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S OCIALISMO OCIALISMO OCIALISMO OCIALISMO OCIALISMO EM EM EM EM EM DISC DISC DISC DISC DISCUSSÃO SÃO SÃO SÃO SÃO socialismo e globalização financeira Reinaldo gonçalves Tania Bacelar j o ã o s a y a d ronald rocha

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SSSSS O C I A L I S M OO C I A L I S M OO C I A L I S M OO C I A L I S M OO C I A L I S M O

EMEMEMEMEM DISCDISCDISCDISCDISCUUUUUSSSSSSÃOSÃOSÃOSÃOSÃO

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s o c i a l i s m o eg l o b a l i z a ç ã of i n a n c e i r a

Reinaldo gonçalvesT a n i a B a c e l a rj o ã o s a y a dr o n a l d r o c h a

O SEGUNDO CICLO DO SEMINÁRIO SOCIALISMO

E DEMOCRACIA DEDICOU-SE AO EXAME DE

QUESTÕES CONCRETAS QUE ESTÃO SENDO

POSTAS PARA AS ESQUERDAS NO BRASIL.A ABORDAGEM DESSAS QUESTÕES JUNTOU

AS URGÊNCIAS DE CURTO PRAZO COM APERSPECTIVA HISTÓRICA MAIS LARGA DO

FUTURO. POR ISSO, OS VÁRIOS TEMAS FORAM

TRABALHADOS, SEMPRE, PERGUNTANDO-SE QUAIS

SÃO SUAS INTERAÇÕES COM O SOCIALISMO.FORAM ABORDADOS TEMAS COMO A RICA

EXPERIÊNCIA – QUE A VÁRIOS TÍTULOS

REPRESENTA UMA ENORME INOVAÇÃO POLÍTICA –DO ORÇAMENTO PARTICIPATIVO,O PLANEJAMENTO URBANO, A REFORMA AGRÁRIA

E O MOVIMENTO DOS TRABALHADORES

SEM-TERRA, AS FORMAS CONTEMPORÂNEAS

DA LUTA SOCIAL, A DECISIVA REVOLUÇÃO

MOLECULAR-DIGITAL E A VIRADA DA

INFORMAÇÃO, E, POR ÚLTIMO, AS COMPLEXAS

RELAÇÕES ECONÔMICAS INTERNACIONAIS NA ERA

DA CHAMADA GLOBALIZAÇÃO.O EXAME TRAVEJOU, SEMPRE, A EXPERIÊNCIA

DAS LUTAS COM A REFLEXÃO QUE PROCURAVA

PROJETÁ-LAS E ENTENDÊ-LAS NO QUADRO DA

TRANSFORMAÇÃO URGENTE E RADICAL.NÃO PARA UM DIA QUALQUER POSTERIOR

À REVOLUÇÃO, MAS DIUTURNAMENTE.

FRANCISCO DE OLIVEIRA

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SSSSS O C I A L I S M OO C I A L I S M OO C I A L I S M OO C I A L I S M OO C I A L I S M O

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Reinaldo gonçalvesT a n i a B a c e l a rj o ã o s a y a dr o n a l d r o c h a

O SEGUNDO CICLO DO SEMINÁRIO SOCIALISMO

E DEMOCRACIA DEDICOU-SE AO EXAME DE

QUESTÕES CONCRETAS QUE ESTÃO SENDO

POSTAS PARA AS ESQUERDAS NO BRASIL.A ABORDAGEM DESSAS QUESTÕES JUNTOU

AS URGÊNCIAS DE CURTO PRAZO COM APERSPECTIVA HISTÓRICA MAIS LARGA DO

FUTURO. POR ISSO, OS VÁRIOS TEMAS FORAM

TRABALHADOS, SEMPRE, PERGUNTANDO-SE QUAIS

SÃO SUAS INTERAÇÕES COM O SOCIALISMO.FORAM ABORDADOS TEMAS COMO A RICA

EXPERIÊNCIA – QUE A VÁRIOS TÍTULOS

REPRESENTA UMA ENORME INOVAÇÃO POLÍTICA –DO ORÇAMENTO PARTICIPATIVO,O PLANEJAMENTO URBANO, A REFORMA AGRÁRIA

E O MOVIMENTO DOS TRABALHADORES

SEM-TERRA, AS FORMAS CONTEMPORÂNEAS

DA LUTA SOCIAL, A DECISIVA REVOLUÇÃO

MOLECULAR-DIGITAL E A VIRADA DA

INFORMAÇÃO, E, POR ÚLTIMO, AS COMPLEXAS

RELAÇÕES ECONÔMICAS INTERNACIONAIS NA ERA

DA CHAMADA GLOBALIZAÇÃO.O EXAME TRAVEJOU, SEMPRE, A EXPERIÊNCIA

DAS LUTAS COM A REFLEXÃO QUE PROCURAVA

PROJETÁ-LAS E ENTENDÊ-LAS NO QUADRO DA

TRANSFORMAÇÃO URGENTE E RADICAL.NÃO PARA UM DIA QUALQUER POSTERIOR

À REVOLUÇÃO, MAS DIUTURNAMENTE.

FRANCISCO DE OLIVEIRA

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Reinaldo GonçalvesJoão Sayad

Ronald RochaTânia Bacelar

SSSSSOCIALISMOOCIALISMOOCIALISMOOCIALISMOOCIALISMO EEEEE

GLOBALIZAÇÃOGLOBALIZAÇÃOGLOBALIZAÇÃOGLOBALIZAÇÃOGLOBALIZAÇÃO FINANCEIRAFINANCEIRAFINANCEIRAFINANCEIRAFINANCEIRA

Socialismo em discussão

EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO

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1a edição: março de 2003 – Tiragem: 3 mil exemplaresTodos os direitos reservados à

Editora Fundação Perseu AbramoRua Francisco Cruz, 224 – CEP 04117-091 – São Paulo – SP – Brasil

Telefone: (11) 5571-4299 – Fax: (11) 5571-0910Na Internet: http://www.fpabramo.org.br – Correio eletrônico: [email protected]

Copyright © 2003 by Editora Fundação Perseu Abramo — ISBN 85-86469-78-5

Assistentes EditoriaisCandice Quinelato Baptista

Viviane Akemi Uemura

RevisãoMárcio Guimarães de Araújo

Maurício Balthazar Leal

Capa e Projeto GráficoGilberto Maringoni

Ilustração da CapaRodolfo Pizzignacco

Editoração Eletrônica Enrique Pablo Grande

Impressão Cromosete Gráfica

Fundação Perseu AbramoInstituída pelo Diretório Nacional

do Partido dos Trabalhadores em maio de 1996

DiretoriaLuiz Dulci – presidente

Zilah Abramo – vice-presidenteHamilton Pereira – diretor

Ricardo de Azevedo – diretor

Editora Fundação Perseu Abramo

Coordenação EditorialFlamarion Maués

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Desenvolvimento local e socialismo / Celso Daniel... [et al.]. — São Paulo : EditoraFundação Perseu Abramo, 2002. — (Coleção Socialismo em Discussão)

Outros autores: Marina Silva, Miguel Rossetto, Ladislau Dowbor

Bibliografia.ISBN 85-86469-69-6

1. Democracia 2. Desenvolvimento econômico 3. Governo local 4. Socialismo I. Daniel,Celso. II. Silva, Marina. III. Rossetto, Miguel. IV. Dowbor, Ladislau. V. Série

02-1513 CDD-320.531

Índices para catálogo sistemático:1. Socialismo e democracia : Ciência política 320.531

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ApresentaçãoFrancisco de Oliveira ................................................................................... 5

Alternativa socialista e globalização financeiraReinaldo Gonçalves ....................................................................................... 7Definições-chave ................................................................................................. 8Projeto de orientação socialista: restrições ........................................................ 11Inserção internacional: política bilateral ............................................................. 20

ComentáriosTânia Bacelar ................................................................................ 23Projeto de nação e inserção soberana ................................................................ 23Atuar em níveis local, nacional e mundial .......................................................... 26Ronald Rocha ................................................................................ 29Construir uma nova força social ampla .............................................................. 29O conceito de “globalização” ............................................................................. 31

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4 SOCIALISMO E GLOBALIZAÇÃO FINANCEIRA

As características da mundialização ............................................................. 38Um novo bloco histórico .............................................................................. 40João Sayad ................................................................................ 43Usar nossa margem de manobra ................................................................... 43Liberdade e dinheiro ..................................................................................... 45Keynes e Tobin ............................................................................................. 48

Debate com o públicoAlípio ........................................................................................................... 51Rita ............................................................................................................... 52Gustavo Venturi ........................................................................................... 53Djalma Bom .................................................................................................. 54Max Altman .................................................................................................. 54André Breda dos Santos .............................................................................. 55Geraldo Santiago Pereira .............................................................................. 55Humberto Leopoldo ..................................................................................... 56Clara Charf ................................................................................................... 57Leda Paulani ................................................................................................. 58Fernando Haddad ........................................................................................ 59Luiz Inácio Lula da Silva .............................................................................. 60Ronald Rocha .............................................................................................. 65João Sayad .................................................................................................. 68Tânia Bacelar .............................................................................................. 69Reinaldo Gonçalves .................................................................................... 72

Sobre os autores ..................................................................... 79

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5SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

ApresentaçãoFrancisco de Oliveira

O segundo ciclo do seminário Socialismo e Democracia – reproduzido nestee em outros livros da coleção Socialismo em Discussão –, que o InstitutoCidadania, a Fundação Perseu Abramo e a Secretaria de Formação Políticado Partido dos Trabalhadores realizaram no primeiro semestre de 2001, dedi-cou-se, desta vez, ao exame de questões concretas que estão sendo postaspara o movimento das esquerdas no Brasil com urgência, particularmente apartir das expressivas vitórias nas eleições municipais de outubro de 2000. OPartido dos Trabalhadores, para não usurparmos a fala das outras formaçõesda esquerda brasileira, foi chamado a dar soluções concretas aos já dramáticosproblemas das cidades, herança de um longo ciclo histórico, agravados pelaspolíticas ou antipolíticas neoliberais dos últimos dez anos.

Entendeu-se que a votação cidadã optou pelo PT não apenas pela urgên-cia da conjuntura, mas como uma orientação de outra perspectiva de de-senvolvimento econômico, social, político e cultural, caucionada pela traje-tória do partido desde sua criação e pela exemplaridade das administra-ções petistas ali onde a cidadania lhe tem entregue a gestão do Estado, emmunicípios e estados.

A abordagem das questões concretas juntou as urgências de curto prazocom a perspectiva histórica mais ampla do futuro. Por isso, os vários te-

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6 SOCIALISMO E GLOBALIZAÇÃO FINANCEIRA

mas foram trabalhados, sempre, perguntando-se quais são suas interaçõescom o socialismo. De modo que as gestões da esquerda não devem serapenas o breve ciclo de uma administração, mas precisam também reali-zar, concretamente, na vida cotidiana das cidades, das cidadãs e dos cida-dãos, uma mudança cujo nome histórico é socialismo. Não para um diaqualquer posterior à revolução, mas diuturnamente. Desse modo, a pers-pectiva histórica do socialismo ajuda, orienta e valoriza medidas simples,ao alcance da cidadania, sem a grandiloqüência dos grandes eventos, maspreparando-a para seu autogoverno.

Foram abordados o recado das urnas de 2000, a rica experiência, quea vários títulos representa uma enorme inovação política, do orçamentoparticipativo, o planejamento urbano, a reforma agrária e o movimentodos trabalhadores sem-terra, as formas contemporâneas da luta social, adecisiva revolução molecular-digital e a virada da informação, e, porúltimo, as complexas relações econômicas internacionais na era da cha-mada globalização. O exame travejou, sempre, a experiência das lutascom a reflexão que procurava projetá-las e entendê-las no quadro datransformação urgente e radical. Destacados militantes do Partido dosTrabalhadores, desde seu presidente de honra, novos dirigentes munici-pais, calejados quadros políticos, governadores e prefeitos, especialistas,reputados professores universitários, apoiados, discutidos e contestadospor um público sempre numeroso e participante, dedicaram o tempo ne-cessário para arejar o pensamento, desafiando o entendimento da novacomplexidade. Assim, o PT busca juntar ação e reflexão, não apenaspara preparar quadros, mas para assumir o mandato da transformação –como disse uma já clássica canção petista – “sem medo de ser feliz”.

Em nome da Comissão Organizadora,Francisco de Oliveira

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7SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

Dividiremos a discussão em quatro partes. Na primeira, apresenta-remos definições-chave sobre os nossos temas, socialismo e globali-zação. Na segunda parte examinaremos um argumento geral que é oseguinte: no contexto da globalização, há hoje um grau de manobramuito maior do que freqüentemente aparece no debate. Apesar dessefenômeno avassalador – a globalização –, há um grau de manobra nãodesprezível para a atuação de muitos países, inclusive o Brasil. Naterceira parte discutiremos as restrições e os obstáculos que projetosde orientação socialista enfrentam no Brasil, no contexto da globalização.Por fim, analisaremos a questão da inserção internacional do Brasil.

Em síntese: (1) apresentaremos definições sobre socialismo (mais es-pecificamente sobre um projeto de orientação socialista) e globalização;(2) discutiremos uma tese geral a respeito do grau de liberdade do Esta-do nacional; (3) analisaremos os obstáculos para um projeto de orienta-ção socialista no Brasil no contexto da globalização, e (4) examinaremosa inserção brasileira no cenário internacional a partir da ótica de umgoverno democrático e popular.

Alternativa socialista eglobalização financeira1

Reinaldo Gonçalves

1. Este seminário – cujo títulooriginal é “Älternativasocialista ante a globalizaçãofinanceira” – faz parte dosegundo ciclo de debates“Socialismo e democracia”(ver p. 83) e foi realizado dia18 de junho de 2001.

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8 SOCIALISMO E GLOBALIZAÇÃO FINANCEIRA

Definições-chave – Para começar, a primeira definição-chave quepropomos é a de um projeto de orientação socialista para o Brasil. An-tes, porém, cabe destacar que esse projeto tem cinco componentes prin-cipais, que envolvem meios e fins.

O primeiro componente refere-se às estratégias e políticas orientadaspara a radical desconcentração da riqueza, da renda, da cultura e dopoder. O primeiro objetivo de um projeto de orientação socialista no Bra-sil tem que ser uma radical desconcentração. É essencial ressaltar queos adjetivos e substantivos são igualmente importantes. A exigência éuma desconcentração, mas não uma desconcentração na margem. Tra-ta-se de uma desconcentração radical da riqueza, da renda, da culturae do poder. O segundo componente desse processo é o vigoroso com-bate à exclusão social. Mais uma vez, o adjetivo (vigoroso) é tão im-portante quanto os substantivos (combate, exclusão). O terceiro com-ponente é a incisiva intervenção estatal na regulação dos mercados defatores estratégicos, a saber, trabalho, capital, natureza e cultura. Oquarto componente desse projeto é a propriedade ou o controle públicodos principais meios de produção de bens e serviços. E, por último, ouso social do excedente econômico. Ou seja, como a sociedade inter-vém no excedente econômico que está nas grandes empresas (núcleoduro do capitalismo) para que haja uma acumulação de capital o maisacelerada possível.

Partindo desses componentes, o projeto de orientação socialista podeser definido como aquele que envolve a ocorrência simultânea dos se-guintes processos: (1) estratégias e políticas orientadas para a radicaldesconcentração de riqueza, renda, cultura e poder; (2) vigoroso comba-te à exclusão social; (3) incisiva intervenção estatal na regulação dosmercados de fatores estratégicos – trabalho, natureza, capital e cultura;(4) propriedade ou controle público dos principais meios de produção de

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9SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

bens e serviços; e (5) uso social do excedente econômico. Então, essa éa concepção de projeto de orientação socialista que gostaria de discutir.

Esse projeto ocorrerá no contexto de um Brasil extremamente vulne-rável internacionalmente. O Brasil tem uma das economias mais abertasdo mundo. Historicamente, a formação do Brasil sempre esteve deter-minada por uma inserção passiva no cenário internacional. O que acon-tece no mundo hoje? O país tem se defrontado nos últimos 20 anos como fenômeno da globalização econômica. E, aqui, passamos à segundadefinição-chave. O que é a globalização econômica?

A globalização é um fenômeno caracterizado pela ocorrência simultâ-nea de três processos: (1) crescimento extraordinário dos fluxos interna-cionais de bens, serviços e capital; (2) acirramento da concorrência in-ternacional; e (3) crescente integração entre economias nacionais e en-tre agentes econômicos.

Teremos um projeto nacional de orientação socialista, que ocorrerá numaeconomia altamente internacionalizada, ancorada no processo deglobalização econômica. A pergunta central é a seguinte: dada a globali-zação, que influencia e determina os projetos nacionais, teremos grau deliberdade para implementar o projeto de orientação socialista?

Essa pergunta é particularmente importante no caso do Brasil. Nos últi-mos anos todas as crises econômicas no Brasil têm derivado, em grandemedida, da vulnerabilidade externa do país. Transcendendo a esfera econô-mica, pode-se dizer que o Brasil tem experimentado nos últimos anos – parti-cularmente no governo Fernando Henrique – um processo de africanização.Essa africanização tem origem na abertura da economia brasileira, num con-texto de globalização, que provocou a enorme vulnerabilidade externa dopaís e gerou uma trajetória de instabilidade e crise sistêmica.

O Brasil é um país marcado por baixa capacidade de resistência a pres-sões, a fatores desestabilizadores e a choques externos. Essa vulnerabilidade

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10 SOCIALISMO E GLOBALIZAÇÃO FINANCEIRA

externa gera crises cambiais recorrentes. Para enfrentar essas crises ogoverno utiliza políticas macroeconômicas ortodoxas para ajustar as con-tas externas, e isso causa problemas econômicos sérios. Entre esses pro-blemas, pode-se mencionar a degradação das contas públicas, o desem-prego, a falta de investimento, o crescimento econômico medíocre e odesequilíbrio das contas externas. Ao mesmo tempo, há o esgarçamento dotecido social, pois geram-se pobreza, exclusão, violência, desigualdade e ten-são na sociedade. Desequilíbrios sociais e problemas econômicos resultamem crises políticas. Na esfera política, as relações, os processos e as estru-turas são tensionados. E, ao fim e ao cabo, o resultado são problemas denatureza institucional, isto é, degradação das instituições públicas e privadas.A degeneração moral e ética da classe dirigente faz parte desse processo.O risco de ruptura institucional cresce com a continuidade do modelo.

Essa é a trajetória da crise brasileira, particularmente com o governoFernando Henrique: abertura num contexto de globalização => vulne-rabilidade externa, um país frágil, baixa capacidade de resistência =>crises cambiais recorrentes => políticas que geram problemas econômi-cos sérios => provocam desequilíbrios sociais agudos e esgarçamentodo tecido social => problemas políticos => degradação das instituiçõespúblicas e privadas. Esse tipo de trajetória é característico da Áfricasubsaariana, com países marcados por crises sistêmicas. De fato, FernandoHenrique subsaarizou o Brasil. O Brasil está caminhando em uma traje-tória de instabilidade e crise, com crescente risco de ruptura institucional.

Retornemos à nossa pergunta. Com essa herança trágica, teremos graude liberdade para implementar um projeto de orientação socialista?

A resposta é inequívoca: teremos.Então, qual é o problema central do Brasil hoje? Para interrompermos

e revertermos essa trajetória de instabilidade e crise, temos que ir àorigem do problema. Isso significa, na realidade, reduzir nossa vulnera-

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11SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

bilidade e a sua causa principal, que é um tipo de abertura “capturada”pela globalização econômica.

O que ocorre no mundo (a globalização) é um fenômeno paramétricopara nós brasileiros e sobre o qual não exercemos nenhuma influência.Quer dizer, ele é dado, nós não temos a menor influência no mundo. Aimpotência, por um lado, é negativa, mas, por outro, nos dá a vantagemde podermos “correr por fora”. Assim, uma medida de grande impactointerno pode não ter nenhuma ou quase nenhuma repercussão no mun-do. Isso faz com que o Brasil tenha um grau razoável de liberdade emtermos de implementação de um projeto nacional. E mais, de um projetonacional de orientação socialista. Nesse sentido, a nossa visão envolveum certo “otimismo qualificado”. O resultado é que as principais restri-ções são endógenas e não exógenas. Vejamos as restrições para essavisão se transformar em realidade.

Projeto de orientação socialista: restrições – Quais são as restri-ções para o projeto de orientação socialista, no Brasil, num contexto deglobalização econômica? Inicialmente, devemos ressaltar que as princi-pais restrições são de natureza interna.

A primeira restrição ao projeto de orientação socialista é que preci-samos reduzir o principal “desequilíbrio de estoque” do Brasil, que é aconcentração de riqueza. Enquanto tivermos essa concentração deriqueza, não conseguiremos ter desenvolvimento sustentado e muitomenos um projeto com um mínimo de eqüidade e justiça social. Sabemosque o Brasil é campeão mundial de concentração de renda. Isso é sabidoem qualquer estabelecimento de ensino médio; hoje todo mundo conhe-ce o Índice de Gini2. Meu filho veio falar comigo e perguntar o que era oÍndice de Gini, porque sua professora mostrou que o Brasil “disputava ocampeonato” com Ruanda, Serra Leoa e Honduras.

2.Índice de Gini: indicador dedesigualdade na distribuiçãode renda que varia de 0(situação em que a rendaestaria distribuída igualmenteentre todas as famílias) a 1(situação em que apenas umafamília se apropriaria de todaa renda). Portanto, quantomais próximo de 1, maior adesigualdade da distribuição.

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12 SOCIALISMO E GLOBALIZAÇÃO FINANCEIRA

Se é verdade que o Brasil é campeão mundial de concentração derenda, é mais verdade ainda que este país é pentacampeão mundial deconcentração de riqueza. O problema é que a renda deriva da riqueza.Riqueza é estoque, renda é fluxo. O que é a riqueza privada líquida deum país? São as estruturas residenciais, as estruturas não-residenciais,as máquinas e os equipamentos, os ativos monetários, os ativos financei-ros e os bens de consumo duráveis que podem entrar como parte dariqueza privada das pessoas (automóveis, jóias etc.).

O Brasil tem riqueza, mas ela é extremamente concentrada. Estima-se que o top de 1% das famílias controla cerca de 15% da renda. Narealidade, são mais ou menos 400 mil famílias no Brasil. Ocorre queessas famílias controlam mais de 50% do estoque de riqueza. Então, arenda é concentrada porque a riqueza é concentrada.

O que fazer? Precisamos de um projeto radical de desconcentraçãode riqueza, renda, cultura e poder. Nesse sentido, há várias idéias. Há oimposto de solidariedade, que é um imposto “de uma vez por todas” (aexpressão técnica em inglês é once-for-all capital levy), que é comple-tamente diferente do imposto anual sobre grandes fortunas. Fato rele-vante: estima-se que o top de 1% da população brasileira controla 53%do estoque de riqueza. Se o imposto de solidariedade for de 20%, aparticipação desse top cairia para cerca de 42% do estoque de riqueza,o que ainda é extremamente elevado pelos padrões internacionais (infe-rior a 30%). Em outras palavras, a riqueza continuaria extremamenteconcentrada no Brasil. O Brasil continuaria com grande concentraçãode riqueza. Precisamos de pelo menos duas décadas para que haja algu-ma desconcentração significativa. E, para isso, precisamos também dereforma agrária, de reforma tributária abrangente, que trate de heran-ças, progressividade do imposto de renda, maior taxação sobre lucro emaior ênfase nos impostos diretos.

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13SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

A segunda restrição é o desequilíbrio de estoque da dívida interna.A dívida da União é superior a 500 bilhões de reais, com juros da ordemde 20%. Os orçamentos da União, dos estados e municípios estão com-prometidos com o pagamento de juros. São dezenas de bilhões de reaisque são transferidos para os rentistas e que poderiam ser orientadospara o lado real da economia. O fato é que a economia brasileira ficatravada com isso (política fiscal restritiva) e, portanto, tem que haveruma correção. Para começarmos a pensar em desenvolvimento, preci-samos de taxa de juros baixa, bem como a correção desse estoque.

A terceira restrição é o problema da desigualdade. A desigualdade derenda é grave. Conforme já vimos, ela deriva, em grande parte, da desi-gualdade de estoque de riqueza. Mas também é fundamental que atuemossobre os fluxos. Vale repetir, devemos ter correção do desequilíbrio deestoque de riqueza e de fluxo de renda. Há, também, as desigualdades emtermos de etnia e de gênero, bem como as desigualdades regionais, quesão vergonhosas. Nesse sentido, o destaque fica por conta do projeto deinclusão social assentado na expansão do mercado interno de consumo demassa, com políticas sociais universais, programa de renda mínima, inves-timento em educação, moradia e economia solidária. Esses são programase temas que estão bem explorados na proposta de programa econômicoque foi lançada pelo Instituto Cidadania3.

A quarta restrição é o desequilíbrio de estoque da dívida externa.Se o Brasil parar hoje, se formos todos congelados durante um ano, nofinal de 12 meses, quando acordarmos, estaremos devendo 18 bilhões dedólares de juros da dívida externa. Com PIB zero, o Brasil tem que gerar18 bilhões de dólares para pagar os juros da dívida externa, sem contar oresto do passivo externo que temos de pagar. O pagamento do passivoexterno brasileiro representa muito dinheiro em qualquer lugar do mundoe, em termos relativos, atinge níveis muito elevados. A situação brasilei-

3. “Um outro Brasil épossível”. Texto interno doInstituto Cidadania produzidoem 2001 pelo Grupodos Economistas.

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14 SOCIALISMO E GLOBALIZAÇÃO FINANCEIRA

ra é considerada crítica pelas instituições financeiras internacionais(severely indebted, segundo o Banco Mundial). Não há política econô-mica que resolva isso. A taxa de câmbio pode ser de 2,4 reais ou 24reais, de todo modo o país tem que arranjar 18 bilhões de dólares paraservir a dívida externa. O serviço da dívida externa é insensível à políticacambial. Então, enquanto nós não resolvermos esse brutal desequilíbriode estoque, não acumularemos capital, não haverá investimento produti-vo e não teremos desenvolvimento econômico.

A quinta restrição é a vulnerabilidade externa. O Brasil não podeficar nessa situação de fragilidade, com essa baixa capacidade de resis-tência a fatores desestabilizadores, pressões e choques externos. O im-portante aqui é o seguinte: a vulnerabilidade externa do Brasil não semanifesta só na esfera financeira (dívida externa). Ela tem uma abran-gência maior. O Brasil é frágil, é débil, em decorrência de vulnerabilidadesnas esferas financeira, comercial, tecnológica e produtiva. Essa últimatem a ver com a presença de empresas estrangeiras no Brasil. Empre-sas estrangeiras têm fontes externas de poder que empresas nacionaisnão têm. Quem esteve no aparelho de Estado sabe que faz diferençalidar com um executivo de uma multinacional ou lidar com um represen-tante de uma empresa familiar brasileira.

Então, reduzir a vulnerabilidade externa brasileira não é só um problemade aumentar tarifa, nem de reduzir importação de bens supérfluos. Não ésó isso. Na realidade, a questão comercial é a menos importante, porque avulnerabilidade externa brasileira é muito mais grave nas esferas tecnológica,financeira e produtiva. Cabe, aqui, um parêntese. Durante o governoFernando Henrique Cardoso aconteceu um fato único na história do Brasile, muito provavelmente, do mundo. O Brasil deu um “salto quântico” dedesnacionalização entre 1995 e 2000, visto que a participação do capitalestrangeiro no valor da produção aumentou de 13% para 25%. Não há

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15SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

registro na história, nem do Brasil, nem do mundo, de uma experiência dedesnacionalização econômica tão significativa quanto a que ocorreu noBrasil durante o governo Fernando Henrique.

Voltemos à nossa pergunta: Que fazer diante da vulnerabilidade exter-na brasileira? Tecnicamente, precisamos do standstill, quer dizer, pára-se o processo de liberalização e desregulamentação e, em seguida, im-plementa-se o roll-back (reversão). Precisamos de uma reversão daliberalização nas esferas comercial, produtiva, tecnológica, monetária efinanceira. No caso brasileiro, é fundamental reconhecer que a vulnera-bilidade externa aumentou em todas as áreas, o que acabou tendo umefeito multiplicador. Como a economia brasileira está débil em todas asesferas, o país ficou extremamente vulnerável.

Na história do Brasil sempre se observava que, quando algum governoabria uma área, ele fechava outra. Abria, digamos, a área comercial,mas fechava a monetário-financeira. Abria a monetário-financeira, masfechava a comercial. Abria a produtiva real, fechava a tecnológica. Voupegar o exemplo dos militares, no governo Geisel (1974-1979), que é oultimo momento de um plano de desenvolvimento com contorno mais oumenos definido. A estratégia foi reduzir a liberalização nas esferas co-mercial e tecnológica. Mas, ao mesmo tempo, houve maior abertura nasesferas financeira (daí o crescimento da dívida externa) e produtiva (abri-ram para as multinacionais via modelo tripartite). Resultado, a história doBrasil sempre foi o país caminhar com uma vulnerabilidade parcial. Abria-se uma ou duas áreas e fechava-se as outras. Fernando Henrique “abriugeral”, em todas as esferas. Só que quando se somam as quatro esferasa vulnerabilidade não foi multiplicada por quatro. Na realidade, ficamoscom quatro elevado a quatro, porque uma acaba contaminando a outra,isto é, houve um crescimento exponencial da vulnerabilidade externa daeconomia brasileira.

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Retornemos ao conceito de africanização do Brasil sob a responsabili-dade de Fernando Henrique. A condição necessária para se acabar coma africanização do Brasil é ir na origem daquela trajetória descrita, isto é,parar com a liberalização e revertê-la. Ponto importante: não é um pro-blema estritamente comercial. Vale repetir, a esfera comercial é a me-nos importante. É fundamental atuar nas esferas financeira, monetária,produtiva e tecnológica. Como fazer isso? Há várias medidas, boa partedelas é relativamente simples, com uma folha de papel A4 toma-se adecisão que se publica no Diário Oficial. Uma carta circular do BancoCentral, restringindo o investimento em Bolsa de Valores, é uma folha depapel A4. Resoluções do Conselho Monetário Nacional são tomadas portrês pessoas via telefone. Quem ganhou ganhou; quem perdeu perdeu.Outras medidas precisam de um arcabouço jurídico-institucional um poucomais sofisticado, como, por exemplo, criar uma agência reguladora decapital estrangeiro.

A sexta restrição envolve as deformações institucionais. Tenho aimpressão de que precisamos de reformas institucionais fundamentaisem pelo menos cinco áreas. Primeiro, o aparelho repressivo do Estado(Judiciário, Forças Armadas e polícia). A desigualdade de direitos civisno Brasil é chocante. Trata-se da polícia e do Judiciário. Dom MauroMorelli, bispo de Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, tem uma frase queé genial e resume a situação: “O Brasil tem dois códigos, o Civil, que épara proteger gente como nós, que somos, que temos e que sabemos –na realidade, os cidadãos –, e tem o Código Penal, que é para perseguiraqueles que não são, não têm e não sabem”. Ainda no que se refere aoaparelho repressivo, temos as Forças Armadas. Por um lado, o militarbrasileiro tem um elemento positivo de nacionalismo; por outro, oreacionarismo nas Forças Armadas brasileiras parece um problema ge-nético! Isso é um problema, pelo menos potencial.

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Precisamos, ainda, de reformas do aparelho ideológico do Estado. Auniversidade brasileira é uma instituição que vem se degradando nos últi-mos anos. A culpa é, sem dúvida alguma, do governo Fernando Henrique,com falta de investimentos etc. Entretanto estou na universidade há 30anos e tenho uma hipótese que tem muito a ver com a origem de classe dequem manda na universidade, que são os professores e os pesquisadores.Boa parte da intelectualidade brasileira tem origem na classe média. E,nesses últimos dez, quinze anos tem havido crescente insegurança na clas-se média. Dentro da universidade a classe média desenvolveu mecanis-mos de proteção altamente corporativos, que são destrutivos da institucio-nalidade. Estou convencido, hoje, de que parte expressiva da responsabili-dade da degradação institucional da universidade brasileira, principalmen-te as instituições federais de ensino superior, tem a ver com a conduta dosseus próprios membros, funcionários e, em especial, professores. É claroque o governo federal tem uma influência importante. O fato é que preci-samos que esse processo de degradação seja revertido.

Os meios de comunicação têm um potencial desestabilizador muitogrande. Se não houver uma institucionalidade que, de alguma forma,segure a venalidade e a sordidez dos meios de comunicação no Brasil,ninguém vai tomar qualquer decisão firme neste país que contrarie osinteresses da elite econômica. E, se tomar, não conseguirá implementá-la. Para ser objetivo, ninguém, por mais corajoso que seja, botará suaassinatura num documento público sabendo que ele vai atingir a medulada elite e que, no dia seguinte, os meios de comunicação vão desmoralizá-lo pessoalmente. Resultado, a mídia brasileira (altamente concentradaem poucos grupos) é uma restrição ao processo democrático e, portanto,precisamos de reformas urgentes nessa área.

O sistema financeiro é outro que precisa de reforma. Para termosconcorrência no sistema financeiro é fundamental ter grandes bancos

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estatais disputando com grandes bancos privados. Como parte da heran-ça trágica de Fernando Henrique, temos a desnacionalização do setorbancário brasileiro. Os bancos internacionais têm fontes externas de poderque os bancos privados nacionais não têm. Por exemplo, uma newsletter,uma publicação institucional de um banco estrangeiro, tem uma capaci-dade de desestabilizar o Brasil muito superior a de qualquer banqueirobrasileiro. Se um analista de um banco estrangeiro faz uma observaçãosobre mercado de câmbio no Brasil ou sobre outra coisa qualquer, issotem um efeito de formação de expectativa, ou de desvio de expectativa,muito forte no país. Portanto, a forte presença de bancos estrangeiros noBrasil é um problema sério.

Ainda com relação aos bancos, cabe mencionar a questão do finan-ciamento, mais especificamente das operações de crédito. No Brasil, osetor imobiliário e o setor rural respondem por 80% das operações decrédito dos bancos públicos, sendo que as participações corresponden-tes são 15% para os bancos privados nacionais e 11% para os bancosestrangeiros. Então, precisamos de políticas ativas de redirecionamentodo crédito, isto é, políticas mais afirmativas nesse sentido.

A sétima restrição refere-se à acumulação de capital. O projeto deexpansão do mercado interno de consumo de massas precisa da amplia-ção rápida e consistente da oferta, isto é, da acumulação de capital.Antes de expandir a demanda, é necessário aumentar o potencial deoferta. O Estado precisa de mecanismos para acelerar o processo deacumulação de capital, além do seu próprio investimento e da oferta definanciamento de longo prazo. Um desses mecanismos é o uso social doexcedente econômico. Quando há excedente (é óbvio que se deduzemos impostos), a empresa pode distribuir lucros e dividendos, aplicar emtítulos públicos, terra, equipamentos etc. O uso social ocorre quando par-te do excedente é compulsoriamente reservado para o trabalhador (par-

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ticipação nos lucros), o aumento da produtividade (via inovação) e aacumulação (formação de capital fixo). Parte do excedente pode serdirecionado, por meio da regulação estatal, para a acumulação de capi-tal. O Estado tem que planejar, organizar, induzir, decidir, estimular esseuso social do excedente. Não há dúvida de que o Brasil precisa de umaacumulação de capital muito acelerada. O Brasil precisa de taxa de in-vestimento “padrão-China”. A taxa de investimento do Brasil, hoje, estáem torno de 19%, na China é de 38%. Então, somente teremos essa taxase a “locomotiva” for o investimento público, se houver financiamentode longo prazo para o pequeno e médio empresário, e se induzirmos onúcleo duro do capitalismo brasileiro a ter uma acumulação acelerada.

A oitava restrição trata da política externa. Até agora tratamos es-pecificamente de restrições de natureza interna ao projeto de orientaçãosocialista (com exceção do passivo externo). Passemos à dimensão ex-terna. O Brasil precisa de uma política externa compatível com umainserção ativa no sistema econômico internacional. A “desimportância”do Brasil no cenário internacional é um fato. No âmbito da diplomacia, jáhouve quem dissesse que o Brasil “não tem excedente de poder”. O paísnão tem força, nem projeção internacional. A influência do Brasil naOrganização Mundial do Comércio (OMC) é nula. No Fundo MonetárioInternacional (FMI) a influência brasileira é “negativa”. O país não temcredibilidade, não tem influência, não tem prestígio, não tem projeçãoporque é vulnerável.

O que significa isso? Quando não se tem força e, ao mesmo tempo, seprocura alguma independência, há a alternativa de se tensionar os ad-versários. Para começar, pode-se tentar colocar na agenda internacionalos “não-temas”. Levar para dentro da OMC, do FMI, do Banco Mundialos “não-temas”. Teremos sucesso? Muito provavelmente, não. Mas, quan-do se tensiona, criam-se incômodos e, portanto, passa-se a ser conside-

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rado e, até mesmo, respeitado e, talvez, temido. Isso até o dia em quetivermos algum tipo de poder efetivo no cenário internacional, o que vaidemorar uma década, pelo menos.

Ainda com relação à questão da política externa, a estratégia de “tensionaro adversário” pode ser detalhada em diferentes áreas. O principal tema daagenda internacional atual é a reforma dos sistemas financeiro e monetá-rio em decorrência da reunião das Nações Unidas no México previstapara abril de 2002. Para ilustrar a estratégia de “tensionamento”, prepareium texto técnico tratando de propostas e temas relacionados à globalizaçãofinanceira, que foi enviado para os debatedores. Uma versão desse textoestá sendo publicada no exterior4. Por exemplo, nele propomos tornar ile-gais os paraísos fiscais, bem como sugerimos o fechamento do FMI. Essetexto é bastante técnico na área de finanças internacionais e não vale apena entrar em detalhes neste fórum.

Inserção internacional: política bilateral – O fato fundamental éque a política externa do Brasil precisa de uma mudança radical. A novadiretriz é a seguinte: precisamos focar nas políticas bilaterais. O Brasil temque ter um perfil baixo nos organismos multilaterais porque não tem poder.Então, tem que centrar fogo em políticas bilaterais. O que é política bilate-ral? No fundo é o toma-lá, dá-cá (tit-for-tat, no jargão técnico).

O Brasil tem que manter perfil baixo nos esquemas multilaterais edeixar de lado os plurilaterais (sub-regionais ou inter-regionais). Maisespecificamente, a idéia é rejeitar a Área de Livre Comércio das Amé-ricas (ALCA). A ALCA é, realmente, um projeto do tipo “raposa no gali-nheiro”. O Brasil pode entrar numa armadilha jurídico-institucional muitogrande. Se queremos exportar para o mercado norte-americano, deve-mos negociar bilateralmente. Nas negociações bilaterais devemos dei-xar de lado temas como liberalização e desregulamentação de serviços e

4. “International Financialand Monetary Systems: Anassessment from the South”,Finance & Common Good,Genebra, no 6, 2001,p. 46-50.

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investimentos. Esses temas implicam o aumento da vulnerabilidade ex-terna da economia brasileira.

Essa diretriz também se aplica ao contexto regional latino-americano. OBrasil deve ter um desengajamento gradual do Mercosul. Defendemosessa tese em livro recente5. O Mercosul cria mais problemas do que re-solve. Por quê? A América Latina, de modo geral, está envolvida emprojetos neoliberais, que são exatamente aqueles que nós rejeitamos. Éingenuidade imaginar que fazendo aliança com argentinos, paraguaios euruguaios aumentaremos nosso poder de barganha para negociar com osnorte-americanos. Negociar em bloco com esses países significa ser cap-turado em uma armadilha do tipo “dormindo com o inimigo”. Não pode-mos esquecer que não somente esses países têm projetos neoliberais, comosuas elites têm um baixo custo de cooptação. Então, esse esquema sub-regional latino-americano (Mercosul) é equivocado.

Não dá para confiar na atual classe dirigente latino-americana. Damesma forma, para implementar uma política externa independente, ne-nhum país pode, atualmente, confiar na classe dirigente brasileira (nóstambém não confiamos). O problema é que se nós mudarmos primeiro,teremos de partir do seguinte fato: lá na Argentina tem um FernandoHenrique, que é o Fernando de la Rúa. O Uruguai e o Paraguai têm osseus Fernandos Henriques6. Não dá para confiar neles. Eles são cooptadosa um preço muito baixo. A elite latino-americana custa muito pouco paraWashington. O pessoal do Tesouro norte-americano sabe disso.

Qual é o nosso problema com a Argentina? É voltar a 1986, isto é,fazer protocolo bilateral. Qual é o interesse? É automóvel, autopeça,laticínio e petróleo? Então, é toma-lá, dá-cá. Fazemos os acordos, e nãoé preciso montar um esquema de política comercial (tarifa externa co-mum) que reduz nosso grau de liberdade. O restante é “lorota” jurídico-institucional. A idéia de coordenação macroeconômica é risível. Então, a

5. O Brasil e o comérciointernacional. São Paulo, Ed.Contexto, 2000.6. Os resultados das crisesinstitucionais e das eleiçõeslatino-americanas maisrecentes não prometem umquadro otimista na AméricaLatina, com a exceção,naturalmente, da vitória do PTnas eleições presidenciais noBrasil em 2002.

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estratégia é um desengajamento gradual do Mercosul. Essas idéias arespeito de política externa brasileira estão apresentadas em detalhes nomeu livro já mencionado.

Em síntese, temos oito restrições fundamentais a um projeto de orien-tação socialista no Brasil no futuro próximo. Essas restrições envolvemdesequilíbrios sérios de estoque: concentração de riqueza, dívida externae dívida interna. Há problemas estruturais graves: desigualdade, vulne-rabilidade externa e deformações institucionais. E, ademais, precisamosde estratégias urgentes para a acumulação acelerada de capital (finan-ciamento e uso social do excedente) e inserção ativa no cenário interna-cional (política externa independente).

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Projeto de nação e inserção soberana – Boa tarde a todos. Quero,primeiramente, agradecer o convite para participar deste seminário.

Concordo plenamente com algumas das afirmações centrais de ReinaldoGonçalves. A primeira é que talvez o grande desafio brasileiro seja aforma de inserção submissa no cenário mundial, que não é nova, mas setornou mais aguda recentemente. E isso é uma herança que cria sériasdificuldades para pensarmos um projeto diferente para o país, um proje-to, como disse Reinaldo, de orientação socialista.

Acho que perdemos o debate ideológico, nesse ponto, nos últimostempos. Foi vitoriosa a visão de que a tal globalização era um fatoinexorável e que diante dela só tínhamos uma postura, que era nossubmeter aos interesses dos grandes agentes mundiais. Claro que hou-ve resistências nesse debate. Paulo Nogueira Batista Júnior, por exem-plo, em seu texto “Os mitos da globalização”7, tentou resistir, mas opensamento que predominou no país (nossos segmentos empresariais,parte da academia brasileira etc.,) vendeu ao povo brasileiro a visãohegemônica da globalização como algo inevitável, diante da qual nadase pode. Nesse aspecto há um debate que tem de ser enfrentado e que

ComentáriosTânia Bacelar

7. BATISTA JR., Paulo Nogueira.“Os mitos da globalização”.Estudos Avançados, São Paulo,Instituto de Estudos Avançadosda Universidade de São Paulo,no 32, 1998, p. 125-186.

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tem a ver com a segunda, e talvez central, afirmativa de Reinaldo, deque temos um grau de liberdade maior do que pensamos ter, no quetambém concordo com ele.

A pergunta é: por que não praticamos esse grau de liberdade, se é queo temos? É somente por essa leitura que nos impuseram de que diantedesse novo ambiente a única postura era a da submissão?

Como acho que essa submissão vem de muito tempo atrás, creio quetemos de olhar também para dentro do país, sem o que não teremos umaresposta. Quando olho para dentro do país, e não somente para a inser-ção brasileira no cenário mundial, acho que, infelizmente, o projeto daselites brasileiras não é um projeto de nação, mas de integração seletivado país, interna e externamente. Esse talvez seja o grande problema.

Ainda não conseguimos, como nação, ter força suficiente para viraresse jogo, porque mesmo nos momentos em que contestamos o que eraimposto ao Brasil, o processo de inserção que fizemos foi seletivo inter-namente. Só vamos conseguir uma inserção mais soberana quando asociedade brasileira tiver como objetivo construir um projeto maisintegrador do que o que tem sido construído. Nunca me esqueço do diaem que Mao Tsé-tung morreu. Na época, um jornalista francês, enquan-to as pessoas velavam o corpo, perguntou a um velhinho que estava nafila esperando para passar na frente do esquife o que Mao havia legadoà China. Ele não disse que Mao tinha legado à China a experiência dosocialismo. Ele respondeu: “Mao recolocou a China de pé. Nós hoje so-mos donos da nossa vida”.

Esta postura de se colocar de pé falta ao Brasil. Acho que este é umponto de discussão importante. E não depende dos outros, depende denós, da vontade do conjunto de brasileiros de ser uma nação fundadanuma sociedade mais homogênea, e essa vontade tem sido bloqueadapelas elites brasileiras.

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Essa é uma discussão que devemos ter, e sua construção passa poralguns pontos listados por Reinaldo Gonçalves do que seria um projetosocialista. Discordo um pouco quanto à sua segunda afirmação. Talveznossa margem de manobra para termos uma inserção mais soberananão se restinja somente porque não pesamos no contexto mundial. Pelocontrário, acho que temos um certo peso no contexto mundial, que deve-ríamos usar. Claro que o que acontece com o Brasil não mexe com onúcleo duro da economia mundial; nós não somos os Estados Unidos oua União Européia.

Mas o Brasil tem uma certa influência e não a usa, ao contrário daChina. Já construímos certos avanços e dispomos de potenciais que nãousamos. E minha interpretação é que não os utilizamos porque o projetoatual se funda numa proposta de integração submissa. E, sendo assim,nem percebemos o potencial que temos.

Quando Dílson Funaro8 decretou a moratória, em fevereiro de 1987,por coincidência alguns meses depois estive nos Estados Unidos emum programa de visitas organizado pelo governo, no qual entrevistáva-mos os dirigentes do país; éramos quatro economistas convidados.Quando chegamos ao núcleo duro do poder decisório, os dirigentesdiziam sempre que havíamos decretado a moratória, mas não perma-neceríamos nela porque não éramos o México ou o Uruguai; éramos oBrasil, e eles não deixariam que o Brasil continuasse com a moratóriapela importância de nosso país. Eles tinham uma leitura clara do nossopotencial de contestação.

Concordo que temos um grau de liberdade maior do que nós exerce-mos e não é só porque não somos definitivos para equilibrar ou dese-quilibrar o cenário mundial, mas porque nós não nos damos conta dopotencial que temos, quer dizer, nossos negociadores não se dão contadesse potencial.

8. Dílson Funaro (1933-1989). Ministro da Fazenda(1985-1987) do governoSarney, implantou o PlanoCruzado, que congelou preçose salários, e decretoumoratória dos pagamentosexternos do país.

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Atuar em níveis local, nacional e mundial – O Brasil poderia teruma inserção muito mais ativa do que tem, usando alguns trunfos quetemos e não usamos. Portanto, a inserção submissa não se dá só porque osoutros nos submetem, mas porque nós nos submetemos. A elite brasileiratambém se submete; ela não valoriza esses outros cacifes porque tambéminteressa a ela a inserção submissa. A verdade é que a elite brasileira querfazer parte do Primeiro Mundo e não se preocupa com o resto da nação.Infelizmente vivemos num país onde predomina essa visão. Enquanto nãomudarmos essa visão, enquanto não mostrarmos que temos um grandepotencial, será difícil construirmos uma inserção mais ativa.

Devemos fazer uma leitura mais positiva do que já fomos capazes deconstruir e descobrir quais são as nossas forças, qual é o nosso poder defogo, em que podemos resistir mais do que resistimos. Precisamos derecursos hoje para financiar nosso déficit externo? Precisamos. Podemoster uma política ativa de captação de recursos? Podemos. Temos? Não.Poderíamos estimular quem quer investir no Brasil em segmentos que se-jam exportadores ou que sejam substitutivos de importações? Poderíamose não o fazemos. Deixamos que os investidores externos decidam ondeinvestir. E se tivéssemos essa política afugentaríamos o investimento dire-to dos estrangeiros? Não, outros países o fazem, tendo menos trunfos doque o Brasil, e não os afugentam. Novamente a China é um bom exemplo.A lei de entrada de capital estrangeiro na China é quase um livro. Elessabem tirar partido do que é um de seus pontos positivos (o enorme mer-cado que representam). O mercado brasileiro também é um trunfo.

Gostaria de fazer uma segunda contestação. Acredito que no mundo,hoje, temos que atuar em várias escalas. Dada a forma como o mundose organizou, é preciso atuar nas escalas local, nacional e mundial.

Reinaldo Gonçalves trabalhou aqui mais a necessidade de articulaçõesem escala mundial, em vários dos mecanismos de regulação, talvez por-

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que estivesse mais centrado na dinâmica do capital financeiro, o que oobrigou a discutir mecanismos, instâncias, instrumentos de regulação emescala mundial.

Ele me pareceu mais centrado em mecanismos, institucionalidades,instrumentos de regulação em escala nacional e mundial.

Discordo dessa história de que deveríamos abandonar o Mercosul. AArgentina não é Domingos Cavallo9, como o Brasil não é FHC. A nossaaliança não é com Cavallo, é com as forças que resistem a Cavallo naArgentina. Agora, Brasil e Argentina juntando as forças que aqui resis-tem a FHC e que lá resistem a Cavallo teriam um peso relativo maior doque o Brasil sozinho. Acredito que é necessário rediscutir essa questão,quer dizer, o nosso projeto precisa passar pela América Latina.

A América Latina precisa do peso relativo do Brasil, e neste pontofiquei em dúvida sobre o que Reinaldo Gonçalves falou. Quer dizer, onosso projeto de Brasil socialista é um projeto isolado de Brasil, negandoessa luta que existe na América Latina? Não entendi. Prefiro não terentendido. Fiquei com essa dúvida porque acho que temos que discutirinstâncias, mecanismos e instrumentos de regulação que são mundiais.Não vamos poder discutir mais a regulação de mercados estratégicosque Reinaldo listou, em escala nacional. Por exemplo, não podemos dis-cutir a defesa da natureza do ponto de vista nacional. Ela é, cada vezmais, uma luta mundial. As instâncias de regulação são mundiais. Outemos força para mudar, em escala mundial, o padrão de relação ho-mem-natureza que predominou nos últimos séculos, ou não vai dar parafazer isso em escala nacional. E, no caso do Brasil, ainda há a questãoda Amazônia.

Acho que na nossa discussão falta definir onde devemos centrar fogonos mecanismos de regulação em escala mundial e em escala nacional.Como juntamos os dois, já que estamos fadados a ter de trabalhar com

9. Ex-ministro da Economia daArgentina nos governos deCarlos Menem (1989-1999)e Fernando de la Rúa (1999-2001). Foi o autor do planode combate à inflaçãobaseado na paridade entre opeso e o dólar, adotado em1991. (Nota do Editor)

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múltiplas escalas? Não dá mais para fazer o esforço que foi feito atéagora de trabalhar somente em escala nacional.

Gostaria de fazer um último comentário. Acho que uma grande dificul-dade no Brasil é que, quando observamos o país no âmbito regional,nossa tendência é olhar a partir do que foi construído recentemente, quefoi um processo de construção muito concentrado em regiões específi-cas. Por isso, o máximo que conseguimos é propor políticas diferencia-das para as outras regiões. É como se fôssemos a Alemanha, e nãosomos. Na Alemanha cabe tomar esse tipo de atitude. Quer dizer, o quea Alemanha está fazendo hoje é um esforço de atrair investimentos daAlemanha Ocidental para a Alemanha Oriental.

É importante fazer isso no Brasil? É. Mas é insuficiente. Acho queoutra grande dificuldade no Brasil é vermos a heterogeneidade regionaldo nosso país não como um problema, mas como um enorme potencial, enão conseguimos fazer isso; no máximo, conseguimos ter políticas adi-cionais vistas sob a perspectiva regional. Mas não conseguimos dar con-ta da fantástica riqueza em cima da qual vivemos, que é o fato de sermosum país heterogêneo, de termos possibilidades de arranjos locais os maisdiferenciados e tratar isso como potencialidades, e não como políticascompensatórias, suplementares.

Acho que a construção de um país socialista seria muito mais fácil seconseguíssemos virar a mesa também nesse ponto. Por exemplo, verque o Nordeste, que só vemos como um problema, oferece um fantásti-co potencial para sermos um dos países fruticultores mais importantesdo mundo; mas não conseguimos ver isso. Conseguimos, quando muito,destacar alguns pequenos investimentos para colocar naquela região.Isso é próprio da cultura brasileira, da visão que temos de país. Acho queesse é um outro grande desafio a ser superado. Obrigada.

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29SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

Construir uma nova força social ampla – Boa tarde. Agradeço aopool que associa o Instituto Cidadania com a Secretaria Nacional deFormação do PT e a Fundação Perseu Abramo pelo amável convite amim dirigido e pela oportunidade ímpar de participar de um semináriocom presenças tão qualificadas.

Quando fui informado sobre o tema proposto, convenci-me de que ocentro do debate seria, de fato, a globalização financeira. O texto a nósenviado por Reinaldo reforçou tal convicção. No entanto, agora, apósouvir atentamente sua abertura, que optou por privilegiar outro assun-to, sinto que estamos sem um lugar definido: um pouco ao mar, umpouco à terra. No que me concerne, continuarei atento à primeira pro-posição, não apenas porque é provável que os demais participantestenham se preparado, igualmente, para abordá-la, como também por-que prefiro aproveitar o ensejo de trocar idéias sobre os acontecimen-tos transcorridos, mundialmente, nos últimos 30 anos, em torno da ques-tão nomeada no título original, cuja importância estratégica é de enor-me incidência para o movimento socialista contemporâneo.

ComentáriosRonald Rocha

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30 SOCIALISMO E GLOBALIZAÇÃO FINANCEIRA

No âmbito da esquerda e, mais amplamente, nos setores democráticosde um modo geral, não tem havido um consenso sobre o que vem suce-dendo no terreno das finanças “globalizadas”, sobretudo quando se tratade apreender os processos reais na esfera abstrata dos conceitos. Hádiferenças e até divergências explícitas. Hoje estamos tendo a excelenteoportunidade para aprofundar uma discussão que já deveria ter sido en-frentada, frontalmente, há pelo menos duas décadas.

Começo destacando, no texto inicial do expositor, um fio condutor com oqual me identifico. Ao contrário do que ocorreu nos últimos tempos, na-quela época de hegemonia do “pensamento único” incontestado, Reinaldonão adota, como fulcro da explanação, a temática da “desterritorialização”,que, em muitos autores, aparece relacionada com as teses de contraçãodo espaço e do tempo, de eliminação da questão nacional e até mesmo defalecimento do Estado como processo histórico, fato sociopolítico e cate-goria analítica. Tais formulações, no mínimo, enfraquecem a luta dos po-vos contra os poderosos centros financeiros internacionais e desconstituema resistência nacional, tão necessária nos dias de hoje quanto tem sido nosúltimos séculos de dominação colonial e, depois, imperialista.

Todavia, não basta registrar os efeitos deletérios dessas opiniões, atéporque poderiam expressar uma objetividade a ser considerada, em vezde apenas um mito. É preciso ir além da simples refutação baseada emconseqüências político-práticas, por mais justa que seja. Como nação eEstado são processos solidamente fincados na realidade, a tentativa dedesconstrução categorial de seus elementos constitutivos, presentes nasformações sociais capitalistas contemporâneas, sugere mais uma aplica-ção do tristemente célebre adágio nietszchiano: “Não há fatos, mas ape-nas a interpretação dos fatos”.

Trata-se de uma curiosa utopia cosmopolita burguesa, que se apossado apelo ao imaginário feito pelo internacionalismo emancipatório para –

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31SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

utilizando, em outra acepção, as palavras de Robert Kurz – degenerá-lode maneira “errada e negativa, dentro do invólucro capitalista do siste-ma mundial produtor de mercadorias [...] na forma de um comunismodas coisas”10 transnacionais, que afirma suprimir as fronteiras tão-so-mente para subordiná-las, pragmaticamente, aos desígnios dos podero-sos interesses dominantes.

Ao contrário desse tour de force subjetivista e irracionalista, o textode Reinaldo se preocupa com a questão nacional em vários momentos.Por exemplo, ao afirmar que as finanças globais estão fora de controlepor parte dos governos nacionais. Ao dizer que os países, inclusive oschamados desenvolvidos, padecem de grande vulnerabilidade financeiraexterna. Ao frisar que a regulação no topo do mundo burguês, por meiodas instituições financeiras mundiais, poderá ser útil, mas não substitui asregulações públicas nacionais. Ao repudiar a idéia de que o FMI e outrasinstituições deveriam ter acesso privilegiado a informações confiden-ciais sobre a situação dos diversos países. E assim por diante.

Trata-se de uma concordância significativa, fundamental para que ossujeitos revolucionários reflitam sobre uma estratégia capaz de abordar aluta democrático-popular no Brasil com a perspectiva do seu desdobra-mento rumo à construção de uma sociedade socialista. Há, todavia, dife-renças de sensibilidades e, talvez, de opiniões. Passo a abordar algumasdelas, não sem antes registrar: outras tantas foram dissipadas pela inter-venção de abertura, que, mesmo deslocando a centralidade temática origi-nal, acabou enriquecendo o debate e trazendo contribuições positivas.

O conceito de “globalização” – Destaco o termo “globalização”, queo texto de Reinaldo adota e cujo uso hoje tornou-se, digamos, senso co-mum, inclusive em boa parte da esquerda. Semelhante conceito – quenasce no final da década de 1970 e é filho direto das Business Management

10. KURZ, Robert. O colapsoda modernização – Daderrocada do socialismo decaserna à crise da economiamundial. Rio de Janeiro, Paz eterra, 1992, p. 223.

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Schools de Harvard, Columbia e Stanford – apropriou-se da então novíssimaterminologia contida na teoria da comunicação de McLuhan, na qual pon-tificava a idéia de aldeia global, e logo se colou ao discurso neoliberal. E ofez de forma tão pegajosa que reforçou, entre seus críticos, a convicçãode que nada tem de neutro.

A palavra mágica “globalização”, como é próprio das categorias políti-cas – especialmente daquelas que sintetizam fenômenos e concepçõesmarcantes –, possui uma forte carga subjetiva e uma enorme repercus-são ideológica. Expressa a apologia de um mundo capitalista sem fron-teiras e absolutamente disponível ao lucro, sem peias de qualquer ordem.Tenta infundir a ilusão de que seria um processo portador de uma essên-cia benéfica e sem mazelas. Sugere algo irreversível, diante do qual sóseria possível adaptar-se.

Ademais, é cheia de conotações valorativas que mistificam e glamou-rizam o progresso técnico atual, bem como as relações sociais e os pre-conceitos que o têm acompanhado. Sua fluidez é um terreno propício paraos recorrentes apelos ao relativismo, ao fim da moral – inclusive da éticacomo momento filosófico que a tematiza –, à exaltação de uma certa con-cepção de estética que substitui os conteúdos da ação social, à dissoluçãodo dever no hedonismo e a uma visão de política de corte instrumental ehostil aos valores e práticas emancipatórios.

A utilização inconsciente e modista desse conceito – carente de qualquerabordagem crítica aos instrumentos e instituições de hegemonia controladospelos inimigos do mundo do trabalho, da esquerda, das grandes maioriasmiseráveis, enfim, dos “perdedores” escolhidos e condenados pelo darwinismosocial-mercadológico em voga – deixa o trânsito livre à forma de pensar ede agir dominante. Doravante, pois, sempre que o presente comentárioreferir-se à “globalização” estará nomeando um processo que engloba erealça o projeto hoje hegemônico, com toda sua carga político-ideológica.

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Quando for o caso de remeter ao processo objetivo de expansão dasrelações socioeconômicas burguesas, necessário e inevitável no interiordo predomínio da reprodução metabólica do capital, será utilizada a pala-vra mundialização, entendida como etapa contemporânea da inter-nacionalização do capital e, portanto, como categoria menos vaga e me-nos suscetível à manipulação. Caso não se pretenda priorizar a discus-são conceptual, poderão ser utilizados os termos “globalismo” e“globalização” de maneira mais frouxa, mas sempre com as doses ne-cessárias de prudência e distanciamento crítico, como freqüentemente ofazem os sujeitos participantes no Fórum Social Mundial.

Nesse sentido, a mundialização deve ser objeto de um tratamento maiscuidadoso. A própria esquerda necessita desse rigor para não tomargato por lebre. Embora tenha, em certa medida, procedência, parece-meinsuficiente afirmar que seria a convergência internacional entre as cres-centes afluências de bens, serviços e capital, competitividade na econo-mia mundial e integração entre a economia nacional e os agentes econô-micos. Tais processos já existem pelo menos desde o século XIX e setornaram acelerados na passagem ao século XX. Como são antigos, mos-tram-se precários para explicar o objeto em foco, que ocorreu caracte-risticamente a partir do início da década de 1970.

As próprias determinações da “globalização” devem ser mais bem defi-nidas, o que implica, ao menos, esboçar algumas de suas singularidades.Consideremos, por exemplo, o progresso tecnológico. Ora, semelhante pro-cesso sempre existiu na sociedade capitalista como traço fundamental. Demodo nenhum pode ser tido como algo recente. Consideremos também omercado. O capital, seja na sua infância, seja na sua maturidade, precisasempre regenerá-lo para continuar crescendo. A economia o tem comonecessidade ontológica, já que, na sociedade atual, é o fim precípuo detoda produção e o meio de realização do lucro. Assim, tais causalidades

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genéricas e permanentes são impotentes para explicar o fato concreto edatado em questão.

Fala-se também que outra determinação seria o binômio desregulação-liberalização, o que não deixa de ser parcialmente correto. Porém, sendo aúnica causa dotada de singularidade, corremos o risco de ver o processo de“globalização” como decorrência de uma atividade meramente político-cul-tural, algo puramente volitivo, sem vinculação com a práxis histórico-social,com o desenvolvimento das relações de produção modernas, com o capita-lismo na sua dimensão de sociabilidade objetiva, que lhe são precedentes eambientais. Estaria desconstituída a noção de ser social, numa concepçãocuja tipologia só não pode ser tida como hegeliana porque a constituição doreal pela mera objetivação de idéias e valores vem sendo marcada pelo atualclima de irracionalismo e rechaço ao pensamento abstrato.

As determinações da mundialização merecem um enfoque mais circuns-tanciado. Para detectá-las, é importante destacar não a generalidade, maso momento específico no desenvolvimento das forças produtivas e do pro-cesso tecnológico em que o trabalho humano atinge um patamar extraor-dinário de qualificação e em que os meios modernos, em particular a robóticae a telemática, permitem novas possibilidades no âmbito da indústria, dacirculação e do gerenciamento da economia burguesa. Importa registrarque a nova objetividade instalada no âmago da sociedade alienada tende areforçar uma certa consciência dicotômica sobre a multiplicação das ri-quezas e da vida, só capaz de “perceber” a produção como se estivessealocada em lugar subalterno e decadente.

A velocidade impulsionada pelos instrumentos informáticos, nesse par-ticular, está para o mundo natural e para a base produtiva do capitalhodierno muito mais distante do que, por exemplo, os movimentos retilíneosda mecânica newtoniana estariam para a visão de natureza e as práticasempresariais do passado. Surgiu, assim, um paradoxo: enquanto a base

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física da produção se movimenta de modo lento relativamente à esferamonetária, essa última o faz de maneira extraordinariamente veloz emface da primeira, por causa das novas tecnologias, intensificando a ilusãode que a circulação financeira seria um fenômeno absolutamente autô-nomo vis-à-vis à substância da transformação mercantil.

Tal quimera é compatível com o anseio magnata-financeiro de lucrarsem o estorvo da contestação proletária, que estaria em decadência pelaextinção do mundo da produção direta. Chocando-se contra a ética doantigo “espírito do lucro” – o geist que, para Sombart, pressupunha oesforço edificante –, os intelectuais neoconservadores falam em socie-dade pós-industrial. Mesmo à esquerda ganhou certa audiência o discur-so, ingênuo e sem base científica, segundo o qual a centralidade ontológicado trabalho na sociedade foi ultrapassada e, agora, teriam mais importân-cia política os “sujeitos alternativos”. De modo geral, semelhantes vulga-ridades, que ganharam audiência na crise do movimento comunista, es-tão conectadas ao pensamento neoliberal e se revelam muito úteis à es-tratégia de pretensas liquidação do movimento revolucionário e eterni-zação da opressão burguesa.

Na realidade, ocorre que o intenso surto tecnológico dos 30 últimos anosincorporou novos instrumentos às forças produtivas e aumentou acelera-damente o potencial do trabalho. Todavia, de fato, subtraiu valor de uso àcapacidade transformadora de grande parte dos assalariados, ainda liga-dos ao modo de transformar associado ao fordismo. O resultado foi a emer-gência de novos ramos e tipos de relacionamento no interior das empresas.Mudou sensivelmente o perfil do proletariado, ao passo que, ampliandocomo nunca o trabalho morto, converteu o desemprego em chaga social.

Entretanto, a produção continua fundando a reprodução do capital. Pormais que siga mecanismos complexos e por maior que seja sua aparên-cia virtual, o lucro financeiro não passa de apropriação de uma alíquota

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da mais-valia socialmente criada. O trabalho, em vez de retrair-se, acen-tua mais ainda sua centralidade por meio da expansão da produtividade,da industrialização dos serviços, do assalariamento generalizado e docaráter social da produção, mesmo que, às vezes, mascarada pela infor-malidade e até pela ilegalidade. Tal processo objetivo, universalizado pelamundialização, é abordado e ampliado pela “globalização”, que oferecea justificativa ideológica e os instrumentos políticos para o aniquilamentodos direitos sociais – sob os apelidos de liberalização e desregulação – eo boom da precarização.

Existe, ainda, outro vetor significativo da mundialização: diferentementedo que ocorreu no início do século XX, quando o surgimento e a expansãodo imperialismo foi a forma dominante da internacionalização capitalistarumo a novos espaços a serem preenchidos – mas sem ocupá-los integral-mente com as relações de produção, circulação e consumo mercantis –,nos últimos 30 anos se completou a presença planetária da reproduçãometabólica do capital financeiro e de sua racionalidade característica.

Uma das conseqüências dessa mudança de patamar foi a redefiniçãodo processo de marginalização humana, que hoje assume o conteúdo deuma exclusão interior ao sistema – e, portanto, paradoxal –, ao contrárioda anterior inclusão, mais ou menos coercitiva, de sociedades capitalis-tas retardatárias, antigas colônias e até mesmo civilizações ainda exter-nas ao processo de “ocidentalização”. Sem essa nova forma de ser, den-sa e planetária – logo, universal –, das relações burguesas, sem tal pro-cesso abrangente e ilimitado, não seria possível o deslanche da mundia-lização como evento singular.

Outra determinação, presente num momento histórico preciso: o fimde uma fase de acumulação ininterrupta e o começo da crise de longocurso no início da década de 1970, a partir da falência do fordismo, docapitalismo de Estado, do keynesianismo e do sistema de Bretton Woods.

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A bancarrota do antigo contrato imperialista – gerado na primeira meta-de do século XX e consagrado ao fim da Primeira Guerra Mundial –provocou, por parte dos grupos oligopolistas-financeiros, a necessidadede construir um novo padrão de reprodução ampliada, formulando o pro-jeto político-ideológico “globalista” e impulsionando, rumo a um novo pa-tamar, o processo de internacionalização do capital.

Finalmente, no plano subjetivo, os arautos da resposta neoconservadoravêem na “globalização” o signo do poder absoluto e incontestado de ummitológico capital sempiterno, ao qual não se poderia resistir. Entretanto,o próprio neoliberalismo surgiu não como manifestação de uma potênciaabsoluta da ordem vigente, mas como tentativa de reordenação, dereconstituição acumulativa e, portanto, como resposta política ao padrãocapitalista em bancarrota. Por tal motivo, faz sentido afirmar que hoje háuma crise dentro da crise.

Há, todavia, entre os apologistas da “globalização”, algumas afirmativasque possuem certa pertinência. Sem ratificar seus exageros idealistas, éverdade que o fenômeno vai além da questão econômica: transita pelapolítica e tem um forte componente cultural. Já no que se refere às profe-cias, não há como transigir com o engodo. É absolutamente falsa a idéia deque seria um processo eterno. De fato, como projeto que supõe uma ideo-logia, é temporal, logo passageiro. Mas a internacionalização do capital, nosmarcos da sociabilidade burguesa, isto é, sob as relações capitalistas taiscomo hoje se desenvolvem, é irreversível. Não há como voltar atrás. Sóexistem duas alternativas: continuar no seu interior ou sair para a frente.

Portanto, a questão central seria, não realizar uma simples inserçãosoberana na “globalização” – como se fosse possível compatibilizar asoberania nacional de um país dependente com a hegemonia exercidapor uma potência ou bloco imperialista –, mas travar disputas por refor-mas que interessem ao mundo do trabalho e aos povos no processo ne-

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cessário e irreversível de mundialização do capital, acumulando no sen-tido de uma estratégia destinada a reverter a sociedade alienada, que é aúnica forma de transcender o desenvolvimento social para além do pro-cesso de internacionalização burguesa. Eis a única via para suprimir oarcaísmo da civilização em crise, já que a barbárie “global” não significao retorno a um passado distante, um retrocesso para aquém da civiliza-ção mercantil, mas um traço imanente ao capitalismo contemporâneo.

As características da mundialização – Quais são, afinal, as caracte-rísticas da atual mundialização? Para vislumbrá-las, cumpre destacar oque pode vir a definir o perfil e a essência do processo, sendo capaz dedistingui-lo da internacionalização anterior. Primeiro, o investimento exter-no direto adquiriu um alto grau de concentração nos países adiantados.Segundo, o comércio exterior assumiu a forma dominante de troca inter-setores, intergrupos e interblocos. Terceiro, as empresas transnacionais sebeneficiam globalmente da liberalização do comércio, das novas tecnologias– inclusive gerenciais – e da liberdade do fluxo financeiro sob a condiçãodiferencial dada pela velocidade da circulação de moeda e capital imprimi-da pelas novas tecnologias.

Continuando: quarto, há o surgimento tendencial de empresas-redes, ouseja, mudanças morfológicas na configuração do capital, reconciliando suacentralização na esfera da propriedade e do controle com a descentralizaçãooperacional e repousando o antigo caráter social da produção não mais naproximidade física do trabalho e na linha de montagem, mas sobre o acúmulode trabalho passado e a integração ampla do processo produtivo possibili-tado pelas novas tecnologias em âmbito internacional.

Um quinto item: o antigo imperialismo, com base nacional, caminhou paraa interpenetração, o investimento cruzado e fusões instantâneas entre capi-tais de diferentes origens, criando estruturas de ofertas altamente concen-

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tradas e ágeis no plano internacional. Portanto, reforçou, com intensidadejamais anteriormente ocorrida, a primazia dos oligopólios mundiais, tornan-do-a incontestável mesmo diante dos sujeitos burgueses subalternos. Sob avista grossa e a negligência teórica dos liberais, especialmente os mais orto-doxos, esses grandes grupos transnacionais – que no discurso pregam, sob aalcunha de “Estado mínimo”, a desagregação da coisa pública supostamen-te antediluviana – apóiam-se fortemente e cada vez mais nos seus podero-sos aparatos estatais e blocos de origem, a partir dos quais operam.

Finalmente, em sexto lugar, e para além do surgimento do capital finan-ceiro detectado por Hilferding no início do século XX, agora se consumou oprocesso de financeirização do capital, que, parafraseando Lenin – Impe-rialismo, etapa superior do capitalismo –, pode ser tida como “etapasuperior” do imperialismo. Anteriormente, as formas autônomas de exis-tência do capital – bancário, industrial, comercial e agrário – já haviam sefundido num todo único e num patamar mais elevado: o capital financeiro.Mas ainda não havia aquilo que pode ser chamado de financeirização glo-bal dos vários setores do capital e, sobretudo, do capital produtivo, a pontode descaracterizá-los como realidades tangíveis. Hoje, diferentemente dopassado, já não é o mercado que gera a mercadoria-dinheiro. É o movi-mento da mercadoria-dinheiro que gera o mercado da mundialização.

Há, na contemporaneidade, uma enorme excludência, interiormenteao sistema, de segmentos sociais e até de sociedades inteiras, em con-traste com a integração imperialista ocorrida no início do século passado,que incluía formações sociais externas. Assim, a chamada “globalizaçãofinanceira” é, de fato, uma nova etapa da marcha do capital financeiropara além de seu antigo modo de ser, que era o simples domínio dasfinanças sobre os demais movimentos do capital. Agora, completandosua integração, acontece uma espécie de dissolução do capital concretonuma virtualidade abstrata e universal. Por isso, a estratégia socialista

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deve considerar o capital financeiro não como simples moeda que circu-la de maneira autônoma – seja como riqueza bancária, seja, como al-guém sugeriu, como “dinheiro vagabundo” –, mas, sim, como um tipocaracterístico de capital que promove cotidianamente o processo definanceirização de suas próprias formas anteriormente existentes.

Para o movimento emancipatório, hoje mais do que no passado, nãoseria eficaz e conseqüente promover reformas exclusivamente ou pri-mordialmente no âmbito monetário e financeiro, mesmo que lograssemum certo êxito técnico – mas sempre fugaz – no plano internacional.Qualquer transformação de fundo, qualquer caminho mais sólido no sen-tido de uma nova sociabilidade, implica atacar o conjunto “globalizado”,concentrando o golpe central na sua fração hegemônica, formada pelosgrandes aristocratas do dinheiro, os grupos oligopolistas-financeiros quese fortaleceram nas últimas três décadas.

Um novo bloco histórico – Já que meu tempo está praticamente nofim, peço uma pequena tolerância para registrar alguns breves comentá-rios relativos à formulação de políticas para enfrentar os novos problemasdecorrentes da mundialização do capital. Um deles se refere à maneira deabordar a crise institucional planetária. Uma proposta tem sido a criaçãode órgãos supostamente consensuais em escala mundial. Trata-se de umaespécie de contratualismo “globalista”, que menospreza o peso dos pro-fundos antagonismos sociopolíticos. Por exemplo: não procede reivindicar,sob o capitalismo, um governo internacional, porque tal instituição, na rea-lidade atual, implicaria, necessariamente, por parte dos Estados nacionais,uma cessão de soberania que enfraqueceria a resistência dos povos aosgrandes oligopólios, à “globalização” e ao projeto neoliberal.

Ao contrário, é preciso investir em sujeitos políticos capazes de en-frentar os principais responsáveis pelas mazelas globalizadas no mundo

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contemporâneo. Já é tempo de unificar os movimentos anticrise em tor-no de um conjunto de reformas de cunho popular, mas sem ilusões deque mudanças dentro da ordem seriam capazes de romper, por si sós, alógica metabólica da reprodução do capital. De fato, são ainda medidaslimitadas, se bem que voltadas contra os interesses e as políticas dossetores hegemônicos no processo de mundialização, abarcando pontosmais ou menos abrangentes, desde o caráter e o funcionamento dasinstituições financeiras, passando por questões setoriais, democráticas ede soberania, até uma atitude a ser mantida diante dos oligopólios, nassuas múltiplas esferas integradas de ação econômica e política: nacio-nais, regionais e internacionais.

Portanto, trata-se de convergir tais iniciativas para o estuário de umnovo bloco histórico internacionalista a partir da luta política de classes.Ao contrário do conceito de sociedade civil mundializada patrocinadopor Jürgen Habermas, que deliberadamente deixa de fora os partidos –inclusive os de esquerda – e os sindicatos, porque estariam naturalmentesubsumidos à lógica instrumental da política e da economia, o caminhomais profícuo é a construção de uma nova força social ampla, com todasas correntes e todos os setores que desejem enfrentar os centros hege-mônicos de poder, no cerne da qual se encontre o mundo do trabalho,com suas organizações representativas e políticas, partidarizadas ou não.

Tais movimentos transformadores e suas políticas mediadas – que se dis-tinguem da chamada Terceira Via e também de meras ações a priori resig-nadas a se exaurirem no interior do “globalismo” – devem assumir e proporfins emancipatórios. Assim, a questão do socialismo retorna à pauta política,tanto no Brasil como no mundo, como alternativa ao processo de mundializaçãodo capital, diante do qual só é possível escapar para a frente, isto é, para forado capitalismo, e não para dentro de sua impossível humanização. Nessesentido, a plataforma de reformas para a ação imediata tem de ser vista não

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como coisa em si, mas como coisa para os sujeitos revolucionários, valedizer, como seu instrumento de unidade, como sua agenda de conquistasparciais e como fator de disputa contra-hegemônica.

Por fim, quanto à questão do projeto alternativo para o Brasil, enfatizadana abertura de Reinaldo Gonçalves, penso também que vários pontos de-vem ser colocados na agenda para a construção de um governo democrá-tico-popular em 2002. Todavia, muitos dos assuntos habitualmente listadoscomo socialistas só articulam – mesmo chocando-se com certos interes-ses dos grandes oligopólios nacionais e internacionais – propostas de mu-dança no interior da reprodução metabólica do capital, da sociedade alie-nada e do Estado burguês. Semelhante impropriedade conceitual não re-sulta, por si mesma, num prejuízo político. O problema seria diluir tal fron-teira, transformando a luta por reformas em reformismo, o que rebaixariae até mesmo desconstituiria o propósito revolucionário por meio de ilusões.

Nessa perspectiva, é preciso fazer a distinção entre a conquista de re-formas democrático-populares, que são importantes e devem ser objetivosda luta dos partidos de esquerda, e o processo mais geral de acúmulo paraa conquista de uma sociedade socialista, que só pode existir na medida emque haja a consecução de três pontos fundamentais. Primeiro, alternar oconteúdo e a hegemonia de classe no Estado, e não só desconcentrar opoder político. Segundo, iniciar o processo de apropriação social dos meiosde produção, e não apenas viabilizar formas de controle parcial do capitalpela sociedade civil. E, finalmente, garantir a democratização real da socie-dade, da economia, da cultura e da política, implantando um regime deliberdade socialista, e não apenas conquistar a cidadania burguesa, sejanacional, seja, como alguns querem, planetária. Trata-se, por mais que otermo provoque prudentes tergiversações, de uma ruptura.

Muito obrigado.

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Usar nossa margem de manobra – Muito obrigado pelo convitepara tomar parte neste seminário com uma platéia tão seleta, por quemtenho um imenso respeito e com a qual falo com grande humildade.

Não poderia deixar de iniciar esses comentários dizendo que perdi ocontexto. Eu considero um aluno de vestibular, nesse momento, um gê-nio. Um aluno de vestibular nunca perde o contexto. Se lhe perguntaremquem descobriu o Brasil e lhe oferecerem várias alternativas: esquimósdo Alasca que vieram pelo estreito de Behring, os vikings no século XII,o Brasil nunca foi descoberto, ou Pedro Álvares Cabral, o aluno respon-derá claramente Pedro Álvares Cabral e entrará na universidade. Eleentende o contexto de que se está falando.

Por isso nesse momento, angustiado, admiro o vestibulando. Estou per-dido, não sei qual é a resposta, quais os comentários que Reinaldo Gon-çalves gostaria que eu fizesse ao seu trabalho. Qual trabalho? O escrito,o falado ou o que eu pude ler na tela do meu computador?

Nesse sentido, peço desculpas aos senhores, e espero não fazê-losperder tempo comigo, sendo provocativo. Acho que será mais divertidopara vocês e para mim.

ComentáriosJoão Sayad

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As duas definições que Reinaldo apresenta do que seria a socieda-de brasileira socialista, do que seriam o socialismo e a globalizaçãofinanceira, me pareceram muito amplas, por isso perdi o contexto eas referências.

Na definição de socialismo, novamente pensei em como seria essasociedade socialista descrita rapidamente pelo Reinaldo. Imaginei o se-guinte exemplo: suponha que minha mulher me mandasse a um cirurgiãoplástico para fazer um enxerto de cabelo. E que o cirurgião plástico, apartir do meu DNA, construísse um novo João que poderia se parecercom o Tom Cruise. Não sou mais eu; e se minha mulher me recebesseem casa apaixonadamente eu ficaria com ciúmes.

Acho que a proposta do Reinaldo ao definir o socialismo no Brasilcomo o resultado de uma radical redistribuição de riqueza e de renda,uma estrutural reforma institucional, uma reforma profunda do Judiciárioe todas as outras reformas propostas, anulou a identidade brasileira noseguinte sentido: como se faz isso? Quando vamos fechar o Congresso?Que país é esse que pode ser desenhado plasticamente como seu autorquer? Será que desta maneira ainda será o mesmo Brasil ou faltam res-trições que tornem essa questão interessante?

Da mesma forma, quando fala em globalização econômica em vez definanceira, Reinaldo acaba adotando uma definição muito ampla que euacho que poderia ser estendida, talvez, para toda a história do capitalis-mo, e mesmo para toda a história da civilização ocidental.

O crescimento dos fluxos financeiros e comerciais é um critério muitoamplo e leva a perder de vista o período histórico específico que nósqueremos analisar. Nesse sentido, sugiro uma leitura divertida; não é umgrande livro, mas é interessante: 1688, de um historiador americano cha-mado John E. Wills11. Ele escolhe 1688 para mostrar como naquele ano,tão perdido e tão distante de nós, havia ligações profundas e importantes,

11. WILLS, John E. 1688 – Oinício da era moderna. SãoPaulo, Campus, 2001.

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comerciais, intelectuais, literárias, financeiras e todas as outras que pen-samos que são típicas do ano de 2001.

Portanto, a definição de globalização também é muito ampla e esvaziao problema que nos foi colocado com o título deste seminário, “Alterna-tiva socialista ante a globalização financeira”.

Se eu me ativesse a esse tema diria, em primeiro lugar, que a globalizaçãofinanceira é um impedimento severo à redistribuição de riquezas propos-tas pelo Reinaldo, porque a globalização financeira é, do ponto de vistaeconômico e financeiro, uma definição corrente, um grande incrementona mobilidade do capital, e, inclusive, na mobilidade da riqueza. E, semdúvida, se fôssemos nos ater a essa questão, diríamos que fazer aredistribuição de riqueza no mundo globalizado financeiramente é maisdifícil, menos necessário e, talvez, quase impossível.

Também fiquei perdido na proposta que descreve um país quaseautárquico econômica e culturalmente e, ao mesmo tempo, sentado se-manalmente em Washington propondo junto com o governo Bush o fimdo FMI. Para quê? Não entendi se seremos uma autarquia no futuro.Então, os senhores me perdoem, mas a primeira parte da exposição doReinaldo me deixou perdido.

Parece que suas propostas assumem que nós podemos tudo, inclusiverefazer completamente no ano de 2002 um país descoberto em 1500,que conheceu a abolição da escravatura em 1888.

Liberdade e dinheiro – Mas não queria fugir ao tema deste seminá-rio, socialismo e globalização financeira. Sobre isso posso falar com umpouco mais de competência porque dinheiro é minha área – sou profes-sor da disciplina sobre Moedas e Bancos.

Dinheiro é uma instituição básica para a liberdade. Eu me lembro doscomentários da antropóloga Carmem Junqueira ao filme Iracema, no

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qual uma pequena índia se prostitui. A professora Carmem Junqueiradefende, ou pelo menos mostra, que a prostituição representava paraaquela índia o caminho da liberdade feminina. Ela cita até um mito dacultura indígena que reproduz esse ponto de vista.

Mas dinheiro é, sem dúvida nenhuma, o passaporte da liberdade. É odinheiro que permite nos libertarmos do trabalho, do emprego, da rique-za, do patrão, do senhor feudal, do endereço fixo etc. Sem dinheiro nãohá liberdade.

E como se combina dinheiro e socialismo? Será que repetiremos o erroda Hungria, que depois da revolução socialista passou por uma grandehiperinflação e proclamava – pelo menos alguns dos seus economistas ofaziam – que uma sociedade comunista, planejada, não precisava dedinheiro e, portanto, a hiperinflação era bem-vinda? Será que ainda sería-mos prisioneiros dessa ilusão, desse equívoco dos anos imediatamenteposteriores à Segunda Guerra Mundial? Como essa globalização finan-ceira afeta e se articula com o socialismo?

Precisaríamos primeiro definir o que é socialismo. A definição doReinaldo me parece ser profundamente baseada na igualdade da dis-tribuição de riqueza e da renda. A definição que eu gostaria de proporé mais solta e, me permito dizer, mais generosa. Ela seria a sociedadeque não é mais capitalista, que não pensa mais como os economistaspensam, em que o trabalho é considerado uma festa, e não uma obriga-ção, e em que a escassez, que foi construída pelo capitalismo, talvez jánão seja o critério fundamental de organização da sociedade. Nessasociedade assim definida, socialismo e dinheiro são gêmeos, funcio-nam lado a lado.

Entretanto, quando pensamos sobre os problemas atuais da sociedadebrasileira e de outras economias capitalistas, a globalização financeira éum grande problema.

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Além de o dinheiro ser uma instituição da liberdade, é a condição ne-cessária para a existência do desemprego. Sem dinheiro não há super-produção, não há capitalismo, mas também não há desemprego. Só exis-te desemprego por causa do dinheiro. Quanto mais atraente for o dinhei-ro, maiores são as chances de prevalecer o desemprego. Não é poracaso que a partir da década de 1980 o dinheiro se tornou muito maismóvel e passou a pagar juros reais positivos inéditos na história do capi-talismo, estes, sim, uma novidade dos últimos 20 anos.

O desemprego decorre disso. Na sociedade em que vivemos, a globa-lização financeira adiciona uma qualidade a este ativo que é o dinheiro,que já é extremamente atraente. Ela adiciona uma qualidade a mais quetorna o desemprego a marca do desenvolvimento da economia mundialdos últimos 20 anos.

Por que isso acontece? O investimento público produtivo em fábricas,máquinas, pontes concorre com investimentos em dinheiro; o dinheiro éo porto seguro, é a redenção do capitalismo.

O capitalista trabalha para ter o dinheiro. Se, além de não haver infla-ção, o dinheiro rende juros altos, ele é o investimento preferencial. Porque vamos montar fábricas? Por que vamos ter de lidar com os metalúr-gicos, com os petroquímicos se podemos ter dinheiro? Ele é a origem dodesemprego. Vejam o exemplo de uma pessoa que vai comprar algumacoisa de outra. Quem vai bajular quem? Quem tem dinheiro será bajulado.Ele tem o virtual poder de escolher o que vai comprar e quando. Por issoo dinheiro globalizado dos últimos 20 anos gera desemprego e cresci-mento lento na economia do mundo inteiro.

Não é por acaso que a economia mundial cresce a taxas muito maislentas, com muito menos investimentos e com altos índices de desempre-go. Mas essa é a natureza do dinheiro. O dinheiro como ativo preferencialsempre tenderá a ser falsificado pelos bandidos, alavancado pelos bancos,

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apostado pelos hedge funds12. Isso é inevitável. Ele sempre tenderá a serinternacional na sua qualidade de ser líquido. Se eu jogar água em umamesa, não posso desejar que caia e se deposite na direção que quero. Elavai se espalhar pela mesa. O mesmo acontece com o dinheiro.

Então, a crise que vivemos em 1980 decorre do nosso esquecimentodos anos 1930 e da Segunda Guerra Mundial, que são os resultados ine-vitáveis da globalização financeira que os precederam, os anos douradosdo Império Britânico e do padrão ouro, que possibilitaram, depois de tan-tos sofrimentos, a restrição ao movimento do dinheiro. Possibilitaram acriação do FMI, as restrições comerciais e a regulamentação do dinheiro.Mas, pela própria natureza do dinheiro, nos anos 1960, já a moeda ame-ricana, multiplicada, alavancada e falsificada, se quiserem, estava an-dando pela Europa e levando o general Charles de Gaulle a querer trocaro ouro pelo dinheiro americano.

O que estamos vendo hoje é o resultado exagerado daquele momento.Essa situação vantajosa que o dinheiro usufrui no mundo nos últimos 20anos é, sem dúvida nenhuma, a mãe do nosso desemprego mundial.

Keynes e Tobin – O que fazer? Em primeiro lugar, tornar o dinheiromenos atraente, desqualificá-lo. O economista John Maynard Keynessugeria uma pequena inflação. Nos dias de hoje não é possível ter umapequena inflação; o mundo inteiro já aprendeu com a inflação. Por isso,Keynes sugere o equivalente ao atual imposto Tobin13, um imposto quetornasse menos móvel o capital financeiro entre diferentes países. É umaboa idéia, porque é gradual e obedece às restrições políticas do mundoem que estamos vivendo.

E nós, do Brasil, o que podemos fazer? Temos várias margens de ma-nobra antes de adotar as propostas de reforma mais profundas, como asque foram defendidas por Reinaldo Gonçalves. Temos uma grande mar-

12. Hedge founds:“Um fundo de Hedge (oufundo especulativo) é umainstituição de investimentoque toma empréstimos paraespecular nos mercadosfinanceiros mundiais. Quantomais um fundo tiver aconfiança do mundo financei-ro, mais ele será capaz detomar provisoriamente ocontrole de ativos que ultra-passem em muito a riquezade seus proprietários.”(Extraído de TOUSSAINT, Eric.A bolsa ou a vida. São Paulo,Editora Fundação PerseuAbramo, 2002,p. 375). (Nota do Editor)13. Proposta elaborada peloeconomista norte-americanoJames Tobin, ganhador doPrêmio Nobel em 1981, decriação de um imposto sobreas transações de câmbio.(Nota do Editor)

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gem de manobra em investimentos públicos, no estabelecimento de polí-ticas sociais e até mesmo no estabelecimento de políticas de apoio àindústria brasileira e à exportação brasileira. Seria uma inserção menossubordinada, menos dogmática do Brasil neste período de globalizaçãofinanceira mundial.

Só não sei responder, deixo para os senhores essa pergunta, por queisso não é feito no Brasil? A única resposta que tenho não me é satisfatória:o núcleo do governo Fernando Henrique Cardoso foi tomado por xiitasdo neoliberalismo. Essa resposta, que não pode satisfazer a um cientistasocial, é uma resposta “caída do céu”.

Por que nós fizemos essa inserção do Brasil tão subordinada? Tãocruel em termos de destruição da indústria brasileira, da agricultura bra-sileira e dos empregos? Por quê? Foi só um erro, um equívoco? Será quea elite brasileira, temerosa – essa é outra explicação, talvez – do cresci-mento da vida política, resolveu invadir todos os espaços da vida nacio-nal pelos mercados, para calar a boca da vida política onde novos parti-cipantes apareciam? Será que é essa a explicação? Não consigo res-ponder, mas esses são os comentários que queria fazer. Muito obrigado.

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RitaMeu nome é Rita, sou do diretório

de São Carlos, interior de São Paulo.Quero fazer uma pergunta específi-ca a Reinaldo Gonçalves. Você apre-sentou várias políticas que aplicaría-mos para diversos problemas que sãoidentificados hoje na sociedade bra-sileira e transporta isso para as mu-danças que teriam de ser feitas paraa implantação de um programa queorientasse o socialismo no Brasil.Gostaria de saber qual seria sua po-sição em relação à dívida externa.

Gustavo VenturiMinha pergunta é para o profes-

sor Reinaldo Gonçalves. Admitin-

do-se como corretas as premissasdo professor: 1 – de que vulnerá-veis como somos e, portanto, fra-cos, países como o Brasil no máxi-mo podem tensionar a agenda in-ternacional incomodando os paísescentrais com o que ele chama denão-temas; 2 – que mais perdemosque ganhamos nos acordos econô-micos regionais, devendo voltar aosacordos bilaterais. Pergunto: otensionamento não será maior se,com um governo não-submisso, noplano político, o Brasil buscasse searticular não só regionalmente, mascom congêneres de outros continen-tes como China, Índia e África doSul? Em outras palavras, com o

Debate com o público

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enfraquecimento dos Estados na-cionais, que vem no bojo do pro-cesso de globalização, é levianofalar em fim do Estado, comoalertou Ronald Rocha, pois tam-bém é inegável a perda de poderdos governos nacionais? Então,com esse enfraquecimento, nãoseria preciso, ao contrário, o rom-pimento do isolamento do Brasilbuscando novas alianças políticasdentro e fora do continente ame-ricano, reconhecendo o potencialpolítico do país a que aludiu a pro-fessora Tânia? Por fim, o que im-pede o Brasil, a partir de 2003,com um presidente e um governodignos deste nome, de liderar ini-ciativas de política exterior comvistas à formação de um bloco depaíses não-incluídos, vamos cha-mar assim, a exemplo do bloco dospaíses não-alinhados que se for-mou e cumpriu seu papel na épo-ca da Guerra Fria?

Djalma BomSou metalúrgico aposentado,

com muito orgulho. Eu me lem-

brei de vários belos momentos dahistória do Partido dos Trabalha-dores, no início da exposição,quando se discutia a conquista oua tomada do poder. O professorReinaldo Gonçalves apresenta umprojeto nacional de orientação so-cialista. Quero perguntar ao pro-fessor Reinaldo Gonçalves se istoacontece antes da tomada ou de-pois da conquista do poder para aimplantação desse projeto.

Max AltmanSou colaborador da Secretaria de

Relações Internacionais do Dire-tório Nacional do PT. Ainda bemque estamos discutindo economiaem um momento em que o partidocomeça a discutir esses problemaseconômicos com vistas às eleiçõesde 2002. Acredito que uma boaparte da platéia, talvez sua totali-dade, tenha vindo para esta dis-cussão como eu, no meio da es-curidão, para descobrir luzes so-bre algumas idéias centrais do quepoderíamos fazer na prática se as-sumirmos o governo.

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O tema socialismo e democraciafoi extremamente ambicioso. Ou-vimos idéias, divagações, propos-tas generalizadas, conflitantes, dealtíssimo nível, mas idéias confusasem muitos aspectos, e não pude-mos perceber algo que vislumbras-se, que abrisse caminho para umaidéia central bem definida, nítida,que pudéssemos seguir.

Na história da humanidade, o so-cialismo, no plano econômico, nemsempre colheu derrotas. Teve êxi-tos também. Ainda bem que socia-lismo não é só economia, mas tam-bém envolve política, economia po-lítica, sociologia etc., porque se de-pendêssemos apenas de resolverproblemas econômicos para encon-trar o caminho em direção ao socia-lismo teríamos dificuldades tremen-das, e hoje foram apontadas terrí-veis dificuldades para isso.

Na hipótese de um governo lide-rado pelo Partido dos Trabalhado-res assumir o poder haveria pre-sumivelmente uma enorme fuga decapitais. O índice Brasil subiria para2.000, 3.000 pontos e os investido-

res, esses detentores de capitais in-ternacionais, não encaminhariamseus recursos para o país, para o seudesenvolvimento e o de suas ativi-dades econômicas. A pergunta é:que medidas o professor João Sayade Tânia Bacelar indicariam paraconter uma previsível evasão de ca-pitais do Brasil, na hipótese mencio-nada de um governo central lidera-do pelo companheiro Lula, pelo PT?

André Breda dos SantosBoa tarde a todos. Sou do diretório

zonal de Santa Cecília, na cidade deSão Paulo. Gostaria de saber do pro-fessor Reinaldo qual seria seu con-ceito de produção supérflua sob aótica socialista. Produção, consumoou ambos? Obrigado.

Geraldo Santiago PereiraSou advogado do Sindicato dos

Coureiros e Sapateiros de SãoPaulo. Estava afastado dos deba-tes do PT há algum tempo e resol-vi participar deste seminário. Con-fesso que gostei muito, por causadesse ecletismo, quer dizer, posso

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vir aqui, dizer o que penso, o quequero, sem disputar posições polí-ticas com ninguém, não vou sairdaqui vitorioso nem perdedor denada. Vim para saber como estápensando o PT – e ninguém afir-mou ser capitalista, o que para mimé ótimo.

Foi colocada a questão de seapropriar do dinheiro para cons-truir o socialismo. É uma formadesassombrada, gostei também.Não podemos pensar que vamosfazer alguma coisa sem dinheiro,mas, depois, não sabemos o quefazer com esse dinheiro. No de-bate, achei esta proposta muitoboa, mas muito complexa. Gosteimuito também da afirmação deque temos de começar a construiro socialismo no dia-a-dia e nostransformando também. Para mu-dar o mundo é preciso mudar a simesmo, em primeiro lugar. Então,o que um governo democrático-po-pular – e o companheiro que meantecedeu apresentou tambémessa questão –, eleito pela maioriado povo deste país, com o compa-

nheiro Lula e toda uma equipe degoverno, pode fazer para estancar,por exemplo, essa sangria?

Achei a intervenção do compa-nheiro Reinaldo muito pessimistaquando diz que o Brasil é um paíssem importância. Gostaria de sa-ber mais sobre essa avaliação. Valea pena continuarmos lutando porgovernos, por eleições? Comoconstruir esse socialismo no dia-a-dia como alternativa não só àglobalização, mas também à misé-ria e à fome, que são problemasreais? Obrigado.

Humberto LeopoldoSou economista e minha pergun-

ta é para João Sayad, a respeito dafunção do dinheiro, ainda tomando-o como sinônimo de moeda, comalgumas funções clássicas de re-serva de valor, de elemento de tro-ca e, como exposto, de conquistada liberdade. João Sayad tambémfalou sobre a necessidade de dimi-nuir o prestígio da própria moeda.Os países europeus, para a adoçãodo euro, exigiram determinadas re-

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gras práticas de estabilização, vol-tadas principalmente para o índicede inflação em relação ao produtointerno. Uma das formas de des-prestigiar a moeda é, na verdade, oprocesso perverso inflacionário. Sepermitirmos essa desestabilizaçãoda moeda e que isso ocorra dentrodo processo de globalização, cria-remos quase todos aqueles proble-mas de tensão citados pelo exposi-tor. Ou seja, poderíamos tensionartudo isso, dizendo que a moeda nãoterá mais prestígio porque será umamoeda podre. Ninguém mais do queo brasileiro soube o que era ter umamoeda podre e querer se livrar delao mais rápido possível.

Permitindo que o Estado nãoatenda àquelas exigências de sero controlador da moeda, mas queele possa aviltar o valor da suamoeda, desvalorizá-la, como estáacontecendo hoje em relação aodólar, como ficaria essa situaçãono processo de globalização? Co-mo isso poderia ser aceito dentrodessa globalização financeira?Muito obrigado.

AlípioOuvi atentamente o expositor e

os comentaristas. Evidentementehá um desencontro total. E isso meparece evidente porque o que faltahoje na economia é uma unidadede medida. Nós medimos tudo, ab-solutamente tudo.

Sou engenheiro de formação, deminas, metalurgia e civil. Nós me-dimos tudo desde a Revolução Fran-cesa, quando foi criada a unidadede medida metro. Medimos tudo namedicina, na engenharia, mas algoficou de fora da unidade de medi-da, que é a economia, e todo esseinferno que estamos vivendo decor-re da falta de uma unidade de me-dida econômica.

Venho escrevendo sobre isso hámuito tempo, mas comecei a es-crever efetivamente sobre essetema a partir do momento em quefui pressionado terrivelmente pelogoverno João Figueiredo. A partirde então não consegui mais pararde escrever e cheguei a criar, em1987, a Unidade de Medida Eco-nômica Universal, que chamei de

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“K”. Fiz essa unidade igual aos di-reitos da pessoa humana; ela re-presenta saúde, alimentação, lazer,todos os direitos.

Vou dar alguns exemplos: estoucolhendo laranjas e escrevo na cai-xa de laranjas 0,37K. Vou para ocanavial e digo que a cana vale1,57K e, assim, eu cubro tudo. Façoo mesmo na área de mineração.Chego em um poço de petróleo eescrevo no barril de petróleo 3,04K.

Quando escrevo que a caixa delaranjas vale 0,37K, estou dizendoque todos aqueles que trabalham nis-so têm um padrão de vida excepci-onalmente alto, com saúde, alimen-tação, lazer, educação e lucro, comtudo que a vida pode oferecer.

Com o estabelecimento dessaunidade de medida é possível co-brir todas as áreas que citamos nes-sas discussões desencontradas,mas com um ponto em comum. Oque se observa é que todos nóstemos uma preocupação com oBrasil e exatamente por isso, nes-te caso, é fundamental essa uni-dade de medida.

Porém, de que adianta eu criaresse sistema e os senhores meperguntarem: e o dinheiro, deonde vem? Descobri que todo tra-balho gera riqueza, qualquer queseja, mas cada vez menos o tra-balho humano cria renda ou lu-cro. É muito fácil perceber isso.Há 15 anos a indústria automobi-lística no Brasil produzia 12 car-ros por homem/fábrica; hoje pro-duz 48 e, no Japão, 72. Quer di-zer, cria-se uma riqueza enormeda produção, mas o número depessoas beneficiadas vai caindoe cria-se o desemprego que o pro-fessor João Sayad mencionou.

Esses fatos nos trazem essaconjectura que nos obriga a criaro Fundo de Garantia Individual,que é a participação de cada umde nós na riqueza, no momento desua geração. Explico melhor estefundo no livro que estou terminan-do agora, que se chama CaixaBrasil: retiraremos a Caixa Eco-nômica Federal e o Banco doBrasil do domínio do governo fe-deral e com o fundo destas insti-

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tuições teremos o maior banco domundo, o Caixa Brasil.

Clara CharfCompanheiros, estamos chegan-

do ao fim deste ciclo de debates,que foi maravilhoso. Sou a favor datransformação da sociedade e lutopor ela há muitos anos e, no início,pensava que o ciclo nos daria umareceita. Depois percebi que não eraisso, mas que as discussões esta-vam nos apresentando elementospara pensar.

Quando entrei na luta, diziam quea melhor sociedade do mundo eraa comunista, porque nela não haviadinheiro. Entrei, me aproximei des-sa luta porque achava que haveriauma sociedade em que todos teri-am tudo e não haveria necessidadede dinheiro. Só que depois vi queessa sociedade não existia, não foiconstruída em lugar nenhum, pelomenos nos períodos mais recentesda história humana, e que tínhamosde pensar de outra maneira.

Eu era violentamente contra aglobalização, achava que era um

crime, um tipo de imperialismo,ainda que com outro nome. Parti-cipei de um congresso de mulhe-res em Cuba, em 1997, e lá ouviFidel Castro, em um discurso, di-zer a mais de 2 mil mulheres quenão se podia lutar contra a glo-balização, que ela era um fato e,então, não adiantava negar suaexistência. Mas como lutar con-tra a globalização era outra coi-sa. Estou dizendo isso porque doponto de vista teórico é muito di-fícil sairmos daqui e perguntarmoso que fazer. Da forma como ocenário foi exposto aqui, entendique teríamos de rasgar tudo, ar-ruinar, destruir e fazer a socieda-de ideal que queremos. Infeliz-mente a vida vai ensinando quenão é assim. Então, eu pergunto:concretamente, há um papel naluta social para que possamostransformar a sociedade?

Penso como a Tânia Bacelar.Acho que devemos sair desta dis-cussão com um conceito de que épreciso rediscutir o país, o que é anação, o que é a luta do povo, os

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valores que o povo tem nessa luta,o que se pode construir, as experiên-cias positivas etc. O que se podefazer com o Estado, já que achá-vamos que não era preciso haverdinheiro? Fui morar em Cuba notempo do exílio e praticamente nãoprecisava de dinheiro; o aluguel, porexemplo, representava 3% do sa-lário. Naquela época, na União So-viética, era igual: medicina de gra-ça, educação de graça, tudo de gra-ça; o conceito que tínhamos era deque não havia mesmo necessidadede dinheiro. Então, pergunto a to-dos os expositores: é possível, eacredito que sim, lutar por um tipode organização social em que o Es-tado tenha um papel muito impor-tante que diminua, por exemplo,essa idéia de que o dinheiro é tudo,porque não se precisaria de tantodinheiro? Qual é a maneira de tor-nar o povo agente dessa transfor-mação que queremos fazer?

Leda PaulaniSou colega do professor Sayad

na Faculdade de Economia da Uni-

versidade de São Paulo (USP) e oajudo na Secretaria de Finanças.Acho que nesse debate ficou mui-to claro que hoje, no Brasil, temosdois desafios que se superpõem.O primeiro é recuperar, minima-mente, o sentido de nação, com-pletamente destruído por essa dé-cada neoliberal, particularmentenos últimos sete anos do governode Fernando Henrique Cardoso.Mas recuperar esse sentido denação implica retornarmos a umaposição nacional-desenvolvimen-tista, que tem relação com o key-nesianismo; enfim, todo o arca-bouço da etapa anterior do proces-so de acumulação capitalista. Noponto em que chegamos isso é ine-vitável, temos de defender essasposições, mas gostaria que os ex-positores respondessem à seguin-te questão: qual a relação dissocom o socialismo, visto que não háum modelo pronto?

O Brasil tem lições a dar, princi-palmente o Partido dos Trabalha-dores, com suas experiências de or-çamento participativo e de outras

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políticas modernas, no sentido cor-reto do termo, implementadas.

Como se supera esse primeirodesafio, recuperar o sentido de na-ção, e se parte para o segundo de-safio, o de pensar o socialismo ino-vador, democrático etc. a partirdessa recuperação do sentidode nação?

Fernando HaddadGostaria de partir de uma defini-

ção que considero clássica de so-cialismo. Passando em revista a li-teratura socialista desde o séculoXIX, podemos chegar a uma fácilconclusão de que a definição pas-saria pela tese de que o processosocialista se inicia quando os tra-balhadores, no comando do poderpolítico, criam as condições para su-perar a relação de assalariamento.Ou seja, quando são mobilizados re-cursos nacionais para permitir queos trabalhadores deixem de vendersua força de trabalho e passem acomandar o sistema produtivo comsuas próprias forças. Se essa é adefinição, eu concordaria com

Sayad quando ele diz que dinheiroé sinônimo de liberdade. Se enten-demos a palavra dinheiro comoacesso ao conjunto de mercadori-as e serviços necessários para o de-senvolvimento do indivíduo, eviden-temente o socialismo se confundecom esse acesso, mas generaliza-do, universalizado, algo que hoje nãoexiste. Talvez por isso exista, hoje,um sentimento anticapitalista impor-tante no ar.

Acho que há uma questão malrespondida pelo PT, e talvez nãoqueiramos respondê-la, porquepara uma pequena parte do parti-do esse acesso de todo e qualquerindivíduo ao conjunto de bens eserviços necessários para o seudesenvolvimento passa necessaria-mente pela superação da relaçãode assalariamento. E, para um con-junto majoritário do partido, seriapossível uma distribuição de recur-sos da sociedade sem que essa re-lação fosse necessariamente to-cada, ou seja, sem necessariamen-te enfrentar a questão do regimede propriedade. Acredito que nes-

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ta discussão há uma homogenei-dade muito grande em torno da ne-cessidade de um país como o Bra-sil distribuir melhor sua renda.Nenhum dos participantes desteseminário, desde 2000, defendeua manutenção ou a concentraçãode renda no Brasil, todos são dis-tributivistas, por assim dizer. Mas,se optaremos por uma distribuiçãosocial-democrata do produto oupor uma distribuição socialista doproduto, isso não está absoluta-mente definido e não foi sequerdiscutido ainda. Independentemen-te do que o partido quer ser quan-do crescer, ele já cresceu o sufi-ciente; e é preciso enfrentar essaquestão de frente. Ou seja, qual éa opção que faremos?

Particularmente, minha posição éque nos moldes como o capitalis-mo está organizado hoje é muitodifícil construir um projeto de dis-tribuição de renda sem enfrentar aquestão do acesso ao crédito, àtecnologia e à propriedade. Osmeios ainda se organizam de for-ma nacional, o sistema de crédito

ainda funciona em termos nacio-nais, apesar de haver um sistemade crédito internacional; o sistemade inovação tecnológica ainda seorganiza em termos nacionais e osistema tributário também. Ou seja,apesar da globalização, não impor-ta o conceito utilizado, existem con-dições de operar transformaçõesprofundas que viabilizem o projetode superação gradual, e neste pon-to o que menos importa é a violên-cia, a velocidade ou a direção doprocesso em torno disso. É um de-safio que precisamos enfrentar.

Luiz Inácio Lula da SilvaNão vou propriamente fazer uma

pergunta aos quatro companheiros,mas gostaria de comentar o quefoi discutido pelo plenário. Acre-dito que o mais importante, a meuver, neste ciclo de debates que oPT promoveu junto com o InstitutoCidadania e a Fundação PerseuAbramo, foi garantir que cada umdos participantes descobrisse quenão existe uma verdade absolutasobre o tipo de socialismo que mui-

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tos sonham. Percebemos que háuma disparidade de pensamentosa respeito do que é o socialismo eé exatamente isso que um dia podenos permitir sonhar, para que ou-tros possam, quem sabe, viver emum Estado socialista que muitossonharam, mesmo antes de nós.

Acabou o tempo dos debates emque as pessoas traziam a verda-de absoluta em uma cartilha e nãohavia mais nada além do que jáestava pronto. As pessoas agoraestão mais humildes, as bocas fa-lam menos e os ouvidos escutammais. As pessoas estão refletin-do mais, é isso que este seminá-rio pôde alertar a cada um de nós.

Às vezes, vendo as pessoas de-baterem, fico pensando no que,para um socialista, era o comu-nismo: era a construção da socie-dade perfeita, comparado ao que,para os cristãos, era o paraíso. Oscristãos diziam que o céu é per-feito. Mas para chegar lá é pre-ciso morrer.

Nós não conseguimos construiro socialismo e já estávamos pen-

sando no comunismo, que era umasociedade mais perfeita. JoãoSayad levantou uma questão so-bre a qual gostaria que todos pen-sassem. A verdade é que o socia-lismo precisa de dinheiro. Esse éo dilema de Cuba. Esse foi o dile-ma da União Soviética e de outrospaíses. Se não houver dinheiropara aumentar a capacidade deprodução de riqueza e de sua dis-tribuição, é como fazer um copode suco de laranja usando apenasuma laranja. É impossível.

Eu acho que o grande desafioque temos de enfrentar, já queestamos nos preparando para umacampanha eleitoral, é não ter ne-nhuma ilusão. Não vamos conse-guir construir um programa socia-lista e tampouco fazer o socialis-mo em quatro anos de mandato.Quando muito, temos de estar pre-parados para construir um progra-ma democrático-popular e ter a ou-sadia de executá-lo sem vacilar.Mesmo assim, quem já tem experi-ência administrativa sabe que umacoisa é aquilo em que acreditamos,

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aquilo que teorizamos, e outra coisaé quando colocamos a mão na massae o que vamos encontrar pela fren-te. Muitas vezes nós terminamosum mandato de quatro anos semconseguir executar todas as trans-formações que sonhávamos fazer.

De vez em quando encontro al-guns companheiros desanimadosporque as coisas não dão certo.Nos debates ninguém mais temcerteza de nada; as pessoas es-tão com dúvidas, e é saudável queseja assim. As pessoas não po-dem ficar frustradas porque umaproposta não deu certo, porquenão foi construído aquilo que que-ríamos. Afinal, houve uma Revo-lução em 1917 e o que resultoudessa revolução?

Para animar os meus compa-nheiros socialistas, digo que elestêm de olhar para as conquistasda Revolução de 1917, olhar aEuropa Ocidental. O nível de bem-estar social que aquele povo cons-truiu é decorrência do que acon-teceu na Rússia. Se não fosse isso,possivelmente aqueles países se-

riam iguais aos países que conhe-cemos na América do Sul: pobrese sem distribuição de renda.

Não sei se isso pode servir deconforto, mas a verdade é que aEuropa Ocidental só conseguiu che-gar ao padrão que chegou commedo do que havia além da fron-teira. Isso deve alentar quem gos-ta de discutir a questão do socialis-mo. Por isso gostaria que todossaíssem daqui com a certeza de queeste debate deve ser visto como algoque tentou lhes oferecer esperan-ça. Não há por que desanimar. Averdade é que não temos culpa porcoisas que aconteceram. Temosuma proposta de construir algonovo, embora ainda não saibamosexatamente o que é esse algo novoou que caminho vamos seguir.

A verdade é que conseguimos,com este ciclo de debates, trazermuita gente importante para asdiscussões. Acredito que a rique-za deste debate é permitir que sai-amos daqui com a certeza de queem algum lugar do mundo, e depreferência dentro da sede do nos-

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so partido, o tema do socialismonão foi esquecido.

Teremos um desafio pela fren-te, o de dar continuidade a estesdebates sem sermos repetitivos outorná-los chatos. Se conseguirmosfazer isso, estaremos dando umaenorme contribuição para as no-vas gerações.

Queremos fazer um programa degoverno não apenas para conten-tar a nós mesmos. Queremos queo programa de governo, este ano,seja o resultado de um grande de-bate da sociedade. Queremos,inclusive, chamar para debateraqueles que nós já sabemos, ante-cipadamente, que não concordam

com nossas idéias, mas queremossua participação. Quem sabe atécolocar o nosso pessoal para deba-ter com estas pessoas, para ver seconseguimos fazer algo que possaser um instrumento para ganhar umaeleição e, sobretudo, que esse pro-grama possa ser executado depoisque ganharmos.

É importante dizer que este pro-grama só será do PT no dia em queuma instância do PT discuti-lo evotá-lo. Se a Executiva, o Diretórioou o Congresso do PT não discuti-rem o programa, a imprensa podefalar que ele é do PT, mas ele não oserá enquanto o PT não o aprovarem seus fóruns democráticos.

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65SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

Ronald RochaGostaria de esclarecer que não

considero a mudança do eixo te-mático do Reinaldo um problema.Como disse na minha primeira in-tervenção, acho que isso enrique-ceu o debate.

Quero usar essa intervenção fi-nal para tocar, de maneira telegrá-fica, em cinco pontos que julgo im-portantes à luz do debate que sedesenvolveu hoje aqui.

O primeiro é que, de modo ge-ral, as pessoas e os críticos do neo-liberalismo se referem ao capitalfinanceiro, ou à moeda, suposta-mente autônoma, de modo abso-luto, como capital vagabundo. Con-

fesso que não me sinto confortá-vel com essa definição. O termovagabundo apela para um quê deromantismo. O tocador de gaita,de blues, é um vagabundo... Ovioleiro do Nordeste, que vai defeira em feira, tem um quê de va-gabundo... Acho que o capital fi-nanceiro não tem essa caracterís-tica. Opera com base numa ra-cionalidade muito clara, visando olucro de maneira instrumental e, aomesmo tempo, não está descola-do da base produtiva. Pelo contrá-rio, representa hoje, para repetiruma terminologia utilizada, afinanceirização do setor produtivo,portanto, não há como tratar iso-

Debate com o público – Respostas

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ladamente do capital financeiro,desvinculando esse combate dosgrandes oligopólios que se consti-tuíram internacionalmente nos úl-timos 30 anos e que operam emnível internacional e em nosso país.

Sendo assim, qualquer platafor-ma de enfrentamento dos grandesgrupos oligopolistas, qualquer mo-vimento de combate ao neolibera-lismo, tem de encarar a questãodo capital financeiro como essa to-talidade integrada. O que não querdizer que seja desnecessário cen-trar ataques e concentrar fogo emum determinado setor, ou mesmono setor hegemônico.

Com isso, quero dizer que qual-quer tentativa de reformar o siste-ma financeiro internacional, suasinstituições, seus grupos hegemô-nicos, os governos que os susten-tam ou que a eles se associam, nãopode ser tratada com base na cons-trução de um consenso no planointernacional.

Queria também chamar a aten-ção para o seguinte: qualquer queseja o movimento internacional de

enfrentamento e de luta contra oneoliberalismo, as instituições fi-nanceiras e os centros de poderdos grandes oligopólios financei-ros, este movimento não só nãopode ser dissociado da luta noâmbito nacional – e Reinaldo, nasua intervenção, me parece ter dei-xado isso claro – como também épreciso que os socialistas no Brasildêem importância fundamental àatitude que o Estado e um gover-no democrático-popular devem terem relação aos seus aspectos fi-nanceiros e às instituições.

Portanto, me parece que a cen-tralidade da nossa atuação não éa construção de novas instituiçõesno plano internacional, embora issoseja importante e possa ter proce-dência em muitos casos, mas simconstruir políticas, uma força realcontra a hegemonia, para enfren-tar essas forças hegemônicas emâmbito internacional.

Portanto, a questão da dívida ex-terna me parece ser menos um pro-blema da extinção do FMI, ou de umacordo entre devedores e credores,

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ou da constituição de um movimen-to de sensibilização dos grandescentros financeiros, e mais a cons-trução de uma força política realdentro dos países assolados peladívida para tomar atitudes, e entreessas atitudes me parece ser muitoimportante a questão da suspensãodo pagamento da dívida externa, arealização de auditorias, o acúmulode forças, a análise caso a caso pa-ra depois estabelecer atitudes polí-ticas e desdobramentos, a depen-der de uma avaliação da correla-ção de forças em nível mundial eaqui no Brasil.

Na questão do Mercosul, comun-go inteiramente com a opinião deTânia Bacelar a esse respeito. Seo Mercosul significasse apenas umanoitada com o inimigo, como expli-caríamos, por exemplo, o fato de oChile, que é dos países do Cone Sulo mais alinhado com o Consensode Washington, até hoje resistir àadesão ao Mercosul? Como expli-car, por exemplo, os conflitos e con-tradições com a ALCA? E como res-ponder às expectativas dos povos

do Cone Sul, que têm uma visão arespeito do Mercosul que conside-ra não só a questão da integraçãoeconômica, mas também a culturae as relações políticas? Estive hápouco tempo no Uruguai, e a es-querda uruguaia vê com muita ex-pectativa o Mercosul, e se pergun-ta qual é a política do PT em rela-ção ao Mercosul. Nós temos de res-ponder a esses problemas reais.

Finalmente, a questão do socia-lismo. A maneira de contribuir parao debate é a absoluta franqueza.Em 2002, não creio que disputare-mos as eleições com um programasocialista. Vamos disputar a eleiçãocom um programa democrático-popular, de reformas, as mais pro-fundas possíveis, na sociabilidadebrasileira. Reformas democráticasradicais, que na situação do Brasilvão se chocar com os interesses dosgrandes oligopólios, mas não signi-ficarão ainda a construção de umasociedade socialista.

O grande desafio de constituirum programa desse tipo para serexecutado dentro da sociedade ca-

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pitalista, no interior do Estado bur-guês, é como articular esse pro-grama com a luta estratégica pelosocialismo, em termos de acúmulode força, de construção de con-tra-hegemonia, de constituição deforças reais e assim por diante.

Concluindo, creio que a impor-tância desse seminário não é pro-priamente construir ainda um pro-grama, mas sim abrir caminhos einstigar a discussão para que, nointerior do partido e das correntespolíticas aliadas e no conjunto dasociedade civil, o partido tenhacondições, aí sim, de discutir umprograma de governo que tenha umcaráter político prático, tarefa quenão cabe a este seminário.

Agradeço a todos pela atenção epelo privilégio de estar aqui, e emparticular aos companheiros queparticiparam da mesa. Espero teroutra oportunidade de continuareste debate. Muito obrigado.

João SayadFalar em desprestigiar a moeda

é algo impossível. A economia tem

história e nós temos memória. Nãoé possível imaginar uma pequenainflação, mas a alta taxa de jurospode ser reduzida. Este seria o ca-minho do desprestígio da moeda,mesmo no Brasil.

Entre as perguntas que me fo-ram feitas, considerei uma espe-cialmente interessante, por serpolêmica: uma vez empossado oprimeiro governo do PT, o que eurecomendaria fazer sobre a dívi-da externa?

Neste momento, eu perguntaria:o que o PT quer? Se o governo doPT quer a república socialista, au-tárquica, platônica como a ideali-zada por Reinaldo Gonçalves, qualseria a vantagem econômica parao país? Nós ficaríamos com 30 bi-lhões de dólares, que imagino ser ovalor de nossas reservas de hoje.Não sei se os bancos nos deixa-riam sacar este montante, mas va-mos supor que eles respeitassemessa atitude. Perderíamos 28 bi-lhões de dólares, que é o nosso dé-ficit comercial, que não poderiamais existir; ninguém nos concede-

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ria mais crédito e lucraríamos 2 bi-lhões de dólares, o equivalente ametade da receita tributária do mu-nicípio de São Paulo, que não dápara nada. Então, só teríamos avantagem da sinalização simbólica.Essa seria a primeira alternativa.

A segunda alternativa seria nãofazer nada. Como? E a dívida ex-terna? Nós não poderíamos ter ne-nhum problema desse tipo. Nessaalternativa o país continuaria re-cebendo, se tudo corresse bem, 28bilhões de dólares de empréstimos,o que recebemos hoje; uma situa-ção de vulnerabilidade, mas queestá perdurando.

E se não vierem esses 28 bilhõesde dólares? Então voltaríamos pa-ra a casa um. Seria inevitável umaruptura com o mercado financeirointernacional. Mas seria uma rup-tura provocada pelo mercado fi-nanceiro internacional, e não pornossa livre iniciativa.

A situação é mais ou menos aseguinte: suponha que eu deva aobanco 2 mil reais. E todo mês obanco me alerta que os juros são

de 20% ao mês, o que aumentaminha dívida para 2.400 reais. Pos-so argumentar com o banco quenão tenho este dinheiro e o bancoproporá um refinanciamento. Nomês seguinte minha dívida seráde 2.400 e no outro mês, de 2.800reais. E assim a dívida continua au-mentando. Ainda que o banco mepressione para pagar a dívidaquando o valor chegar a 8 bilhões,por exemplo, não preciso brigarcom o banco. Enquanto se está re-negociando a dívida, não há neces-sidade de criar conflitos. Essa éuma proposta pragmática.

Tânia BacelarA pergunta que me foi feita é a

mesma que João Sayad acaba deresponder: na hipótese de um go-verno do PT, se haveria fuga decapitais e em que medida podería-mos evitá-la.

Vou fazer uma pequena divaga-ção. Se chegarmos ao governo, émuito importante termos consciên-cia de que não chegaremos ao po-der. Vamos ganhar o governo, o

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que é muito diferente. O poder estáem muitos outros lugares. Não seinem se teremos maioria no Con-gresso. Se isso acontecer, ótimo,porque ganharíamos os PoderesExecutivo e Legislativo. Mas fal-taria o Poder Judiciário, e ele nãoseria nosso tão facilmente.

Por outro lado, o poder econô-mico dos que têm a riqueza mate-rial ou financeira é muito maior doque o poder que Lula vai ganhar.Então, acho que primeiramente de-vemos nos perguntar o que ganha-mos para nos situarmos e não fa-zermos besteiras.

Mas, mesmo que ganhemos só oExecutivo, já é uma mudança fan-tástica. Pela primeira vez um parti-do de trabalhadores iria comandara vida do país, seria uma mudançade grande significado, porque o PT

apresentaria outras prioridades, re-presentaria outras vontades e teriaum outro projeto.

As forças conservadoras no Bra-sil sempre que vêem essa possibi-lidade pregam o caos. Acabamosde viver esta situação em Recife.

João Paulo [ prefeito de Recifeeleito em outubro de 2002] era tidocomo incompetente para governara cidade. Depois que ganhou aeleição, de outubro a dezembro pa-recia que a cidade iria acabar.Acho que esta foi a sensação queos poderosos tiveram, só que as-sumimos o governo e a cidade nãoacabou. O que mudou? Agora nósestamos negociando, apresentan-do outras prioridades, e os pode-rosos estão tendo que negociarconosco. Portanto, daqui a quatroanos a cidade vai ser diferente daque recebemos. E a cidade não vaiacabar, vai melhorar, porqueestamos forçando uma negociaçãoem nome de outros interesses quenão eram os hegemônicos, quepassavam por cima de tudo.

Acho que vai acontecer o mes-mo com o Brasil se Lula ganhar aeleição para a Presidência da Re-pública. Ele vai recolocar o Brasilde pé. Acredito que será uma mu-dança fantástica, em vez da pos-tura submissa de Fernando Hen-rique, termos alguém compro-

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missado com o nosso país, com onosso povo, e que em nome des-te compromisso negocie com osgrandes interesses mundiais, quais-quer que sejam eles.

Acho que o Brasil vai ter muitomais política, mais debate, maismobilização; cada decisão vai sermuito mais discutida, negociada.Por isso acredito em um cenáriomuito positivo; não trabalho com ocenário de fuga de capitais, emboraache que não podemos descartaressa hipótese. Acredito que, princi-palmente quando se está no gover-no, deve-se trabalhar com o piorcenário; se ele acontecer, estaremospreparados, se ele não acontecer,todos os outros são melhores.

Eu trabalharia também com essecenário de fuga de capitais. Nestecaso, teria a mesma posição doSayad. Entre João Sayad e Reinal-do Gonçalves, ideologicamente, es-tou muito mais próxima do Reinaldo,mas não decretaria moratória da dí-vida externa, deixaria que os inves-tidores nos forçassem a chegar aesse cenário. Se eles vão embora,

partimos para a moratória, só quenão a teremos provocado.

Quanto ao cenário da moratória,teremos que ter políticas, posturasalternativas adequadas a um cená-rio de moratória, de não podermospagar os compromissos assumidos.Acho que mesmo em um cenáriode moratória é possível fazer umBrasil melhor do que o que foi feitonesses últimos anos, quando trans-ferimos 300 bilhões de dólares paraas mãos dos rentistas. Então, 2 bi-lhões de dólares nas mãos é me-lhor do que transferir 300 bilhões,mas não acredito que isso vá acon-tecer. Vai ser um momento de tran-sição, os investidores vão ficar ob-servando o que vamos fazer, e senão fizermos muitas besteiras elesvão ficar, porque perceberão queum Brasil sem fome, com refor-ma agrária, com gente maiseducada, é um Brasil muito melhordo que o que temos hoje, em queserá mais vantajoso investir do queé hoje. Portanto, não tenho o me-nor receio do que vai acontecer em2003. Obrigada.

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Reinaldo GonçalvesVou tentar responder às princi-

pais críticas e perguntas de formaconcisa e objetiva.

No que se refere à questão dadívida externa, trata-se de um pro-cesso de negociação, um proces-so de barganha política, um pro-cesso de pressão interna e exter-na. Acho que os principais adver-sários de uma negociação da dívi-da externa não estão lá fora, estãoaqui dentro. Isso é evidente. Osprincipais adversários são aquelesque têm interesses vinculados àliberalização financeira e cambial.O processo político vai se passar,em grande medida, internamente,e não tanto lá fora.

Com relação à política externa, aidéia de que o Brasil tem importân-cia relativa muito pequena no ce-nário internacional, geralmente, in-comoda muita gente. É uma ques-tão de subjetividade. A objetivida-de é simples. O fato é que o Brasilé importante para os brasileiros.Mas, no cenário internacional, oBrasil é um país fraco. Um país mui-

to vulnerável, isso é evidente. Nãoprecisamos recuar muito na histó-ria do Brasil. É só ver a evoluçãoda economia brasileira, da socie-dade brasileira, da política brasi-leira, das instituições brasileiras aolongo do governo FernandoHenrique. A “grande” contribui-ção do Fernando Henrique é mos-trar o quanto somos vulneráveis,principalmente depois das suas po-líticas. Isso é evidente.

Ninguém gosta de reconhecer aprópria “desimportância”. Mas, doponto de vista objetivo, acho quea pior coisa é a auto-ilusão. Aauto-ilusão é terrível porque nahora de tomar uma decisão aca-ba-se definindo estratégias incom-patíveis com a realidade.

Então, o que significa isso? Quan-do se é vulnerável, qual deve ser aestratégia? Para o Brasil é aobviedade: centrar fogo em estra-tégias para deixar de ser vulnerá-vel. Qual é a implicação disso doponto de vista internacional?

No contexto atual da AméricaLatina, o fato é que os nossos vi-

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zinhos também são muito vulnerá-veis. Se as nossas elites são ruins,as deles também são. Cada paíslatino-americano tem seus Fer-nandos Henriques da vida! Mui-tos companheiros da esquerdacontinuam atrelados a uma certaibero-americanidade, ao sonhobolivariano. É uma pena! Preci-samos de realpolitik.

No cenário internacional, quemopera é o Estado-nação, quemmanda, quem toma decisões é oEstado-nação. Até o ponto queconsigo imaginar, no horizonte dequatro ou oito anos, a quase totali-dade da América Latina terá seusEstados controlados por elites tãoruins ou piores – apesar de quepiores é difícil –, mas tão ruinsquanto a brasileira. Isso significaque é muito difícil fazer algum tipode articulação no plano regional esub-regional na América Latina.

Se é para sonhar, vamos sonharum pouco. Imaginemos que es-tamos num país da América Latinaou do Caribe que não é vulnerávele que tem uma política externa in-

dependente, além de um governosério, um presidente sério, umpartido sério e hegemônico. Ade-mais, pretendemos articular umapolítica econômica externa no âm-bito da América Latina. Aí, olha-mos o Brasil, que tem o FernandoHenrique. A pergunta é: vamosmontar uma frente ampla de nego-ciação internacional da dívida exter-na na América Latina tendo o Bra-sil de FHC como “aliado”? Vamospartir para o “tensionamento” como FMI (propondo seu fechamento ounegociando mudanças radicais nosistema de condicionalidades) ten-do o Brasil de FHC como aliado? Aresposta é um “não” rotundo. Sim-plesmente já entraremos “vendidos”em qualquer negociação.

Esse é o problema: não podemosimaginar que os Estados-nação naAmérica Latina são ou serão alia-dos em qualquer embate interna-cional num futuro previsível. Já en-tramos “vendidos”. A minha leitu-ra da história das relações inter-nacionais da América Latina indi-ca que não podemos, seriamente,

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contar com nossos vizinhos. A mi-nha experiência de quase cincoanos nas Nações Unidas só con-firmou essa posição. A minha ex-periência como observador dasNações Unidas nas negociaçõesdo Acordo Geral de Tarifas e Co-mércio (GATT), bem como meu tra-balho de assessoria para organi-zações não-governamentais rela-cionado a negociações multilate-rais, mostram que entraremos“vendidos” nessas negociações. Aclasse dirigente latino-americanacusta pouco, é barata. Esse é o pon-to central, é um problema derealpolitik. Numa negociação in-ternacional na OMC, no FMI, no Ban-co Mundial, não posso achar queo representante do Uruguai vai vo-tar com a gente. Não vai. A expe-riência mostra isso. Houve fracas-so toda vez que se tentou fazer umbloco de devedores da dívida ex-terna, ou quando se tentou fazeruma política mais agressiva noâmbito do comércio, ou da tecno-logia, ou referente às multinacio-nais (código de conduta).

Na última década a América La-tina se enfraqueceu a tal ponto queo custo de cooptação hoje estámuito mais baixo do que estava nadécada de 1980, quando já era bai-xo. Resultado: precisamos de rea-lismo e, portanto, ter diretrizes as-sentadas na realpolitik.

Houve uma pergunta, ainda, so-bre os papéis da Índia e da China.Ótima pergunta. Se os nossos me-lhores aliados estão do outro ladodo mundo, não tenho de ter umvizinho (que é frágil, débil, vulne-rável) como parceiro. Assim, po-demos fazer alianças com paísesque estão do outro lado do mun-do, mas que não são vulneráveisou débeis (como, por exemplo, aArgentina). Há, contudo, um pro-blema. Nosso problema com a Ín-dia e com a China é o seguinte:eles não confiam na gente. Eu jáouvi isso de um diplomata india-no. Por que eles não confiam nagente? Porque, simplesmente, so-mos fracos! Ademais, o Brasiltem uma diplomacia ineficaz, ar-rogante e despreparada.

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Mas pode-se argumentar que em2005 ou 2006 não seremos fracose despreparados, pois poderemoster um governo democrático-popu-lar eleito em 2002. Mas até lá te-mos que mostrar para eles que nósestamos deixando de ser fracos, oque significa reduzir a nossavulnerabilidade externa. Até lá elesnão vão partir para fortes aliançasconosco. E, se olharmos a Chinae a Índia, verificaremos que elescorrem em pista própria, não fa-zem grandes articulações ou par-cerias internacionais.

O que eu estou querendo dizer éo seguinte: temos que ter uma di-mensão real, exata, do nosso po-der na arena internacional. Nossopoder é mínimo hoje. Talvez em2006 não seja, talvez consigamosliderar algum tipo de iniciativa.

Mas, novamente, não podemoscriar expectativas com relação àAmérica Latina. Temos de nos qua-lificar para em 2005 ou 2006 ser-mos parceiros da Índia ou da China.No entanto, hoje nós não nos quali-ficamos para nada. Isso é realismo.

Indianos e chineses não vão sentarcom a gente. O país que precisa de25 bilhões de dólares todo ano é umpaís frágil, dependente, acocoradona arena internacional. Chineses eindianos não farão parcerias conoscoporque não confiam, e têm razão emnão confiar. Da mesma forma quenão podemos confiar nos paraguaiose argentinos, chineses e indianos nãopodem confiar no Brasil. Não adiantaquerer achar que nós somos o quenão somos. E vai demorar muitotempo para que um governo demo-crático-popular consiga fazer comque o Brasil deixe de ser vulnerá-vel. Temos que ser realistas. Docontrário estaremos fazendo a “di-plomacia da lorota”, e não uma po-lítica externa independente.

No que se refere à questão so-bre autarquia, o ponto central nãoé, obviamente, o fechamento daeconomia. Trata-se de alcançar umnovo padrão de inserção ativa nocenário internacional. Por exemplo,a China é o país de maior eficiên-cia dinâmica no mundo e não é umaautarquia. A economia chinesa tem

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crescido 10% ao ano nos últimos20 anos. Em um dos meus livros14,faço uma análise comparativa en-tre Brasil e China e mostro que adiferença entre o fracasso brasilei-ro e o sucesso chinês decorre, emgrande medida, das diferenças nopadrão de inserção internacionaldesses países. As diretrizes do pro-jeto de orientação socialista que de-senvolvemos não têm nada a vercom autarquia. Quem acha isso nãoentendeu nada do que eu falei. Ouentão faltou boa vontade!

O maior problema para entendero nosso enfoque é proveniente davisão liberal, essa idéia de que aorigem de tudo é o indivíduo. Porexemplo, quando o liberal fala que“dinheiro gera liberdade” ele estádizendo que dinheiro gera liberda-de para o indivíduo. Pega o avião-zinho aqui em Guarulhos, vai paraNova York gastar dinheiro, verópera, dormir em hotel cinco-es-trelas e não sei o quê... Isso geraliberdade individual.

Mas as pessoas entendem tam-bém, e aí não precisa ser um libe-

ral muito iluminado, que, às vezes,as pessoas perdem a dignidadecom o dinheiro. O dinheiro podeprovocar, ainda, a perda de felici-dade. Na realidade, se pensamosdo ponto de vista coletivo, é isso oque acontece (as crianças e os ado-lescentes do Colégio de Aplicaçãoda Universidade Federal do Rio deJaneiro, onde o meu filho estuda,sabem disso). “Dinheiro concentra-do” pode gerar exatamente o con-trário do que imagina um liberal pou-co iluminado: a perda de liberdade.De quem? Desse povo brasileiroque não tem liberdade. Ou, por aca-so, há igualdade de direitos civis noBrasil? Dinheiro concentrado podecausar perda. De quê? De digni-dade do povo. E mais, pode causara perda de felicidade.

Então, o problema é a ótica libe-ral, que acha que dinheiro gera li-berdade. É a ótica liberal de quetudo está centrado no indivíduo. Naótica do coletivo, dinheiro pode le-var não à liberdade, mas à perdade liberdade, dignidade e felicida-de. E esse é o sentido da vida: li-

14. Vagão descarrilhado: oBrasil e o futuro da economiaglobal. Rio de Janeiro,Ed. Record, 2002.

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berdade, dignidade e felicidade. Éesse o drama da maioria do povobrasileiro: faltam liberdade, dignida-de e felicidade. Ademais, o país émarcado por fortes desigualdades.

O que a elite vê como seu direito(por exemplo, ter dinheiro para pe-gar avião e gastar no exterior), queresulta desse “dinheiro concentra-do”, é mais do que um privilégio, éum dos nossos dramas. E exata-mente por isso é que comecei di-zendo que é preciso desconcentrarradicalmente a riqueza. Não abromão do “radical”. Não tem nego-ciação! Desconcentraremos radi-calmente a riqueza ou ficaremos,quem sabe, sem fazer nada. Vai fi-car um “projetozinho” de um Bra-sil vulnerável, débil e africanizado.

E depois, no futuro, quando o PTfor governo, alguém virá para fa-zer crítica ao núcleo duro dos eco-nomistas do PT, que serão acusa-dos de ser os responsáveis pelosresultados medíocres. Quem sabeteremos o Sayad como ministro daFazenda. Então o pessoal dirá: “Onúcleo duro dos economistas do PT

não quer brigar com o sistema fi-nanceiro nacional e internacional,não consegue romper com o FMI”.Aí vão achar estranho, pois oMalan já foi embora! É lamentá-vel, mas é uma opção. De repente,nada será feito em termos de trans-formação e ruptura. Vale ressaltarque não é um problema técnico vin-culado a núcleos “duros” ou “mo-les” de economistas. É uma esco-lha política.

Na minha avaliação, a estratégiade nada fazer, nada mudar, signifi-ca deixar o Brasil vulnerável, débil,nessa trajetória de africanização. Eisso é uma estratégia de alto risco.Para fazer isso (não mudar), é me-lhor deixar a social-democracia ouos liberais no poder.

Neste debate, não devemos con-fundir perspectivas. Quando separte de princípios diferentes, nãose consegue convergir. Não seconsegue persuadir, não há por quepersuadir!

Procurei expressar, aqui, a minhavisão. O fundamental é que haja“rumo e prumo”, que, estou segu-

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ro, fazem parte da minha visão arespeito de um projeto de orienta-ção socialista para o Brasil. Penso,ademais, que é uma visão realista,que exige decisões importantes.

Estou convencido de que qualquerestratégia marcada pela pusilanimi-

dade e pela linha de menor resis-tência desembocará em um proces-so autofágico. Perderemos o rumoe o prumo. Não tenho dúvidas deque a história irá cobrar, e cobrarcaro, se seguirmos a linha de me-nor resistência. Muito obrigado.

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Sobre os autores

REINALDO GONÇALVES nasceu em 1951, no Rio de Janeiro. Éprofessor titular de economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro(UFRJ) e autor de mais de duas centenas de trabalhos publicados em 19países: Europa (Alemanha, Espanha, França, Inglaterra, Itália, Suécia,Suíça, Portugal e Iugoslávia); Ásia (Japão, Coréia do Sul e Índia); Áfri-ca (Cabo Verde); América do Norte (Estados Unidos e México); eAmérica do Sul (Brasil, Chile, Uruguai e Venezuela).

Em co-autoria com o historiador Valter Pomar escreveu os livrosO Brasil endividado: Como nossa dívida externa aumentou mais de100 bilhões de dólares nos anos 90 (2000) e A armadilha da dívida:Como a dívida interna impede o desenvolvimento econômico e au-menta a desigualdade social (2001), ambos publicados pela EditoraFundação Perseu Abramo.

Entre os livros de sua autoria, destacam-se: Empresas transnacionaise internacionalização da produção (Vozes, 1992); Ô abre-alas: Anova inserção do Brasil na economia mundial (Relume-Dumará,1994); Globalização e desnacionalização (Paz e Terra, 1999); O Bra-sil e o comércio internacional (Contexto, 2000); Vagão descarrilha-

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do (Record, 2002); A herança e a ruptura (Gramond, 2003); e O nóeconômico (Record, 2003). Foi ganhador do Prêmio Jabuti 2001 na ca-tegoria Economia, Direito e Administração.

RONALD ROCHA é sociólogo. Desde 1966, a partir da resistênciademocrática ao golpe de 1964, desenvolveu uma militância orgânica eininterrupta no movimento socialista. Foi diretor da União Nacional dosEstudantes (UNE) de 1969 a 1972, prisioneiro político durante o regimemilitar e membro do Diretório Nacional do PT. Tem vários livros publica-dos, especialmente nos âmbitos da análise econômico-social e da Filoso-fia Política. Atuou no ensino universitário. É membro do Conselho Curadorda Fundação Perseu Abramo e, nos últimos anos, vem se dedicando àeducação de jovens e adultos, com ênfase na formação integral voltadaao mundo do trabalho.

JOÃO SAYAD é economista, doutor (Ph.D.) pela Yale University eprofessor titular do Departamento de Economia da Faculdade de Econo-mia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA-USP) desde 1968.

Foi secretário estadual dos Negócios da Fazenda de São Paulo (1983-1985); ministro-chefe da Secretaria de Planejamento da Presidência daRepública (1985-1987); presidente executivo e presidente do Conselhodo Banco Inter American Express S. A. (1988-2000). Desde janeiro de2001 é secretário de Finanças e Desenvolvimento Econômico da Prefei-tura de São Paulo.

TÂNIA BACELAR DE ARAÚJO é graduada em ciências econô-micas e em ciências sociais, doutora em economia pública pela Universi-dade de Paris I. Ocupou durante três décadas o cargo de economista daSudene (Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste), de 1967 a

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1995. Foi secretária de Planejamento e secretária da Fazenda do estadode Pernambuco e secretária de Planejamento e Urbanismo de Recife.Após a eleição presidencial de 2002, foi membro da Comissão de Tran-sição criada pelo governo federal – coordenadora da equipe de Desen-volvimento Econômico. Além disso, foi consultora de organismos inter-nacionais, como o IICA, PNUD (Programa das Nações Unidas para oDesenvolvimento), BID (Banco Internacional de Desenvolvimento) e GTZ

(Agência Alemã de Cooperação Técnica), e é professora da UFPE (Uni-versidade Federal de Pernambuco).

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26 de março – Perspectivas que a vitória das es-querdas nas eleições municipais de 2000 abre à cons-trução do socialismo

Expositor: Luiz Inácio Lula da Silva – Presidente deHonra do PT

Comentadores: Marta Suplicy (prefeita de São Pau-lo), Raul Pont (ex-prefeito de Porto Alegre) e LuizDulci (presidente da Fundação Perseu Abramo)

9 de abril – Perspectivas que o desenvolvimentolocal e a distribuição de renda abrem à construção dosocialismo

Expositor: Celso Daniel – prefeito de Santo AndréComentadores: Ladislaw Dowbor (professor da PUC-

SP), Marina da Silva (senadora pelo Acre) e MiguelRossetto (vice-governador do Rio Grande do Sul)

23 de abril – O orçamento participativo como um dospressupostos políticos da construção do socialismo

Expositor: Olívio Dutra – governador do Rio Gran-de do Sul

Comentadora: Maria Victoria Benevides – profa. daUSP e da Escola de Governo

7 de maio – Papel dos sindicatos e cooperativasante as mudanças nas classes sociais e suas lutas, naperspectiva do socialismo

Expositor: Fernando Haddad – professor da USPComentadores: Gilmar Mauro (dirigente nacional do

MST), João Felício (presidente nacional da CUT) eRicardo Antunes (professor da Unicamp)

21 de maio – A luta pela terra e a organização dosassentamentos como contribuição para a construçãodo socialismo

Expositor: Plínio de Arruda Sampaio – ex-deputadofederal e consultor da ONU

Comentador: José Graziano da Silva – professorda Unicamp

4 de junho – Perspectivas que a revoluçãomicroeletrônica e a internet abrem à luta pelo socialismo

Expositor: Laymert Garcia – professor da UnicampComentadores: Bernardo Kucinski (professor da

USP), Maria Rita Kehl (psicanalista) e Walter Pinheiro(líder do PT na Câmara dos Deputados)

18 de junho – Alternativa socialista ante aglobalização financeira

Expositor: Reinaldo Gonçalves – professor da UFRJComentadores: João Sayad (secretário de Finan-

ças de São Paulo), Ronald Rocha (dirigente nacionaldo PT) e Tânia Bacelar (secretária de Planejamentode Recife)

Programa do segundo ciclo de semináriosSocialismo e Democracia realizado no primeiro semestre de 2001

Os seminários foram promovidos pelo Instituto Cidadania, pela Fundação Perseu Abramoe pela Secretaria Nacional de Formação do Diretório Nacional do PT

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Leia também da coleção

1o cicloGlobalização e socialismo

Maria da Conceição Tavares, Emir Sader e Eduardo Jorge

Classes sociais em mudança e a luta pelo socialismoFrancisco de Oliveira, João Pedro Stedile e José Genoino

Economia socialistaPaul Singer e João Machado

O indivíduo no socialismoLeandro Konder e Frei Betto

Instituições políticas no socialismoTarso Genro, Edmílson Rodrigues e José Dirceu

2o cicloOrçamento participativo e socialismoOlívio Dutra e Maria Victoria Benevides

Poder local e socialismoCelso Daniel, Marina Silva, Miguel Rosseto e Ladislaw Dowbor

Sindicatos, cooperativas e socialismoFernando Haddad, Ricardo Antunes, Gilmar Mauro e Gilmar Carneiro

Revolução microeletrônica, internet e socialismoLaymert Garcia dos Santos, Maria Rita Kehl, Bernardo Kucinski e Walter Pinheiro

Socialismo em discussão