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POSSIBILIDADES DE USO DO LIVRO DIDÁTICO COM BASE NA TEORIA

HISTÓRICO-CULTURAL E NAS DIRETRIZES CURRICULARES DO ESTADO DO

PARANÁ

Autora: Aparecida Esmeralda C. Alves1

Orientadora: Marta Sueli de Faria Sforni2

Resumo

O presente artigo tem o objetivo de relatar a implementação do Projeto de Intervenção Pedagógica desenvolvido com professores de uma escola pública do Estado do Paraná, como parte das atividades do Programa de Desenvolvimento Educacional – PDE. O tema trabalhado foi “Análise do uso do livro didático mediante os princípios da Teoria Histórico-Cultural e das Diretrizes Curriculares do Estado do Paraná”.O livro didático apesar de ser mais um dentre vários outros recursos, acaba se constituindo por vários motivos no principal meio utilizado pelo professor. Sabemos que esses livros são recomendados pelo MEC e que trazem uma forma de organização do ensino, adotam uma metodologia, priorizam conteúdos e objetivos, que se materializam na sala de aula. Por outro lado, no Estado do Paraná temos as Diretrizes Curriculares que norteiam a ação do professor em sala de aula. Então nos perguntamos: Há sintonia entre a concepção de educação presente nos livros didáticos e a assumida pelas DCEs? Se há diferenças, que concepção de currículo tem concretamente permeado a prática educativa dos professores quando fazem uso do livro didático? Em busca de resposta a essas questões foi organizada uma pesquisa junto aos professores da Escola Estadual Indira Gandhi – Ensino Fundamental, com o objetivo de conhecer a opinião desses profissionais acerca da utilização deste recurso na prática pedagógica. A seguir, foi elaborado um material didático para o trabalho com os professores, organizado em 08 (oito) temas de estudo que possibilitaram a análise das bases teóricas que fundamentam a organização teórico-metodológica dos livros didáticos comparando àquelas defendidas nas Diretrizes Curriculares do Estado do Paraná. Apoiado em princípios da Teoria Histórico-Cultural, esse trabalho permitiu que os professores refletissem sobre as possibilidades de uso do livro didático como recurso pedagógico, de acordo com essa perspectiva teórica.

Palavras-chave: Livro didático; Teoria Histórico-Cultural; Diretrizes Curriculares do Estado do Paraná.

1 Professora Pedagoga da Rede Pública Estadual de Ensino – Aluna PDE 2010.

2 Doutora em Educação pela USP, Professora do Departamento de Teoria e Prática da Educação e

do Mestrado e Doutorado em Educação da Universidade Estadual de Maringá e Orientadora do PDE.

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Introdução

A necessidade de repensar a organização do ensino pode encontrar sua

justificativa no resultado que tem alcançado, ou seja, na aprendizagem que tem

promovido. Conforme destacam Sforni e Galuch:

Os resultados de exames oficiais e avaliação, como a Prova Brasil, o Saeb e Pisa, tem revelado que, nos últimos anos, os estudantes brasileiros estão concluindo a 4ª e 8ª séries do ensino fundamental, [...] sem atingir os níveis de desempenho esperados para as respectivas séries. (SFORNI e GALUCH, 2009, p. 02).

Sabemos que esses índices do desempenho dos estudantes são resultantes

do processo de ensino do qual participaram, portanto, não se trata apenas de uma

avaliação da aprendizagem dos estudantes, mas de uma avaliação do ensino. Os

menores índices de desempenho são encontrados principalmente entre os alunos

das escolas públicas. Nesse sentido, temos dados objetivos para afirmar que temos

oferecido, principalmente nas escolas públicas, um ensino de baixa qualidade.

Inúmeros são os fatores que contribuem para essa baixa qualidade do ensino,

Libâneo cita alguns:

[…] falta de planos e medidas efetivas, descontinuidade administrativa, desigualdade entre as regiões, estados, grupos etários e classes sociais, indefinição das responsabilidades dos governos federal, estadual e municipal, além dos crônicos índices de evasão e repetência, analfabetismo, insucesso da escolarização de crianças de oito anos, desqualificação profissional dos professores, níveis salariais baixíssimos e, fundamentalmente, o alarme fracasso dos esforços em favor da melhoria da qualidade do ensino (LIBÂNEO, 2009, p.196).

Os fatores acima descritos pelo autor interferem diretamente na escola

pública, acarretando em várias dificuldades no seu cotidiano. Essas dificuldades

desafiam os envolvidos no processo educativo a buscarem possíveis soluções, por

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meio de estudos e constantes reflexões, que possam de fato contribuir para que a

escola cumpra sua função primeira, que é ensinar.

Partindo deste pressuposto, surge a necessidade de desenvolver este

estudo, que visa buscar alternativas para que a escola de fato cumpra essa função.

A organização do ensino é uma das prerrogativas do professor e os recursos

materiais, aos quais recorre para planejar e executar a ação docente, podem

propiciar maior ou menor qualidade sobre a aprendizagem dos estudantes. Vários

recursos materiais podem ser utilizados em sala de aula, como multimídia,

retroprojetor, vídeo, televisão, computador e o próprio livro didático. Enfim, os

recursos materiais são todos os meios físicos utilizados para disponibilizar os

conhecimentos para os alunos.

Sabemos que o livro didático é um, se não o principal, desses recursos.

Nesse sentido, se temos como meta a organização de um ensino que tenha um

impacto positivo no desempenho escolar dos estudantes, consideramos fundamental

analisar a forma como os professores têm utilizado o livro didático, bem como a

influência que este recurso pedagógico exerce no encaminhamento dos conteúdos

em sala de aula.

O espaço ocupado pelo livro didático no cotidiano escolar é retratado por

Sforni e Cascone:

[...] Muitas vezes, o livro didático é seguido e reproduzido em sala de aula, chegando a ter seu índice utilizado como planejamento de aula, determinando o que se ensina, como se ensina e a seriação dos conteúdos, bem como as atividades que os alunos devem realizarem cada uma das unidades ( SFORNI e CASCONE, 2010, p. 10).

Sabemos que essa presença marcante do livro didático na prática docente é

histórica. Segundo Oliveira (1984, p.12), “Livros usados como material de ensino

não são novidade, e há séculos que isso vem ocorrendo” Contudo, é sabido também

que muitos foram os avanços alcançados com a construção das Diretrizes

Curriculares Estaduais (PARANÁ, 2008) e principalmente, com a regulamentação do

Projeto Político Pedagógico (LDB – 9394/96), delegando aos professores maior

autonomia na construção da Proposta Pedagógica e no planejamento de ensino. Isto

nos leva a crer que deveria haver um avanço mais significativo e até mesmo, um

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entendimento mais crítico do professor ao utilizar o livro didático como recurso

pedagógico na sua prática.

Entretanto, apesar de todo esforço realizado para a elaboração desses

documentos, é possível perceber que ainda há um descompasso entre a teoria e

prática. Os documentos construídos - Projeto Político Pedagógico, Proposta

Pedagógica Curricular e Plano de Trabalho Docente - por si só não garantem a

concretude do currículo. É possível constatar esta realidade ao analisarmos a

situação de organização e prática de ensino no cotidiano escolar, quando nos

deparamos com situações nas quais o livro didático ainda é utilizado como

instrumento norteador da prática pedagógica em sala de aula. Tal fato causa certa

inquietação, pois além de se sobrepor aos documentos acima citados, “[...] o livro

didático ocupa os alunos por horas a fio em classe e em casa” (FREITAG, 1989, p.

128) fazendo seus deveres. É sabido que há bons livros, no entanto, eles não dão

conta da totalidade dos conteúdos propostos para as séries ou podem abordar o

conteúdo de forma incompatível ao defendido nas Diretrizes Curriculares.

Todavia, considerando que o livro didático faz parte da realidade escolar

tanto do professor quanto do aluno, não basta negar e se contrapor ao seu uso e

seguir como se ele não continuasse presente direcionando a prática pedagógica. É

preciso investigar até que ponto há convergências e divergências entre esses

manuais e as Diretrizes, de que forma ele pode ser utilizado mantendo a proposta

curricular do Estado, bem como, a autonomia e a possibilidade de criação de

materiais didáticos por parte do professor. Nesse sentido, nossa proposta de

trabalho no Programa de Desenvolvimento Educacional – PDE3 foi a de desenvolver

um estudo, por meio do qual fosse possível responder às seguintes questões: Qual

é a concepção de educação presente nos manuais recomendados pelo MEC? Há

sintonia entre esses livros didáticos e a concepção de educação proposta nas

Diretrizes Curriculares do Estado do Paraná? Quais conhecimentos a cerca do

currículo são necessários para que o professor utilize o livro didático considerando

3 O Programa de Desenvolvimento Educacional é uma política educacional de Formação Continuada

dos professores da rede pública estadual. Propõe um conjunto de atividades organicamente articuladas, definidas a partir das necessidades da Educação Básica, e que busca no Ensino Superior a contribuição compatível com o nível de qualidade desejado para a educação pública no Estado do Paraná. Tem como objetivo, proporcionar aos professores da rede pública estadual subsídios teórico-metodológicos para o desenvolvimento de ações educacionais sistematizadas, tendo em vista o redimensionamento de sua prática.

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os princípios que norteiam a concepção de currículo da rede estadual de ensino?

Para analisar as bases teóricas dos livros didáticos, comparando àquelas defendidas

no currículo prescrito da escola, e refletir sobre as possibilidades de uso do livro

didático como recurso pedagógico na perspectiva da teoria histórico-cultural,

elaboramos um material didático para ser utilizado durante a implementação do

projeto. Essa implementação foi realizada mediante um curso de formação

continuada do qual participaram professores e pedagogos da Escola Estadual Indira

Gandhi – Ensino Fundamental, do município de Umuarama-PR. O curso intitulado

“Possibilidades de uso do livro didático com base na Teoria Histórico-Cultural e nas

Diretrizes Curriculares do Estado do Paraná”, foi desenvolvido por meio de

encontros semanais de 4 horas, em horário extraescolar, totalizando 32 horas.

Participaram desse grupo de estudos 07 (sete) profissionais de diferentes

disciplinas e funções, como pedagogos, diretor e professores regentes.

Desenvolvimento

Para dar início às atividades de implementação do projeto na escola,

consideramos importante investigar como os professores concebiam o uso do livro

didático, qual espaço esse material ocupava na sua prática pedagógica. Para isso,

elaboramos algumas questões e solicitamos que os professores respondessem. As

respostas problematizaram alguns aspectos da realidade escolar e contribuíram

inicialmente, para a organização das discussões e estudos, realizados

posteriormente.

Mediante as respostas dadas, pudemos diagnosticar que o livro didático,

apesar de não direcionar efetivamente a prática pedagógica, é um dos materiais

consultados pelo professor para a organização do ensino. No entanto, os

profissionais consultados refletem acerca da pertinência do que está presente nos

livros. É o que revela uma das professoras ao dizer que há dificuldade para o uso do

livro didático porque existe: “[...] divergência dos conteúdos básicos apresentados

nos livros didáticos com os conteúdos propostos no planejamento curricular”.

Essa mesma percepção é revelada por outra professora, que afirma ser

necessário adequar o livro didático à sua prática pedagógica, pois “os conteúdos

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propostos nos livros, na sua maioria não atendem às necessidades da Proposta

Curricular defendida pela rede estadual”.

Esse, então parece ser um fato já percebido pelo corpo docente da escola, e

diante dele nos perguntamos:

1) Há de fato uma divergência entre os conteúdos apresentados no livro

didático e as Diretrizes Curriculares do Estado do Paraná?

2) Se há divergência, ela se revela apenas nos conteúdos?

3) Há divergências também no que se refere à metodologia e aos objetivos

de formação?

Outro aspecto também mereceu nossa reflexão e ele se amparou no

questionamento de uma pedagoga: “Eu sempre questiono: Por que tanto empenho e

investimento na utilização desse recurso didático?”

De fato, quais as razões de o governo incentivar tanto a utilização desse

recurso didático?

1. Será que se acredita que sem ele os professores não teriam competência

para organizar suas aulas? Se assim for, por que não se investir mais na formação

de professores?

2. Será que pelo fato de as escolas não terem recursos para a

elaboração/reprodução/utilização de outros materiais, considera-se que esse seja o

mais viável? Se esse for o motivo, por que não dotar as escolas de condições

físicas, financeiras e humanas para a elaboração de outros materiais?

3. Será uma forma de ter na prática um currículo comum em nível nacional,

já que mesmo com as diferenças de cada livro, há um padrão comum a todos? Se

essa hipótese for verdadeira, como fica o direito garantido pela LDB de que cada

escola, município ou estado tem a autonomia para elaborar o seu próprio currículo?

Qual seria o sentido de o Estado do Paraná, por exemplo, organizar as Diretrizes

Curriculares se há uma orientação comum em nível nacional?

Ainda observando os depoimentos coletados, a fala da diretora nos chama a

atenção, quando ela diz que alguns professores “não se preocupam com a escolha,

pois entendem que os livros já foram escolhidos pelo governo”. Quais seriam as

razões dessa despreocupação:

1) Será que essa despreocupação está ligada à ideia de que se o governo já

escolheu os livros então, de uma forma ou de outra, todos eles são bons? Se assim

for, teríamos que aceitar que os critérios utilizados para analisar os livros são os

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melhores possíveis. Então, cabe perguntar: nós conhecemos os critérios mediante

os quais um livro e aprovado ou rejeitado pelo MEC? Esses critérios servem a

qualquer perspectiva de formação?

2) A despreocupação dos professores pode estar também ligada a outro

aspecto, pode estar ligada à ideia de que não há espaço para a ação docente, que

tudo vem pronto “de cima” seja para o “bem” ou para o “mal”, e que não há muito o

que fazer. Se assim for, então qual é o espaço de ação docente? Há mesmo uma

obrigatoriedade de se seguir fielmente um caminho já traçado pelo livro didático?

Então para que montarmos PPP da escola? Essa prática não estaria negando a

perspectiva de que os professores devem ser sujeitos que estudam, pesquisam,

debatem, produzem e transmitem conhecimentos, relegando-os a condição de

apenas repassadores de conhecimentos?

3) Outro motivo para a despreocupação pode ser pela razão inversa ao

exposto acima, pode ser derivada da ideia de que qualquer livro pode ser escolhido,

pois no momento do planejamento de aula, cada professor faz o seu caminho,

independentemente, do livro adotado pela escola. Se assim for, cabe perguntar:

quais as possibilidades materiais e de tempo para realmente prepararmos textos,

atividades e materiais didáticos para o uso em sala de aula?

Enfim, muitos problemas parecem envolver o nosso tema de discussão,

alguns problemas envolvem as políticas educacionais, outros as concepções de

ensino e aprendizagem (Psicologia da Educação) e outros a organização do ensino

(Didática e Metodologia do Ensino). Por isso, transitaremos por essas áreas em

busca de respostas às questões levantadas, com a intenção de que nos tornemos

mais conscientes do cenário em que estamos envolvidos quando escolhemos e

usamos os livros didáticos.

Consideramos que a complexidade que envolve o assunto exige do coletivo

um repensar apoiado em estudos que possam oferecer aos professores condições

para analisarem a pertinência do uso do livro didático ao organizar suas aulas, de

forma que esses manuais atendam aos objetivos de ensino contemplados no Projeto

Político Pedagógico da escola e consequentemente, oportunizarem aos alunos uma

aprendizagem mais significativa.

É necessário analisar essa situação para que haja maior consciência da

nossa parte ao fazermos uso dos livros didáticos, tendo critérios para utilizá-los sem

que ele acarrete na negação, na prática, daquilo que anunciamos teoricamente nas

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Diretrizes Curriculares Estaduais e nos Projetos Políticos das escolas. Para isso é

preciso que tenhamos clareza sobre as implicações curriculares das Diretrizes na

organização do ensino, conhecendo a Pedagogia Histórico-Crítica e a Teoria

Histórico-Cultural que dão suporte teórico a essa proposta curricular. Dessa forma,

teremos condições para analisar a pertinência do uso do livro didático colocando

esses manuais a serviço dos nossos objetivos de ensino quando considerarmos

viável e o descartarmos quando eles fogem do caminho que pretendemos trilhar. Ou

seja, gostaríamos que os professores tivessem autonomia intelectual para interagir

com o livro didático e de forma que não fossem simplesmente conduzidos por esses

manuais.

Com base no material pedagógico elaborado, discutimos, nos encontros com

o grupo de professores, as bases teóricas que norteiam o livro didático, a concepção

de ensino proposto nas Diretrizes Curriculares Estaduais e as principais

contribuições da Teoria Histórico-Cultural para a prática educativa.

A bibliografia estudada foi: Cascone (2009); Fontana e Cruz (1997); Freitag,

Motta e Costa (1997); Galuch e Sforni (2006 e 2011); Oliveira (1997); Libâneo

(2000); Sapelli (2005); Saviani (2000); Sforni e Cascone (2010); Sforni (2010); Vieira

e Sforni (2008).

Os estudos realizados revelaram que para compreendermos a função da

escola pública, precisamos conhecer a forma de organização do processo produtivo

na atualidade, as bases teóricas que modificaram a concepção de educação

brasileira nas últimas décadas, o papel da escola mediante essas modificações, a

concepção de formação que norteia a escolha dos conteúdos curriculares e os

métodos de ensino e aprendizagem. O entendimento dessas questões é

fundamental para refletirmos sobre os limites de uma prática pedagógica que se

organiza com base nessas modificações.

Vieira e Sforni (2008) explicitam que:

A década de 1990 foi marcada por modificações curriculares na educação básica brasileira [...] assentadas em uma nova concepção do papel da escola, [...] presente no Relatório da Comissão Internacional da UNESCO, [...] e nos PCNs – Parâmetros Curriculares Nacionais – documento que apresenta a proposta do Ministério da Educação para a orientação curricular do ensino

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fundamental e médio das escolas brasileiras (VIEIRA e SFORNI, 2008, p.1).

Esses documentos tiveram como objetivo subsidiar e orientar a revisão

curricular, a formação inicial e continuada dos professores, a elaboração de projetos

educativos, a avaliação e, atingiram a produção do livro didático, o qual deveria

atender à proposta de ensino presente nesses documentos.

No Relatório da Comissão Internacional da UNESCO, conhecido como

Relatório Jacques Delors, os objetivos e propostas apresentados consideram a

educação como um fator decisivo para o desenvolvimento do indivíduo e da

sociedade, que cada vez mais, exige sujeitos capazes de atender às novas

demandas do setor produtivo decorrentes das ciências e da tecnologia, sem perder

de vista a coesão social. Nessa perspectiva, à educação cabe o papel de formar

sujeitos capazes de se adaptar ao sistema capitalista, com competências e

habilidades necessárias para utilizar os novos recursos tecnológicos.

As aprendizagens necessárias à formação do homem para servir a esse

modelo de sociedade, estão explicitas de forma bem clara no Relatório Jacques

Delors, denominadas quatro pilares da educação: aprender a conhecer, aprender a

fazer, aprender a viver juntos e aprender a ser.

Conforme Galuch e Sforni (2011):

Se o desenvolvimento das forças produtivas exige um trabalhador flexível, é preciso que a escola o ensine a aprender a conhecer e continuar aprendendo ao longo da vida; se a produção flexível exige capacidades e habilidades de resolver problemas e de trabalhar em grupo, a escola deve incluir entre as suas aprendizagens não a formação profissional em si, mas o aprender a fazer de modo que os estudantes estejam aptos a qualquer tipo de trabalho; se o mundo do trabalho não resolve ou até acentua as “rupturas dos laços sociais”, é necessário que a escola ensine a aprender a viver juntos, de modo a minimizar os conflitos sociais; se é necessário que os sujeitos tenham mais autonomia e se responsabilizem por si mesmos, a escola deve influenciar no desenvolvimento da personalidade dos sujeitos, de modo que eles aprendam a serem sujeitos autônomos e responsáveis (GALUCH e SFORNI, 2011, p.8).

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Essa concepção de educação, expressa nos quatro pilares do Relatório

Jacques Delors, está presente nos PCNs, que, para além dos conteúdos

conceituais, exige uma educação que promova a formação de atitudes e valores.

Assim, os conteúdos clássicos, aqueles descritos por Saviani como “aquilo

que resistiu ao tempo, logo sua validade extrapola o momento em que foi proposto”

(SAVIANI, 2000, p. 117), passaram a dividir espaços com os conteúdos que visam o

atendimento dos quatro pilares da educação, ou seja, “[...] diminui-se a importância

dos conteúdos escolares, que são reduzidos a meras informações, e defende-se a

necessidade de aquisição de um saber imediato e utilitário”(VIEIRA e SFORNI,

2008, p.6).

Sabemos que os livros didáticos que circulam nas escolas são aqueles

recomendados pelo MEC e que estes trazem uma forma de organização de ensino,

adota uma metodologia, prioriza conteúdos e objetivos que acabam se

materializando em sala de aula. Os critérios utilizados pelo Plano Nacional do Livro

Didático – PNLD – para recomendar ou não um livro são oriundos das orientações

teórico-metodológicas presentes nos PCNS. Ou seja, um livro é recomendado

quando seus conteúdos e atividades estão em sintonia com a perspectiva de

formação presentes nos PCNs, quando, enfim, contemplam os quatro pilares da

aprendizagem: o aprender a aprender, aprender a ser, aprender a conviver e

aprender a fazer. Conhecer o contexto sócio, político e econômico em que esses

manuais são produzidos é fator fundamental para compreender o papel que eles

assumem no atual contexto educacional.

Dessa forma, ao constatarmos que atualmente os livros didáticos que

circulam nas escolas brasileiras, foram produzidos às luzes dos Parâmetros

Curriculares Nacionais, fruto do Relatório Jacques Delors, podemos afirmar que a

concepção de educação presente nesses manuais, defende uma organização de

ensino voltada para a formação de atitudes e valores, priorizando conteúdos que

tem vínculos com temas sociais e atividades/exercícios vinculados à realização de

práticas sociais que atendam à demanda da sociedade capitalista.

[...] os PCNs trazem para as escolas um esvaziamento de conteúdos escolares, [...] o foco dos conteúdos foi deslocado para o foco nas competências – sendo os conteúdos considerados meios para se atingir as competências, agora ampliadas por requerimentos subjetivados e traduzidos em comportamentos e atitudes dos alunos

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como a criatividade, a iniciativa, a capacidade de resolução de problemas (ARCO-VERDE, 2003, p.12).

Nesse modelo de educação, os conteúdos formais são secundarizados, em

detrimento da aprendizagem de procedimentos, normas, valores e atitudes,

atribuindo a escola o papel de formar cidadãos livres comprometidos com a

transformação da sociedade. Esta perspectiva de formação dá um significado prático

a educação e tem-se a impressão de que a escola estaria rompendo com o modelo

tradicional de ensino, já que os sujeitos, por meio da participação democrática, são

envolvidos em questões sociais, econômicas e políticas, do seu bairro, município,

estado e país, como cidadãos livres, capazes de atuar na sociedade para

transformá-la.

O impacto dessa concepção de ensino pode ser constatado quando num

olhar mais atento, analisamos os resultados do Índice de Desenvolvimento da

Educação Básica – IDEB. Os resultados revelam que houve uma queda no

desempenho dos estudantes em todos os níveis se compararmos os resultados do

Sistema de Avaliação da Educação Básica – SAEB -, com os resultados do IDEB.

Por meio desses resultados é possível concluir que os alunos aprendiam mais na

década de 1990 do que nos dias atuais e que, no decorrer desses anos não houve

um progresso efetivo no desempenho educacional dos estudantes brasileiros. E

mais, se considerarmos a média 6,0 (seis) como padrão aceitável de desempenho

escolar, os resultados do IDEB demonstram que estamos muito aquém ao mínimo

esperado, e que somente em 2021 chegaremos ao resultado esperado, conforme a

Meta nº. 7 do Plano Nacional de Educação para o decênio de 2011- 2020, aprovado

pelo Projeto de Lei nº 8.035/2010.

Quando entendemos que a escolarização contribui para a formação e

desenvolvimento dos sujeitos, e que estes, ao se apropriarem dos conhecimentos

científicos, concorrem para a formação de uma sociedade mais justa e humana, o

desafio de resgatar a função da escola pública se torna uma ação prioritária na

organização do ensino. Uma das possibilidades para o enfrentamento desse desafio

está na organização do ensino, no estabelecimento de ações teórico-metodológicas

que tenham como prioridade o trabalho educativo.

Ao concebermos a escola como um local privilegiado de acesso ao

conhecimento e formação humana precisamos “garantir a todos um bom ensino, isto

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é a apropriação dos conteúdos escolares básicos que tenham ressonância na vida

dos alunos” (LIBÂNEO, 2005, p.39).

Com o propósito de “garantir esse bom ensino”, desde 2004, a SEED, de

forma sistematizada, por meio de um conjunto de ações voltadas para as práticas

curriculares, estabeleceu como foco principal que a “construção de novas diretrizes

curriculares se contrapusesse aos Parâmetros Curriculares Nacionais.” (PARANÁ,

SEED, 2009), afirmando que os referenciais nacionais - PCNs - atrelavam a escola

pública às necessidades do mercado, e, portanto, às políticas neoliberais.4

O processo de reformulação curricular, conforme Arco-Verde (2003), foi

iniciado com a análise da escola pública paranaense, já construída ao longo dos

últimos anos, observando os mais variados elementos desde as normas legais,

diretrizes e parâmetros nacionais e os sujeitos partícipes da realidade escolar:

professores, alunos gestores e comunidades. Por meio dessa análise obteve-se um

diagnóstico revelador: [...] “uma situação caótica das propostas curriculares que

vinham sendo desenvolvidas em nossas escolas” (ARCO-VERDE, 2003, p. 3).

De acordo com Arco-Verde (2003), o diagnóstico inicial revelou que o

processo de formação continuada priorizava programas motivacionais e de

sensibilização, desconsiderando a especificidade do trabalho educativo pela

ausência de reflexão sistematizada sobre a prática educativa, graves deficiências de

qualidade do trabalho pedagógico revelado pelos resultados dos sistemas de

avaliação da educação básica: redução e terceirização na contratação de

professores e demais profissionais da educação; “[...] o que surgia como perceptível,

neste diagnóstico inicial, era a apropriação dos discursos de eficiência e eficácia no

gerenciamento do sistema educacional e de propostas que seguiram as vozes

predominantes do cenário educacional, como os PCNs e as Diretrizes emanadas do

CNE” (ARCO-VERDE, 2003, p.5).

Esse trabalho investigativo acerca das principais questões relacionadas ao

ensino oferecido nas escolas públicas paranaenses mostrou uma escola pública

enfraquecida e empobrecida na sua atividade educativa, numa situação de

desgoverno, a mercê de políticas públicas que visavam somente a adequação da

educação ao mercado de trabalho, que impunha à escola uma formação voltada

4 Essa mesma análise é feita por Galuch e Sforni (2011) no texto Interfaces entre políticas

educacionais, prática pedagógica e formação humana.

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apenas para o desenvolvimento de habilidades e competências dos alunos conforme

as exigências imediatas do mundo do trabalho e uma gestão de autonomia que

responsabilizava a comunidade pelo sucesso ou fracasso do ensino.

Essa descaracterização da função da escola provocada pelas políticas

educacionais estabelecidas nos anos 90, “[...] limitou a possibilidade, principalmente

das camadas marginalizadas das condições mínimas de vida, do acesso à cultura

formal, aos conhecimentos historicamente construídos” (ARCO-VERDE, 2003, p.13).

Saviani (2000) justifica que o domínio da cultura possibilita aos sujeitos a

participação política e se esses sujeitos forem privados desse domínio além de não

conseguirem defender seus interesses, ao contrário, contribuem para que os

dominadores continuem a legitimar e consolidar-se no poder.

Além desse aspecto político, a aprendizagem da cultura (arte,

conhecimentos científicos e teóricos de modo geral) também é fundamental para o

desenvolvimento dos sujeitos do ponto de vista do desenvolvimento das

características essencialmente humanas, como as funções psíquicas superiores

(percepção, atenção, memória, raciocínio, imaginação...). Essa é a razão de se

encontrar na Teoria Histórico-Cultural a defesa de uma escola comprometida com a

transmissão dos conhecimentos clássicos dos diferentes campos disciplinares.

Acredita-se que a apropriação desses conhecimentos promove o desenvolvimento

dessas funções psíquicas, e, portanto, desenvolve condições para que o homem

avance intelectualmente rumo a sua emancipação.

Dessa forma, ao compreender a escola como instrumento de emancipação

humana, o conhecimento ao ser apropriado pelos sujeitos constitui-se numa

ferramenta de humanização desses sujeitos. Nessa perspectiva, as diretrizes da

educação paranaense passam a expressar essa concepção de educação que é

defendida pela Pedagogia Histórico-Crítica e pela Teoria Histórico-Cultural, mesmo

que essa última não esteja explicitamente citada nos documentos oficiais da SEED.

Mas neles está explicita a defesa da escola como uma alternativa concreta de

acesso ao conhecimento sistematizado.

[...] dar ênfase à escola como lugar de socialização do conhecimento, pois essa função da instituição escolar é especialmente importante para os estudantes das classes menos favorecidas, que têm nela uma oportunidade, algumas vezes a única, de acesso ao mundo

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letrado, do conhecimento científico, da reflexão filosófica e do contato com a arte (DCE, 2008, p. 14).

Esse novo jeito de interpretar o trabalho educativo com foco na

aprendizagem dos conteúdos historicamente produzidos pelos homens passou a ser

disseminado nas escolas, instaurando um movimento de construção de novos

referenciais curriculares, que se concretizou em 2008 com a versão final das

Diretrizes Curriculares da Educação Básica do Estado do Paraná. Construído a

muitas mãos, o documento oficial contempla os anseios de uma parcela

considerável de professores que puderam participar, opinar, sugerir e a partir da

prática realizada nas escolas públicas, formalizar um projeto de educação, que na

contradição, pudesse de fato promover o acesso ao saber sistematizado. Tendo em

vista essa perspectiva de formação, optou-se pelo currículo disciplinar e não

temático, acreditando-se que a organização do ensino por disciplinas teria maior

possibilidade de garantir que o conteúdo das diferentes áreas do conhecimento

fosse priorizado no planejamento das atividades docentes. Essa opção decorreu do

fato de que, muitas vezes, a ênfase no trabalho com temas, como sugerido pelos

PCNs, acabou resultando em atividades de ensino nas quais o conteúdo formal

acabou diluído em assuntos cotidianos, desprovidos de cientificidade.

Entretanto, sabemos que entre esse documento formalizado e a prática

educativa existe uma distância que desafia os profissionais da educação no

cotidiano das escolas. Quando constatamos que:

[...] as orientações curriculares nacionais não sejam assumidas conscientemente pelos professores, ao se adotar o livro didático como norteador da prática pedagógica, o currículo prescrito pelo MEC é transformado em currículo em ação pela escola, ainda que ela tenha um currículo próprio no qual esteja anunciado o vínculo com outro referencial teórico (SFORNI e CASCONE, 2010, p. 12).

Podemos afirmar que um dos elementos que contribui para que o currículo

prescrito não se efetive totalmente na prática pedagógica é a forma como o livro

didático vem sendo aplicado na escola, já que, este traz uma concepção de ensino

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diferente do proposto nas Diretrizes Curriculares Estaduais, e que, portanto, não

atende ao princípio de formação preconizado nos documentos oficiais.

Sacristán (1998) afirma que no espaço escolar circulam dois currículos: o

currículo prescrito, ou seja, “o currículo como compêndio de conteúdos ordenados

nas disposições administrativas” (SACRISTÁN e GÓMES, 1998, p. 138), e o

currículo em ação aquele que traduz mais fielmente a prática educativa,

desenvolvido no chão da escola, referente ao:

O conjunto de tarefas de aprendizagem que os aluno/as realizam, das quais extraem a experiência educativa real, que podem ser analisados nos cadernos e na interação da aula e que são em parte, regulados pelos planos ou programações dos professores/as (SACRISTÁN e GÓMES, 1998, p. 138).

Pode haver maior ou menor distância entre o currículo prescrito e o currículo

em ação. No caso do Estado do Paraná pode estar ocorrendo uma grande distância

entre um e outro. Vejamos: sabemos que os livros didáticos que circulam nas

escolas são aqueles recomendados pelo MEC, e que estes trazem uma forma de

organização do ensino, adota uma metodologia, prioriza conteúdos e objetivos que

acabam se materializando na sala de aula. Portanto, essa análise nos permite

concluir que estamos numa situação de tensão: há um recurso didático utilizado

tanto pelo professor quanto pelo aluno no cotidiano pedagógico das escolas públicas

paranaenses, e que não está em sintonia com a organização de ensino defendida

nos documentos oficiais da Secretaria de Estado da Educação – SEED.

Uma das possibilidades que a escola tem para enfrentar essa tensão, ou

seja, minimizar as divergências existentes entre o currículo prescrito e o currículo em

ação, e dessa forma, concretizar as orientações teórico-metodológicas contidas no

documento oficial, que preconiza uma organização de ensino no qual o

conhecimento seja trabalhado na perspectiva de formação humana, é conhecer e

compreender mais profundamente as bases teóricas que norteiam o currículo. De

acordo com Sforni (2010), “[...] a docência envolve ações teórico-práticas e não

somente práticas [...]” e que, “no planejamento de um curso, de uma disciplina ou de

uma aula, é preciso fazer escolhas”, e essas escolhas exigem algumas reflexões

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fundamentais, destacando que “a chave está no referencial teórico com base no qual

os critérios são definidos” (SFORNI, 2010, p.98).

Essa mesma orientação está presente no currículo oficial, neste, há um

apelo em defesa da importância de conhecermos as matrizes teóricas que orientam

a prática pedagógica:

[...] com perspectivas políticas distintas, identifica-se uma tensão entre o currículo documento e o currículo como prática. Para enfrentar essa tensão, o currículo documento deve ser objeto de análise contínua dos sujeitos da educação, principalmente a concepção de conhecimento que ele carrega, pois ela varia de acordo com as matrizes teóricas que o orientam e o estruturam. Cada uma dessas matrizes dá ênfase a diferentes saberes a serem socializados pela escola, tratando o conhecimento escolar sob óticas diversas (DCE, 2008, p. 16).

Embora não explicitamente, sabemos que para a construção das Diretrizes

Curriculares do Estado do Paraná, a equipe da Superintendência da Educação da

SEED, adotou referenciais teórico e metodológicos da Pedagogia Histórico-Crítica e

alguns princípios da Teoria Histórico Cultural, quando orienta aos professores para

que “[...] desenvolvam suas práticas pedagógicas a favor da apreensão dos

conhecimentos científico-tecnológicos, históricos, filosóficos e sociais pelos alunos,

sempre pensada na dimensão de formação humana”(ARCO-VERDE, 2003, p. 21).

Dessa forma, concordamos que é de fundamental importância que no exercício da

docência, os professores conheçam mais profundamente os princípios que

fundamentam essas matrizes teóricas e quais contribuições estas podem trazer para

a organização o ensino, no momento em que estes precisam estabelecer

prioridades, especialmente no que se refere aos objetivos, conteúdos metodologias

e principalmente, qual a finalidade de escolarização que se pretende alcançar com o

trabalho pedagógico a ser desenvolvido.

Como já afirmamos, alguns pressupostos teóricos da Pedagogia Histórico-

Crítica permearam as discussões durante o processo de formulação das Diretrizes

Curriculares do Estado do Paraná, torna-se, portanto, pertinente analisarmos os

principais conceitos que fundamentam essa teoria pedagógica, o que nos

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possibilitará a compreensão de alguns elementos que norteiam a concepção de

educação defendida nessas Diretrizes.

De acordo com os pressupostos da Pedagogia Histórico-Crítica, a educação

é um fenômeno intrínseco ao ser humano, é resultado do trabalho não-material que

o homem produziu ao interagir com a natureza para garantir sua existência. A

produção não-material é definida como “[…] a forma através da qual o homem

apreende o mundo expressando a visão daí decorrente de distintas maneiras”

(SAVIANI, 2000, p.11), o que justifica os mais variados tipos de saber ou de

conhecimento existentes. Entendendo o saber como resultado do trabalho

educativo, para produzí-lo “[…] a educação tem que tomar como referência, como

matéria-prima de sua atividade, o saber objetivo produzido historicamente”

(SAVIANI, 2000, p. 12). Essa atividade educativa tem como resultado a produção de

diversos tipos de saber. Entretanto, os conhecimentos produzidos por si só não tem

finalidade e valor, mas a partir do momento que se tornam necessários aos

indivíduos, são considerados valiosos elementos que os homens necessitam se

apropriar para se tornarem humanos.

O processo histórico de desenvolvimento estabelecido por meio das relações

de trabalho entre os homens modificou toda a estrutura da sociedade e

consequentemente, a forma de educação. A escola deixa de ser secundária e

passa a ser necessária, tendo em vista que o processo de industrialização, a

condição de vida na cidade, passou a exigir dos homens o domínio dos códigos

escritos e um conjunto de conhecimentos básicos necessários para sustentar o

modelo de produção que progressivamente foi se instalando e dominando a

sociedade até os dias atuais.

Nesse quadro de desenvolvimento da produção do trabalho material e não-

material, Saviani (2000) faz uma leitura da realidade histórica apontando as

transformações ocorridas no decorrer da história. Essas transformações evidenciam

uma coincidente relação entre a passagem da escola concebida como secundária, à

forma dominante da educação com o momento histórico em que as relações sociais

sucumbem às naturais, dando origem ao mundo da cultura, o mundo produzido pelo

homem. Nesse período de grandes alterações, o saber espontâneo, “natural” é

substituído pelo saber metódico, científico, sistemático, “[…] resultando daí que a

especificidade da educação passa a ser determinada pela forma escolar” (SAVIANI,

2000, p. 12).

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Para conceituar a natureza da educação e sua especificidade, Saviani parte

do princípio de que […] a educação é um fenômeno próprio dos seres humanos.

Assim sendo, a compreensão da natureza da educação passa pela compreensão da

natureza humana (SAVIANI, 2000, p. 15).

O autor explica que o que difere o homem dos demais seres vivos é o

trabalho. O homem ao agir sobre a natureza modifica-a para atender as suas

necessidades de sobrevivência. Nesse movimento de transformação, o homem

antecipa mentalmente a finalidade de sua ação, o que torna esse ato, o trabalho,

numa atividade intencional, planejada e própria dos seres humanos, pois os demais

animais restringem-se em apenas adaptarem à realidade natural.

Essa relação intencional que o homem estabelece com a natureza para

garantir os meios de sua subsistência, por meio do trabalho, tem como resultado o

processo de produção de bens materiais, traduzido por Saviani como “trabalho

material”. No processo de manutenção de sobrevivência, o homem antecipa em

ideias os objetivos de sua ação, e, para essa representação ele utiliza-se “[…] de

conhecimento das propriedades do mundo real (ciência), de valorização (ética) e de

simbolização (arte)” (SAVIANI, 2000, p. 16).

Nesse exercício de projetar mentalmente os objetivos reais, o homem produz

ideias, conceitos, valores, símbolos hábitos, atitudes, habilidades. Esse processo de

produção é denominado por Saviani como “trabalho não-material”. É nessa categoria

de trabalho não-material que Saviani situa a educação, explicando que a produção

do saber sobre a natureza, sobre a cultura, é o conjunto da produção humana.

Ao categorizar a educação como trabalho não-material, Saviani, distingue

duas modalidades: “[…] a primeira refere-se àquelas em que o produto se separa do

produtor como no caso dos livros e objetos artísticos” (SAVIANI, 2000, p. 16). A

segunda, o produto e ato de produção não se separam, há um embricamento entre o

ato de produção e consumo, ou seja, ao mesmo tempo em que a aula é produzida

pelo professor, essa mesma aula (produto) é consumida pelo aluno. É nessa

segunda modalidade do trabalho não-material que Saviani conceitua a natureza da

educação.

A partir da compreensão de que a educação é um trabalho não-material,

inicia-se a explicação da especificidade da educação. Ao relacionar a educação com

o trabalho não-material, no qual as ideias, conceitos, valores, símbolos hábitos,

atitudes, habilidades são tomados como algo exterior ao homem, esses elementos

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constituem-se em objeto das ciências humanas, porém os mesmos elementos

passam a ser objetos da educação a partir do momento que houver a necessidade

de assimilação pelo homem. Dessa forma, o autor explica que o objeto da educação

diz respeito a dois aspectos: “[…] a identificação dos elementos culturais que

precisam ser assimilados e a descoberta das formas adequadas de desenvolvimento

do trabalho pedagógico” (SAVIANI, 2000, p.18). Eis a especificidade do trabalho

educativo: “[…] produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a

humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens”

(SAVIANI, 2000, p. 17).

A exigência estabelecida pela especificidade do trabalho educativo de

socializar o saber produzido pela humanidade, buscando as formas mais adequadas

para esse trabalho é que justifica a importância escola, ou seja, a necessidade de

“[…] apropriação do conhecimento por parte das novas gerações que torna

necessária a existência da escola” (SAVIANI, 2000, p.19). Estando diretamente

ligada à questão do conhecimento, à escola é atribuída uma função especificamente

educativa, a ela cabe organizar o trabalho educativo, considerando como princípio a

socialização do saber sistematizado.

Ao se referir ao aspecto de identificação dos elementos culturais que

precisam se assimilados, Saviani (2000), reporta-se ao termo “clássico” explicando

que “clássico é aquilo que se firmou como fundamental”. Nesse mesmo sentido, o

autor se refere ao currículo, citando que:

[...] clássico na escola é a transmissão e assimilação do saber sistematizado. Este é o fim a atingir. É aí que cabe encontrar a fonte natural par elaborar os métodos e as formas de organização do conjunto das atividades da escola, isto é currículo (SAVIANI, 2000, p. 23).

Quando a pedagogia Histórico-Crítica se empenha na defesa da

especificidade da escola, essa defesa consiste em atribuir à escola uma função

especificamente educativa que, ao longo da história desde sua gênese, foi relegada

a segundo plano. A retomada da função educativa da escola perpassa pela

reorganização do trabalho educativo, cujo foco principal está na apropriação do

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saber sistematizado, considerando que no saber historicamente elaborado está a

chave para definir a especificidade da educação escolar.

Na concepção dessa corrente pedagógica, “[…] a tendência de secundarizar

a escola traduz o caráter contraditório que atravessa a Educação, a partir da

contradição da própria sociedade”(SAVIANI, 2000, p. 114). Desde a constituição da

sociedade burguesa ocorre a tentativa de desvalorizar a escola, pois ao considerar

que o saber, objeto específico do trabalho educativo, é um meio de produção e que

a partir do momento que essa produção passa a ser generalizada, socializada,

coloca em risco as bases do sistema capitalista, o qual sempre foi e é sustentado

pelo domínio sobre os meios de produção. Então, esse movimento revela que ao

mesmo tempo em que o sistema capitalista necessita da escola para manter a

divisão de classes e se auto-afirmar, há uma preocupação em limitar a

generalização do saber. Como afirma Saviani, essa contradição justifica a famosa

frase de Adam Smith, “[…] em que ele admitia a instrução, ou seja, a instrução será

oferecida aos trabalhadores intelectual para os trabalhadores, mas acrescentava:

‘porém em doses homeopáticas’ ” (SAVIANI, 2000, p. 116), o suficiente para manter

o desenvolvimento da sociedade e ampliar o capital.

Entender “[…] a realidade humana como sendo construída pelos próprios

homens, a partir do processo de trabalho” (SAVIANI, 2000, p.120) e como esse

processo de produção da sociedade se manifesta na questão escolar, como os

determinantes sociais interferem e determinam o grau em que as contradições

sociais marcam a educação é necessário quando se tem como objetivo central a

defesa da especificidade escolar na qual o trabalho educativo se constitui como

elemento necessário ao desenvolvimento cultural, e, sobretudo como

desenvolvimento humano.

Nesse quadro de entendimento é que está o sentido fundamental da

Pedagogia Histórico-Crítica, ou seja, a escola deve ensinar o

conteúdo/conhecimento clássico, mas se a escola tradicional trabalhava com o

conhecimento clássico, então por que são feitas críticas à escola tradicional? Para

esclarecer essa crítica, Saviani (2000) chama a atenção para alguns pontos que por

serem óbvios, acabam sendo obscurecidos e secundarizam o ensino, reforçando

dessa forma as desigualdades sociais. Ao criticar os modismos na educação, o autor

faz a distinção entre o tradicional e o clássico: “Tradicional é o que se refere ao

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passado, ao arcaico, ultrapassado […] clássico é aquilo que resistiu ao tempo, logo

sua validade extrapola o momento em que foi proposto” (SAVIANI, 2000, p.117).

Vimos comumente que quando se critica a escola tradicional joga-se tudo

fora como se nada dela tivesse valor, foi com base nesse equívoco que a Escola

Nova se estabeleceu no cenário educacional brasileiro, disseminando nos cursos de

formação e inculcando nos professores a ideia de que na escola tradicional, os

conteúdos eram transmitidos de forma mecânica e vazios de sentidos, “A partir daí a

Escola Nova tendeu a considerar toda transmissão de conteúdos mecânica e todo

mecanismo como anticriativo” (SAVIANI, 2000, p.23). Como resultado desse

equívoco tem-se o esvaziamento dos conteúdos, ou seja, junto com o processo de

transmissão e repetição duramente criticados na escola tradicional expropriou-se o

conteúdo, a matéria-prima do trabalho educativo. Na verdade, do ponto de vista da

concepção Histórico-Crítica, a crítica atribuída à escola tradicional está no fato de

que o método de ensino - transmissão e repetição - não garantiam aprendizagem

dos conteúdos. Então a questão é não jogar tudo fora, mas buscar um método de

ensino que garanta, de fato, a aprendizagem do conhecimento clássico, entendendo

que clássico não pode ser confundido com o tradicional, pois “[...] clássico na escola

é a transmissão-assimilação do saber sistematizado. É este o fim a atingir”

(SAVIANI, 2000, p.23).

Nesse sentido, Saviani (2000) justifica que certas funções clássicas da

escola não podem ser perdidas, caso contrário, acabamos invertendo o sentido da

escola. O que tem acontecido é que a escola tem cada vez mais perdido o conteúdo,

ou seja, cada vez mais tem substituído os conhecimentos clássicos por outros.

Os conceitos preconizados nessa teoria nos permite compreender que “sem

conteúdo não há ensino” (ARCO-VERDE, 2003, p. 19), e que “o objeto principal do

ensino e da aprendizagem é o processo de humanização pela apropriação dos

conhecimentos elaborados” (SFORNI, 2010, p.107). Para organizar o ensino de

forma a atender essa perspectiva de formação, encontramos nos princípios da

Abordagem Histórico-Cultural, algumas contribuições que podem orientar o

professor no exercício de análise, frente a escolarização pretendida nas Diretrizes

Curriculares do Paraná, e a defendida nos PCNs. Acreditamos que ao compreender

o princípio formativo de cada uma dessas concepções, o professor poderá ter

condições de utilizar o livro didático, de forma consciente, como um recurso didático

que em alguns momentos pode ser, e em outros momentos não, um aliado do

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trabalho pedagógico, com vistas a formação que se pretende desenvolver, não se

constituindo assim no elemento norteador da organização de ensino.

Nos últimos anos a Teoria Histórico-Cultural tem ocupado papel de destaque

no cenário educacional. Essa teoria psicológica desenvolvida por Vygotsky,

psicólogo e principal teórico, que viveu na Rússia, até a década de 30 do século

passado. Vygotsky ocupou-se em explicar “[...] como se formaram, ao longo da

história do homem, as características tipicamente humanas de seu comportamento e

como elas se desenvolvem em cada indivíduo” (FONTANA e CRUZ, 1997, p.57), e

seus estudos se diferenciaram das demais teorias no “[...] modo como Vygotsky

concebia e analisava o desenvolvimento humano levou-o a discutir explicitamente o

papel da escolarização” (FONTANA e CRUZ, 1997, p. 65), o que contribuiu para que

essa teoria conquistasse espaço no campo educacional.

Ao realizar estudos sobre desenvolvimento humano, Vygotsky estabeleceu

a relação entre a aprendizagem e o desenvolvimento. Para esse teórico, o

aprendizado constitui-se num aspecto fundamental e necessário para o

desenvolvimento das funções psicológicas tipicamente humanas, “[...] é o

aprendizado que possibilita o despertar de processos internos de desenvolvimento

que, não fosse o contato do indivíduo com certo ambiente cultural, não ocorreriam”

(OLIVEIRA, 2005, p. 56). Com base nesse estudo, e para compreender melhor a

relação entre aprendizado e desenvolvimento, Vygotsky formula alguns conceitos

específicos que compõem sua teoria: mediação, o conceito de zona de

desenvolvimento proximal e nível de desenvolvimento real, o papel dos conceitos

cotidianos e científicos, e, sobretudo, a importância de considerar esses conceitos

quando se pretende desenvolver um processo de escolarização voltado para o

desenvolvimento humano.

Para explicar o papel da escolarização no desenvolvimento humano e a

relação entre ensino e aprendizagem, Vygotsky estabelece dois níveis de

desenvolvimento, assim explicitados por Cascone:

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O primeiro, chamado “nível de desenvolvimento real”, compreende as capacidades de a criança realizar suas tarefas no cotidiano, de forma autônoma. É a capacidade da criança em realizar atividades ou solucionar problemas sem a ajuda de outra pessoa. [...] nível de desenvolvimento proximal ou potencial, demarca aquilo que a criança consegue realizar com a ajuda de outras pessoas mais experientes. Neste nível a criança é capaz de realizar uma ação que não dominava (CASCONE, 2009, p.21).

A análise deste conceito nos permite compreender que o trabalho

pedagógico na escola deve prever situações de aprendizagem que vão além do que

a criança é capaz de realizar sozinha, é neste espaço de atuação que reside o

potencial formativo da escola, “as passagens” que os alunos vão fazendo ao se

apropriarem dos conteúdos, antes desconhecidos, é que permitem o

desenvolvimento das funções psicológicas superiores (memória, raciocínio, atenção,

emoção, pensamento e imaginação) e estas por sua vez, potencializam a

capacidade de generalização, “[...] mediante a escola há a possibilidade da

promoção de um modo mais abrangente de análise e generalização dos elementos

da realidade – o pensamento conceitual” (CASCONE, 2009, p. 23).

A Teoria Histórico-Cultural considera o conhecimento científico como

promotor do desenvolvimento humano, neste sentido, para explicar como se dá o

desenvolvimento do pensamento conceitual, essa abordagem revela que há

distinções específicas entre os conceitos cotidianos ou espontâneos e os científicos.

De acordo com Sforni (2010), esses conceitos desenvolvem-se de forma

diferenciada. Os conceitos cotidianos são apreendidos de forma espontânea pela

criança, são formulados à medida que ela interage com outras pessoas e por meio

da linguagem quando nomeia objetos e fatos de sua vida cotidiana. Já os conceitos

científicos são formados de forma deliberada, consciente, no interior de um sistema

e não na experiência cotidiana. Para explicar como os conceitos cotidianos se

desenvolvem utilizamos os exemplos citados por Sforni (2010):

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A criança utiliza os conceitos cotidianos para se comunicar com outras pessoas, mas não tem consciência de que eles incluem alguns objetos e excluem outros. A relação entre o uso do conceito e a não consciência dele pode ser exemplificada com o conceito de animal. Desde muito pequena, a criança utiliza essa palavra em contexto adequado, no entanto, não tem consciência de que se trata de uma classificação dos seres vivos. Portanto, ao fazer uso dessa palavra, a criança pode relacioná-la apenas a uma ou outra espécie de animal que ela conhece e, com isso considera, por exemplo, que cachorro e cavalo são animais, mas ignorar que esse termo inclui a formiga, a minhoca e o próprio homem (SFORNI, 2010, p. 103).

Essa limitação que a criança tem para aplicar o conhecimento espontâneo

em outras situações, como mostra o exemplo, é que reside a fragilidade dos

conceitos cotidianos no desenvolvimento psíquico, porque as aprendizagens não

ultrapassam os limites da vivência, “[...] a atenção do sujeito foca-se na

comunicação ou na resolução da situação prática por ele vivida” (SFORNI, 2010,

p.103), o que de certa forma, limita a possibilidade de generalização. Entretanto,

esses conceitos também tem suas potencialidades, pois geralmente são

apreendidos em situações concretas em que o sujeito tem contato direto com o

objeto representado, diferente do que ocorre com a apropriação dos conceitos

científicos, esses:

[...] surgem em contextos de uso deliberado, consciente, em situações que se tem clareza dos objetivos ou fenômenos que eles representam. As relações entre outros conceitos já são estabelecidas desde os primeiros contatos do sujeito com o objeto representado. O conceito científico de animal é apresentado ao aluno como expressão dos reinos dos seres vivos; assim, a forma espontânea, mas de forma deliberada, consciente, com base no conhecimento abstrato e não na experiência cotidiana. Os campos da percepção, da atenção, do raciocínio e da memória do estudante ampliam-se com a generalização possibilitada pelo conceito científico (SFORNI, 2010, p. 103).

Ao observarmos que os conceitos cotidianos e científicos se desenvolvem

de forma diferente e que, exercem um poder específico na aprendizagem,

compreendemos que o papel da escola vai além de repassar os conteúdos nas suas

dimensões conceituais, atitudinais e procedimentais, conforme preconiza os PCNs.

É nos conteúdos conceituais que reside o compromisso científico da escola, ou seja,

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é na escola que os sujeitos tem a oportunidade de acesso ao conhecimento

socialmente produzido, por meio de um ensino “adequadamente organizado”. De

acordo com Sforni (2004), Vygotsky qualifica o aprendizado escolar como “o

aprendizado adequadamente organizado”, isso nos deixa margem para

entendermos que não é qualquer aprendizado que promove o desenvolvimento

mental e nem tampouco, qualquer educação que promove a aprendizagem, mas

somente aquele que se organiza de determinada forma, conforme discute Sforni

(2004).

Quando compreendemos que a organização de ensino presente nos livros

didáticos corresponde àquela defendida nos PCNs, e que este modelo de educação

impõe à escola a necessidade de ampliar o tipo de conteúdo ensinado, cujo foco

está no aprender a ser, aprender a conviver, aprender a fazer e aprender a

conhecer, e que dessa forma, os conteúdos científicos são relegados a segundo

plano, entendemos que o potencial formativo dos conteúdos fica comprometido e,

portanto, nessa perspectiva de escolarização a possibilidade formativa presente no

conhecimento científico é limitada.

Com relação à forma como os conteúdos são apresentados nos livros

didáticos, Cascone (2009) afirma que:

[...] a possibilidade formativa presente na aprendizagem de conceitos científicos exposta por Vygotsky se esvai em uma prática pedagógica que tenha como referência a organização dos conteúdos presentes nos atuais livros didáticos. A predominância de conteúdos atitudinais e a forma de trabalho com os conteúdos conceituais [...], o caráter descritivo e não reflexivo dos textos, as atividades que exigem apenas repetição de termos científicos em contraposição ao exercício do pensamento científico fazem com que [...] tenha pouco impacto na aprendizagem e, consequentemente, no desenvolvimento psíquico dos alunos. Visto que não oferecem as condições necessárias à modificação da percepção, da atenção, da imaginação e do raciocínio dos estudantes (CASCONE, 2009, p. 97).

Sob a ótica da Abordagem Histórico-Cultural, as atividades escolares que

nada exigem dos alunos, além de repetição e memorização, ou resolução de

situações práticas, restritas a temas cotidianos que podemos ter acesso até mesmo

por meio da mídia, pouco ou nada acrescentam ao desenvolvimento das funções

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mentais. O grande desafio da escola hoje é combater essa organização limitada de

ensino, nesse sentido é necessário reavaliar o modelo de concepção que tem

norteado as propostas de ensino nas últimas décadas e que ainda estão inculcadas

nos educadores. Um ensino que almeja o desenvolvimento cognitivo dos estudantes

tem que ter a clareza de que o desenvolvimento cognitivo se efetiva à medida que

os estudantes têm acesso aos conhecimentos historicamente produzidos e

presentes nas diversas áreas do saber escolar.

Essa clareza também deve estar presente ao analisarmos o que convém ser

utilizado do livro didático e o que deve ser descartado por não ser fundamental à

formação humana que almejamos. Se isso estiver claro, priorizaremos textos e

atividades que tem como foco a aprendizagem de conceitos científicos e não

centraremos nossa ação no trabalho com textos e atividades que aparecem no livro

didático com a finalidade de tão somente transmitir valores e atitudes sem que esses

sejam embasados no conhecimento. Enfim, temos um critério que nos confere

autonomia para orientar a nossa ação com o livro didático.

Considerações finais

A nossa participação no PDE possibilitou um espaço significativo para

repensar a utilização do livro didático na prática cotidiana de sala de aula,

analisando as divergências e convergências entre esses manuais e as Diretrizes

Curriculares Estaduais e as possibilidades de uso desse material na perspectiva

educacional defendida nessas diretrizes.

No primeiro momento, na elaboração do projeto de implementação,

preocupamo-nos em analisar como os professores utilizam o livro didático na sua

prática pedagógica, ou seja, que espaço esse recurso ocupa na organização do

ensino. De imediato, o resultado dessa análise apontou que há um descompasso

teórico-metodológico entre a organização de ensino proposta nos manuais e a que

se propõe nas Diretrizes Curriculares Estaduais. Essa percepção revelou que ainda

precisamos percorrer um longo caminho para a realização de uma prática, na qual o

livro didático possa ser utilizado mantendo a proposta curricular do Estado, bem

como a autonomia e a possibilidade de criação do professor.

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O estudo sistematizado, desenvolvido nos oito encontros, conforme proposto

no material didático, com respaldo teórico da orientadora, as discussões e reflexões,

o debate promovido entre os colegas, possibilitou um importante aprofundamento

teórico, acerca da concepção de ensino presente no livro didático e a estabelecida

nos documentos oficiais do Estado. Nessa etapa de implementação, por meio dos

estudos propostos, o grupo pode realizar um paralelo entre a teoria e a prática,

apontando as convergências e divergências entre o conceitos de ensino presentes

nos livros didáticos e o proposto nas diretrizes, constatando que na verdade, o que

falta para o professor é o conhecimento sobre as teorias, conforme já revelado por

Sforni “a chave está no referencial teórico com base no qual os critérios são

definidos” (SFORNI, 2010, p.98). Ou seja, a clareza acerca da finalidade da

escolarização que se pretende é o que possibilita e dirige as escolhas que o

professor precisa fazer no momento em que prepara sua aula. Portanto, o professor

precisa ter clareza e conhecimento dos fundamentos teóricos que embasam sua

prática.

Podemos afirmar, sem dúvida, que o resultado desse estudo possibilitou o

entendimento de que o trabalho pedagógico envolve ações teórico-metodológicas e

não somente práticas. A forma como o livro didático aborda os conteúdos, a

metodologia utilizada traz implícita uma concepção de ensino, que pode ser visível

ou imperceptível, na medida em que conhecemos ou desconhecemos as teorias que

estruturam o ensino. Isso significa maior ou menor consciência por parte do

professor das ações que realiza. Podemos afirmar que só é possível realizarmos um

trabalho não alienado quando temos consciência das ações que realizamos.

Dessa forma, consideramos que esse trabalho contribuiu para reafirmar a

necessidade de estudo, de reflexão e um novo olhar acerca da utilização do livro

didático no contexto escolar. Ao observarmos as orientações teórico-metodológicas

contempladas nas Diretrizes Curriculares Estaduais afirmando que “[...] os sujeitos

da Educação Básica, [...] devem ter acesso ao conhecimento produzido pela

humanidade que, na escola, é veiculado pelos conteúdos das disciplinas escolares”

(DCE – 2008, p. 14), temos como norte uma concepção de ensino que privilegia a

formação humana com base na apropriação dos bens culturais historicamente

produzidos. Para tanto, é preciso que tenhamos clareza sobre as implicações

curriculares das Diretrizes na organização do ensino, conhecendo as teorias que

dão suporte teórico a essa proposta curricular. Assim, teremos condições para

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analisar a pertinência do uso do livro didático colocando esses manuais a serviço

dos nossos objetivos de ensino e não simplesmente seguindo servilmente a

metodologia, os conteúdos e objetivos presentes neles.

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