axiomatizado, composto de conjunto de normas abstratas, ge-

rais.formais e estritamente regulamentadas.

Também um certo marxismo fundamentou essa especificidade

do sistema jurí dico capitalista na esfera de circulaç‹o do capital e

das trocas mercantis: sujeitos jurí dicos "abstratos" quando livre tro-

cadores de mercadorias, indiv’duos "formalmente" livres e iguais,

troca equivalente e valor de troca "abstrato" etc.22 Ora, n‹o é no in-

terior dessa esfera que se pode apreender a especificidade da lei e do

direito capitalistas. A especificidade (abstraç‹o, universalidade, for-

malidade), que ali‡s encobre a monopolizaç‹o da viol•ncia leg’tima

pelo Estado, que se op› e ao particularismo jurí dico que dissimula a

difus‹o dessa viol•ncia entre v‡rios portadores, deve ser procurada

na divis‹o social do trabalho e nas relaç› es de produç‹o. S‹o eles

que d‹o ˆ viol•ncia o lugar e o papel que desempenham no capita-

lismo, onde, em vista do desapossamento dos trabalhadores duetos

de seus meios de trabalho, a viol•ncia n‹o est‡ diretamente presente

como tal (como raz‹o "extra-econ—mica") no processo de produç‹ o.

Esse sistema jurí dico axiomatizado constitui o quadro de coes‹ ofor-

ma/

de agentes totalmente despojados de seus meios de produç‹o.

desenhando assim os contornos de um espaço estatal relativamente

separado das relaç› es de produç‹o. A formalidade e a abstraç‹o da

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lei est‹o em relaç‹o primeira com os fracionamentos reais do corpo

social, ,na divis‹o social do trabalho, com a individualizaç‹o dos

agentes em andamento no processo de trabalho capitalista.

, A lei modema encarna assim o espaço-tempo, o quadro refe-

rencial material do processo de trabalho: espaço/tempo serial, cumu-

lativo, cont’nuo e homog•neo. Essa lei transforma os indiv’duos em

sujeitos-pessoas jurí dico-polí ticas ao representar a unidade como

povo-naç‹o. Ela consagra e participa também em sua instauraç‹o,

nas fragmentaç› es diferenciadas dos agentes (individualizaç‹o), tra-

çando o c—igo no qual essas diferenciaç› es se inscrevem, e a partir

do qual as diferenciaç› es existem sem colocar em jogo a unidade

polí tica da formaç‹o social. Todos os sujeitos s‹o iguais e livres pe-

rante a lei: o que j‡ quer dizer, no discurso da lei (e, n‹o escondido

nele), que s‹o realmente diferentes (como sujeitos-indiv’duos), mas

na medida em que essa diferença pode se inscrever num quadro de

homogeneidade. A lei capitalista n‹o oculta apenas, como se diz fre-

qüentemente, as diferenças reais sob um formalismo universal; ela

contribui para instaurar e sancionar a diferença (individual e de clas-

se) em sua pr—ria estrutura; erigindo como sistema de coes‹o e

como organizador da unidade-homogeneizaç‹o dessas diferenças.

Aí a fonte das caracterí sticas de universalidade, formalidade e abs-

traç‹o da axiom‡tica jurí dica. Sup› em agentes liberados de seus

"elos" territoriais-pessoais das sociedades pré-capitalistas, ou mesmo

escravocratas, na base de um direito constitu’do, no essencial, de es-

tatutos, de privilégios 'e de costumes de castas-Estados onde o polí -

tico e o econômico estariam estreitamente ligados. N‹o é

a

lei que

libera esses agentes: ela intervém num processo de desconex‹o e de

separaç‹o dos agentes dos elos que os diferenciavam por castas-Es-

tados, classes fechadas nas quais estavam originariamente encastra-

dos, fontes de signos, de s’mbolos, de significaç› es. A lei nisso se

empenha, contribuindo para instaurar e sancionar a nova grande di-

ferença: a individualizaç‹ o. Ali‡s o direito moderno trabalha para

que essa individualizaç‹o seja paralelamente (e em relativa contra-

diç‹o com) a outras técnicas e pr‡ticas do Estado (as disciplinas de

normalizaç‹o), seja encobrindo-as e nelas se moldando,

A lei e o sistema jurí dico capitalistas apresentam igualmente,

porém, particularidades no seu aspecto de materializaç‹o da ideo-

logia dominante. A legitimidade desloca-se em direç‹o ˆ legalida-

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de,

o

que a distingue da legalidade organizada com base no sagra-

do. A lei,

j‡

encarnaç‹o do povo-naç‹o, toma-se a categoria funda-

mental da soberania do Estado: a ideologia jurí dico-polí tica insta-

la-se em regi‹o dominante da ideologia e suplanta a ideologia

religiosa. Se essas modificaç›es englobam a monopolizaç‹o da

força leg’tima por parte do Estado, t•m contudo raí zes bem mais

profundas, A funç‹o de legitimidade desloca-se em direç‹o ˆ lei,

inst‰cia impessoal e abstrata, ao mesmo tempo em que, no seio

das relaç› es de produç‹o, os agentes "desatam" e se liberam de

seus elos territoriais-pessoais. Tudo se passa como se essa lei, gra-

ças a sua abstraç‹o, formalidade e generalidade, se tomasse aqui o

dispositivo mais apto a preencher a

funç‹ o-m—

de toda ideologia

dominante: a de cimentar a unidade de uma formaç‹o social (sob a

égide da classe dominante).

ƒ especialmente a lei que, em suas caracterí sticas capitalistas,

pode, além do quadro formal de coes‹o que imp› e aos agentes,

re-

presentar

sua unidade, investindo-a no imagin‡rio social, e cimen-

tar os processos de individualizaç‹o. Tudo se passa como se a lei,

que se organiza no modo do

puro signo

(abstraç‹o, universalidade,

formalidade), pegasse um lugar privilegiado no mecanismo ideol—

gico de representaç‹o imagin‡ria, a partir do momento em que os

agentes s‹o atomizados e separados de seus meios naturais de traba-

lho. Enquanto nas formaç› es pré-capitalistas era o modo de simbo-

lizaç‹o pr—rio

ˆ

religi‹o (a religi‹o une) que permitia sancionar as

ligaç› es de agentes

j‡

encastrados na terra, na fam’lia, nas castas e

nos estados. Ligaç‹o que originavam uma série de simbolizaç› es

primeiras do tipo sagrado, as quais eram registradas pelo Estado que

da’ tirava sua legitimidade como encarnaç‹ o, no topo da pir‰mide

significante, da palavra e do corpo soberano. Era a esses modos

de produç‹o que correspondia, segundo Marx, o papel dominante da

ideologia, enquanto no modo de produç‹o capitalista o econômico,

em raz‹o de suas relaç› es de produç‹o espec’ficas, tem ao mesmo

tempo o papel determinante e o papel dominante. ƒ necess‡rio com-

preend•-lo no sentido de que a lei, em sua forma capitalista, toma-

se a encarnaç‹o do mecanismo ideol—ico fundamental, a partir do

momento em que o ciclo de reproduç‹o do capital e n‹o das "raz› es

extra-econômicas" que aceleram a extraç‹o do sobre trabalho (a

mais valia), a partir do momento em que s‹o esmagadas as subsim-

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bolizaç› es que cimentam os elos territoriais pessoais dos agentes. O

reino da -lei capitalista está fundamentado no vazio do significante

que a envolve.

Esta especificidade da lei e do sistema jurí dico est‡ inscrita na

ossatura institucional pr—ria do Estado capitalista. O arcabouço

centralizador-burocr‡tico-hier‡rquico desse Estado s—é poss’vel em

si porque se calca num sistema de normas gerais, abstratas, formais

e axiomatizadas, sistema esse que organiza e regula as relaç› es entre

os escal› es e aparelhos impessoais de exerc’cio do poder. O que se

designa sob o termo "direito administrativo" corresponde exatamen-

te a esta lei em seus efeitos de estruturaç‹o do Estado. A lei e o re-

gulamento estão na base do recrutamento dos agentes do Estado

(concursos e exames impessoais), do funcionamento do texto escri-

to e da dogm‡tica do discurso interno ao Estado. Discurso que n‹o

encarna, nem revela, nem interpreta a Palavra Divina (real, senho-

rial) por uma relaç‹o m’stica mais ou menos direta e pessoal de todo

servidor de Deus (do Rei, do Senhor): ele pretende concretizar por

segmentos e patamares a lei abstrata e formal para sua aplicaç‹o

concreta, num encadeamento l—ico-dedutivo (a "l—ica-jur’dica")

que n‹o passa do percurso de uma ordem de dominaç‹o-subordina-

ç‹o, de um trajeto de decis‹o-execuç‹o interna ao Estado.

Se ent‹o se pensar que essa ossatura do Estado est‡ em relaç‹o

com a divis‹o capitalista trabalho intelectual/trabalho manual, e que

ela reproduz o trabalho intelectual, vai se compreender a relaç‹o

entre essa divis‹o e a lei capitalista, Na legitimidade do sagrado, to-

do sujeito do poder

é

tido como detentor, em si, de uma parte da ver-

dade (divina), um limite intrí nseco ao poder terrestre (uma alma): a

inscriç‹o do corpo do Rei (divino) que ele traz gravada em si n‹o se

apaga nunca. Os estatutos e os privilégios s‹o de direito natural. A

lei moderna realiza a relaç‹o capitalista do poder e do saber, con-

densada no trabalho intelectual capitalista: nenhum saber nem ver-

dade nos indiv’duos-sujeitos fora da lei. A lei torna-se a encarnaç‹o

da Raz‹o: é nas formas do direito e da ideologia jur’dica que se con-

duz a luta contra a Religi‹o, e nas categorias jurí dicas é que se pen-

sam as ci•ncias f’sicas da Idade da Luz. A lei abstrata, formal, uni-

versal, é a verdade dos sujeitos, é o

saber

(a serviço do capital) que

constitui os sujeitos jurí dico-polí ticose que instaura a diferença en-

tre o privado e o público. A lei capitalista traduz assim o despoja-

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mento total dos agentes da produç‹o de seu "poder intelectual" em

proveito das classes dominantes e de seu Estado.

Ali‡s, que tal aconteça, se pode igualmente ver na relaç‹o da

lei e da sistematizaç‹o jurí dica com a especializaç‹o dos aparelhos

de Estado, relaç‹o que se manifesta na emerg•ncia do

corpo de ju-

ristas especializados.

Quando se trata de entender esse corpo em

amplo sentido, v•-se que provavelmente é ele que melhor repre-

senta, como rede "separada" da sociedade, o trabalho intelectual

incorporado no Estado, Todo agente do Estado em amplo sentido,

parlamentar, polí tico, policial, oficial, juiz, advogado, funcion‡rio,

assistente social etc.

é

um intelectual na medida em que

é

um

homem da lei.

que legisla, que conhece a lei e o regulamento, que

concretiza-os, que aplica-os. Ninguém é considerado ignorante da

lei, m‡xima fundamental de um sistema jurí dico moderno onde nin-

guém, salvo os representantes do Estado, pode conhec•-la. Este co-

nhecimento requisitado a todo cidad‹o n‹o é objeto de uma discipli-

na particular na escola, como se, ao se pretender exigir que ele

conheça a lei, tudo se fizesse para que ele a ignore. Esta m‡xima ex-

pressa assim a depend•nCia-subordinaç‹o em face dos funcion‡rios

do Estado, ou seja, aos fazedores, os guardi‹es e os aplicadores da

lei, das massas populares cuja ignor‰cia (o segredo) da lei

é

uma

caracterí stica desta lei e da pr—ria linguagem jurí dica. A lei moder-

na é um segredo de Estado, fundadora de um saber açambarcado

pela raz‹o de Estado.

Esta especificidade da lei e do sistema jurí dico capitalista tem

portanto seus fundamentos nas relaç› es de produç‹o e na divis‹o so-

cial capitalista do trabalho: ela se relaciona assim com as classes so-

ciais e com a luta de classes, tais como elas existem sob o capitalis-

rno.>

Classes abertas e n‹o mais castas fechadas, o que é da maior

import‰cia quanto

ˆ

sua reproduç‹o: reproduç‹o ao mesmo tempo

de seus lugares (extens‹o, diminuiç‹o, extinç‹o) e de seus agentes

(qualificaç‹o-adestramento espec’fico dos agentes para que eles

ocupem

talou

qual posiç‹o de classe).

ƒ

evidente que o sistema ju-

r’dico-capitalista (abstrato, formal, geral) é aquele que pode regula-

mentar a relaç‹o entre os lugares de classes sociais (capital, trabalho

assalariado) e dos agentes que n‹o lhe s‹o formalmente "ligados".

ƒ

ele que pode regular ao mesmo tempo a ventilaç‹o permanente de

agentes das classes dominadas entre os lugares de classes sociais

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(campesinato, classe oper‡ria, pequena burguesia), que n‹o é mais

que o papel da lei na

submiss‹ o

real ampliada do Trabalho ao Capi-

tal,

e

a

separaç‹o relativa desses lugares, e de seus agentes, na rela-

ç‹o classes dominantes/classes dominadas. No fundo, para esta

axiom‡tica jurí dico-burguesa, efetivo direito nacional-popular de

classe, todos s‹o livres e iguais diante da lei sob

a

condiç‹o de que

todos sejam e tomem-se burgueses, o que a lei ao mesmo tempo per-

mite e interdita,

. Mas esse sistema jur’dico corresponde igualmente ˆ s coorde-

nadas espec’ficas das

lutas polittcas

sob o capitalismo:

a)

A sistematizaç‹o axiom‡tica do direito como quadro de coe-

s‹o formal recobre uma funç‹o estratégica: o capitalismo apresenta

uma reproduç‹o ampliada. Enquanto as sociedades pré-capitalistas

apresentavam apenas uma reproduç‹o simples, repetitiva e, por

assim dizer, cega, esta reproduç‹o ampliada implica aqui, j‡ ao n’vel

do processo de produç‹o, um c‡lculo estratégico por parte de diver-

sas fraç› es do capital e seus portadores. Esse c‡lculo exige, por sua

vez, a possibilidade de uma determinada previs‹ o fundada num m’-

nimo de estabilidade das regras do jogo. ƒ isso que permite a axio-

matizaç‹o do direito: seu car‡ter sistem‡tico, com base em normas

abstratas, gerais, formais e estritamente regulamentarizadas, consis-

te entre outras coisas em comportar suas pr—rias regras de transfor-

maç‹o, fazendo assim com que suas modificaç› es se tomem trans-

formaç› es reguladas no seio de seu sistema (papel notadamente da

Constituiç‹o).

b) A lei regula o exercí cio do poder polí tico pelos aparelhos de

Estado e o acesso a esses aparelhos por meio precisamente desse

sistema de normas gerais, abstratas, formais. Em relaç‹o a uma do-

minaç‹o espec’fica, ou seja a um bloco de poder composto de v‡-

rias classes e principalmente de v‡rias fraç› es da burguesia, esse di-

reito controla uma certa ventilaç‹o do poder entre elas e regulariza

suas relaç› es no seio do Estado. Ele permite assim que

a

modifica-

ç‹o das relaç› es de força no seio da aliança no poder se traduza no

Estado sem a’ provocar reviravoltas, A lei capitalista é de qualquer

maneira o

amortizador

e o

canalizador

de crises polí ticas, de tal

modo que elas n‹o provocam efetivas crises do Estado. De manei-

ra mais geral, a lei capitalista surge como a forma necess‡ria de um

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Estado que deve ter uma autonomia relativa em relaç‹o ˆ essa ou

ˆquela fraç‹o do bloco no poder para que possa organizar sua uni-

dade sob a hegemonia de uma classe ou de uma fraç‹o. Isso est‡ li-

gado ˆ separaç‹o relativa do Estado e das relaç› es de produç‹o, ou

seja ao fato de que os agentes da classe economicamente dominan-

te (a burguesia) n‹o se confundam diretamente com os mantenedo-

res e agentes do Estado.

ƒ

ali‡s assim que a lei modema se constituiu historicamente.

Suas origens remontam ao Estado absolutista. ou seja ˆs monarquias

européias a partir do século

xvn.

Estado absolutista que constitui

nem mais nem menos que um Estado com dominante capitalista,

verdadeiro Estado de transiç‹o para o capitalismo. Estado absolutis-

ta que devia, ent‹o, fazer face a problemas espec’ficos de organiza-

ç‹o referentes ˆ s relaç› es entre a nobreza rural e a burguesia. A mo-

nopolizaç‹o da guerra pelo Estado que corresponde aqui ˆ

pacificaç‹o que ele opera entre as forças sociais em quest‹o C'guer-

ras privadas") a partir do século XVI, que lhe serve de preparaç‹o

para bem conduzir esta primeira grande guerra que ele travou com

suas fontes batismais: o sangrento processo de acumulaç‹o primiti-

va do capital em favor da burguesia.

Mas o direito capitalista regula igualmente o exerc’cio do po-

der frente ˆ s classes dominadas. Em face da luta da classe oper‡ria

no plano polí tico, esse direito organiza o quadro de um equil’brio

permanente de compromisso imposto ˆs classes dominantes -pelas

classes dominadas. Esse direito regula também as formas de exerc’-

cio da repress‹o f’sica: esse sistema jurí dico, essas liberdades "for-

mais" e "abstratas" s‹o também, cumpre destacar, conquistas das

massas populares.

ƒ

nesse sentido, e apenas nesse sentido, que a lei

modema coloca os limites do exerc’cio do poder e da intervenç‹o

dos aparelhos de Estado. Esse papel da lei depende da relaç‹o de

força entre as classes, e esboça também uma barreira ao poder das

classes dominantes imposta pelas classes dominadas, o que se ob-

serva claramente no caso da aboliç‹o desse papel do direito nas for-

mas de Estado capitalista de exceç‹o (fascismo, ditaduras militares).

ƒ assim que a lei no sentido moderno interveio n‹o contra a viol•n-

cia de Estado (lei contra terror), mas por um papel organizador, no

seu pr—rio texto, do exerc’cio da viol•ncia, considerando-se a resis-

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tência das massas populares. A axiom‡tica jurí dica permite a previ-

s‹o polí tica das classes dominantes, eu afirmara, quando exprime

uma relaç‹o de força entre classes, ela constitui igualmente o supor-

te

de um c‡lculo estratégico pois inclui, nas vari‡veis de seu siste-

ma, o fator resist•ncia e luta das classes dominadas.

Afinal, por parte das classes e fraç› es dominantes, o direito

como posiç‹o de limites expressa as relaç› es de força no seio do

bloco no poder. Ele se concretiza particularmente ao delimitar os

campos de competência e de intervenç‹o de diversos aparelhos onde

dominam as classes e diferentes fraç› es desse bloco.

IV.

A NA‚ Ì O

o último caso ao qual vou me referir é o da naç‹o. Caso com-

plexo esse, que concentra de toda maneira, o conjunto das aporias

de um certo marxismo tradicional. ƒ necess‡rio se ater a essa evi-

d•ncia: n‹o existe teoria marxista da naç‹o, Dizer que existe n‹o

obstante os apaixonados debates a esse respeito no seio do movi-

mento oper‡rio, subestimaç‹o pelo marxismo da realidade nacional

é'

ainda muito pouco.

1.

Uma primeira indicaç‹o parece se destacar da reflex‹o mar-

xista e do debate no seio do movimento oper‡rio em tomo da

, naç‹o:

a naç‹o n‹o se identifica com a Naç‹o moderna e com o Es-

tado nacional, tal como se observa na emerg•ncia do capitalismo no

Ocidente. Existe "alguma coisa" designada sob o termo naç‹o, ou

.

seja, uma unidade particular de reproduç‹o do conjunto de relaç› es

sociais, bem antes do capitalismo. Sua constituiç‹o coincide com a

passagem das sociedades sem classes (de linhagem) para sociedades

classistas, quando ela desenha novas fronteiras, novos laços e tem-

poralidades de reproduç‹o social.

Mas esta questão das origens é, nesse caso também, a menos

interessante. O que é mais significativo é que os cl‡ssicos do mar-

xismo, por insistirem sempre nas relaç› es entre a naç‹o e as classes

sociais, admitem clara e explicitamente a perman•ncia da naç‹o

mesmo ap— a extinç‹o do Estado na sociedade "comunista" sem

classes. Um problema de vulto: eis uma realidade, a naç‹o, exami-

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nada como objeto econômico-polí tico e cultural em sua relaç‹o fun-

damental com as classes sociais, que remete permanentemente ˆ

quest‹o polí tico-estratégica essencial do internacionalismo proletá-

rio, e da qual se admite a perrnan• ncia mesmo ap— o desapareci-

mento do Estado e o fim da divis‹o de classes. Problema tanto mais

espinhoso que se poderia usar, a seu prop—ito, do mesmo modo que

para o Estado, do argumento da reversibilidade hist—ica, mas se

procura evitar referir-se a ele. A naç‹o, como o Estado, n‹o existiu

nas sociedades sem classes mas se evita apresentar assim, diferente-

mente do que se faz a prop—ito do Estado, por pretender que ela n‹o

mais existiria ap— o fim da divis‹o em classes.

Certamente enfatiza-se o fato de que n‹o se trataria mais então

da mesma naç‹o, mas isso n‹o tem nada que se possa comparar aqui

ˆ s an‡lises referentes ˆ extinç‹o do Estado: o internacionalismo pro-

letário ap— o

fim

da divis‹o de classes n‹o podendo se empenhar para

a extinç‹o da naç‹o como a "substituiç‹o do governo dos homens pela

administraç‹o das coisas" se empenha para o desaparecimento do Es-

tado. Como compreender esse objeto, te—ico e real, que é a naç‹o,

de quem se admite a irredutibilidade transist—ica? Questão cujo tra-

tamento passa, de toda maneira, pela an‡lise da naç‹o moderna,

2. A segunda indicaç‹o, relacionada ˆ primeira, diz respeito

ˆ dissociaç‹o, no pr—rio quadro do capitalismo, entre o

EStado

e a

naç‹ o.

A idéia que se firma progressivamente, sobretudo com as

discuss› es referentes ˆ s an‡lises do austro-marxismo (O. Bauer,

K. Renner erc.), é de que, mesmo no quadro do Estado nacional, o

Estado n‹o poderia encobrir exaustivamente a naç‹o: um único e

mesmo Estado capitalista pode compreender em seu seio v‡rias na-

ç› es (era o caso do Estado multinacional austro-húngaro). Inversa-

mente, uma naç‹o que n‹o conseguiu ainda (sob o capitalismo) for-

jar

seu pr—rio Estado n‹o é no entanto uma naç‹o enfraquec’da, e

n‹o deixa por isso de ter menos direitos que uma outra possa dispor.

Isso é o que funda a originalidade e a radicalidade do princ’pio leni-

nista dos povos e naç› es se autodeterminaram. Esse direito de auto-

determinaç‹o n‹o se reduz para Lenin, como para os austro-marxis-

tas, a um simples direito ˆ "autonomia cultural", porém estende-se

ao direito que essas naç› es t•m de fundar seu pr—rio Estado. O Es-

tado pr—rio e distinto n‹o é necess‡rio para que uma naç‹o exista e

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seja reconhecida como tal, porém, por sua pr—ria exist• ncia, ela

tem direito a um Estado pr—rio (autodeterminaç‹ o). Decerto, os

problemas começam a partir do momento em que a aplicaç‹o desse

princ’pio, para o pr—rio Lenin, mas principalmente depois dele,

est‡ subordinada aos "interesses da revoluç‹o mundial", em suma a

partir do momento em que "o direito ao div—cio" de uma

-naç‹o

com o Estado que o engloba n‹o significa "obrigaç‹o de divorciar"

e que, reconhecendo o princ’pio desse direito, s—se deveria l.utar por

ele

quando

estivesse em conformidade aos interesses da classe ope-

r‡ria e do "proletariado internacional". Sabe-se o que foi nesse as-

pecto a polí tica stalinista, ocasi‹o da ruptura dram‡tica entre Lení n,

ˆ s

vésperas de sua morte (1923), e Stálin. Mas o que nos importa

aqui,

é

o princ’pio reconhecido e a dissociaç‹o relativa que ele esta-

belece entre a naç‹o e o Estado.

3. Dito isso, a terceira indicaç‹o diz respeito ˆ an‡lise da naç‹o

modema. Admite-se, ao mesmo tempo. a especificidade da naç‹o

nas formaç› es sociais capitalistas e a estreita relaç‹o que existe entre

esta naç‹o e o Estado. Mesmo se a naç‹o n‹o reafirma exatamente o

Estado, o Estado capitalista apresenta a particularidade de ser um Es-

tado nacional: a modalidade nacional vem a ser pela primeira vez

pertinente quanto ˆ materialidade do Estado. Este Estado apresenta

a

tendencialidade histôrica

de açambarcar uma e mesma naç‹o, no

sentido moderno do termo, de se empenhar ativamente para o esta-

belecimento da unidade nacional: as naç› es modernas apresentam a

tendencialidade hist—ica de formar seus pr—rios Estados. Os luga-

res e os elos de reproduç‹o ampliada das relaç› es sociais, as forma-

ç› es sociais tendem a recortar os limites do Estado-naç‹o ao se tor-

narem formaç› es sociais nacionais. O desenvolvimento desigual,

caracterí stica do capitalismo desde seus in’cios, tende a ter como

pontos de sustentaç‹o os Estados-naç› es dos quais precisamente ele

fundamenta a relaç‹o.

ƒ

esta última série de indicaç› es, ali‡s, confirmadas, como se

sabe, pelo conjunto da pesquisa econômica, polí tica. hist—ica atual,

que vai me ocupar logo de in’cio. A explicaç‹o dessa tendencial ida-

de (englobando do Estado e da naç‹o) remete

ˆ

quest‹o da especifi-

cidade da naç‹o no sentido moderno. ƒ precisamente a’ que as ca-

r•ncias da pesquisa marxista

j‡

desenvolvida tomam-se patentes.

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E principalmente no que concerne aos denominados funda-

mentos econômicos dessas realidades hist—icas. A principal ex-

plicaç‹o a que se chegou, e que permanece ainda, remete sempre ˆ

famosa esfera de circulaç‹o do capital e ˆ s trocas mercantis. A uni-

dade econ› m’ca, elemento essencial da naç‹o modema, visaria ba-

sicamente ˆ unificaç‹o do mercado dito interno. A generalizaç‹o

das trocas mercantis, o valor de troca tal como se realiza na circu-

laç‹o da moeda necessitam da aboliç‹o de entraves internos, adua-

neiros e outros, para a circulaç‹o das mercadorias e para a unidade

monet‡ria. O Estado cuida ele mesmo da constituiç‹o da naç‹o mo-

dema em sua dimens‹o econômica ao homogeneizar. sob a égide

do capital mercantil, o espaço de circulaç‹o das mercadorias e do

capital, o que constitui o essencial de sua aç‹o no estabelecimento

da unidade nacional. ƒ ali‡s nessa mesma linha que s‹o encaminha-

das, de maneira a mais sutil, as relaç› es entre a naç‹o modema e o

Estado, conforme as particularidades do Estado nacional. A mate-

rialidade pr—ria do Estado, considera-se que resida no fato de

que ele instaura os intercambiadores de mercadoria e os possu’do,

res

de,

capital como indiv’duos-sujeitos polí ticos formalmente li-

vres e iguais,

e

de que ele representa-cristaliza a unidade desses

indiv’duos. A naç‹o modema é tida como proveniente no essencial,

e pelo menos em sua dimens‹o econôrn’ca, de uma homogeneiza-

ç‹o do espaço no qual se movem esses indiv’duos concorrenciado-

res-trocadores de mercadorias, o "povo-naç‹o". A an‡lise que se d‡

disso em termos de classe est‡ calcada sobre essa explicaç‹o: a

naç‹o, assim como o Estado moderno. seria a criaç‹o do capital

mercantil. remontando ˆ burguesia mercantil desde o in’cio do ca-

pitalismo.

Embora forçosamente, eu esquematizo: trata-se de uma tradi-

ç‹o dominante, extremamente tenaz, no marxismo. Ora, n‹o s—esta

explicaç‹o é muito parcial, mas também funciona como obstáculo

para uma verdadeira an‡lise da naç‹o modema, e apresenta uma

série de conseqü•ncias graves:

a) A generalizaç‹o das trocas mercantis n‹o pode ser respon-

s‡vel pela criaç‹o da naç‹o modema: se ela acentua a necessidade

de unificaç‹o do mercado dito "interno" e a supress‹o dos entraves

para a circulaç‹o das mercadorias e do capital,

e/a não explica em

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nada por que esta unificaç‹ o se localiza precisamente ao n’vel da

naç‹ o.

Unificaç‹o do mercado interno certamente, mas

o

que

é

que

defme esta noç‹o de "interno". o que torna poss’vel a emerg•ncia de

um espaço pr—rio cujos contornos designam um exterior e um in-

terior? Por que esses limites-fronteiras obedecem a esse recorte (a

naç‹o) e n‹o um outro, e ainda, por que e como esta designaç‹o de

limites, esse traçado de um campo no interior do qual vai se assen-

tar

o problema da unificaç‹o? Tanto

é

verdade que

a

homogeneiza-

ç‹o do mercado interno sup› e o fechamento de um espaço que trata-

se precisamente de unificar.

b) Esta refer•ncia-fuga ˆs coordenadas das trocas mercantis

traduz. no geral, uma concepç‹o profundamente emp’rica e positi-

vista relativa ao conjunto de elementos considerados como consti-

tuidores da naç‹o: o territ—io comum. a lí ngua comum, a tradiç‹o

hist—ica e cultural comuns. N‹ o entrarei aqui na disputa que consis-

te em saber quais elementos devem ser considerados exatamente

como constitutivos da naç‹o, disputa que dividiu o movimento ope-

r‡rio. O que me importa aqui

é

mostrar claramente a concepç‹o que

subentende o conjunto de elementos enunciados no geral. Eles s‹o

considerados alguma coisa como essenciais.

transist—icos,

de na-

tureza imutável: o territ—io, a lí ngua, a tradiç‹o. A emerg•ncia na

naç‹o modema, sua relaç‹o espec’fica com o Estado s‹o entendidas

ainda como resultante de .um princ’pio (generalizaç‹o das trocas

mercantis) que teria por efeito a adiç‹o-acumulaç‹o desses diversos

elementos detentores de uma ess•ncia intr’nseca (o territ—io. a lí n-

gua. a tradiç‹o): acumulaç‹o configurada pelo Estado-naç‹o que

dela seria o efeito. Explicaç‹o que. sem dúvida, omite a quest‹o es-

sencial j‡ colocada pelo mercado interno. Por que e como o territ—

rio, a tradiç‹o hist—ica, a l’ngua designam através do Estado esta

nova configuraç‹o que éa naç‹o moderna? O que é que torna pos-

s’vel a articulaç‹o desses elementos, aparentemente transist—icos,

nesse n—focal que é a naç‹o modema? Por que esses elementos fun-

cionam de maneira diferente ao se tornarem as balizas dessa paliça-

da que é a naç‹o modema?

N‹o colocar essas quest› es leva forçosamente a subestimar-se

o peso atual da naç‹o. Se o territ—io, a l’ngua, a tradiç‹o apresen-

tassem sempre uma mesma ess•ncia como no passado, onde o papel

da naç‹o era menos importante, se a tend•ncia do capitalismo

é

na

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verdade a de uma internacionalizaç‹o do mercado do capital, se

pode deduzir facilmente um afastamento do papel da naç‹o na atual

fase do capitalismo (o que fazem muitos autores contempor‰eos),

assim como uma subestimaç‹o de seu peso espec’fico na transiç‹o

para o socialismo (como foi pensado pela corrente dominante no

seio do marxismo).

A atual internacionalizaç‹o do mercado e do capital, como

j‡

demonstrei, n‹o modifica em nada a import‰cia espec’fica da

naç‹o. Isso acontece porque os elementos que entram em jogo na

constituiç‹o da naç‹o modema t•m uma significaç‹o inteiramente

diferente da que tinham no passado. Para ater-se apenas ao territ—io

e

ˆ

tradiç‹ o hist—ico-cultural, dois elementos aparentemente muito

"naturais", eles encerram, sob o capitalismo, um sentido totalmente

diferente que no passado. Diferença que situa precisamente a ques-

t‹o do mercado como problema de unidade do mercado "interno", e

que ali‡s produz o desenvolvimento desigual do capitalismo como

desigualdade entre momentos hist—icos e espaços diferenciados, di-

vididos e distintos

-

as naç›es, as formaç› es sociais nacionais. Di-

ferença que aparece como um pressuposto do desenvolvimento ca-

pitalista.

A tese que tentarei desenvolver

é

que se esses elementos

_

o territ—io, a tradiç‹ o

-

t•m aqui um sentido inteiramente diferen-

te do que tinha no passado,

é

porque eles se inscrevem em modi-

ficaç› es mais fundamentais ainda: as das matrizes de espaço. é tempo

que os subentendem. O espaço e o tempo capitalista n‹o s‹o ab-

solutamente os mesmos que tinham no passado. Isso implica modi-

ficaç› es consider‡veis na realidade e no sentido do territ—io e da

historicidade, que ao mesmo tempo permitem e implicam a consti-

tuiç‹o da naç‹o modema. Essas modificaç› es delineiam uma nova

organizaç‹o da lí ngua

e

uma nova relaç‹ o do Estado com o rerrit—

rio e com a historicidade, e induzem assim a naç‹o modema e o Es-

tado nacional.

Poderia me referir nesta pesquisa a algumas indicaç› es que

podem ser encontradas em alguns historiadores franceses da ƒcole

des Annales: Febvre, Vidal-Naquet, Vernant, Lév•que, Braudel,

Mandrou, Le

GOff.

25

Mas essas indicaç› es concernem no essencial

ao espaço e principalmente ao tempo na Antiguidade e na feudalida-

de medieval: n‹o se estendem ao capitalismo e n‹o se relacionam

96

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1.

A Matriz Espacial: o Territ—io

relaç› es de produç‹o e na divis‹o social do trabalho. Esse funda-

mento n‹o deve ser entendido segundo uma causalidade mec‰ica

designando relaç› es de produç‹o j‡ dadas, dando lugar, em seguida,

a essas matrizes espaciais e temporais. Essas, implicadas pelas rela-

ç› es de produç‹o e pela divis‹o social do trabalho, aparecem ao

mesmo tempo como seus pressupostos, no sentido que Marx dava

ao termo prius l—gico (Voraussetzung) distinguindo-o do termo

"condiç› es hist—icas"

(historische Bendingungen).

As transforma-

ç› es dessas matrizes sublinham assim as transformaç›es de diversos

modos de produç‹o. Elas estão presentes, por isso mesmo, na ossa-

tura material do Estado (deste ou daquele Estado) e traçam as mo-

dalidades de exerc’cio de seu poder. N‹o se trata então, pois, nesta

presença de matrizes espaço-temporais no Estado, de simples rela-

ç‹o de homologia estrutural entre o Estado e as relaç› es de pro-

duç‹o, O Estado capitalista tem a especificidade de açambarcar o

tempo e o espaço social, intervir na organizaç‹o dessas matrizes,

uma vez que ele tende a monopolizar os procedimentos de organi-

zaç‹o do espaço e do tempo que se constituem, para ele, em rede de

dominaç‹o e de poder. A naç‹o moderna surge assim como um pro-

duto do Estado: os elementos constitutivos da naç‹o (a unidade eco-

nômica, o territ—io, a tradiç‹o) modificam-se pela aç‹o d’reta do

Estado na organizaç‹o material do espaço e do tempo. A naç‹o mo-

dema tende a coincidir com o Estado no sentido em que o Estado in-

corpora a naç‹o, e a naç‹o se corporifica nos aparelhos de Estado:

tomam-se o sustent‡culo de seu poder na sociedade, designando-lhe

seus contornos. O Estado capitalista funciona como naç‹o ..

Para começar com o espaço, por qualquer ‰gulo que se abor-

de O problema, observa-se que existe, segundo os diferentes mo-

dos de produç‹o, matrizes diferenciais do espaço, pressupostas exata-

mente pelas formas de apropriaç‹o e de consumaç‹o hist—ico-social

do espaço. Mostrar a exist•ncia dessas matrizes n‹o pode se reduzir

a retraçar o encadeamento das formas de apropriaç‹o hist—ica do

espaço social. Desde as cidades e a urbanizaç‹o até as fronteiras, aos

limites e o territ—io, passando pelas comunicaç› es, o transporte, o

aparelho e a estratégia militar, todos t•m sua funç‹o enquanto dis-

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positivos de organizaç‹o do espaço social. Ora, toda vez que se tenta

fazer a hist—ia desses dispositivos e de suas transformaç› es trope-

ça-se sempre com o mesmo problema: esses dispositivos n‹o pos-

suem natureza intrí nseca, suas transformaç› es hist—icas n‹o s‹o

simples variaç› es dessa natureza. As descontinuidades s‹o decisi-

vas: as cidades, as fronteiras, o territ—io n‹o se at•m absolutamen-

te ˆ mesma realidade e ao mesmo sentido nos modos de produç‹o

pré-capitalista e sob o capitalismo. Mesmo supondo-se que se evite

a inconveni•ncia de uma historiografia linear e emp’rica, que con-

siste em retraçar o desenvolvimento desses dispositivos em seu pr—

prio n’vel (a evoluç‹o das cidades, das fronteiras e dos territ—ios),

permanece a questão: como resolver as descontinuidades?

Conhece-se a tend•ncia atual da pesquisa mais avançada nesse

dom’nio: é a de colocar em relaç‹o direta esses dispositivos de apro-

priaç‹o e de consumo do espaço social com as particularidades dos

diferentes modos de produç‹o, ainda que o verdadeiro problema

seja outro; essa transformaç‹o de dispositivos se inscreve numa

trama, mais profunda. O caso n‹o é simplesmente de modos diferen-

ciados de organizaç‹o, de apropriaç‹o e de consumaç‹o de alguma

coisa que teria uma natureza intrí nseca, o "espaço", nem de percur-

sos e enquadramentos diferentes de um mesmo espaço. A distinç‹o,

decisiva aqui, entre cidades e campo, é inteiramente diferente se-

gundo os diversos modos de produç‹o, n‹o apenas porque as coor-

denadas hist—icas modifiquem os dois termos da relaç‹o (modifica-

ç‹o das cidades - antiga, medieval, modema - e do campo -

antigos, feudais, comunais, modernos), porém, mais profundamen-

te, porque sua pr—ria relaç‹o se inscreve num lugar diferente de

acordo com esses modos. Se esses dispositivos produzem o espaço,

n‹o é porque enquadrem ou esquadrinhem diferentemente um mes-

mo espaço que consomem socialmente, mas porque materializam

essas matrizes primeiras e diferenciais de espaço, j‡ presentes em

sua ossatura. A genealogia da produç‹o do espaço é principal em re-

laç‹o

ˆ

hist—ia de sua apropriaç‹o.

Se existem importantes diferenças entre as matrizes espaciais

das sociedades antigas e sociedades feudais, elas apresentam, ao

ní vel mais geral onde me coloco aqui, pontos comuns em sua rela-

ç‹o com a matriz espacial do capitalismo. N‹o repisarei a particula-

ridade das relaç› es de produç‹o e da divis‹o social do trabalho pré-

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capitalistas, onde o trabalhador direto n‹o está ainda separado, nas

relaç› es de posse, de seus meios de produç‹o, e em que a divis‹o do

trabalho n‹o induz as dissociaç› es pr—rias ˆ divis‹o capitalista,

nem a particularidade do poder polí tico e dos Estados pré-capitalis-

tas. Mas isso implica um espaço espec’fico:

um espaço continuo,

homog•neo, simétrico, reversivel e aberto.

O espaço antigo no Oci-

dente é um espaço que tem um centro, a polis (que tem ela mesma

um centro, a ‡gora) mas n‹o tem fronteiras no sentido moderno do

termo. ƒ um espaço conc•ntrico mas aberto no sentido que ele n‹o

tem, a bem dizer, exterior. Esse centro (a

polis

e a sede desta) se ins-

creve num espaço cujas caracterí sticas essenciais s‹o a homogenei-

dade e a simetria, e n‹o a diferenciaç‹o e a hierarquia. Orientaç‹o

geométrica que se reproduz por outro lado na organizaç‹o polí tica

da cidade e na estrutura de "isonomia" entre os cidad‹os.

Esses pontos (as cidades) disseminados no espaço n‹o s‹o me-

ramente separados porque fechados para o exterior, e sim porque se

voltam para seu pr—rio centro, n‹o como elos de uma série, e sim

como dispers› es de um elo üní co.>Esse centro, seu foco, "os ho-

mens, escreve ainda L. Gernet, ordenam-no a seu modo, arranjo ma-

tem‡tico de um territ—io que pode ser qualquer um: o centro é arbi-

tr‡rio, sen‹o te—ico". Nesse espaço (representado por Euclides e

pelos pitag—icos) n‹o se desloca, mas circula-se nele. Sempre se vai

ao mesmo local, cada ponto do espaço é a repetiç‹o exata do prece-

dente: coloniza-se somente para fundar réplicas de Atenas ou Roma,

toda trajet—ia n‹o passa nunca de um retorno ao centro original,

e n‹o existe percurso poss’vel. As cidades s‹o "abertas" aos campos,

n‹o existe territ—io cujos limites possam se estender ou se retrair

em relaç‹o a outros segmentos. Os gregos e os romanos s› se esten-

dem ao recuar suas fronteiras e incluindo nelas pedaços ou fatias de

espaço, pois n‹o se trata de assimilar segmentos heterog•neos: eles

se propagam sobre um campo homog•neo, pois se existe delimita-

ç› es, n‹o existe restriç‹o no sentido moderno. Esse ordenamento

topogr‡fico demarca, até nos menores meandros, os lugares de ex-

ploraç‹o e as formas de direç‹o pol’tica: espaço homog•neo e indi-

ferenciado pois o espaço do escravo é também o do senhor; os pon-

tos de exerc’cio de poder s‹o as réplicas do corpo do soberano.

ƒ

esse corpo que unifica o espaço e que aloja o homem público no

homem privado: esse corpo n‹o tem em si nem lugar nem frontei-

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para este centro umbilical que é Jerusalém. As relaç› es de produç‹o

feudais, dizia Marx, fazem com que a religi‹o detenha, nas forma-

ç› es sociais feudais, o papel dominante: diretamente presente nas

formas de exerc’cio do poder, ela regula por sua posiç‹o o espaço ao

marc‡-lo com o selo da cristandade. Mas trata-se desde j‡ da matriz

de um espaço cont’nuo e homog•neo. Aqui também n‹o se desloca:

entre o feudo, o burgo, as cidades de Jerusalém e suas diversas en-

carnaç› es terrestres, entre a Queda e a Salvaç‹o, n‹o h‡ fratura, nem

fissura, nem percurso. As fronteiras e os entre-lugares que separam

as muralhas, as florestas, os desertos n‹o s‹o brechas que se atraves-

sa para passar de um segmento para outro (de uma cidade para outra),

mas encruzilhadas de um único e mesmo caminho. O peregrino ou o

cruzado, e todos os viajantes o s‹o ˆ sua maneira, n‹o v‹o aos luga-

res santos ou

a

Jerusalém, pois esses lugares

j‡

estão traçados em seu

corpo (isso vale também para o Islam). O corpo polí tico de cada so-

berano encarna

a

unidade desse espaço como corpo do Cristo-Rei e

o espaço é balizado pelos caminhos do Senhor. As delimitaç› es se

entrecruzam, se sobrep› em, desviam-se e movimentam-se constante-

mente: os sujeitos se deslocalizam, mesmo permanecendo no mesmo

lugar, ao sabor da vontade dos senhores e soberanos aos quais eles

est‹ o pessoalmente ligados. A pir‰mide do poder polí tico medieval

tem um solo movediço como a luz de um farol ele mesmo m—el, e

toda ;essa suserania efetiva-se numa superf’cie com orientaç› es re-

vers’veis: as cartografias antigas e medievais n‹o s‹o ali‡s funda-

mentalmente diferentes. Aqui também o que faz as vezes de territ—

rio é definido pela relaç‹o com um n‹o-lugar, ainda que o sentido

deste n‹ o seja o mesmo que na Antiguidade: os descrentes, os infiéis.

As diferenças s‹o n’tidas em relaç‹o ao capitalismo. Mas n‹o

se quer aqui retraçar

a

constituiç‹ o hist—ica do espaço social capi-

talista. O problema continua a ser sempre o das relaç› es entre a ma-

triz espacial propriamente capitalista e as relaç› es de produç‹o, a di-

vis‹o social do trabalho "propriamente capitalista": o que importa

ent‹o

é

o papel do

territ—io

na constituiç‹o da naç‹o modema.

O trabalhador direto, o oper‡rio, é aqui totalmente separado

dos meios de trabalho, o que est‡ na base da divis‹o social do traba-

lho no maquinismo e na grande indústria. Isso implica uma matriz

espacial totalmente diferente que surge algo assim como um pressu-

posto: um espaço

serial, fracionado, desconttnuo, parcel‡rio, celu-

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sencialmente pol’tico no sentido em que o Estado tende a monopo-

lizar os procedimentos de organizaç‹o do espaço. O Estado moder-

no materializa nesses aparelhos (exército, escola, burocracia cen-

tralizada, pris› es) esta matriz espacial. Ela adapta por sua vez os

sujeitos sobre os quais exerce seu poder: a individualizaç‹o do cor-

po polí tico em mônadas id•nticas, porém separadas diante do Es-

tado, releva da ossatura do Estado inscrita na matriz espacial im-

plicada pelo processo de trabalho. Os indiv’duos modernos s‹o os

componentes do Estado-naç‹o moderno: o povo-naç‹o do Estado

capitalista é o ponto de converg•ncia de um espaço cujas fronteiras

s‹o os contornos pertinentes das tomadas de poder materiais e de

seus sustent‡culos. A cadeia segmentada desses elos individualiza-

dos esboça o interior do territ—io nacional como decupagem estatal

de exerc’cio do poder. O territ—io nacional n‹o passa da figura po-

lí tica do balizamento ao n’vel do Estado total e as cidades tornam-

se cidades "dominadas" e "disciplinadas" pelo Estado de que fala

Braudel. Os trabalhadores diretos s‹o liberados do solo apenas para

serem certamente enquadrados nas f‡bricas, mas também pelas fa-

m’lias no sentido moderno, escolas, pris› es, cidades, enfim pelos

territ—ios das naç› es. O que se verifica até nas modalidades de

exercí cio de poder do Estado capitalista de exercer: os campos de

concentraç‹ o s‹o uma invenç‹o moderna, no sentido em que mate-

rializam a mesma matriz espacial de poder que o territ—io nacio-

nal. Esses campos s‹o

a

forma de reclus‹o dos fora-das-naç› es,

antinacionais exatamente,

no seio do pr—rio territ—io nacional,

a interiorizaç‹o das fronteiras no seio do espaço nacional:

é

isso

que permite

a

noç‹o moderna de inimigo "interno". Se esse territ—

rio acompanha

talou

qual configuraç‹o e topografia exatas, isso

depende de toda uma série de fatores hist—icos (econômicos, polí -

ticos, lingü’sticos etc.): mas o que importa aqui, é o surgimento des-

ses territ—ios e dessas fronteiras no sentido moderno. Esse territ—io

toma-se nacional e constitui assim um elemento da naç‹o modema

sob o ‰gulo do Estado.

Para compreender essa última proposiç‹o, é preciso levar em

conta o fato de que esse territ—io é apenas um dos elementos da

naç‹o modema e a relaç‹o do Estado capitalista com a tradiç‹o his-

t—ica e com

a

lí ngua. Consideremos por hora que esse espaço-terri-

t—io serial, descont’nuo e segmentado, se implica as fronteiras, le-

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vanta também o novo problema de sua

homogeneizaç‹ o

e de sua

unificaç‹ o: seria também

o

papel do Estado na unidade nacional.

As fronteiras e o territ—io nacional n‹o s‹o anteriores ˆ unificaç‹o

disso que lhes enquadram: n‹o existe previamente alguma coisa que

esteja dentro e que é preciso unificar depois. O Estado capitalista

n‹o se

limita

a aperfeiçoar a unidade nacional, ele se constitui quan-

do fundamenta essa unidade, ou seja a naç‹o modema. O estado es-

tabelece as fronteiras desse espaço serial no pr—rio movimento que

unifica e homogeneiza o que essas fronteiras delimitam. ƒ dessa

maneira que esse territ—io toma-se nacional, que ele tende a se con-

fundir com o Estado-naç‹o e que a naç‹o modema tende a encobrir

o Estado, e isso em duplo sentido: encobrir o Estado existente ou

instituindo-se como Estado autônomo e constituir-se como naç‹o

modema ao criar seu pr—rio Estado

(jacobinismo

e

separatismo,

dois aspectos do mesmo fenômeno, da relaç‹o espec’fica da naç‹o

modema com o Estado). O Estado nacional realiza a unidade dos

indiv’duos do povo-naç‹o no mesmo movimento pelo qual forja

sua individualizaç‹o. Ele institui a homogeneizaç‹o polí tico-pública

(o Estado-naç‹o) de dissociaç› es "privadas" no mesmo movimento

pelo qual contribui para sua instauraç‹o, e a lei torna-se a express‹o

da vontade e da soberania nacionais, Esse Estado n‹ o acontece para

unificar um mercado "interno" prévio, mas instaura um mercado na-

cional unificado ao estabelecer as fronteiras disso que toma-se um

dentro em relaç‹o a um fora. Processo que se pode acompanhar no

conjunto dos aparelhos de Estado (econômico, militar, escolar etc.)

e que

j‡

permite uma primeira resposta, embora parcial, a um pro-

blema talvez incontorn‡vel, que Pierre Vilar, melhor que ninguém

formulara: por que o desenvolvimento desigual do capitalismo tem

exatamente como pontos de sustentaç‹o e núcleos principais as for-

maç› es sociais nac’onais?

Se pelo mesmo movimento que o Estado estabelece as frontei-

ras nacionais e unifica o interior, é também por esse movimento que

ele se volta para o exterior dessas fronteiras neste espaço irrevers’-

vel, delimitado embora sem fim, sem horizonte último: extens‹ o de

mercados, do capital, dos territ—ios. Estabelecer fronteiras equivale

a poder desloc‡-las: nesta matriz espacial s—h‡ avanço poss’vel pela

homogeneizaç‹o, assimilaç‹o e unificaç‹o, apenas pela delimitaç‹o

de um interior que continua no entanto tendencialmente em condi-

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ç› es de estender-se ao infmito. Essas fronteiras s—s‹o portanto es-

tabelecidas como as de um territ—io nacional a partir do momento

em que se trata exatamente (para o capital, para as mercadorias) de

franque‡-las. S— se pode deslocar-se neste espaço atravessando

fronteiras: o imperialismo é consubstancial ˆ naç‹o modema na me-

dida em que ele n‹o é mais que inter, ou antes transnacionalizaç‹o

de processos de trabalho e do capital. Esta matriz espacial est‡ an-

corada no processo e na divis‹o social do trabalho: o capital é uma

relaç‹o (capital-trabalho), dizia Marx, e se, por mais desterritoriali-

zado e a-nacional que possa parecer sob suas diversas formas, ele s—

pode se reproduzir ao se transnacionalizar,

é

porque move-se sobre

a

matriz espacial dos processos de trabalho e de exploraç‹o que é

em

si

mesma

intemacional.

Assim, a extens‹o tendencialmente infmita do Estado moder-

no, que se confirma com a posiç‹o das fronteiras nacionais, s—pode

recobrir um deslocamento de fronteiras que significa a assimilaç‹o

e homogeneizaç‹o. As conquistas modernas tomaram um sentido

inteiramente diferente do que no passado: n‹o mais propagaç› es

num espaço cont’nuo e homog•neo que se agrega, mas expans› es

através de brechas que se preenche. Sabe-se o que esse preenchi-

mento quer dizer: homogeneizaç‹o, pelo Estado nacional; de dife-

renças, supress‹o das nacionalidades "no interior" das fronteiras do

Estado-naç‹o, eliminaç‹o das asperezas materiais do terrenoinseri-

do no territ—io nacional. Os genocfdios s‹o, eles também, uma in-

venç‹o modema ligada ˆ espacializaç‹o espec’fica dos Estados-

naç› es: forma de exterminaç‹o pr—ria ˆ constituiç‹o-limpeza do

territ—io nacional que se homogeneiza quando se delimita. As ex-

pans› es e conquistas pré-capitalistas n‹o assimilam nem digerem:

os Gregos e os Romanos, o Islam e as Cruzadas, Átila e Tamerl‹o

matam para abrir caminho num espaço aberto, cont’nuo e j‡ homo-

g•neo, e s‹o assim os massacres indiferenciados pr—rios ao exercí -

cio do poder dos grandes impérios ambulantes. O genoc’dio s—se

toma poss’vel pelo fechamento dos espaços nacionais para aqueles

que se tomaram ent‹o corpos

estrangeiros

no interior das frontei-

ras. S’mbolo? O primeiro genoc’dio da hist—ia moderna, o dos

Ar-

m•nios,

acompanha a fundaç‹o do jovem Estado-naç‹o turco por

Kemal Ataturk, a constituiç‹o de um territ—io nacional sobre os

destroços do império otomano, a obstruç‹o da Porta Sublime, exa-

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tamente. Os genoc’dios e os campos se inscrevem num mesmo es-

paço concentracion‡rio.

V•-se, aqui também, o esboçar-se das ra’zes desse fenômeno

propriamente moderno que

é

o

totalitarismo.

Separar e dividir para

unificar, fracionar para enquadrar, celularizar para englobar, seg-

mentar para totalizar, estabelecer balizas para homogeneizar, indivi-

dualizar para suprimir as alteridades e as diferenças, as ra’zes do to-

talitarismo estão inscritas na matriz espacial materializada pelo

Estado-naç‹o moderna, j‡ presente nas suas relaç› es de produç‹o e

na divis‹o social capitalista do trabalho.

2. A Matriz Temporal e a Historicidade: a Tradiç‹ o

o segundo elemento que entra em linha de conta na constitui-

ç‹o da naç‹o modema diz respeito ao que se designa geralmente sob

o termo "tradiç‹o hist—ica comum". Aqui serei mais breve. Dispo-

mos, ˆ respeito da matriz temporal e da noç‹o de historicidade, de

an‡lises bem mais desenvolvidas por parte dos historiadores. Aqui

também, a questão é a do elo entre essas transformaç› es

e

as das re-

,

laç› es de produç‹o e da divis‹o social do trabalho. A tradiç‹o n‹o

é

absolutamente a mesma, nem tem o mesmo sentido nem a mesma

funç‹o, nas sociedades pré-capitalistas e nas sociedades capitalistas.

A matriz temporal antiga difere certamente daquela da feuda-

lidade medieval, mas elas apresentam pontos fundamentalmente co-

muns. Essas sociedades, nas quais a posse dos meios de produç‹o

pertence sempre ao trabalhador direto e nas quais n‹o ocorre a divi-

s‹o propriamente capitalista do trabalho, cristalizam modos de pro-

duç‹o (escravistas, servil) que apresentam uma reproduç‹ o simples

e n‹ o uma reproduç‹ o ampliada,

espec’fica do modo de produç‹o

capitalista. Suas matrizes temporais s‹o certamente de tempos plu-

rais e singulares: mas cada um desses tempos é continuo, homog•-

neo, reverstvel e repetitivo. Tempo agrí cola, cí vico e polí tico, mili-

tar, senhorial ou clerical, esses tempos múltiplos apresentam as

mesmas caracterí sticas matriciais: fluidos e correntes, sua medida

n‹o é universaliz‡vel pois eles n‹o s‹o, estritamente falando,

men-

sur‡veis, sendo a medida n‹o mais que a codificaç‹o das irregulari-

dades entre segmentos. Nesse continuum temporal homog•neo, se

as seqü•ncias se dividem e se surgem momentos privilegiados (n‹o

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se tratam de sociedades primitivas com filiaç‹o de linhagem), é no

essencial ao sabor do "acaso" (sociedades antigas) ou de presença

da eternidade (cristandade medieval). N‹o existe nem sucess‹o, nem

conex› es, nem acontecimentos.

ƒ

o tempo

presente

que atribui seu

sentido ao

antes

e ao

depois.

Tempo plenamente circular do eterno

retorno do mesmo nas sociedades antigas: o passado se reproduz

sempre no presente que n‹o

é

mais que seu eco, e o decorrer ao

longo do tempo n‹o é um percurso que se afasta do presente porque

o passado é parte integrante do Cosmos. Memorizar pela anamnesis

é reencontrar outras regi› es do ser, a ess•ncia que manifesta o atual,

O presente aqui, nesse tempo homog•neo, revers’vel e contí nuo,

est‡ inserido nas origens, em que a cronologia continua ainda, sen‹ o

um decalque geneal—ico, uma repetiç‹o da g•nese. Retomar, as ori-

gens n‹o é retraçar o hist—ico de uma acumulaç‹o (de experi•ncias,

saberes, acontecimentos) ou de um progresso que levam ao presen-

te, mas atingir a omnisci•ncia primeira. Isso n‹o porque a dimens‹o

de um futuro esteja ausente, mas se esse te/os dos pitag6ricos, se ele

d‡ fim ˆ espiral de ciclos sempre recomeçados, é sim porque ele une

os elos e reúne os começos.

As coisas n‹o se mostram fundamentalmente diferentes na

feudalidade medieval: mais que a depend•ncia de temporalidades do

"tempo natural" pr—rio das sociedades essencialmente agrí colas (as

estaç› es, os trabalhos nos campos etc.) o que importa é a matriz es-

pacial subjacente aos diversos tempos, agrí cola, artesanal, militar,

clerical, que surgem concomitantemente ao tempo singular. Se cada

um desses tempos comporta dataç› es, essas cronologias n‹o s‹o or-

denadas ao longo do tempo divis’vel como segmentos iguais e

o

quadro de refer•ncia de diversos momentos n‹o é o do número. Tra-

tam-se de cronologias significantes de um tempo cont’nuo que é,

sob a égide da religi‹o, um tempo da eternidade esc‰dido pelas sig-

nificaç› es sagradas, pelos atos de piedade e pelo som dos sinos das

missas. Por certo, ancorada nessa matriz temporal,

parecedestacar,

se uma materialidade linear do tempo, diferente daquela, c’clica, do

tempo antigo: a hist—ia tem um iní cio e um fim, situados entre a

Criaç‹o e

O

Julgamento final. Mas trata-se sempre de um tempo

presente: o in’cio e o fim,

o antes

e o

depois

estão inteiramente

co-

presentes na ess•ncia sempre atual do divino. Verdade imut‡vel ou

verdade progressivamente revelada, predeterminaç‹o ou n‹o da sal-

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vaç‹o

individual, trata-se apenas sempre de uma repetiç‹o ou atua-

lizaç‹o das origens. Atingir o fim, é sempre reunir o in’cio e a ir-

reversibilidade do tempo, o que n‹o é mais que uma perspectiva

ilus—ia.

Matrizes temporais presentes nas formas e técnicas do poder

polí tico pré-capitalistas calcadas no corpo do soberano. Esse corpo

polí tico n‹o faz hist—ia, ele est‡ imerso numa hist—ia cont’nua e

homog•nea na qual os sujeitos do poder se identificam ao decalc‡-

la. N‹o existe, propriamente falando, sucess‹ o desses soberanos da

mesma maneira que acontecimentos encadeados, mas uma circula-

ç‹o por transferência de um poderio ininterrupto, por constante rea-

tualizaç‹o do passado:

é

a

translatio imperii.

Esta hist—ia-rememo-

raç‹o n‹o é nunca mais que um desenrolar de genealogias, de

divindades, her—s, dinastias e a representaç‹ o, desta feita, da hist—

ria se faz sobre o modo da crônica. Entre o passado e o presente n‹o

existe percurso mas propagaç‹o por eco, esse presente n‹o passa do

perpétuo anúncio de um futuro que reunir‡ os in’cios. Esta hist—ia

n‹o se faz, mas comemora-se. Historicidade polí tica que n‹o pode

ter relaç› es constitutivas com um territ—io no sentido moderno, na

medida em que esse territ—io-fronteiras n‹o existe ainda em que as

matrizes espaciais pré-capitalistas t•m o mesmo fundamento que

as matrizes temporais pré-capitalistas: esta historicidade polí tica está

calcada no corpo do soberano que n‹o é, em si, soberano de um ter-

rit—io-fronteiras. N‹o existe historicidade nem territ—io no sentido

moderno: os territ—ios pré-capitalistas n‹o t•m historicidade pr—

pria pois o tempo polí tico é o do corpo principesco extens’vel por si

mesmo, retratável e m—el num espaço cont’nuo e homog•neo. Em

outros termos os caracteres pr—rios da matriz espacial e da matriz

temporal de um modo de produç‹o, implicados por suas relaç› es de

produç‹o e por sua divis‹o social do trabalho, determinam as rela-

ç› es que essas matrizes entret•m entre si, o que se designa por um

termo cuja conjunç‹o n‹o é uma soluç‹o mas um problema, o do

"espaço-tempo".

A matriz temporal capitalista é inteiramente diferente, pressu-

posto de novas relaç› es de produç‹o e consubstancial da divis‹o so-

cial capitalista do trabalho. O maquinismo e a grande indústria, o

trabalho em série implicam um tempo

segmentado, serial, dividido

em momentos iguais, cumulativo

e

irreversivel pois orientado para

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o produto e, através dele, para a reproduç‹o ampliada, a acumulaç‹o

capital: em suma, um processo de produç‹o e de reproduç‹o que tem

uma orientaç‹o e uma finalidade, mas n‹o tem fim. Um tempo men-

sur‡vel e estritamente control‡vel pelos rel—ios, cronômetros dos

contramestres, pelos rel—ios de ponto e calend‡rios precisos.

Tempo que, aqui também, estabelece, por sua segmentaç‹o e seria-

Iizaç‹o,

um problema novo, o de sua unificaç‹o e sua universaliza-

ç‹o: dominar o tempo ao relacionar as temporalidades múltiplas

como uma medida homog•nea e única, que n‹o reduz as temporali-

dades singulares (tempo oper‡rio e tempo burgu•s, tempo do econô-

mico, do social, do polí tico) salvo se codifica seus intervalos. Mas

cada temporalidade traduz as caracterí sticas de uma mesma matriz:

e mais ainda (e é isso que escapa a inúmeros autores que insistem na

"universalizaç‹o" do tempo capitalista), é esta matriz temporal que

estabelece, pela primeira vez, as temporalidades singulares como

temporalidades diferenciais, ou seja como variaç› es de ritmo e de

escans‹o de um tempo serial, segmentado, irrevers’vel e cumulati-

vo. Tempo cujos momentos se encadeiam e se sucedem, se totalizam

num resultado, sendo o presente uma transiç‹o do antes para o de-

pois. A historicidade modema é assim de tipo evolutivo e progressi-

vo, a de um tempo que transcorre na medida em que ele se percor-

re, cada momento produzindo o outro num sentido irrevers’vel, num

encadeamento de acontecimentos voltados para um futuro sempre

renovado.

Antes de chegar ao Estado-naç‹o nesse contexto, abrirei um

par•ntesis. O que est‡ em questão aqui é a matriz material do tempo

capitalista, e n‹o de sua representaç‹o. Esta matriz d‡ lugar a repre-

sentaç› es te—ico-ideol—icas do tempo e da hist—ia, mais particu-

larinente ˆ teorizaç‹o do tempo na filosofia da hist—ia (que nasce,

no sentido exato, na sociedade burguesa) e nas ditas ci•ncias huma-

nas. O que levanta por seu lado um duplo problema.

1. Se essa matriz temporal do capitalismo engendra diversas

representaç› es ideol—icas da Hist—ia, a historicidade unilinear,

evolucionista, progressiva e teleol—ica da filosofia burguesa da his-

t—ia, ela permite também, pela primeira vez,

a construç‹ o de um

conceito cientifico da hist—ia, o que foi pr—rio do pensamento de

Marx e, também, de inúmeros historiadores modernos. J‡ observa-

110

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se o conhecid’ssimo problema que surge aqui: um campo epistemo-

l—ico fundado numa materialidade hist—ico-social determinada,

que é aqui a matriz temporal implicada nas relaç› es de produç‹o ca-

pitalistas, permite a emerg•ncia de elementos cient’ficos de conhe-

cimento que, como tais, transcendem esse campo. O capitalismo

permitiu a constituiç‹o de uma ci•ncia da hist—ia que n‹o se limita

ao conhecimento exclusivo do capitalismo. O marxismo n‹o

é

ex-

clusivamente teoria do capitalismo, assim como a psican‡lise n‹ o é

exclusivamente teoria do inconsciente na sociedade capitalista, pois

os elementos e o objeto da ci•ncia n‹o se reduzem ˆs suas condi-

ç› es, quaisquer que sejam, de possibilidade e de constituiç‹o. Por

que precisamente o capitalismo, fundamentado na extraç‹o da mais-

valia, permitiu a construç‹o do conceito cient’fico da hist—ia, é uma

questão exaustivamente abordada e que n‹o tratarei aqui. embora

me pareça que ela exige mais atenç‹o quanto ao papel da matriz

temporal do capitalismo, no sentido aqui entendido, como condi-

ç‹o de possibilidade da ci•ncia da hist—ia. Ora, da mesma maneira

que n‹o abordo aqui as representaç› es te—ico-ideol—icas da Hist—

ria, n‹o trato do conceito cient’fico da hist—ia, mas da materialida-

de desta matriz temporal.

2. Se o conceito e o objeto da hist—ia como ci•ncia, logo do

marxismo, n‹o

é,

da mesma maneira que qualquer outra ci•ncia, um

campo de validade estritamente circunscrito por suas condiç› es de

emerg•ncia hist—icas,

é

porque eles n‹o se reduzem ˆs representa-

ç› es ideol—icas ambientes - ˆ filosofia da Hist—ia, Das Luzes ˆ

Hegel - que t•m no entanto, também elas, as mesmas condiç› es, e

fazem parte, portanto, da mesma configuraç‹o epistemol—ica. Po-

rém, sabe-se também hoje em dia,

o corte ci•ncia-ideologia est‡

longe de possuir a natureza radical que lhe tEnhamosatribuido h‡

alguns anos. A teoria da hist—ia mesmo no Marx da "maturidade"

apresenta certos elementos comuns com

a

representaç‹o ideol—ico-

filos—ica da Hist—ia de sua época. O investimento da matriz tem-

poral capitalista como evolucionismo escatol—ico. como progressi-

vismo racionalizante, como linearidade un’voca, como historicismo

humanista, e fico por aqui, n‹o est‡ simplesmente presente nos arre-

dores do "núcleo" da teoria da hist—ia de Marx, e n‹o s‹o por outro

lado simples desvios e pervers› es desta teoria pelos ep’gonos (a 2'

e a 31 Internacional) : elas estão presentes na teoria de Marx.

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A quest‹o vai mais além: n‹o apenas como Marx conseguiu

construir sua teoria da hist—ia a partir do campo epistemol—ico de

sua época, mas como distinguir, no seio de sua teoria, os funciona-

mentos e a articulaç‹o da ci•ncia da hist—ia e das representaç› es

ideol—icas.

Pois problema,

e

de monta, há

contra a tend•ncia atual que,

ora (com os "novos fil—ofos") n‹ o v• em Marx mais que uma répli-

ca do racionalismo e do positivismo das Luzes; ora, ainda, com Fou-

cault, reduz a validade, o objeto e o campo de toda ci•ncia ˆs suas

condiç› es, quaisquer que sejam, de emerg•ncia; no caso do marxis-

mo a determinadas modalidades de exerc’cio de poder - as disci-

plinas - que, para Foucault, é o que substitui as "condiç› es". Con-

tra, em seguida, os pretendidos guardi‹es do dogma marxista que se

recusam a ver o problema na pr—ria teoria de Marx.

Retomemos o nosso problema: a matriz temporal capitalista,

esse tempo segmentado, serial e dividido, está

j‡

implicado na ossa-

tura institucional especí fica do Estado e seus diversos aparelhos

(exército, escola, burocracia, pris› es). O Estado moderno materiali-

za igualmente essa matriz na adaptaç‹o dos sujeitos sobre os quais

seu poder se exerce e nas técnicas de exerc’cio de poder, notada-

mente nos procedimentos de individualizaç‹o do povo-naç‹o. Ora,

esse tempo segmentado, serial e dividido levanta o novo proble-

ma de sua unificaç‹o: aqui ainda, esse ser‡ o papel do Estado. O

Estado moderno deve assegurar o domí nio e o controle do: tempo

ao estabeiecer a norma e a medida, em suma o quadro referencial

das variaç› es das temporalidades singulares: ele regulaos diversos

avanços e recuos e enquadra seus desvios. O desenvolvimento desi-

gual pr—rio a cada formaç‹ o (no econômico, na polí tica, no ideol—

gico, e entre elas) do Estado. O Estado unifica os setores da forma-

ç‹o capitalista no sentido de que também é o c—igo' de suas

medidas decaladas. A formaç‹o social capitalista, o Estado-naç‹o, é

também um processo homogeneizado pelo Estado.

Pode-se compreender assim o sentido novo da tradiç‹o hist—

rica na constituiç‹o da naç‹o moderna, a relaç‹o desta tradiç‹o com

o Estado e o fato de que esta naç‹o tende a coincidir com o Estado

moderno sempre em duplo sentido: coincidir com o Estado existen-

te ou organizar-se como Estado autônomo e constituir-se como na-

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ç‹o modema ao criar seu pr—rio Estado, sendo o jacobinismo e se-

paratismo, aqui também, dois aspectos de uma mesma realidade, da

relaç‹o particular da naç‹o moderna com o Estado, A "tradiç‹o" n‹o

tem absolutamente o mesmo sentido que no pré-capitalismo, pois

o

antes

e o

depois

situam-se em matrizes inteiramente diferentes.

Aqui, o presente hist—ico n‹o passa de transiç‹o entre o antes e o

depois, o passado n‹o est‡ copresente no atual mas pedaços reuni-

d— que v•m a ter um sentido novo no futuro. A tradiç‹o n‹o é mais

que a comemoraç‹o de um passado que inclui o depois. verdade de

uma historicidade revers’vel e orientada para o grande começo, re-

petiç‹o

e recomeço das origens. A tradiç‹o torna-se ora o que acele-

ra, ora o que freia: ela recobre uma sucess‹o de momentos que pro-

duzem uma hist—ia irrevers’vel escandida pelo Estado. A unidade

desses momentos hist—icos, a orientaç‹o de sua sucess‹o, s‹o

açambarcados pelo Estado moderno que n‹o tem

legitimaç‹o

de ori-

gem no corpo soberano, mas uma série de fundaç› es sucessivas no

povo-naç‹o cujo destino ele representa. Esse Estado realiza um tra-

balho de individualizaç‹o e unificaç‹o, constitui o povo-naç‹o no

sentido também em que representa sua orientaç‹o hist—ica, desig-

na-lhe objetivo e traça o que vem a ser uma via. Nessa historicida-

de orientada embora sem termo, o Estado representa uma eternida-

de que ele produz por auto-engendrarnento. Esse Estado organiza a

naç‹o em marcha e tende assim a monopolizar a tradiç‹o nacional

quando cria o momento de um futuro que ele designa, e ao estocar

.a mem—ia do povo-naç‹o. Uma naç‹o na era capitalista sem Esta-

. do pr—rio é uma naç‹o dissipada de sua tradiç‹o e de sua hist—ia,

pois o Estado-naç‹o 'moderno significa também diluiç‹o das tradi-

ç› es, hist—ias e mem—ias das naç› es dominadas inclu’das em seu

processo.

ƒ

dessa maneira que se tem de entender as observaç› es

(sem dúvida amb’guas) de Engels, segundo as quais as naç› es que

n‹o t•m Estado pr—rio tomam-se, na era capitalista, "povos sem

hí st› ria . Esse Estado instaura a naç‹o modema ao eliminar os ou-

tros passados nacionais e ao fazer variaç› es de sua pr—ria hist—ia:

o imperialismo moderno é igualmente homogeneizaç‹o de seqü•n-

cias temporais, assimilaç‹o de hist—ias pelo Estado-naç‹o. As rei-

vindicaç› es de autonomia nacional e de Estado pr—rio da era mo-

dema significam, na historicidade capitalista, reivindicaç› es de uma

hist—ia pr—ria.

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Certamente, n‹o é o Estado que é o sujeito da hist—ia real:

esta é um processo sem sujeito, o processo da luta de classes. Mas o

que se pode compreender disso é por que essa hist—ia real, no en-

tanto universaliz‡vel e mundializ‡vel sob o capitalismo, tem preci-

samente como núcleos e como momentos .fundamentaí s os Estados-

naç› es modernas, por que a hist—ia do proletariado internacional é

segmentada e escandida pelas hist—ias das classes oper‡rias nacio-

nais. O que n‹o se depreende de mecanismos ideol—icos mas do

papel desses Estados-naç› es na organizaç‹o material da historicida-

de capitalista. ƒ poss’vel assim retraçar as raí zes desse fenômeno

propriamente moderno que é o totalitarismo. Dominar e unificar o

tempo ao constitu’-lo como instrumento de poder, totalizar as his-

toricidades ao apagar as diferenças, serializar e segmentar os mo-

mentos para orient‡-los e reuni-los, dessacralizar a hist—ia para

englob‡-Ia, homogeneizar o povo-naç‹o ao forjar e ao apagar seus

pr—rios passados: as premissas do totalitarismo moderno existem

na matriz temporal inscrita no Estado moderno,

j‡

implicada pelas

relaç› es de produç‹o e pela divis‹o social capitalista do trabalho.

Isso se toma mais n’tido se se constata que

é

esse Estado que

instaura a relaç‹o particular entre a

hist—ia

e o

territ—io,

que opera

uma relaç‹o particular entre a matriz espacial e a matriz temporal

em que a naç‹o modema permite a interseç‹o e é também sua en-

cruzilhada. O Estado capitalista estabelece as fronteiras ao constituir

o que est‡ dentro, o povo naç‹o, quando homogeneiza o antes e o

depois do conteúdo desse enclave. A unidade nacional, a naç‹o mo-

dema, toma-se assim a historicidade de um territ—io e territorializa-

ç‹o de uma hist—ia, em suma a tradiç‹ o nacional de um territ—io

materializado no Estado-naç‹o: as balizas do territ—io tomam-se re-

ferenciais da hist—ia traçadas no Estado. As limitaç› es implicadas

na constituiç‹o do povo-naç‹o moderno n‹o s‹o tão terrí veis porque

s‹o ao mesmo tempo fragmentos de uma hist—ia totalizada e capi-

talizada pelo Estado. Os genoc’dios s‹o eliminaç› es do que vem a

ser "corpos estranhos" no territ—io e na hist—ia nacional, exclus› es

fora do espaço e fora do tempo. O grande conf'mamento s—se toma

assim porque ele é também divis‹o e unificaç‹o de um tempo serial

e segmentado: os campos de concentraç‹o s‹o uma invenç‹o moder-

na no sentido também que a capa-fronteira se fecha sobre os "anti-

nacionais" que est‹o suspensos no tempo, suspensos da historicida-

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de nacional. As reivindicaç› es nacionais, na era moderna, de um Es-

tado pr—rio, s‹o reivindicaç› es de um territ—io pr—rio que signi-

ficam assim reivindicaç› es de uma hist—ia pr—ria. As premissas do

totalitarismo moderno existem n‹o apenas na matriz espacial e na

matriz temporal que se consolidam no Estado moderno, mas tam-

bém, e principalmente, em sua relaç‹o concentrada pelo Estado.

A constituiç‹o da naç‹o modema reside enfim na relaç‹o entre

o Estado moderno e a lingua.

Basta indicar simplesmente que a

construç‹o, pelo Estado moderno, de uma l’ngua nacional, n‹o se

reduz nem ao problema da utilizaç‹o social e polí tica desta lí ngua

nem ao problema de sua normatizaçao e regulamentaç‹o, pelo Esta-

do, nem ao da destruiç‹o que ela implica ˆ s lí nguas dominadas no

seio do Estado-naç‹o. A l’ngua nacional

é

uma l’ngua profundamen-

te reorganizada pelo Estado em sua pr—ria estrutura. Lí ngua rearti-

culada pela relaç‹o com as matrizes espaciais e temporais capitalis-

tas vazadas do molde institucional do Estado que cristaliza o

trabalho intelectual em sua divis‹o capitalista com o trabalho ma-

nual. Em suma, a lí ngua comum como elemento constitutivo da

naç‹o moderna n‹o é uma simples decis‹o pelo Estado de uma l’n-

gua que sofre, por isso, simples distorç› es instrumentais. mas signi-

fica uma recriaç‹ o da l’ngua pelo Estado. O imperialismo

lingü’sti-

co pr—rio da l’ngua oficializada de uma naç‹o modema n‹o reside

apenas nas formas de sua 'utilizaç‹o, porém

j‡

est‡ presente na sua

estruturaç‹o.

3. A Naç‹ o e as Classes

o

que se trata de considerar agora, como nos casos preceden-

tes, é a articulaç‹o dessas an‡lises com uma an‡lise da naç‹o em ter-

mos de luta de classes.

Ora, n‹o se trata, nesse caso também, de duas perspectivas dis-

tintas pois trata-se de objetos realmente heterog•neos. As matrizes

espacial e temporal s‹o pressupostos de relaç› es de produç‹o ape-

nas porque elas se materializam a’ como luta de classes: surgem his-

toricamente como produto desta luta. Mas, sob esse aspecto, elas

n‹o s‹o o produto de uma classe-sujeito da hist—ia, elas s‹o a re-

sultante de um processo: a hist—ia é o processo da luta de classes.

A naç‹o modema n‹o

é

portanto a criaç‹o da burguesia, mas a re-

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sultante de uma relaç‹ o de forças entre as classes sociais "moder-

nas", na qual est‹o igualmente

em jogo

diversas classes.

Aqui surge um segundo problema: a configuraç‹o hist—ica

concreta de talou qual naç‹o e de

tal

ou qual Estado modernos, as

formas de sua relaç‹o dependem das particularidades hist—icas de

talou

qual processo de luta de classes e relaç‹o de forças. Elas sur-

gem do mesmo modo como variantes do Estado e da naç‹o moder-

nas, logo também de suas matrizes espacial e temporal, sob a condi-

ç‹o entretanto de precisar que n‹o se trata, em todos esses casos, de

uma ess•ncia realmente preexistente e simplesmente diversificada

em suas manifestaç› es singulares, de um tipo ideal diversamente

concretizado. Essas matrizes, assim como o Estado e a naç‹o mo-

dernas, s—existem materializadas nas formaç› es sociais concretas.

Mas se essas formaç› es e processos de luta de classes apresentam

alguma coisa em comum (a mesma matriz espaço-temporal), é por-

que se situam, até o ponto de ruptura, no terreno de um .mesmo

modo de produç‹o cujas modificaç› es s‹o igualmente momentos de

sua reproduç‹o ampliada.

Assim, n‹o apenas essas matrizes espacial e temporal reco-

brem, como no caso da naç‹o modema, uma

significaç‹ o

diferente

conforme as diferentes classes em luta, mas existem da mesma ma-

neira como variantes nas pr‡ticas diferenciadas dessas classes. Exis-

te uma espacialidade e uma historicidade burguesas, uma espaciali-

dade e uma historicidade oper‡rias. No entanto elas s‹o variantes de

uma mesma matriz no sentido, desta vez, que surge como a resultan-

te hist—ica do processo de luta de classes e da relaç‹o de forças, e

que esse processo

é

(e como é) um processo de luta numa socieda-

de capitalista. Certamente, isso

é

bastante conhecido, as relaç› es de

produç‹o e a divis‹o social do trabalho fazem da classe oper‡ria isso

que comumente se designa como classe "portadora" da positivida-

de, do futuro hist—ico. Suas pr‡ticas,

j‡

no capitalismo, trazem isso

que se apresentam como "germes" de outras relaç› es sociais, de ou-

tras matrizes espacial e temporal, de uma outra naç‹o,

e

a hist—ia

caminha sempre ao lado da classe oper‡ria. Mas o que importa aqui,

é

um problema diferente: a luta da classe oper‡ria n‹o

é

um autode-

senvolvimento de um circuito fechado, mas existe somente como

termo de uma relaç‹o, a de sua relaç‹o com a burguesia. A hist—ia

da classe oper‡ria,

é

a hist—ia de sua luta contra burguesia: colocar-

116

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se do ponto de vista da classe oper‡ria é colocar-se do ponto de vista

de sua luta contra a burguesia.

Tudo isso permite explicar inicialmente a relaç‹o constitutiva

de cada burguesia com a naç‹o, relaç‹o que segue ao mesmo tempo

os ritmos e as fases da acumulaç‹o e da reproduç‹o ampliada do ca-

pital, e as grandes linhas de modificaç‹o da polí tica da burguesia.

A naç‹o moderna porta o selo e a marca do desenvolvimento da bur-

guesia e das relaç› es entre suas fraç› es. Isso se liga ao mesmo tem-

po

ˆ

transiç‹o do capitalismo na acumulaç‹o primitiva do capital e

ao papel da burguesia mercantil na formaç‹o da naç‹o,

o,

est‡gio do

capitalismo concorrencial e o est‡gio do imperialismo inclusive em

sua fase atual de internacionalizaç‹o do capital. As transformaç› es

das relaç› es de produç‹o capitalistas marcam as transformaç› es da

naç‹o, e igualmente as do nacionalismo burgu•s. Ora, mesmo na

fase atual caracterizada entretanto pela internacionalizaç‹o do capi-

tal, a naç‹o modema, decerto transformada, continua contudo, para

a burguesia, a focalizaç‹o de sua reproduç‹o que toma ex atam ente

a forma de uma inter ou transnacionalizaç‹o do capital. Esse núcleo

s—ido da naç‹o moderna reside no núcleo invari‡vel das relaç› es de

produç‹o capitalistas exatamente.

A relaç‹o da burguesia com a naç‹o difere segundo suas diver-

sas fraç› es (burguesia nacional, burguesia internacionalizada e bur-

guesia interior) e estabelece-se pela perspectiva do Estado,

Esse

Estado não

é

um Estado qualquer: é um Estado que possui uma na-

tureza de classe, um Estado burgu• s que constitui a burguesia como

classe dominante. Porém, também nesse caso. n‹o existem dois Es-

tados, um primeiro Estado antes de sua natureza de classe, que or-

ganiza uma naç‹o modema prévia

ˆ

relaç‹o desta naç‹o com a bur-

guesia, sobre o qual viria enxertar-se um segundo Estado de classe.

o Estado burgu•s, açambarcando esta naç‹o em proveito da burgue-

sia. Situar os fundamentos desse Estado e da naç‹o modema nas

relaç› es de produç‹o e na divis‹o social do trabalho, é mostrar que

esse Estado possui uma materialidade pr—ria e que é por isso

que ele tem uma natureza de classe.

ƒ

precisamente um Estado na-

cional que é um Estado burgu•s, n‹o simplesmente, nem somente,

porque a burguesia usa-o a fim de instrumentalizar a naç‹o a seu

proveito, mas porque a naç‹o modema, o Estado nacional, a burgue-

sia t•m o mesmo solo de constituiç‹o que determina suas relaç› es.

117

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N‹o h‡ dúvida de que a polí tica burguesa com respeito ˆ naç‹o n‹o

seja submetida aos acasos de tais ou quais de seus interesses preci-

sos: a hist—ia da burguesia oscila permanentemente entre a identifi-

caç‹o com, e a traiç‹o da, naç‹o, pois esta naç‹o n‹o tem o mesmo

sentido para ela que tem para a classe oper‡ria e as massas popula-

res. Mas a naç‹o modema n‹o é alguma coisa que a burguesia possa.

a seu bel-prazer. recuperar ou deixar abandonar por "seu" Estado.

Esta naç‹o est‡ inscrita nesse Estado. e é esse Estado nacional que

organiza

a

burguesia como classe dominante.

Mas. seguramente, o verdadeiro problema é

o da relaç‹o da

classe oper‡ria com a naç‹o modema: relaç‹o profunda, largamente

subestimada, pelo marxismo, que tendeu permanentemente a exa-

min‡-la ora sob o ‰gulo da simples dominaç‹o ideol—ica da bur-

guesia (esse foi particularmente o caso da 3

1

Internacional), ora sob

o ‰gulo da participaç‹o de cada classe oper‡ria na cultura nacional

(austro-marxismo). Ora, n‹o

é

o caso de se colocar em dúvida os

efeitos ideol—icos do nacionalismo burgu•s sobre a classe oper‡ria,

mas de considerar que eles n‹o s‹ o mais que um dos aspectos, muito

parcial, do problema. Se a exist•ncia e as pr‡ticas da classe oper‡ria

trazem j‡ em

si

um defasamento hist—ico da naç‹o em seu sentido

moderno, elas s—podem se materializar sob o capitalismo como va-

riante oper‡ria desta naç‹o. A especialidade e a historicidade de

cada classe oper‡ria s‹o uma variante de sua pr—ria naç‹o, igual-

mente porque compreendidas em suas matrizes espacial e temporal,

e porque s‹o parte integrante desta naç‹o como resultante da relaç‹o

de força entre a classe oper‡ria e a burguesia.

ƒ

na medida em que

existem classes oper‡rias que ocorre a internacionalizaç‹o da classe

oper‡ria

e,

também, internacionalismo oper‡rio: começa-se a com-

preender isso, e h‡ que entender essa proposiç‹o num sentido radi-

cal. N‹o porque haja um internacionalismo-internacionalizaç‹o ope-

r‡rios primeiros que revestem em seguida formas nacionais. uma

ess•ncia supra- ou a-nacional que se manifesta num quadro nacional

ou que simplesmente se concretiza em singularidades nacionais.

O processo de trabalho capitalista que implica a cooperaç‹o ampliada

(a internacionalizaç‹o da classe oper‡ria) pressup› e a materialida-

de nacional e estabelece assim as bases objetivas desta cooperaç‹o

como

internacionalismo

oper‡rio. A tend•ncia atual ˆ mundializa-

.

ç‹o dos processos e da divis‹o social do trabalho é sempre, como é

118

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se oper‡ria, mas também da classe oper‡ria contra a burguesia.

Assim como a cultura, a l’ngua ou a hist—ia nacionais, o Estado é

um campo estratégico revolvido, de lado a lado, por lutas e resist•n-

cias oper‡rias e populares que nele est‹o inscritas, ainda que de ma-

neira deformada, e que irrompem sempre a capa de sil•ncio que o

Estado coloca sobre a mem—ia oper‡ria. O Estado nacional como

meio e objetivo das lutas oper‡rias, é também reapropriaç‹ o pela

classe oper‡ria de sua pr—ria hist—ia. O que certamente n‹o pode

ser feito sem a transformaç‹o do Estado, mas que coloca a quest‹o

de uma determinada perman•ncia desse Estado, sob seu aspecto na-

cional, na transiç‹o para o socialismo; perman•ncia n‹o apenas no

sentido de uma sobreviv•ncia lamentável, mas no sentido também

de uma necessidade positiva para uma transiç‹o para o socialismo.

Essas observaç›es est‹o longe de esgotar as quest› es, e restam

ainda inúmeras, particularmente:

a) a relaç‹o, muito particular, com

a naç‹o das outras classes sociais de uma formaç‹o capitalista (a

pe-

quena burguesia antiga e nova, as classes do campesinato) e catego-

rias sociais tais como a burocracia de Estado; b) o sentido polí tico

concreto que, conforme as fases do capitalismo e est‡gios, confor-

me as diversas conjunturas também, reveste a naç‹o para a classe

oper‡ria, e sua luta, especialmente o papel crucial que encobre, na

fase atual do imperialismo, a luta pela independ•ncia nacional nos

pa’ses dominantes, a luta de libertaç‹o nacional nos pa’ses domina-

dos; c) a ideologia nacional oper‡ria como express‹o justa do inter-

nacionalismo e como efeito sobre a classe oper‡ria do nacionalismo

burgu•s: esse nacionalismo burgu•s n‹o poderia ter no entanto sobre

a

classe oper‡ria os maciços e terrí veis efeitos ocorridos, conduzin-

do-a aos massacres das guerras nacionais-imperialistas, se n‹o re-

pousasse na materialidade da constituiç‹o e da luta da classe oper‡-

ria, e se n‹o se articulasse no aspecto autenticamente oper‡rio da

ideologia nacional.

N‹o entrarei no exame dessas quest› es: as observaç› es prece-

dentes indicam o caminho a seguir para seu tratamento. Elas permi-

tem explicar a extraordin‡ria perman•ncia e resist•ncia da naç‹o

modema, através de todas as modificaç› es de diversos sistemas de

organizaç‹o do espaço polí tico.A naç‹ o modema s—pode, devido a

seu alicerce nas matrizes materiais, ser superada pela subvers‹o ra-

dical das relaç› es de produç‹o e da divis‹o social do trabalho que

120

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induzem essas matrizes. O que ajuda a explicar as formas pelas

quais se reveste a questão nacional nos pa’ses do Leste: n‹o que a

naç‹o possa, ou deva, ser abolida sob o socialismo, mas porque as

fabulosas formas de

opress‹ o nacional que caracterizam tanto as re-

laç› es entre esses paí ses (a URSS e as outras democracias popula-

res) e cada um desses paí ses (opress‹o de suas minorias nacionais),

apenas remeteriam, por um lado embora indubitavelmente funda-

mental, aos "aspectos capitalistas" de suas relaç› es de produç‹o, de

sua divis‹o social de trabalho, de seus Estados.

121

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NOTAS

1. E. Pashukanis, La théorie générale du droit et le marxisme, 1970

(ed. franc.); G. Della Volpe, Rousseau e Marx, 1964; U. Cerroni, Marx e

ii

diritto moderno, 1963; H. Lefêbvre, Dei I Etat, obra em diversos volumes

editados a partir de 1976. Certamente, n‹o pretendo com isso subestimar o

valor da obra de Lefêbvre: seu último livro, especialmente, comporta an‡-

lises not‡veis. Enfim. esta linha de pesquisa

é

também a dos trabalhos de

J.

Baudril/ard.

2. J. H’rsch, Staatsapparat und Reproduktion des Kapitals, 1974, e

sua contribuiç‹o na obra coletiva, A crise do Estado, Graal, 1978, editado

sob minha direç‹o. A problem‡tica da Ableitung na Alemanha Federal

é

bastante antiga e encontra-se alguns de seus representantes na obra coleti-

va

L' Etat contemporaine et le marxisme,

1975, editado sob a orientaç‹o de

J.M. Vincent.

ƒ

mais recente na Inglaterra e nos Estados Unidos: ver a

quantidade de contribuiç› es para as revistas Kapitalistate, Insurgent Sacio-

logist (Estados Unidos), Capital

and

Class (Inglaterra), e também os recen-

tes trabalhos de Holloway, Piccioto, Hindess, Hirst etc. Observo, afinal,

que, na França, as crí ticas de "politicismo" com refer•ncia a minhas obras

prov•m principalmente da parte dos autores agrupados em tomo da revis-

ta

Economie Politique.

3. Le Seuil, 1974.

4. Reafirmo o que disse na Advert•ncia: n‹o farei, a menos que o cite

expressamente, refer•ncias precisas aos cl‡ssicos do marxismo.

A

esse res-

peito. elas est‹o presentes em meu texto, Classes Sociais

...

5.

Principalmente em Gli

lntellettuali

e l'organizzazione de//a Cultu-

ra, Einaudi, 1966,

6. K. Marx, Le capital, Ed. Sociales, 1. I, p. 8.5.

7.

Ibid,liv.

I,

p. 990. Destaco, entre outras, as not‡veis obras de J. M.

Brohrn,

Corps et politique,

1975, e

Sociologte politique du sport.

8.

M. Foucault, Vigiar e Punir, Editora Vozes, Surveiller et Punir,

1975, pp. 194, 195 et passim,

9.

Artigo citado

in Critique,

p. 1.210.

,.

10. Em sua

cr’tica

da Hist—ia da loucura, in

L'

écriture et la diffe-

rence.

122

II.

Vigiar e Punir

(Surveiller et Punir, p. 208).

12. Ibid (p. 208).

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13. Pouvoir Politique,

IA

ediç‹o, p. 317; Poder pol’tico.

14. Ibid

(p.

237).

15. Maspero, 1970.

16. Maspero, 1975.

17. A vontade de saber (pp. 117-,118).

18. R. Castel, O psicanalismo, Ediç› es Graal (p. 288),

19. De Fr. Lyotard: (L'economie libidinale, 1974) a

P.

Legendre

(L'amour du censeur" 1974), passando por R. Scherer, a lista seria longa.

20. Ph. Arí és. Histoire de la mort en Occident, 1975, e os trabalhos

de L.

V.

Thomas.

21.

Jouir du pouvoir,

1976.

22. Foi também o meu caso. em meu primeiro texto: Nature des cho-

ses et droit,

LGDJ, 1966. Texto esgotado h‡ muito tempo. N‹o se inquie-

tem, pois n‹o tenho intenç‹o de reeditá-lo.

23. Ver igualmente. na França, os trabalhos de M. Chemillier-Gen-

dreau, E.; Pí sier-Kouschner, M. Miaille, Fr, Dernichel, J.-P. Collin, G. La-

bica etc.

24. Na França, os trabalhos de G. Haupt, M. Lowy, M. Revérioux,

M. Rodinson, P. Villar, etc.

. 25. L. Febvre, La

terre et

I

evolution humaine,

1922; P. Lév•que e

P.

Vidal-Naquet, Clisthéne l'Athénien, 1964; P. Lévéque,

L'aventure grec-

que.

1964; J.-P. Vemant,

Mythe et pensée chez les Grecs,

1974; J, Le Goff,

LA civilisation de I'Occidente médiéval, 1972;

R.

Mandrou,/ntroducrion ˆ

la France moderne, 1961; F. Braudel, Civilisation matérielle et capitalis-

me,

1967; por fim, destaco os trabalhos da equipe da revista

Hérodote,

e a

obra de Fr. Chatelet,

LA naissance de /' histoire,

1975, "10/18".

26. M. Serres, Discours et parcours, in Critique, abril 1975.

27. O

anti-ƒdipo, op. cit. (p. 239).

28. Em sua contribuiç‹o ˆ obra coletiva,

Faire l'Histoire,

1974. sob

a direç‹o de

J.

Le Goff e P. Nora,

t I

29. Die Polendebatte in Frankfurt, in Neue Reinische Zeitung,

sept.

3, 1848. Aus dem literarischen Nachlass von K. Marx. Fr. Engels und

F.LAssale,

editado por Fr. Mehring (1902),

Ill,

238.

123

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SEGUNDA PARTE

AS LUTAS POLêTICAS:

O ESTADO, CONDENSA‚ Ì O

DE UMA RELA‚ Ì O DE FOR‚ AS

Consideramos até aqui a necessidade de relacionar o arcabou-

ço institucional do Estado com as relaç› es capitalistas de produç‹o e

sua divis‹o social do trabalho. O estabelecimento dessa relaç‹o

j‡

era

uma primeira aproximaç‹o do Estado com as classes sociais e a luta

de classes.

ƒ esse último ponto que desenvolverei agora. fazendo uma an‡-

lise do Estado em termos de

dominaç‹ o politica

e de

luta

politica.

Uma teoria do Estado capitalista n‹o poderia construir seu objeto pela

refer•ncia apenas ˆ s relaç› es de produç‹o, como se a luta de classes

s—interviesse nas formaç› es sociais como simples fator de variaç‹o

ou de concretizaç‹o desse, Estado, tipo ideal, em

talou

qual Estado

concreto. Se essa teoria n‹o for um simples percurso ou traçado da ge-

nealogí a do Estado capitalista, ela s—é poss’vel se explicar a reprodu-

ç‹o hist—ica desse Estado: Estado de tal ou qual estágio ou fase do

capitalismo (Estado liberal, Estado intervencionista, estatismo autori-

tário atual), formas de Estado de exceç‹o (fascismos, ditaduras mili-

tares, bonapartismos), formas de regime desse Estado. Uma teoria do

Estado capitalista deve poder explicar as metamorfoses de seu objeto.

Isso traz, inicialmente, ˆ baila as transformaç› es das relaç› es

de produç‹o. Estabelecer a relaç‹o do Estado com essas relaç› es

significa desde

j‡

que as transformaç› es do Estado em sua periodi-

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zaç‹o hist—ica fundamental (est‡gios e fases do capitalismo: est‡-

gios concorrencial e imperialista - capitalista monopolista, fases

desse último) levam a substanciais modificaç› es das relaç› es de

produç‹o e da divis‹o social do trabalho capitalistas. Se seu núcleo

persiste. que

é

o que faz com que o Estado continue capitalista, n‹o

impede que eles passem por importantes transformaç› es ao longo da

reproduç‹o do capitalismo.

Mas essas transformaç› es sugerem ent‹o modificaç› es na

constituiç‹o e reproduç‹o das classes sociais, de sua luta e da do-

minaç‹o polí tica. Isso

é

v‡lido para a periodizaç‹o fundamental do

Estado segundo os est‡gios e fases do capitalismo: essas transfor-

maç› es implicam em importantes modificaç› es no campo da domi-

naç‹o polí tica. Isso

é

v‡lido igualmente para as formas e regimes

precisos de que se reveste o Estado no seio de um mesmo estágio

ou de uma mesma fase do capitalismo, segundo as diversas forma-

ç› es sociais:

talou

qual forma de parlamentarismo, de presidencia-

lismo, de fascismo ou de ditadura militar. As relaç› es de cl‡sse

est‹o presentes assim tanto nas transformaç› es do Estado segundo

os est‡gios ou fases do capitalismo, ou seja nas transformaç› es das

relaç› es de produç‹o/divis‹o social do trabalho que elas implicam,

como nas formas diferenciais de que se reveste o Estado num est‡-

gio ou fase marcados pelas mesmas relaç› es de produç‹o.

Da’ o problema: construir uma teoria do Estado capitalista que,

a

partir das relaç› es de produç‹o, explique, pela pr—pria estrutura

de seu objeto, sua reproduç‹o diferencial em funç‹o da luta de clas-

ses. Se dou tanta •nfase a esses pontos, n‹o é por acaso: é que o teo-

ricismo formalista na teoria do Estado pode tomar diversas formas.

Pelo momento afastamos uma delas; a que consiste em construir o

objeto de uma teoria do Estado capitalista colocando-a em relaç‹o

unicamente com as relaç› es de produç‹o no sentido de uma estrutu-

ra econ—mica, na qual a luta de classes e a dominaç‹ o polí tica s6 in-

terv•m

a posteriori,

para explicar as concretizaç› es

-

singularida-

des secund‡rias desse Estado no real hist—ico. Concepç‹o que leva

a negligenciar as formas espec’ficas desse Estado.

Mas o teoricismo formalista pode tomar igualmente uma

forma diferente, que leva ao mesmo resultado. Esta forma nos inte-

ressa muito particularmente, pois ela envolve, desta vez, o relacio-

namento do Estado com a dominaç‹o pol’tica. Ela trata as proposi-

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ç› es gerais dos cl‡ssicos do marxismo sobre o Estado como uma

"teoria

I geral" (a Teoria "marx’sta-leninista") do Estado, e reduz o

Estado capitalista a uma simples concretizaç‹o do "Estado em

geral". No que se refere

ˆ

dominaç‹o polí tica, ela s—leva a banali-

dades dogm‡ticas do g•nero: todo Estado é um Estado de classe;

toda dominaç‹o pol’tica é uma ditadura de classe; o Estado capita-

lista é um Estado da burguesia; o Estado capitalista em geral, e todo

Estado capitalista em particular, s‹o uma ditadura da burguesia. Isso

foi observado ainda recentemente, no debate sobre a ditadura do

proletariado no seio do PCF e nos argumentos colocados por alguns

dos defensores da "manutenç‹o" dessa noç‹o, especialmente E. Ba-

libar em seu último livro,

Sur la dictadure du prolétariat.

ƒ evidente que uma tal an‡lise n‹o poderia fazer a pesquisa

avançar nem um passo. Ela é totalmente inoperante na an‡lise de si-

tuaç› es concretas, pois é incapaz de induzir a uma teoria do Estado

capitalista que explique as formas diferenciais e as transformaç› es

hist—icas desse Estado, de maneira tautol—ica.

As car•ncias dessa an‡lise t•m conseqü•ncias polí ticas incal-

cul‡veis: resultado e efeito concomitante da simplificaç‹o-dogmati-

zaç‹o estaliniana sobre a questão do Estado, esta an‡lise conduziu a

,

desastres polí ticos, especialmente no perí odo do entre-guerras, quan-

to ˆ estratégia adotada em face da ascens‹o do fascismo. Ela se tra-

duziu na estratégia do Komintern, dita do "social-fascismo", funda-

mentada exatamente nesta mesma concepç‹o do Estado, incapaz de

distinguir entre a forma de Estado democr‡tico-parlamentar e essa

forma especí fica de Estado que é o Estado fascista. Quest‹o que j‡

tratei anteriormente, tanto que n‹o voltarei a ela, salvo para indicar

incidentalmente que, a esse respeito, se poderia reconhecer esta con-

cepç‹o stalinista do Estado em A. Glucksmann, que, em seu texto

Le

facisme qui vient d' en haut, t

identificava o Estado franc•s em 1972

com um fascismo de tipo novo; Glucksmann que, como se sabe,

passou do neo-estalinismo para o antimarxismo mais barato, pen-

sando provavelmente que suas elucubraç› es de agora fossem "o que

faltava em Marx". Eu observaria entretanto que a necessidade de

uma teoria do Estado capitalista que conseguisse explicar suas for-

mas diferenciais n‹o vale apenas para essas grandes diferenças que

s‹o o Estado democr‡tico-parlamentar e o Estado de exceç‹o, mas

vai ainda mais longe.

ƒ

necess‡rio explicar as diferenças no pr—rio

127

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seio do Estado capitalista de

exceç‹o:

tentei mostrar, em A crise

das

ditaduras,

que as diferenças entre fascismo e ditadura militar s‹ o de-

cisivas quanto

ˆ

estratégia polí tica a seguir. Questão que foi capital

para a Espanha, Portugal e Grécia e que n‹o é de menor importân-

cia, como o testemunha a discuss‹o na esquerda sul-americana, para

certos regimes atuais na América Latina. Mas é necess‡rio eatabele-

cer igualmente as diferenças entre as pr—rias formas democr‡ticas

- parlamentares desse Estado: quem n‹o se lembra das derrotas po-

lí ticas ˆs quais conduziu, durante algum tempo, a impossibilidade de

compreender a especificidade do Estado gaullista na França?

A urg•ncia te—ica é ent‹o a seguinte: compreender a inscriç‹ o

da luta de classes, muito particularmente da luta e da dominaç‹ o

politica, na ossatura institucional do Estado

(no caso a da burgue-

sia no arcabouço material do Estado capitalista) de maneira tal que

ela consiga explicar as formas diferenciais e as transformaç› es his-

t‡ricas desse Estado. Aqui também, o Estado tem um papel org‰i-

co na luta e na dominaç‹o polí ticas: o Estado capitalista constitui a

burguesia como classe politicamente dominante. Certamente luta

de classes detém o primado sobre os aparelhos, no caso sobre o apa-

relho de Estado: mas n‹ o se trata de uma burguesia j‡ institu’da

como classe politicamente dominante fora ou antes de um Estado

que ela criaria para conveni•ncia pr—ria, e que funcionaria apenas

como simples ap•ndice dessa dominaç‹o. Essa funç‹o do Estado

est‡ igualmente inscrita na sua materialidade institucional: trata-se

da natureza de classe do Estado. Para estud‡-la seriamente é preci-

so ter clareza dessa funç‹o do Estado tanto a respeito das classes do-

minantes como das classes dominadas. .

ƒ o que tentarei fazer permanecendo sempre num plano bas-

tante geral: as consideraç› es que se seguem serão destacadas, quan-

do da an‡lise da atual forma do Estado, o estatismo autoritário, em

seu devido tempo.

I. O ESTADO E AS CLASSES DOMINANrES

Em relaç‹o principalmente ˆ s classes dominantes, em particu-

lar a burguesia, o Estado tem um papel principal de

organizaç‹ o.

Ele

representa e organiza a ou as classes dominantes, em suma represen-

128

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ta, organiza o interesse polí tico a longo prazo do

bloco no poder,

composto de v‡rias fraç› es de classe burguesas (pois a burguesia é

dividida em fraç› es de classe), do qual participam em certas cir-

cunst‰cias as classes dominantes provenientes de outros modos de

produç‹o, presentes na formaç‹o social capitalista: caso cl‡ssico,

ainda hoje em dia, nos pa’ses dominados e dependentes, dos gran-

des proprietários de terra. Organizaç‹o, na perspectiva do Estado, da

unidade conflitual da aliança de poder e do equil’brio inst‡vel dos

compromissos entre seus componentes, o que se faz sob a hegemo-

nia e direç‹o, nesse bloco, de uma de suas classes ou fraç› es, a clas-

se ou fraç‹o hegemônica.

O Estado constitui portanto a unidade polí tica das classes do-

minantes: ele instaura essas classes como classes dominantes. Esse

papel fundamental de organizaç‹o n‹o concerne ali‡s a um único

aparelho ou ramo do Estado (os partidos polí ticos), mas, em diferen-

tes graus e g•neros, ao conjunto de seus aparelhos, inclusive seus

aparelhos repressivos por excel•ncia (exército, polí cia etc.) que,

também eles, desempenham essa funç‹o. O Estado pode preencher

essa funç‹o de organizaç‹o e unificaç‹o da burguesia e do bloco no

poder, na medida em que detém uma

autonomia

relativa em relaç‹o

a tal ou qual fraç‹o e componente desse bloco, em relaç‹o a tais ou

quais interesses particulares. Autonomia constitutiva do Estado ca-

pitalista: remete ˆ materialidade desse Estado em sua separaç‹o re-

'lativa das relaç› es de produç‹o, e ˆ especificidade das classes e da

luta de classes sob o capitalismo que essa separaç‹o implica.

An‡lises que j‡ fiz anteriormente e as quais n‹o retomarei.

Lembraria simplesmente que essas an‡lises n‹ o se aplicam apenas,

como algumas vezes se pode pensar, a uma determinada forma do

Estado capitalista, particularmente o "Estado liberal" do capitalismo

concorrencial. Elas abrangem o núcleo estrutural desse Estado, e

portanto também sua forma na presente fase do capitalismo mono-

polista. Esse Estado,

agora como no passado.

deve representar o in-

teresse polí tico a longo prazo no conjunto da burguesia (hipotetica-

mente o capitalista coletivo) sob a hegemonia de uma de suas

fraç› es, atualmente o capital monopolista.

a) A burguesia se apresenta sempre como que constitutivamen-

te dividida em fraç› es de classe: capital monopolista e capital n‹ o-

129

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monopolista (pois o capital monopolista n‹o é uma entidade integra-

da, mas designa um processo contradit—io e desigual de "fus‹o"

entre diversas fraç› es do capital), fracionamentos desdobrados se se

consideram as atuais coordenadas de internacionalizaç‹o do capital;

b)

Essas fraç› es burguesas em seu conjunto, se situam, se bem

que em graus cada vez mais desiguais, no terreno da

dominaç‹o po-

lí tica, fazendo parte portanto do bloco do poder. Indo de encontro a

determinadas an‡lises do PCP sobre o Capitalismo Monopolista de

Estado, n‹o é apenas o capital monopolista que ocupa o terreno da

dominaç‹o polí tica.

c) O Estado detém sempre uma autonomia relativa em relaç‹o

a essa ou ˆquela fraç‹o do bloco no poder (inclusive em relaç‹o a tal

ou qual fraç‹o do pr—rio capital monopolista) a

fim

de assegurar a

organizaç‹o do interesse geral da burguesia sob a hegemonia de uma

de suas fraç› es. De encontro ainda a certas an‡lises do Capitalismo

Monopolista de Estado, n‹ o se trata aqui nem de uma "fus‹o" do Es-

tado e dos monop—ios (an‡lise abandonada pelo PCp), nem tam-

bém, e no sentido rigoroso da palavra, de sua "reuni‹o" (mesmo

contradit—ia) num "mecanismo único";

d)

Tudo isso ainda é verdadeiro mesmo se as formas atuais do

processo de monopolizaç‹o e a hegemonia particular do capital mo-

nopolista sobre o conjunto da burguesia imp› em incontestavelmen-

te uma restriç‹o da autonomia do Estado em relaç‹o ao capital mo-

nopolista e do campo de compromissos deste com as outras fraç› es

da burguesia.

Como se estabelece concretamente essa polí tica do Estado em ~

favor do bloco burgu•s no poder? ,1

Ao precisar algumas de minhas formulaç› es anteriores, diria

que o Estado, no caso capitalista, n‹o deve ser considerado como

uma entidade intrí nseca mas, como ali‡s é o caso do "capital", como

uma relaç‹ o, mais exatamente como a condensaç‹ o material de uma

relaç‹ o de

forças

entre classes e

fraç› es

de classe, tal como ele ex-

pressa,

de maneira sempre especfjica, no seio do Estado?

Todos os termos da formulaç‹o precedente t•m uma importân-

cia pr—ria, e devem ser examinados. Principalmente no aspecto do

Estado como condensaç‹o de uma

relaç‹ o:

compreender o Estado

desse modo

é

evitar os impasses do eterno pseudodilema da discus-

130

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s‹o sobre o Estado, entre o Estado concebido como Coisa-instru-

mento e o Estado concebido como Sujeito. O Estado como Coisa: a

velha concepç‹o instrumentalista do Estado, instrumento passivo,

sen‹o neutro, totalmente manipulado por uma única classe ou fra-

ç‹o,

caso em que nenhuma autonomia

é

reconhecida ao Estado.

O Estado como Sujeito: a autonomia do Estado, considerada aqui

como absoluta. é submetida a sua vontade como instância racionali-

zante da sociedade civil. Concepç‹o que remonta a Hegel, retoma-

da por Max. Weber e a corrente dominante da sociologia pol’tica (a

corrente "institucionalista-funcionalista"). Ela relaciona esta auto-

nomia ao poder próprio que o Estado passa por deter e com os por-

tadores desse poder e da racionalidade estatal: a burocracia e as eli-

tes polí ticas especialmente.

Mas o Estado n‹o é pura e simplesmente uma relaç‹o, ou a

condensaç‹o de uma relaç‹o; é a condensaç‹o material e especifica

de uma relaç‹o de forças entre classes e fraç› es de classe.

A questão é de importância e merece ser examinada, pois refe-

re-se a recentes evoluç› es te—ico-polí ticas do Partido Comunista

franc•s. Essa an‡lise do Estado como condensaç‹o material de uma

relaç‹o de classe, eu a opunha ˆ concepç‹o do Estado nas an‡lises

comunistas da época em refer•ncia ao CMB, Capitalismo Monopo-

lista de Estado. O que eu criticava no essencial nesta concepç‹o era

, que levava a uma vis‹o do Estado "fundido" ao capital monopolis-

ta, Estado que n‹o possuiria nenhuma autonomia pr—ria e estaria a

serviço exclusivo dos monop—ios, em suma de participar da con-

cepç‹o instrumentalista do Estado. Mas fazia igualmente uma outra

crí tica: tentava mostrar que essa vis‹o de um Estado manipul‡vel,

no limite, ˆ vontade pelos monop› lí os, podia articular-se perfeita-

mente com uma vis‹o descurada da materialidade pr—ria do Esta-

do. A materialidade de um Estado entendida como ferramenta ou

instrumento n‹o tem pertin•ncia polí tica pr—ria: reduz-se ao poder

de Estado, ou seja, ˆ classe que manipula esse instrumento. O que

implica, enfim, que esse mesmo instrumento (que passa por diver-

sas modificaç› es, embora secundárias) poderia ser utilizado de

outra maneira mediante uma mudança do poder do Estado, pela

classe oper‡ria numa transiç‹o para o socialismo.

Nesse primeiro ponto, as an‡lises do PCF evolu’ram. Esse en-

caminhamento pode ser constatado na obra coletiva de

J.

Fabre, Fr.

131

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pr—rias. Uma mudança na relaç‹o de forças entre Classes certa-

mente tem sempre efeitos no Estado, mas n‹o se expressa de ma-

neira direta e imediata: ela esgota a materialidade de seus diversos

aparelhos e s—se cristaliza no Estado sob sua forma refratada e di-

ferencial segundo seus aparelhos. Uma mudança de poder do Esta-

do n‹o basta nunca para transformar a materialidade do aparelho de

Estado: essa transformaç‹o provém, sabemos, de uma operaç‹o e

aç‹o' espec’ficas.

Voltemos ˆ relaç‹o entre o Estado e as classes sociais. Tanto na

concepç‹o do Estado como Coisa e do Estado como Sujeito, a saber

portanto, do Estado como entidade intrí nseca,

a

relaç‹o Estado-clas-

ses sociais e, em particular, Estado-classes e fraç› es dominantes,

é

compreendida como

relaç‹ o de exterioridade.

Ora as classes domi-

nantes se submetem ao Estado (Coisa) por um jogo de "influ•ncias"

e de grupos de press‹o, ora o Estado (Sujeito) se submete ˆ s classes

dominantes. Nessa relaç‹o de exterioridade, Estado e classes domi-

nantes s‹o considerados sempre como entidades intrí nsecas "con-

frontadas" entre si, uma em "face" da outra, e assim uma possuiria

tanto poder que a outra nada deteria, conforme uma tradicional con-

cepç‹o de poder como

quantidade

dada numa sociedade:

a

concep-

ç‹o do poder

soma-zero.

Ora a classe dominante absorve o Estado

esvaziando-o de seu pr—rio poder (o Estado-Coisa), ora o Estado re-

siste ˆ classe dominante e lhe retira seu poder em seu pr—rio bene-

f’cio (o Estado-Sujeito e ‡rbitro entre as classes sociais, concepç‹o

cara ˆ social-democracia).

Mais ainda: segundo a primeira tese, a do Estado-Coisa, a po-

lí tica do Estado em favor da burguesia se estabelece pelo simples

r

controle exercido sobre o Estado-instrumento, de uma única fraç‹o

da burguesia, atualmente o capital monopolista, passando ela mes-

ma por comportar uma unidade polí tica em qualquer sentido prévia

ˆ aç‹o estatal. O Estado n‹o desempenha uma fraç‹o pr—ria na or-

ganizaç‹o do bloco de poder burgu•s, e n‹o possui

nenhuma auto-

nomia em relaç‹o ˆ classe ou fraç‹o dominante ou hegemônica. Na

tese do Estado-Sujeito, em troca, é o Estado dotado de uma vontade

racionalizante, de poder pr—rio e de uma

autonomia tendencial-

mente absoluta

em relaç‹o ˆs classes sociais, sempre exterior a elas,

que imporia "sua" polí tica, a da burocracia ou das elites polí ticas,

aos interesses divergentes e concorrentes da sociedade civil.

133

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Essas duas teses n‹o podem assim explicar o estabelecimento

da polí tica do Estado em favor das classes dominantes, e n‹o levam

igualmente ˆ compreens‹o de um problema decisivo, o das contra-

diç› es internas do Estado.

Em sua perspectiva comum de uma rela-

ç‹o de exterioridade entre Estado e classes sociais, o Estado apare-

ce forçosamente como um bloco monolí tico sem fissuras. No caso

do Estado-Coisa, onde o Estado parece dotado de uma unidade ins-

trumental intrí nseca, as contradiç› es em seu seio existem apenas

como contrafaç› es externas (inflU•ncias, press› es) de peças e eri-

grenagens do Estado-m‡quina ou instrumento, em que cada fraç‹o

dominante ou grupo de interesses particulares ficam com a melhor

parte para si. Portanto contradiç› es claramente secund‡rias, simples

falhas da unidade quase metaf’sica do Estado, n‹o influindo na de-

fmiç‹o de sua polí tica. Elas s‹o consideradas mesmo como elemen-

tos que perturbam, ainda que provisoriamente, o centralismo instru-

mental do Estado, devido ao controle exercido sobre ele de uma

classe ou fraç‹o, que se reativa sempre,

é

o caso dizer, de maneira

mec‰ica. No caso do Estado-Sujeito, a unidade do Estado

é

a ex-

press‹o necess‡ria de sua vontade racionalizante,

faz

parte de sua

ess•ncia em face dos fracionamentos da sociedade civil. As contra-

diç› es internas do Estado mant•m-se manifestaç› es secund‡rias,

acidentais e epis—icas, devido no essencial ˆ s fricç› es ou antago-

nismos entre diversas elites polí ticas ou grupos burocr‡ticos que en-

carnam sua vontade unificadora. U, as contradiç› es de classe s‹o

exteriores ao Estado; c‡, as contradiç› es do Estado s‹o exteriores ˆs

classes sociais.

Ora, o estabelecimento da polí tica 'do Estado em favor do

bloco no poder, o funcionamento concreto de sua autonomia relati-

va e seu papel de organizaç‹o s‹o organicamente ligados a essas fis-

suras, divis› es e contradiç› es internas do Estado que n‹o podem re-

presentar simples acidentes disfuncionais.

O estabelecimento da

politica do Estado deve ser considerado como a resultante das con-

tradiç› es de c/asse inseridas na pr—pria estrutura do Estado (o Es-

tado-relaç‹o). Compreender o Estado como a condensaç‹o de uma

relaç‹o de forças entre classes e fraç› es de classe tais como elas se

expressam, sempre de maneira espec’fica, no'seio do Estado, signi-

fica que o Estado

é

constitu’do-dividido de lado a lado pelas contra-

diç› es de classe. Isso significa que uma instituiç‹o, o Estado, desti-

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nado a reproduzir as divis› es de classe, n‹o é, n‹o pode ser jamais,

como nas concepç› es do Estado-Coisa ou Sujeito, um ,bloco mono-

lí tico sem fissuras, cuja polí tica se instaura de qualquer maneira a

despeito de suas contradiç› es, mas é ele mesmo dividido. N‹o basta

simplesmente dizer que as contradiç› es e as lutas atravessam o Es-

tado, como se se tratasse de manifestar uma substância j‡ constitu’-

da

ou de percorrer um terreno vazio. As contradiç› es de classe cons-

tituem o Estado, presentes na sua ossatura material, e armam assim

sua.organizaç‹o: a polí tica do Estado é o efeito de seu funcionamen-

to n—seio do Estado.

. As contradiç› es de classe, examinadas momentaneamente ape-

Das

as que existem entre as

fraç› es

do bloco no poder, assumem no

seio do Estado a forma de contradiç› es internas entre os diversos

ramos e aparelhos do Estado, e no seio de cada um deles, conforme

as linhas de direç‹o ao mesmo tempo horizontais e verticais. Se isso

acontece dessa maneira, é porque as diversas classes e fraç› es do

bloco no poder s—participam da dominaç‹o polí tica na medida em

que est‹o presentes no Estado. Cada ramo ou aparelho de Estado,

cada face, de alto a baixo, de cada um deles (pois eles s‹o muitas

vezes, sob sua unidade centralizada, desdobrados e obscurecidos),

cada patamar de cada um deles constitui muitas vezes a sede do

poder, e o representante privilegiado, desta ou daquela fraç‹o do

bloco no poder, ou de uma aliança conflitual de algumas dessas fra-

ç› es contra as outras, em suma a concentraç‹o-cristalizaç‹o especí -

fica de

tal

ou qual interesse ou aliança de interesses particulares.

Executivo e parlamento, exército, magistratura, diferentes ministé-

rios, aparelhos regionais municipais e aparelho central, aparelhos

ideol—icos. eles mesmos divididos em circuitos, redes e trincheiras

diferentes, representam com freqü•ncia, conforme as diversas for-

maç› es sociais, interesses absolutamente divergentes de cada um ou

de alguns componentes do bloco no poder: grandes proprietários de

terra (caso de numerosas formaç› es sociais dominadas e dependen-

tes), capital n‹o-monopolista (e uma ou outra fraç‹o deste: comer-

cial, industrial ou banc‡rio), capital monopolista (e uma ou outra

fraç‹o deste: capital monopolista com domin‰cia banc‡ria ou in-

dustrial), burguesia internacionalizada ou burguesia interna.

As contribuiç› es no seio das classes e fraç› es dominantes, as

relaç› es de forças no seio do bloco no poder, que incitam precisa-

135

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mente a organizaç‹o da unidade desse bloco na perspectiva do Esta-

do, existem portanto como relaç› es contradit—ias estabelecidas no

seio do Estado. O Estado, condensaç‹o material de uma relaç‹o con-

tradit—ia, n‹o organiza a unidade do bloco polí tico no poder desde

o exterior, como que resolvesse pela sua simples exist•ncia, e a dis-

t‰cia, as contradiç› es de classe. Bem ao contr‡rio, é

o jogo dessas

contradiç› es na materialidade do Estado que toma poss’vel, por mais

paradoxal que possa parecer, a funç‹o de organizaç‹o do Estado.

Dessa maneira é preciso abandonar definitivamente uma vis‹o

do Estado como um dispositivo unitário de alto a baixo, fundamen-

tado numa repartiç‹o hier‡rquica homog•nea dos centros de poder,

em escala uniforme, a partir do ‡pice da pir‰mide para a base. A ho-

mogeneidade e a uniformidade do exerc’cio do poder estariam ga-

rantidas pela regulamentaç‹o jurí dica interna ao Estado, pela lei

constitucional ou administrativa que estabeleceria os limites desse

dom’nio de compet•ncia e de

aç‹o

dos diversos aparelhos. Imagem

inteiramente falsa: o que n‹o quer dizer, certamente, que o Estado

atual n‹o possua uma trama hier‡rquica e burocr‡tica, nem também

que n‹o apresente essa caracterí stica de centralismo, mas que essa

n‹o se assemelha em nada

ˆ

sua imagem jurí dica (tanto na França,

pa’s do jacobinismo centralizador na tradiç‹o da monarquia absolu-

tista, quanto alhures).

Entende-se assim por que o estabelecimento pelo Estado atual

do interesse polí tico geral e a longo prazo do bloco no poder (sua

funç‹o de organizaç‹o no equil’brio instável dos compromissos) sob

a hegemonia de tal ou qual fraç‹o do capital monopolista, o funcio-

namento concreto de sua autonomia relativa e também dos limites

desta diante do capital monopolista, em suma, a polí tica atual do Es-

tado, é a resultante dessas contradiç› es interestatais entre setores e

aparelhos de Estado e no seio de cada um deles. Portanto rata-se

exatamente de:

1. Um mecanismo de seletividade estrutural da informaç‹o

dada por parte de um aparelho e de medidas tomadas, pelos outros.

Seletividade implicada pela materialidade e hist—ia pr—ria de cada

aparelho (exército, aparelho escolar, magistratura etc.) e pela repre-

sentaç‹o especí fica em seu seio de

tal

ou qual interesse particular,

em suma por seu lugar na configuraç‹o da relaç‹o de forças;

136

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2. Um trabalho contradit—io de decis› es, mas também de "n‹o-

decis› es" por parte dos setores e segmentos de Estado. Essas n‹o de-

cis› es, ou seja um certo grau de aus•ncia sistem‡tica de

aç‹o

do Es-

tado, que n‹o s‹o um dado conjuntural porém est‹o inseridas em sua

estrutura contradit—ia e constituem uma das resultantes dessas con-

tradiç› es, s‹o igualmente necess‡rias ˆ unidade e ˆ organizaç‹o do

bloco no poder assim como ˆ s medidas positivas que ele toma;

3. Uma determinaç‹o presente na ossatura organizacional de

talou qual aparelho ou setor do Estado segundo sua materialidade

pr—ria e tais ou quais interesses que eles representam, prioridades

mas também contraprioridades. Ordem diferente, para cada apare-

lho e setor, rede ou patamar de cada um deles segundo seu lugar na

configuraç‹o da relaç‹o de forças: séries de prioridades e contra-

prioridades contradit—ias entre si;

4. Uma filtragem escalonada por cada ramo e aparelho, o pro-

cesso de tomada de decis› es, de medidas propostas pelos outros ou

de execuç‹o efetiva, em suas diversas modalidades, de medidas to-

madas pelos outros.

5. Um conjunto de medidas pontuais, conflituais e compensa-

t—ias em face dos problemas do momento.

A polí tica do Estado se estabelece assim por um processo efe-

tivo de contradiç› es interestatais, e é precisamente por isso que,

num primeiro ní vel e a curto prazo, em suma do ponto de vista da

fisiologia micropol’tica, ela parece prodigiosamente incoerente e

ca—ica. Se uma determinada coer•ncia se estabelece ao fim do pro-

cesso, a funç‹o de organizaç‹o que cabe ao Estado é bem marcada

por limites estruturais. Esses demonstram o car‡ter especialmente

ilus—io das concepç› es de um atual capitalismo "organizado", ou

seja que consegue superar suas contradiç› es na perspectiva do Esta-

do; ilus› es que se embricam com as referentes ˆ s possibilidades

reais de uma planificaç‹o capitalista. Esses limites do papel organi-

zacional do Estado

não lhe s‹ o impostos somente do exterior.

Eles

n‹o se referem unicamente ˆ s contradiç› es inerentes ao processo de

reproduç‹o e acumulaç‹o do capital, mas igualmente ˆ estrutura e

ossatura material do Estado que, ao mesmo tempo, fazem dele o

lugar de organizaç‹o do bloco no poder e lhe permitem uma autono-

mia relativa em relaç‹o a tal ou qual de suas fraç› es.

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138

Essa autonomia n‹o é, assim, uma autonomia do Estado

fren-

te ˆ s fraç› es do bloco no poder, ela n‹o advém da capacidade do Es-

tado de se manter exterior a elas, mas a resultante do que se passa

dentro do Estado. Essa autonomia se manifesta concretamente pelas

diversas medidas contradit—ias que cada uma dessas classes e fra-

ç› es, pela estratégia espec’fica de sua presença no Estado e pelo

jogo de contradiç› es que resulta disso, consegue introduzir na polí -

tica estatal, mesmo que sob a forma de medidas negativas: a saber,

por meio de oposiç› es e resist•ncias ˆ tomada ou execuç‹o efetiva

de medidas em favor de outras fraç› es do bloco no poder (é particu-

lannente o caso, hoje em dia, das resist•ncias do capital n‹o-mono-

polista frente ao capital monopolista). Essa autonomia do Estado em

relaç‹o a

talou

qual fraç‹o do bloco no poder existe pois concreta-

mente como autonomia relativa de tal ou qual setor, aparelho ou

rede do Estado em relaç‹o aos outros.

Certamente isso n‹o significa que n‹o existam projetos polí ti-

cos coerentes por parte dos representantes e do pessoal polí tico das

classes dominantes, nem que a burocracia de Estado n‹o desempe-

nhe um papel pr—rio na orientaç‹o da polí tica do Estado. Mas as

contradiç› es no seio do bloco no poder atravessam, segundo as li-

nhas de clivagem complexas e segundo os diversos ramos e apare-

lhos de Estado (exército, administraç‹o, magistratura, partidos polí -

ticos, igreja etc.), a burocracia e o pessoal de Estado. Muito mais

que com um corpo de funcion‡rios e de pessoal de estado unit‡rio e

cimentado em tomo de uma vontade polí tica

un’voca,

lida-se com

feudos, cl‹s, diferentes facç› es, em suma com uma multid‹o de mi-

cropolí ticas diversificadas. Essas, por coerentes que possam pare-

cer consideradas isoladamente, n‹o s‹o menos contradit—ias entre

si, consistindo a polí tica do Estado no essencial na resultante de seu

entrechoque e n‹o na aplicaç‹o

-

mais ou menos perfeita

_

de um

esboço global de objetivos do Estado. O fenômeno espantoso, e

constante, de reviravoltas da polí tica governamental, feita de ace-

leraç› es e freadas, de recuos, de hesitaç› es, de permanentes mu- ,

danças, n‹o é devido a uma incapacidade de qualquer maneira ca-

racterí stica dos representantes e do alto pessoal burgu•s, mas é a

express‹o necess‡ria da estrutura do Estado.

Resumindo, entender o Estado como condensaç‹o material de

uma relaç‹o de forças, significa entend•-lo como

um campo e um

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processo estratégicos.

onde se entrecruzam núcleos e redes de poder

que ao mesmo tempo se articulam e apresentam contradiç› es e deca-

lagens uns em relaç‹o aos outros. Emanam daí táticas movediças e

contradit› rias, cujo objetivo geral ou cristalizaç‹o institucional se

corporificam nos aparelhos estatais. Esse campo estratégico

é

trans-

passado por táticas muitas vezes bastante explí citas ao ní vel restrito

onde se inserem no Estado, táticas que se entrecruzam, se combatem,

encontram pontos de impacto em determinados aparelhos, provocam

curto-circuito em outros e configuram o que se chama a polí tica" do

Estado, linha de força geral que atravessa os confrontos no seio do Es-

tado. Nesse ní vel, essa polí tica é certamente decifr‡vel como c‡lcu-

lo estratégico, embora mais como resultante de uma coordenaç‹o con-

flitual de micropolí ticas e táticas explí citas e divergentes que como

formulaç‹o racional de um projeto global e coerente.

, O Estado n‹ o constitu’ no entanto um simples conjunto de,

peças descartáveis: ele apresenta uma

unidade de aparelho,

isso que

se designa comumente pelo termo de centralizaç‹o ou

centralismo,

ligada desta vez ˆ unidade, através de suas fissuras, do poder de Es-

tado.

Isso se traduz por sua polí tica global e maciça em favor da

classe ou fraç‹o hegernônica, atualmente o capital monopolista. Mas

essa unidade de poder n‹o se estabelece por uma penhora f’sica dos

donos do capital monopolista sobre o Estado e por sua vontade coe-

rente. Essa unidade-centralizaç‹o está inscrita na ossatura hier‡rqui-

ca-burocratizada do Estado capitalista, efeito da reproduç‹o no seio

do Estado da divis‹o social do trabalho (inclusive sob a forma tra-

balho manual - trabalho intelectual) e de sua separaç‹o espec’fica

das relaç›es de produç‹o. Ela resulta também de sua estrutura de

condensaç‹o de uma relaç‹o de forças, logo do lugar preponderante

em seu seio da classe ou fraç‹o hegemônica sobre as outras classes

,

e fraç› es do bloco no poder. N‹o apenas essa hegemonia na relaç‹o

de forças está presente no seio do Estado, mas, da mesma maneira

que o bloco no poder s—pode funcionar a longo prazo sob a -hege-

monia e direç‹o de um de seus componentes que o unifique diante

do inimigo de classe, o Estado reflete essa situaç‹o. Sua organiza-

ç‹o estratégica leva-o a funcionar sob a hegemonia de uma classe ou

fraç‹o em seu pr—rio seio. O lugar privilegiado dessa classe ou fra-

ç‹o é, ao mesmo tempo, um elemento constitutivo de sua hegemo-

nia na constelaç‹o da relaç‹o de forças.

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A unidade-centralizaç‹o do Estado, em favor atualrnente do

capital monopolista, se estabelece portanto por um complexo pro-

cesso: por transformaç› es institucionais do Estado de tal ferma que

alguns centros de decis‹o, dispositivos e núcleos dominantes s—

podem ser perme‡veis aos interesses monopolistas instaurando-se

como centros de orientaç‹o da pol’tica de Estado e como pontos de

estrangulamento de medidas tomadas "alhures" (porém dentro do

Estado) em favor de outras fraç› es do capital. A relaç‹o de causali-

dade tem ali‡s aqui duplo sentido: a classe ou fraç‹o hegemônica

n‹o instaura apenas como aparelho dominante aquele que

j‡

tenha

cristalizado por excel•ncia seus interesses, mas também todo apare-

lho dominante de Estado (dominaç‹o, que pode advir de muitas ra-

z› es, e corresponde particularmente a relaç› es de hegemonia prece-

dentes e

ˆ

hist—ia concreta em questão) tende a longo prazo a ser a

sede privilegiada dos interesses da fraç‹o hegemônica e a encarnar

as modificaç›es da hegemonia. Essa unidade se estabelece por toda

uma cadeia de subordinaç‹o de determinados aparelhos a outros, e

pela dominaç‹o de um aparelho ou setor do Estado (o Exército, um

partido polí tico, um ministério etc.), o que cristaliza por excel•ncia

os interesses da fraç‹o hegemônica sobre outros setores ou apare-

lhos, centros de resist•ncia de outras fraç› es do bloco no poder. Esse

j

processo pode tomar assim a forma de toda uma série de subdeter-

,

minaç› es e de dissimulaç›es de alguns aparelhos em outros: deslo-

~

camento das funç› es e esferas de compet•ncia entre aparelhos e de- 1

calagens constantes entre

poder real

e

poder formal;

a forma de uma

efet’va rede transestatal que sobrepuja e provoca curto-circuito em

todos os n’veis, os diversos aparelhos e setores do Estado (é o caso

da DATAR na França atualmente), rede que cristaliza por excel•n-

cia, e por sua natureza, os interesses monopolistas; enfim pela sub-

vers‹o da organizaç‹o hier‡rquica tradicional da administraç‹o de

Estado, a dos circuitos de formaç‹o e de funcionamento de corpos-

destacamentos especiais de altos funcion‡rios de Estado, dotados de

um alto grau de mobilidade n‹o apenas interestatal mas igualmente

entre o Estado

e

os neg—ios monopolistas (X, ENA) e que, sempre

pela estratégia de importantes transformaç› es institucionais (atual

funç‹o dos famosos gabinetes ministeriais, do Comissariado de Pla-

nificaç‹o etc.), s‹o encarregados de (e levados a) colocar em aç‹o a

polí tica e em favor do capital monopolista.

140

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http://slidepdf.com/reader/full/poulantzas-n-o-estado-o-poder-o-socialismo-pdf 97/119

.Essas an‡lises permitem colocar agora um importante proble-

ma referente ˆ ascens‹o das massas populares e de suas organiza-

ç› es polí ticas ao poder, numa perspectiva de transiç‹o para o socia-

lismo. Certamente esse processo n‹o pode se deter na tomada do

poder de Estado e deve se estender ˆ

transformaç‹o dos aparelhos

de Estado: mas isso sup› e sempre a tomada do poder de Estado.

a)

Dada a complexidade de articulaç‹o dos diversos aparelhos

de Estado e de seus setores, o que com frequ•ncia se traduz em uma

distinç‹o entre poder real e poder formal (este, aparente, da cena po-

lí tica), o fato de a esquerda ocupar o governo n‹o significa forçosa

nem automaticamente que

a

esquerda controle realmente os, ou

mesmo alguns, aparelhos de Estado. Tanto mais que essa organiza-

ç‹o institucional do Estado permite

ˆ

burguesia, no caso do acesso

das massas populares ao poder, permutar os lugares do poder real e

poder formal.

b

Mesmo no caso em que a esquerda no poder, além de ocu-

par o governo, controle realmente os setores e aparelhos de Estado,

nem por isso ela controla forçosamente aqueles, ou um entre eles,

que det•m o papel dominante no Estado, que constituem o pivô cen-

tral

do poder real. A unidade centralizada do Estado n‹o reside numa

pir‰mide na qual bastaria ocupar o cume para garantir seu controle.

H‡ mais: a organizaç‹o institucional do Estado toma poss’vel ˆ bur-

guesia permutar o papel dominante de um aparelho por outro, no

caso em que a esquerda ocupando o governo conseguisse controlar

o aparelho que, até ent‹o, desempenhasse o papel dominante. De

outra maneira, essa organizaç‹o do Estado burgu•s lhe permite fun-

cionar por deslocamentos e substituiç› es sucessivas, dando condi-

ç› es para o deslocamento do poder da burguesia de um aparelho

para outro: o Estado n‹o é um bloco monolí tico, mas um campo es-

tratégico. Essa permutaç‹o do papel dominante entre os aparelhos

dada a rigidez dos aparelhos de Estado que os toma refratários

ˆ

uma simples manipulaç‹o por parte da burguesia, n‹o se faz certa-

mente do dia para a noite mas acompanha um processo mais ou

menos longo: essa rigidez e aus•ncia de maleabilidade também

podem assumir um papel desfavor‡vel

ˆ

burguesia e deixar um es-

paço para a esquerda no poder. Mas esta permutaç‹o n‹o tende

a

reorganizar a unidade centralizada do Estado em torno do novo apa-

141

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II. O ESTADO E AS LUTAS POPULARES

relho dominante, centro-refúgio por excel•ncia do poder burgu•s no

seio do Estado, mecanismo constantemente em marcha ao longo de

uma situaç‹o na qual a esquerda tenha o poder. Mecanismo comple-

xo que pode encobrir v‡rias formas algumas das quais aparentemen-

te paradoxais: particularmente a funç‹o decisiva que assumem re-

pentinamente aparelhos-instituiç› es que até ent‹o tinham um papel

perfeitamente secund‡rio sen‹ o simplesmente decorativo; a C‰mara

dos Lordes na Inglaterra derrotando recentemente os projetos de na-

cionalizaç‹o por parte do governo trabalhista, magistratura-tribunais

onde se descobrem repentinamente vocaç› es irrepreens’veis de ga-

rantia da "legalidade" (Allende), diferentes conselhos constitucio-

nais etc.

c)

Isso n‹o é tudo: as contradiç›es internas e os deslocamentos

entre poder real e poder formal n‹ o se situam unicamente entre os

diferentes aparelhos e setores do Estado, mais igualmente no seio de

cada um deles, no sentido em que o centro real de poder em torno

do qual cada aparelho se organiza n‹o se situa igualmente no cume

de sua hierarquia tal como se apresenta na cena da funç‹o pública:

isso vale tanto para a administraç‹o, polí cia ou exército. Do mesmo

modo, sen‹o mais, que em termos de aparelhos verticalmente cen-

tralizados,

é

preciso raciocinar aqui em termos de núcleos e focos de

poder real situados em lugares estratégicos dos diversos setores e

aparelhos de Estado. Mesmo quando a esquerda no poder consegue

controlar, em sua hierarquia formal, os devidos cumes, ou aparelhos

dominantes do Estado, resta saber se ela controla realmente seus nú-

cleos de poder real.

As divis› es internas do Estado, o funcionamento concreto de

sua autonomia e o estabelecimento de sua polí tica através das fissu-

ras que caracterizam-no, n‹o se reduzem ˆs contradiç› es entre as

classes e fraç› es do bloco no poder:

dependem da mesma maneira,

e mesmo principalmente, do papel do Estadofrente ˆ s classes

domi-

nadas. Os aparelhos de Estado consagram e reproduzem a hegemo-

nia ao estabelecer um

jogo

(vari‡vel) de compromissos provis—ios

entre o bloco no poder e determinadas classes dominadas. Os apare-

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lhos de Estado organizam-unificam o bloco no poder ao desorgani-

zar-dividir continuamente as classes dominadas, polarizando-as para

o bloco no poder e ao curto-circuitar suas organizaç› es polí ticas es-

pec’ficas. A autonomia relativa do Estado diante de tal ou qual fra-

ç‹o do bloco no poder

é

necess‡ria igualmente para a organizaç‹o

da hegemonia, a longo termo e de conjunto, do bloco no poder em

relaç‹o ˆ s classes dominadas, sendo imposto muitas vezes ao bloco

no poder, ou a uma ou outra de suas fraç› es, os compromissos ma-

teriais indispens‡veis a essa hegemonia.

Mas esse papel do Estado diante das classes dominadas, tanto

como seu papel frente ao bloco no poder, n‹o deriva de sua raciona-

lidade intrí nseca como entidade "exterior" ˆ s classes dominadas.

Ele está igualmente inscrito na ossatura organizacional do Estado

como condensaç‹o material de uma relaç‹o de forças entre classes.

O Estado concentra n‹o apenas a relaç‹o de forças entre fraç› es do

bloco no poder,

mas também a relaç‹ o de forças entre estas e as

classes

dominadas.

Se as an‡lises precedentes que se referem ˆ relaç‹o do Estado

e classes dominantes parecem facilmente aceit‡veis, existe em ge-

ral, e na esmagadora maioria dos casos, a tend•ncia de considerar que

o Estado constitui, em relaç‹o ˆ s classes dominadas, um bloco mo-

nolí tico que lhes é imposto de fora, e sobre o qual elas s—atuam cer-

cando-o e assediando-o de fora, como uma fortaleza imperme‡vel e

isolada delas. As contradiç› es entre classes dominantes e classes do-

minadas permaneceriam contradiç› es entre o Estado e as massas po-

pulares exteriores ao Estado. As contradiç› es internas do Estado n‹o

passariam de decorr•ncias das contradiç› es entre classes e fraç› es

.dominantes, a luta das classes dominadas n‹o seria uma luta presen-

te no Estado, consistindo simplesmente em press› es sobre o Estado.

Na realidade, as lutas populares atravessam o Estado de lado a lado,

e isso n‹o acontece porque uma entidade intrí nseca penetra-o do ex-

terior. Se as lutas polí ticas que ocorrem no Estado atravessam seus

aparelhos, é porque essas lutas estão desde j‡ inscritas na trama do

Estado do qual elas esboçam a configuraç‹o estratégica.

Certamen-

te, as lutas populares, e mais geralmente os poderes, ultrapassam de

longo o Estado:

mas por mais que elas sejam (e elas o s‹o) propria-

mente polí ticas, n‹o lhe s‹o realmente exteriores. Rigorosamente fa-

lando, se as lutas populares estão inscritas no Estado, n‹o é porque

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sejam absorvidas por uma inclus‹o num Estado-Moloch totalizante,

mas sim antes porque é o Estado que está imerso nas lutas que o sub-

mergem constantemente. Fica entendido no entanto que até as lutas

(e n‹o apenas as de classe) que extrapolam o Estado n‹o est‹o no

entanto "fora do poder", mas sempre inscritas nos aparelhos de

poder que as materializam e que, também eles, condensam uma re-

laç‹o de forças (as f‡bricas-empresas, a famí lia numa certa medida

etc.). Em raz‹o do encadeamento complexo do Estado com o con-

junto de dispositivos do poder, essas lutas mesmas t•m sempre efei-

tos, "a dist‰cia" desta feita, no Estado.

Assim a estrutura material do Estado em sua relaç‹o com as re-

laç› es de produç‹o, sua organizaç‹o hier‡rquica-burocr‡tica, repro-

duç‹o em seu seio da divis‹o social do trabalho, traduzem a presen-

ça especí fica, em sua estrutura, das classes dominadas e sua luta.

Elas n‹o t•m por simples objetivo afrontar, cara a cara, as classes

dominadas, mas manter e reproduzir no seio do Estado a relaç‹o do-

minaç‹o-subordinaç‹o: o inimigo de classe está sempre no Estado.

A configuraç‹o precisa do conjunto dos aparelhos de Estado, a or-

ganizaç‹o deste ou daquele aparelho ou ramo de um Estado concre-

to (exército, justiça, administraç‹o, escola, igreja etc.) dependem n‹o

apenas da relaç‹o de forças interna no bloco no poder, mas igual-

mente da relaç‹o de forças entre este e as massas populares, logo da

funç‹o que eles devem exercer diante das classes dominadas. O que

explica a organizaç‹o diferencial do exército, da polí cia, da igreja,

nos diversos Estados e que funciona como a hist—ia de cada um

deles, hist—ia que é também a marca impressa em seu arcabouço

pelas lutas populares.

Tanto

é

assim que

o

Estado, trabalhando para a organizaç‹o da

hegemonia, logo para a divis‹o e desorganizaç‹o das massas popu-

lares, faz de algumas delas, especialmente a pequena burguesia e as

classes populares camponesas, verdadeiras classes-de-apoio do

bloco no poder e curto-circuita sua aliança com a classe oper‡ria.

Essas alianças-compromissos, essa relaç‹o de forças, incorporam-se

no arcabouço de talou qual aparelho de Estado que desempenha

exatamente essa funç‹o. O aparelho escolar na França, por exemplo,

n‹o pode ser compreendido sem essa relaç‹o, nele concentrada, da

burguesia e da pequena burguesia, nem o exército sem a relaç‹o

entre burguesia e classes populares do interior. Enfim, se tal ou qual

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aparelho detém o papel dominante no seio do Estado (partidos polí -

ticos, parlamento, executivo, administraç‹o, exército), n‹o

é

apenas

porque ele concentre o poder da fraç‹o hegemônica, mas porque

ele consegue da mesma maneira, e ao mesmo tempo, cristalizar a

funç‹o polí tico-ideol—ica do Estado diante das classes dominadas.

Mas geralmente, as divis› es e contradiç› es internas do Estado, den-

tre seus diversos setores e aparelhos, no seio de cada um deles, no

pessoal de Estado, ocorrem também devido ˆ exist•ncia de lutas po-

pulares no Estado.

Ora, a exist•ncia das classes populares n‹o se materializa no

seio do Estado da mesma maneira que as classes e fraç› es dominan-

tes,

mas de maneira espec’fica.

As classes e fraç› es dominantes se constituem no Estado me-

diante aparelhos ou setores que, certamente sob a unidade do poder

de Estado da fraç‹o hegemônica, n‹o deixam de cristalizar um

poder pr—prio

dessas classes e fraç› es. N‹o é mediante aparelhos

que concentram um

poder pr—prio

das classes dominadas que elas

se constituem no Estado mas, no essencial, sob a forma de focos de

oposiç‹o ao poder das classes dominantes. Seria falso - deslize

com conseqü•ncias polí ticas graves

-

concluir que a presença das

classes populares no Estado significariam que elas a’ detenham

poder, ou que possam a longo prazo deter,

sem

transformaç‹ o

radi-

cal desse Estado.

As contradiç› es internas do Estado n‹o implicam,

como particularmente acreditam certos comunistas italianos," uma

"natureza contradit—ia" do Estado no sentido em que ele apresenta-

ria, atualmente, uma real situaç‹o de

duplo poder em seu pr—prio

seio:

o poder dominante da burguesia e o poder das massas popula-

res. Se esse poder das classes populares no seio de um Estado capi-

talista inalterado é imposs’vel, isso acontece n‹o apenas em raz‹o da

unidade do poder de Estado das classes dominantes, que deslocam

o centro do poder real de um aparelho para outro t‹o logo a relaç‹o

de forças no seio de um deles pareça oscilar para o lado das massas

populares, mas também em raz‹o do arcabouço material do Estado.

Esse arcabouço consiste em mecanismos internos de reproduç‹o da

relaç‹o dominaç‹o-subordinaç‹o: ela assegura a presença de classes

dominadas em seu seio, embora exatamente como classes domina-

das. Mesmo no caso de uma mudança da relaç‹o de forças e da mo-

dificaç‹o do poder de Estado em favor das' classes populares, o Es-

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tado tende, a curto ou longo prazo, a restabelecer sob nova forma,

algumas vezes, a relaç‹o de forças em favor

da

burguesia. E o remé-

dio para isso n‹o seria, como se diz freqüentemente, a "tomada" dos

aparelhos de Estado pelas massas populares, como se fosse o caso

de penetrar em alguma coisa

afinal

que seria até ent‹o externo a elas

e de fazer com que tudo mudasse apenas pela virtude de sua súbita

presença no interior da fortaleza. As classes populares sempre esti-

veram presentes no Estado, sem que isso tenha modificado jamais

alguma coisa no núcleo essencial desse Estado. A aç‹o das massas

populares no seio do Estado é a condiç‹o necess‡ria para sua trans-

formaç‹o, mas n‹o é o bastante.

Se as lutas populares est‹o constitutivamente presentes nas di-

vis› es do Estado sob as formas mais ou menos diretas da contradi-

ç‹o Classes dominantes-classes dominadas, elas o est‹o sob uma

forma mediatizada: isso devido ao impacto das lutas populares nas

contradiç› es entre classes e fraç› es dominantes em si mesmas. As

contradiç› es entre bloco no poder e classes dominadas interv•m di-

retamente nas contradiç› es no seio do bloco no poder. Para n‹o

tomar mais que um exemplo, a baixa tendencial da taxa de lucro,

elemento primordial de divis‹o no seio da classe capitalista (parti-

cularmente na medida em que uma contratend•ncia nesta baixa re-

side na desvalorizaç‹o de determinadas fraç› es do capital) n‹o

passa afinal da express‹o da luta das classes dominadas contra a ex-

ploraç‹o.

As diversas fraç› es do capital (capital monopolista, capital n‹o-

monopolista, capital industrial, banc‡rio ou comercial) n‹o tem pois

sempre as mesmas contradiç› es com as classes populares (ou uma

ou outra dentre elas), e suas atitudes polí ticas nesse aspecto n‹o s‹o

sempre id•nticas. As diferenças de

t‹tica,

ou mesmo de estratégia

polí tica, numa conjuntura dada ou a mais longo prazo, frente ˆ s

massas populares,

s‹ o um dos fatores primordiais de divis‹ o no seio

do pr—prio bloco no poder.

Isso se verifica ao longo da hist—ia do

capitalismo, e n‹o se pode deixar de mencionar as diferentes pol’ti-

cas seguidas, frente aos mesmos problemas, pelos diferentes Esta-

dos. Se é verdade que existe um acordo de fundamento entre as clas-

ses e fraç› es dominantes quanto ˆ sustentaç‹o e reproduç‹o da

dominaç‹o e exploraç‹o de classe, seria falso acreditar em um acor-

do sobre uma polí tica un’voca, a todo momento, diante das massas

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populares.

ƒ igualmente falso acreditar que as viradas da pol’tica

burguesa se reduzam aqui a uma simples questão de periodizaç‹o

hist—ica, como se, segundo os diversos perí odos e conjunturas, a

burguesia se alinhasse em bloco a tal ou qual soluç‹o polí tica. As

contradiç› es no seio do bloco no poder s‹o permanentes: elas se re-

ferem tanto a problemas relativamente secund‡rios quanto ˆs gran-

des opç› es polí ticas, inclusive as pr—rias formas de Estado a ins-

taurar frente ˆs massas populares, as escolhas entre formas de

Estado de exceç‹o (de guerra aberta contra as massas populares: fas-

cismos, ditaduras militares, bonapartismos) e formas de "democra-

cia parlamentar", ou entre essas últimas (por exemplo regimes de di-

reita cl‡ssicos ou regimes social-democratas). Nesse caso também,

a burguesia n‹o adere em bloco, e de maneira un’voca, a

talou

qual

soluç‹o (fascismo ou democracia parlamentar, regime de direita

cl‡ssico ou social-democracia).

Tanto é assim que, desta vez em sentido contr‡rio, as diversas

fraç› es do bloco no poder procuram muitas vezes, segundo suas pr—

prias contradiç› es com as massas populares. assegurar-se, por diver-

.

sas polí ticas, de seu apoio contra outras fraç› es do bloco. Ou seja.

utiliz‡-las em suas relaç› es de forças com as outras fraç› es desse

bloco, com o fim quer de impor soluç› es mais vantajosas para si,

quer de resistir mais eficazmente ˆs soluç› es que as prejudicam em

relaç‹o a outras fraç› es: compromissos do capital monopolista com

certas parcelas da classe oper‡ria ou com a nova pequena burguesia

(as camadas médias assalariadas) contra o capital n‹o-monopolista.

compromisso deste com a classe oper‡ria ou a pequena burguesia

tradicional (comerciantes, artes‹os) contra o capital monopolista.

Tudo isso que se condensa nas divis› es e contradiç› es internas do

Estado, entre seus diversos segmentos. redes e aparelhos, e no seio

de cada um deles.

Em resumo, as lutas populares est‹o inscritas na materialidade

institucional do Estado, mesmo se n‹o se esgotam a’, materialidade

que traz a marca dessas lutas surdas e multiformes. As lutas polí ti-

cas desencadeadas sobre o Estado n‹o est‹o, tanto quanto qualquer

luta frente aos aparelhos de poder, em posiç‹o de exterioridade fren-

te ao Estado, mas derivam de sua configuraç‹o estratégica: o Esta-

do, como é o caso de todo dispositivo de poder,

é

a condensaç‹o ma-

terial de uma relaç‹ o.

147

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III. PARA UMA TEORIA RELACIONAL DO PODER

Podemos considerar agora, no contexto mais geral da proble-

m‡tica do poder, a relaç‹o, ao mesmo tempo de converg•ncia e de

oposiç‹o, dessas an‡lises com as provenientes de horizontes dife-

rentes, particularmente as de Foucault. Quando Foucault estabelece

sua pr—ria concepç‹o de poder, ele toma como alvo de oposiç‹o ora

um certo marxismo que molda a seu jeito, caricaturando-o, ora o

marxismo particular ˆ 31 Internacional e ˆ concepç‹o stalinista que

muitos de n— critic‡vamos j‡ h‡ muito tempo. E continuaria a dis-

correr aqui em meu pr—rio nome: as observaç› es apresentadas até

agora retomam, desenvolvem e sistematizam an‡lises j‡ presentes,

através de suas evoluç› es, em meus textos de antes

da

publicaç‹o de

Vigiar

e

Punir

(1975) e A

vontade de Saber

(1976) de Foucault. Al-

guns de' n— n‹o esperaram Foucault para propor an‡lises do poder

com as 'quais, em alguns pontos, suas an‡lises coincidem agora, o

que s—é motivo de júbilo

Retomarei aqui apenas (anteriormente j‡ considerei outros as-

pectos) as an‡lises de Foucault referentes ao poder. Conhecemos as

grandes linhas. Elas prop› em uma concepç‹o do poder como situa-

ç‹o estratégica das relaç› es de forças numa sociedade dada: "O

poder n‹o é alguma coisa que se adquire, se subtrai ou se divide, al-

guma coisa que se guarde ou que se deixe escapar ... Sem dúvida h‡

que ser nominalista: o poder, isso que n‹o é uma instituiç‹o, n‹o é

uma estrutura, n‹o é uma determinada capacidade da qual alguns se-

riam dotados: é o nome que se d‡ a uma situaç‹o estratégica com-

plexa numa determinada sociedade ...

onde h‡ poder, h‡ resist•n-

cia e no entanto, ou até por isso mesmo, ela n‹o est‡ jamais em

posiç‹o de exterioridade em relaç‹o ao poder".

6

Essas posiç› es me

parecem justas por um lado:

1.

As an‡lises que fiz até aqui mostram que o poder em si n‹o

é

uma quantidade ou coisa que se possua, nem uma qualidade liga-

da

a

uma ess•ncia de classe, a uma classe-sujeito (a classe dominan-

te). J‡ insistia sobre esses pontos em Poder politico e classes so-

ciais,

especialmente no cap’tulo referente ao conceito de poder: nele

eu examinava certamente o poder apenas sob seu aspecto de reco-

brimento do campo da luta de classes, pois esse era meu objeto fun-

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damental, embora o importante

é

o que foi dito do poder nesse

campo. Por poder se deve entender a capacidade, aplicada ˆs classes

sociais, de uma, ou de determinadas classes sociais em conquistar

seus' interesses espec’ficos. O poder referido ˆ s classes sociais é um

conceito que designa o campo de sua luta, o das relaç› es

e

forças

e das

relaç› es

de uma classe com uma outra: os interesses de classe

designam o horizonte de aç‹o de cada classe em relaç‹o ˆ s outras.

A capacidade de uma classe em realizar seus interesses est‡ em opo-

siç‹o ˆ capacidade (e interesses) de outras classes:

o campo do

poder é portanto estritamente relacional.

O poder de uma classe (da

classe dominante por exemplo) n‹o significa uma subst‰cia que ela

tenha em m‹os: o poder n‹ o é uma grandeza quantific‡vel que as di-

versas classes partilhariam ou trocariam entre si segundo a velha

concepç‹o de poder-soma-zero. O poder de uma classe significa de

iní cio seu lugar objetivo nas relaç› es econômicas, polí ticas e ideo-

l—icas, lugar que recobre as pr‡ticas das classes em luta, ou seja as

relaç›es desiguais de dominaç‹o/subordinaç‹o das classes estabele-

cidas na divis‹o social do trabalho, e que consiste desde ent‹ o em

relaç› es de poder. O lugar de cada classe, portanto seu poder, é de-

limitado, ou seja ao mesmo tempo designado e delimitado, pelo

lugar das outras classes. î poder n‹o é portanto uma qualidade ima-

nente a uma classe em si no sentido de uma reuni‹o de agentes, mas

depende e provém de um sistema relacional de lugares materiais

Ocupados por tais ou quais agentes.

Mais particularmente o poder polí tico, cujo referencial é fun-

damentalmente o Estado, relaciona-se com a organizaç‹o de poder

.de uma classe e a posiç‹o de classe na conjuntura (entre outros fa-

.

tores, organizaç‹o em partido), com as relaç› es de classes constitu’-

das como forças sociais, logo com um campo estratégico propria-

mente falando. O poder polí tico de uma classe, sua capacidade de

concretizar seus interesses polí ticos, depende n‹o apenas de seu

lugar (de sua determinaç‹o) de classe em relaç‹o ˆs outras, mas tam-

bém de sua posiç‹o e estratégia diante delas, o que denominei como

estratégia do advers‡rio.

2. Contra a concepç‹o que Foucault e Deleuze atribuem ao

marxismo, eu também insistia sobre o fato de que o Estado n‹o é

uma coisa ou uma entidade com ess•ncia instrumental intrí nseca

149

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que deteria um poder-grandeza quantific‡vel, mas que reflete as re-

laç› es de classes e forças sociais. S—se pode entender por poder de

Estado o poder de algumas classes (dominantes), ou seja o lugar

dessas classes na relaç‹o de poder frente ˆs outras (dominadas), e,

ainda mais, na medida em que trata-se aqui de poder polí tico, a es-

tratégica relaç‹o de forças entre essas classes e suas posiç› es. O Es-

tado n‹o é nem o deposit‡rio instrumental (objeto) de um poder-es-

s•ncia que a classe dominante deteria, nem um sujeito que possua

tanta quantidade de poder que, num confronto face a face. o toma-

ria das classes: o Estado é o lugar de organizaç‹o estratégica da clas-

se dominante em sua relaç‹o com as classes dominadas. ƒ um lugar

e um centro de exercí cio do poder, mas que n‹o possui poder pr—

prio. Eu insistia no fato de que as lutas polí ticas, que se referem ao

Estado e que atuam sobre eles (pois as lutas populares n‹o se esgo-

tam nunca no Estado) n‹o lhes s‹o exteriores mas est‹o inscritas em

seu arcabouço, motivando conclus› es polí ticas. Essas an‡lises t•m

igualmente implicaç› es consider‡veis quanto ˆ questão da transiç‹o

para o socialismo, e é ali‡s a raz‹o pela qual nela me detenho.

Isso n‹o impede que subsistam diferenças fundamentais tam-

bém aqui entre o marxismo e as an‡lises de Foucault:

1 Se o poder tem por campo de constituiç‹o uma relaç‹o de-

sigual de relaç› es de forças, sua materialidade pelo menos n‹o se es-

gota nas modalidades de seu exerc’cio. O poder tem sempre umfun-

damento preciso; no caso de uma divis‹o das classes e quanto ˆ sua

luta: a) a

exploraç‹ o,

a extraç‹o da mais-valia no capitalismo; b) o

lugar das classes nos diversos aparelhos e dispositivos de poder, e

n‹o apenas no Estado; lugar que

é

essencial na organizaç‹o dos apa-

relhos fora dos pr—rios Estados; c) o aparelho de Estado que. se n‹o

inclui certamente o conjunto de aparelhos e dispositivos de poder,

n‹o fica no entanto insens’vel ˆqueles que estão fora de seu pr—rio

espaço. O campo relacional do poder referente ˆs classes está liga-

do por um sistema material de distribuiç‹o de lugares no conjunto

da divis‹o social do trabalho, e é determinado fundamentalmente .

(ainda que n‹o exclusivamente) pela exploraç‹o. De onde a divis‹o

em classes e, em decorr•ncia,

a luta

de classes e as

lutas

populares.

Por isso mesmo se pode considerar que

toda luta,

mesmo heterog•-

nea ˆ s lutas de classe propriamente ditas (luta homens-mulheres por

150

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exemplo), sem dúvida s—tem seu sentido numa sociedade em que o

Estado utiliza todo poder (a falocracia ou a famí lia no caso) como

dispositivo de poder de classe, na medida em que as lutas de classe

existem e permitem assim que outras lutas se desenrolem (o que

deixa intacta a questão da articulaç‹o, efetiva ou n‹o, desej‡vel ou

n‹o, dessas lutas com as lutas de classe).

Ora, para Foucault, a relaç‹o de poder n‹ o tem outro funda-

mento que n‹o ela mesma, tomando-se simples "situaç‹o" na qual o

poder é sempre imanente e a questão qual poder e para qu• lhe é ab-

solutamente perfunct—ia. O que tem em Foucault um resultado pre-

ciso, aporia nodal e absolutamente incontorn‡vel de sua obra: as fa-

mosas resist•ncias, elemento necess‡rio a toda situaç‹o de poder,

s‹o para ele asserç‹o propriamente gratuita no sentido em que n‹o

t•m' nenhum fundamento: elas s‹ o pura afirmaç‹ o de principio,

Como se diz freqüentemente, se pode deduzir de Foucault apenas

uma guerrilha e simples desgastes esparsos frente ao poder, porque

n‹o h‡, a partir de Foucault, nenhuma resist•ncia poss’vel. Se o

poder está desde então sempre a’, se toda situaç‹o de poder é ima-

nente a si mesma,

por que haveria resist•ncia?

De

onde

viria essa re-

sist•ncia e

como ela seria possivel?

Velha quest‹o

ˆ

qual, sabemos,

a filosofia polí tica tradicional respondia por meio dos direitos natu-

rais e do pacto social; mais pr—imo de n—, est‡ Deleuze, por meio

do desejo-fundador, o que n‹o é decerto a boa resposta, mas pelo

menos é uma. Para Foucault esta quest‹o continua sem resposta.

Por mais que se queira, essa absolutizaç‹o do poder que se re-

fere sempre a si mesma induz inelutavelmente ˆ idéia de um Senhor-

Poder, fundador primeiro de toda luta-resist•ncia. As lutas s‹o ent‹o

originalmente e constitutivamente pervertidas pelo poder do qual

s‹o apenas uma simples recapagem, sen‹o uma legitimaç‹o. Entre

a imposs’vel naturalidade da resist•ncia em Foucault e a atuaI con-

cepç‹o de um poder (Estado) como perenidade do Mal radical, a dis-

tância

é

menor que se pode pensar. Toda luta s—pode assim alimen-

tar o poder sem jamais subvert•-lo, pois essa luta n‹o tem nunca

outro fundamento que n‹o sua pr—ria relaç‹o com o poder, ou seja

nenhum outro fundamento que n‹o o pr—rio poder. Nossos "novos

fil—ofos", especialmente B. H. Lévy, podem legitimamente se re-

clamar de Foucault ao despontarem, mais que como sua última con-

seqü•ncia, como sua última verdade.

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ç›es

eletivas, s‹ofisicamente mantidas a dist‰cia de aparelhos tais

como a polí cia, a magistratura ou a administraç‹o.

Mas, nesses últimos casos, as lutas pol’ticas n‹o ficam real-

mente exteriores ao campo estratégico do Estado. Mesmo nos casos

em que as massas estão fisicamente exclu’das de certos aparelhos,

essas "lutas sempre t•m efeito em seu seio, ainda que esses efeitos se

manifestem, aqui, de qualquer maneira a dist‰cia e entremeados

por pessoas (o pessoal do Estado). Esses contornos de exclus‹o f’si-

ca das massas populares do Estado n‹o devem, também aqui, ser en-

tendidos como trincheiras e muralhas de isolamento de um Estado-

fortaleza assediada apenas do exterior, em suma, como barreiras que

formam uma verdadeira barragem do Estado diante das lutas popu-

lares, segundo duvidosas metáforas topogr‡ficas. Trata-se antes de

uma

série de painéis que comprovam ser anéis de repercuss‹ o das

lutas populares no Estado. Isto é observado, hoje mais do que nunca,

em aparelhos tais como a polí cia, a magistratura ou a administraç‹o,

divididas e atravessadas por lutas populares. ƒ observado de manei-

ra mais n’tida ainda em determinadas formas de Estado, em que se

constata um fenômeno aparentemente paradoxal e inexplic‡vel se

n‹o se leva em conta que as lutas populares est‹o de qualquer ma-

rieira, e sempre, inscritas no Estado. Constatou-se isso nos casos de

ditaduras militares que grassavam, ainda h‡ pouco tempo, em Por-

tugal, na Grécia e na Espanha. Contrariamente aos regimes fascistas

tradicionais que, inclu’am certas classes populares em seu pr—rio

seio por meio dos partidos e sindicatos fascistas de massas, elas fi-

caram sempre distanciadas dessas massas ou foram mantidas a dis-

tância por elas. Ora, elas n‹ o s—n‹o ficaram verdadeiramente afas-

tadas

das

lutas populares, mas também foram mais atingidas por

isso como nunca o foram os regimes fascistas. Por sinal, elas n‹o

foram abatidas a golpe de ataques frontais, abertos e maciços, como

as organizaç› es de resist•ncia a esses regimes tinham preconizado,

mas a golpe de suas

contradiç› es e divis› es

internas, das quais as

massas populares foram, ainda que a dist‰cia, o fator principal.

2. Fazer ou n‹o o jogo do poder, integrar-se ou n‹o ao Estado,

depende portanto da estratégia polftica seguida, mesmo que, para

Foucault é o fato da "plebe" estabelecer para si uma estratégia que

a "integra" no poder substancializado, que a faz abandonar o fora-

..

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de-lugar absoluto do poder, n‹ o-lugar de fato, para reintegr‡-la em

suas linhas. Contudo:

a)

ƒ sabido que essa estratégia deve ser fundamentada na au-

tonomia das organizaç› es das massas populares: mas atingir essa

autonomia n‹ o significa para as organizaç› es sair do terreno estra-

tégico da relaç‹o de forças que é o Estado-poder, assim como para

as outras organizaç› es (sindicais ou qualquer outra) colocar-se fora

dos dispositivos de poder correspondentes, como se isso fosse pos-

s’vel, segundo a velha ilus‹o anarquista, no melhor sentido do

termo. Organizar-se no campo do poder n‹o significa, tanto num

caso como noutro, que essas organizaç› es devam inserir-se direta-

mente no espaço f’sico das instituiç› es (isso depende das conjuntu-

ras), nem, o que também acontece, que elas devam reproduzir sua

materialidade (muito pelo contrário).

b) ƒ sabido igualmente que as massas populares devem, para-

lelamente a sua eventual presença no espaço f’sico dos aparelhos de

Estado, manter e desenvolver permanentemente focos e redes a dis-

t‰cia desses aparelhos: movimentos de democracia diretamente na

base e redes de autogest‹o. Mas estes n‹o se situam, por mais que

visem aos objetivos polí ticos, nem fora do Estado nem, de qualquer

maneira, fora do poder, conforme as ilus› es simplistas de uma pu-

reza antiinstitucional. E ainda: colocar-se a qualquer preço fora do

Estado quando se pensa em situar-se por isso fora do poder (o que é

ent‹o imposs’vel) pode ser muitas vezes exatamente o melhor meio

de deixar o campo livre para o estatismo, em suma, recuar nesse ter-

reno estratégico diante do advers‡rio.

IV.

O PESSOAL DO ESTADO

Essas an‡lises tornam-se mais n’tidas ainda se considerarmos

agora

o

pessoal do Estado. Seu caso mostra que as lutas de classe si-

multaneamente atravessam e constituem o Estado, revestindo-o de

uma forma especí fica, e que essa forma está relacionada com a os-

satura material do Estado.

As contradiç› es de classe se inscrevem no seio do Estado por

meio também das

divis› es internas no seio do pessoal de Estado em

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amplo sentido

(diversas burocracias estatais, administrativa, judici‡-

ria, militar, policial etc.). Mesmo se esse pessoal constitui uma

ca-

tegoria social detentora de uma unidade pr—ria, efeito da organiza-

ç‹o do Estado e de sua autonomia relativa, ele n‹o deixa

di

deter um

lugar de classe (n‹o se trata de um grupo social

ˆ

parte ou acima das

classes) e

é,

ent‹o, dividido. Lugar de classe diferente da origem de

classe (ou seja das classes de onde esse pessoal se origina) e que est‡

relacionado

ˆ

situaç‹o desse pessoal na divis‹o social do trabalho tal

como ela se cristaliza no arcabouço do Estado (inclusive sob a

forma de reproduç‹o espec’fica da divis‹o trabalho intelectual/tra-

balho manual no pr—rio seio do trabalho intelectual concentrado no

Estado): incumbência ou lugar de classe burguesa para as altas esfe-

ras desse pessoal, pequena-burguesia para os escal› es intermedi‡-

rios' e subalternos dos aparelhos de Estado.

As contradiç› es e divis› es no seio do bloco no poder repercu-

tem portanto no seio das altas esferas do pessoal do Estado. Mais:

uma vez que amplas parcelas desse pessoal s‹o da pequena bur-

guesia, as lutas populares forçosamente afetam-no, As contradiç› es

classes dominantes-classes dominadas repercutem como distancia-

mentos dessas parcelas do pessoal de Estado com a cúpula especifi-

camente burguesa, e se manifestam como fissuras, rupturas e divi-

s› es no seio do pessoal e aparelhos de Estado. Certamente essas

divis› es n‹o se referem apenas

ˆ

relaç‹o geral de forças, mas igual-

mente ˆs reivindicaç› es especí ficas desse pessoal na divis‹o do

trabalho no seio do Estado. Seguramente, também, as contradiç› es

classes dominantes-classes dominadas se refletem no seio do pes-

soal do Estado de maneira complexa, devido

ˆ

especificidade desse

pessoal enquanto categoria social diferente. Isso n‹o impede que as

contradiç› es de classe existam de algum modo em seu seio. As lutas

das massas populares n‹o atingem o pessoal do Estado apenas quan-

do as massas est‹o fisicamente presentes nos aparelhos de. Estado,

ou apenas nos aparelhos dos quais elas façam parte: esse seria o caso

se se tratasse de fazer, por simples press› es e contatos, pender para

seu lado grupos e grupamentos acima ou

ˆ

parte das classes. A luta

de classes est‡ presente nos aparelhos de Estado, mesmo quando se

expressa a distância: o pessoal de Estado est‡ desde ent‹o, em raz‹o

do seu ser-de-classe, na luta de classes. A luta das diversas classes

populares atravessa ali‡s o Estado de maneira diferenciada: visto

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serem da pequena-burguesia os escal› es intermedi‡rios e subalter-

nos do pessoal dos aparelhos de Estado. s‹o as contradiç› es e posi-

ç› es da pequena-burguesia, em suas relaç› es com as classes domi-

nantes, que os atingem diretamente. As lutas da classe oper‡ria a’

repercutem geralmente através das relaç› es desta (conflituais ou de

aliança) com a pequena burguesia.

As lutas das massas populares regulam de maneira permanen-

te a unidade do pessoal de Estado a serviço do poder e da fraç‹o he-

gemônica. Essas lutas se revestem de formas espec’ficas: moldam-

se no arcabouço material do Estado. segundo a trama de sua

autonomia relativa e n‹o correspondem, ponto por ponto, nem de

maneira un’voca,

ˆs divis› es na luta de classes. Elas tomam fre-

qüentemente a forma de "querelas" entre membros de diversos apa-

relhos e setores do Estado, devido ˆs fissuras e reorganizaç› es do

Estado no contexto geral das contradiç› es de classe, a forma de fric-

ç› es entre cliques, facç› es ou diversos corpos do Estado no seio de

cada setor e aparelho. Mesmo quando as posiç› es de classe repercu-

tem no seio do pessoal de Estado através de uma politizaç‹o direta

e mais n’tida desse pessoal, isso é sempre encaminhado por vias par-

. ticulares, em raz‹o da maneira pr—ria pela qual a divis‹o social do

trabalho se reproduz no seio deste ou daquele aparelho de Estado

(esse processo toma formas diferentes, por exemplo, no exército, no

sistema escolar, na polí cia ou na Igreja) mas em raz‹o igualmente

dos mecanismos ideol—icos no seio dos aparelhos.

A ideologia, dominante, que o Estado reproduz e inculca, tem

igualmente por funç‹o constituir o

cimento interno

dos aparelhos de

Estado e da unidade de seu pessoal. Esta ideologia é precisamente a

do Estado neutro, representante da vontade e do interesse gerais, ‡r-

bitro entre as classes em luta: a administraç‹o ou a justiça acima das

classes, o exército pilar da naç‹o, a pol’cia garantia da ordem repu-

blicana e das liberdades dos cidad‹os, a administraç‹o motor da efi-

ci•ncia e do bem-estar geral. ƒ a forma que reveste a ideologia do-

minante no seio dos aparelhos de Estado: mas esta ideologia n‹o

domina inteiramente pois os subconjuntos ideol—icos das classes

dominadas estão também cristalizados, sob a domin‰cia desta

ideologia, nos aparelhos de Estado. Esses temas da ideologia domi-

nante s‹o freqüentemente entendidos por amplas camadas do pes-

soal de Estado como o que lhes compete no estabelecimento da jus-

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tiça social e da "igualdade de chances" entre os cidad‹os, no resta-

belecimento de um "equil’brio" em favor dos "fracos" etc. As lutas

populares, que forçosamente revelam a natureza real do Estado aos

olhos de agentes predispostos, por sua origem de classe, a enxergar

mais claramente, acentuam assim consideravelmente as divis› es,

contradiç› es e clivagens no seio do pessoal de Estado. Ainda mais

que essa luta se articula, no mais das vezes, com as reivindicaç› es

espec’ficas do pessoal de Estado.

Tudo isso é verdadeiro a despeito dos limites da politizaç‹ o

do pessoal do Estado

devido

ˆ

maneira pela qual

a

luta de classe se

reflete em seu seio.

Os agentes do pessoal de Estado que pendem para as massas

populares vivem comumente suas revoltas nos termos da ideologia

dominante, tal como ela se corporifica na os satura do Estado. O que

quase sempre coloca-os contra as classes dominantes e as esferas su-

periores do Estado, é que a dominaç‹o de grandes interesses econô-

micos sobre o Estado

põe

em quest‹o seu papel de garantia da

"ordem" e da "eficacidade" socioeconômica, destr— a "autoridade"

estatal e o sentido das tradicionais 'hierarquias" no seio do Estado.

Eles interpretam o aspecto, por exemplo, de uma democratizaç‹o do

Estado n‹o como uma intervenç‹o popular nos neg—ios públicos,

mas como uma restauração de seu pr—rio papel de ‡rbitros acima

das classes sociais. Eles reivindicam uma "descolonizaç‹o" do Es-

tado em relaç‹o aos grandes interesses econômicos, o que, a seu ver,

significa o retomo a uma virgindade, supostamente poss’vel, do Es-

tado que lhe permita assumir seu pr—rio papel de direç‹o polí tica.

Assim, mesmo os grupos do pessoal de Estado que se inclinam

para as massas populares n‹o apenas n‹ o colocam em quest‹o

a

re-

produç‹o da divis‹o social do trabalho no seio do aparelho estatal

-

'a burocratizaç‹o hier‡rquica

-

mas, além disso, geralmente n‹o

d‹o importância

ˆ

divis‹o polí tica dirigentes-dirigidos enraizada no

Estado. Ou seja, n‹o levam até ˆ s últimas conseqü•ncias seu pr—rio

papel e lugar diante das massas populares. Nada mais evidente que

a profunda desconfiança que as iniciativas das massas de tipo auto-

gestoras ou de democracia direta despertam nesses grupos do pes-

soal de Estado, ali‡s favor‡veis ˆ sua democratizaç‹o.

Esses limites da politizaç‹o do pessoal de Estado n‹o passam

de efeitos do arcabouço material do Estado sobre ele, e s‹o conse-

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qüentemente consubstanciais ao lugar pr—rio desse pessoal na divi-

s‹o social do trabalho. Esses limites inerentes ˆs pr‡ticas do pessoal

de Estado s—podem ent‹o ser transpostos sob a condiç‹ o única de

uma transformaç‹ o radical deste arcabouço institucional, e na pro-

porç‹o desta transformaç‹o. De encontro a toda uma série de ilu-

s› es, a tend•ncia esquerdizante de apenas uma parte do pessoal de

Estado n‹o basta, longe disso, para a transformaç‹o da relaç‹o Es-

tado-massas populares. A soluç‹o para esse problema n‹o está na

simples substituiç‹o do pessoal de Estado, quer sob a forma de ocu-

paç‹o de postos-chave do Estado por militantes "devotados ˆ causa"

das massas populares, quer, mais prosaicamente, sob a forma de

democratizaç‹o do recrutamento desse pessoal favor‡vel a agentes

de

origem de classe

popular. Essas medidas n‹o s‹o in—uas, mas

tomam-se secund‡rias diante do problema mais fundamental, que é

o da transformaç‹o do Estado em suas relaç› es com as populares.

Na aus•ncia de uma tal transformaç‹o, quase se pode dizer que esse

novo pessoal certamente acabar‡, ou começará, colocando-se

ˆ

altu-

ra de sua funç‹o e reproduzindo as pr‡ticas decorrentes da estrutura

do Estado: os exemplos hist—icos abundam.

Se é preciso transformar o Estado a

fim

de poder modificar as

pr‡ticas de seu pessoal, em que medida se pode contar, nessa trans-

formaç‹ o do aparelho de Estado. com o pessoal que se inclina para

as massas populares?

E, é claro, h‡ que observar-se aqui as resist•n-

cias desse mesmo pessoal de Estado, para n‹o dizer do pessoal que

continua fiel a seu papel de c‹o de guarda do bloco no poder. Em

raz‹o de seu lugar na divis‹o social do trabalho personificada pelo

Estado, esse pessoal s—tende, no mais das vezes, para as massas po-

pulares (pelo menos num primeiro momento) apenas sob a condiç‹o

de uma determinada continuidade que sustente o Estado. E ele até

mesmo tende muitas vezes para as massas populares para que esta

continuidade do Estado seja assegurada, continuidade que preserve

o Estado. E mais ainda: ele tende muitas vezes para o lado das mas-

sas populares para que esta continuidade do Estado seja assegurada,

continuidade que lhe parece ser colocada em questão pela influ•n-

cia dos grandes interesses ou "feudalidades" econômicas sobre o Es-

tado, e as rupturas e revoltas que ela provoca no corpo social ou "na-

cional". Esta atitude, constantemente verificada, n‹o se atém apenas

ˆ defesa de privilégios corporativistas ali‡s evidentes. Se a burocra-

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cia de Estado tem igualmente interesses pr—rios, os da sua ‡rea, a

defender. a tal ponto que se possa falar de um "interesse pela esta-

bilidade'" do Estado pr—rio do conjunto de seu pessoal, isso n‹o

é

o essencial. Paralelamente ˆ consider‡vel, nos dias de hoje, exten-

s‹o desse pessoal de Estado. os privilégios da funç‹o pública s‹o

postos em questão por uma importante parcela desse pessoal. Mas

se esta situaç‹o favorece incontestavelmente sua politizaç‹o para

a

esquerda, parece certamente apontar sempre os limites relativos ao

arcabouço material do Estado. Todas essas coisas t•m incid•ncias

pol’ticas no que tange a uma transiç‹o para um socialismo democr‡-

tico: como apoiar-se nesse fator, hoje em dia decisivo, de politiza-

ç‹o esquerdizante de amplas parcelas do pessoal de Estado, consi-

derando esses limites e "preparando" esse pessoal sempre suscet’vel

a tender para a direita, sem perder de vista porém as necess‡rias

transformaç› es do Estado? ƒ o que remete, é claro, ao problema das

formas, dos meios e ritmos de

.transformaç‹o

deste aparelho.

Para fechar esta parte: apenas essa concepç‹o te—ica do Esta-

do, apenas essa teoria do Estado capitalista pode explicar as formas

diferenciais e as transformaç› es deste Estado. Ela, unicamente,

pode articular os efeitos no Estado, ao mesmo tempo das modifica-

ç› es das relaç› es de produç‹o/divis‹o social do trabalho e modifi-

caç› es nas lutas de classes, mais particularmente lutas polí ticas. So-

mente quando se percebe a inserç‹o da dominaç‹o polí tica no

arcabouço material do Estado enquanto condensaç‹o de uma relaç‹o

de força

é

que se pode romper com a formaç‹o dogm‡tica de g•ne-

ro "todo Estado capitalista é um Estado da burguesia", e compreen-

der o complexo papel da luta polí tica na reproduç‹o hist—ica desse

Estado. Eu me satisfaria em evocar os campos que a aplicaç‹o das

an‡lises precedentes pode contribuir para esclarecer.

1.

De iní cio, a especificidade, por meio de sua reproduç‹o his-

t—ica e suas transformaç› es, do Estado e de seus diversos aparelhos

e setores num dado paí s: o Estado franc•s, por exemplo. Se esse Es-

tado efetiva as determinaç› es gerais do Estado capitalista em suas

relaç› es com as relaç› es de produç‹o e com suas transformaç› es,

ele n‹o deixa de apresentar particularidades pr—rias que caracteri-

zam-no ao longo de suas transformaç› es. Essas particularidades n‹o

podem ser compreendidas, por sua vez, sen‹o quando se considera

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a.

Entre as formas do Estado.segundo os est‡gios e fases do ca-

pitalismo: Estado liberal do capitalismo mercantilista, Estado inter-

vencionista do capitalismo monopolista-imperialista, Estado da fase

atual do Capitalismo monopolista.

b.

Entre o Estado democr‡tico-parlamentar

e

o

Estado de ex-

ceç‹o (fascismos, ditaduras militares, bonapartismos), segundo

esses estágios ou fases.

c. Entre as diversas formas deste Estado democr‡tico-parla-

mentar (presidencialismo, parlamentarismo etc.), e entre as diversas

formas do Estado de exceç‹o.

3. Apenas essa linha de pesquisa permite ent‹o analisar a atual

forma do Estado nos paí ses capitalistas desenvolvidos: o

estatismo

autorit‡rio.

Esse ser‡ o objeto da última parte desse texto.