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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE
FERNANDA CRISTINA ARAÚJO BATISTA
A PEDRA DO REINO: UMA ANÁLISE DOS PROCEDIMENTOS DA ADAPTAÇÃO
DO ROMANCE PARA MINISSÉRIE E DOS DIÁLOGOS COM OUTROS GÊNEROS
DISCURSIVOS
SÃO PAULO
2015
FERNANDA CRISTINA ARAÚJO BATISTA
A PEDRA DO REINO: UMA ANÁLISE DOS PROCEDIMENTOS DA ADAPTAÇÃO
DO ROMANCE PARA MINISSÉRIE E DOS DIÁLOGOS COM OUTROS GÊNEROS
DISCURSIVOS
Tese apresentada à Universidade Presbiteriana
Mackenzie como requisito parcial para a
obtenção do título de Doutor pelo Programa de
Pós-graduação Stricto Sensu em Letras.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Maria Luiza Guarnieri Atik
SÃO PAULO
2015
B333p Batista, Fernanda Cristina Araújo.
A pedra do reino : uma análise dos procedimentos da adaptação do romance para minissérie e dos diálogos com outros gêneros discursivos / Fernanda Cristina Araújo Ba-tista. – 2015.
249 f. : il. ; 30 cm.
Tese (Doutorado em Letras) – Universidade Presbiteri-ana Mackenzie, São Paulo, 2015.
Referências bibliográficas: f. 226-234.
1. Romance d’A Pedra do Reino. 2. Suassuna, Ariano,
1927-2014. 3. Adaptação televisiva. 4. Carvalho, Luiz
Fernando, 1960-. 5. Transtextualidade. I. Título.
CDD 791.457
FERNANDA CRISTINA ARAÚJO BATISTA
A PEDRA DO REINO: UMA ANÁLISE DOS PROCEDIMENTOS DA ADAPTAÇÃO
DO ROMANCE PARA MINISSÉRIE E DOS DIÁLOGOS COM OUTROS GÊNEROS
DISCURSIVOS
Tese apresentada à Universidade Presbiteriana
Mackenzie como requisito parcial para a
obtenção do título de Doutor pelo Programa de
Pós-graduação Stricto Sensu em Letras.
Aprovada em 19/05/2015
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Maria Luiza Guarnieri Atik – Orientadora Universidade Presbiteriana Mackenzie
___________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Aurora Gedra Ruiz Alvarez Universidade Presbiteriana Mackenzie
___________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Helena Bonito Couto Pereira Universidade Presbiteriana Mackenzie
___________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Maria Aparecida Junqueira Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
___________________________________________________________
Prof. Dr. Gilberto Pinheiro Passos Universidade de São Paulo
A meu pai, que sempre me incentivou a buscar aperfeiçoamento e motivou a seguir em frente, apesar das dificuldades.
AGRADECIMENTOS
À CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, pela bolsa de estudos concedida. À Prof.ª Dr.ª Maria Luiza Guarnieri Atik, minha orientadora, pelo carinho com que me aceitou novamente como sua orientanda e pela paciência com que me guiou durante a realização deste trabalho. À Prof.ª Dr.ª Maria Aparecida Junqueira e à Prof.ª Dr.ª Aurora Gedra Ruiz Alvarez, pelas valiosas sugestões apresentadas no Exame de Qualificação e na Defesa da Tese. Aos demais membros da Banca Examinadora, Prof.ª Dr.ª Helena Bonito Couto Pereira e Prof. Dr. Gilberto Pinheiro Passos, por terem aceitado nosso convite e pelas interessantes considerações feitas no momento da Defesa da Tese. Aos professores da Pós-Graduação em Letras da UPM, pela grande contribuição que fizeram para meu aperfeiçoamento durante o curso das disciplinas, em 2012, e a todos os meus demais professores, da educação básica à graduação, por tudo que me ensinaram. A Valter Doniseti Justino e Guilherme Rodrigues Ferreira, pelo grande auxílio na impressão dos muitos exemplares deste trabalho. À minha família: Mário Batista, Rubens Batista, Marcos Tadeu Araújo Batista e Stefanno de Andrade Xotta, pelo apoio que sempre me deram quando precisei. A todos os amigos e colegas de profissão e pesquisa, que compreenderam o cansaço e, sempre com bom humor, incentivaram-me a seguir em frente.
RESUMO
O objetivo desta tese é analisar a minissérie A Pedra d’O Reino (2007), produzida
pela Rede Globo em parceria com a Academia de Filmes e dirigida por Luiz
Fernando Carvalho, em relação à obra literária que lhe deu origem, o Romance d’A
Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta (1971), escrito por Ariano
Suassuna. Carvalho concebeu a minissérie como forma de homenagear Suassuna
pelos oitenta anos de vida do escritor, completados na data de exibição do quinto e
último capítulo da adaptação, 16 de junho de 2007. Assim, apesar de ter toda a
liberdade para transformar o que considerasse necessário no romance para transpor
sua narrativa para o formato minissérie, optou por manter a essência e os aspectos
principais do texto fonte ao também dialogar aberta e ricamente com outros textos e
gêneros do discurso. Por esse motivo, o principal referencial teórico utilizado por nós
para o estudo das obras é o que aborda a questão da transtextualidade, mais
precisamente o trabalho de Gérard Genette em Palimpsestes: la littérature au
second degré (1982), que explica e exemplifica os modos como o diálogo com
outros textos e/ou gêneros discursivos pode ser realizado. Contudo, como nosso
corpus é uma adaptação televisiva de uma obra literária, o modo de
transtextualidade que examinamos mais detidamente é a hipertextualidade com a
questão dos procedimentos formais empregados na transposição feita por Carvalho:
concisão, excisão, extensão temática e transmodalização intramodal. Buscamos
investigar a transtextualidade dentro do romance e da minissérie ao explicitar os
efeitos de sentido criados pelos diálogos estabelecidos por eles e estudamos,
também, a composição de algumas das cenas de ambas as obras a fim de descobrir
por meio de que recursos cada um dos autores transmite suas ideias, similares ou
não, através de seus textos, principalmente no que se refere à personagem Sinésio,
primo e sobrinho do narrador-protagonista Quaderna, e que é construído em ambas
as obras como uma figura ambígua: considerada messiânica pelo narrador e pela
população pobre do sertão da Paraíba, que a comparam ao Rei Dom Sebastião e a
Jesus Cristo, e, em contrapartida, vista como impostora e perigosa pela elite do
local, a qual acredita que ele, a mando de Luís Carlos Prestes, quer ludibriar o povo
a fim de mobilizá-lo para que venha a desencadear a Revolução Comunista.
Palavras-chave: Romance d’A Pedra do Reino. Ariano Suassuna. Adaptação
televisiva. Luiz Fernando Carvalho. Transtextualidade.
ABSTRACT
This thesis aims at analyzing the Brazilian TV series A Pedra d’O Reino (2007),
produced by Rede Globo and Academia de Filmes and directed by Luiz Fernando
Carvalho, in relation to the novel that originated it, Romance d’A Pedra do Reino e o
príncipe do sangue do vai-e-volta (1971), by Brazilian writer Ariano Suassuna.
Carvalho conceived the series as a way to honor Suassuna on his 80th birthday, to
be celebrated on the day the last chapter was broadcasted, June sixteenth, 2007.
Therefore, in spite of being free to change whatever he considered necessary in the
novel in order to transform it into a TV series, he chose to keep the essence and the
main aspects of the original text as he also dialogued openly and expressively with
other texts and speech genres. For this reason, the theoretical framework we have
chosen to work with is one about transtextuality: Gérard Genette’s Palimpsestes: la
littérature au second degré (1982), which explains and exemplifies the ways in which
dialogs with other texts and/or genres can happen. However, because our corpus is
a television adaptation of literature, the type of transtextuality examined by us more
carefully is hypertextuality, along with the issue of the formal transpositions made by
Carvalho: concision, excision, thematic extension and intramodal transmodalization.
We are going to analyze transtextuality in the novel and in the TV series as we
explain the effects of meaning created by the dialogs that appear in them. We are
also going to study the composition of some scenes in both productions in order to
find out what resources each author uses to express their own ideas, which might or
not be similar to one another, especially when it comes to the construction of the
character Sinésio, who is the narrator’s cousin and nephew and is shown as
ambiguous. On the one hand, Sinésio is considered a messiah by the narrator and
the poor people from the outback of the Brazilian state of Paraíba, who compare him
to the Portuguese king Dom Sebastião and to Jesus Christ; on the other hand, he is
seen as a dangerous fraud by the rich local people, who believe him to try to fool the
poor in order to drag them into taking part in the Communist Revolution under the
direction of Luís Carlos Prestes.
Keywords: Romance d’A Pedra do Reino. Ariano Suassuna. Television adaptation.
Luiz Fernando Carvalho. Transtextuality.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1: O Duelo ................................................................................................... 58
Figura 2: Besta Bruzacã e Moby Dick ..................................................................... 59
Figura 3: Malaquias, Euclydes e Quaderna montados em cavalos mecânicos ....... 62
Figura 4: Pintura das Pedras do Reino em painel de tecido .................................. 63
Figura 5: Quaderna posa para foto em frente às Pedras do Reino ........................ 64
Figura 6: Preparação de atores com vendas ......................................................... 64
Figura 7: Principais personagens da commedia dell’arte ....................................... 66
Figura 8: Personagem Arlecchino .......................................................................... 67
Figura 9: Quaderna aos 00:18:53 do primeiro capítulo .......................................... 67
Figura 10: Personagem Cucurucu ........................................................................... 68
Figura 11: Palco da commedia dell’arte ................................................................... 69
Figura 12: Proscênio do palco de Quaderna ............................................................ 69
Figura 13: Fundo do palco de Quaderna ................................................................. 70
Figura 14: Dona Margarida toma nota do depoimento de Quaderna ....................... 70
Figura 15: Samuel e Quaderna escutam explicação de Clemente ........................... 71
Figura 16: Pintura de Giotto Di Bondone – São Francisco de Assis ........................ 72
Figura 17: Onça ou Moça Caetana sobre a torre ..................................................... 72
Figura 18: Pintura de Giotto Di Bondone – Jesus Cristo .......................................... 73
Figura 19: Chegada do Rapaz-do-Cavalo-Branco ................................................... 73
Figura 20: Capa da nona edição do livro ................................................................. 77
Figura 21: Capas de folhetos de cordel ................................................................... 78
Figura 22: Gravura da p. 362 do Romance .............................................................. 80
Figura 23: Bandeira da Onça na minissérie ............................................................. 81
Figura 24: Gravura da p. 40 do Romance ................................................................ 81
Figura 25: Bandeira das Onças na minissérie .......................................................... 82
Figura 26: Gravura da p. 61 do Romance ................................................................ 82
Figura 27: Escudo do manto do Rapaz-do-Cavalo-Branco na minissérie ................ 83
Figura 28: Primeiro segundo de exibição da vinheta de abertura da minissérie ....... 84
Figura 29: Indicação do ator Irandhir Santos ........................................................... 85
Figura 30: Dois dedos de Quaderna que remetem às Pedras do Reino .................. 87
Figura 31: Coração que remete ao Império da família de Quaderna ....................... 87
Figura 32: Portal da Vila de Taperoá ....................................................................... 88
Figura 33: Peep-box virtual ...................................................................................... 89
Figura 34: Peças do jogo de xadrez ......................................................................... 90
Figura 35: Quaderna como curinga do baralho ........................................................ 91
Figura 36: Quaderna aos 00:02:11 do primeiro capítulo .......................................... 91
Figura 37: Dona Margaria e Juiz Corregedor como personagens do baralho .......... 92
Figura 38: Dona Margarida aos 00:22:04 do segundo capítulo ................................. 93
Figura 39: Juiz Corregedor aos 00:25:24 do segundo capítulo ................................ 93
Figura 40: Heliana, Samuel e Clemente como personagens do baralho .................. 94
Figura 41: Heliana aos 00:12:53 do primeiro capítulo .............................................. 94
Figura 42: Clemente e Samuel aos 00:23:57 do segundo capítulo .......................... 95
Figura 43: Dom Pedro Sebastião como personagem do baralho .............................. 96
Figura 44: Pedro Sebastião Garcia-Barretto aos 00:13:15 do segundo capítulo ...... 96
Figura 45: Maria Safira e Arésio como personagens do baralho .............................. 97
Figura 46: Maria Safira aos 00:20:07 do segundo capítulo ...................................... 97
Figura 47: Arésio aos 00:03:55 do primeiro capítulo ................................................ 98
Figura 48: Sinésio como personagem do baralho .................................................... 98
Figura 49: Sinésio aos 00:10:08 do primeiro capítulo .............................................. 99
Figura 50: Lanças azuis e vermelhas .................................................................... 100
Figura 51: Sol ardente remete ao sertão e ao sol astrológico ................................ 101
Figura 52: Título da minissérie escrito no alfabeto sertanejo ................................. 101
Figura 53: Rei Dom João Ferreira Quaderna incita uma multidão a se sacrificar ... 108
Figura 54: Quaderna se aproxima da Lagoa do Vieira ........................................... 109
Figura 55: Samuel brada por Dom Sebastião ........................................................ 109
Figura 56: Quaderna encontra pedra oval na Lagoa do Vieira ............................... 116
Figura 57: Luís do Triângulo saúda Quaderna ....................................................... 135
Figura 58: Panorâmica do sertão ........................................................................... 148
Figura 59: Quaderna menino assiste à cavalhada ................................................. 149
Figura 60: Quaderna velho rememora cavalhada a que assistiu quando menino .. 149
Figura 61: Partidários de Arésio ............................................................................ 159
Figura 62: Partidários de Sinésio ........................................................................... 159
Figura 63: Quaderna no centro da dança de roda ................................................. 162
Figura 64: Primeiríssimo plano de Sinésio com ar de surpresa e introspecção ..... 177
Figura 65: Ângulo contrapicado de Sinésio contra o Sol ........................................ 178
Figura 66: Cristo é batizado no filme Jesus, de Roger Young ............................... 179
Figura 67: Sinésio “enterrado” numa masmorra .................................................... 179
Figura 68: Pintura de Caravaggio – The Entombment ........................................... 180
Figura 69: Minissérie de Franco Zeffirelli – Maria chora a morte de Jesus ............ 181
Figura 70: Sinésio e Quaderna vão à casa de Edmundo Swendson em Natal ...... 184
Figura 71: Expressões faciais de Sinésio, Doutor Pedro e Doutor Manuel ............ 198
Figura 72: Sinésio assusta-se com o discurso do velho Nazário ........................... 199
Figura 73: Sinésio emociona-se ao reencontrar Silvestre ....................................... 200
Figura 74: Quaderna em ritual litúrgico do catolicismo sertanejo ........................... 205
Figura 75: Quaderna sob efeito do vinho da Pedra do Reino ................................. 206
Figura 76: Lino Pedra-Verde conta a Quaderna sobre a chegada de Sinésio ........ 207
Figura 77: Povo escuta Frei Simão falar sobre Sinésio ......................................... 215
SUMÁRIO
Resumo
Abstract
Lista de Figuras
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 13
CAPÍTULO I: DIALOGISMO, INTERTEXTUALIDADE E TRANSTEXTUALIDADE ............. 25
1.1 O Dialogismo de Mikhail Bakhtin e a Intertextualidade de Julia Kristeva .................. 25
1.2 A Transtextualidade de Gérard Genette .................................................................. 30
1.3 O Dialogismo, a Intertextualidade e a Transtextualidade segundo Robert Stam ...... 40
CAPÍTULO II: A TRANSTEXTUALIDADE NO ROMANCE E NA MINISSÉRIE ................... 43
2.1 Diálogos com o Movimento Armorial e com o Projeto Quadrante ............................ 44
2.1.1 Confluência com outros gêneros literários e discursivos ................................ 49
2.1.2 Capa, gravuras e vinheta de abertura: cordel e antecipação narrativa ............ 76
2.2 Diálogos com a História ......................................................................................... 102
2.2.1 Sebastianismo e outros movimentos messiânicos ........................................ 102
2.2.2 Movimentos políticos do início do século XX ................................................ 120
CAPÍTULO III: PROCEDIMENTOS TRANSFORMACIONAIS DA ADAPTAÇÃO .............. 148
3.1 Excisões, Concisões, Extensões Temáticas e Transmodalizações Intramodais ..... 156
3.2 A Construção de Sinésio ........................................................................................ 167
3.2.1 Apresentação do Rapaz-do-Cavalo-Branco e de sua cavalgada ................... 170
3.2.2 Surgimento do herói e do amor por sua dama ............................................... 183
3.2.3 Expectativas em torno do Rapaz e da cavalgada .......................................... 186
3.2.4 Profecias de Quaderna e crenças em Sinésio ............................................... 201
3.2.5 Milagres do Prinspo e mobilização do povo ................................................... 207
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................................219
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................................... 226
REFERÊNCIAS ELETRÔNICAS ........................................................................................ 232
ANEXO I – ÁRVORE GENEALÓGICA DE QUADERNA ................................................... 235
ANEXO II – TRILHAS SONORAS DA MINISSÉRIE .......................................................... 236
ANEXO III – EXTRAS DO DVD .......................................................................................... 238
13
INTRODUÇÃO
O Romance d’A Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta começou
a ser escrito por Ariano Suassuna em 1958 e foi concluído em 1971, ano de sua
publicação. É composto por cinco livros subdivididos em 85 folhetos, todos narrados
por um narrador-protagonista, Pedro Dinis Ferreira-Quaderna, nos quais relata seus
sonhos, seus medos e suas aventuras. Contém ainda uma fotografia e 26 gravuras
produzidas pelo próprio Suassuna e que, inseridas nos folhetos, têm a função de
ilustrar e comprovar os fatos a que se refere o narrador, os quais, em maior ou
menor grau, foram responsáveis por sua prisão, local de onde ele narra sua história.
Considerado por Alfredo Bosi como uma narrativa de fôlego que surpreendeu o
público, combina “lenda e humor, tradição popular e paródia” (2004, p. 428), assim
como todo o conjunto da obra suassuniana, que dialoga constantemente com
elementos da cultura erudita mesclados à cultura popular de acordo com os
preceitos do Movimento Armorial proclamado pelo próprio escritor em 1970:
A Arte Armorial Brasileira é aquela que tem como característica principal a relação entre o espírito mágico dos folhetos do Romanceiro popular do Nordeste (literatura de cordel), com a música de viola, rabeca ou pífano que acompanha suas canções e com a xilogravura que ilustra suas capas, assim como o espírito e a forma das Artes e espetáculos populares com esse mesmo Romanceiro relacionados. (SUASSUNA, 1974, p. 7 apud MICHELETTI, 2007, p. 108)
Assim, a narrativa de Quaderna “combina epopeia, romance policial, romance
de aventuras, além da reflexão sobre a obra” (LIND, 1974, p. 29-44 apud
MICHELETTI, 2007, p. 57) e, além disso, possui diversas peculiaridades:
Várias histórias que se interpenetram, formando um nó que não é desatado; diversas narrativas, desligadas do nó, que visam ao retardamento do desenlace; várias vozes que colaboram para a recorrência de linhas temáticas. (MICHELETTI, 2007, p. 57)
No romance, encontram-se elementos da história político-social brasileira e da
história da literatura. Os elementos que remontam à história nacional referem-se ao
movimento messiânico (numa mescla de realidade e ficção) ocorrido em 1836, de
cujo líder o narrador é descendente, à Guerra de Canudos e a diversos fatos
políticos ocorridos nas décadas de 1920 e 1930, tais como o movimento conhecido
como Coluna Prestes e a Revolução de 1930. Os elementos que remontam à
14
história da literatura, por sua vez, referem-se ao “caráter aludidamente intertextual
que vai compondo a enunciação do Romance” (MICHELETTI, 2007, p. 58). Dessa
maneira, a narrativa se compõe de modo híbrido:
Abrigando traços distintivos de vários gêneros e subgêneros ficcionais e argumentativos em prosa e em verso (folhetim, folheto, crônica, memorial, romance de cavalaria, epopeia, mito, ensaio) e recorrendo a relatos históricos, tanto ancorados no real, como a relatos fantasiosos, pretensamente históricos. (MICHELETTI, 2007, p. 59)
Como aponta Micheletti, Quaderna é réu num processo judicial e procura
embaralhar fatos por meio de longas digressões, citações, colagens e paródias que
faz a partir de textos consagrados da literatura ocidental. Assim, sua obra, do ponto
de vista semântico estrutural, lembra um mosaico, cujo primeiro elemento de
composição é o folhetim, que permite a recorrência a cortes, antecipações,
coincidências, mistérios e a própria inconclusão do romance. Outros componentes
são as crônicas, o memorial e a epopeia. As crônicas são voltadas para aspectos
histórico-factuais e associadas a genealogias e acontecimentos fantasiosos
(MICHELETTI, 2007, pp.59-60); o memorial é o discurso no qual o réu faz a
evocação de sua vida e que, por isso, vem acompanhado de “farta documentação: o
depoimento de várias personagens que dialogam com Quaderna, o dos cronistas,
historiadores, prosadores, poetas cantadores e ensaístas que o auxiliam na sua
tarefa”; e a epopeia é o gênero através do qual Quaderna, Samuel e Clemente (seus
mestres), cada um à sua maneira, desejam descrever “o brilho e a grandeza do
Brasil” (MICHELETTI, 2007, pp.63-64).
Esse grande mosaico que é o Romance d’A Pedra do Reino e o príncipe do
sangue do vai-e-volta ganhou, em 2007, uma adaptação televisiva na forma de
minissérie, produzida pela Rede Globo em homenagem aos 80 anos de Ariano
Suassuna, e dirigida por Luiz Fernando Carvalho, a qual foi intitulada A Pedra d’O
Reino.
As adaptações de textos provindos de outros suportes são bastante comuns,
principalmente em datas festivas, tais como em comemoração a aniversários de
escritores ou de obras importantes, e ocorrem com frequência no cinema e na
televisão desde o surgimento desses meios, tendo sido sempre muito importantes
para seu desenvolvimento principalmente por três motivos pontuais: 1-) contribuíram
para alimentar a produção quando não havia um número suficiente de profissionais
15
trabalhando especificamente para eles de modo que fossem capazes de produzir
obras em quantidade suficiente e preencher toda a grade de programação (como,
por exemplo, ocorreu com a exibição em larga escala de textos teatrais gravados – o
chamado “teleteatro” – nos primeiros anos da televisão brasileira) ; 2-) ajudaram a
dar a esses meios, vistos como artes menores quando criados (e, no caso da TV, até
hoje), um maior ar de sofisticação por serem capazes de se apropriarem, muitas
vezes, de grandes obras já consagradas (especialmente no caso de textos
adaptados de literatura, pois, quando se apresenta na televisão uma minissérie
adaptada da maior obra de um escritor como Guimarães Rosa, por exemplo, passa-
se ao público a impressão – que pode ou não ser equivocada – de que esse produto
será superior aos demais produzidos especificamente para o meio televisivo); 3-)
levaram até eles públicos fiéis aos meios nos quais os textos originais circularam,
como, por exemplo, os vídeo games e as HQ’s (cujos fãs costumam lotar as salas de
cinema para verem seus heróis na grande tela em produções que dão origem a
inúmeras sequências).
No entanto, existem graus variados de adaptação ou “transmutação”, termo
proposto por Roman Jakobson. Um texto transmutado pode trazer nos créditos uma
das seguintes informações: “adaptado”, “baseado” ou “inspirado” no texto fonte. De
qualquer maneira, será necessariamente diferente de um texto de roteiro original,
pois acabará sendo inevitavelmente reconhecido pelas suas divergências da obra
original, que funcionará como uma “forma-prisão” (JOHNSON apud BALOGH, 2005,
p. 53).
No final do ensaio “O chão da palavra: cinema e literatura no Brasil”, o crítico
José Carlos Avellar analisa a questão da adaptação fílmica. No entanto, podemos
pensar, também, a adaptação televisiva tendo por base o pensamento do estudioso:
A relação dinâmica que existe entre livros e filmes quase nem se percebe se estabelecemos uma hierarquia entre as formas de expressão e a partir daí examinamos uma possível fidelidade de tradução: uma perfeita obediência aos fatos narrados ou uma invenção de soluções visuais equivalentes aos recursos estilísticos do texto. O que tem levado o cinema à literatura não é a impressão de que é possível apanhar uma certa coisa que está num livro – uma história, um diálogo, uma cena – e inseri-la num filme, mas, ao contrário, uma quase certeza de que tal operação é impossível. A relação se dá através de um desafio como os dos cantadores do Nordeste, onde cada poeta estimula o outro a inventar-se livremente, a improvisar, a fazer exatamente o que acha que deve fazer. (Apud PELLEGRINI, 2003, pp. 39-40)
16
Segundo Ismail Xavier, a interação entre as mídias contribuiu para que fosse
reconhecido o direito do cineasta – e, segundo nosso entender, também do roteirista
de TV – a sua interpretação própria do romance ou da peça de teatro a ser
adaptada, o que torna admissível a ideia de que eles são livres para “inverter
determinados efeitos, propor outra forma de entender certas passagens, alterar a
hierarquia dos valores e redefinir o sentido da experiência das personagens”
(XAVIER, 2003, p. 61). Com isso, segundo Xavier:
A fidelidade ao original deixou de ser o critério maior de juízo crítico, valendo mais a apreciação do filme como nova experiência que deve ter sua forma, e os sentidos nela implicados, julgados em seu próprio direito. Afinal, livro e filme estão distanciados no tempo; escritor e roteirista não têm exatamente a mesma sensibilidade e perspectiva, sendo, portanto, de esperar que a adaptação dialogue não só com o texto de origem, mas com o seu próprio contexto, inclusive atualizando a pauta do livro, mesmo quando o objetivo é a identificação com os valores nele expressos. (2003, p. 62)
Roteiros adaptados de obras literárias, de peças teatrais, de histórias em
quadrinhos, de vídeo games e de relatos históricos somaram 40% da produção
cinematográfica do ano de 1997 segundo James Naremore (2000) e têm sido um
tipo de produção tão recorrente na indústria cinematográfica que desde 1929 existe
uma categoria especial do Oscar para premiar, anualmente, o melhor roteiro
adaptado, no caso de esses filmes não concorrerem à categoria geral de melhor
filme do ano, como ... E o vento levou (1940), O poderoso chefão (1973), A lista de
Schindler (1994), O Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei (2004), entre outros que
saíram vitoriosos da disputa.
Em se tratando de produções realizadas ao longo da história da
teledramaturgia brasileira, o número é bastante parecido ao menos no que diz
respeito às minisséries e às novelas das seis da Rede Globo: das oitenta e uma
minisséries produzidas entre 1982 e 2013, duas foram adaptadas de peças teatrais
(O Pagador de Promessas, de Dias Gomes, e O Auto da Compadecida, de Ariano
Suassuna), dezoito foram adaptadas de obras literárias como romances e livros de
memórias (Anarquistas, Graças a Deus, de Zélia Gattai, Agosto, de Rubem Fonseca,
e Dona Flor e seus Dois Maridos, de Jorge Amado) e catorze foram baseadas ou
livremente inspiradas em livros (O Tempo e o Vento, de Érico Veríssimo, Riacho
Doce, de José Lins do Rego, e Presença de Anita, de Mário Donato). Das oitenta e
duas novelas produzidas para serem veiculadas no horário das dezoito horas entre
17
1971 e 2013, vinte e oito são adaptações ou foram baseadas / inspiradas em peças
teatrais, romances e até mesmo radionovelas (Helena, de Machado de Assis, O
Noviço, de Martins Pena, e Ciranda de Pedra, de Lygia Fagundes Telles).
Esses números demonstram o quanto o cinema e a televisão se relacionam
com outros meios e artes, principalmente com a literatura, da qual provém a maioria
das obras não originais. Por isso, e também pela crescente popularidade dos
discursos imagéticos, nos quais se enquadram as produções televisivas e
cinematográficas, que contribuem para que nossa época seja considerada uma
“civilização da imagem” (JOLY, 2012, p. 9), este trabalho apresentará uma análise da
relação do Romance da Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta e sua
adaptação televisiva, a minissérie A Pedra d’O Reino, pois nos parece importante
que se conheçam os mecanismos de que se valem os roteiristas e diretores
televisivos e cinematográficos para apropriação de outros textos e com que objetivos
o fazem.
Segundo Ismail Xavier, “o filme narrativo-dramático, a peça de teatro, o conto e
o romance têm em comum uma questão de forma que diz respeito ao modo de
disposição dos acontecimentos e ações das personagens” (XAVIER, 2003, p. 64-65).
Para ele:
Quem narra escolhe o momento em que uma informação é dada e por meio de que canal isso é feito. Há uma ordem das coisas no espaço e no tempo vivido pelas personagens, e há o que vem antes e o que vem depois ao nosso olhar de espectadores, seja na tela, no palco ou no texto. Em todas essas formas de expressão, fato de estar presente o ato de narrar permite o uso de categorias comuns na descrição dos elementos que organizam as obras em aspectos essenciais. A narrativa é uma forma do discurso que pode ser examinada num grau de generalidade que permite descrever o mundo narrado (esse espaço-tempo imaginário em que vivem as personagens) ou falar sobre muitas coisas que ocorrem no próprio ofício da narração sem que seja necessário considerar as particularidades de cada meio material (a comunicação oral, o texto escrito, o filme, a peça de teatro, os quadrinhos, a novela de TV). (XAVIER, 2003, p. 64)
Assim, há características comuns a todas as narrativas:
Na descrição do mundo que a narração constrói, posso falar em tempo, espaço, tipos de ação e de agente (personagens), ou mesmo descrever certos procedimentos de quem narra, sem levar em conta se o que se usa são palavras ou imagens – como quando me refiro a uma disposição dos fatos em sucessão linear, ou uma disposição que implica idas e vindas no tempo cronológico, ou quando me refiro
18
a paralelismos na evolução da história, elipses, mudanças no espaço das ações, formas distintas de privilegiar a experiência de um ou mais personagens, produção de certas simetrias entre começo e fim, entrecruzamentos, bifurcações e “pontos de virada” da história, relações entre o que é descrição de um estado de coisas (ou estado mental) e o que é narração de eventos, conflitos entre projetos de personagens que se enfrentam ou se ajudam, etc. (XAVIER, 2003, pp. 64-65)
Para o pesquisador, diante de qualquer discurso narrativo, pode-se falar em
fábula e em trama. A fábula refere-se à história contada, às personagens, ao local
onde os acontecimentos se deram e o tempo em que ocorreram, bem como sua
duração. A trama refere-se ao modo como a história e as personagens aparecem
para o leitor ou espectador do texto. Segundo o estudioso, “uma única história pode
ser contada de vários modos; ou seja, uma única fábula pode ser construída por
meio de inúmeras tramas, com formas distintas de dispor os dados, de organizar o
tempo” (XAVIER, 2003, pp. 64-65).
Desse modo, ainda segundo Xavier, o que um filme, um romance ou uma peça
de teatro oferecem ao leitor/espectador é a trama, pois não é possível relacionar-se
senão com a disposição do relato tal como ele é dado. Assim, para esse estudioso, é
a partir da trama que se deduz a fábula – e não o contrário, como muitas vezes se
acredita (XAVIER, 2003, p. 66).
No que concerne à adaptação, um filme pode estar mais atento apenas à
fábula extraída de um romance ou pode querer reproduzir com fidelidade a trama do
livro. Em qualquer dos casos, Xavier aponta que:
[...] é possível saber com precisão o que se manteve, o que se modificou, bem como o que se suprimiu ou acrescentou. Mas dificilmente haverá consenso quanto ao sentido de tais permanências e transformações, pois elas deverão ser avaliadas em conexão com outras dimensões do filme que envolvem elementos que se sobrepõem ao eixo da trama, como os elementos de estilo que engajam os traços específicos ao meio. (XAVIER, 2003, p. 67)
Ainda segundo Ismail Xavier, a variedade dos métodos e formas de narrar é
enorme, e uma das questões mais importantes para o estudo do romance, do
cinema e da adaptação é a que trata da “distinção entre narradores que se
escondem atrás do seu ofício de narrar e querem dar a impressão de que a história
evolui por si mesma como se fosse autônoma, e narradores que são ‘intrusos’”
(XAVIER, 2003, p. 69). “O cinema clássico, com suas regras de transparência e
19
ilusionismo, privilegiou o primeiro tipo: a história deve correr sem interferências”,
efeito que se denomina “naturalista” por procurar eclipsar os meios de representação
e “dirigir o espectador para uma identificação dita direta com o mundo ficcional”
(XAVIER, 2003, pp. 69-70). Não foi o método utilizado no romance de Ariano
Suassuna e tampouco na minissérie produzida por Luiz Fernando Carvalho, em cuja
análise pretendemos responder a estes questionamentos feitos por Ismail Xavier
sobre o problema do ponto de vista, que, para ele, não se reduz ao ângulo a partir
do qual se conta a história, pois traz outras implicações:
[...] afinal, o narrador faz sua voz audível de modo escancarado ou se esconde? Intervém, explicita suas opiniões, ou deixa que o leitor/espectador faça as suas inferências a partir do modo como apresenta os fatos? Deixa a história correr como se fosse observada de uma janela transparente ou faz questão de lembrar o leitor/espectador de sua atividade como orquestrador que controla tudo? Assume a posição de narrador onisciente, que sabe tudo e pode garantir que suas personagens realmente pensaram ou sentiram isto ou aquilo num certo momento? Ou assume que seu saber tem limites, que talvez só se aplique a uma personagem (foco central da história), ou não se aplique a nenhuma? Mesmo quando sabe tudo, como ajusta a dose de informação que nos libera ao longo do processo? Faz com que saibamos mais do que as personagens? Ou menos do que elas? Enfim, como escolhe as posições em que nos quer colocar, as emoções que nos reserva? (XAVIER, 2003, p. 69)
A fim de embasarmos nossa análise dos textos, realizamos o levantamento da
fortuna crítica da obra de Ariano Suassuna, da qual se destacam os livros de
Guaraciaba Micheletti, Discurso e Memória em Ariano Suassuna (2007) e Na
confluência das formas – O discurso polifônico de Quaderna/Suassuna (1997) e
estudamos, também, produções acadêmicas variadas a respeito da literatura
suassuniana, desde papers e artigos, a dissertações de mestrado e teses de
doutorado, que são abundantes não só em programas de pós-graduação em letras e
literatura, mas também em diversas outras áreas do conhecimento, tais como a
geografia, a história e a educação.
Entre as dissertações, destacamos a de Fernando Favaretto, A Literatura de
Ariano Suassuna na TV: um estudo de formação estética (2008), a de Julius Vinicius
Marques Nunes, A Pedra do Reino de Luiz Fernando Carvalho: A Transposição do
Romance de Ariano Suassuna para a Televisão (2009), a de Fernanda Areias de
Oliveira, Novas possibilidades para a teledramaturgia: A Pedra do Reino: uma
adaptação televisiva por Luiz Fernando Carvalho (2009), e a de Rodrigo Emmanuel
20
Araújo Leão, O Caso da Pedra do Reino e a Identidade Nordestina: Quaderna e a
Definição Cultural da Região Nordeste e do Brasil (2011), por abordarem o romance
e a adaptação televisiva, diferentemente das demais, que estudam apenas o
romance, mas que também foram imprescindíveis para que nos aprofundássemos
em nossa análise do texto literário.
Relacionando mídia e educação e tendo em vista o alcance da televisão como
veículo de propagação de valores, de ideias e de comportamentos, Fernando
Favaretto buscou fazer uma análise da contribuição que as minisséries O Auto da
Compadecida e A Pedra d’O Reino, ambas baseadas em obras de Ariano Suassuna,
podem legar à formação estética dos telespectadores por serem produtos que fogem
ao padrão de fácil absorção ao qual o público está acostumado e, por isso, obrigam-
no a reposicionar-se diante da televisão. A formação estética de que trata o autor
consiste em “uma forma de ver a mais, de ver diferente, de ver com mais liberdade”
(2008, p. 145), postura que as duas minisséries suscitam ao apresentarem anti-
heróis como protagonistas, os quais questionam a ordem vigente, o poder instituído
e as regras e condutas sociais porque utilizam o deboche e o cinismo como
alternativa para resolverem seus problemas. Em seu capítulo introdutório, o estudo
de Favaretto apresenta discussões sobre formação estética e relaciona análises
sobre o olhar ao uso cotidiano que se faz da TV. A seguir, comenta a maneira como
se deu o surgimento do veículo televisão no Brasil e da Rede Globo, bem como a
supremacia alcançada pela teledramaturgia sobre as outras formas de
entretenimento e informação disponíveis em toda a programação televisiva. Por fim,
apresenta as minisséries no que elas têm de antimaniqueístas não só em termos de
conteúdo, mas também no que diz respeito à forma, para defender a hipótese de
que elas podem ser utilizadas em sala de aula como forma de aprimorar a formação
estética dos estudantes.
A intenção de Julius Vinicius Marques Nunes, por sua vez, foi relacionar os
estudos de teóricos do cinema ao veículo televisão a fim de esclarecer quais as
influências que um exerceu – e ainda exerce – sobre o outro. O autor analisou as
cenas iniciais da minissérie a fim de explicitar quais recursos específicos do meio
televisivo (herdados ou não do cinema) foram utilizados pelo diretor para (re)contar a
história do romance de Ariano Suassuna. No primeiro capítulo de seu trabalho,
apresentado ao departamento de teoria literária do Centro Universitário Campos de
Andrade, de Curitiba, o autor faz um breve levantamento histórico do meio
21
audiovisual desde o início do cinema até o surgimento da TV, destacando as
transformações pelas quais passaram e as características que foram sendo
adotadas com o passar do tempo. No segundo capítulo, apresenta teorias da
adaptação com a finalidade de mostrar as transformações pelas quais passam os
textos quando são transpostos de um suporte como a literatura para outro como a
televisão. Na terceira parte, é realizada a análise da minissérie e são mostradas
algumas diferenças entre o texto de Suassuna e a produção de Luiz Fernando
Carvalho, tais como o fechamento que a minissérie deu para algumas histórias
deixadas em aberto no romance e a caracterização física de Quaderna, que, no
livro, é feita apenas na página 343, enquanto, na TV, é apresentada já nos 10
primeiros segundos do capítulo inicial. O autor conclui seu trabalho elogiando o
produto estético televisivo por ter sido fruto de uma ousadia de seus produtores em
não criarem uma obra folhetinesca a fim de conquistar o público.
Fernanda Areias de Oliveira abordou em seu estudo, pertencente à área de
educação, arte e história da cultura, a contribuição que a minissérie de Luiz
Fernando Carvalho trouxe à teledramaturgia brasileira por inovar no uso da
linguagem, que não buscou ser naturalista como a maioria das produções
televisivas. Essa inovação foi conseguida por meio do emprego de técnicas teatrais
que remontam ao teatro popular e medieval, de um acabamento imagético
diferencial, de uma câmera em diálogo com a cena, de uma iluminação especial e
de uma edição que participa ativamente da tessitura da trama. No primeiro capítulo,
a pesquisadora aborda as influências ibéricas e do romanceiro popular do nordeste
na obra de Ariano Suassuna, as quais o levaram a pensar na criação do Movimento
Armorial, e apresenta os principais personagens da narrativa quadernesca a quem
foi dado maior destaque na adaptação televisiva. A seguir, trata de adaptações de
obras suassunianas feitas por Luiz Fernando Carvalho anteriormente a Pedra d’O
Reino e mostra evidências de que as minisséries são produtos inovadores dentro
das grades de programação da Rede Globo, ao contrário das telenovelas. No
terceiro capítulo, é abordada a trajetória profissional de Carvalho com ênfase em
trabalhos inovadores do diretor que serviram como experiência para a abordagem
dada à adaptação do romance de Suassuna. No capítulo seguinte, a autora analisa
trechos de A Pedra d’O Reino como forma de comprovar a hipótese levantada de
que Luiz Fernando Carvalho buscou subverter a especificidade do meio televisivo
inserindo em seu roteiro figurações plásticas, imagens teatrais e poemas. Nas
22
considerações finais, Oliveira acredita que Carvalho teve um êxito silencioso em A
Pedra d’O Reino, pois conseguiu criar uma verdadeira obra de arte num suporte que
muitas vezes é visto apenas como fonte de entretenimento.
Rodrigo Emmanuel Araújo Leão, pesquisador da área de letras, investigou a
importância dos traços do Barroco, tais como a carnavalização, empregados por
Suassuna em seu romance e por Luiz Fernando Carvalho em sua minissérie para a
constituição da identidade nordestina dentro das obras e para a afirmação e a
definição da nordestinidade, que, para Ariano, era o mesmo que brasilidade, uma
vez que ele acreditava que a cultura brasileira genuína é a proveniente do nordeste
do país. No capítulo inicial, o pesquisador aborda as características dos estilos
barroco e neobarroco e apresenta alguns pensamentos que se desenvolveram sobre
o Brasil e a identidade brasileira ao longo do tempo até os dias atuais tendo esses
dois estilos como premissa. Relaciona, ainda, o Movimento Armorial à filiação (não
explícita) de Suassuna ao neobarroco e à valorização que ele faz do barroco como
constituinte da cultura brasileira. No capítulo seguinte, analisa o romance de
Suassuna buscando quais traços da obra podem ser apresentados como
representantes ou característicos da cultura nordestina e quanto essa cultura
corresponde aos ideais e às características da estética barroca. No terceiro capítulo,
o autor conceitua o meio audiovisual e analisa a minissérie de Carvalho a fim de
demonstrar como os traços da nordestinidade, do barroco e da sua essência
carnavalizante presentes no romance foram interpretados pelo diretor. Por fim,
assume que o narrador-protagonista Quaderna reúne em si qualidades diversas e
até mesmo opostas, que podem ser classificadas como “diversidades
carnavalizantes”, as quais, segundo Gilberto Freyre, constituem a grande
característica do povo brasileiro.
Porque tanto o romance quanto a minissérie aqui abordados dialogam
abertamente com diversos outros textos e gêneros do discurso no que diz respeito a
sua composição, o principal referencial teórico escolhido por nós para nossa análise
foi o que aborda a questão da transtextualidade, mais precisamente o trabalho de
Gérard Genette em Palimpsestes: la littérature au second degré (1982), que trata
dos modos como o diálogo com outros textos ou gêneros pode ser realizado. Nosso
objetivo é investigar a transtextualidade dentro do romance e da minissérie,
explicitando os diálogos que eles estabelecem com outros textos e gêneros do
discurso e os efeitos de sentido que são criados por esses diálogos. Estudaremos,
23
para tanto, a composição de algumas cenas de ambas as obras a fim de descobrir
por meio de que recursos cada um dos autores transmitiu suas ideias, similares ou
não, através de seus textos, no que se refere à personagem Sinésio, primo do
narrador-protagonista Quaderna. Para isso, analisaremos os componentes das
cenas literárias, ou seja, descrições, narrações, digressões, figuras de estilo, figuras
de linguagem, gravuras, canções populares etc. para traçar os efeitos gerados por
seu emprego. Também examinaremos a composição das cenas televisivas, isto é, o
enquadramento, a angulação e os movimentos de câmera, as falas, os sons, as
cores e a iluminação utilizados, o figurino, a maquiagem e a expressão corporal dos
atores, os flashbacks e flashforwards, a montagem etc.
No primeiro capítulo, trataremos da questão da transtextualidade para que se
compreendam, quando realizado o estudo das obras nos capítulos seguintes, as
maneiras como as referências utilizadas pelo escritor e pelo diretor para a criação do
romance e da minissérie contribuíram para gerar efeitos de sentido específicos.
Entretanto, antes de apresentarmos o conceito de transtextualidade proposto por
Gérard Genette, abordaremos os conceitos de dialogismo e intertextualidade,
desenvolvidos, o primeiro, por Mikhail Bakhtin e, o segundo, por Julia Kristeva (a
partir do pensamento bakhtiniano) porque estão na base da teoria desenvolvida por
Genette. Apresentaremos, ainda, a leitura que o estudioso do cinema Robert Stam
faz desses três conceitos e de sua importância para a análise de filmes cujos
roteiros não sejam originais, mas sim adaptados de outras mídias e/ou artes, como a
HQ, a televisão e, principalmente, a literatura.
No segundo capítulo, apontaremos como a transtextualidade se faz presente
na construção do romance de Suassuna e na minissérie de Luiz Fernando Carvalho
apresentando os diferentes textos e gêneros discursivos dos quais se apropriam
para sua constituição.
No terceiro capítulo, pretendemos responder aos questionamentos apontados
por Ismail Xavier e dar a nossa maior contribuição para o estudo de ambas as obras
ao tratarmos da maneira como foi criada a personagem Sinésio, que apresenta
características messiânicas e medievais em ambas as produções e remonta a
aspectos da cultura portuguesa trazidos para o Brasil com a colonização e
profundamente arraigados na região nordeste, como a imagem de guerreiro e
salvador do “donzel”, figura típica das novelas de cavalaria que sobrevive até os dias
de hoje nos folhetos de cordel. Examinaremos se a minissérie modificou a
24
personagem Sinésio dando-lhe mais ou menos espaço na narrativa televisiva do que
ela tinha na literária; se atribuiu maior, menor ou igual complexidade à sua
identidade quando da realização de narrações de suas ações feitas pela voz do
narrador e/ou mostradas pela câmera; quais procedimentos utilizou para recriar
Sinésio e se o fez de forma semelhante ou não à personagem do romance de
Suassuna.
Denominaremos o trabalho de Luiz Fernando Carvalho como adaptação
mesmo estando cientes de que o diretor prefere referir-se a ele como uma
“aproximação” por considerar o termo utilizado por nós como redutor. Não é a nossa
opinião acerca das adaptações, as quais cremos sempre necessitarem de uma
reinterpretação e ressignificação independentemente da escolha em dialogar de
forma consensual ou polêmica com a obra que lhe deu origem, uma vez que são
frutos de diferentes contextos e produtos que visam a diferentes públicos mesmo
quando existe a possibilidade de atingir também o público que teve, primeiramente,
acesso ao trabalho dito original.
Ainda, ao longo de todo o trabalho referir-nos-emos à obra de Suassuna aqui
estudada como “Romance” para que fique claro não somente o gênero do qual
estaremos tratando, como também a obra em particular, cujo título se inicia com
essa palavra. Por sua vez, trataremos a obra de Carvalho por “minissérie”, e não
“microssérie” – termo que encontramos em muitos estudiosos – porque
consideramos “microssérie” como um subgênero do gênero maior “minissérie” cuja
denominação existe apenas para marcar produções que tenham duração menor que
a média (até cinco capítulos), e não qualquer diferença estrutural, formal ou
conteudística.
25
CAPÍTULO I: DIALOGISMO, INTERTEXTUALIDADE E TRANSTEXTUALIDADE
Tudo que é dito, tudo que é expresso por um falante, por um enunciador, não pertence só a ele. Em todo discurso são percebidas vozes, às vezes infinitamente distantes, anônimas, quase impessoais, quase imperceptíveis, assim como as vozes próximas que ecoam simultaneamente no momento da fala.
Mikhail Bakhtin
Neste capítulo, apresentaremos os elementos de constituição do texto que
utilizaremos para analisar o Romance e a minissérie a fim de os compreendermos
não apenas de maneira isolada, mas, principalmente, um em relação ao outro e
ambos em relação às obras e gêneros discursivos com que dialogam.
Primeiramente, discutiremos os dois importantes conceitos a partir dos quais
Gérard Genette desenvolveu o conceito de transtextualidade: dialogismo, cunhado
por Mikhail Bakhtin, e intertextualidade, criado por Julia Kristeva a partir da ideia de
dialogismo. Então, passaremos a tratar mais detidamente da transtextualidade e
seus cinco tipos – paratextualidade, intertextualidade, metatextualidade,
arquitextualidade e hipertextualidade, para, em seguida, abordarmos a interpretação
que Robert Stam faz dos três conceitos relacionando-os à análise de adaptações
fílmicas realizadas a partir de obras literárias, séries de TV, vídeo games, histórias
em quadrinhos etc.
Como analisaremos um romance que dialoga com diversos outros textos e
gêneros discursivos, bem como uma minissérie que se baseou nesse romance e nos
diálogos estabelecidos por ele para ser produzida, julgamos fundamental tratar
desses conceitos, uma vez que eles podem contribuir para a compreensão de
mecanismos de produção de sentidos importantes em ambas as obras.
1.1 O Dialogismo de Mikhail Bakhtin e a Intertextualidade de Julia Kristeva
O termo dialogismo foi cunhado por Mikhail Bakhtin na década de 1930 e diz
respeito, primeiramente, ao “espaço interacional entre o eu e o tu ou entre o eu e o
outro, no texto” (BARROS, 2003, p. 3. In: BARROS et FIORIN, 2003).
Segundo Bakhtin, “as relações dialógicas [...] são um fenômeno quase
26
universal, que penetra toda a linguagem humana e todas as relações e
manifestações da vida humana, em suma, tudo o que tem sentido e importância”
(2008, p. 47), visto que:
A ideia não vive na consciência individual isolada de um homem: mantendo-se apenas nessa consciência, ela degenera e morre. Somente quando contrai relações dialógicas essenciais com as ideias dos outros é que a ideia começa a ter vida, isto é, a formar-se e desenvolver-se, a encontrar e renovar sua expressão verbal, a gerar novas ideias. O pensamento humano só se torna pensamento autêntico, isto é, ideia, sob as condições de um contato vivo com o pensamento dos outros, materializado na voz dos outros, ou seja, na consciência dos outros expressa na palavra. É no ponto desse contato entre vozes-consciências que nasce e vive a ideia. (BAKHTIN, 2008, p. 98)
Outro aspecto importante do dialogismo é o do “diálogo entre os muitos textos
da cultura, que se instala no interior de cada texto e o define”. Esse sentido de
dialogismo, segundo Barros e Fiorin, “é mais explorado e conhecido e até mesmo
apontado como o princípio que costura o conjunto das investigações de Bakhtin”
(2003, p. 4. In: BARROS et FIORIN, 2003).
Nesse segundo sentido, o dialogismo é compreendido como a relação que o
falante e seu discurso, bem como o sistema linguístico no qual assentam, mantêm
com todos os demais falantes, discursos e sistemas linguísticos que os precederam
e que com eles convivem dentro do universo cultural, sendo uma resposta a eles e
suscitando deles uma nova resposta. Nessa perspectiva, falante e discurso são
concebidos não isoladamente, mas em contexto e ocupam um lugar único e
irrepetível historicamente determinado pelas coordenadas espaço-temporais que o
definem em cada momento. Analisando Dostoiévski, Bakhtin afirma que:
Enquanto artista, Dostoiévski não criava as suas ideias do mesmo modo que as criam os filósofos ou cientistas: ele criava imagens vivas de ideias auscultadas, encontradas, às vezes adivinhadas por ele na própria realidade, ou seja, ideias que já têm vida ou que ganham vida como ideia-força. Doistoiévski tinha o dom genial de auscultar o diálogo de sua época, ou, em termos mais precisos, auscultar a sua época como um grande diálogo, de captar nela não só vozes isoladas mas antes de tudo as relações dialógicas entre as vozes, a interação dialógica entre elas. Ele auscultava também as vozes dominantes, reconhecidas e estridentes da época, ou seja, as ideias dominantes, principais (oficiais e não-oficiais), bem como as vozes ainda fracas, ideias ainda não inteiramente manifestadas, ideias latentes ainda não auscultadas por ninguém exceto por ele, e ideias que apenas começavam a amadurecer, embriões de futuras concepções de mundo.
27
[...] No diálogo de seu tempo, Dostoiévski auscultava também os ecos das vozes-ideias do passado, tanto do passado mais próximo (dos anos 30-40) quanto do mais distante. Como já dissemos, ele procurava auscultar também as vozes-ideias do futuro, tentava adivinhá-las, por assim dizer, pelo lugar a elas destinado no diálogo do presente, da mesma forma que se pode adivinhar no diálogo desencadeado a réplica ainda não pronunciada do futuro. Deste modo, no plano da atualidade confluíam e polemizavam o passado, o presente e o futuro. Repetimos: Dostoiévski nunca criava as suas imagens das ideias a partir do nada, nunca “as inventava”, como o artista não inventa as pessoas que retrata; sabia auscultá-las ou adivinhá-las na realidade presente. (BAKHTIN, 2008, pp. 100-101 – grifos do autor)
Segundo o pensador russo, a forma literária que mais favorece o dialogismo é
o romance, pois ele se abre à linguagem nos seus diversos níveis de existência e
concretização, procurando acomodá-la. Assim, nesse gênero as relações dialógicas
ocorrem:
Entre o autor e o leitor ou entre o narrador, o narratário e as personagens (com seus respectivos pontos de vista), entre a série literária e a série linguística, entre a obra concreta e o sistema literário precedente e contemporâneo e entre a obra e o contexto social saturado de discursos e linguagens concretas de várias espécies – o que Bakhtin denomina plurilinguismo. (FERNANDES, Isabel. “Dialogismo”. In: CEIA, Carlos. E-Dicionário de Termos Literários)
Bakhtin afirma que o plurilinguismo introduzido no romance é o “discurso de
outrem na linguagem de outrem, que serve para refratar a expressão das intenções
do autor” (2014, p. 127). De acordo com ele:
A palavra desse discurso é uma palavra bivocal especial. Ela serve simultaneamente a dois locutores e exprime ao mesmo tempo duas intenções diferentes: a intenção direta do personagem que fala e a intenção refrangida do autor. Nesse discurso há duas vozes, dois sentidos, duas expressões. Ademais, essas duas vozes estão correlacionadas, como que se se conhecessem uma à outra (como se duas réplicas de um diálogo se conhecessem e fossem construídas sobre esse conhecimento mútuo), como se conversassem entre si. O discurso bivocal sempre é internamente dialogizado. Assim é o discurso humorístico, irônico, paródico, assim é o discurso refratante do narrador, o discurso refratante na fala dos personagens, finalmente, assim é o discurso do gênero intercalado: todos são bivocais e internamente dialogizados. Neles se encontra um diálogo potencial, não desenvolvido, um diálogo concentrado em duas vozes, duas visões de mundo, duas linguagens. (2014, pp. 127-128)
Para Bakhtin “o problema central da estilística do romance pode ser formulado
28
como o problema da representação literária da linguagem, o problema da imagem da
linguagem” (2014, p. 138), uma vez que ele aponta como característica importante
do gênero romanesco a presença do “homem que fala”, que traz “seu discurso
original, sua linguagem”, por meio do qual o plurilinguismo se materializa (2014, p.
134).
Retomaremos, nos capítulos seguintes, os conceitos de dialogismo e
plurilinguismo quando analisarmos as referências à história do Brasil que aparecem
tanto no romance de Ariano Suassuna quanto na minissérie de Luiz Fernando
Carvalho a fim de compreender como foram organizadas as diversas vozes que
concorrem entre si para explicar os fatos ocorridos.
O termo intertextualidade foi criado por Julia Kristeva na década de 1960 como
uma reinterpretação do termo dialogismo, significando um “cruzamento de palavras
(de textos)”, isto é, que “todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto
é absorção e transformação de um outro texto” (KRISTEVA, 2012, p. 142).
Essa ressignificação feita por Kristeva é considerada por alguns estudiosos,
tais como José Luiz Fiorin e Paulo Bezerra, como redutora e deturpadora do
conceito bakhtiniano e até mesmo de seu posicionamento crítico como um todo.
Fiorin afirma que “à rica e multifacetada concepção de dialogismo em Bakhtin
se opôs o conceito redutor, pobre e, ao mesmo tempo, vago e impreciso de
intertextualidade. Foi Kristeva quem, no ambiente do estruturalismo francês dos
anos 60, pôs em voga esse conceito” (In: BARROS et FIORIN, 2003, p. 29).
No prefácio de Problemas da Poética de Dostoiévski (BAKHTIN, 2008, p. XIII),
Paulo Bezerra elenca as deturpações realizadas por Kristeva acerca de Bakhtin: a
estudiosa classifica-o como formalista, atribuindo a seus estudos a qualidade de
tentativas de avanço dessa escola e o vê como estruturalista, sem considerar a
grande diferença entre seu pensamento, que tem a ênfase “no discurso e na
personagem como sujeito consciente de seu próprio discurso”, e o método
estruturalista, “com sua ênfase reducionista no texto e na personagem literária como
função”. Além disso, segundo Bezerra, o que ela faz com o conceito de dialogismo é
enfocá-lo apenas do ponto de vista linguístico (BAKHTIN, 2008, p. XV), fato do qual
decorre uma coisificação e um apagamento dos sujeitos enunciador e enunciatário
que contradiz o pensamento de Bakhtin, segundo o qual o sujeito está sempre
presente – como autor, em todas as instâncias do processo de criação, e como
leitor, no processo de interpretação (BAKHTIN, 2008, p. XVII).
29
Entretanto, o trabalho de Kristeva deve ser levado em conta, pois trouxe
contribuições ao estudo das relações entre textos e, com isso, influenciou a maneira
como estes passaram a ser vistos e analisados, não somente na França, onde foi
primeiramente divulgado, mas em todo o ocidente. O próprio referencial teórico
escolhido por nós para a análise do nosso corpus – a transtextualidade – não teria
sido concebido por Genette sem que antes Kristeva tivesse realizado seus estudos
da forma como fez.
A intertextualidade, segundo Kristeva, é inerente à produção humana, uma vez
que o homem sempre lança mão do que foi feito anteriormente em seu processo de
produção simbólica. Dessa forma:
O texto, como objeto cultural, tem uma existência física que pode ser apontada e delimitada por nós: um filme, um romance, um anúncio, uma música. Entretanto, esses objetos não estão ainda prontos, pois destinam-se ao olhar, à consciência e à recriação dos leitores. Cada texto constitui uma proposta de significação que não está inteiramente construída. A significação se dá no jogo de olhares entre o texto e seu destinatário. Este último é um interlocutor ativo no processo de significação, na medida em que participa do jogo intertextual tanto quanto o autor. (CURY, M. Z.; PAULINO, G.; WALTY, I., 1995, p. 15)
Com isso, temos que “toda leitura é necessariamente intertextual, pois, ao ler,
estabelecemos associações desse texto do momento com outros já lidos” e que:
Essa associação é livre e independe do comando de consciência do leitor, assim como pode ser independente da intenção do autor. Os textos, por isso, são lidos de diversas maneiras, num processo de produção de sentido que depende do repertório textual de cada leitor, em seu momento de leitura. (CURY, M. Z.; PAULINO, G.; WALTY, I., 1995, p. 54)
Com relação ao repertório textual do leitor, as leituras prévias feitas por ele
condicionam cada uma de suas novas leituras e, além disso:
O mesmo texto lido, em épocas diferentes, torna-se outro, pois, nesse intervalo de tempo, o repertório do leitor se alterou. É necessário atentar para o fato de que a constituição desse repertório não decorre apenas da vontade do leitor, mas também daquilo que lhe é oferecido no processo de produção, circulação e consumo dos bens culturais. Ninguém consegue ler tudo o que é produzido e por isso se opera uma seleção de leitura pela qual há diversas instituições e instâncias responsáveis, tais como: editoras, livreiros, escolas, meios de comunicação e outros. (CURY, M. Z.; PAULINO, G.; WALTY, I., 1995, p. 57)
30
Um dos níveis da intertextualidade diz respeito à inserção do texto na “história
da literatura”:
Essa inserção se dá de diferentes maneiras, que vão desde uma adesão a comportamentos artísticos anteriores, até o estabelecimento de rupturas com textos passados ou mesmo contemporâneos. Não se pode esquecer também que essa inserção nunca se dá de modo passivo, pois a própria existência de cada texto altera o conjunto. (CURY, M. Z.; PAULINO, G.; WALTY, I., 1995, p. 59)
A literatura utiliza-se amplamente da intertextualidade, consciente ou
inconscientemente, a fim de dialogar de forma consensual ou polêmica com textos
anteriores ou contemporâneos e com a tradição. Segundo Fiorin, são três os
processos de intertextualidade por meio dos quais esses diálogos são estabelecidos:
“a citação, a alusão e a estilização” (2003, pp. 29-30). Já segundo Cury, Paulino e
Walty (1995, p. 25), “além de paráfrase, paródia e pastiche [...], pode-se falar, ainda,
como práticas intertextuais explícitas, de epígrafe, citação, referência, alusão”.
Trataremos mais da intertextualidade nos capítulos seguintes ao analisarmos,
no discurso do narrador do Romance e da minissérie, referências a textos já
existentes dos quais ele lança mão, muitas vezes, com a finalidade de demonstrar e
de fundamentar seu posicionamento ideológico.
1.2 A Transtextualidade de Gérard Genette
Em Palimpsestes: la littérature au second degré1 (1982), Gérard Genette cunha
o termo transtextualidade, o qual diz respeito à “transcendência textual do texto”, isto
é, a “tudo que o coloca em relação, manifesta ou secreta, com outros textos”
(GENETTE, 2010, p. 11), a partir do paradigma terminológico da “intertextualidade”,
desenvolvido por Julia Kristeva e do conceito de “dialogismo”, apresentado
anteriormente por Mikhail Bakhtin. Ele se utiliza da imagem do palimpsesto na
apresentação desse livro para tratar da transtextualidade na literatura:
Um palimpsesto é um pergaminho cuja primeira inscrição foi raspada
1 Neste trabalho, utilizaremos sempre que possível os extratos em língua portuguesa traduzidos por pesquisadores da UFMG e publicados no livro: GENETTE, Gérard. Palimpsestos: a literatura de segunda mão. Viva Voz: Belo Horizonte, 2010. Quando precisarmos nos referir ao texto de Genette que não constem na publicação acima, nos referiremos à tradução feita para a língua inglesa: GENETTE, Gérard. Palimpsests: literature in the second degree (Stages). Translated by Channa Newman and Claude Doubinsky. University of Nebraska Press, 1997, a qual nós traduziremos para a língua portuguesa em notas de rodapé.
31
para se traçar outra, que não a esconde de fato, de modo que se pode lê-la por transparência, o antigo sob o novo. Assim, no sentido figurado, entenderemos por palimpsestos (mais literalmente: hipertextos) todas as obras derivadas de uma obra anterior, por transformação ou por imitação. Dessa literatura de segunda mão, que se escreve através da leitura, o lugar e a ação no campo literário geralmente, e lamentavelmente, não são reconhecidos. Tentamos aqui explorar esse território. Um texto pode sempre ler um outro, e assim por diante, até o fim dos textos. Este meu texto não escapa à regra: ele a expõe e se expõe a ela. Quem ler por último lerá melhor. (GENETTE, 2010, p. 5)
Nesse livro, Genette dedica-se profundamente ao estudo da hipertextualidade
“com erudição, rigor e entusiasmo”, segundo Gerald Prince, autor do prefácio à
tradução americana, explorando os tipos fundamentais de imitação textual (pastiche,
charge, forjação) e de transformação textual (paródia, travestimento, transposição)
que a constituem (1997, pp. IX-XI). Em vez de dedicar-se à análise do texto
propriamente dito (ao seu acabamento e às relações internas que o constituem),
dedica-se ao estudo das relações existentes entre textos e das diversas maneiras
como eles releem e reescrevem uns aos outros dentro do processo dialógico.
Como afirma Sônia Queiroz no prefácio à tradução brasileira, os Palimpsestes
são o “reconhecimento do diálogo como forma fundadora da nossa humanidade” e
uma “obra de negação da egolatria e do individualismo e de elogio da pluralidade”
(2010, p. 9), constituindo uma empreitada corajosa por envolver a criação e o
desenvolvimento de diversos conceitos que, sendo novos, exigiam que fosse dada
uma boa exemplificação por meio de textos literários – mais ou menos – conhecidos
para poderem ser compreendidos – o que foi conseguido pelo autor.
Desde sua publicação, esse livro tem influenciado os estudos literários no
sentido de que suas propostas metodológicas são consideradas eficientes e, por
isso, são amplamente adotadas dentro do universo da crítica literária.
Outro motivo pelo qual essa obra é considerada importante para os estudos
literários é o desenvolvimento do conceito de paródia que o autor apresenta, bem
como a criação dos conceitos de paratexto, de hipotexto e de hipertexto, este último,
diferente do conceito proposto por Theodor H. Nelson em 1965 (numa comunicação
apresentada na Conferência Nacional da Association for Computing Machinery) para
determinar “uma forma não linear de apresentar a informação textual, uma espécie
de texto em paralelo, que se encontra dividido em unidades básicas, entre as quais
se estabelecem elos conceptuais” (CEIA, Carlos. “Hipertexto”. In: CEIA, CARLOS. E-
32
Dicionário de Termos Literários).
Passemos, agora, a apresentar o conceito desenvolvido por Genette, o qual
será muito importante para a análise do Romance e da minissérie que
empreenderemos em seguida.
Para Genette, as relações transtextuais ou a transtextualidade ocorrem de
cinco modos diferentes que, apesar de existirem separadamente, com frequência se
interrelacionam – a intertextualidade, a paratextualidade, a metatextualidade, a
arquitextualidade e a hipertextualidade.
O primeiro modo, a intertextualidade, refere-se ao conceito desenvolvido por
Kristeva e corresponde à presença de um texto em outro, ocorra ela de maneira
explícita ou implícita. Genette a define como:
Uma relação de co-presença entre dois ou vários textos, isto é, essencialmente, e o mais frequentemente, como presença efetiva de um texto em um outro. Sua forma mais explícita e mais literal é a prática tradicional da citação (com aspas, com ou sem referência precisa); sua forma menos explícita e menos canônica é a do plágio (em Lautréaumont, por exemplo), que é um empréstimo não declarado, mas ainda literal; sua forma ainda menos explícita e menos literal é a alusão, isto é, um enunciado cuja compreensão plena supõe a percepção de uma relação entre ele e um outro, ao qual necessariamente uma de suas inflexões remete. (2010, p. 12)
No romance de Ariano Suassuna bem como na minissérie de Luiz Fernando
Carvalho a intertextualidade aparece em forma de citação de trechos de textos
célebres, tais como Os Lusíadas, de Luís de Camões, e a Oração da Pedra
Cristalina, de Padre Cícero, com a finalidade de, no primeiro caso, parodiar as
batalhas grandiosas narradas na maior epopeia da língua portuguesa e, no segundo
caso, demonstrar como o narrador e protagonista Quaderna conta com a proteção
do padre guerreiro de Juazeiro para empreender sua própria luta.
A paratextualidade constitui-se pela relação do texto com seu paratexto, o qual
é capaz de atuar sobre o modo como será feita a leitura por contribuir para a criação
do pacto ou contrato com o leitor.
Genette define “paratexto” como o conjunto de produções que acompanham
uma obra literária cuja existência tem o objetivo de garantir sua recepção e seu
consumo (GENETTE, 2009, p. 9). São exemplos de paratexto a capa do livro, o
nome do autor, o título, o subtítulo, os intertítulos, o prefácio, a dedicatória, a
epígrafe, as advertências, as notas de rodapé, o posfácio etc. Em se tratando de
33
produções televisivas como a minissérie, são exemplos de paratexto a abertura do
programa e as chamadas que se fazem sobre ele durante os intervalos comerciais e
até mesmo dentro da grade de programação da emissora.
Os paratextos do Romance, tais como a capa, o título e o subtítulo e os nomes
dos capítulos e subcapítulos, remetem aos folhetos de cordel nos quais Suassuna
se baseou para criar sua obra, já que o autor defendia a criação de uma cultura
erudita que fosse construída a partir da cultura popular. O paratexto principal da
minissérie – sua vinheta de abertura, por sua vez, remonta também ao cordel
quando traz imagens criadas primeiramente pela técnica da xilogravura, mas busca
principalmente relacionar-se com o conteúdo interno da narrativa, antecipando-o ao
telespectador.
O terceiro modo pelo qual ocorre a transtextualidade é a metatextualidade, a
qual, segundo Genette, “é, por excelência, a relação crítica”, em que um texto fala a
respeito de outro, porém, sem necessariamente citá-lo (2010, pp. 14-15). É chamada
frequentemente de “comentário”, e o estudioso sugere que o estatuto da relação
metatextual deva ser melhor estudado apesar de muito já se ter falado sobre a
história da crítica como gênero.
O Romance e a minissérie mantêm diálogos metatextuais com obras da
literatura mundial com o objetivo de exaltar aspectos da literatura e/ou cultura
nacional. Suassuna faz Quaderna criticar Moby Dick, romance de Herman Melville,
por causa do monstro que ele escolheu para povoar o imaginário de seus
personagens: uma baleia cachalote. Quaderna afirma que os monstros brasileiros,
tais como a Besta Bruzacã, são muito piores que Moby Dick, o que demonstra, para
ele, a superioridade dos brasileiros e dos povos latino-americanos em relação aos
estadunidenses. Carvalho conduz Quaderna a criticar os romances policiais
estrangeiros cujos enigmas são faceis de se desvendar. Ele diz que o enigma da
morte de seu tio, que aparecerá em seu romance, não é pobre como os dos
romances policiais e, portanto, não poderá ser desvendado pelo Juiz Corregedor.
A arquitextualidade do texto é definida por Genette como “o conjunto das
categorias gerais ou transcendentes – tipos de discurso, modos de enunciação,
gêneros literários, etc. – do qual se destaca cada texto singular” (2010, p. 11). Trata-
se de uma relação que pode ser silenciosa, pois o próprio texto não é obrigado a
conhecer ou declarar sua qualidade genérica, uma vez que a determinação do status
genérico de um texto não é sua função, mas, sim, do leitor, do crítico, do público,
34
que podem recusar o status reivindicado por meio do paratexto. Porém, para
Genette (2010, p. 15), “o fato de esta relação estar implícita e sujeita a discussão em
nada diminui sua importância: sabe-se que a percepção do gênero em larga medida
orienta e determina o ‘horizonte de expectativa’ do leitor e, portanto, da leitura da
obra”.
Romance literário e minissérie de televisão são gêneros do discurso. No
entanto, o romance e a minissérie objetos de nosso estudo constituem-se a partir de
elementos de outros gêneros discursivos. Suassuna e o narrador Quaderna utilizam-
se da epopeia, do memorial, da crônica histórica, do ensaio, do romance de
cavalaria e do folhetim para criar o Romance d’A Pedra do Reino. Carvalho, por sua
vez, utiliza-se do teatro popular da commedia dell’arte, da escultura de artesãos da
região de Taperoá, localizada no sertão da Paraíba, e da pintura de Giotto Di
Bondone e de Manuel Dantas Suassuna para construir sua minissérie.
O quinto modo, a hipertextualidade, é entendido por Genette como toda
derivação de um texto B a partir de um texto anterior A. Essa derivação pode ser de
ordem descritiva e intelectual, em que um metatexto fala de um texto, ou pode ser de
outra ordem, em que B não fale nada de A, no entanto não poderia existir daquela
forma sem A, do qual ele resulta ao fim de uma operação que o estudioso qualifica
de transformação, evocada mais ou menos manifestadamente, sem neces-
sariamente falar dele ou citá-lo (2010, p. 16).
Genette propõe uma terminologia para classificar os hipertextos a partir do
regime e da relação que estabelecem com seus hipotextos:
regime relação
lúdico satírico sério
transformação PARÓDIA (Chapelain décoiffé)
TRAVESTIMENTO (Virgile travesti)
TRANSPOSIÇÃO (O Doutor Fausto)
imitação PASTICHE (L’affaire Lemoine)
CHARGE (À la manière de...)
FORJAÇÃO (La suite d’ Homère)
Quadro geral das práticas hipertextuais (GENETTE, 2010, p. 40).
A transformação séria, ou transposição, é, para Genette, a mais importante de
todas as práticas hipertextuais, devido à sua importância histórica, ao acabamento
estético de certas obras que dela resultam e à amplitude e variedade dos
procedimentos nela envolvidos.
Segundo ele, a paródia pode se resumir a uma modificação pontual, mínima,
35
redutível a um princípio mecânico como o lipograma e a translação lexical; o
travestimento consiste quase exclusivamente num tipo único de transformação
estilística do texto com função degradante (a trivialização); o pastiche, a charge e a
forjação procedem todos de inflexões funcionais conduzidas por uma prática única,
relativamente complexa, mas quase inteiramente prescrita pela natureza do modelo
(a imitação desprovida de função satírica no pastiche; a imitação com função satírica
na charge; e a imitação séria na forjação). A transposição, pelo contrário, pode se
aplicar a obras de vastas dimensões, como Fausto ou Ulisses, por exemplo, cuja
amplitude textual e ambição estética e ideológica podem mascarar ou apagar seu
caráter hipertextual, e essa produtividade está ligada à diversidade dos
procedimentos transformacionais com que ela opera (GENETTE, 2010, p. 61).
A minissérie A Pedra d’O Reino não poderia existir sem que Ariano Suassuna
tivesse escrito seu principal romance. Ela foi produzida justamente para homenagear
os oitenta anos do escritor, em 2007, na forma de uma “transformação séria” ou
“transposição”. Por esse motivo, passaremos a examinar detidamente os
procedimentos transformacionais que essa transposição operou.
Os procedimentos formais existentes são a tradução, a versificação, a
prosificação, a transmetrização, a transestilização, a excisão, a concisão, a
condensação, o digest, a extensão temática, a expansão estilística, a ampliação, a
transmodalização intermodal e a transmodalização intramodal; já os procedimentos
temáticos que podem ser empregados são a transposição diegética, a proximização,
a transformação pragmática, a motivação, a desmotivação, a transmotivação, a
revalorização, dividida em valorização secundária e valorização primária, a
desvalorização e a transvalorização.
De todos esses processos transformacionais abordados por Genette, serão
mais úteis à nossa análise os formais, em especial a concisão, a excisão, a
extensão temática e a transmodalização intramodal, pois foram os utilizados com
mais frequência (e os que resultaram em transformações mais importantes) pelos
adaptadores do Romance para a minissérie. Dessa maneira, deter-nos-emos apenas
neles, escusando-nos de comentar os demais.
A excisão é a supressão pura e simples de alguma parte do texto. É o
procedimento redutor mais simples, mas que afeta de maneira mais evidente sua
estrutura e sentido, realizado sem nenhuma outra forma de intervenção (GENETTE,
2010, pp. 76-83). Subdivide-se em diferentes tipos: a excisão por amputação (“uma
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única excisão maciça”), a apara (“múltiplas extrações disseminadas ao longo do
texto”), a autoexcisão (amputação ou apara de um texto feita por seu próprio autor) e
a expurgação (“redução com função moralizante ou edificante”).
Na minissérie, houve algumas excisões de acontecimentos que existiam no
Romance. A primeira delas foi a supressão da história da família de Quaderna que
antecede as façanhas de seu bisavô. Foi suprimida, também, a hipótese de sua
família paterna ser descendente do Rei Dom Dinis de Portugal. Além disso, foram
retiradas da minissérie as passagens em que Quaderna tem uma briga com um
escrevente de cartório, em que se encontra com Eugênio Monteiro antes do
depoimento e em que confessa estar com medo e cansado de ter participado de
muitas lutas políticas ao lado do tio e padrinho ao longo dos anos. Nenhuma dessas
excisões, no entanto, alterou significativamente a narrativa, pois as ideias
transmitidas por elas foram passadas em outros pontos da ação e narração.
A concisão “tem como norma sintetizar um texto sem suprimir nenhuma parte
tematicamente significativa, mas reescrevendo-o em estilo mais conciso, produzindo
então com novos recursos um novo texto”, que pode chegar a não conservar
nenhuma palavra do texto original (GENETTE, 2010, p. 86):
Assim a concisão, no que ela produz, goza de um status de obra que não é atingido pela excisão: fala-se de uma versão abreviada de Robinson Crusoé normalmente sem nomear o abreviador, mas fala-se de Antígona de Cocteau, “a partir de Sófocles”. Cocteau praticou três vezes esse exercício, do qual na verdade não conheço outro exemplo: em 1922 sobre Antígona, em 1924 sobre Romeu e Julieta, e em 1925 sobre Édipo rei. Ele próprio designa sua Antígona como uma “contração” daquela de Sófocles, e este termo seria bem conveniente se já não designasse um exercício escolar que decorre de uma outra técnica. Ainda sobre Antígona, Cocteau disse ter querido traduzir esta peça como uma “fotografia aérea da Grécia”. A imagem é um tanto vaga, mas conota bem a época, a maneira e o clima. Exceto por algumas alterações (anacronismos, traços dialetais na tradição do travestimento, redução mais marcada das partes do coro, uma adição temática em Antígona em que Hêmon, de acordo com a narrativa do mensageiro, cospe no rosto de seu pai), Antígona e Édipo rei são, essencialmente, contrações estilísticas: quase todas as falas são conservadas, mas num estilo mais curto e mais nervoso. [...] Cocteau leva Sófocles ao extremo, mas no sentido do próprio Sófocles: exemplo inesperado dessa prática não encontrada até então, a reescrita como charge, a paródia como hiperpastiche. Sófocles reescrito por Cocteau é ainda mais Sófocles do que o original. O efeito é conclusivo: esta era talvez a melhor maneira de traduzi-lo. O caso de Romeu é bem diferente: como diz o próprio Cocteau, “eu queria trabalhar um drama de Shakespeare, encontrar o cerne por baixo dos ornamentos. Escolhi então o drama mais
37
ornado, o mais enfeitado.” Mas, como o essencial da peça estava precisamente nesses ornamentos líricos suprimidos, o efeito é obviamente menos feliz: Romeu e Julieta reduzido ao esqueleto da ação é quase nada. Paradoxalmente, então, a concisão parece funcionar melhor para aqueles trabalhos que já são concisos. Porém este paradoxo leva a uma observação que pode ser feita a respeito de outros tipos de práticas hipertextuais: é melhor impulsionar um texto ao seu extremo do que atenuar sua característica, o que leva à sua normalização, e portanto à sua banalização. A sequidão deliberada do estilo de Cocteau (que seria preciso escutar em sua voz metálica e cortante) presta bom serviço a Sófocles e desserviço a Shakespeare. Para traduzir bem Romeu, seria necessário talvez ao contrário ampliá-lo, super ornamentá-lo, carregar nos enfeites. (GENETTE, 2010, pp. 84-86)
A concisão foi empregada na minissérie não tanto no que diz respeito à ação
das personagens, e sim à narração de Quaderna. Muitos comentários e diversas
citações que Quaderna faz no Romance não aparecem na minissérie a fim de
encurtar as passagens e torná-las mais adequadas ao meio televisivo.
A extensão temática consiste em acrescentar a uma obra um episódio
totalmente estranho a ela.
Assim como a redução de um texto não pode ser uma simples miniaturização, o aumento não pode ser um simples crescimento: como não se pode reduzir sem cortar, não se pode aumentar sem acrescentar, e ambos os procedimentos implicam distorções significativas. Um primeiro tipo de aumento, que constitui exatamente o contrário da redução por supressão maciça, seria o aumento por adição maciça, que proponho denominar extensão. Assim, Apuleio, certamente ampliando as Metamorfoses de Lúcio, não hesita em acrescentar (pelo menos) um episódio totalmente estranho à história de seu herói: o mito de Eros e Psiqué (GENETTE, 2010, p. 97).
Um segundo tipo de aumento é uma “mistura em doses variadas de dois (ou
mais) hipotextos”, prática tradicional denominada contaminação (GENETTE, 2010, p.
102).
O exemplo mais canônico, e mais explícito, é certamente o Fausto e o Don Juan de Christian Dietrich Grabbe (1829), que explora e cristaliza um relacionamento característico da época romântica, ele próprio favorecido pela interpretação idealizada do Sedutor proposta em 1816 por E. T. A. Hoffmann. As duas histórias se misturam, ou mais precisamente se alternam e se entrelaçam em cena, tendo somente como interseção a personagem de Dona Ana, que é cortejada pelos dois heróis. A contaminação aqui é bem equilibrada, a ponto de ser impossível decidir qual das duas ações serve para ampliar a outra. (GENETTE. 2010, pp. 103-104)
38
O recurso da extensão temática foi empregado nos primeiro, segundo e quinto
capítulos da minissérie. No primeiro capítulo, foi acrescentada à narrativa uma dança
de roda das personagens, que não existia no Romance, com o intuito de apresentá-
las aos telespectadores. No segundo, houve o acréscimo da cena em que Sinésio vê
Heliana pela primeira vez e se encanta por ela a fim de que se saiba em que
momento isso ocorreu e se tenha ciência da personalidade enigmática de cada um.
No quinto capítulo, são acrescentados um desfecho para algumas ações e
personagens que ficaram inconclusas no Romance e uma cena em que Quaderna
encontra moedas no chão e que remete à vida pessoal de Suassuna e de Carvalho.
Finalmente, conforme aponta Genette, a transmodalização intramodal é aquela
que transforma apenas algumas características de um modo de representação sem
desqualificá-lo nem transformá-lo em outro modo (GENETTE, 1997, 284).
Segundo ele, o modo dramático é passível de menos alterações que o
narrativo devido a sua simplicidade, resumindo-se as possibilidades de
transformações ao coro, ao discurso dramático e à teatralidade propriamente dita:
The progressive emancipation of drama from its narrative origins has left its trace in the disappearance of the role of narrator and commentator that the Greek theater assigned to the Chorus. Another modal feature that lends itself to transformation is the distribution of dramatic discourse per se: i.e., the discourse assigned to the characters. Some characters might, for example, be deprived of a portion of their speeches to the benefit of others – which would imply a change in the “action” itself, since action on the stage textually comes about through speech. Or again there might be a redistribution of the relation between what is shown on the stage (i.e., the “scenes”) and what is relegated to the wings, or elided during intermissions, or supposed to have occurred before the curtain rises and then only obliquely alluded to through narratives on the stage. In actual fact, the designated object of transpositional procedures turns out to be the specifically dramatic resource of “theatricality” itself: i.e., the nontextual part of the performance. The issue of theatricality is somewhat marginal to our concern; nevertheless, it must be discussed, even if only glancingly, for it is bound up with the essence of dramatic transposition, which presents the same play with a new cast, a new production, new settings, sometimes new stage music.2
2 A progressiva emancipação do drama de suas origens narrativas deixou seu traço no desaparecimento do papel de narrador e de comentarista que o teatro grego legava ao coro. [...] Outra característica modal que se presa à transformação é a distribuição do discurso dramático propriamente dito, isto é: o discurso designado às personagens. Algumas personagens podem, por exemplo, ser privadas de uma parte de seus discursos em benefício de outras – o que implicaria uma mudança na “ação”, uma vez que ela aparece textualmente no palco através do discurso. Ou ainda pode haver uma redistribuição da relação entre o que é mostrado no palco (isto é, as “cenas”) e o que é relegado a segundo plano, ou elidido durante os intervalos, ou do que se supõe que tenha ocorrido antes de as cortinas se abrirem e a que só se faz alusão obliquamente através de narrativas no palco. [...] De fato, o objetivo dos procedimentos transposicionais é o recurso especificamente dramático da
39
(GENETTE, 1997, pp. 284-285)
Para Genette, o modo narrativo é mais suscetível a transformações que o
dramático devido a sua maior complexidade. As categorias de tempo, modo e voz
são as que geralmente são transformadas (GENETTE, 1997, p. 286).
A categoria temporal pode ser afetada em sua ordem e em sua
duração/frequência:
The hypertext may introduce anachronies (analepses or prolepses) into an initially chronological narrative. Conversely, the hypertext may reorder the anachronies of its hypotext. The pace of a narrative can be modified at will: summaries can be turned into scenes and vice versa; elipses or paralipses can be filled in or segments of the narrative deleted; descriptions can be deleted or introduced; singulative segments can be converted into iterative ones and vice versa.3 (GENETTE, 1997, p. 286)
O modo pode ser transformado no que diz respeito à distância e à perspectiva:
The proportion of direct to indirect discourse, or of “showing” to “telling”, might be inverted. An initially “omniscient” – i.e., nonfocalized – narrative could be focalized at will on one of its characters. Conversely, a focalized narrative could be defocalized [...]. Last, a focalized narrative can be transfocalized4. (GENETTE, 1997, p. 287)
Com relação à transvocalização, pode haver dois processos: a vocalização
propriamente dita e a desvocalização:
Transvocalization can thus take on two basic antithetical forms: vocalization, a shift from the third to the first person; and devocalization, the opposite shift from the third to the first. It can also
“teatralidade”: isto é, a parte não-textual da performance. A questão da teatralidade é marginal ao nosso assunto; no entanto, ela precisa ser discutida, ainda que de relance, porque está fortemente relacionada à essência da transposição dramática, que apresenta a mesma peça com um novo elenco, uma nova produção, novos contextos, e, às vezes, nova música [...].
3 O hipertexto pode introduzir anacronias (analepses ou prolepses) em uma narrativa inicialmente cronológica. [...] Pelo contrário, o hipertexto pode reorganizar as anacronias de seu hipotexto. [...] O ritmo de uma narrativa pode ser modificado livremente: sumários podem ser transformados em cenas e vice-versa; elipses ou paralipses podem ser completadas ou segmentos da narrativa podem ser apagados; descrições podem ser retiradas ou introduzidas; segmentos singulativos podem ser transformados em iterativos e vice-versa.
4 A proporção de discurso direto e indireto, ou de cenas (segmentos que mostram a ação acontecendo) e sumários (segmentos que contam resumidamente um acontecimento ocorrido) pode ser invertida. [...] Uma narrativa onisciente – isto é, não-focalizada – pode passar a ser focalizada em uma das personagens. Pelo contrário, uma narrativa focalizada [...] poderia ser desfocalizada [...]. Por fim, uma narrativa focalizada pode ser transfocalizada.
40
take on a synthetic form – transvocalization properly speaking – which is the substitution of a “first person” for another.5 (GENETTE, 1997, p. 290)
Transmodalizações intramodais ocorreram na minissérie no que diz respeito à
duração e à distância da narrativa. A duração de alguns eventos foi diminuída e
alguns sumários foram transformados em cena a fim de adequar a narrativa ao meio
televisivo.
No terceiro capítulo analisaremos como os procedimentos transformacionais
mencionados aqui apenas superficialmente contribuíram para a produção do
discurso audiovisual de Luiz Fernando Carvalho.
1.3 O Dialogismo, a Intertextualidade e a Transtextualidade segundo Robert Stam
Em Introdução à Teoria do Cinema (2006), Robert Stam retoma o conceito de
dialogismo desenvolvido por Bakhtin nos anos 30, o de intertextualidade cunhado
por Kristeva na década de 1960 e o de transtextualidade criado por Genette em
1982 para explicar a mudança que o surgimento desses conceitos ocasionou para a
análise cinematográfica.
Ele afirma que, a partir da década de 1980, houve uma ascensão dos estudos
do intertexto em detrimento dos estudos que tinham apenas o texto como objeto e
que essa ascensão trouxe benefícios para a teoria do cinema e para a análise
fílmica, especialmente para os estudos das adaptações cinematográficas de
romances, que “passaram de um discurso moralista sobre fidelidade ou traição para
um discurso menos valorativo sobre intertextualidade”, com as adaptações passando
a serem vistas como localizadas “em meio ao contínuo turbilhão da transformação
intertextual, de textos gerando outros textos em um processo infinito de reciclagem,
transformação e transmutação, sem um claro ponto de origem” (STAM, 2006, p.
234).
Esse estudioso do cinema cita, também, os cinco tipos de relações
transtextuais propostos por Genette, detendo-se especialmente na hipertextualidade
por considerar as adaptações fílmicas como hipertextos e os romances que lhes
5 A transvocalização pode assumir duas maneiras: a vocalização, uma passagem da terceira pessoa para a primeira; e a desvocalização, passagem oposta da terceira pessoa para a primeira. Pode, ainda, assumir uma forma sintética – a transvocalização propriamente dita – que é a substituição de uma “primeira pessoa” por outra.
41
inspiram como hipotextos. Ele ainda cria termos adicionais dentro do mesmo
paradigma, embora de forma discreta – em uma nota de rodapé – para analisar os
filmes: fala da possibilidade de se cunhar os conceitos de intertextualidade da
celebridade, aplicável às “situações fílmicas nas quais a presença de uma estrela ou
celebridade intelectual do cinema ou da televisão evoca um gênero ou um meio
cultural”; intertextualidade genética, que “poderia evocar o processo no qual a
aparição dos filhos e das filhas de atores e atrizes conhecidos [...] traz à lembrança
seus pais famosos”; intratextualidade, que diz respeito ao “processo por intermédio
do qual os filmes fazem referência a si próprios em estruturas de espelhamento, de
mise-en-abyme e microscópicas”; autocitação, que “daria conta da auto-referência
por parte de um autor” e falsa intertextualidade, que “evocaria aqueles textos [...] que
criam uma referência pseudo-intertextual” (STAM, 2006, p. 232).
Em A Literatura através do Cinema: Realismo, magia e a arte da adaptação
(2008), Stam novamente aponta que os desenvolvimentos estruturalistas e pós-
estruturalistas abalaram as premissas fundadoras sobre as quais a “doutrina da
fidelidade” historicamente se baseou, pois lançaram dúvidas sobre ideias de pureza,
essência e origem, provocando um impacto indireto nas discussões sobre a
adaptação. Segundo ele, a teoria da intertextualidade de Kristeva “enfatizou a
interminável permutação de traços textuais, e não a ‘fidelidade’ de um texto posterior
em relação a um anterior, o que facilitou uma abordagem menos discriminatória”
(STAM, 2008, pp. 20-21).
A forma como Bakhtin define o autor de um texto, como um harmonizador de
discursos preexistentes, por sua vez, abriu caminho para uma abordagem à arte
“discursiva” e não originária, vista como uma “construção híbrida”, isto é, que mistura
a palavra de uma pessoa com à de outra. Para Stam, as palavras de Bakhtin a
respeito da literatura como construção híbrida “aplicam-se ainda mais obviamente a
um meio que envolve a colaboração, como o filme”. Assim, “se na literatura a
‘originalidade’ já não é tão valorizada, a ‘ofensa’ de se ‘trair’ um original, por
exemplo, através de uma adaptação ‘infiel’, é um pecado ainda menor” (STAM,
2008, p. 21), o que indica que a fidelidade deixou de ser um paradigma para a
análise fílmica com a consideração de que uma adaptação não é a ressuscitação de
uma palavra original, e sim uma volta num processo dialógico em andamento,
podendo um romance gerar uma série de adaptações diferentes assim como – e
justamente por causa disto – um texto literário pode gerar um sem número de
42
leituras.
Na introdução de Literature and Film: A Guide to the Theory and Practice of
Film Adaptation (STAM et RAENGO, 2008, pp. 1-52), em que seu objetivo é apontar
novas perspectivas para a análise de adaptações fílmicas de obras literárias que vão
além da questão da fidelidade, Stam também menciona a teoria da transtextualidade
de Genette e propõe que as adaptações sejam analisadas sob a perspectiva das
“transmodalizações intramodais” que podem ocorrer no hipertexto em relação ao
hipotexto no que diz respeito ao tempo, ao modo e à voz: alteração na ordem em
que os acontecimentos são contados (se utilizam ou não prolepses, analepses
internas, externas e/ou mistas), na duração que têm (se empregam mais ou menos
elipses, pausas descritivas, cenas e/ou sumários), na sua frequência (se são
singulativos, repetitivos, iterativos ou homólogos) e no tipo de seu narrador e do
discurso que ele emprega (homodiegético, heterodiegético e/ou autodiegético,
discurso direto, discurso indireto e/ou discurso indireto livre).
As palavras de Robert Stam podem ser aplicadas às adaptações televisivas, as
quais devem ser tidas como textos independentes dos ditos “originais” e, por
conseguinte, não ser valorizadas por intermédio do conceito de fidelidade. Isso,
todavia, não inviabiliza a realização de análises comparativas como a que
pretendemos fazer, apenas impossibilita o julgamento pejorativo das eventuais
diferenças encontradas apenas por consistirem em modificações do hipotexto.
A seguir, apontaremos os diálogos que o romance de Ariano Suassuna e a
minissérie de Luiz Fernando Carvalho mantêm entre si e com outros textos e
gêneros do discurso a fim de verificar quais efeitos de sentido são criados por eles.
43
CAPÍTULO II: A TRANSTEXTUALIDADE NO ROMANCE E NA MINISSÉRIE
O dialogismo é uma visão de mundo, uma filosofia que mostra o individualismo exacerbado como impasse e o culto desse individualismo como tragédia. Daí a necessidade do diálogo como superação dos impasses da existência e sua representação na literatura.
Paulo Bezerra
Em Literatura, Cinema e televisão (2003, p. 9), Tânia Pellegrini afirma que:
A literatura é um sistema (ou subsistema) integrante do sistema cultural mais amplo, estabelecendo diversas relações com outras artes e mídias. A diversidade de meios e hibridação de linguagens exigem um leitor que não se prenda à letra, mas esteja aberto à diversidade de suportes pelos quais a literatura circula, bem como às suas combinações com outras artes. O fenômeno não é novo: basta lembrar os livros manuscritos medievais, associando texto, caligrafia e ilustração (iluminura), ou, ainda antes, o hiporquema grego, associando poesia e dança. (2003, p. 9).
Assim, estando de acordo com as ideias da estudiosa da adaptação de obras
literárias para cinema e televisão, neste capítulo, apontaremos os diálogos que o
Romance d’A Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta, de Ariano
Suassuna, e a minissérie A Pedra do Reino, de Luiz Fernando Carvalho,
estabelecem com as estéticas do Movimento Armorial e do Projeto Quadrante, com
outros textos e gêneros literários e discursivos, bem como com a história, a fim de
compreender os sentidos que essas referências trazem para os textos literário e
televisivo.
Os diálogos que o Romance e a minissérie estabelecem com outras produções
ora têm conotação eufórica, caso em que Suassuna e Carvalho criticam
positivamente o texto, a estética e/ou o fato histórico, ora têm conotação disfórica,
quando os autores realizam uma crítica pejorativa destes, ainda que de maneira não
explícita em alguns casos, mais frequentes na minissérie. Alguns diálogos, ainda,
ajudam a constituir o próprio enredo, ou seja, tornam-se parte da história de vida das
personagens, de suas características, de suas aspirações, como se não fossem
apropriações de textos externos, e sim criações do próprio autor, como veremos nos
subcapítulos adiante.
44
2.1 Diálogos com o Movimento Armorial e com o Projeto Quadrante
Movimento Armorial foi o nome que recebeu a proposta feita por Ariano
Suassuna, em 18 de outubro de 1970, de criar uma arte erudita baseada na cultura
popular. A proclamação do movimento ocorreu juntamente com a realização de um
concerto da então recém-formada Orquestra Armorial e de uma exposição de artes
plásticas e nela, segundo Santos:
Ariano Suassuna assume publicamente seu compromisso com a arte popular e define a arte armorial na sua relação com as literaturas da voz e do povo, fundamento de sua criação, com a cantoria, que inspire aos poetas armoriais uma nova poética, ancorada na improvisação e numa organização genérica nova, mas presente também como tema com a personagem mítica do cantador; o folheto e o romance, como texto oral e popular, submetido à reescritura parcial ou total, citado ou plagiado, mas sempre reivindicado como modelo de integração artística e signo de um novo processo criativo; a imagem, desenho ou gravura, que mantém com o texto popular uma relação estreita e ambivalente, que os artistas memoriais procuram preservar (ou reencontrar) nas suas obras plásticas tanto quanto nas literárias, graças à narratividade da gravura ou à emblematização do relato; a música, enfim, presente na cantoria, no canto do romance e em todas as danças dramáticas e espetáculos populares que os músicos do Movimento pesquisaram. A referência à obra popular constitui o cimento do Movimento Armorial e confere-lhe sua peculiaridade na história da cultura brasileira. Orienta a pesquisa e condiciona a criação. Contudo, não poderia ser exclusiva: o Movimento não reúne artistas populares, mas artistas cultos que recorrem à obra popular como a um “material” a ser recriado e transformado segundo modos de expressão e comunicação pertencentes a outras práticas artísticas. Esta dimensão culta e até erudita manifesta-se tanto na reflexão teórica, desenvolvida em paralelo à criação, quanto na multiplicidade das referências culturais. (SANTOS, 2000, pp. 97-98)
Ainda de acordo com Santos, não se pode negar que o Movimento Armorial só
existiu graças a Ariano Suassuna:
[...] não por se tornar um mestre ditatorial que comandava a criação dos artistas, mas porque, ao identificar pontos comuns e tendências paralelas em artistas e escritores, permitiu a sua reunião em torno de um centro, o Movimento, e deu-lhes os meios de realizar seus projetos e seus sonhos. Proporcionar aos artistas meios de expressão transformou-se, a partir de 1969, numa preocupação constante de Suassuna, que o levou a aceitar cargos na administração universitária e mais tarde na municipal, onde podia desempenhar esse papel de promotor e provocador da criação artística. (SANTOS, 2000, p. 104)
A escolha do nome “armorial” foi feita por Suassuna de acordo com três
45
critérios: “estético – por causa da sonoridade; perspectiva plástica – devido à ligação
com os esmaltes da Heráldica; referência popular literária e musical – em virtude do
nome designar cantorias e toques de viola e rabeca” (KERSCH, 2012, p. 23).
No Romance, considerado o primeiro romance armorial brasileiro, Suassuna
realiza uma integração entre as artes erudita e popular ao mencionar grandes obras
da literatura mundial, ao utilizar-se de outros gêneros literários para compor a
narrativa e ao dividir sua obra em livros e folhetos, em vez de capítulos e
subcapítulos, nomear esses livros e folhetos com títulos de estilo parecidos aos
presentes na literatura de cordel, e acrescentar em alguns deles – e inclusive na
capa – gravuras semelhantes às xilogravuras que tipicamente ilustram as capas dos
folhetos de cordel. Ao integrar esses elementos no Romance, Suassuna, de certa
forma, ilustra os preceitos do Movimento Armorial, isto é, estabelece uma relação
crítica eufórica com esse movimento.
O Projeto Quadrante foi uma iniciativa da Rede Globo, idealizada por Luiz
Fernando Carvalho, de deslocar do eixo Rio-São Paulo a produção de adaptações
de textos literários para as regiões onde se passam as histórias. Para sua
realização, foram escolhidas quatro importantes obras da literatura nacional
provindas de escritores de diferentes partes do Brasil e cujas narrativas estão
fortemente entrelaçadas a seu local de origem: o Romance d’A Pedra do Reino e o
príncipe do sangue do vai-e-volta, do nordestino Ariano Suassuna; Dom Casmurro,
romance do carioca Machado de Assis; Dois Irmãos, romance de autoria do
amazonense Milton Hatoum; e Dançar Tango em Porto Alegre, conto do gaúcho
Sérgio Faraco. Somente foram concluídas até hoje minisséries a partir das duas
primeiras obras, intituladas respectivamente A Pedra d’O Reino (2007) e Capitu
(2008). Dois Irmãos está em fase de produção e Dançar Tango em Porto Alegre
ainda está na fase de pesquisa.
Luiz Fernando Carvalho afirma que o projeto é “uma tentativa de um modelo de
comunicação, mas também de educação, onde a ética e a estética andam juntas”, o
que significa que é, por isso, também uma proposta política, que ao utilizar o veículo
televisão, está à procura, segundo o diretor, de “um diálogo entre os que sabem e os
que não sabem; um diálogo simples, fraterno, no qual aquilo que para o homem de
cultura média é adquirido e seguro torne-se também patrimônio para o homem mais
comum” (CARVALHO, Luiz Fernando. “Projeto Quadrante”. Disponível em:
http://quadrante.globo.com. Acesso em: 20 dez. 2013).
46
O objetivo do Quadrante é produzir adaptações não realistas e não naturalistas
“inspiradas em autores que representem a cultura brasileira nos quatro cantos do
país” de maneira a interagir com a cultura local e descobrir talentos (MICHELETTI,
2007, p. 180). De acordo com sua proposta, o elenco da minissérie foi composto
predominantemente por atores paraibanos e pernambucanos, em sua maioria
desconhecidos do público televisivo; a cidade cenográfica foi construída em Taperoá,
que abrigou toda a equipe de produção durante três meses, e grande parte dos
objetos utilizados em cena e do figurino foi fabricada por artistas, artesãos e
costureiras da região.
A teledramaturgia é um dos tipos de produção mais importantes da televisão
brasileira e, por isso, recebe papel de destaque dentro desse meio de comunicação.
Tal fato talvez se deva ao início da TV no Brasil, quando o teleteatro dominava as
grades de programação e acabou por tornar a exibição de histórias de ficção uma
marca registrada do meio, ou pode ser atribuído às necessidades que os diversos
canais foram desenvolvendo ao longo do tempo de fidelizar um público a fim de
conseguir patrocínios – advindos da compra dos horários dos intervalos por grandes
empresas para a divulgação comercial de produtos e serviços diversos em grande
escala – para continuarem no ar, para o que a criação de programas seriados, dos
quais se destacam a novela e a minissérie, sempre foi bastante conveniente.
Seja qual for o motivo que propiciou à teledramaturgia o status de carro-chefe
da televisão brasileira, um fato parece ser irrefutável na opinião divulgada por Anna
Maria Balogh: o de que, no mosaico de programação da TV, “cada programa convive
necessariamente com o programa que o antecede e o que o segue na emissora”, o
que, em princípio, gera uma disputa pela “primazia da atenção do telespectador com
todos os programas das demais emissoras que são veiculados no mesmo horário”.
Essa alta taxa de competitividade, segundo a estudiosa, “gera estratégias de
programação e contra-programação bastante pesadas, cujos resultados incidem
diretamente sobre os programas de TV” (2005, p. 142).
Algumas dessas estratégias consistem no grande merchandising que a própria
televisão faz de seus produtos a fim de divulgá-los para os diferentes tipos de
público e, principalmente, na tática de adequá-los ao gosto desse público com a
finalidade de mantê-lo fiel, algo que ocorre com muita frequência e intensidade nas
telenovelas devido às suas características de produção, e que costuma ser bastante
criticado até mesmo pelos telespectadores assíduos do gênero.
47
A novela possui em média 150 capítulos que são exibidos no horário nobre de
segunda a sábado e seu principal gênero é o drama, embora haja comédia em
horários específicos. Por não estar terminada no momento em que vai ao ar,
geralmente sofre modificações no enredo conforme o interesse do público, levantado
por pesquisas de opinião, e muitas vezes é prolongada devido ao sucesso de
audiência, precisando, por isso, utilizar diversos mecanismos de suspensão, de
manutenção e de reatamento do sentido a fim de facilitar a compreensão do público
(BALOGH, 2005, pp. 144-145). Para interpretar as personagens principais, quase
sempre conta com atores já conhecidos do público por terem atuado anteriormente
em grandes produções (algumas vezes tendo desempenhado papéis semelhantes) e
com frequência, é acusada de simplificar demais a linguagem a ponto de tornar-se
repetitiva na maneira de contar a história: é julgada negativamente por tipificar as
personagens (e seus intérpretes), reatualizar programas narrativos seus e de
produções anteriores em vários pontos da ação, sempre adotar uma estrutura linear
e seguir a estética naturalista de tentar mostrar-se como uma mimese da “vida real”.
Diferentemente da novela, a minissérie é um formato que se reserva para o
horário das 22 horas em diante e pressupõe um público mais exigente em termos de
inovação. É mais compacta que a novela, possuindo em média dez episódios ou
capítulos, e “a produção do sentido se dá de forma mais fechada e coesa:
teoricamente, cada episódio deve dar conta de um bloco de sentido conectado com
o fio de sentido condutor da minissérie como um todo” (BALOGH, 2005, pp. 145).
Por estar terminada no momento em que vai ao ar e por ser produzida com mais
tempo do que a novela, a minissérie normalmente é fruto de uma longa pesquisa
prévia, apresentando uma qualidade superior no que diz respeito às técnicas
utilizadas e à preparação de atores, figurinos e cenários.
A Pedra d’O Reino, no sentido de inovação dentro do gênero, contrapôs-se à
maioria das produções da teledramaturgia brasileira, pois seguiu o caminho inverso
ao que essas produções costumam seguir: sendo a primeira produção do Projeto
Quadrante, não adotou a estética naturalista, não contou a história de forma linear e
não utilizou atores conhecidos do público para interpretar as principais personagens.
Assim, dialogou polemicamente, embora de forma não declarada, com essas
produções, pois desafiou o público a se engajar numa história de difícil compreensão
(se comparada a outras produções televisivas). Como consequência, por um lado,
obteve baixos índices de audiência e pouca popularidade – contou com um
48
telespectador que estivesse em busca de novidades, mas talvez tenha apresentado
tantas de uma só vez que o afugentou. Por outro, foi premiada nacional e
internacionalmente em diversas categorias por ter resultado num produto de grande
apuro estético e poético, mas que ao mesmo tempo retrata acontecimentos
aterrorizantes – como os ocorridos em Pedra Bonita –, e rico em referências a outros
gêneros discursivos que fazem parte da cultura brasileira e mundial, indo além da
televisão e da literatura na qual se inspirou.
Quando se assiste à A Pedra d’O Reino, percebe-se um diálogo consensual
com produções anteriores do diretor, nas quais ele inovou a linguagem sem
desrespeitar as particularidades de cada hipotexto.
Uma Mulher Vestida de Sol (1994) e A Farsa da Boa Preguiça (1995) foram
especiais dirigidos por Luiz Fernando Carvalho adaptados de peças teatrais de
Ariano Suassuna. Os Maias (2001), Hoje é Dia de Maria (2005) e Hoje é Dia de
Maria Segunda Jornada (2005) foram minisséries dirigidas por ele, a primeira,
adaptada de Eça de Queiroz e as duas últimas, adaptadas de contos da cultura
popular brasileira por Carlos Alberto Soffredini.
Em Uma Mulher Vestida de Sol, Luiz Fernando Carvalho buscou manter
diálogo com o teatro, com isso aproximando-se bastante do hipotexto, que foi a
primeira peça teatral escrita por Suassuna. O cenário, a iluminação e os animais que
apareciam em cena eram artificiais e deixavam claro que as filmagens haviam sido
realizadas em estúdio, fugindo, dessa forma, da estética naturalista.
Em A Farsa da Boa Preguiça, Luiz Fernando também buscou o diálogo com a
estética teatral, mas, dessa vez, aproximou-se mais do teatro popular de rua, em
que há maior interação do ator com a plateia.
Em Os Maias, a roteirista Maria Adelaide Amaral e o diretor Luiz Fernando
Carvalho procuraram dialogar com o ritmo do romance queiroziano na composição
das cenas, as quais saíram altamente descritivas e rebuscadas, e, por isso, foram
acusadas de serem as responsáveis pelos baixos índices de audiência da minissérie
sob a alegação de que eram demasiado lentas para que o público televisivo pudesse
se interessar em acompanhá-las.
Em Hoje é Dia de Maria e Hoje é Dia de Maria Segunda Jornada, Carvalho
mais uma vez procurou dialogar com o teatro, mas acrescentou, ainda, referências à
pintura de Candido Portinari na construção dos cenários e no enquadramento dado
às cenas. Para o papel principal, escolheu uma atriz desconhecida, Carolina
49
Oliveira, e para produzir o figurino, reaproveitou materiais disponíveis no acervo da
Rede Globo, realizando um trabalho artesanal sobre esses objetos para dar-lhes
nova vida.
Por fim, em A Pedra d’O Reino, o diretor utilizou-se dos mesmos mecanismos
já empregados anteriormente a fim de produzir mais um trabalho inovador para a
televisão: dialogou com o teatro – em especial o popular, com a pintura, com o ritmo
do hipotexto em que se baseou, com o toque artesanal para a confecção dos
cenários, dos figurinos e dos objetos de cena, enfim, com o não naturalismo de
todos os discursos construídos por ele próprio anteriormente. Ainda, dialogou com o
Movimento Armorial de Ariano Suassuna na escolha da trilha sonora da minissérie,
composta e executada em grande parte pelo Quinteto Armorial.
É possível notar que tanto Ariano Suassuna quanto Luiz Fernando Carvalho
procuraram criar suas obras tendo como base os preceitos dos projetos que
apoiavam na época de sua produção. Suassuna baseou-se nos preceitos do
Movimento Armorial com a valorização do elemento nacional em detrimento do
estrangeiro, enquanto Carvalho baseou-se nos preceitos do Projeto Quadrante no
que diz respeito ao deslocamento da produção do eixo Rio-São Paulo para as
regiões em que se passam as narrativas e à escolha de construir um discurso não-
naturalista visando à inovação no gênero.
2.1.1 Confluência com outros gêneros literários e discursivos
O Romance d’A Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta é, como
o próprio título indica, um romance, isto é, uma composição ficcional em prosa que
contém um enredo vivido por personagens dentro de uma estrutura espaço-temporal
e é narrado por uma instância organizadora denominada “narrador”. Segundo
Massaud Moisés, “caracteriza-se pela pluralidade da ação, pela coexistência de
várias células dramáticas, conflitos ou dramas” (1974, pp. 400).
Entretanto, esse romance é composto por diversos outros gêneros que se
intercalam segundo a intenção que o narrador, Quaderna, tem em cada passagem
da narrativa de sua intrincada história de vida: situá-la dentro da história oficial do
Brasil, opinar sobre ela, causar suspense com relação a determinados pormenores
etc.
A epopeia, segundo Hélio Alves, é uma designação de origem grega para o
50
gênero literário também chamado poesia épica, ou poesia heroica, que denota “um
texto poético, predominantemente narrativo, dedicado a fenômenos históricos,
lendários ou míticos considerados representativos duma cultura”. O vocábulo pode
estender-se ainda “a um conjunto de acontecimentos históricos percorridos por um
determinado ‘ambiente’ mitificador” (In: E-Dicionário de Termos Literários. Acesso
em: 23 dez. 2013).
Os primeiros grandes exemplos de epopeia produzidos no ocidente foram a
Ilíada e a Odisseia, de Homero, na antiguidade, os quais têm sua origem em
episódios ocorridos durante a Guerra de Troia. São considerados poemas épicos,
ainda, a Eneida, de Virgílio, também produzida na antiguidade; A Divina Comédia, de
Dante Alighieri, escrita no final da Idade Média; Os Lusíadas, de Luís Vaz de
Camões, obra renascentista; e Ulisses, de James Joyce, criada na primeira metade
do século XX.
Quaderna dá a sua narrativa ares epopeicos devido, primeiramente, à natureza
do assunto que pretende tratar: a ressurreição de seu primo e sobrinho Sinésio, que,
desaparecido após o assassinato de seu pai, em 1930, e dado como morto em 1932,
reaparece na Vila de Taperoá em 1935, para buscar o tesouro guardado por Dom
Pedro Sebastião Garcia-Barretto, o qual, segundo a população pobre do local, seria
usado para finalmente libertar o povo de seus sofrimentos com a instauração do
Quinto Império de Jesus Cristo na Terra, e que, segundo a população abastada e as
autoridades, seria usado para financiar a Revolução Comunista.
Além do tema, a forma como o narrador o aborda também garante ao relato
característica de epopeia, pois a grandiosidade com que os acontecimentos (não só
os realizados por Sinésio, mas também, e principalmente, aqueles comandados
pelos ancestrais de Quaderna e por ele próprio no episódio da caçada) são descritos
e narrados é típica dos poemas épicos, cujo objetivo é engrandecer a ação do herói
a fim de exaltar o povo e a nação dos quais ele é representativo: Quaderna narra
tudo com grandeza com a finalidade de justificar por que ele deve ser Rei do Brasil e
seu primo, príncipe, e também visando ao posto de Poeta da Pátria e Gênio Máximo
da Humanidade (posto este que ele acredita pertencer a Homero por ele ter escrito
duas grandes epopeias). Ele, então, quer superar o grego bem como seus dois
mestres, Clemente e Samuel, os quais também têm pretensões literárias.
O memorial caracteriza-se por ser um relato escrito de memórias. O autor ou
narrador que viveu determinado fato conta-o ao leitor. Diferencia-se da novela, do
51
romance, do conto e de outros gêneros de predominância narrativa, por
pretensamente referir-se a histórias verídicas ou baseadas em acontecimentos reais.
Ariano Suassuna faz com que seu narrador utilize-se desse gênero para a
composição do Romance a fim de atribuir a seu discurso maior credibilidade perante
seus interlocutores: o júri do processo criminal no qual ele é o réu.
Dessa forma, Quaderna, personagem fictício, desvenda seu passado e o de
seus ancestrais, que foram pessoas reais que viveram na região nordeste, de modo
a explicar o motivo de ele se sentir no direito de ser o novo imperador do Brasil, de
ter apoiado o primo Sinésio na busca pelo tesouro escondido por seu pai em algum
lugar do sertão e de merecer confiança no que diz respeito a uma suposta acusação
de ter sido o assassino do tio, pois ele demonstra que era o braço direito do parente
morto e, portanto, não teria nada a ganhar com essa morte, declarando-se inocente.
A crônica histórica relata fatos históricos em ordem cronológica. Quaderna cita
crônicas famosas em seu discurso com o intuito de comprovar as informações que
são veiculadas nele e, também, de exaltar seus antepassados, uma vez que, para o
narrador, o fato de a historiografia oficial reconhecer os feitos de seus antepassados
ao escrever sobre eles – ainda que em tom declaradamente pejorativo e zombeteiro
– significa que eles foram pessoas importantes e merecedoras de tal destaque
midiático.
Segundo Jayme Paviani, o ensaio é um texto que se caracteriza por ser uma
investigação formalmente desenvolvida, cujo assunto deve ser exposto de maneira
lógica e com rigor. Ele “pode ser de natureza literária, científica e filosófica”
pressupondo, apesar do rigor que deve ter, uma maior liberdade de expressão de
seu autor, que pode “defender uma posição sem o apoio empírico, documentos ou
outros recursos metodológicos” (PAVIANI, 2009, p. 4).
No Romance, aparecem ensaios nos momentos em que Quaderna está
reunido com seus mestres Clemente e Samuel discutindo questões literárias –
como, por exemplo, o tema e a forma que deve ter um livro para que possa ser
considerado como a obra prima de uma nação, consagrando seu autor como poeta
maior da pátria ou até mesmo como gênio máximo da humanidade – questões essas
que, no fundo, refletem e revelam as ideologias e o posicionamento político de cada
um: Clemente é de esquerda e, sendo caboclo, defende a origem negro tapuia da
nação brasileira sobre todas as demais influências e é a favor da instauração do
comunismo em toda a América Latina; Samuel é de direita e, sendo descendente de
52
europeus vindos em sua maioria da Península Ibérica, considera a influência branca
proveniente dessa região com a colonização como superior às demais e defende a
monarquia; Quaderna é um mestiço, como grande parte da população brasileira e,
por isso mesmo, traz consigo ideais híbridos e até mesmo inconciliáveis: é a favor de
uma monarquia de esquerda.
O romance ou novela de cavalaria foi a prosa de ficção de maior sucesso de
público nos fins da Idade Média segundo Marcos Antônio Lopes. Ainda de acordo
com esse estudioso:
Sem dúvida, o gênero agradava aos homens e às mulheres, pelo conteúdo fantástico das façanhas de seus protagonistas, em meio a sociedades que cultivavam o herói guerreiro como figura máxima das virtudes cristãs e que, acima de tudo, era opositor e vencedor infalível de infiéis, de bandidos e de monstros. O paladino da história cavaleiresca é quase sempre uma espécie de Ulisses cristianizado, o justiceiro que vai salvar a sua amada e o seu povo das ações de usurpadores. Naturalmente, a ação militar exercia fascínio entre homens de costumes rústicos, e o conteúdo romântico da narrativa atingia em cheio o coração das donzelas sonhadoras. [...] Em uma perspectiva abrangente do gênero, pode-se afirmar que os romances de cavalaria foram variações de um só enredo. Eles sempre realçavam as vitórias gloriosas do herói sobre os opressores dos desvalidos. Decorrido um certo tempo da narrativa, ouve-se apenas o pranto dos inocentes oprimidos pelos sequazes de algum poderoso de péssima índole, até que o paladino toma ciência das injustiças cometidas. Daí em diante, é a escalada da mais pura energia virtuosa, um verdadeiro festival de punições dos agravos, uma torrente de força que restaura a ordem natural das coisas. Essa base de heroísmo é acrescida de uma complicada trama romanesca cheia de interditos e desencontros amorosos. Isso porque, na composição do romance cavaleiresco, não pode faltar uma intensa paixão, daquelas que removem montanhas. A presença de uma dama de excepcional beleza é um dos elementos vitais da estrutura do romance, e ainda mais na última fase dessa literatura, na qual se acentua a galanteria. À beleza superlativa da mulher é preciso acrescentar as virtudes do sexo frágil: fidelidade e pureza em primeiro plano. A figura feminina era indispensável ao cavaleiro, porque só realizavam verdadeiras façanhas se existisse o combustível da paixão por uma donzela. A única recompensa em jogo era a “resposta” que o cavaleiro receberia da dama de seus pensamentos. Mas, junto com as experiências fantásticas, foi o erotismo o elemento que, na composição do romance, acrescentou os diferenciais que livraram o gênero da toada monocórdia das façanhas de armas dos cavaleiros. Por sua amada, os cavaleiros faziam promessas como, por exemplo, andar com um dos olhos vendados, enquanto não conseguissem dar cabo de uma proeza; por ela deixa-se crescer a barba, à espera da realização de um feito de armas etc. [...] As recorrências do fantástico e do maravilhoso — monstros, espíritos, gigantes — completam o tripé dos motivos dessa literatura, que não sabia distinguir o que era realidade efetiva e o que
53
pertencia à criação ficcional: o real e o figurativo se fundiam num mesmo conjunto de alegorias. (LOPES, 2009, pp. 156-157)
No Romance, o amor de Sinésio e Heliana é narrado nos moldes da novela de
cavalaria: ele é um cavaleiro de descendência nobre cujos objetivos de luta são
grandiosos e ela é uma moça bonita e sonhadora, também de linhagem nobre, por
quem ele se apaixona praticamente à primeira vista, o que remete ao amor cortês
presente nessas novelas. A profecia realizada por Quaderna de que Sinésio
transformará o povo humilde do sertão em pessoas felizes, bonitas, ricas e imortais,
punindo os poderosos que o oprimem também remete às façanhas dos cavaleiros.
O folhetim é uma narrativa que se caracteriza por ser publicada de forma
parcial e sequenciada em periódicos. Desse gênero literário derivaram-se as
radionovelas e, posteriormente, as telenovelas. Sousa explica a origem da palavra
folhetim e seu uso como gênero literário:
Termo português para o francês feuilleton, derivado de feuille (folha). Aplicava-se a um espaço regular inferior das páginas de jornais, preenchido sobretudo por longos romances publicados como séries, mas também por crítica literária, artigos humorísticos e até poesia, como é frequente no caso português. O romance publicado nestas condições adquiriu certas características, que determinaram o significado actual do adjectivo “folhetinesco”: o texto de cada número de jornal devia constituir um episódio ou lucubrações apresentadas de tal modo que, produzindo um efeito de suspense (v.) levassem o leitor a querer ler o número seguinte. O caso mais típico e prolífero na literatura portuguesa foi o de Camilo Castelo Branco, cujos numerosos romances foram na sua maior parte apresentados desta maneira, em jornais como a Revolução de Setembro. Também Herculano e Garrett publicaram as suas obras narrativas em folhetim nas revistas literárias como Panorama. (In: CEIA, Carlos. E-Dicionário de Termos Literários)
O Romance tem muitas passagens que o aproximam do gênero folhetinesco. O
uso de mecanismos de suspensão, manutenção e reatamento do sentido visa não
apenas a prender a atenção do leitor, mas também – e principalmente – a tardar o
desenlace de diversas questões propostas pelo narrador ou pelo Juiz Corregedor
que o interpela, seja porque ele tem medo de revelar certos fatos referentes à
história pregressa de sua família ou sua própria que poderiam vir a prejudicá-lo no
processo que está sofrendo, seja porque ele quer florear o estilo de modo a construir
uma narrativa que possa vir a consagrá-lo como o Poeta da Nação ou até mesmo
como o Gênio Máximo da Humanidade.
Além de o narrador fazer uso de outros gêneros literários para compor seu
54
romance, ele e as demais personagens ainda citam outros autores e outras obras
literárias a fim de comprovar seus pontos de vista com relação a determinados
assuntos.
No Romance, tanto Quaderna quanto seus mestres Clemente e Samuel citam
muitos autores de obras literárias, históricas e sociológicas, ora para elogiá-los pelo
conteúdo, pela forma ou pela ideologia expressa em sua produção, ora para criticá-
los negativamente pelos mesmos motivos. Em mais de uma ocasião, um dos três
personagens admira o escritor ou a obra enquanto os outros não reconhecem seu
valor artístico, o que gera embates entre eles.
Alguns dos escritores muito citados por serem considerados grandes e vistos
como precursores de Quaderna são: Homero e Camões (pelo fato de terem
produzido suas grandes epopeias após terem ficado cegos), Pero Vaz de Caminha
(porque era um escrivão, profissão que o narrador também exerce), Padre Antônio
Vieira (por ter sido, também, um sebastianista), Machado de Assis (por ter sofrido de
epilepsia, como Quaderna também diz sofrer), José de Alencar e Euclydes da Cunha
(por terem escrito sobre o povo brasileiro e o sertão, assunto com o qual o narrador
se identifica), Olavo Bilac (por ter sido pobre, porém ter escrito sobre coisas belas,
tal como Quaderna pretende fazer) e Leandro Gomes de Barros (por ter sido um
grande escritor de folhetos de cordel).
Outros escritores são mencionados como referência por terem um alto status
social e/ou serem historiadores, o que, para o narrador, garante legitimidade ao seu
discurso, que é aceito como verdade factual e não como interpretação pessoal de
acontecimentos. São eles: Carlos Dias Fernandes (por ter sido um acadêmico
paraibano), Antônio Áttico de Souza Leite (historiador a quem Quaderna atribui o
título de “Doutor” e cujo discurso utiliza para comprovar que sua família realmente
instituiu uma monarquia na Pedra Bonita) e Amorim Carvalho (retórico e gramático
de Dom Pedro II, a quem o narrador também intitula de “Doutor” e cujos
ensinamentos segue apesar de ele ser protegido do “falso” imperador).
Três das grandes obras com as quais o Romance dialoga explicitamente são: A
Odisseia, de Homero, Os Lusíadas, de Luís Vaz de Camões, e Moby Dick, de
Herman Melville.
A Odisseia conta as aventuras e desventuras de Ulisses, que após a queda de
Troia, passa muitos anos navegando, perdido, mas consegue finalmente voltar para
casa triunfante devido à ajuda que recebeu dos deuses do Olimpo em sua
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empreitada. Ao referir-se a essa obra, o narrador diz que ela é exemplar por tratar de
feitos guerreiros e que, portanto, ele também escreverá algo equivalente em
grandiosidade. Porém, ele afirma que superará Homero e tornar-se-á o Gênio
Máximo da Humanidade porque é um mestiço brasileiro, e não alguém que não
existiu, argumento esse que ele emprega por Clemente comentar que há estudos
que apontam que a Odisseia não foi obra de um homem sozinho, e sim uma obra
coletiva, e que Homero seria um pseudônimo de uma coletividade, não de um
indivíduo específico:
– Como é? E o cargo de “Gênio Máximo da Humanidade” também está vago? Pergunto, porque, no “Seminário da Paraíba”, a gente estudava Retórica num livro do Doutor Amorim Carvalho, as Postilas de Retórica e Gramática. Esse Doutor era “Retórico do Imperador Pedro II”, de modo que sua palavra não é brincadeira, e ele afirma que, de todos os Poetas, “o primeiro, no tempo e na glória, é Homero”! – Discordo inteiramente, porque está absolutamente errado! – disse Clemente. – Essa idéia6 da autoria individual das obras é reacionária e está ultrapassada! Hoje, está provado que Homero nunca existiu! Os dois poemas que são a “obra da raça grega” foram compostos aos poucos, pelo Povo, e reunidos depois pelos eruditos! – A autoria da obra é sempre trabalho de um homem só! – disse Samuel, já se irritando. – Homero não foi o “Gênio Máximo da Humanidade”, mas o motivo principal disso foi a vulgaridade, a grosseria que o levou a lançar mão daquelas horríveis histórias populares! Eu procurei, de novo, esfriar a briga. Interrompi: – Bem, o importante é que já estão demonstradas três teses essenciais! Primeiro, que o “Gênio da Raça” é um escritor. Segundo, que o cargo de “Gênio da Raça Brasileira” está ainda vago. E terceiro, que ainda está vago, também, o de “Gênio Máximo da Humanidade”, porque o único candidato apontado até agora, Homero, além de não existir, era grosseiro e vulgar! Tudo isso constará na nossa ata, recebendo, assim, o selo oficial e acadêmico que lhe dará certeza! (SUASSUNA, 2012, pp. 191-192)
Os Lusíadas é uma epopeia do escritor português Luís Vaz de Camões em que
são narrados com grandiosidade os feitos de Vasco da Gama na expansão marítima
portuguesa. Nela, como na Odisseia, há episódios em que deuses mitológicos
interferem na ação. Além disso, na obra, é exaltada a nação portuguesa por suas
realizações no momento em que a obra foi escrita – participação nas grandes
navegações – e por sua história anterior. Essa epopeia foi dedicada por Camões ao
6 Nesta e nas demais citações da obra literária, optamos por não atualizar a ortografia utilizada pelo autor para a vigente no momento atual. Em contrapartida, nas citações de obras teóricas e analíticas recorrentes ao longo de nosso texto, escolhemos fazer as atualizações necessárias.
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então rei Dom Sebastião, segundo afirmam estudiosos, para incitar o jovem monarca
à guerra.
Quaderna cita o primeiro verso do Canto I d’Os Lusíadas, “As armas e os
barões assinalados”, no título do Folheto XLI, em que é narrada a preparação para o
duelo entre Samuel e Clemente. A utilização desse verso é feita com a intenção de
ironizar o “ordálio”, ridicularizando-o, uma vez que as armas escolhidas para ele por
Clemente foram dois penicos e que essas disputas eram frequentes entre os dois
opositores, que nunca chegavam sequer próximo de saírem mortos delas:
– São dois penicos! – disse Malaquias com uma expressão que exasperou logo o Fidalgo. – Era esse o telengo-tengo, Professor Clemente? – O telengo-tengo era esse! – confirmou o Filósofo. Samuel empalideceu e gaguejou, exasperado: – Que brincadeira de mau gosto é essa, Clemente? Você está gracejando com uma coisa séria como nossa refrega? – Gracejando o quê? Por acaso eu iria faltar com o respeito a um acontecimento no qual vou arriscar minha vida? Samuel, para mim, a Revolução é uma coisa sagrada! – E como é que vem com uma palhaçada dessas? Como é que escolhe dois objetos tão ridículos como armas para nossa pugna? – Escolhi, em primeiro lugar, porque a Esquerda com seus pontos de vista sérios e científicos, não vê nada de ridículo em objetos úteis. Em segundo lugar, para desmoralizar a Fidalguia. Em terceiro lugar, para mostrar como minha luta é realmente uma luta do Povo, uma luta popular. E finalmente, para desmascarar de uma vez para sempre sua figura empafiada de falso Fidalgo dos engenhos de Pernambuco! Você vai morrer por minha mão, hoje, Samuel! E, o que é pior, vai morrer levando penicadas! (SUASSUNA, 2012, pp. 283-284)
A imagem que ilustra a passagem do ordálio permite perceber que Suassuna
emprega o recurso da carnavalização, a qual consiste “na transposição do carnaval
para a linguagem da literatura” (Bakhtin, 2008, p. 140). O carnaval caracteriza-se
pela “fusão do sublime com o vulgar” (BAKHTIN, 2008, p. 123), pela utilização de
“imagens pares, escolhidas de acordo com o contraste (alto-baixo, gordo-magro,
etc.) e pela semelhança (sósias-gêmeos)”, bem como pelo “emprego de objetos ao
contrário: roupas pelo avesso, calças na cabeça, vasilhas em vez de adornos de
cabeças, utensílios domésticos como armas, etc.” (idem, p. 144).
Na gravura, devido à ausência de perspectiva que é característica da
xilogravura, quem parece estar duelando são os cavalos, não os cavaleiros, os quais
mais parecem estar levantando dois canecos como forma de comemoração do que
se enfrentando furiosamente. Esse efeito é transmitido porque os adversários,
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vestidos com as roupas que, nas cavalhadas organizadas por Quaderna,
representavam os mouros e os cristãos, tiveram por armas dois penicos, os quais
foram escolhidos por Clemente e tiveram que ser aceitos por Samuel, embora não
sem hesitação.
A imagem, aliada à narrativa do duelo, torna esse episódio cômico porque o
ridiculariza ao extremo: o “ordálio”, apesar de toda a pompa com que se apresentam
os adversários, nada tem de nobre, uma vez que as armas são apenas dois objetos
“úteis”, como afirma o próprio Clemente e, fora isso, também não é uma “refrega”
séria, pois a narração de Quaderna dá a entender que esse tipo de disputa ocorria
frequentemente entre seus dois mestres, o que significa que nada tinham de fatais.
Conforme aponta Maioli (2008, p. 177), essa imagem demonstra como as
convenções do duelo são relativizadas no nível plástico do Romance:
As pretensões estéticas perseguidas pelo narrador aparecem retratadas na presente imagem. Nela, aparecem os quatro naipes do baralho, elementos que refletem a tendência de Quaderna em unificar as concepções opostas. Além disso, a simetria da figura revela a justaposição dos elementos extremos. Assim do lado direito, constata-se a representação de Clemente, e do esquerdo, a de Samuel. Nota-se ainda que gravura reproduz, por meio de uma linguagem não verbal, a concretização do desejo do cronista, uma vez que os dois mestres aparecem montados em seus respectivos cavalos e vestidos com as capas das cavalhadas. A tensão da imagem é manifestada pela presença de um utensílio de uso doméstico que, desviado de sua função habitual, é elevado à condição de arma bélica. Logo, verifica-se que a seriedade e a nobreza inerente ao ato de duelar são parodicamente subvertidas mediante o processo de carnavalização, o qual pode ser claramente exemplificado pela substituição da lança e da espada por dois penicos, objetos associados com o “baixo” escatológico.
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Figura 1: O Duelo (SUASSUNA, 2012, p. 298).
É feita, ainda, uma referência a Moby Dick, romance de Herman Melville cujo
título é o nome da personagem principal da narrativa: uma baleia cachalote que,
mesmo tendo sido ferida diversas vezes, conseguiu sobreviver e matar – ou ferir
gravemente – seus caçadores. Esse romance trata da luta do capitão Ahab,
considerado louco por ter ficado obcecado por Moby Dick após ter perdido uma
perna em combate contra ela, e de sua tripulação contra esse monstro marítimo da
qual ninguém sai vivo exceto Ismael, o narrador da história. Quando alude a esse
romance, Quaderna quer menosprezar o tamanho e a ferocidade do animal nele
retratado a fim de exaltar os monstros que perpassam o imaginário popular brasileiro
e latino-americano: ele compara a baleia a uma das encarnações possíveis da Besta
Bruzacã por meio de uma gravura e de sua respectiva legenda que retratam esta
última como sendo muito maior e mais fatal que aquela:
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Figura 2: Besta Bruzacã e Moby Dick, (SUASSUNA, 2012, p. 409).
A legenda que segue a gravura dá a entender que Quaderna acredita que o
Brasil e a América Latina são superiores aos Estados Unidos – e aos estrangeiros de
modo geral – em tudo, inclusive nos monstros que povoam suas histórias e lendas,
que são mais ferozes que os deles. Com isso, Quaderna demonstra estar de acordo
com os preceitos do Movimento Armorial de Suassuna, que prega a valorização do
elemento nacional em detrimento do estrangeiro:
Encarnação da Besta Bruzacã. Pela baleia que Taparica colocou embaixo, vê-se a enorme superioridade até dos monstros latino-americanos sobre os bestíssimos monstrinhos estrangeiros que aparecem em outras epopéias – se bem que o cachalote aí representado seja brasileiro, pois foi copiado por Taparica do retrato de um desses bichos, que são frequentíssimos, aqui na Paraíba, na Praia da Costinha. (SUASSUNA, 2012, p. 409 – grifo nosso)
Bruzacã também recebe, no Romance, os nomes “Hipupriapa” e “Ipupiara”
(SUASSUNA, 2012, p. 345) e aparece na Antologia do Folclore Brasileiro (1943), de
Câmara Cascudo, como um “demônio” capaz de reencarnar-se em diferentes formas
físicas e de aterrorizar os índios. Ao representar Bruzacã na obra, Quaderna não só
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pretende comprovar sua existência, mas principalmente, segundo Maioli, salientar,
por meio da metalinguagem, a superioridade da epopeia brasileira visando a
alcançar sua pretensão de tornar-se o Gênio da Raça e, posteriormente, o Gênio
Máximo da Humanidade. A importância das xilogravuras no texto de Suassuna, para
a pesquisadora, é a de, ao serem recriadas parodicamente na estrutura romanesca,
continuarem a exercer suas funções de ornamento e apelo ao público, mas também
de desempenharem “outros papéis fundamentais para a concretização do imaginário
cavaleiresco esboçado ao longo da narrativa”. Assim, Maioli afirma que essas
gravuras “podem servir como implemento que alicerça o discurso metalinguístico
inerente à malha textual, funcionando como um dos recursos empregados para
explicitar a construção do próprio texto narrado” (2008, p. 130).
A minissérie também traz referências a grandes obras e escritores da literatura
mundial. Aos 00:23:07 do terceiro capítulo, Quaderna usa a Ilíada e a Odisseia como
grandes exemplos de trabalhos realizados por diascevastas. Ele ressalta a
nacionalidade dessas duas obras e caracteriza o povo grego como “ladrões de
cavalo, ladrões de bode e vaqueiro” de modo a inferiorizar o povo e, por
conseguinte, as obras. Seu objetivo com a inferiorização é argumentar que é
possível que ele produza uma obra que as supere, tornando-se o Gênio Máximo da
Humanidade.
Outra referência à literatura mundial ocorre aos 00:34:04 do mesmo capítulo,
quando Quaderna exalta o enigma da morte de seu tio perante outros enigmas
estrangeiros que “basta um detetive particular para descobrir”. Os estrangeiros a que
o narrador se refere nessa passagem são os romances policiais cuja intriga pode ser
facilmente resolvida por alguém que consiga atentar-se às pistas encontradas.
Aos 00:37:11 do quarto capítulo, Quaderna acredita que sua cegueira lhe fará
bem, pois, segundo ele, os grandes poetas épicos eram cegos, começando por
Homero. Ele, assim, inspira-se nesses escritores para escrever sua epopeia.
Por fim, dos 00:38:54 aos 00:47:04 do quinto capítulo, Quaderna pede para
ficar preso para poder ter uma biografia heroica como a de Cervantes e de tantos
outros gênios. Ele tem um desmaio nos braços de Dona Margarida e sonha que está
sendo coroado “Rei da Távola Redonda da Literatura do Brasil” pelo Arcebispo da
Paraíba, Olavo Bilac, Cervantes, Shakespeare e mais dois escritores, provavelmente
José de Alencar e Euclides da Cunha. Podemos considerar essa passagem do
sonho/delírio como uma referência à obra-prima de Cervantes, Dom Quixote (1605),
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cujo protagonista enlouquece devido ao excesso de leituras de romances de
cavalaria, os quais lia sem manter distanciamento crítico e mesmo histórico e cujos
valores tentava resgatar em sua vida, crendo ser, ele próprio, um “leal cavaleiro”.
Assim como ele, Quaderna também tem contato com diversas obras literárias e se
deixa influenciar por elas.
No entanto, apesar do estabelecimento de diálogos com outras obras e
autores, os diálogos mais significativos realizados pela minissérie são com outros
gêneros do discurso, tais como o teatro e a pintura.
Em termos de preparação de atores, de montagem de cenários e de escolha
de objetos de cena, A Pedra d’O Reino dialoga com o teatro, pois se utilizou de
técnicas mais comumente empregadas nos palcos do que na televisão, algumas das
quais podemos ver na tela e outras que sabemos terem sido usadas por meio da
leitura de registros paratextuais como entrevistas concedidas pela equipe
participante e cadernos de filmagens e de fotografias publicados pelo diretor
concomitantemente à exibição do programa, em 2007.
A minissérie apresenta alguns cenários e objetos de cena que podem ser
considerados não-naturalistas porque não se mostram como sendo a coisa que
representam ser, mas declaram seu estatuto de símbolo por sua aparência, textura,
tamanho ou tridimensionalidade, os quais não pretendem mimetizar os locais ou
objetos reais, mas apenas aludir a eles.
É o que ocorre com os animais presentes em cena ao longo de toda a
minissérie – cavalos, bois, onças, cobras, preás, gaviões –, que são todos bonecos
construídos de forma artesanal por profissionais da região onde o programa foi
gravado, Taperoá, com a finalidade de torná-lo popular no sentido original da
palavra, isto é, “feito pelo povo”.
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Figura 3: Quaderna, acompanhado de seu irmão Malaquias e de seu amigo Euclydes Villar,
sai montado em cavalos mecânicos rumo às Pedras do Reino, ao 00:31:33 do primeiro
capítulo.
A escolha de representar esses animais através de bonecos e não de seres
vivos treinados causa estranheza no espectador acostumado a ver objetos que
simulam os reais – tais como o dinheiro e os alimentos cenográficos que aparecem
com frequência em filmes, novelas e até mesmo minisséries –, tem o intuito maior de
remeter ao tom hiperbólico e fantasioso da narração empreendida por Quaderna, a
qual não é uma narração que ocorre num ambiente natural e visa a relatar a verdade
dos fatos, como poderia ser caso ele se apresentasse como um homem velho que
estivesse contando sua história para um neto seu, por exemplo. Pelo contrário, ela
faz parte do projeto de escrita do livro que ele pretende que seja um romance
epopeico – obra ficcional – ainda que retome elementos ditos por ele “reais”. Por
isso, utilizar animais “de mentira” corrobora para a construção do sentido de que
tudo aquilo que Quaderna está contando talvez nunca tenha acontecido realmente,
mas apenas faça parte de um construto, tão fictício quanto os animais artificiais
exibidos na tela.
É o que acontece, ainda, com a representação das pedras que dão nome ao
título e que constituem o local onde os ancestrais de Quaderna profetizaram a volta
de Dom Sebastião e promoveram matanças como sacrifício para que o retorno do
monarca finalmente pudesse ser concretizado. Elas existem geograficamente, estão
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localizadas na divisa do estado de Pernambuco com a Paraíba, e a equipe poderia
ter ido até elas para gravar as cenas referentes aos episódios sangrentos dos
bisavós do narrador e à sua ida até lá como ritual de retomada do trono de sua
família.
No entanto, a preferência foi por representá-las como pintura em tecido,
estendido num ambiente fechado que parece um palco de teatro, para enfatizar a
ação da personagem pela expressão do ator, bem como a intensidade humana
dessa ação, em detrimento da referência física ao local. A ideia da ficção fantasiosa
de Quaderna dentro da ficção maior de Luiz Fernando também se concretiza com a
antítese empregada: a escolha do tecido para representar a aspereza das pedras.
O autor da pintura em tecido foi Manuel Dantas Suassuna, filho de Ariano
Suassuna, o qual não pinta as pedras de modo naturalista, isto é, fazendo-as
parecer-se ao máximo com as formações rochosas reais, mas sim de maneira
icônica, ou seja, de forma que o painel apenas simbolize essas formações por meio
de alguma semelhança (o formato e a disposição das rochas) sem, contudo, deixar
de mostrá-las como o que realmente são – um construto ficcional:
Figura 4: Pintura das pedras feita em painel de tecido por Manuel Dantas Suassuna.
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Figura 5: Quaderna é fotografado por Euclydes Villar em frente às Pedras do Reino quando
vai conhecê-las pessoalmente para consagrar-se Imperador do Brasil, no primeiro capítulo.
Os atores também receberam treinamento diferente do que costumam receber
quando atuam em televisão. Estudaram técnicas de expressão corporal e vocal
durante um período maior e in loco, as quais visavam a que eles realizassem um
trabalho mais intenso com seus corpos, como no teatro, e não como geralmente há
no cinema e na TV.
Figura 6: Preparação de atores com vendas. Imagem disponível no extras do DVD 2 e
também nos cadernos de fotografias de Renato Rocha Miranda.
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A preparação foi feita por profissionais do teatro que promoviam atividades com
máscaras e vendas a fim de que cada ator explorasse mais a potencialidade de seu
corpo e criasse uma conexão com os outros que pudesse transparecer nas
filmagens.
Também estão presentes na constituição das cenas da minissérie referências a
personagens e elementos da commedia dell’arte e a pinturas que recriam cenas
religiosas, especialmente as de Giotto Di Bondone.
Segundo Freitas (2008, p. 66), a commedia dell’arte foi uma forma de teatro
popular improvisado iniciada na Itália no século XVI – em oposição à comédia
erudita, a qual era baseada no teatro clássico e estava restrita às camadas mais
elevadas da sociedade – e que se manteve popular até o século XVIII em vários
países da Europa. Era realizada sobre as carroças das companhias, as quais eram
itinerantes, ou sobre pequenos palcos improvisados pelas ruas e praças públicas
das cidades aonde chegavam.
Seus principais personagens eram o arlecchino, o brighella, o dottore, o
pantalone e a colombina, cada um dos quais geralmente era interpretado pelo
mesmo ator do início ao fim de sua carreira de modo que tinha suas características
físicas e suas habilidades cômicas exploradas até o limite, o que contribuía para que
fosse caracterizado como personagem-tipo e fosse facilmente reconhecido pelo
público, algo que também era propiciado por suas vestimentas, suas máscaras (que
deixavam livre a parte inferior do rosto) e seus acessórios específicos (FREITAS,
2008, pp. 66-67):
66
Figura 7: Principais personagens da commedia dell’arte. Disponível em:
http://www.teatrodinessuno.it/maschere-commedia-arte. Acesso em: 15 nov. 2013.
Algumas das referências que a minissérie faz a esse teatro foram percebidas
por Fernanda Areias de Oliveira em sua dissertação de mestrado Novas
possibilidades para a teledramaturgia: A Pedra do Reino: uma adaptação televisiva
por Luiz Fernando Carvalho (2009, pp. 85-86): elas estão presentes na
caracterização do personagem-narrador Quaderna e do palco de onde ele conta sua
história. Quaderna se assemelha ao arlecchino tanto no que diz respeito à
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vestimenta quanto à expressão corporal:
Figura 8: Arlecchino da commedia dell’arte. Disponível em:
http://www.teatrodinessuno.it/maschere-commedia-arte. Acesso em: 15 nov. 2013.
Figura 9: Quaderna, aos 00:18:53 do primeiro capítulo da minissérie, observa o corpo do tio
morto sendo levado para o enterro.
No entanto, o diretor, nos cadernos de filmagem, compara-o, ainda, ao
cucurucu, outro personagem famoso da commedia dell’arte:
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Figura 10: Personagem Cucurucu. Razullo and Cucurucu (1622), Jacques Callot (1592-
1635) - National Gallery of Canada (no. 39293.19) – Gravura em vergê, 9,5 x 12,6 cm.
Disponível em: http://www.gallery.ca/en/see/collections/artwork.php?mkey=48094. Acesso
em: 15 nov. 2013.
O palco utilizado por Quaderna guarda semelhanças com os palcos usados
pelas trupes itinerantes da commedia dell’arte, uma vez que também é móvel e foi
montado no meio da Vila de Taperoá:
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Figura 11: Palco da commedia dell’arte. A Party of Charlatans in an Italian Landscape, Karel
Dujardin, 1657 – Museu do Louvre, Paris – Óleo sobre tela, 45 x 52 cm. Disponível em:
http://www.1st-art-gallery.com/Karel-Dujardin/A-Party-Of-Charlatans-In-An-Italian-Landscape-
1657.html. Acesso em: 01 set. 2014.
Figura 12: Proscênio do palco de Quaderna aos 00:29:46 do primeiro capítulo. Ele observa a
cavalhada entre o cordão azul e o encarnado.
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Figura 13: Fundo do palco de Quaderna aos 00:34:09 do segundo capítulo. Quaderna
questiona a qualidade de seu reinado enquanto ouve o Juiz Corregedor dizer que tudo será
pesado e punido.
As personagens Dona Margarida, Samuel e Clemente também foram
inspiradas em personagens da commedia dell’arte: a Colombina, o Brighella e o
Dottore, respectivamente.
Figura 14: Dona Margarida tomando nota do depoimento de Quaderna aos 00:29:53 do
terceiro capítulo.
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Figura 15: Samuel (esquerda) e Quaderna (centro) ouvem Clemente (direita) explicar sua
Filosofia do Penetral aos 00:28:23 do segundo capítulo.
A escolha em dialogar com um tipo de produção cultural popular certamente
não foi aleatória nem casual, ela reflete os propósitos específicos do diretor e da
equipe de produção como um todo com esse trabalho: criar uma obra de arte que
pudesse ser considerada erudita pelo cuidado e sofisticação com que sua linguagem
foi pensada e elaborada, mas que fosse, ao mesmo tempo, constituída de elementos
da cultura popular, assim como o romance no qual ela foi baseada.
Nesse sentido, a minissérie foi fiel ao projeto artístico de Ariano Suassuna e ao
próprio Movimento Armorial lançado por ele em 1970, fato que, por si só, não a
qualifica nem desqualifica como produção estética independente, mas que nos serve
como indicação da direção que foi tomada em diversos outros aspectos: a de
dialogar consensualmente com seu hipotexto.
A pintura também está presente na minissérie. Como já observou Oliveira
(2009, pp. 110-121), Luiz Fernando Carvalho inspirou-se em afrescos do italiano
Giotto Di Bondone (1267-1337) que retratam eventos religiosos e feitos de santos
para criar o cenário onde morreu Dom Pedro Sebastião Garcia-Barretto bem como
para apresentar o personagem Sinésio e sua chegada à Vila de Taperoá:
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Figura 16: Legend of St. Francis: 10. Exorcism of the Demons at Arezzo (1297-1299).
Afresco, 270 x 230 cm – Basílica de São Francisco de Assis, Assis. Disponível em:
www.wga.hu. Acesso em 15 nov. 2013.
Figura 17: Onça ou Moça Caetana sobre a torre onde Pedro Sebastião Garcia-Barretto foi
encontrado morto. Imagem mostrada aos 00:17:00 do primeiro capítulo.
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A torre por sobre a qual pairam os demônios de Arezzo é reproduzida na
minissérie: ela é o local onde morreu Dom Pedro Sebastião Garcia-Barretto e, por
sobre ela, paira a Onça Caetana, também uma espécie de demônio alado – como os
de Giotto – que representa a morte.
Figura 18: No. 26 Scenes from the Life of Christ: 10. Entry into Jerusalem (1304-1306).
Afresco, 200 x 185 cm – Capella Scrovegni, Pádua. Disponível em: www.wga.hu. Acesso em
15 nov. 2013.
Figura 19: Chegada do Rapaz-do-Cavalo-Branco acompanhado do Doutor Pedro Gouveia e
outros homens. Imagem mostrada aos 00:09:07 do primeiro capítulo.
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Sinésio chega à Vila a cavalo, acompanhado de seus seguidores, assim como
o Cristo de Giotto, e depara-se com diversas pessoas, muitas das quais aguardavam
ansiosa e esperançosamente o seu retorno.
O motivo para a escolha das obras de Giotto como inspiração, segundo
Carvalho, deve-se às cores e à textura utilizadas por ele, as quais remetem ao
elemento terra e lembram mais uma tapeçaria que uma pintura, efeitos considerados
importantes pelo diretor para a recriação imagética do sertão suassuniano:
Essas possibilidades que Giotto encontrava ao pintar afrescos, que na verdade são pinturas sobre a Terra – o Elemento Terra, bem como se fossem pinturas rupestres – é o elemento que mais me interessa buscar. Pintar sobre a Terra. Filmar sobre a Terra. Projetar luzes sobre toda e qualquer superfície que seja capaz de se transformar em um afresco, em uma iluminação sobre a Terra. Um sistema de cores pode nascer deste princípio simples. As cores terrosas, que se apresentam de inúmeras formas e luzes, desde a mais fina areia branca até a rocha dourada e vermelho do barro”. LFC * A questão da luz e da textura: Minha intenção é trabalhar os planos, o movimento dos atores, os figurinos, os elementos cenográficos; enfim, tudo, dentro da ideia de um afresco. Um grande afresco – à maneira de Giotto, onde se pode perceber uma infinidade de cores e uma textura que me lembra uma tapeçaria e não uma pintura. (CARVALHO, 2007, pp. 80-81, grifo do autor)
Outra razão para a escolha de Giotto certamente foi o caráter inovador que o
artista imprimiu à pintura renascentista, sujeitando o esquema tradicional a uma
“simplificação radical”:
A ação desenvolve-se paralelamente ao plano do quadro; paisagem, arquitetura e figuras foram reduzidas ao mínimo essencial; a gama ilimitada e a intensidade de tons da pintura em afresco (cores diluídas em água, aplicadas sobre o reboco ainda fresco da parede) acentua ainda mais o aspecto austero da arte de Giotto. (JANSON, 1996, p. 150)
Em Entrada de Cristo em Jerusalém, Giotto consegue obter o efeito de
realidade da cena apresentada pelo fato de seu espaço pictórico ser apresentado de
modo a “fazer com que o olhar do espectador fique ao mesmo nível das cabeças das
figuras”, parecendo “dar continuidade ao espaço em que nos encontramos”. Seu
grande mérito foi o caráter tridimensional de seus “traços vigorosos”, “tão
convincente que eles parecem quase tão sólidos quanto esculturas independentes”:
Com Giotto, as figuras criam o seu próprio espaço, e a arquitetura é
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reduzida ao mínimo exigido pela narrativa. Consequentemente, sua profundidade é obtida através dos volumes combinados dos corpos sobrepostos na pintura, mas, mesmo restrito a esses limites, os resultados são muito convincentes. Para aqueles que viram pela primeira vez este tipo de pintura, o efeito deve ter sido tão espetacular quanto o dos primeiros filmes em Cinerama; seus contemporâneos o louvaram como igual, ou mesmo superior, aos maiores pintores antigos, pois suas formas pareciam naturais ao ponto de confundirem-se com a própria realidade. Giotto considerava a pintura superior à escultura – uma pretensão nada vã, pois ele de fato inicia o que poderíamos chamar de “era da pintura” na arte do Ocidente. Entretanto, seu objetivo não era simplesmente rivalizar com a estatuária; queria antes que o impacto total da cena atingisse o espectador de imediato. Se observarmos as pinturas anteriores, constataremos que nosso olhar percorre vagarosamente cada detalhe, até cobrir toda a superfície. Giotto, ao contrário, não nos convida a examinar demoradamente pequenos pormenores, nem a percorrer novamente o espaço pictórico; mesmo os grupos de figuras devem ser vistos como blocos, e não como aglomerados de indivíduos. Cristo encontra-se sozinho no centro, ao mesmo tempo que preenche o espaço entre os apóstolos que avançam pela esquerda e os habitantes da cidade, em atitude de reverência, à direita. Quanto mais estudamos esse quadro, mais nos damos conta de que sua força e clareza majestosas encerram a mais profunda expressividade. (JANSON, 1996, pp. 150-151)
Ainda, um motivo para Carvalho ter se inspirado em pinturas de Giotto para
compor algumas cenas foi o de identificação dos temas nelas representados.
A cena de Sinésio chegando à Vila, assim como o quadro de Giotto citado
acima, inova em seu meio ao conduzir o espectador a manter o olhar no mesmo
nível das cabeças das personagens devido ao enquadramento utilizado: o primeiro
plano, que, segundo Araújo (1995, p. 63), é aquele que foca a personagem da
cintura para cima. Na televisão e no cinema naturalistas, essa cena teria sido filmada
em plano de conjunto, isto é, com todo o grupo de personagens do bando sendo
focado ao mesmo tempo a fim de transmitir com mais ênfase a ideia de chegada
abrupta e inesperada, de uma invasão.
A respeito da identificação com o tema da pintura, percebemos que ocorre
com relação às personagens centrais de cada cena: Cristo e Sinésio. Enquanto o
centro da imagem de Giotto é Cristo, o centro da imagem da minissérie é Sinésio, o
que permite a identificação desse personagem como uma figura messiânica, sentido
que perpassa toda a narrativa.
Dessa forma, a minissérie, ao mesclar a linguagem televisiva a elementos
oriundos de outras artes, aproxima-se do Romance no que diz respeito à variedade
de gêneros que compõem seu discurso. Ela o faz, no entanto, não apenas tendo a
76
hibridação de gêneros como um fim em si mesmo, assim como Giotto não utilizava a
perspectiva e o jogo de luz e sombra como fins (GRAHAM-DIXON, 2013, p. 86), mas
sim para construir significados específicos e transmitir mais e melhor as emoções
das cenas retratadas.
2.1.2 Capa, gravuras e vinheta de abertura: cordel e antecipação narrativa
A literatura de cordel é “uma expressão literária popular característica do
interior do Nordeste, em especial dos estados de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande
do Norte e Ceará” (Enciclopédia Literatura Brasileira). Segundo Gonçalo Ferreira da
Silva, em Vertentes e evolução da literatura de cordel (2011, p. 11), o cordel existe
desde a época dos povos conquistadores greco-romanos, fenícios, cartagineses,
saxões etc., tendo chegado à Península Ibérica por volta do século XVI, onde
recebeu os nomes “pliegos sueltos” (Espanha) e “folhas soltas” ou “volantes”
(Portugal). Foi trazido para o Brasil com a colonização e seu nome, que causou
polêmica por aqui, deve-se à forma como os folhetos eram comercializados em
Portugal: pendurados em cordões que eram chamados de cordéis. Alguns
estudiosos e escritores brasileiros de cordel têm a opinião de que em vez de
“literatura de cordel”, essa literatura seja chamada de “literatura popular” ou até
mesmo “poesia nordestina” pelo fato de ser a expressão de um povo (SILVA, 2011,
p. 16).
Essa literatura caracteriza-se por “sua estrutura narrativa, a composição em
versos, a impressão em pequenos folhetos de papel jornal ilustrados com
xilogravuras, e objetivo de ser declamada nas feiras públicas”. Além disso, “é
construída de acordo com um vasto repertório de formas poéticas fixas que
delimitam a quantidade de sílabas poéticas, de versos e a disposição das rimas na
estrofe” (Enciclopédia Literatura Brasileira).
Os primeiros folhetos de cordel coletados no Brasil datam de 1890, mas é quase certo que as manifestações do cordel já se façam presentes na metade do século XIX. Leandro Gomes de Barros (1865-1918) é reconhecido como o primeiro cordelista de que se tem notícia. A formação do público do cordel no Nordeste está ligada ao nascimento das feiras de agricultores. A falta de um uso sistemático de meios de comunicação impressos deu força a uma tradição de comunicação oral, e durante muito tempo foram os cordelistas que forneceram informação e divertimento para a população do meio rural nordestino. As últimas décadas têm presenciado fortes mudanças no perfil do
77
público da literatura de cordel. O enfraquecimento das feiras populares no interior do Nordeste e o fortalecimento dos meios de comunicação de massa fizeram com que a maior parte do público tradicional do cordel se dispersasse ou perdesse o interesse por ele. Enquanto isso, a onda de estudos acadêmicos iniciada na década de 1970 despertou o interesse da classe média por essa literatura. (Enciclopédia Literatura Brasileira)
Os paratextos do Romance, a começar pelo título e pelo desenho da capa,
dialogam direta e abertamente com a literatura de cordel e nos ajudam a
compreender a natureza do projeto empreendido por Suassuna com a escrita desse
livro: uma tentativa de produzir uma arte erudita sobre as bases da cultura popular.
Na capa da nona edição (2012), a qual examinaremos aqui, há uma gravura
feita pelo próprio Suassuna que retrata o episódio do duelo entre Samuel e
Clemente e que aparece também dentro do Romance, na página 298, para ilustrar e
conferir ao Folheto XLII, em que é narrado o enfrentamento dos mestres de
Quaderna, um tom de ironia:
Figura 20: Capa da nona edição do livro (2012).
O título do Romance, por ser composto de duas partes – a primeira “Romance
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d’A Pedra do Reino” e a segunda “e o príncipe do sangue do vai-e-volta” – também
dialoga com os títulos de cordel, os quais geralmente são compostos dessa maneira,
como podemos ver nas três capas abaixo:
Figura 21: Capas de folhetos de cordel. Disponíveis em: http://www.ablc.com.br. Acesso em:
05 nov. 2013.
A primeira parte do título, sozinha, por conter a indicação “romance” remete ao
gênero literário ao qual esta obra de Suassuna pertence. Contudo, remete, também,
a folhetos de cordel, uma vez que o romance é um dos gêneros que fazem parte da
literatura de cordel, assim como as histórias jocosas ou de gracejo, as histórias do
cangaço e as pelejas, desafios e discussões (HAURÉLIO, 2013, pp. 57, 80).
A segunda parte, em particular, faz referência direta à forma de composição do
título de um folheto específico: História do Príncipe do Barro Branco e a Princesa do
Reino do Vai Não Torna, de Severino Milanês, cuja história é a de um rapaz órfão
chamado João que sai em viagem pelo Reino do Barro Branco.
Nesse reino, o rapaz recebe de presente um cavalo com poderes mágicos e
três pedaços de pão para comer durante a viagem, os quais tem a ordem de sempre
dividir com alguém. O príncipe desse reino quer se casar e manda João, sob
ameaça de morte se falhar, ir até o Reino do Vai Não Torna e capturar sua princesa
para que possa torná-la sua esposa. No meio do caminho, João encontra criaturas
desamparadas e divide seu pão com elas, recebendo delas a promessa de um dia o
ajudarem quando for preciso. No Reino do Vai Não Torna, a princesa prevê sua
chegada, porém, por apaixonar-se por ele, em vez de mandar matá-lo
imediatamente, como era o costume, dá-lhe três dias para que possa se esconder
de seu espelho e de seu livro, instrumentos que possibilitavam as premonições.
79
João, então, pede ajuda às criaturas que lhe prometeram amparo e consegue se
esconder da princesa. Quer casar-se com ela, mas sabe que não pode, pois, se o
fizer, o Príncipe do Barro Branco o matará. No entanto, descobre que o príncipe
morreu num duelo que travou logo após sua saída e, finalmente, casa-se com a
princesa.
O cordel ainda é mencionado de maneira direta no Romance entre as páginas
101 e 103, quando Quaderna se diz um leitor ávido de folhetos e revela achar
“maravilhosos esses títulos duplos, ‘isto ou aquilo’” (SUASSUNA, 2012, p. 101).
Essa menção dialoga diretamente com o título dado ao Romance por
Suassuna/Quaderna.
Menciona-se, ainda, que algumas vezes os folhetos que o narrador lia traziam
na primeira página, por baixo do título, “uma espécie de explicação, destinada a
causar ‘água na boca’ aos que iam comprá-lo” (SUASSUNA, 2012, p. 101). Essa
citação explica o fato de o Romance trazer um epítome na p. 27, o qual se
caracteriza, segundo Leão, como “um trecho inicial que serve de sinopse a toda a
obra” e que “é um elemento de presença constante na literatura de cordel, mas que
não é tão presente na literatura tradicional” (2011, p. 44) moderna e contemporânea
apesar de ter sido bastante empregado no romance do século XVIII.
Na minissérie, também há referências ao cordel no seu paratexto principal – a
vinheta de abertura, da qual falaremos adiante –, mas principalmente dentro de cada
capítulo com a aparição dos cantadores João Melchíades e Lino Pedra-Verde, dois
cantadores amigos do narrador.
Primeiramente, aos 00:23:54 do primeiro capítulo, João Melchíades conta a
história de João Ferreira Quaderna em verso, acompanhada de viola, para
Quaderna menino, que se impressiona tanto com o teor da narrativa quanto com o
canto.
Depois, aos 00:07:30 do segundo capítulo, João Melchíades e Lino realizam
um desafio de viola na presença de Samuel, que menospreza o gênero e se mostra
entediado, e, depois, bravo, aos 00:21:31 do mesmo capítulo, quando o narrador
menciona que Lino escreveu um folheto sobre uma “visagem” que teve, porque
considera errado que Quaderna, que é conhecedor dos fundamentos da lírica, dê
importância a “cantorias”.
Também, aos 00:39:36 do quarto capítulo, Lino aparece tocando viola pela
estrada do sertão quando encontra Quaderna cego e o ajuda a chegar à Vila e,
80
finalmente, aos 00:47:05 do quinto capítulo, na última cena da minissérie, é
Quaderna quem anda pelo sertão tocando um violino – porém, a música que sai
desse instrumento é uma música popular nordestina e alegre.
Um outro aspecto que merece ser ressaltado é a repetição, na minissérie, da
referência feita no Romance à xilogravura, muito recorrente nas capas dos folhetos
de cordel. A xilogravura é uma “gravura feita com uma matriz de madeira.
Simplificando, pode-se dizer que é um processo de impressão com o uso de um
carimbo de madeira” (O que é xilogravura. In: MUSEU CASA DA XILOGRAVURA).
Dos 00:08:25 aos 00:12:50 do primeiro capítulo, é mostrada a sequência da
chegada do bando do Rapaz-do-Cavalo-Branco à Vila de Taperoá, o qual trazia
diversas bandeiras que correspondem às gravuras presentes no Romance feitas
pelo próprio Ariano Suassuna utilizando-se da técnica da xilogravura.
A primeira dessas bandeiras é chamada de Bandeira da Onça e representa a
família Garcia-Barretto, pois traz gravadas as letras G e B (iniciais de Garcia-
Barretto), no alfabeto sertanejo:
Figura 22: Gravura feita por Ariano Suassuna e impressa na página 362 do Romance.
81
Figura 23: Bandeira da Onça na chegada do bando aos 00:08:30 do primeiro capítulo da
minissérie.
A segunda é chamada “Bandeira das Onças” e pertence a Sinésio, como
podemos depreender de suas iniciais, SGB (Sinésio Garcia-Barretto), gravadas nela:
Figura 24: Gravura feita por Ariano Suassuna e impressa na página 40 do Romance.
82
Figura 25: Bandeira das Onças aos 00:09:25 do primeiro capítulo da minissérie.
A imagem seguinte não é de uma bandeira, mas do escudo de Sinésio, que
traz nele os mesmos elementos da bandeira – as onças e a flor-de-lis, mas traz
também a imagem de uma moça que sabemos ser Dona Heliana, o grande amor da
vida do rapaz.
Figura 26: Gravura feita por Ariano Suassuna e impressa na página 61 do Romance.
83
Figura 27: Escudo da túnica do Rapaz-do-Cavalo-Branco aos 00:11:08 do primeiro capítulo.
Na minissérie, as gravuras são feitas em tecidos e ganham cores,
principalmente o vermelho. Mantém-se, no entanto, a ausência de perspectiva típica
da xilogravura e percebe-se a tentativa de manter os desenhos o mais próximos
possível das imagens impressas no Romance.
As bandeiras e a túnica contendo desenhos de onça remetem à proposta do
Movimento Armorial de exaltação do elemento brasileiro em detrimento do
estrangeiro: o leão é uma imagem recorrente em heráldica porque expressa a ideia
de ferocidade e superioridade em relação aos adversários. No entanto, não é um
animal típico brasileiro e, por esse motivo, Suassuna (e Quaderna também,
declaradamente) substitui sua imagem pela da onça, a qual é originária da América
Latina e, aqui, transmite a mesma ideia que o leão por ser capaz de causar medo
nos nativos do país que vivem em regiões próximas de seu habitat.
Já a imagem de Heliana na túnica de Sinésio remonta ao costume dos heróis
das novelas de cavalaria de levar consigo em suas lutas a imagem da amada como
forma de demonstrar sua fidelidade a ela, assunto ao qual voltaremos no capítulo
seguinte.
A vinheta de abertura e de fechamento de um programa de televisão é um de
seus principais paratextos, pois serve como uma espécie de “rito de passagem do
telespectador de um universo a outro”, sendo responsável por diferenciar as
produções e trazer, de forma condensada, os programas narrativos orientadores da
84
obra para o espectador de modo a orientá-lo sobre como deve apreendê-la
(BALOGH, 2005, pp. 146-148).
Nesse sentido, a vinheta de abertura da minissérie A Pedra d’O Reino, que tem
a duração de 00:01:11, é exemplar, uma vez que declara o teor do programa a ser
apresentado, antecipa alguns programas narrativos, apresenta o local onde as ações
ocorrerão e as personagens principais e explicita formas de composição (tais como a
circularidade narrativa) e referências (à heráldica) em que se basearam seus
criadores para compô-la, tais como veremos a seguir.
Já nos primeiros cinco segundos de exibição, há a declaração do teor do
programa a ser apresentado – uma obra que fala sobre reis (daí a exibição de uma
coroa resplandecente já no seu primeiro segundo), é inspirada em um trabalho de
Ariano Suassuna e se caracteriza por ser de ficção, pois contará com um ator,
Irandhir Santos, interpretando a personagem principal, Quaderna:
Figura 28: Primeiro segundo de exibição da vinheta de abertura da minissérie.
85
Figura 29: O caráter ficcional da obra aparece aos 00:00:05 segundos com a indicação do
nome do ator Irandhir Santos e do personagem que ele interpretará.
Além disso, a vinheta apresenta temas que aparecem na narrativa do Romance
e da minissérie, tais como a presença do baralho, demonstrada pelos seus quatro
símbolos – espadas, ouros, copas e paus – exibidos nos quatro cantos da primeira
imagem (Figura 28), e a presença da heráldica como forma de identificar pessoas e
famílias (Figura 29).
A heráldica é um fenômeno universal de origens remotas que consiste na
“utilização de determinados símbolos e cores como forma de identificar indivíduos,
famílias, tribos ou clãs”. Estima-se que sua introdução no Ocidente se deu com as
Cruzadas, devido ao contato com a cultura oriental, e seu florescimento é associado
às guerras e torneios medievais. Segundo Fonseca:
O uso de armaduras completas e, muito particularmente, dos elmos que cobriam completamente o rosto tornou necessário um sistema de identificação claro e facilmente visível de longe. Um cavaleiro medieval dentro da sua armadura era virtualmente impossível de distinguir, no calor de uma batalha ou desde a bancada de um torneio, de qualquer outro com uma armadura semelhante; os reis e chefes militares eram difíceis de identificar e seguir; durante um combate, amigos e inimigos confundiam-se. Estes factores levaram, desde meados do século XII, ao uso de emblemas pessoais pintados nos escudos e elmos e, por vezes, nas roupas do cavaleiro ou na cobertura da montada. (...) O uso de escudos pintados com símbolos pessoais generaliza-se rapidamente, e é adoptado por toda a classe guerreira e, de uma forma geral, por toda a aristocracia. (...)
86
O monarca chama a si o poder de conceder brasões de armas, como forma de recompensar os serviços de seus cavaleiros, acompanhando normalmente a doação de senhorios ou terras; os arautos-de-armas, funcionários régios encarregues de coordenar o uso de emblemas heráldicos, criam regras de concepção de brasões com vista à sua fácil visualização e identificação. Daí o uso de cores contrastadas e de figuras simples, características da heráldica mais antiga. Este sistema de identificação pessoal torna-se, então, a partir do século XII, hereditário e passa a representar uma família ou linhagem.
O escudo à esquerda da Figura 29 será recebido orgulhosamente pelo
protagonista das mãos do Doutor Pedro Gouveia ao final da narrativa em forma de
lisonjeio à história de sua família visando a obter dele informações e auxílio
importantes. O Doutor dá a Quaderna, Samuel e Clemente brasões com escudos
que homenageiam suas famílias porque sabe que os três têm pretensões de
grandeza. Ele quer manipulá-los a apoiar a causa de Sinésio e a contar os detalhes
que conhecem a respeito do tesouro que o pai do rapaz teria escondido em algum
lugar do sertão. O escudo dado a Quaderna é uma reprodução virtual da gravura
presente na página 671 do Romance e impressa, lá, utilizando-se da técnica da
xilogravura. Já o escudo à direita não existe tal como é apresentado, mas contém
elementos constituintes de outros escudos que aparecem no Romance, tais como o
escudete e a flor-de-lis.
A vinheta ainda traz um sinal importante para Quaderna e que ele repete
muitas vezes ao longo da narrativa para se referir às pedras onde seus ancestrais
fundaram seu império: o gesto de estender os dedos indicador e médio, enquanto
flexiona os demais dedos, e apontar a mão em direção ao céu. Gesto que poderia
significar, para ele, a transcendência, a nobreza ou a glorificação de seus ancestrais,
embora somente ele e alguns de seus seguidores pareçam acreditar que sua família
– responsável pelos acontecimentos de Pedra Bonita – realmente possuía alguma
capacidade de transcender os limites da realidade, estabelecendo contato com Dom
Sebastião, e que era nobre e gloriosa:
87
Figura 30: 00:00:09 da abertura.
O “Coração na Mão” que aparece a seguir na abertura é obra do cordelista e
xilogravurista pernambucano José Francisco Borges, considerado um dos melhores
do nordeste por Ariano Suassuna. Esse coração que parece pulsar na palma de uma
mão (provavelmente a mão de Quaderna, pois se parece à mão que a antecede na
vinheta) também pode fazer referência à intensidade do desejo do narrador de
restaurar o império de seus ancestrais, ou melhor, deter o reino pulsando em sua
mão.
Figura 31: 00:00:12 da abertura.
88
Aos 00:00:21, aparece na vinheta o desenho de uma vila em cujo centro se
localiza um portal. Esse local pode ser reconhecido como a Vila de Taperoá, palco
da história de Quaderna, e o ponto de onde ele é visto pode ser comparado ao do
palco montado pelo narrador no centro da vila:
Figura 32: Portal da Vila de Taperoá visto a partir do palco de Quaderna.
Esse enquadramento antecipa ao telespectador o conhecimento de que a
história será narrada segundo o ponto de vista de Quaderna e de que por esse portal
chegará à Vila alguém importante para o narrador – justamente o Rapaz-do-Cavalo-
Branco, seu primo, que é tido pela população local e principalmente por ele como
uma espécie de redentor do sertão, ou seja, como alguém que acabará com as
desigualdades existentes.
A abertura do portal para a praça remete-nos, ainda, ao teatro medieval
profano no qual as dramatizações ligadas ao cômico popular eram apresentadas nos
pátios das igrejas, nos seus arredores e nas praças. Segundo Silva (2009, pp. 36-
37):
Para Lígia Vassalo (1983, p. 43), o teatro profano tem ligação com o cômico e não aparece como forma independente antes do séc. XIII. Não se sabe de onde ele provém, tendo uma influência significativa quando a encenação sai da Igreja. [...] O termo profano advém do fato de os Concílios Sinodais instituírem regras disciplinadoras para cada diocese, as quais proibiam as igrejas de promoverem nos recintos sagrados manifestações profanas, incluindo a dança e o canto. Os pátios, os arredores das Igrejas tornam-se o espaço de dramatizações profanas, ligadas ao
89
cômico popular. A partir disso, estendem-se aos burgos, aos mercados e feiras, chegando às cortes reais e senhoriais.
Aos 00:00:30, desenhos que lembram símbolos astrológicos são mostrados na
vinheta de abertura da minissérie. Eles são uma antecipação de uma das facetas
mais importantes do narrador-protagonista – a de astrólogo que acredita que
determinados movimentos dos astros podem propiciar aos seres humanos
características específicas de personalidade e a capacidade para realizações
grandiosas – e são, por sua composição, uma referência ao Movimento Armorial
fundado por Suassuna, como afirma Bêla no artigo “A Pedra do Reino” (In:
http://www.carlosbela.com/portfolio/motion/pedra-do-reino/):
O Movimento Armorial de Ariano Suassuna pretendia criar uma arte erudita a partir de elementos da cultura popular do Nordeste Brasileiro. Este foi o ponto de partida para a criação da abertura e vinhetas da minissérie de Luiz Fernando Carvalho para a Rede Globo, exibida em 2007 em 5 episódios pela emissora ou na íntegra nos cinemas. Com forte influência das invenções óticas pré-Cinema como zoetrope, thaumatrope, lanterna mágica, câmera obscura entre outros, foi criado uma espécie de peep-box virtual, no qual a câmera se adentra numa caixa mágica, citando dezenas de conceitos e elementos da obra A Pedra do Reino. Além disso, homenageia-se o design vanguardista do grupo O Gráfico Amador (1954-1961) que teve importante papel nas origens da tipografia brasileira moderna.
Figura 33: Imagem mostrada aos 00:00:30 da abertura: peep-box virtual.
O xadrez é importante como jogo que remete à guerra e contém reis e rainhas,
90
torres e cavalos, elementos considerados nobres por Quaderna:
Figura 34: Imagem mostrada aos 00:00:35 da abertura.
O baralho, como já dissemos, também está presente na minissérie e essa
presença é antecipada com a aparição do símbolo de cada naipe na primeira
imagem da abertura. Além disso, as personagens principais da narrativa aparecem
desenhadas nas cartas do baralho como Valetes, Damas e Reis, sendo Quaderna
uma espécie de curinga. Os desenhos são muito fieis à aparência dos atores que
interpretam as personagens na minissérie e ao tipo de vestimenta usada por eles
para interpretá-las, como podemos ver nas figuras 35 e 36, em que Quaderna
aparece com as faces pintadas à maneira dos palhaços e usando uma roupa com
gola bufante como a vestimenta do arlecchino, da commedia dell’arte:
91
Figura 35: Quaderna caracterizado como o curinga do baralho aos 00:00:41.
Figura 36: Quaderna aos 00:02:11 do primeiro capítulo.
A importância do baralho é parecida à do xadrez: é um jogo que contém figuras
nobres envolvidas nele. No entanto, o baralho também é relevante porque remete à
questão astrológica, isto é, a acontecimentos enigmáticos que podem, em certa
medida, ser previstos pela leitura de cartas.
As cartas do baralho são exibidas em espiral girando de maneira que lembram
as imagens de um caleidoscópio. A cada um ou dois segundos trocam-se as cartas,
e geralmente são apresentadas duas personagens da narrativa por vez. Essas
92
trocas de cartas antecipam ao espectador o fato de que a narração de Quaderna
será similar a um jogo de baralho – ele embaralhará todos os acontecimentos,
desvendando-os um a um – mas não em sua totalidade – de forma aleatória.
Conforme apontou Maioli (2008, p. 139):
A forma “embaralhada” de se dispor o enunciado, repleta de cortes e desvios, pode ser concebida como um “jogo” de linguagem capaz de incorporar na estrutura do romance esse traço peculiar do gosto do narrador que, por sua vez, parece estar “brincando” com o seu interlocutor na medida em que relata a sua história.
As personagens cujas histórias são interligadas dentro da narrativa também
podem aparecer próximas umas das outras, como na figura abaixo, que representa
Dona Margarida, a escrevente do depoimento de Quaderna, e o Juiz-Corregedor:
Figura 37: Dona Margarida como Dama de Ouros e Juiz Corregedor como Rei de Espadas
aos 00:00:47.
93
Figura 38: Dona Margarida aos 00:22:04 do segundo capítulo.
Figura 39: Juiz Corregedor aos 00:25:24 do segundo capítulo.
Dona Margarida usa adorno de cabeça e vestido rosa à la Colombina da
commedia dell’arte e traz sua inseparável máquina de escrever ao colo enquanto
parece olhar para a carta que nos mostra a imagem do Juiz Corregedor, o qual está
com ar austero e veste sua toga de magistrado.
Na imagem seguinte, Dona Heliana Swendson aparece ao lado de Samuel e
Clemente, que, por sua vez, aparecem na mesma carta como se fosse, cada um, a
94
metade do mesmo valete:
Figura 40: Heliana Swendson como Dama de Espadas e Clemente e Samuel compondo as
duas faces do Valete de Espadas aos 00:00:50.
Figura 41: Heliana Swendson aos 00:12:53 do primeiro capítulo.
95
Figura 42: Clemente e Samuel aos 00:23:57 do segundo capítulo.
Dona Heliana tem os cabelos avermelhados e traz um véu à cabeça enquanto
Clemente e Samuel vestem, respectivamente, as cores azul e amarelo e usam, na
cabeça, cocar e cartola, o primeiro remetendo ao orgulho de sua ascendência negro-
tapuia e o segundo, ao orgulho de seus antepassados fidalgos dos engenhos de
Pernambuco. Os mestres de Quaderna aparecem na mesma carta, como se fossem
as duas metades de um mesmo valete, com a finalidade de antecipar o conflito que
surge de suas visões políticas e ideológicas opostas – já que ambos são radicais,
um de esquerda e o outro de direita – e que, para o narrador, deveriam ser
complementares em vez de antagônicas. É interessante notar que Luiz Fernando
Carvalho escalou dois atores cujo tom de pele se assemelha e que poderiam ser
considerados “mulatos” (Jackyson Costa, intérprete de Clemente, e Frank Menezes,
intérprete de Samuel), alterando suas características físicas por meio de maquiagem
a fim de que a oposição entre as personagens não parecesse natural sequer no
plano de suas etnias.
A seguir, Pedro Sebastião Garcia-Barretto aparece retratado como Rei de
Copas no canto superior esquerdo da tela. Na imagem, ainda aparecem Clemente e
Samuel, e já começam a aparecer Maria Safira (canto inferior esquerdo) e Sinésio
(mais ao centro e ao fundo).
96
Figura 43: No canto superior esquerdo, Dom Pedro Sebastião Garcia-Barretto é o Rei de
Copas aos 00:00:50.
Figura 44: Pedro Sebastião Garcia-Barretto aos 00:13:15 do segundo capítulo.
Pedro Sebastião Garcia-Barretto é retratado como um verdadeiro rei, pois essa
é a maneira como Quaderna o vê. O tio e padrinho do narrador traz uma coroa à
cabeça e um manto sobre as roupas e é filmado em ângulo contra-plongée (ou
contrapicado), isto é, de baixo para cima. Na carta presente na abertura, ele é o Rei
de Copas, figura que, pela importância que tem no baralho – assim como os Reis
dos outros naipes – antecipa seu poder sobre o narrador e sobre a população local,
97
por quem é considerado superior. Porém, o fato de ser de Copas indica que existe
afetividade entre ele e o narrador, uma vez que esse naipe é representado pela
imagem de um coração e tem esse significado quando se pensa na leitura
astrológica de cartas, e revela ao telespectador a relevância que essa personagem
terá na vida de Quaderna e para sua narrativa.
Na imagem seguinte, Maria Safira, que já havia aparecido anteriormente,
ganha destaque, e aparece junto dela, Arésio, o filho mais velho de Pedro Sebastião
Garcia-Barretto:
Figura 45: Maria Safira como Dama de Copas e Arésio como Valete de Ouros aos 00:00:52.
Figura 46: Maria Safira aos 00:20:07 do segundo capítulo.
98
Figura 47: Arésio aos 00:03:55 do primeiro capítulo.
Maria Safira é representada como uma cigana, cheia de joias que chamam
atenção e em postura provocativa, o que remete à sensualidade que a personagem
apresenta na minissérie e ao poder de atração que exerce sobre o narrador,
enquanto Arésio é representado como um guerreiro, usando armadura e túnica
negra, e tendo a expressão facial bastante séria, o que remete à brutalidade e
intempestividade da personagem.
A seguir, e encerrando a aparição das cartas do baralho, Sinésio é retratado
como o Valete de Paus. Ele usa elmo, armadura e manto, e está montado num
cavalo:
Figura 48: Sinésio como Valete de Paus aos 00:00:54.
99
Figura 49: Sinésio aos 00:10:08 do primeiro capítulo.
O primo de Quaderna é retratado como um cavaleiro medieval já na abertura a
fim de antecipar o modo como o narrador o vê dentro da minissérie. Em princípio,
Sinésio volta à Taperoá após ter sido raptado e dado como morto para reivindicar
seus direitos à herança de seu pai. Quaderna, todavia, acredita que o primo é Dom
Sebastião de Portugal que se desencanta e volta para realizar uma revolução
sertaneja que promoveria justiça social para a população humilde do local ao mesmo
tempo que instauraria uma monarquia no Brasil da qual ele próprio seria o rei. O
poder atribuído por ele a Sinésio, então, assemelha-se ao poder que as novelas de
cavalaria atribuíam aos cavaleiros medievais.
A seguir, aos 00:00:58, vemos lanças azuis, que estão situadas ao lado
esquerdo da tela, e vermelhas, à direita, as quais fazem referência às cavalhadas
organizadas por Quaderna na Vila todos os anos e que remontam às Cruzadas. O
cordão azul representa os cavaleiros cristãos e o vermelho representa os mouros.
Quaderna não consegue se decidir para qual cordão torcer a cada dia por medo de
escolher justamente o cordão perdedor. Ele apenas escolhe um dos dois após sua
vitória:
100
Figura 50: Lanças azuis e vermelhas.
As cores azul e vermelho têm significados quase opostos para os cristãos. O
azul é a cor do céu e do mar e, por isso, transmite a ideia de amplitude, de verdade,
de lealdade, de espiritualidade e de eternidade. É a cor de Maria, mãe de Jesus,
cujo manto simboliza sua devoção, sua conexão superior e sua sabedoria. O
vermelho, por sua vez, simboliza o sangue, o poder, as paixões, os desejos
descontrolados e o pecado. Quando Quaderna não consegue escolher para qual
cordão torcer, isso, além de o caracterizar como alguém que não aceita perder,
contribui para que o vejamos como ser complexo, que une em si traços
inconciliáveis.
Em seguida, o sol ardente, “esbraseado”, que aparece na abertura remete ao
calor do sertão onde se passa a narrativa e, também, ao sol astrológico, além de
antecipar uma visão delirante que Quaderna terá no último capítulo quando estiver,
juntamente com o cantador Lino Pedra-Verde, sob efeito do vinho da Pedra do
Reino, bebida que faz parte do ritual litúrgico de seu catolicismo sertanejo e cuja
receita tem propriedades alucinógenas:
101
Figura 51: 00:01:05 da abertura.
Finalmente, a última imagem da abertura traz o título da minissérie escrito no
“alfabeto sertanejo” que Suassuna compilou e publicou em 1974 na forma do álbum
intitulado Ferros do Cariri.
Figura 52: 00:01:10 da abertura.
Como afirma Bêla:
O logo cita a heráldica sertaneja estudada por Suassuna e apresentada no álbum Ferros do Cariri (1974): os ferros de marcar gado como um alfabeto. A isto, referencia-se a arte medieval,
102
elemento importantíssimo na citação de todo o visual da minissérie, criando um logo com personalidade híbrida e forte. (In: http://www.carlosbela.com/portfolio/motion/pedra-do-reino/)
Como pudemos observar, o Romance dialoga abertamente com a literatura de
cordel, base popular sobre a qual Suassuna procurou construir uma obra erudita de
acordo com sua proposta de atuação dentro do Movimento Armorial. Sua obra
remete ao cordel desde o título e as gravuras da capa e internas feitas por meio do
processo de xilogravura, até a divisão das partes, as quais não recebem o nome de
“capítulos” e “subcapítulos”, mas sim de “livros” e “folhetos”, respectivamente.
Similarmente, a minissérie dialoga com o cordel por manter alguns elementos
do Romance, tais como algumas das gravuras, e por apresentar os cantadores João
Melchíades e Lino Pedra-Verde atuando em cena.
Sua vinheta de abertura, por sua vez, busca dialogar menos com o cordel
(embora o faça) do que com os elementos internos à narrativa do Romance que
foram mantidos na minissérie, tais como as características das personagens e a
presença da heráldica, antecipando-os ao telespectador e cumprindo, assim, seu
papel.
2.2 Diálogos com a História
O Romance, bem como a minissérie, citam acontecimentos históricos
brasileiros e portugueses, tais como o surgimento do mito de Dom Sebastião,
algumas revoluções messiânicas ocorridas no Brasil ao longo do século XIX e
revoluções políticas do início do século XX como fazendo parte da história de vida
do narrador Pedro Dinis Ferreira Quaderna, de seu primo e sobrinho Sinésio e de
seus antepassados. Por esse motivo, é necessário que conheçamos esses
episódios a fim de percebermos as conotações que eles trazem ao modo de vida e
ao texto de Quaderna.
2.2.1 Sebastianismo e outros movimentos messiânicos
Os acontecimentos que relacionaremos com a narrativa do Romance e da
minissérie neste subcapítulo são o surgimento do mito de Dom Sebastião em
Portugal e sua transmissão para o Brasil; o movimento da Serra do Rodeador,
comandado por Silvestre José dos Santos; o embuste criado por João Antônio Vieira
dos Santos; o movimento da Pedra Bonita, comandado primeiramente por João
103
Ferreira e, depois, por Pedro Antônio Vieira dos Santos; e a Guerra de Canudos,
liderada por Antônio Conselheiro.
Segundo afirma Marcio Honorio de Godoy em seu livro Dom Sebastião no
Brasil (2005), alguns fatores concorreram para que o referido rei português se
tornasse um mito após seu desaparecimento em Alcácer-Quibir, no Marrocos, em 4
de agosto de 1578.
Um desses fatores remonta a um acontecimento antigo: o “Milagre de Ourique”,
que foi uma revelação que o rei Dom Afonso Henriques afirmava ter tido em 1139 de
que seria instaurado em Portugal o Quinto e último Império de Jesus Cristo na Terra
(GODOY, 2005, pp. 56-67).
Outro fator foi o fato de, durante o reinado de Dom João III, iniciado em 1521,
Portugal, que havia perdido grande parte de seus territórios colonizados e tido, como
consequência dessas perdas, o brilho de suas grandes glórias diminuído, ter corrido
o risco de ver seu trono tomado pela Espanha devido à falta de descendentes para a
linha de sucessão, uma vez que o rei e Dona Catarina perderam nove filhos
(GODOY, 2005, p. 16).
Um terceiro fator foi o fato de Dom Sebastião, que ao nascer havia recebido o
epíteto de “O Desejado” por ter sido esperado pela nação portuguesa durante muito
tempo, ter assumido a responsabilidade de lutar para defender a soberania de seu
reino. De acordo com Marcio Honorio de Godoy, “desde cedo o monarca já havia
tomado para si a ideia de efetivar os desejos da nação, não deixando dúvidas
quanto a sua vontade religiosa e guerreira de defender seu reino cristão, e a
cristandade do mundo todo” (2005, p. 39).
Assim, em 1578, Dom Sebastião empreendeu uma jornada a Alcácer Quibir, no
Marrocos, com a finalidade de dilatar a fé cristã, o que se daria, também, por meio
da colonização da Índia, do Brasil, de Angola e de Mina. Para que essa empreitada
fosse possível, teve que dar a ela ares de cruzada a fim de obter a bula papal,
quantia em dinheiro entregue pela Igreja a Portugal, fato que acabou por ligar de
forma ainda mais intensa sua imagem à da lenda do Milagre de Ourique. Em 4 de
agosto desse mesmo ano, desapareceu em meio à batalha que se travou entre os
portugueses e os mouros e passou a fomentar, no imaginário popular, a crença de
sua possível volta, a qual seria definitiva para o destino de Portugal como nação –
que não mais correria o risco de perder sua independência ao ser anexada à
Castela – e para todo o mundo, pois ele voltaria para instaurar o já mencionado
104
Quinto Império de Jesus Cristo na Terra (GODOY, 2005, pp. 50-54).
Após o desaparecimento de Dom Sebastião, cujo epíteto então passou de “O
Desejado” para “O Encoberto”, seu tio-avô Dom Henrique assumiu o trono, porém,
dois anos depois, faleceu, deixando a coroa nas mãos de Felipe II, rei de Castela,
que anexou Portugal a seus territórios (GODOY, 2005, p. 18).
Com essa perda de soberania, o povo português passou a ansiar ainda mais
pela volta do Encoberto, o que propiciou o surgimento de quatro falsos reis que
foram confundidos com ele e venerados até serem descobertos e terem seus
embustes desmantelados: em julho de 1584, um jovem da Vila de Penamacor
passou-se pelo monarca e recebeu o nome de rei de Penamacor; em 1585, Mateus
Álvares, filho de um pedreiro açoriano, ficou conhecido como rei de Ericeira; em
1595, Gabriel Espinosa, um pasteleiro de Madrigal, foi ajudado por um padre e por
uma sobrinha de Felipe II na tentativa de se fazer passar por Dom Sebastião e esse
episódio recebeu o nome de “caso do pasteleiro de Madrigal”; em 1596, o calabrês
Marco Túlio Catizone formou uma “Corte” na cidade de Veneza dizendo ser Dom
Sebastião e foi apoiado por grandes personalidades de Portugal na tentativa de
recuperar o reino, que permanecia anexado a Castela. Quando descoberto, alguns
anos mais tarde, teve sua corte paralela desmontada e foi condenado à morte
(GODOY, 2005, pp. 70-80).
Em 1603, com a publicação das Trovas do Bandarra, livro composto por trovas
proféticas que anunciavam a volta de Dom Sebastião como rei messiânico, o
Encoberto entrou definitivamente no panteão de mitos portugueses e, em 20 de
janeiro de 1634, foi mencionado no sermão proferido pelo padre Antônio Vieira, na
Bahia. Ao realizar jogos com as palavras “encoberto” e “descoberto”, Vieira fez
claras alusões a Dom Sebastião como sendo a esperança de defesa do reino
português, porém, alguns anos mais tarde, quando Portugal recuperou a coroa com
Dom João IV, o padre tornou-se um joanista, identificando esse rei como messiânico,
e não Dom Sebastião (GODOY, 2005, pp. 80-95).
Entretanto, apesar de Portugal ter reavido o trono, a volta do Encoberto
continuava sendo esperada: em 1647, Luzia de Jesus, uma “monja doméstica” foi
deportada para o Brasil pela Santa Inquisição. Ela afirmava ter visões com a volta do
rei Encoberto e, segundo Marcio Honorio de Godoy, “talvez sua presença no Brasil
indique um possível caminho de transmissão do mito de Dom Sebastião à colônia
portuguesa” (2005, p. 19), mito esse que foi a base para os acontecimentos da Serra
105
do Rodeador, da Pedra Bonita e, também, de Canudos.
Em 1820, na Serra do Rodeador, região localizada no sertão de Pernambuco,
um movimento popular formou-se sob a articulação do “profeta” Silvestre José dos
Santos como um modo de questionar o sistema vigente com relação ao problema da
posse de terra, à carestia, ao sepultamento de ricos dentro dos templos católicos e
ao sistema de recrutamento militar (CABRAL, 2004, p. 20). O líder do movimento,
que envolveu em torno de quatrocentas pessoas, criou uma cidade que passou a ser
chamada de Cidade do Paraíso Terrestre e dizia receber mensagens sobre o retorno
do rei Dom Sebastião para instaurar um mundo de igualdade. Esse movimento foi
esmagado por tropas oficiais no mesmo ano em que surgiu, tendo muitos dos seus
integrantes mortos e presos. Silvestre, entretanto, conseguiu escapar e nunca mais
se soube de seu paradeiro (GODOY, 2005, p. 20).
Dezesseis anos mais tarde, em 1836, João Antônio dos Santos, morador de
Vila Bela, também no sertão de Pernambuco, estabeleceu-se na região da Pedra
Bonita e iniciou um movimento popular ao afirmar que Dom Sebastião teria seu reino
desencantado e traria igualdade para todos na Terra. Pedra Bonita era caracterizada
por um complexo de pedras, das quais se destacavam duas que eram tidas como as
torres do castelo do rei encantado. Nos dias 14, 15 e 16 de maio de 1838, segundo
Marcio Honorio de Godoy, o movimento “conheceu um final trágico. A base das duas
torres de granito foi lavada com o sangue de 30 crianças, 12 homens, 11 mulheres e
14 cães” a mando de um de seus líderes, João Ferreira, o qual pregava que o
desencantamento de Dom Sebastião e de seu exército salvador só se daria com
esses sacrifícios. Pedro Antônio, outro chefe do grupo, percebendo que seu
companheiro havia se deixado levar por uma obsessão doentia, matou-o e levou os
integrantes para outro local. Contudo, grandes fazendeiros locais e a polícia oficial,
que havia tempo já planejavam acabar com o movimento, atacaram e dizimaram
praticamente toda a população do grupo (GODOY, 2005, p. 20).
José Lins do Rego publicou o romance Pedra Bonita em 1938, no qual tratou
ficcionalmente dos acontecimentos ocorridos no local. Nesse romance, o narrador
criado por José Lins do Rego conta a história dos Vieiras, família que traiu os
Ferreiras em 1838 ao guiar a polícia até seu esconderijo, possibilitando, assim, que
as autoridades pusessem um fim na sua condição de profetas ao matá-los e
dispersar a multidão que os seguia. Os descendentes dos Vieiras retratados no
romance sentem sobre si o peso da traição que seus antepassados cometeram um
106
século antes, pois creem que o profeta traído por seu familiar fora mesmo um santo,
devendo eles pagar pelo erro de tê-lo entregado à morte e impossibilitado a
“desencantação” da lagoa, a qual instauraria um mundo de felicidade e igualdade
para todos. Eles se sentem, então, na obrigação de apoiar um novo profeta que
surge nas Pedras e vão para junto dele.
No Romance d’A Pedra do Reino, como veremos adiante, os mesmos Vieiras
são citados, porém, não é feita nenhuma referência direta a essa obra de José Lins
do Rego porque, apesar de ter sido escrito por Ariano Suassuna entre 1958 e 1971,
o Romance tem seu universo ficcional instalado em 1938, ano de publicação de
Pedra Bonita e ano em que Quaderna encontrava-se preso. Dessa forma, não seria
plausível para a verossimilhança do Romance que Quaderna mencionasse José Lins
do Rego, pois no tempo da narração, Pedra Bonita provavelmente ainda não era
conhecido. Além disso, Pedra Bonita termina com o relato de que há um novo
profeta reunindo multidões nas pedras no mesmo momento em que a narrativa de
Quaderna se encerra, então, talvez na continuação que Suassuna pretendia dar ao
Romance, ele fosse entrelaçar a história de Pedra Bonita à narrativa de Quaderna.
Mais de meio século depois de João Antônio dos Santos ter-se estabelecido
em Pedra Bonita, Antônio Vicente Maciel, que passou a ser conhecido como Antônio
Conselheiro, estabeleceu a comunidade de Canudos em uma fazenda abandonada,
às margens do rio Vaza-Barris, no ano de 1893, a qual “foi resultado de vinte anos
de peregrinação” (MONTEIRO, 2009). A comunidade sofreu ataques contínuos do
exército da República entre novembro de 1896 e outubro de 1897 devido ao alto
número de famílias que “abandonavam seu trabalho nas fazendas para seguir o
Conselheiro”, número este que se estima estar entre 10 e 35 mil pessoas, “o que
provoca uma escassez de mão de obra nas fazendas para descontentamento de
muitos coronéis da região” (MONTEIRO, 2009), e também devido ao fato de ser
considerada uma ameaça à República, uma vez que lá a ordem vigente não se
aplicava:
A República recém proclamada enfrentara sucessivas derrotas de uma comunidade de sertanejos que, no sertão da Bahia fundara sua aldeia, suas próprias leis e sua própria ordem. Em Belo Monte a polícia não entrava, não se pagavam impostos e a palavra do Conselheiro bastava para estabelecer a ordem e as regras de convivência. Era um território que não estava submetido à lógica instituída pela República. Por isso mesmo, uma ameaça. A comunidade é identificada pelos homens da República como local de
107
desordem, de atavismo, um atraso que era preciso combater. (MONTEIRO, 2009)
Canudos foi completamente destruída, incendiada, tendo muitos de seus
participantes sido degolados, e entrou para a história ao ser imortalizada pela obra
Os Sertões, de Euclides da Cunha, publicada em 1902.
Tanto no Romance quanto na minissérie, o mito de Dom Sebastião e os
episódios da Serra do Rodeador, da Pedra Bonita e de Canudos são mencionados
pelo narrador Quaderna com os mais diversos propósitos.
O primeiro deles, o mito de Dom Sebastião, aparece no Romance quando esse
rei é considerado por Samuel Wandernes, um dos mestres de Quaderna, como
sendo ancestral de sua família por parte dos Garcia-Barretto, conforme podemos
depreender do seguinte fragmento de Suassuna:
Para a feitura deste “livro de tradição e brasilidade”, [Samuel] dedicara-se a “pesquisas genealógicas e heráldicas sobre as famílias fidalgas de Pernambuco”. Topara então “com a estranha história da família Garcia-Barretto [...]. A versão que ele apresentava dessa história era, porém, diferente da nossa, se bem que ainda “mais estranha e legendária”. Como todos sabem, foi a 4 de Agosto de 1578 que os Portugueses, chefiados por El-Rei Dom Sebastião, foram derrotados pelos Mouros, comandados por El-Rei Molei-Moluco, no norte da África. Foi uma batalha sangrenta, com morte de Reis e de muitos Fidalgos, sendo que Dom Sebastião, “moço, casto e guerreiro como o Santo que lhe deu nome, Cruzado e cavaleiro medieval extraviado na Renascença ibérica” – como dizia Samuel –, tinha sido dado como morto na batalha. Essa morte deixara em Portugal e no Brasil “uma legenda de sangue, violência, religião e saudade, típica da Raça”. E como, por causa dela, Filipe II estabelecesse sobre nós sua “autocracia teocrática”, as aspirações brasileiras e portuguesas pela Restauração se corporificaram no sebastianismo. Corria entre o Povo, primeiro em Portugal e depois no Brasil, que Dom Sebastião não morrera: encantara-se e voltaria para o Sertão, um dia, pelo Mar, numa Nau, entre nevoeiros, para restaurar o Reino e instaurar definitivamente a felicidade do Povo. Ora, tinha sido exatamente nos fins de 1578 que aportara a Olinda aquele misterioso e jovem Fidalgo, Dom Sebastião Barretto, tronco e origem da família Garcia-Barretto a que nós pertencíamos. Dizia Samuel que, de acordo com suas pesquisas “histórico-poéticas”, esse fidalgo era o próprio Rei Dom Sebastião, que escapara à morte na batalha e, numa Nau, viera para o Brasil, incógnito, disposto a recuperar aqui, “numa nova fase de ascese guerreira e mística, sua honra de Soldado e suas perdidas esporas de Cavaleiro”. Esse é que seria o motivo da constância do nome de Sebastião em todos os filhos varões da família Garcia-Barretto. (SUASSUNA, 2012, pp. 166-167)
Essa suposição de Samuel faz com que Quaderna se orgulhe, fomentando em
108
seu imaginário a ideia de que será possível que alguém de sua família – ele próprio
ou seu primo Sinésio – realize uma insurreição a favor do povo sertanejo por ter
sangue guerreiro e real, sendo, portanto, segundo seu modo de pensar, legítimo
para tanto.
Na minissérie, Dom Sebastião também seria um ancestral de Quaderna
segundo Samuel, que, exatamente como no Romance, chega à fazenda dos Garcia-
Barrettos contando, de modo exaltado, suas possíveis descobertas genealógicas e
oferecendo seus serviços.
Outras três referências a Dom Sebastião são feitas na minissérie: a primeira e
mais importante para a narrativa é feita pelo bisavô de Quaderna; a segunda, por
Luís do Triângulo; e a última, pelo próprio Samuel Wandernes.
Dos 00:19:30 aos 00:23:53 do primeiro capítulo, o bisavô de Quaderna, Dom
João Ferreira Quaderna, incita uma multidão a se sacrificar a fim de possibilitar o
desencantamento de Dom Sebastião, que, segundo ele, apareceu-lhe em sonho
para pedir que o povo provasse sua fé lavando com sangue as duas torres de sua
catedral (as pedras do reino) para que ele pudesse retornar à vida.
Figura 53: Aos 00:20:52 do primeiro capítulo, o Rei Dom João Ferreira Quaderna incita uma multidão a se sacrificar para desencantar Dom Sebastião.
Aos 00:33:11 do primeiro capítulo, Luís do Triângulo aponta a Quaderna a
Lagoa do Vieira, onde diziam que Dom Sebastião aparecia. Nessa lagoa, em
seguida, ocorrem acontecimentos fatídicos para o narrador: ele encontra a coroa que
foi de seu bisavô e uma pedra com o desenho de um escorpião, objetos
109
considerados sagrados por ele, que é astrólogo (e, por isso, atribui importância à
imagem do escorpião) e em cujo bisavô se inspira para tornar-se rei do Brasil.
Figura 54: Aos 00:33:56 do primeiro capítulo, Luís do Triângulo observa Quaderna se aproximar da Lagoa do Vieira, sobre a qual ele acabara de lhe falar.
No terceiro capítulo, Samuel, ao duelar com Clemente, grita que sua luta será
por Dom Sebastião, cavaleiro cruzado e donzel, em resposta ao grito do adversário,
que dizia lutar pela Revolução Sertaneja e pelo Socialismo.
Figura 55: Aos 00:10:03 do terceiro capítulo, Samuel brada por Dom Sebastião em seu
duelo contra Clemente.
110
A importância da presença do mito de Dom Sebastião tanto no Romance
quanto na minissérie reside na crença de Quaderna de que, assim como seu bisavô
paterno, ele é também um rei capaz de reinstaurar uma monarquia no Brasil com o
auxílio do rei português, o qual está reencarnado em seu primo e sobrinho Sinésio.
O narrador, então, é um sebastianista, mas sua crença em Dom Sebastião não é um
fim por si só, e sim o meio pelo qual ele alcançará o objetivo de tornar-se ele próprio
rei do Brasil, acabando com o sistema republicano.
Silvestre, mentor do episódio da Serra do Rodeador, no Romance torna-se
personagem e tem seu fim modificado: é chamado de Dom Silvestre José dos
Santos ou Dom Silvestre I, O Rei do Rodeador, e é primo e cunhado do trisavô de
Quaderna, Dom José Maria Ferreira-Quaderna. Como personagem, foi o primeiro
ancestral do narrador a “subir ao trono” e, por isso, sua história é narrada no Folheto
VI, intitulado “O Primeiro Império”:
[...] De fato, porém, nossa régia história começa antes [da Pedra do Reino], noutra Pedra sagrada, a “Serra do Rodeador”, onde, em 1819, aparecem três infantes sertanejos. O primeiro, Dom Silvestre José dos Santos, que morreu sem descendência, foi o primeiro varão de minha família a subir ao trono, com o nome de Dom Silvestre I, O Rei do Rodeador. O segundo era seu irmão, Dom Gonçalo José Vieira dos Santos. O terceiro foi meu trisavô, Dom José Maria Ferreira-Quaderna, primo-legítimo e cunhado dos outros dois, por ter se casado com a irmã deles [...], em cujo ventre seria gerado meu bisavô, Dom João Ferreira-Quaderna, O Execrável. O reinado de Dom Silvestre I, no Rodeador, foi curto, mas já tinha todas as características tradicionais da nossa Dinastia. Seu trono era uma Pedra sertaneja, Catedral, Fortaleza e Castelo. Dali, ele pregava a ressurreição daquele Rei antigo, sangrento, casto e sem mancha, que foi Dom Sebastião, O Desejado. Pregava também a Revolução, com a degola dos poderosos e a instauração de novo Reino, com o Povo no poder. O consagrado Acadêmico pernambucano, Doutor Pereira da Costa, fez sua Crônica, que não transcrevo por economia retórica. Limito-me a informar que, temerosos os proprietários das redondezas pela propagação de Reino tão revolucionário, fizeram apelo ao Governador Luís do Rego, que mandou para lá uma tropa, comandada pelo Marechal Luís Antônio Salazar Moscoso. Incendiaram o Arraial, morrendo nas chamas mulheres e crianças, enquanto os homens que escaparam ao incêndio e à fuzilaria foram passados a fio de espada. (SUASSUNA, 2012, pp. 68-69)
Esse episódio tem importância na vida do narrador por ter contribuído para o
surgimento de suas ambições régias. Ele mesmo afirma: “Era assim que, aos
poucos, o Trono da minha família ia empeçonhando e glorificando meu sangue, até
que eu chegasse a ser ‘o prodígio e encantamento’ que sou hoje” (SUASSUNA,
111
2012, p. 69) e “Tudo isso ia sendo pacientemente estudado e entendido por mim
que, à medida que me punha adulto, ia guardando tudo isso em meu coração, para
quando se completasse, de 1935 a 1938, o Século da Pedra do Reino”
(SUASSUNA, 2012, p. 71).
O episódio protagonizado por Silvestre, isto é, o “Primeiro Império”, é omitido
na minissérie. No entanto, sua omissão não traz perda para o fio narrativo, uma vez
que o episódio do terceiro reinado cumpre, na minissérie, a função que o primeiro
cumpre no Romance: a de contribuir para que Quaderna desenvolvesse o sonho de
ser Rei do Brasil.
O episódio da Pedra Bonita, no Romance, está relacionado à destruição do
arraial da Serra do Rodeador, quando o irmão, a irmã e o cunhado de Dom Silvestre
I emigraram para o Sertão do Pajeú a fim de preservar suas vidas. O sobrinho de
Silvestre, Dom João Antônio Vieira dos Santos, filho de Dom Gonçalo José,
inspirado pelas façanhas do tio, inflamou-se e proclamou-se rei, subindo ao trono
com o nome de Dom João I, O Precursor, episódio que é narrado no Folheto VII,
intitulado “O Segundo Império” por meio de uma citação que Quaderna faz do
historiador Antônio Áttico de Souza Leite:
Conta, lá, o genial Antônio Áttico de Souza Leite: “Tempestuoso e medonho, corria o ano de 1835. [...] Daí para os começos de 1836, um mameluco de nome João Antônio dos Santos, morador do termo de Vila Bela da Serra Talhada, munido de duas pedrinhas mais ou menos formosas que ele mostrava misteriosamente, dizia aos incautos habitantes daquele lugar serem elas dois brilhantes finíssimos, tirados por ele próprio de uma Mina encantada que lhe fora revelada. Inspirado num velho folheto, do qual nunca se apartava, e que encerrava um desses contos ou lendas, que andavam muito em voga, acerca do misterioso desaparecimento de El-Rei Dom Sebastião, na Batalha de Alcácer-Quibir, em África, e de sua esperada e quase infalível ressurreição, tratou de propalar pela população daquele e dos vizinhos distritos, que estava sendo conduzido todos os dias, por El-Rei Dom Sebastião, a um sítio pouco distante do lugar de sua residência, no qual mostrava-lhe El-Rei, além de uma Lagoa encantada, de cuja margem extraíra ele aqueles e outros brilhantes, duas belíssimas Torres, de um Templo já meio visível, que seria, por certo, a Catedral do Reino, na época pouco distante da sua Restauração. Assim discorrendo, e nunca se esquecendo de mostrar, entre outros, um tópico do folheto em que o Visionário escritor, improvisado em Profeta, ensinava que quando João se casasse com Maria, aquele Reino se desencantaria, conseguiu ele, graças à ignorância da população e à bem conhecida tendência que o espírito humano tem para abraçar o maravilhoso e o fantástico, não só realizar o seu casamento com uma interessante rapariga de nome Maria – que sempre, até ali, lhe fora negada –
112
como obter, por empréstimo, de muitos Fazendeiros do lugar, bois, cavalos e dinheiro, em porção não pequena, com a onerosa condição de restituir tudo em muitos dobros, logo que se operasse o pretenso desencantamento do misterioso Reino. Desde o começo de sua prédica, auxiliavam-no seu próprio Pai, Gonçalo José Vieira dos Santos, seu irmão Pedro Antônio, seus tios e parentes José Joaquim Vieira, Manuel Vieira, José Vieira, Carlos Vieira, José-Maria Ferreira-Quaderna e João Pilé Vieira Gomes, os quais, constituindo, por assim dizer, o seu Apostolado, iam dar testemunho das suas riquezas e fazer repercutir os seus engenhosos embustes no meio das populações ignorantes do Piancó, do Cariri, Riacho do Navio e margens do Rio São Francisco. [...] Essas e outras considerações moveram o Padre Antônio Gonçalves de Lima a reclamar a presença do missionário Padre Francisco José Corrêa de Albuquerque naquele distrito. [...] Depois de entregar-lhe as duas pedras – que estavam longe de ser brilhantes – e de publicamente confessar os seus embustes, prometeu-lhe retirar-se do lugar, o que pôs logo em execução, procurando os lados do Rio do Peixe, Sertão da Paraíba, e passando dali aos do Sertão dos Inhamuns, no Ceará.” (SUASSUNA, 2012, pp. 72-73)
Souza Leite narra esse episódio de maneira a deixar transparecer o julgamento
negativo que faz sobre João Antônio dos Santos e seus parentes, que o ajudavam a
levar adiante suas visões, as quais chama de “embustes”. Logo no início de sua
narração, ele emprega os adjetivos negativos “tempestuoso” e medonho” para
referir-se ao ano em que se passaram os acontecimentos. Em seguida, questiona a
crença na volta do Rei Dom Sebastião de Portugal ao chamar sua ressurreição de
“esperada e quase infalível” (grifo nosso). Além disso, expõe as estratégias – que
ele crê serem de manipulação – empregadas por João Antônio para convencer a
população de que havia sido designado por Dom Sebastião para desencantar o seu
reino. Ele diz que João Antônio, “inspirado num velho folheto [...] que encerrava um
desses contos ou lendas, que andavam muito em voga, acerca do misterioso
desaparecimento de El-Rei Dom Sebastião”, “tratou de propalar pela população
daquele e dos vizinhos distritos, que estava sendo conduzido todos os dias, por El-
Rei Dom Sebastião” (grifos nossos). Afirma, ainda, que, segundo João, “mostrava-
lhe El-Rei, além de uma Lagoa encantada, de cuja margem extraíra ele aqueles e
outros brilhantes, duas belíssimas Torres, de um Templo já meio visível” (grifos
nossos) e que fazia de seus parentes o seu “Apostolado”, que “iam dar
testemunho das suas riquezas e fazer repercutir os seus engenhosos embustes
no meio das populações ignorantes do Piancó, do Cariri, Riacho do Navio e
margens do Rio São Francisco” (grifos nossos). Para Souza Leite, João tinha
apenas a intenção de se aproveitar da boa-fé e mesmo da ambição das pessoas
113
para obter algumas vantagens utilizando-se da imagem de profeta que criara para si.
Esse posicionamento fica claro quando o cronista cita que “nunca se esquecendo
de mostrar, entre outros, um tópico do folheto em que [...] ensinava que quando
João se casasse com Maria, aquele Reino se desencantaria” (primeiro grifo nosso),
conseguiu casar-se com uma moça chamada Maria e também “obter, por
empréstimo, de muitos Fazendeiros do lugar, bois, cavalos e dinheiro, em porção
não pequena, com a onerosa condição de restituir tudo em muitos dobros, logo que
se operasse o pretenso desencantamento do misterioso Reino” (último grifo
nosso).
Quaderna, entretanto, usa a narração de Souza Leite como forma de manipular
seus seguidores e leitores a acreditar nas glórias de seus ancestrais: ele diz
considerá-la honrosa para sua família, pois afirma que o fato de eles serem
denominados “reis” num texto da historiografia oficial, ainda que por ironia do
escritor, consiste numa prova incontestável de que seu reinado realmente existiu.
Após o segundo reinado da família de Quaderna acabar com a descoberta de
um embuste e a partida do rei embusteiro, seu cunhado – bisavô do narrador – com
o nome de Dom João II, regressou ao Pajeú com suas duas mulheres, assumiu o
trono e iniciou o “Terceiro Império” ao redor das pedras (SUASSUNA, 2012, p. 75):
Ora, depois de seduzir as duas Infantas [Josefa e Isabel], meu bisavô viajara com elas para o Sertão da Paraíba, ainda no reinado de Dom João I. Aí, nas bandas de Catolé do Rocha, foi encontrá-lo, depois de sua abdicação, seu cunhado e primo, o agora Prior do Crato, Dom João Antônio, irmão das moças, o qual lhe contou todas as grandezas e cavalarias, quimeras e encantamentos, que realizara no Pajeú. Disse-lhe que, apesar de ter abdicado, deixara lá, bem plantados, os alicerces e fundamentos da Pedra do Reino do Sertão, com a Lagoa encantada dos diamantes, as minas de prata e as duas torres do Castelo, Catedral e Fortaleza da nossa Raça. Consta mesmo que ele teria dito ao cunhado: “João! A Pedra do Reino será o fundamento do Império do Brasil! Se assim for, põe a Coroa sobre a tua cabeça, antes que outro Aventureiro lance mão dela!” E então, ali mesmo, com os direitos proféticos de Prior, que tinha, sagrou, como novo Rei, seu cunhado e bisavô meu [...]. Sobre tudo isso, existe um papel do Governo, coisa oficial e portanto indiscutível. [...] Nesse documento fica provado que meu bisavô, coroado Rei, foi quem teve, realmente, a ideia sagrada e gloriosa de banhar as torres do nosso Castelo de Pedra com o sangue dos inocentes. É por isso que o Terceiro Império é que realmente selou o sangue dos Quadernas com o estigma indelével da realeza. (SUASSUNA, 2012, pp. 74-75)
Nesse trecho, Quaderna utiliza-se da intertextualidade tal como é entendida por
Kristeva e Genette – como a presença de um texto em outro – para explicar como
114
seu bisavô teria sido levado a sagrar-se rei da Pedra do Reino: seu cunhado e
primo, protagonista do episódio da Serra do Rodeador, incentiva-o a continuar o
projeto do desencantamento do qual ele próprio havia sido obrigado a abdicar. As
palavras que ele usa são as mesmas que, segundo a historiografia oficial, Dom João
VI disse ao se despedir do filho Dom Pedro I em 1821, quando voltava a Portugal.
Isso faz parte da estratégia de Quaderna de atribuir a membros de sua família frases
conhecidas pelo discurso oficial como tendo sido ditas pelos reis da Casa de
Bragança com o objetivo de calcar sua presença na realidade daqueles que o
escutam e leem e, assim, engrandecê-la.
Para engrandecer sua família, ele se utiliza, ainda, de ironia quando diz que o
ritual de sacrifício de homens, mulheres, crianças e animais foi proveniente de uma
ideia “sagrada e gloriosa” que seu bisavô teve, contrariando a historiografia, que
denomina esse episódio pelo adjetivo “sangrento”, bem como por outros adjetivos de
sentido extremamente negativo, tais como “horrendo” e “terrível”.
A matança promovida por João Ferreira-Quaderna causou a revolta de seu
cunhado Pedro Antônio, principalmente porque suas irmãs foram também mortas, e,
então, ele inflamou a multidão ao dizer que o sangue de João Ferreira era o único
que faltava para que Dom Sebastião desencantasse, levando-a a assassiná-lo.
Com isso, Pedro Antônio tornou-se Dom Pedro I – sendo ele o verdadeiro,
segundo Quaderna, e não o Dom Pedro I da Casa de Bragança, que é reconhecido
pela historiografia oficial – e iniciou o Quarto Império, que durou apenas um dia, pois
foi atacado pela tropa do Comandante Manuel Pereira, composta por trinta e seis
homens:
O Comandande Manuel Pereira passou a noite de 17 de Maio reunindo sua tropa de Cavaleiros, de modo que já se achava em marcha para a “Serra do Reino” quando “a aurora do dia 18 de Maio começava a derramar sua roseada luz sobre as águas prateadas do Riacho Belém”, como diz Souza Leite em seu puro estilo epopéico. E ele continua, contando como a tropa, guiada pelo traidor [José Vieira Gomes], descobriu o melhor caminho de acesso, galgando a Serra, passando pelos espinheiros e cactos espinhosos e por fim cruzando um altíssimo capinzal: “No momento, porém, em que os Pereiras, com os soldados que os seguiam, se aproximavam das capoeiras e se dirigiam para aqueles Umbuzeiros, acharam-se face a face com El-Rei Dom Pedro Antônio, o qual estava com uma grande Coroa na cabeça, acompanhado de um séquito numeroso de mulheres, meninos e de homens armados de facões e cacetes. ‘Não os tememos! Acudam-nos as tropas do nosso Reino! Viva El-Rei Dom Sebastião!’ – assim exclamou Pedro Antônio, agitando no ar a sua
115
Coroa e arremessando-se furioso, com todos os seus, sobre aquele punhado de Cavaleiros. Foi horrível o que resultou do encontro das duas Forças: sobre o Campo do combate ficaram inúmeros cadáveres, sendo um o do Rei Pedro Antônio, com muitos dos seus sectários, e os de Cipriano e Alexandre Pereira. O Comandante Manuel Pereira seguiu pessoalmente com as mulheres e filhos dos criminosos ali apreendidos. Apenas chegou em sua fazenda Belém, enviou os presos ao Prefeito de Flores, Francisco Barbosa Nogueira Paes. Este soltou as mulheres, distribuiu as crianças e passou os delinqüentes à disposição do Juiz Criminal [...].” (SUASSUNA, 2012, pp. 81-82)
Com o fim do Quarto Império, encerra-se no Romance a narração do fato
histórico ocorrido na Pedra Bonita. Ele é importante porque não é tomado, por
Quaderna, da mesma maneira que o é por Souza Leite. Para o narrador do
Romance, o episódio não é visto como um acontecimento isolado causado por
pessoas comuns que estavam fora de si devido às más condições de vida que
tinham, mas sim como um acontecimento imprescindível para a história do Brasil
ocasionado por verdadeiros reis, que é como ele vê seus ancestrais. Essa crença
em ser descendente de reis e príncipes brasileiros determina seu modo de ver o
mundo no presente, bem como suas ações.
Na minissérie, é retratado apenas o reinado do bisavô de Quaderna, o “Terceiro
Império” e o massacre promovido por ele na Pedra Bonita. Ao “Segundo Império” é
feita apenas uma referência espacial: menciona-se a Lagoa do Vieira como local de
ressurgimento de Dom Sebastião e do aparecimento de objetos preciosos (como na
época do comando de João Antônio Vieira dos Santos). Ao “Quarto Império” não se
faz menção alguma.
116
Figura 56: Aos 00:35:30 do primeiro capítulo, Quaderna encontra, na Lagoa do Vieira, uma
pedra oval com manchas que formavam a imagem de um escorpião.
Outro episódio de cunho sebastianista mencionado no Romance é o de
Canudos. Antônio Conselheiro, seu líder e mentor, é citado pela primeira vez na
parte do paratexto que contém a dedicatória do livro, que Ariano Suassuna faz a ele
e a algumas outras pessoas, a quem se refere como “Santos, poetas, mártires,
profetas e guerreiros do meu mundo mítico do Sertão” (SUASSUNA, 2012, p. 5).
Aparece novamente como autor de uma das epígrafes:
“Quem não sabe que o digno Príncipe, o senhor Dom Pedro III, tem poder legitimamente constituído por Deus para governar o Brasil? Das ondas do mar Dom Sebastião sairá com todo o seu exército. Tira a todos no fio da Espada deste papel da República e o sangue há de ir até a junta grossa.”
após a qual é-lhe atribuído o título de “Dom Antônio Conselheiro, profeta e regente
do Império do Belo-Monte de Canudos, Sertão da Bahia, 1897” (SUASSUNA. 2012,
p. 7).
O episódio em si é mencionado várias vezes ao longo do livro (Folhetos VIII,
XII, XXXVI, L, LXXI, LXXIII, LXXVIII, LXXXII, LXXXIII e LXXXIV), em cada uma das
quais o narrador apresenta informações diferentes a respeito do acontecimento.
No Folheto VIII, Quaderna cita uma frase de Antônio Conselheiro, “e o sangue
foi até a junta grossa”, para descrever como foi o Terceiro Império de sua família (p.
76). Nos Folhetos XII e XXXVI, menciona o fato de seu padrinho de crisma, o
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cantador João Melchíades, ter lutado na Guerra de Canudos sob as ordens do
Tenente-Coronel Dantas Barretto (p. 89 e p. 233). No Folheto L, durante o inquérito,
Quaderna cita Canudos como tendo sido um dos movimentos da “revolução
sertaneja do Brasil, no século XIX” (p. 354). No Folhetos LXXI e LXXIII, o narrador
explica que, durante a adolescência, tomou conhecimento dos escritos de Antônio
Conselheiro (p. 543). Ainda no Folheto LXXIII, diz que evocava a imagem de seu tio
e padrinho quando pensava no episódio de Canudos (p. 560) e afirma que Euclydes
da Cunha viu o Conselheiro morrer de jejum e de um ferimento de bala, mas o viu,
também, numa “viração”, “transfigurado e exaltado, ressurreto” (p. 566). No Folheto
LXXVIII, é Lino Pedra-Verde quem menciona Canudos, bem como Princesa, a Serra
do Rodeador e a Pedra do Reino como tendo sido “um sítio da molesta, um cerco
danado, uma Tróia só” (p. 619).
No Folheto LXXXII, aparece a mais importante das informações apresentadas,
que diz respeito à interpretação bastante singular que é dada ao fato histórico por
parte do narrador e de seu discípulo e amigo Lino Pedra-Verde. Nesse folheto,
chamado “A Demanda do Sangral”, Lino Pedra-Verde faz afirmações que denunciam
a crença dele próprio e de seu mestre em que Sinésio seja a reencarnação de Dom
Sebastião, o qual apareceu a Antônio Conselheiro em Canudos e, antes disso, aos
quatro reis da família de Quaderna. O cantador mistura dados históricos a suas
crenças religiosas e dá a entender que vários personagens, para ele, viveram e
lutaram no sertão brasileiro. Samuel considera sua interpretação um erro, mas ele
repele a versão que o outro tenta convencê-lo a aceitar:
[...] Quaderna é homem monárquico, profético e astrológico, e pode muito bem explicar ao senhor que o nosso Donzelo da pedra sagrada é o mesmo Prinspe da Bandeira do Divino e da Pedra do Reino do Sertão. [...] Nosso Prinspe apareceu na Serra do Rodeador, no tempo do ronca, no tempo de Dom João Pamparra e de Dom Pedro Cipó-Pau. Estava escondido na Casa da Pedra de onde a Santa falava, no soterranho! O nome de nosso Prinspe varia, ora é Dom Sebastião, ora é São Sebastião, conforme a necessidade! Ali, na Serra do Rodeador, mataram o nosso Prinspe e mataram também o Profeta dele, Silvestre José dos Santos, o homem dos santos, também chamado de Mestre Quiou, O Enviado. [...] Por exemplo: eu sei, de fonte segura, que, na Pedra do Reino, mataram de novo o nosso Prinspe, que estava no Sacrário, trancado, escondido e encoberto pelo encantamento! [...] Aí, o nosso Prinspe morreu de novo. Mas ressuscitou outra vez, agora no Império do Belo-Monte de Canudos, em 1897, já no tempo do reinado do nosso Dom Pedro III, mais conhecido como Pedro Justino Quaderna, pai aqui do nosso Dom Pedro IV! É por isso que, no Belo-Monte de
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Canudos, o nosso santo Conselheiro dizia: Quem não sabe que o digno Príncipe, o Senhor Dom Pedro III, tem poder legitimamente constituído por Deus para governar o Brasil? O Pessoal pensava que ele estava falando era do filho de Dom Pedro II, mas como podia ser isso se Dom Pedro II não tinha filho? É claro: o Conselheiro estava falando era do nosso Dom Pedro Justino Quaderna, porque no Reino é sempre assim que as coisas se passam: é um Rei castanho, no seu alazão, servindo de Profeta e sustança para o Prinspe-do-Cavalo-Branco! [...] O certo é que, ganha aqui, fode-se ali, terminaram matando de novo o nosso Prinspe! Mas aí chegava o nosso tempo e a vez desse Cariri velho do inferno das pedras! E apareceu o nosso velho Rei, Dom Pedro Sebastião, e lá ele chamava para morar com ele o nosso Dom Pedro III! E lá Dom Pedro Justino se casava com Dona Maria Sulpícia, e lá nascia o nosso Dinis, o nosso Dom Pedro IV! E era tudo esperando o nascimento do Prinspe, porque, como Dom Pedro III tinha explicado no Almanaque do Cariri, Dom Pedro Sebastião Garcia-Barretto era o mesmo Dom Sebastião da Pedra do Reino, era o mesmo que matou o Porco para libertar a Onça, na África! (SUASSUNA, 2012, pp. 696-699)
Lino Pedra-Verde, como discípulo de Quaderna, parte do pressuposto de que
seu mestre é homem “monárquico, profético e astrológico” e que, portanto, sua
palavra é digna de confiança, pois contém em si a verdade dos fatos. Assim, em seu
discurso reverberam as palavras de Quaderna e as crenças difundidas pelo seu
Catolicismo Sertanejo.
O cantador afirma que o “Prinspe” (Sebastião/Sinésio) esteve sempre
encoberto, manifestando-se ao povo apenas através de seus “profetas” de cada
época e alega saber de “fonte segura” que mataram o “Prinspe” na Serra do
Rodeador – quando Silvestre era seu profeta – e que ele ressuscitou mais tarde, na
Pedra do Reino – quando João Ferreira Quaderna profetizava seu retorno – sendo
novamente morto para mais uma vez ressuscitar em Canudos – em que era Antônio
Conselheiro quem pregava seu desencantamento. Finalmente, em 1935, época em
que Lino considera Quaderna como o profeta do “Prinspe”, ele volta a ressuscitar na
figura de Sinésio após supostamente ter sido morto, em 1932, pelos raptores do
rapaz e assassinos de seu pai.
Ainda, percebe-se a filiação de Lino ao Catolicismo Sertanejo e ao pensamento
de Quaderna a respeito de seus ancestrais quando ele exalta o mestre como sendo
o filho do Dom Pedro III a quem Antônio Conselheiro se referiu dizendo ter “poder
legitimamente constituído por Deus para governar o Brasil” (grifo do autor). A
historiografia oficial interpreta que Antônio Conselheiro tratava do Dom Pedro III que
viria a ser descendente do Dom Pedro II da Casa de Bragança, o qual não possuía
119
nenhuma ligação com os indivíduos da Pedra do Reino. No entanto, sendo ensinado
por Quaderna, Lino distorce fatos históricos a fim de fazê-los convergir com o ideal
de grandeza atribuído pelo mestre a seus antepassados e, dessa forma, a si próprio.
Essas confusões de Lino Pedra-Verde são vistas como enganos por Samuel
porque fazem parte da religião fundada por Quaderna, o “Catolicismo Sertanejo”, o
qual Samuel não aceita e, portanto, não está apto a compreender. Elas foram
forjadas pelo narrador a fim de legitimar sua crença de que alguém de sua família
deve ser o rei do Brasil e eram aceitas como verdades por vários de seus discípulos,
entre os quais encontra-se o cantador.
Ainda no Folheto LXXXII, Lino novamente mistura fatos históricos: Roma,
Canudos e os episódios da Pedra do Reino são, para ele, consideradas “uma tróia
só” (pp. 702-704), e cita uns versos do cantador Jota Sara sobre Antônio
Conselheiro em que se exaltam os feitos do profeta de Canudos e se critica a
instauração da república no Brasil (pp. 706-708). No Folheto LXXXIII, Quaderna diz
que Euclydes da Cunha só pode ter escrito sobre o grandioso episódio de Canudos
estando sob efeito do “Vinho de jurema” (p. 718). Por fim, no Folheto LXXXIV, Lino
Pedra-Verde afirma que o Frade que acompanhava Sinésio em sua cavalgada à Vila
de Taperoá era, na verdade, Antônio Conselheiro que havia retornado (pp. 726-727).
Referências diretas a Antônio Conselheiro e aos acontecimentos do Arraial de
Canudos não ocorrem na minissérie. Aparece apenas, aos 00:33:21 do quarto
capítulo, uma frase que teria sido dita pelo Conselheiro e que é citada de forma
adaptada por Quaderna para falar da revolução que seu primo Sinésio viria causar
no sertão: “Das ondas do mar, Dom Sinésio Sebastião sairá com todo o seu exército,
tirar todos no fio da espada desse papel da república, e o sangue há de ir até a junta
grossa. Quem for republicano, mude-se para os Estados Unidos”.
As omissões, no entanto, não ocasionam perda ao fio narrativo porque os
significados que estão por trás das menções a esse fato histórico, ao qual são dadas
interpretações bastante singulares por Lino e Quaderna, são transmitidos ao
telespectador com a comparação de Sinésio a Dom Sebastião. Com elas, perde-se
apenas a referência regional, já que Canudos também foi um levante importante
ocorrido na região nordeste do Brasil. Entretanto, como são feitas menções a outras
revoltas regionais também relevantes, a perda não se faz tão grande.
120
2.2.2 Movimentos políticos do início do século XX
Os movimentos políticos a que o Romance e a minissérie fazem referência são
a Guerra de Doze (1912), a Revolta de Juazeiro (1914), a Coluna Prestes (1926), a
Guerra de Princesa (1930), a Revolução de 1930, o Manifesto Integralista ou Guerra
do Verde (1932), a Revolução Comunista (1935) e o Golpe de 1937. Todos são
importantes separadamente, mas ganham importância muito maior para o narrador e
para a compreensão de sua narrativa se considerados juntos, uma vez que ele crê
que são episódios (exceto o de 1937) que culminarão numa revolução maior – a
“Grande Revolução Sertaneja do Povo Fidalgo-Castanho do Brasil” – provavelmente
a ser realizada por seu primo Sinésio no período em que se completa o “Século do
Reino” (entre 1935 e 1938), que corresponde ao centenário dos acontecimentos de
Pedra Bonita causados por seus antepassados. O Golpe de 1937, para ele, é um
empecilho a essa Revolução Sertaneja, pois com ele passa a existir uma forte
repressão e Sinésio e o povo são forçados a se calar e manter a ordem vigente.
A Guerra de Doze a que se refere o narrador do Romance e da minissérie foi,
na verdade, um levante realizado por um grupo de homens armados, sob as
lideranças de João Santa Cruz, promotor de Justiça, e Franklin Dantas, proprietário
rural e grande líder da região de Teixeira, por razões políticas: visando a uma
intervenção Federal e a consequente deposição do governador do Estado, o Dr.
João Machado (LIMA, 2013).
Para combater esse movimento, a Polícia Militar – na época denominada Força
Pública – deslocou um grande efetivo, pois ocorreram lutas em diversas cidades:
Sumé, Monteiro, Taperoá, Patos e São João do Cariri. Segundo Lima (2013):
Ainda foi invadida, pelo bando armado, a cidade de Santa Luzia e foram ameaçadas de invasão as cidades de Soledade e Teixeira. Nessas lutas a Polícia obteve algumas vitórias, e sofreu alguns revezes, mas acabou impedindo que os objetivos dos rebelados fossem alcançados.
Já a “Revolta do Santo Padre do Juazeiro” mencionada por Quaderna no
Romance recebeu o nome de Revolta ou Sedição de Juazeiro e ocorreu em 1914 no
sertão do Cariri, interior do Ceará. Foi liderada pelo médico Floro Bartolomeu e pelo
Padre Cícero Romão Batista, que desde 1872 estava alocado na região e desde
1889 atraía para lá milhares de peregrinos devido a supostos milagres que teria feito
(CAVA, 1995, p. 97).
121
Desde 1910, Floro Bartolomeu instava Padre Cícero a trabalhar pela autonomia
política de Juazeiro com relação a Crato e Barbalha, o que não seria fácil pelo fato
de que ambos os municípios “aproveitaram-se econômica e politicamente do
meteórico crescimento da ‘cidade santa’” e, por isso, não estariam dispostos a
perder esse território (CAVA, 1995, p. 104).
Em julho de 1911, o Governador do Estado e chefe do dominante Partido Republicano Conservador do Ceará (PRC-C), Antônio Pinto Nogueira Accioly, orientou com sucesso a votação para a elevação de Juazeiro à vila através da Assembleia Estadual (que ele e seu partido controlavam desde 1896). Entretanto, Accioly encontrou dificuldade em apaziguar o Crato e Barbalha – dois leais suportes do PRC-C – quanto às suas perdas territoriais, econômicas e políticas. (CAVA, 1995, p. 105)
Então, por meio de um acordo realizado entre os líderes das regiões próximas,
“em troca da autonomia de Juazeiro, Accioly astuciosamente levou para as fileiras do
seu partido um dos mais populares cabos-eleitorais da história nordestina” (CAVA,
1995, p. 105).
De repente, em meados de janeiro de 1912, Accioly foi violentamente deposto por uma coalizão de comerciantes de Fortaleza e seus simpatizantes no seio do comando militar brasileiro. Os partidários do PRC-C, tanto no Ceará quanto em seu exílio no Rio, resolutamente depositaram suas esperanças no retorno ao poder com a vitória eleitoral do Pe. Cícero na segunda metade de 1912. Com relutância, o padre - agora terceiro Vice-presidente do Ceará - viu-se lançado ao papel de salvador do partido. Durante o ano de 1913, os atos hostis do novo Governador do Ceará, coronel Marcos Franco Rabello, convenceram o Pe. Cícero de que a sobrevivência de Juazeiro estava agora em perigo. Em Juazeiro, o partido de Franco Rabello atreveu-se mesmo a apoiar uma facção de proprietários rurais e comerciantes que tentava desafiar o padre e os seus correligionários do PRC-C. Em dezembro de 1913 e janeiro de 1914, o Pe. Cícero aquiesceu relutante a uma conspiração planejada meses antes por uma tríplice aliança forjada no Rio de Janeiro. Floro Bartolomeu, os exilados do PRC-C no Rio e o homem-forte da política no Brasil, o senador Pinheiro Machado, fizeram um pacto para depor Franco Rabello. A chave do plano sedicioso ficava com o Pe. Cícero. Ele tinha de chamar às armas tanto os coronéis do Vale quanto os seus próprios "romeiros" para ser bem sucedido no plano. Quando Franco Rabello ameaçou enviar sua polícia estadual a Juazeiro, o padre finalmente consentiu na conspiração, crente de que só uma ação armada poderia então salvar a sua "cidade santa'' e o estado do Ceará. O movimento sedicioso de fevereiro a março de 1914 foi liderado por Floro Bartolomeu e teve o apoio militar, financeiro e político do Governo Federal. Ainda que só parcialmente restaurado o poder do PRC-C no Ceará, a subsequente ascensão tanto de Floro quanto do
122
Pe. Cícero na política nacional confirma a crescente interação e integração do poder nacional e local. (CAVA, 1995, pp. 105-106)
A Coluna Prestes, por sua vez, teve início em abril de 1925 e foi um movimento
liderado pelos militares Miguel Costa e Luís Carlos Prestes que visava percorrer o
Brasil a fim de “propagar a ideia de revolução e levantar a população contra as
oligarquias”, além de “chamar para si a atenção do governo, facilitando o surgimento
de novas revoltas nos centros urbanos” (FAUSTO, 2003, pp. 309-310).
A Coluna realizou uma incrível marcha pelo interior do país, percorrendo cerca de 24 mil quilômetros até fevereiro/março de 1927, quando seus remanescentes deram o movimento por terminado e se internaram na Bolívia e no Paraguai. Seus componentes nunca passaram de 1500 pessoas, oscilando muito com a entrada e saída de participantes transitórios. A Coluna evitou entrar em choque com forças militares ponderáveis, deslocando-se rapidamente de um ponto para outro. O apoio da população rural não passou de uma ilusão, e as possibilidades de êxito militar eram praticamente nulas. Entretanto, ela teve um efeito simbólico entre os setores da população urbana insatisfeitos com a elite dirigente. (FAUSTO, 2003, p. 310)
A Guerra de Princesa a que o Romance e a minissérie fazem referência
consistiu num “movimento sedicioso que envolveu, de um lado, os comandados do
‘coronel’ José Pereira Lima e, do outro as tropas da polícia militar da Paraíba”
(RODRIGUES, 1981, p. 7). Teve início em 28 de fevereiro de 1930, “com o
rompimento político-partidário entre José Pereira e João Pessoa Cavalcanti de
Albuquerque, governador (naquele tempo “presidente”) do Estado, e se prolongou
até 26 de julho daquele ano” (RODRIGUES, 1981, p. 7).
Quatro fatores principais foram os responsáveis para o surgimento do levante
contra João Pessoa, para o qual, pode-se concluir, contribuiu sua tentativa de
implementar mudanças no estado sem considerar as práticas vigentes no local e as
possíveis retaliações a quem tentasse transformá-las. O primeiro fator diz respeito
ao desprestígio aos coronéis promovido por João Pessoa. O segundo, à lei
promulgada por ele para impedir a importação de produtos de outros estados para a
Paraíba. O terceiro, à rixa familiar entre ele e seus primos e que levaram estes a
apoiar e financiar o movimento. O quarto, ao apoio que ele deu à candidatura de
Getúlio Vargas à Presidência da República, contrariando o governo federal.
Para a eclosão do movimento concorreu uma série de fatores, incluindo-se dentre eles a própria investidura de João Pessoa no governo do Estado, por determinação de Epitácio Pessoa da Silva,
123
seu tio e principal líder político da Paraíba. O governador designado residia no Rio de Janeiro, onde exercia as funções de ministro do Supremo Tribunal Militar, e estava desligado da política partidária de sua terra natal. A 22 de outubro de 1928 assume a presidência paraibana imbuído de extremado idealismo, disposto a corrigir os vícios políticos. Prometera a si mesmo encetar uma ferrenha campanha de moralização dos costumes, pois, segundo suas próprias palavras, estava “tudo podre”, fazendo-se necessária “uma vassourada em regra” para “purificar a vida pública, rebaixada por figuras de significação e aproveitadores gulosos”. Dentre as preocupações administrativas de João Pessoa duas avultaram: o sistemático desprestígio aos coronéis (responsáveis, segundo ele, pelos abusos políticos que denunciara) e um programa para soerguimento das finanças do Estado. Em função destas preocupações, iniciou uma série de medidas visando a sanear o que lhe parecia errado. Considerando o Município (o espaço de atuação dos coronéis por excelência) um dos fulcros das reformas que pretendia encetar, sobre ele fez convergir grande número de atitudes renovadoras: destituiu chefes políticos, demitiu juízes e promotores, removeu delegados e chefes de Mesas de Rendas (coletorias estaduais), promoveu cuidadosa triagem na nomeação dos novos prefeitos, desprezando a velha praxe de compadrio. (RODRIGUES, 1981, pp. 7-8)
Ademais, segundo Rodrigues (1981, p. 11), para combater a crise econômica
instalada na Paraíba havia tempos, João Pessoa promulgou a Lei Tributária 673 de
17 de novembro de 1928, que regulava a exportação e importação de mercadorias
e, a partir da qual, criou-se o Imposto de Incorporação que incidiria sobre os
produtos importados de outros estados.
Em virtude da nova legislação, passou a ser dado tratamento diferente, em termos tributários, às mercadorias que entravam ou saíam do Estado. Visando a fomentar o comércio da capital, foi estabelecida uma acentuada diferenciação nos impostos relativos à importação e exportação realizadas pela capital e pelas fronteiras (divisas com os Estados limítrofes). Essa variação era pequena no referente à exportação, oscilando, por exemplo, quanto a dois produtos principais da economia paraibana – o algodão e o couro – entre 2% e 4%. Quanto à importação, entretanto, a lei ao mesmo tempo que diminuiu os percentuais referentes à mercadoria que entrasse pelo porto da Capital, hipertrofiou a incidência sobre produtos advindos pelas fronteiras, ultrapassando a majoração, em alguns casos, a 1000%. [...] Os Estados prejudicados protestaram contra o novo sistema tributário. Pernambuco, com maior vigor. Sua Associação Comercial, além de representar junto ao presidente da República, alegando a insconstitucionalidade da lei e pedindo a intervenção federal, solicitou o empenho de Estácio Coimbra, presidente do Estado, quanto à revogação da lei. Solicitou, também, o apoio de instituições congêneres de vários outros Estados nesse sentido. (RODRIGUES, 1981, pp. 11-12)
124
A seguir, quando o Jornal do Commercio de Recife, de propriedade dos Pessoa
de Queiroz, primos e inimigos de João Pessoa, posicionou-se contra as medidas
tributárias, este fez acusações aos proprietários, após o que passou a sofrer ataques
pessoais, revidados pela A União, órgão oficial do Estado da Paraíba (RODRIGUES,
1981, pp. 12-13).
Finalmente, ao filiar-se a Aliança Liberal, João Pessoa passou a sofrer sanções
do governo federal, que demitiu e removeu funcionários federais simpatizantes da
causa liberal e suspendeu obras e serviços públicos de iniciativa da União no estado
(RODRIGUES, 1981, p. 17).
José Pereira, chefe de Princesa, rompeu com João Pessoa em 23 de fevereiro
de 1930, por telegrama, alegando que apoiaria a candidatura de Júlio Prestes por
sentir-se desprestigiado com a constituição da chapa para as eleições de deputado
federal e senador, da qual ficaram de fora os candidatos à reeleição, inclusive o ex-
governador João Suassuna (pai do escritor Ariano Suassuna), em cujo governo o
coronel sempre fora prestigiado. Nesse telegrama ele afirmava que, caso algum ato
de violência fosse praticado pelo governo do estado, ele faria tudo o que fosse
necessário para defender o direito ao voto livre. A ele se juntaram – nesse momento
e posteriormente – todas as pessoas que se sentiam lesadas pelas decisões de
João Pessoa: outros chefes locais, seus primos (Pessoas de Queiroz) e seus
inimigos (a família Dantas – também parentes de Ariano Suassuna), os governos de
estados vizinhos, tais como Pernambuco, e o governo federal (RODRIGUES, 1981,
pp. 18-27). No entanto, pode-se perceber que “os Pessoas de Queiroz foram os
mentores da revolta: instigaram o coronel a iniciar a luta, forjaram a ‘independência
de Princesa, o jornal e o hino do ‘Território Livre’, além de financiarem a luta em
parcela considerável” (RODRIGUES, 1981, pp. 78-79).
Após meses de cerco ao território de Princesa sem que a polícia conseguisse
chegar até o centro da região rebelada e sem que fosse, tampouco, derrotada pelas
tropas de José Ferreira, João Duarte Dantas assassina João Pessoa por vingança
às ofensas pessoais que este lhe tinha feito, ao que o presidente da República
Washington Luiz resolve terminar a revolta, não encontrando resistência e
reintegrando o território ao estado da Paraíba.
A Revolução de 30, por sua vez, consistiu num golpe militar que decorreu das
eleições de 1930, quando houve um racha entre as elites políticas de São Paulo e
de Minas Gerais causado pela insistência do presidente Washington Luís em lançar
125
Júlio Prestes, governador do Estado de São Paulo, como candidato a seu sucessor
em vez de Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, então governador do Estado de Minas
Gerais (FAUSTO, 2003, p. 319).
Em oposição a Washington Luís, foi criada a Aliança Liberal, unindo as
oligarquias de Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Paraíba, que se aproximou dos
militares e lançou como candidatos a presidente e vice o gaúcho Getúlio Vargas e o
paraibano João Pessoa, respectivamente (FAUSTO, 2003, p. 319).
Júlio Prestes venceu as eleições de 1º de março de 1930, mas em 24 de
outubro foi deposto pelos generais do Exército Tasso Fragoso, Mena Barreto e Leite
de Castro e pelo almirante da Marinha Isaías Noronha, e, em 3 de novembro, foi
substituído por Getúlio Vargas, que, a princípio, seria presidente em caráter
provisório, mas que acabou ficando no poder por quinze anos (FAUSTO, 2003, pp.
321-325).
A Guerra do Verde que é citada no Romance e na minissérie refere-se ao
conflito entre a Ação Integralista Brasileira (AIB), fundada em outubro de 1932, por
Plínio Salgado, escritor modernista, jornalista e político, e a Aliança Nacional
Libertadora (ANL), fundada pelos comunistas.
O integralismo se utilizava de rituais e símbolos: “o culto da personalidade do
chefe nacional, as cerimônias de adesão, os desfiles dos ‘camisas-verdes’,
ostentando braçadeiras com a letra grema zigma (∑), utilizada na matemática como
símbolo de somatória” (FAUSTO 2003, p. 356), e opôs-se fortemente ao comunismo.
No entanto, os dois movimentos tinham pontos em comum, como aponta Boris
Fausto:
[...] A crítica ao Estado liberal, a valorização do partido único, o culto da personalidade do líder. Não por acaso houve certa circulação de militantes que passaram de uma organização para a outra. Seria errôneo, porém, pensar que a guerra entre os dois grupos resultou de um mal-entendido. Na realidade, eles mobilizaram sentimentos muito diversos. Os integralistas baseavam seu movimento em temas conservadores, como a família, a tradição do país, a Igreja Católica. Os comunistas apelavam para concepções e programas que eram revolucionários, em sua origem: a luta de classes, a crítica às religiões e aos preconceitos, a emancipação nacional obtida através da luta contra o imperialismo e a reforma agrária. Essas diferenças eram mais do que suficientes para produzir o antagonismo entre os dois movimentos. Além disso, eles refletiam a oposição existente na Europa entre seus inspiradores: o fascismo de um lado e o comunismo soviético de outro. (2003, p. 356)
126
A Revolução Comunista de 1935 foi uma insurreição contra o governo de
Getúlio Vargas liderada pela Aliança Nacional Libertadora (ANL) cujo objetivo era
derrubar o presidente e tomar o poder.
Em 5 de julho de 1935, Luís Carlos Prestes lançou um manifesto de apoio à
ANL incentivando a derrubada do governo de Vargas, o que foi o estopim para que o
presidente mandasse prender os líderes do movimento e o considerasse ilegal
(FAUSTO, 2003, p. 360).
Com o decreto de Vargas, o plano de fazer uma revolução foi colocado em
prática:
[...] Uma junta de governo tomou o poder em Natal por quatro dias, até ser dominada. Seguiram-se rebeliões no Recife e no Rio, esta última de maiores proporções. Houve aí um confronto entre os rebeldes e as forças legais do qual resultaram várias mortes, até a rendição. (FAUSTO, 2003, p. 361)
Vargas, após derrotar os revolucionários, instituiu o Tribunal de Segurança
Nacional especialmente para julgar os comprometidos na insurreição, porém esse
órgão tornou-se permanente e foi considerado como uma atitude estratégica para
preparar um futuro golpe de Estado (FAUSTO, 2003, p. 362), que viria a acontecer
em 1937.
Esse golpe iniciou o período da história brasileira conhecido como Estado
Novo, que só chegaria ao fim em 1945. Ele consistiu na suspensão das eleições que
deveriam ocorrer em janeiro de 1938 e no início de uma ditadura, declarada por
Getúlio Vargas, com a suposta intenção de combater o comunismo no Brasil.
O pretexto utilizado por Getúlio e pela cúpula militar para a prorrogação do
estado de guerra e para a suspensão das eleições, segundo Boris Fausto, foi o
Plano Cohen, que consistia num plano de insurreição comunista que seria, na
verdade, apenas:
[...] Uma fantasia a ser publicada em um boletim da Ação Integralista Brasileira, mostrando como seria uma insurreição comunista e como reagiriam os integralistas diante dela. A insurreição provocaria massacres, saques e depredações, desrespeito aos lares, incêndios de igrejas etc. (FAUSTO, 2003, p. 363)
Contudo, esse plano foi “transformado em realidade” e, no dia 10 de novembro
de 1937, “tropas da polícia militar cercaram o Congresso e impediram a entrada dos
congressistas”:
127
[...] À noite, Getúlio anunciou uma nova fase política e a entrada em vigor de uma Carta constitucional, elaborada por Francisco Campos. Era o início do Estado Novo. O Estado Novo foi implantado no estilo autoritário, sem grandes mobilizações. O movimento popular e os comunistas tinham sido abatidos e não poderiam reagir; a classe dominante aceitava o golpe como coisa inevitável e até benéfica. O Congresso dissolvido submeteu-se, a ponto de oitenta de seus membros irem levar solidariedade a Getúlio, a 13 de novembro, quando vários de seus colegas estavam presos. (FAUSTO, 2003, pp. 364-365)
No Romance, todos esses episódios são mencionados diversas vezes, sendo
citados também na minissérie, embora com menos frequência:
Episódio Romance Minissérie
- Guerra de 1912 Folhetos I, XII, XXVI, XXVIII,
XXXVII, XXXIX, L, LXVII, LXIX,
LXXIII, LXXX, LXXXII e LXXXIV.
00:02:41 do terceiro capítulo.
- Sedição de
Juazeiro e Padre
Cícero
Folhetos XXII, L, LXI, LXIX e
LXXXII.
00:39:14 e aos 00:43:14 do
primeiro capítulo.
- Coluna Prestes Folhetos II, XXXVIII, XXXIX, XL,
XLIX, L, LII, LX, LXIX, LXXX,
LXXXII, LXXXIX.
00:44:21 do terceiro capítulo.
- Revolta de
Princesa
Folhetos III, VII, XV, XVI, XXVIII,
XXXVII, XXXIX, L, LI, LX, LXV,
LXVII, LXXIII, LXXVIII, LXXX,
LXXX e LXXXII.
00:32:38 do primeiro capítulo.
00:13:14 do segundo
capítulo.
00:44:21 do terceiro capítulo.
00:06:16 do quarto capítulo.
- Revolução de
1930
Folhetos XLVI, LI, LXIX e
LXXXII.
00:01:11 do terceiro capítulo.
- Plínio Salgado,
Guerra do Verde
e Manifesto
Integralista
Folhetos XXVII, XXXVII, XXXIX,
XL, L, LI, LII, LIV, LXXVI e
LXXX.
00:04:36 do terceiro capítulo.
- Revolução de
1935
: Folhetos XXXVII, XXXIX, XLIII,
XLVI, XLVII, LII, LIX, LX, LXII,
00:01:11 do terceiro capítulo.
00:03:31 do terceiro capítulo.
128
LXIV, LXIX, LXXVI e LXXXV. 00:03:15 do quarto capítulo.
- Golpe de 1937 Folhetos XXVI, XXXVII e L. 00:01:11 do terceiro capítulo.
Todos esses episódios – exceto o Golpe de 1937 – são mencionados no
Romance e na minissérie quando o narrador tem o intuito de demonstrar que
cresceu entre conflitos armados devido à participação do tio e padrinho em diversos
deles e à participação de outros parentes, tais como seus irmãos bastardos e seu
primo Arésio. A principal contribuição das menções feitas a eles, no entanto, é a de
demonstrar a crença de Quaderna – a qual ele propaga ao povo humilde de Taperoá
com a finalidade de conquistar adeptos à sua causa de transformar o Brasil
novamente em império e subir ao seu trono – de que fariam parte de uma revolução
sertaneja maior a ser realizada por seu primo Sinésio e que instauraria um reino de
felicidade, saúde, riqueza e beleza para todos. Nas menções e referências a esses
episódios é possível perceber o diferente posicionamento com relação a eles da
população humilde e dos membros das elites econômica e cultural bem como
compreender o que levou o narrador a ser preso.
Quaderna refere-se orgulhosamente à Guerra de Doze como o momento em
que seus familiares, os Garcia-Barrettos, e “outros chefes sertanejos importantes do
antigo Partido Liberal do tempo do Império organizaram uma tropa de 1.200 homens
armados e tomaram seis cidades aqui no Sertão da Paraíba” (SUASSUNA, 2012, p.
339). As principais menções a essa guerra são as que aparecem nos Folhetos
XXVIII, XXXVIII, XXXIX, L, LXIX e LXXXII, pois revelam o pensamento ambivalente
do narrador em relação a ela, o qual em parte é absorvido por Lino Pedra-Verde, e o
modo como a classe dominante da Vila de Taperoá enxerga esse mesmo conflito.
No Folheto XXVIII, a referência a essa guerra leva o leitor a conhecer o fato de
que Quaderna, embora sinta-se orgulhoso da participação do tio no conflito, diz não
querer ver banho de sangue “nem dado pelo Rei, nem pelo Chefe revolucionário,
nem pelo Presidente da República”, pois já viu muito disso em 1912, em 1926, em
1930 etc. (p. 188). Esse novo posicionamento do narrador é decorrente da
consciência que ele desenvolve dos perigos da violência que qualquer tipo de revolta
necessariamente engendra. Essa consciência, contudo, não é desenvolvida devido
uma modificação de seu ponto de vista ideológico, moral ou mesmo ético, mas sim
devido à sua covardia, pois ele tem medo de, ao rebelar-se, ser atacado pelos
adversários e acabar morrendo violentamente como seus antepassados. Dessa
129
forma, ele deseja uma revolta, mas tem medo de levá-la a cabo e sofrer represálias
e, por isso, apenas incita-a indiretamente, através de seus folhetos e de seu
Catolicismo Sertanejo, os quais divulga a seus discípulos (que são as pessoas
simples da região e, em especial, os cantadores).
Nos Folhetos XXXVIII e L, o narrador diz que sua desaventura começou em
1912, agravando-se em 1930 e “culminando com os acontecimentos desencadeados
de 1935 a 1938” (p. 247) e vê a Guerra de Doze como um movimento da revolução
sertaneja do Brasil no século XX (p. 354), que é a mesma forma como Lino Pedra-
Verde a vê no Folheto LXXXII, no qual afirma que a Guerra do Reino (a luta de
Sinésio) começou com a Guerra de 1912 (p. 699).
No Folheto LXIX, a chegada do Rapaz-do-Cavalo-Branco à Vila é tida pelo
comendador Basílio Monteiro como uma invasão comunista que visava a neutralizar
as cidades sertanejas pequenas para atingir Campina Grande, exatamente como,
segundo ele, os revolucionários da Guerra de Doze tentaram fazer (pp. 526-527).
Na minissérie, é feita apenas uma breve referência a essa guerra. Aos 00:02:41
do terceiro capítulo, Lino Pedra-Verde, zangado por saber que Quaderna fora
intimado a depor, diz que em outros tempos isso não seria permitido pela população
local: “Se fosse outro tempo, [19]12, [19]30, essa gente [referindo-se ao Juiz
Corregedor] não riscava casco de cavalo no chão do sertão não. Mas hoje todo o
mundo é manso”.
Assim, no Romance, a menção à Guerra de 1912 explicita a participação de
Quaderna e sua família em conflitos armados e revela que, embora ele tenha sido
influenciado pelo tio e esteja de acordo com a postura assumida por ele no passado,
não tem a coragem necessária para assumi-la e dar continuidade a ela no presente,
pois teme por sua vida. Por isso ele o faz apenas de maneira indireta. Já na
minissérie, a menção a esse episódio aponta que o sertão já teve lutas no passado –
fato que é visto euforicamente por Lino Pedra-Verde – mas que, no momento da
chegada do Juiz, em 1938, está pacífico – condição considerada disfórica pelo
cantador.
No Romance, como já dito anteriormente, são feitas algumas menções à
Sedição de Juazeiro, principalmente de forma a demonstrar as diferentes
interpretações dadas a ela pela população pobre e pela elite do local e a informar ao
leitor que ela foi uma das insurreições em que a família de Quaderna se viu metida e
que, somada às demais, teria servido de preparação a uma revolução sertaneja
130
maior que estaria sendo armada para o ano de 1935. A figura de Padre Cícero e a
presença de sua “Oração da Pedra Cristalina” têm, ainda, a função de reiterar a
crença de Quaderna (e de seu discípulo Lino) no Catolicismo Sertanejo como capaz
de transformar o Brasil novamente em império e legitimar sua ascensão – ou a de
Sinésio – ao trono.
No Folheto XXII, Quaderna revela que, ao visitar as duas pedras, bateu nelas
enquanto pronunciava a “Oração da Pedra Cristalina”, de Padre Cícero, mas que
não conseguiu o milagre de as pedras se abrirem como se prenuncia na oração (p.
150). Já no Folheto LXI, é Pedro Cego quem menciona a “Oração da Pedra
Cristalina” num momento em que o povo de Taperoá se aglomera na praça,
comovido com a volta de Sinésio: ele diz que foi essa oração que o salvou de uma
espécie de encantação em que se viu preso dentro de uma furna de onça (p. 431).
Nesse momento, Pedro Cego é tido como um profeta pela multidão e o advogado de
Sinésio, Dr. Pedro Gouveia, se aproveita de suas palavras para conseguir o apoio
das pessoas para a causa de seu cliente.
No Folheto L (p. 354) e no Folheto LXXXII (p. 699 e p. 709), Quaderna e Lino,
respectivamente, afirmam que, assim como a Guerra de Doze, a Sedição de
Juazeiro também foi um movimento da revolução sertaneja do Brasil, a qual teria
começado em 1912, e Lino embaralha fatos históricos ao perguntar a Samuel se as
personagens do folheto Romance da Demanda do Sangral, inspirado em novelas de
cavalaria famosas, haviam lutado no Crato, “perto do Juazeiro do Padre Cícero” (p.
709).
No Folheto LXIX, o comendador Basílio Monteiro afirma que a Sedição de
Juazeiro (assim como a Guerra de Doze) teve o objetivo de dominar cidades
sertanejas pequenas para depois conseguir chegar às cidades maiores (p. 527).
Na minissérie, é omitida a participação de Quaderna e seu tio e padrinho nessa
revolta, sendo feita apenas uma referência explícita a Padre Cícero como figura
sagrada e uma referência a sua Oração da Pedra Cristalina, aos 00:39:14 e aos
00:43:14 do primeiro capítulo: Quaderna, ao deparar-se com a onça que matou por
acidente enquanto tentava matar um preá, assusta-se e grita: “Valei-me, Padim Ciço.
É uma onça! Eu atirei no que vi, e matei o que não vi!”; depois, ao chegar às Pedras
do Reino de seus antepassados, emocionado, faz a oração de Padre Cícero como
parte de seu ritual de consagração como Imperador do Brasil. Assim, podemos
perceber que a função do aparecimento de Padre Cícero na minissérie é a de
131
revelar o imaginário do narrador Quaderna: ele crê nesse homem que foi uma
espécie de santo e guerreiro nordestino e roga a ele e a Deus por proteção física
contra os perigos do dia-a-dia, mas principalmente contra aqueles que queiram
impedir sua ascensão ao trono do Império do Brasil, o que podemos depreender
pelas palavras presentes na segunda metade da oração:
Minha Pedra Cristalina, que no mar fostes achada, entre o Cálice Bento e a Hóstia Consagrada. Treme a terra, mas não treme Nosso Senhor Jesus Cristo no altar sagrado. Tremem, porém, o coração dos meus inimigos e dos que me desejam mal. Eu te benzo em cruz, e não tu a mim, entre o Sol, a lua, as Estrelas... e as três pessoas da Santíssima Trindade! Meu Deus! Na travessia avistei meus inimigos. Meu Deus! Eles não me farão mal, pois com o manto da virgem sou coberto. Se me acorrentarem, os elos se quebrarão... Se me trancarem, as portas da prisão ruirão para me dar passagem como passou, no dia da ressurreição, Nosso Senhor Jesus Cristo por entre os guardas do sepulcro. Contra mim nada valerá. Contra os meus ninguém se levantará. E para proteger meu lar, com a chave do sacrário eu o fecharei (CARVALHO, 2007, pp. 40-42).
No Romance, além desse sentido, Padre Cícero e a Revolta de Juazeiro
contribuem ainda para esclarecer ao leitor que a família do narrador esteve
envolvida em diversos levantes ocorridos na região nordeste.
A Coluna Prestes é mencionada no Romance como tendo sido um “banho de
sangue” (SUASSUNA, 2012, p. 188) e como tendo consistido numa Coluna “que
cruzara o Sertão da Paraíba em 1926, realizando uma típica ‘retirada ilustre’ e
tentando sublevar as massas camponesas do Brasil para a Revolução”
(SUASSUNA, 2012, p. 272). As principais menções a esse episódio da história do
Brasil ocorrem nos Folhetos XXXIX, XL, LX, LXIX e LXXXII, pois deixam
transparecer a crença de Quaderna, de Lino Pedra-Verde, de Clemente e da
população tanto abastada quanto humilde do local de que Sinésio teria voltado a
Taperoá em 1935 para retomar os ideais da Coluna Prestes. Para a classe
dominante da Vila, essa volta seria negativa, uma vez que o ideal de acabar com as
oligarquias a prejudicaria. Para a população carente, contudo, a volta propiciaria a
realização do seu desejo de viver numa sociedade igualitária.
Nos Folhetos XXXIX e XL, as menções são feitas por Clemente. Ele, que é
comunista, diz que só seguiu o Rapaz-do-Cavalo-Branco em 1935 porque acreditava
que ele “iria repetir os feitos da ‘Coluna Prestes’ no Sertão da Paraíba, em 1926” (p.
269). Já nos Folhetos XLIX e LX, Quaderna revela que o povo sertanejo também
achava que a cavalgada de Sinésio à Vila fosse uma “nova Coluna que o Guerreiro e
132
Fidalgo-brasileiro, o Capitão Prestes, enviara ao sertão para rebelá-lo e subvertê-lo,
como já tinha feito em 1926, com a célebre ‘Coluna Prestes’” (p. 422).
No Folheto LXIX, é o Comendador Basílio Monteiro quem faz a menção. Lá, ele
afirma que os ideias de Luís Carlos Prestes eram elogiáveis em 1926 (quando ele
queria acabar com as oligarquias), porém perderam-se quando ele se tornou
comunista. Seu pronunciamento, contudo, é polêmico, uma vez que ele fala para
muitos fazendeiros-coronéis que foram contra a Coluna pela razão de serem o alvo
dela. Ele comenta, ainda, a entrada de Prestes no Brasil de modo clandestino, sob o
nome de Antônio Villar, para instaurar no país uma “República soviética”, e relaciona-
a à chegada de Sinésio à Vila, que considera ter ocorrido a mando de Prestes (pp.
521-526).
Finalmente, no Folheto LXXXII, Lino Pedra-Verde diz que a Coluna faz parte da
Guerra do Reino assim como a Guerra de Doze e a de Juazeiro (p. 699).
Na minissérie, é feita apenas uma referência à Coluna Prestes: o Juiz
Corregedor, aos 00:44:21 do terceiro capítulo, menciona que, segundo a carta
anônima de denúncia que recebeu contra Quaderna, no bando de Sinésio estavam
vários participantes da Coluna Prestes, o que tornava a cavalgada subversiva para
as autoridades.
Dessa forma, concluímos que a inserção da Coluna Prestes no universo
ficcional do Romance e da minissérie demonstra que a população da Vila de
Taperoá cria que Sinésio estaria acompanhado de pessoas que haviam participado
da Coluna e repetiria os feitos de Luís Carlos Prestes, o que para a classe abastada
era motivo de apreensão e cautela, e para a classe pobre era motivo para apoiá-lo e
segui-lo.
No Romance são feitas várias menções à Guerra de Princesa devido ao fato de
ela ser muito importante na vida do narrador por ter desencadeado a morte de seu
tio, o desaparecimento de seu primo Sinésio e, posteriormente sua própria prisão.
As menções ocorrem em vários folhetos também devido à forma como o
narrador decide contar a história, isto é, de maneira circular, indo e voltando nos
fatos, a fim de ir revelando aos poucos os ocorridos, as participações e,
principalmente, os posicionamentos diante deles para não se comprometer perante o
Juiz-Corregedor e dos “nobres senhores e belas damas” que lerão seus escritos e
poderão se apiedar dele vindo a livrá-lo da prisão. As mais importantes menções,
contudo, são as que aparecem nos Folhetos III, XV, L, LI, LX e LXV e são as que
133
descrevemos e analisamos a partir de agora.
No Folheto III, Quaderna explica no que consistiu essa revolta ao apresentar
Luís do Triângulo, que participou dela e vinha acompanhando a cavalgada de
Sinésio à Vila de Taperoá:
Nesse momento, um homem alto, magro e forte, de olhos castanhos, com a calma, a energia e a mansidão aparente dos Sertanejos mais corajosos, destacou-se do meio dos almocreves, que a essa altura também já tinham chegado, e aproximou-se do Doutor [Pedro Gouveia]. Era o Chefe e Capitão-Mor da tropa, um homem cujo nome, quando depois se espalhou pela Vila, eletrizou todo mundo: porque ele era, nem mais nem menos, que o célebre Luís Pereira de Sousa, mais conhecido como Luís do Triângulo, por causa de sua pequena fazenda pajeúzeira, “O Triângulo”. E só estranhará que esse nome de Luís do Triângulo tenha causado tanta emoção entre nós quem ignorar dois fatos: primeiro, que, pertencendo ele à grande família dos Pereiras, do Pajeú – famosa pela coragem e pelas façanhas guerreiras –, Luís do Triângulo era parente de Dom José Pereira Lima, aquele mesmo Fidalgo sertanejo que, em 1930, se rebelara contra o Governo, tornando-se Rei-guerrilheiro de Princesa, proclamando a independência do município com hino, selo, bandeira, constituição e tudo, subvertendo o Sertão da Paraíba à frente do seu exército de 2.000 homens de armas, numa guerrilha heróica que o governo do Presidente João Pessoa em vão tentou vencer com sua Polícia. Nesse Reino, ou Território Livre, de Princesa, o Rei era Dom José Pereira Lima, O Invencível, e Luís do Triângulo, então com 32 anos, era o Condestável e Chefe do Estado-Maior. (SUASSUNA, 2012, p. 57)
Ele utiliza o recurso da adjetivação a fim de criar a imagem de Luís com
grandeza devido a seu parentesco com José Pereira Lima, líder da Revolta de
Princesa, e a sua participação nessa revolta.
Percebemos essa intenção de enobrecer Luís do Triângulo quando o narrador
emprega as palavras e expressões “um homem alto, magro, forte [...] com a calma, a
energia e a mansidão aparente dos Sertanejos mais corajosos”, “célebre”,
“pertencente à grande família dos pereiras [...] famosa pela coragem e pelas
façanhas guerreiras” e “guerrilha heróica”, e conseguimos enxergar nessa intenção e
nessas palavras utilizadas seu posicionamento com relação a essa guerra: o de
concordância com sua existência.
No Folheto XV, explica que o tio e padrinho tomara o partido de José Pereira
contra o governo e revela ter participado dessa guerra juntamente com o tio, que foi
assassinado em decorrência dela:
Ora, em 1930, meu tio e Padrinho, Dom Pedro Sebastião Garcia-
134
Barretto, tomara parte na “Guerra de Princesa”, ao lado de Dom José Pereira Lima, contra o Governo e a Polícia do Presidente João Pessoa. [...] Eu, recadeiro e homem de confiança de meu Padrinho, fui várias vezes a Princesa, em 1930, acompanhado por meu irmão bastardo, Malaquias Nicolau Pavão-Quaderna, em missões e embaixadas secretas de Dom Pedro Sebastião para Dom José Pereira. [...] O fato é que passou a “Guerra de Princesa”. Meu Padrinho morreu, degolado por causa dela; mas eu escapei e Luís do Triângulo também. (SUASSUNA, 2012, pp. 116-118)
No Folheto L, o narrador cita a Guerra de Princesa como sendo um dos
movimentos da revolução sertaneja do Brasil no século XX (p. 354) e, no Folheto LI,
diz que a 24 de agosto de 1930, quando seu tio foi assassinado misteriosamente, “o
nosso Reino do Sertão dos Cariris Velhos estava inteiramente conflagrado,
incendiado e devastado” devido à guerra (p. 359), com a sua fazenda, a Onça
Malhada, “fervilhando de gente armada” (p. 364).
A seguir, ainda no Folheto LI, Quaderna comenta boatos existentes de que a
morte de seu tio e o sumiço de Sinésio haviam ocorrido por motivos políticos devido
à participação veemente de Pedro Sebastião na Guerra de Princesa (p. 367) e de
que Sinésio era mantido refém por seguidores de João Pessoa como “elemento de
intimidação e trunfo para a derrota dos partidários dele” (p. 369).
No Folheto LX, Quaderna diz ao Juiz Corregedor que remanescentes da
Guerra de Princesa e da Coluna Prestes integravam a cavalgada de Sinésio em
1935 (p. 422) e, no Folheto LXV, por um deslize, acaba revelando que se considera
o rei do Brasil “por direito e por sangue”, enquanto seu tio e José Pereira Lima são,
para ele, somente “Reis vassalos e tributários” seus (p. 465). Dessa revelação o Juiz
conclui que Quaderna era a favor de revoluções para poder instaurar seu reino e,
com isso, sua situação se complica.
Na minissérie, são feitas referências à Guerra de Princesa nos quatro primeiros
capítulos. Inicialmente, aos 00:32:38 do primeiro capítulo, Quaderna encontra Luís
do Triângulo e calorosamente o apresenta ao irmão Malaquias e ao amigo Euclydes
como “guerrilheiro de Princesa”, aludindo à participação de Luís a seu lado e de seu
padrinho nesse levante.
135
Figura 57: Aos 00:33:07 do primeiro capítulo, Luís do Triângulo saúda Quaderna.
A câmera que o foca em primeiro plano em ângulo contra-plongée, isto é, de
baixo para cima, contribui para criar o efeito de sentido de grandeza e superioridade
da personagem focada, que é exatamente o que Quaderna deixa transparecer por
meio das palavras utilizadas em sua narração.
Depois, aos 00:13:14 do segundo capítulo, Pedro Sebastião Garcia-Barretto
refere-se à Guerra de Princesa ao pedir que Quaderna leve Sinésio a Natal para
fugir da confusão que está prestes a se armar quando o povo de Princesa pegar em
armas contra o governo.
Posteriormente, aos 00:44:21 do terceiro capítulo, o Juiz Corregedor quer
saber de Quaderna se é verdade que participantes do Exército do “tal” Território Livre
de Princesa estavam na cavalgada de Sinésio, pois essa informação constava na
carta de denúncia recebida contra o narrador e poderia caracterizar a cavalgada
como subversiva.
Por fim, aos 00:06:16 do quarto capítulo, o Juiz Corregedor descobre que
Quaderna é descendente dos “fanáticos” da Pedra do Reino e acusa-o de ter se
juntado ao bando do Rapaz-do-Cavalo-Branco para subverter o povo sertanejo
contra as autoridades com a finalidade de restaurar seu império. Quaderna, então,
confessa ao Juiz sua intenção de juntar o movimento da Pedra do Reino e a Guerra
de Princesa à demanda novelosa de Sinésio para tornar-se imperador do sertão e do
Brasil e poder, assim, ao produzir sua epopeia, tornar-se o Gênio da Raça Brasileira.
136
Notamos que a Revolta de Princesa, tanto no Romance quanto na minissérie,
tem mais importância para o narrador do que qualquer outra anterior a ela, pois foi a
causadora da morte do tio, do desaparecimento do primo Sinésio e de sua prisão.
Foi uma revolta da qual Quaderna participou ativamente e a primeira a ter
consequências graves e negativas para ele: a perda do tio, o desaparecimento de
Sinésio e, posteriormente, as suspeitas que recaem sobre ele com relação a essa
morte e a esse desaparecimento, as quais o obrigam a prestar esclarecimentos
perante o Juiz Corregedor. Pode-se atribuir a importância dada por Suassuna a esse
levante a fatores autobiográficos, uma vez que seu pai, o político João Suassuna, foi
assassinado em decorrência dela: por vingança pela morte de João Pessoa, a qual,
como já mencionamos anteriormente, foi causada por seu tio (cunhado de seu pai)
João Duarte Dantas durante essa revolta.
No Romance, a Revolução de 1930 é mencionada algumas vezes e acaba por
criar os mesmos efeitos de sentido das anteriores: demonstra que a população a
relacionava a Sinésio e que os poderosos não entravam em consenso a respeito de
seus méritos. Um novo sentido que surge com a sua menção e que se repete
quando se fala dos levantes posteriores é o de que, em decorrência dela, ocorreram
investigações acerca da morte de Pedro Sebastião e do desaparecimento de Sinésio
devido as quais Quaderna teve que prestar depoimentos.
No Folheto XLVI, o narrador revela que, quando a Revolução foi deflagrada, ele
foi chamado a depor sobre o assassinato do tio e o desaparecimento do primo
perante os Tribunais Revolucionários surgidos com ela (p. 321) e, no Folheto LI, ele
conta que o reaparecimento de Sinésio sempre era relacionado, pelo povo, às
insurreições sertanejas, das quais ele cita a Revolução de 1930 (p. 371).
Ele revela, ainda, no Folheto LXIX, que entre os poderosos de Taperoá não
havia unanimidade a respeito dos méritos da Revolução. O Comendador Basílio
Monteiro exalta-a, referindo-se a ela como “gloriosa” durante a reunião de
emergência convocada para tratar do reaparecimento de Sinésio, porém, detém-se
antes de instaurar uma polêmica, pois muitos dos demais presentes a essa reunião
tinham sido contra essa Revolução, pois eram grandes fazendeiros (pp. 522-527).
Por fim, no Folheto LXXXII, Lino Pedra-Verde menciona essa revolução como
tendo sido parte de uma revolução sertaneja maior a ser empreendida por Sinésio,
assim como as anteriores ocorridas no sertão (p. 700).
Dos 00:01:11 aos 00:02:04 do terceiro capítulo da minissérie, Quaderna,
137
deitado no chão da cadeia, dá a entender que sua prisão foi decorrente do clima
político tenso e carregado que a cidade vivia no ano de 1938, o qual se devia às
diversas revoluções ocorridas no local e no Brasil, tais como a Revolução de 30, a
Revolução de 35 e o Golpe de Estado de 37. Ele condensa, nessas suas palavras
de narrador e personagem da minissérie, o discurso – bem mais longo e provido de
informações – do narrador do Romance sobre esses três fatos históricos:
Era tenso e carregado o ambiente político que estávamos vivendo. A Revolução de 30, a Revolução de 35, o Golpe do Estado Novo em 37... assim, tudo estava decidido para quando chegasse o momento. Nossa Vila de Taperoá estava subvertida por ódios, ressentimentos, ambições e invejas, endoidecida por um ambiente inquisitorial. Estávamos nesse ambiente quando mandaram uma carta anônima ao Senhor Juiz da capital e eu me enredei nas teias de um processo fatal como perigoso agente político e acusado de crime.
Assim, quando ocorre a inserção da Revolução de 30 na minissérie explicita-se
o clima de opressão em que a Vila vivia em 1938 e que justificava a abertura de um
inquérito no qual Quaderna teria que prestar depoimentos acerca de seu
posicionamento político em outras revoltas. Além disso, no Romance, a menção à
Revolução de 30 levanta a suspeita de que Sinésio estivesse por trás dela, o que a
configuraria como mais uma das diversas batalhas da “Guerra do Reino” que ele
ainda empreenderia até sair vencedor e capaz de instaurar a igualdade e a felicidade
no sertão nordestino à la Dom Sebastião.
No Romance, são feitas algumas menções a Plínio Salgado, à Guerra do Verde
e à Revolução Integralista sendo o principal efeito de sentido criado por elas o de
mostrar a oposição dos dois mestres de Quaderna, as personagens Samuel e
Clemente: Samuel é construído tendo por base a filosofia e a ideologia do
integralismo, enquanto Clemente é construído tendo por base a filosofia e a
ideologia do comunismo, e os dois discutem seus pontos de vista divergentes todo o
tempo. Dessa forma, constatamos que há um diálogo com as posições ideológicas
que predominam no contexto histórico brasileiro do início da década de 1930.
Entretanto, esse diálogo é caricaturado por Suassuna com a criação dessas
personagens porque ambas aplicam suas ideologias de modo radical a todos os
aspectos da vida, o que acaba impossibilitando a troca de ideias entre elas e a
construção de novos conhecimentos, uma vez que estão fechadas em suas crenças
e não admitem o modo de pensar do outro como alternativa ao seu próprio.
No Folheto XXVII, Samuel se crê digno da presidência da Academia de Letras
138
dos Emparedados do Sertão da Paraíba por já ter recebido um cartão de Plínio
Salgado, a quem admira e denomina “Chefe dos nacionalistas brasileiros de Direita”
(p. 184).
No Folheto XXXVII, Quaderna conta que Getúlio Vargas parecera se aliar à AIB
durante certo tempo, surpreendendo a todos ao torná-la ilegal após o Golpe de 1937
(p. 246) e, no Folheto XXXIX, fala da oposição entre seus dois mestres, Clemente e
Samuel (p. 254), expressando sua opinião pessoal a respeito dela:
As relações existentes entre nós três, nobres Senhores e belas Damas, continuavam de certa forma curiosas. Como rivais, não nos suportávamos; mas como também precisássemos muito uns dos outros, não podíamos separar-nos. A rivalidade existente entre Samuel e Clemente tinha muitas causas literárias, mas, como Vossas Excelências já devem ter suspeitado, era principalmente de natureza política. [...] A partir de 1930, com a vida política brasileira se dividindo ainda mais, os dois começaram a se radicalizar. Luís Carlos Prestes já fundara o Partido Comunista do Brasil, e Plínio Salgado o partido extremado de Direita, a Ação Integralista Brasileira. Logo depois, porém, os comunistas procuraram fundar um partido que agrupasse outras pessoas, liberais, em torno deles: esse partido chamou-se Aliança Nacional Libertadora. Não é preciso dizer que Samuel entrou imediatamente para a Ação Integralista Brasileira, fundando entre nós uma seção que passou a congregar os jovens filhos de família de tudo quanto era fazendeiro e proprietário. [...] Quanto a Clemente, aderira furiosamente à Aliança Nacional Libertadora, de cujo Comitê local era Presidente. O pior, porém, é que a desgraçada dissensão que se manifestara desde o princípio entre aquelas duas personalidades geniais não se contentara em entravar somente o progresso político, literário e filosófico do Sertão, separando em divisões estéreis aqueles dois grandes homens que, de outra maneira, bem poderiam trabalhar juntos, com resultados extraordinários para o progresso de nossa Pátria. Acontece que a luta ideológica travada entre os dois estendera-se do campo puramente político até o literário, o histórico, o filosófico e até o religioso, se posso falar assim.
Quaderna crê que a dissensão entre Clemente e Samuel entravava o
progresso político, literário e filosófico do Sertão, “separando em divisões estéreis
aqueles dois grandes homens que, de outra maneira, bem poderiam trabalhar
juntos, com resultados extraordinários para o progresso de nossa Pátria”. O que ele
quer dizer com isso é que acredita, à sua maneira, num caminho alternativo às
visões polarizadas de seus mestres que possa conciliar as visões antagônicas. Esse
caminho é o que ele pretende transformar em sistema político do Brasil com a
chegada e a ajuda de Sinésio: a Monarquia de Esquerda.
139
Nos Folhetos XL e LII, Quaderna menciona a participação de seu irmão
Malaquias (p. 281) e de seu primo Arésio na “Guerra do Verde” (p. 378) e, no
Folheto L, diz considerar esse episódio como mais um dos movimentos da revolução
sertaneja do Brasil (p. 354). No Folheto LI, afirma que a esse episódio também foi
associada pelo povo sertanejo a volta de Sinésio (p. 371).
No Folheto LIV, o narrador comenta a tentativa de golpe contra o governo
realizada pelos integralistas (p. 392) e, mais tarde na narrativa, no Folheto LXXVI,
diz que a passagem de Plínio Salgado pelo sertão intensificou os ideais “fidalgo-
ibéricos” de Samuel (p. 598), que consistiam na valorização de tudo que diz respeito
à elite intelectual e financeira branca e descendente de portugueses e espanhóis
que se concentravam nos engenhos do litoral do estado de Pernambuco, em
detrimento de tudo que diz respeito ao povo miscigenado e humilde do sertão da
Paraíba.
Por fim, no Folheto LXXX, Clemente, que é partidário da ANL e de Luís Carlos
Prestes e está enciumado porque Samuel recebeu um brasão de nobreza, chama-o
de “galinha-verde” por ser partidário da AIB e de Plínio Salgado (p. 664). No entanto,
o comunista critica Samuel apenas por ciúme, e não por ter ideologia realmente
diferente, uma vez que se acalma e alegra quando descobre que também receberá
um título nobre.
Na minissérie, há apenas uma menção a esse episódio da história nacional.
Aos 00:04:36 do terceiro capítulo, Samuel nega-se a defender Quaderna no
inquérito por ser integralista e “fiel partidário de Plínio Salgado”, posição política que
alega estar sendo perseguida desde 1937, e Clemente também se nega alegando
que o comunismo está sendo perseguido tanto quanto o integralismo.
Diferentemente do Romance, a minissérie não aprofunda essas questões políticas
de modo a esclarecer os motivos que fizeram o integralismo e o comunismo serem
perseguidos. Assim, é necessário que o telespectador tenha o conhecimento do
contexto social da época em que se passa a narrativa para compreender suas
implicações.
A Guerra do Verde, então, tem como principal função, na narrativa de
Quaderna, expor ao leitor e ao telespectador a ideologia de Clemente e Samuel,
contribuindo, assim, para a construção caricata dessas duas personagens, a
primeira como extremista de esquerda e a segunda, de direita, mas que são, na
verdade, militantes apenas no discurso, e não na prática, pois quando se sentem
140
ameaçadas, esquecem seus ideais e suas divergências e se aliam para que possam
sair ilesas de eventuais sanções. Quaderna, tendo sido influenciado pelos dois, além
de ter influência de seu tio e do cantador João Melchíades, une em si um pouco da
ideologia de cada um deles, o que o torna um ser multifacetado e, por vezes,
contraditório, características comumente atribuídas ao povo brasileiro de modo
geral.
No Romance, a Revolução de 35 é mencionada diversas vezes principalmente
com o objetivo de explicitar a repressão que ela gerou em todo o Brasil e que foi
responsável pela prisão de Quaderna, bem como para mostrar que tanto a
população humilde quanto a classe dominante de Taperoá acreditavam que Sinésio
havia voltado para pô-la em prática.
No Folheto XXXVII, Quaderna diz que a instauração do inquérito deve-se à
forte repressão que vinha sendo violenta desde novembro de 1935, depois da
“frustrada insurreição comandada por Luís Carlos Prestes” (pp. 245-246). A seguir,
no Folheto XXXIX, Clemente utiliza o argumento de que a repressão havia se
agravado após 1935 para negar-se a defender Quaderna no processo, assim como
fez Samuel (p. 258).
No Folheto XLVI, Quaderna afirma que as revoluções de 30 foram relacionadas
com uma “missão secreta” que Sinésio “teria vindo desempenhar na Revolução
comunista de 1935” (p. 321) e, depois, no Folheto LI, diz que a volta dele foi
associada pelo povo a essa e a outras revoluções anteriores (p. 371).
No Folheto XLVII, Quaderna sai de casa mais cedo do que deveria para ir
prestar seu depoimento ao Juiz Corregedor e, por isso, em vez de ir diretamente à
cadeia, vai à fonte da cidade para passar o tempo. Lá chegando, encontra Eugênio
Monteiro, que observa alguns cachorros disputando por comida. O narrador conta
que a conversa com Eugênio lhe causou má impressão e que isso se devia não
somente ao seu teor, mas ao clima misterioso e pesado que rondava a cidade nos
últimos anos devido a crimes estranhos que estavam ocorrendo, alguns causados
por motivos políticos segundo acreditava a população.
No Folheto LIX, Quaderna diz que dias de grande agitação política
antecederam a Revolução Comunista de 1935 (pp. 420-422) e, mais adiante, no
Folheto LXII, conta no inquérito que Sinésio abordou um mendigo no dia de sua
chegada à Vila e perguntou a ele sobre Antônio Villar, fato que o Juiz considera
suspeito de ligação com Luís Carlos Prestes, que estaria secreto no Brasil
141
disfarçado sob esse nome (p. 434).
No Folheto LXIV, a Revolução aparece como possivelmente estando por trás
da busca de Sinésio pelo tesouro escondido de seu pai. O Juiz Corregedor insinua
que, segundo a carta de denúncia que recebeu contra Quaderna, o objetivo de
Sinésio era encontrar todo o dinheiro do falecido Pedro Sebastião Garcia-Barretto
para financiar a Revolução. Ele insinua, ainda, que o narrador enviava “documentos
subversivos” de Antônio Villar – nome usado por Luís Carlos Prestes – a Sinésio.
Quaderna, entretanto, nega sua participação na Revolução alegando que o pacote
que enviou a Sinésio em 1º de junho de 1935 continha uma cópia manuscrita do
Caminho Místico, de “Santo Antônio Conselheiro de Canudos, o Sertanejo”, do qual
se diz devoto. Ele supõe, então, que seu delator tenha confundido Antônio
Conselheiro com Antônio Villar e causado, com isso, a confusão. Sua explicação não
parece convincente, uma vez que cita outra figura considerada subversiva, e o Juiz
Corregedor, dessa forma, não parece acreditar na explicação dada e diz que
continuará averiguando a história (p. 453).
Como Quaderna tomou parte na busca pelo tesouro montando um circo que
angariava fundos para que a expedição pudesse continuar até que a fortuna fosse
encontrada, ele foi acusado de participar ativamente da “subversão”:
[...] Primeiro, dizem que a viagem que o senhor organizou, com um Circo, em 1935, depois da chegada de Sinésio aqui, tinha como fim oculto encontrar o tesouro deixado por Dom Pedro Sebastião. [...] Ora, esse tesouro é ponto importante para a decifração do caso, porque, segundo diz a carta, quando o senhor se juntou a Sinésio, naquela viagem, o principal objetivo dos dois era encontrar o tesouro que financiaria a Revolução, em sua parte sertaneja. A segunda acusação grave que se faz aqui é que o senhor, na mesma noite em que Sinésio chegava à Vila, propiciou, na sua estalagem e casa-de-recurso, um encontro entre seu primo, Arésio Garcia-Barretto e um tal Adalberto Coura, sujeito que morava no sótão da estalagem e que não saía nunca, porque estava escondido da Polícia. Dizem que, ao mesmo tempo, o senhor enviava a Sinésio um pacote de papéis que, segundo uns, continha o roteiro do tesouro, e, segundo outros, uma porção de documentos subversivos que lhe tinham sido entregues por Adalberto Coura “da parte de um tal Antônio Villar, nome usado por Luís Carlos Prestes, chefe dos comunistas brasileiros”. (SUASSUNA, 2012, pp. 451-452)
No Folheto LXIX, a Revolução é associada à chegada de Sinésio à Vila de
Taperoá pelo Comendador Basílio Monteiro, que, assustado com essa possibilidade,
convocou os demais nobres para uma reunião de emergência após a Vila ter sido
invadida pela caravana do Rapaz-do-Cavalo-Branco e fez um pronunciamento
142
veemente no qual defendia a ideia de que o rapaz estava a serviço do comunismo e
de Luís Carlos Prestes, os quais precisavam ser combatidos:
Não preciso dizer a todos que a situação do nosso País é gravíssima. O Comunismo, lobo disfarçado de ovelha, prepara seu assalto às instituições, e somente os cegos é que não viram, ainda, o perigo que nos cerca por todos os lados, ameaçando retirar Deus dos altares, a Pátria do convívio das nações e a Família de sua posição inabalável de centro da sociedade. O Chefe escolhido e confesso desta agitação é aquele mesmo homem nefasto, já conhecido de todos nós desde que, em 1926, passou pelo sertão da nossa pequenina e gloriosa Paraíba, ensangüentando o solo sagrado da nossa terra com o sangue dos mártires, dos Sacerdotes, das pessoas ordeiras e pacatas. Que o diga o sangue do Padre Aristides Ferreira Leite, degolado em Piancó pela ‘Coluna Prestes’, juntamente com outros heróicos defensores da honra sertaneja. Mas, naquele ano de 1926, o nefando Luís Carlos Prestes agitava o Brasil não ainda em nome do Comunismo, mas sim movido por um ideal de certa forma elogiável, aquele mesmo ideal que veio a se corporificar e legitimar, depois, na gloriosa e vitoriosa Revolução de 1930. [...] Depois, porém, Luís Carlos Prestes abandonou, pelo Comunismo, a trilha que tinha seguido até ali! [...] Meus senhores! Todo mundo sabe que Luís Carlos Prestes, exilado do Brasil desde 1927, foi procurado pelos revolucionários, nas vésperas de 1930, para se colocar à frente da insurreição que se preparava. Mas ele repeliu aqueles que o convidavam, porque, segundo suas próprias palavras, se convertera ao Credo vermelho e só acreditava, daí por diante, numa Revolução inspirada pelo Comunismo ateu, regime que ele faria de tudo para implantar em nossa Pátria! [...] Hoje entrou aqui, na nossa querida Vila de Taperoá, um grupo armado, que introduziu em nossa terra a desordem e o morticínio, ameaçando a vida dos Pais de família e a honra de suas filhas e esposas. Segundo os primeiros boatos, trata-se de uma tribo de Ciganos. Mas serão Ciganos, mesmo? [...] E além disso, todo esse pessoal que chefia a tribo é, perdoem-me o vigor da expressão, estranho e suspeito. Quem será esse tal Doutor Pedro Gouveia? Quem será esse Frei Simão [...]? E chego ao ponto nevrálgico da questão: quem será, na verdade, esse rapaz que se apresenta hoje, aqui, com o nome daquele moço infortunado que morreu há três anos, em 1932, coroando, sua morte, a série de infortúnios e tragédias que se abateu sobre a ilustre família Garcia-Barretto? Quem terá sido o homem que atirou nesse rapaz, morrendo logo em seguida, a tiro, de maneira tão misteriosa? A meu ver, esse atentado, ou melhor, esse simulacro de atentado, não passou de uma outra farsa, com a qual os Comunistas pretendem jogar areia e uma cortina de fumaça diante dos olhos das pessoas respeitáveis. A situação é grave, meus Senhores! (SUASSUNA, 2012, pp. 521-524)
O Comendador condena a Revolução aparentemente porque ela estaria
“ameaçando retirar Deus dos altares, a Pátria do convívio das nações e a Família de
sua posição inabalável de centro da sociedade”, deixando apenas subentendido seu
verdadeiro interesse de preservar sua condição privilegiada pelo sistema capitalista
143
vigente. Ele se utiliza do processo de adjetivação negativa de Luís Carlos Prestes e
da cavalgada de Sinésio para evidenciar e convencer seus ouvintes do perigo que
acredita que estão correndo: “homem nefasto”, “ensangüentando o solo sagrado da
nossa terra com o sangue dos mártires, dos Sacerdotes, das pessoas ordeiras e
pacatas”, “o nefando Luís Carlos Prestes”, “um grupo armado, que introduziu em
nossa terra a desordem e o morticínio, ameaçando a vida dos Pais de família e a
honra de suas filhas e esposas”, “pessoal [...] estranho e suspeito” e “esse simulacro
de atentado [...] não passou de uma outra farsa, com a qual os Comunistas
pretendem jogar areia e uma cortina de fumaça diante dos olhos das pessoas
respeitáveis”.
No Folheto LXXVI, Quaderna menciona que, com a chegada de Sinésio, a vila
estava agitada e “os Burgueses e os ‘senhores feudais da Aristocracia rural’ – como
chama Clemente – certos de que a Revolução Comunista tinha começado, tinham
se trancado a sete chaves” (p. 593) e refere-se, ainda, ao medo que Samuel estava
sentindo de que a cavalgada fosse mesmo uma “Coluna comunista”, o que, para ele,
significaria seu “fuzilamento sumário pela canalha” (p. 595).
Por fim, no Folheto LXXXV, o Juiz Corregedor recusa-se a dar o caso de
Quaderna por encerrado por achar que, após todo o depoimento, a história está
ficando “realmente interessante”, principalmente pelo fato de Sinésio, “morto e
ressuscitado”, ter voltado às vésperas da Revolução comunista de 1935 (p. 734) e,
no momento do inquérito, estar desaparecido novamente.
A Revolução Comunista aparece dos 00:01:11 aos 00:02:04 do terceiro capítulo
da minissérie como responsável pelo clima político tenso e carregado pelo qual a
Vila de Taperoá passava no ano de 1938, quando o Juiz Corregedor chegou para
averiguar casos de subversão e acabou por intimar Quaderna a depor a fim de
esclarecer denúncias feitas contra ele numa carta anônima. Essa condição exposta
pelo narrador-personagem enquanto está na cadeia é corroborada pela atitude de
seus mestres Clemente e Samuel aos 00:03:31 do terceiro capítulo, quando estes se
negam a defender o réu no inquérito pelo motivo de a repressão ter se agravado
muito após a Revolução de 35, fato que poderia fazer a investigação se voltar contra
eles, que eram, aquele, comunista visado como partidário de Luís Carlos Prestes, e
este, integralista visado como partidário de Plínio Salgado.
Ainda, aos 00:03:15 do quarto capítulo, a Revolução de 35 é tida como
responsável pelo retorno de Sinésio à Taperoá: o Juiz revela que a carta anônima
144
recebida denuncia que o circo fundado por Quaderna tinha a função de financiar a
busca pelo tesouro escondido por Pedro Sebastião Garcia-Barretto, o qual, por sua
vez, financiaria a Revolução, sentido também presente no Romance.
Assim, a inserção da Revolução Comunista no Romance e na minissérie cria o
mesmo efeito de sentido que a da Revolução de 30: justifica a abertura do inquérito
em que Quaderna é réu devido ao clima inquisitorial que ela suscitava e proporciona
à personagem Sinésio uma aura de mistério, uma vez que ele poderia estar voltando
à Vila de Taperoá apenas para obter a parte que lhe cabia na herança deixada pelo
pai e, assim, poder retomar sua vida ou poderia ser um aliado de Luís Carlos
Prestes e estar voltando à Vila a fim de obter a herança para financiar a revolução
comunista, o que o caracterizaria como subversivo pelas autoridades, e como um
verdadeiro “Prinspe Alumioso” por Quaderna e pela população sertaneja mais pobre
e desprovida que tomou o partido dele contra o irmão Arésio por ser incitada, pelo
narrador, a crer que ele seja a reencarnação de Dom Sebastião.
No Romance, o Golpe de 1937 é mencionado três vezes a fim de mostrar como
o ambiente ditatorial fazia com que a população se sentisse reprimida e impedia a
concretização do sonho de Quaderna de ver seu primo Sinésio empreender a
grande revolução sertaneja, finalmente “recolocando” sua família no comando do
Brasil.
No Folheto XXVI, Quaderna, ironicamente, diz orgulhar-se de que o poeta e
jurisconsulto taperoaense Raul Machado fizesse parte do Tribunal de Segurança
Nacional, instituído pelo Golpe e “encarregado de dar cor jurídica à repressão por
ele instaurada” (p. 177) e, no Folheto XXXVII, mostra-se frustrado e atribui ao Golpe
a responsabilidade pela atmosfera pesada da Vila de Taperoá e do Brasil como um
todo, devido a denúncias que criavam um clima quase inquisitorial entre os
cidadãos:
Era aquela fatídica Quarta-feira de Trevas, 13 de Abril deste nosso ano de 1938. [...] Era, como Vossas Excelências bem se lembram, um tempo fatídico e perigoso, aquele. Do meu ponto de vista pessoal, estávamos, ainda, dentro do “Século do Reino”. Desde 1935 que eu esperava que um acontecimento qualquer – uma guerra, um cometa, uma revolução, um milagre – me repusesse, de repente, no trono que minha família ocupara um século antes. Por outro lado, do ponto de vista geral do Brasil, com o tenso e carregado ambiente político que estávamos vivendo desde a Revolução comunista de 1935 e o golpe de Estado de 10 de
145
Novembro do ano passado, 1937, a nossa Vila estava subvertida por muitos ódios, ressentimentos, ambições e invejas, meio endoidecida por um ambiente inquisitorial de denúncias, suspeitas, cartas anônimas, traições, às vezes as mais inesperadas. De fato, desde Novembro de 1935, depois da frustrada insurreição comandada por Luís Carlos Prestes, chefe dos comunistas brasileiros, a repressão vinha sendo violenta. Estavam presos ou exilados inúmeros comunistas e liberais-de-esquerda da Aliança Nacional Libertadora, partido que desencadeara a revolta e fora colocado fora da lei. Durante certo tempo, o Presidente Getúlio Vargas parecera se aliar ao partido de extrema-direita, a Ação Integralista Brasileira [...]. Mas, de repente, sem que ninguém esperasse por aquilo, o Presidente Vargas deu um golpe de Estado [...] colocando os integralistas fora da lei, como fizera já, dois anos antes, com os comunistas. Esperava-se, para qualquer momento, um revide dos integralistas [...]. (SUASSUNA, 2012, pp. 245-246)
No Folheto L, o Juiz Corregedor pergunta a Quaderna se é verdade que há
dois extremistas (Samuel e Clemente) escondidos em casas de sua propriedade
desde a instauração do Estado Novo e o réu lhe responde que é verdade que há
dois extremistas morando em casas suas, porém, que não estão escondidos, pois
todos sabem disso (p. 340).
Na minissérie, dos 00:01:11 aos 00:02:04 do terceiro capítulo, o Golpe de 37
aparece de forma sucinta, porém, com função similar à que exerce no Romance: ser
tido, por Quaderna, quando já se encontra preso, como um dos responsáveis pelo
clima político tenso e carregado pelo qual passava a Vila na época da chegada do
Juiz Corregedor (1938) e como o desencadeador de sua prisão.
Dessa forma, tanto no Romance quanto na minissérie, percebe-se que
Quaderna vê o Golpe com frustração, pois acredita que uma revolução poderia ter
sido concluída com sucesso para ele e seu primo, que assumiriam o trono do
império do Brasil, mas foi interrompida pela nova ordem política.
Como vimos, o Romance e a minissérie estabelecem diálogos intertextuais
com o mito de Dom Sebastião, com os movimentos messiânicos ocorridos no
nordeste no século XIX na Serra do Rodeador, na Pedra Bonita e em Canudos, e
com algumas revoltas políticas realizadas no Brasil nas quatro primeiras décadas do
século XX: a Guerra de Doze (1912), a Sedição de Juazeiro (1914), a Coluna
Prestes (1926), a Revolta de Princesa (1930), a Revolução de 1930, a Guerra do
Verde (1932), a Revolução de 1935 e o Golpe do Estado Novo (1937).
O mito de Dom Sebastião se faz presente no Romance e na minissérie quando
se supõe que os Garcia-Barretto, família materna do narrador Quaderna, descende
146
diretamente do rei português. Essa possibilidade contribui para que seu primo
Sinésio tenha, aos olhos do narrador e da população sertaneja, ares de donzel
cruzado, sendo visto como o próprio rei que voltou para finalmente instaurar, no
sertão, um reino de igualdade e felicidade para todos. Dom Sebastião está presente,
ainda, no imaginário dos antepassados paternos de Quaderna que se
autoproclamaram reis na Serra do Rodeador (que aparece apenas no Romance) e
na Pedra Bonita (que aparece no Romance e na minissérie) e que diziam que o
monarca se desencantaria se seus súditos tivessem fé e devoção a ele. Esses
impérios de seus antepassados são responsáveis por desenvolver em Quaderna a
ambição de ser ele, também, um rei.
Canudos aparece no Romance, mas não na minissérie, para transmitir a ideia
de que Quaderna admira o Conselheiro por ele ter fundado uma comunidade
paralela à República e se levantado contra as autoridades. É isso que o narrador do
Romance tem a intenção de realizar para tornar-se Imperador do Brasil, mas diz não
ter a coragem necessária de fazê-lo. Na minissérie, essa ideia é transmitida apenas
pelo episódio da Pedra Bonita, desencadeado pelo bisavô de Quaderna.
A presença dos movimentos de 1912, 1914, 1926, 1930 e 1932 no Romance e
na minissérie produz três sentidos importantes: 1-) transmite a ideia de que a família
de Quaderna (mais precisamente seu tio e padrinho, Dom Pedro Sebastião Garcia-
Barretto, mas também alguns de seus irmãos, seu primo Arésio e alguns conhecidos
seus), se envolvia em questões políticas e levava-o consigo, fazendo com que ele
participasse delas ao menos de maneira indireta, o que, segundo ele, acaba por
implicá-lo no inquérito em que se vê metido em 1938 como perigoso agente político;
2-) esclarece ao leitor e ao espectador a crença de Quaderna de que ele ainda seria
rei do Brasil, como acredita que seus antepassados o foram. Ele nos dá a conhecer
essa crença quando, ao narrar a participação de sua família em cada um dos
levantes, comenta que eles eram vistos como batalhas de uma guerra maior que seu
primo Sinésio viria desencadear em 1935, quando recolocaria a família no comando
do Brasil; 3-) mostra as divergências no modo como a elite e a população humilde
taperoaense enxergavam cada um dos movimentos: a primeira, como revoltas
contra o governo que ameaçavam os poderosos porque visariam à instauração do
comunismo no Brasil; a última, como revoltas que, de maneira mística e através do
retorno de Dom Sebastião, instaurariam um mundo mais igualitário onde essa
parcela da população teria saúde, felicidade e dinheiro. Vemos, assim, que a
147
inserção dessas revoltas permitiu que se instaurasse o plurilinguismo entre o
narrador e as personagens das diferentes camadas da sociedade presentes na
diegese e entre a obra e o contexto social brasileiro expresso por meio dos
discursos históricos, oficiais ou não, citados e referidos pelo narrador.
A Guerra do Verde é importante no Romance e na minissérie, também, para a
constituição das personagens Samuel e Clemente, como opostas e caricaturadas –
este, comunista partidário da ANL, aquele, integralista partidário da AIB.
A Revolução de 1935, por sua vez, aparece no Romance e na minissérie como
supostamente tendo a participação de Sinésio e do narrador, que monta um circo
para apoiar o primo e sobrinho. Quaderna, todavia, não assume que a busca de
Sinésio pelo tesouro escondido de seu pai tenha o intuito de financiar a Revolução
Comunista. Ele assume, porém, ter ajudado o primo e sobrinho com a esperança de
que ele fosse levar a cabo a Guerra do Reino, que recolocaria a família Quaderna no
trono do Brasil. Foi o desencadeamento dessa revolução, somado à história familiar
de Quaderna, que o fez ser considerado perigoso pelas autoridades quando ocorreu
o Golpe do Estado Novo de 1937, o qual é mencionado tanto no Romance quanto na
minissérie para justificar o ambiente inquisitorial que pairava sobre Taperoá (e todo o
Brasil) e que foi o causador da prisão de Quaderna com a abertura do inquérito pelo
Juiz Corregedor.
A seguir, estudaremos os procedimentos transformacionais utilizados na
adaptação de Luiz Fernando Carvalho ora para a manutenção de sentidos presentes
no Romance ora para a construção de novos sentidos a partir do emprego de
eventos que já apareciam no livro, e também de eventos que foram criados
especialmente para integrar a narrativa televisiva, além da priorização de certas
passagens em detrimento de outras visando à adequação do novo texto ao suporte
para o qual estava sendo produzido.
148
CAPÍTULO III: PROCEDIMENTOS TRANSFORMACIONAIS DA ADAPTAÇÃO
O Prinspo do Cavalo Branco é um despropósito pra ressuscitar: o Governo facilitou, ele ressuscita!
Lino Pedra-Verde – A Pedra d’O Reino
A minissérie A Pedra d’O Reino (hipertexto) estabelece importante diálogo com
o Romance (hipotexto). Ela foi produzida e exibida pela Rede Globo em homenagem
ao octogésimo aniversário de Ariano Suassuna, no ano de 2007 e, nela, o diretor
Luiz Fernando Carvalho empreendeu sua tentativa de adaptar o complexo texto de
Suassuna realizando o que ele chamou de uma “aproximação” delicada ao universo
Armorial suassuniano, processo que, para ele, envolve a reinterpretação e a
ressignificação do texto original ao novo meio (MICHELETTI, 2007, p. 181). O
produto de seu esforço foi transmitido em cinco capítulos que foram ao ar de 12 a 16
de junho de 2007.
Muitas equivalências com o Romance são encontradas na minissérie, como
aponta Micheletti (2007, pp. 183-185): o sertão da obra de Suassuna foi
representado por Carvalho nas imagens panorâmicas presentes nas primeiras cenas
da minissérie.
Figura 58: Panorâmica do sertão, apresentada aos 00:01:14 do primeiro capítulo.
149
O encontro entre o popular e o erudito ocorreu desde a concepção teatral do
programa produzido para a televisão até a preparação de atores para o desempenho
de seus papéis diante das câmeras. O olhar para a história também apareceu na
minissérie, bem como a mescla dos tempos histórico, biográfico e memorialista,
representada pela presença, às vezes simultânea, de Quaderna criança e velho, ou
jovem adulto e velho na mesma cena.
Figura 59: Aos 00:29:35 do primeiro capítulo, Quaderna menino assiste à cavalhada.
Figura 60: Aos 00:29:47 do primeiro capítulo, Quaderna velho rememora cavalhada.
150
Com a fragmentação do tempo, criou-se um produto estético inovador que
fugiu aos padrões vigentes na televisão, exigindo do telespectador maior atenção e
concentração para acompanhar a narrativa e, dessa forma, “distanciando-se
daquelas produções que sempre repetem o mesmo modelo” (MICHELETTI, 2007,
pp. 182-185).
No entanto, a minissérie A Pedra d’O Reino é uma obra diferente de seu
hipotexto, pois se sustenta – embora não em todos os pontos – sem a necessidade
de que o espectador conheça o original para compreendê-la, e utiliza-se de
mecanismos próprios do meio para o qual foi produzida – a TV – para recontar uma
história que nos tinha sido dada a conhecer pela e através da literatura. Por isso,
operou algumas transformações no hipotexto visando a tornar-se uma produção
possível de ser acompanhada no novo suporte, sem, contudo, utilizar-se de todas as
suas convenções.
Assim como o Romance é dividido em cinco livros, a minissérie é dividida em
cinco capítulos, cada um recebendo título oficial idêntico ao dos livros, com uma
pequena exceção ao quinto: Capítulo 1 – A Pedra do Reino; Capítulo 2 – Os
Emparedados; Capítulo 3 – Os Três Irmãos Sertanejos; Capítulo 4 – Os Doidos;
Capítulo 5 – A Demanda do Sagral (um pouco diferente do quinto livro do Romance,
chamado “A Demanda do Sangral”), e retratando, de modo geral, os mesmos
eventos apresentados em cada livro do Romance. Extraoficialmente, os capítulos da
minissérie foram intitulados pelo diretor, respectivamente: Alma, Tronco, Cabeça,
Membros e Coração, devido ao teor dos acontecimentos apresentados neles.
No capítulo “A Pedra do Reino” ou “Alma”, dá-se ênfase aos acontecimentos
considerados mais sagrados por Quaderna: o reinado de seu bisavô na Pedra do
Reino, pelo qual se sente culpado, mas que busca restaurar; a volta de seu primo e
sobrinho Sinésio, que ele vê como uma possibilidade de atualização do rei que foi
seu bisavô; e sua infância.
A seguir, no capítulo intitulado “Os Emparedados” ou “Tronco”, a ênfase é dada
aos elementos que sustentam a vida prática, mas também o sonho do narrador: sua
educação “samuélica” e “clementina”; a criação de seu Catolicismo Tapuio-Sertanejo
possibilitada pela negação do Catolicismo Romano quando de sua estadia no
seminário; e seu relacionamento com Maria Safira.
Em “Os Três Irmãos Sertanejos” ou “Cabeça”, mostram-se os elementos que
estão no centro da narrativa: o depoimento ao Juiz Corregedor; a morte de seu tio e
151
padrinho Pedro Sebastião Garcia-Barretto; e o desaparecimento – morte –
ressurgimento de Sinésio.
No capítulo “Os Doidos” ou “Membros”, somos apresentados aos rituais
litúrgicos de Quaderna, durante os quais ele se veste de rei e profeta e roga às
santidades que seu sonho se torne realidade.
Em “A Demanda do Sagral” ou “Coração”, é apresentada a decisão de
Quaderna e de seus mestres Samuel e Clemente em acompanhar Sinésio na busca
pelo tesouro escondido por seu pai em algum lugar do sertão, com um fim maior,
especial para cada um: para Clemente, realizar uma Revolução Socialista; para
Samuel, acompanhar um cavaleiro donzel e puro cujos ideais assemelham-se aos
de Dom Sebastião; para Quaderna, instaurar novamente um reinado comandado por
sua família.
O conteúdo e o título do quinto livro do Romance, “A Demanda do Sangral”,
fazem referência à novela de cavalaria do ciclo arturiano A Demanda do Santo
Graal, em que os cavaleiros da Távola Redonda saem em busca do cálice sagrado
usado por Jesus na Última Ceia e no qual, quando da crucificação, José de
Arimateia teria colhido o sangue de Cristo. No entanto, a demanda de Sinésio e
Quaderna, tanto no Romance quanto na minissérie, não é pelo Santo Graal, objeto
sagrado, e sim pela fortuna escondida por Pedro Sebastião, a qual, se encontrada
por eles, possibilitaria a instauração de um reino que, para o narrador, seria sagrado.
O nome “Sangral” seria um neologismo oriundo da aglutinação das palavras
“Santo” e “Graal” possivelmente inspirado pela oralidade da região nordeste onde se
passa a narrativa, mas ganha também uma sonoridade próxima a das palavras
“sangue” e “sangrar”, adquirindo uma conotação negativa que faz referência aos
inúmeros conflitos e às inúmeras mortes que ocorrerão nessa busca de Sinésio. O
título do quinto capítulo da minissérie, que troca a palavra “Sangral” por “Sagral”, faz
referência, também, à busca de Quaderna pela sua sagração como Gênio da Raça
Brasileira e Gênio Máximo da Humanidade com a escrita de sua obra.
Na construção de cada um dos capítulos, alguns acontecimentos do Romance
foram excluídos, outros foram antecipados e outros postergados; novos episódios
foram adicionados e episódios que no Romance eram singulativos, na minissérie
passaram a ser iterativos e vice-versa, como se pode ver de modo sucinto, e de fácil
visualização, na tabela comparativa abaixo, e de maneira mais aprofundada no
subcapítulo que segue:
152
Principais acontecimentos do romance e da minissérie
Romance d’A Pedra do Reino e o
príncipe do sangue do vai-e-volta,
dividido em cinco livros
Minissérie A Pedra d’O Reino, dividida
em cinco capítulos
1-) Epítome (p. 27)
Livro I:
Prelúdio: A Pedra do Reino
2-) Apresentação do narrador, Quaderna
(Folheto I – pp. 31-35).
3-) Chegada do bando do Rapaz-do-
Cavalo-Branco (Folhetos II e III – pp. 35-
59).
4-) Morte de Pedro Sebastião Garcia-
Barretto, menção a seus três filhos e
desaparecimento do mais novo, Sinésio
(Folheto IV – pp. 59-65).
5-) Reinado dos antepassados de
Quaderna, principalmente o massacre
realizado por seu bisavô Dom João II, na
Pedra do Reino (Folhetos V a X – pp.
65-84).
6-) Descrição de Tia Filipa e da dança de
que Quaderna participou com a menina
Rosa, por quem era apaixonado, e de
outros acontecimentos da infância: as
cavalhadas e o contato com João
Melchíades (Folhetos XI a XIV – pp. 84-
116).
7-) Ida de Quaderna às Pedras do Reino
e sua autoproclamação como rei
(Folhetos XV a XXII – pp. 116-154).
Capítulo I:
A Pedra do Reino / Alma
1-) Panorâmica do sertão e dança de
roda dos personagens com Quaderna ao
centro (00:01:11 – 00:03:15).
2-) Apresentação dos três filhos de
Pedro Sebastião Garcia-Barretto
(00:03:16 – 00:05:24).
3-) Apresentação do narrador, Quaderna
(00:05:25 – 00:07:45).
4-) Chegada do bando do Rapaz-do-
Cavalo-Branco (00:07:46 – 00:14:31)
(00:14:48 – 00:15:08).
5-) Morte de Pedro Sebastião Garcia-
Barretto e desaparecimento de Sinésio
(00:14:32 – 00:14:47) (00:15:09 –
00:19:33).
6-) Massacre da Pedra do Reino pelo
bisavô de Quaderna (00:19:34 –
00:23:53) (00:24:21 – 00:26:30).
7-) Apresentação da infância de
Quaderna: episódio da dança
coordenada por Tia Filipa e do amor por
Rosa, das cavalhadas e do contato com
João Melchíades (00:23:54 – 00:24:20)
(00:26:31 – 00:30:44).
8-) Ida de Quaderna às Pedras do Reino
e sua autoproclamação como rei
(00:30:45 – 00:46:22).
153
Livro II:
Chamada: Os Emparedados
1-) Apresentação da genealogia de
Quaderna e hipótese de parentesco dos
Garcia-Barrettos com Dom Sebastião e
dos Ferreira-Quadernas com Dom Dinis
(Folhetos XXIII, XXIV e XXV – pp. 157-
170).
2-) Apresentação de Clemente e Samuel
(Folheto XXIV – pp. 164-173) (Folheto
XXXIX – pp. 253-256).
3-) Ida de Quaderna ao seminário e sua
expulsão (Folheto XXV – p. 167)
(Folheto XXVI – p. 178).
4-) Descrição de Maria Safira e do
relacionamento que Quaderna mantinha
com ela (Folheto XXVI – pp. 173-174).
5-) Ingestão de cardina por Quaderna
(Folheto XXVI – p. 174).
6-) Fundação da Academia de Letras
dos Emparedados do Sertão da Paraíba
(Folhetos XXVI e XXVII – pp. 170-187).
7-) Discussão sobre o Gênio da Raça, o
Gênio Máximo da Humanidade e a
Filosofia do Penetral e revelação de que
Quaderna pretende escrever um
romance sobre a morte do padrinho
(Folhetos XXVIII a XXXII – pp. 187-206)
(Folhetos XXXIV a XXXVI – pp. 214-
242).
8-) Visagem de Lino Pedra-Verde com o
Cavaleiro Diabólico (Folheto XXXIII – pp.
207-214).
Capítulo II:
Os Emparedados / Tronco
1-) Chegada do Juiz Corregedor à Vila
dizendo que contas serão prestadas a
ele. Quaderna o vê enquanto conta que
o seu sonho era ser rei da Pedra do
Reino, como seus antepassados
(00:01:11 – 00:03:12).
2-) Apresentação da genealogia de
Quaderna e hipótese de parentesco dos
Garcia-Barrettos com Dom Sebastião
(00:03:13 – 00:06:52).
3-) Apresentação de Clemente e Samuel
(00:03:13 – 00:10:01).
4-) Ingestão de cardina por Quaderna
(00:06:53 – 00:07:29).
5-) Ida de Quaderna ao seminário e sua
expulsão (00:10:02 – 00:13:13).
6-) Ida de Quaderna e Sinésio à casa de
Edmundo Swendson e encontro de
Sinésio com Heliana Swendson
(00:13:14 – 00:17:52).
7-) Visagem de Lino Pedra-Verde com o
Cavaleiro Diabólico (00:17:53 –
00:21:30).
8-) Fundação da Academia de Letras do
Emparedados do Sertão da Paraíba
(00:21:31 – 00:23:04).
9-) Relacionamento de Maria Safira e
Quaderna (00:23:05 – 00:25:25).
10-) Discussão sobre o Gênio da Raça
Brasileira (00:25:26 – 00:31:46).
11-) Chegada do Juiz Corregedor
154
(00:31:47 – 00:34:16).
Livro III:
Galope: Os Três Irmãos Sertanejos
1-) Intimação de Quaderna para depor
ao Juiz Corregedor (Folheto XXXVII –
pp. 245-247).
2-) Briga de Quaderna com um
escrevente de cartório (Folheto XXXVIII
– pp. 247-251).
3-) Discussão política e duelo entre
Clemente e Samuel (Folhetos XXXIX a
XLII – pp. 252-302).
4-) Almoço e sonho de Quaderna com a
Onça Caetana (Folhetos XLIII e XLIV –
pp. 302-306).
5-) Encontro com Pedro Beato, marido
de Maria Safira (Folheto XLV – pp. 307-
320).
6-) Quaderna se mostra com medo do
novo processo que está prestes a
enfrentar e se diz cansado das inúmeras
lutas políticas de que participou (Folheto
XLVI – pp. 320-324).
7-) Encontro com Eugênio Monteiro
(Folheto XLVII – pp. 324-331).
8-) Encontro com Maria Safira na igreja
(Folheto XLVIII – pp. 331-334).
9-) Início do depoimento de Quaderna
ao Juiz Corregedor (Folhetos XLIX e XL
– pp. 334-358).
10-) Morte de Pedro Sebastião Garcia-
Barretto, desaparecimento de Sinésio e
notícia de sua suposta morte em 1932
Capítulo III:
Os Três Irmãos Sertanejos / Cabeça
1-) Intimação de Quaderna para depor
(00:01:11 – 00:03:27).
2-) Discussão política e duelo entre
Clemente e Samuel (00:03:28 –
00:11:21).
3-) Sonho de Quaderna com a Onça
Caetana (00:11:22 – 00:13:48).
4-) Encontro com Pedro Beato (00:13:49
– 00:19:46).
5-) Encontro com Maria Safira na igreja
(00:19:47 – 00:21:02).
6-) Início do depoimento ao Juiz
Corregedor (00:21:03 – 00:28:06).
7-) Morte de Pedro Sebastião Garcia-
Barretto, desaparecimento de Sinésio e
sua suposta morte (00:28:07 –
00:39:12).
8-) Chegada do bando do Rapaz-do-
Cavalo-Branco (00:39:13 – 00:45:59).
9-) Atentado contra Sinésio e morte do
atirador (00:46:00 – 00:50:25).
10-) Reencontro de Sinésio com
Silvestre (00:50:26 – 00:52:08).
155
(Folhetos LI e LII – pp. 358-380).
11-) Chegada do bando do Rapaz-do-
Cavalo-Branco (Folhetos LIII a LXI – pp.
380-431).
12-) Atentado contra a vida de Sinésio e
morte do atirador (Folheto LXII – pp.
432-439).
13-) Reencontro de Sinésio com
Silvestre (Folheto LXIII – pp. 439-443).
Livro IV:
Tocata: Os Doidos
1-) Revelação ao Juiz Corregedor de
que Quaderna descende dos “fanáticos”
da Pedra do Reino (Folhetos LXIV e LXV
– pp. 447-467).
2-) Revelação do que algumas pessoas
estavam fazendo na tarde em que o
bando do Rapaz-do-Cavalo-Branco
chegou e de que Heliana Swendson foi o
grande amor da vida de Sinésio
(Folhetos LXVI e LXVII – pp. 467-501).
3-) Reunião convocada pelo
comendador para falar sobre a chegada
do bando à Vila e ataque de Arésio ao
Bispo (Folhetos LXVIII a LXX – pp. 501-
532).
5-) Ida de Quaderna ao seminário e sua
expulsão (Folheto LXXI – pp. 532-546).
5-) Almoço de Quaderna no lajedo, sua
cegueira e seu retorno à vila com a
ajuda de Lino Pedra-Verde (Folhetos
LXXII a LXXV – pp. 546-590).
Capítulo IV:
Os Doidos / Membros
1-) Revelação ao Juiz Corregedor de
que Quaderna descende dos “fanáticos”
da Pedra do Reino (00:01:11 –
00:07:37).
2-) Revelação do que algumas pessoas
estavam fazendo na tarde em que o
bando do Rapaz-do-Cavalo-Branco
chegou (00:01:11 – 00:17:25).
3-) Reunião convocada pelo
comendador para falar sobre a chegada
do bando à Vila e ataque de Arésio ao
Bispo (00:17:26 – 00:22:25).
4-) Almoço de Quaderna no lajedo, sua
cegueira e seu retorno à vila com a
ajuda de Lino Pedra-Verde (00:22:26 –
00:42:45).
156
Livro V:
Fuga: A Demanda do Sangral
1-) Ideia de Quaderna de montar um
circo e sair em expedição com Sinésio
para encontrar o tesouro escondido por
Pedro Sebastião Garcia-Barretto
(Folhetos LXXVI a LXXVIII – pp. 593-
621).
2-) Encontro de Arésio com Adalberto
Coura (Folheto LXXIX – pp. 621-653).
3-) Decisão de Quaderna, Samuel e
Clemente em acompanhar o bando de
Sinésio em busca do tesouro (Folheto
LXXX – pp. 653-688).
4-) Exaltação da figura de Sinésio como
sendo messiânica por parte do povo
(Folhetos LXXXI a LXXXIV – pp. 688-
728).
5-) Fuga do bando de Sinésio para um
tabuleiro (Folheto LXXXIV – pp. 729-
732).
6-) Fim do depoimento.
7-) Sonho de Quaderna sendo
condecorado com os títulos de
Arcebispo da Paraíba e Rei da Távola
Redonda da Literatura do Brasil (Folheto
LXXXV – pp. 732-742).
Capítulo V:
A Demanda do Sagral / Coração
1-) Exaltação da figura de Sinésio como
sendo messiânica por parte do povo
(00:01:11 – 00:03:37) (00:22:49 –
00:29:20).
2-) Encontro de Arésio com Adalberto
Coura (00:03:38 – 00:16:55).
3-) Decisão de Quaderna, Samuel e
Clemente de montar um circo e sair em
expedição com Sinésio para encontrar o
tesouro escondido por Pedro Sebastião
Garcia-Barretto (00:16:56 – 00:22:48).
4-) Elucidação da morte de Pedro
Sebastião Garcia-Barretto e do destino
de seus três filhos (00:29:21 – 00:38:18).
5-) Confissão de Quaderna de que ele
próprio escreveu a carta de denúncia
(00:38:19 – 00:42:10).
6-) Fim do depoimento.
7-) Desmaio de Quaderna e sonho dele
sendo condecorado com o título de Rei
da Távola Redonda da Literatura do
Brasil (00:42:11 – 00:47:04).
7-) Quaderna velho, no meio do sertão,
acha três moedas, vê-se menino,
declama um poema sobre um rei, vê o
tio e padrinho que foi morto e sai
tocando violino (00:47:05 – 00:50:12).
3.1 Excisões, Concisões, Extensões Temáticas e Transmodalizações Intramodais
Como já explicitado anteriormente, a excisão é o mais simples dos
procedimentos de redução: caracteriza-se pela pura supressão de alguma parte do
157
texto, sem necessariamente acarretar uma diminuição de valor.
No primeiro capítulo da minissérie, quando da apresentação do sangue real de
Quaderna, houve a excisão da história de sua família paterna que antecedeu e que
sucedeu o reinado de seu bisavô. Assim, na minissérie, não são mencionados o
Primeiro Império, de Silvestre José dos Santos, o Segundo Império, de João Antônio
Vieira dos Santos, e o Quarto Império, de Pedro Antônio Vieira dos Santos. É-nos
mostrado apenas o Terceiro Império, de João Ferreira-Quaderna, na Pedra Bonita.
Esse procedimento não alterou significativamente o sentido do hipotexto
porque o reinado que mais impressionou, orgulhou e motivou o narrador em sua
escolha de modo de vida foi mantido e bem explorado pelo diretor, que o retratou
com grandiosidade de modo a dar a entender ao público a importância que sua
descoberta por Quaderna ainda menino teve para a construção de sua
personalidade, sonhos e realizações.
Além dessa excisão, no segundo capítulo, Luiz Fernando Carvalho optou por
não mencionar a hipótese de a família paterna do narrador, os Ferreira-Quadernas,
ser descendente do Rei Dom Dinis de Portugal. Ele manteve apenas a hipótese de a
família materna, os Garcia-Barrettos, descender do Rei Dom Sebastião de Portugal.
Essa excisão, assim como a feita no primeiro capítulo, não afeta de maneira
significativa a ideia transmitida no hipotexto, pois Quaderna, que no Romance podia
dizer-se descendente de reis tanto pelo lado de sua mãe quanto pelo lado de seu
pai, continua sendo de linhagem real na minissérie.
No terceiro capítulo, por sua vez, são feitas três excisões: da briga do narrador
com um escrevente de cartório, do seu encontro com Eugênio Monteiro antes de
dirigir-se à delegacia para dar início ao interrogatório e da revelação de que
Quaderna está com medo do interrogatório e cansado das inúmeras lutas em que se
envolveu juntamente com o tio.
A omissão dos dois primeiros acontecimentos não foi decisiva e, portanto, não
afetou a criação de sentido, pois suas mensagens puderam ser transmitidas na
minissérie em outros momentos.
A mensagem principal transmitida pela briga, no Romance, é a de que havia
pessoas que antipatizavam com Quaderna pelo fato de ele se vangloriar de ser
descendente dos reis de Pedra Bonita e vestir-se com vestimentas extravagantes a
fim de honrar essa descendência. Essa mensagem é transmitida com sucesso pelo
diálogo com Pedro Beato na minissérie.
158
Já a mensagem principal do encontro com Eugênio é a de que o interrogatório
não acabaria bem para Quaderna, além de que o clima político era tenso na cidade.
A ideia de que o inquérito não acabaria bem é omitida na minissérie porque nela o
autor da carta de denúncia é o próprio narrador. A ideia de tensão política, por sua
vez, é transmitida pelo narrador quando ele começa a explicar o motivo da chegada
do Juiz Corregedor à Taperoá.
A excisão da confissão de que Quaderna está com medo do interrogatório é
coerente com o final que Luiz Fernando Carvalho escolheu para a narrativa: de que
o narrador foi seu próprio delator visando a ter uma biografia parecida à dos grandes
mestres da literatura. A excisão da enumeração das revoltas e guerras de que ele
participou ao lado de seu padrinho, por sua vez, faz parte de um procedimento
necessário para que a adaptação de um romance de mais de setecentas páginas
pudesse tornar-se uma minissérie em cinco capítulos de apenas cerca de quarenta e
cinco minutos cada: a omissão da maioria das citações de fatos históricos, de obras
da historiografia, de nomes de escritores e de obras literárias, assunto que
abordaremos mais adiante quando tratarmos das concisões e das
transmodalizações intramodais.
No quinto capítulo da minissérie, não ocorre a fuga do bando de Sinésio para
um tabuleiro por medo de que, ficando na vila, sofressem algum ataque inimigo.
Esse acontecimento marca, no Romance, a divisão da vila entre os partidários de
Arésio, que ficaram no centro, e os partidários de Sinésio, que subiram para o
tabuleiro a fim de se alistar para a luta. Na minissérie, essa divisão é marcada
apenas no nível do discurso, sem a ação que corresponde a ela, quando Quaderna,
no meio de seu depoimento, menciona-a ao Juiz, no terceiro capítulo. Contudo, ela é
ilustrada pela aparição de Arésio atrás e num nível acima de seus partidários de um
lado da sala em que se encontram o depoente, a escrivã e o Juiz, e de Sinésio e
seus partidários do outro lado:
159
Figura 61: Partidários de Arésio aos 00:36:18 do terceiro capítulo.
Figura 62: Partidários de Sinésio aos 00:37:06 do terceiro capítulo.
A concisão consiste na reescrita do texto em estilo mais conciso, isto é, na
produção de um novo texto com novos recursos. Esse procedimento é aplicado à
quase todas as cenas da minissérie, que são mais curtas em relação às do
Romance, pelo motivo principal de tornar possível que a narrativa extensa do livro
pudesse ser contada em apenas cinco capítulos, e também para adequá-las ao novo
meio, que exige uma maior dinamicidade.
160
A maior parte das cenas não é encurtada no que diz respeito à ação das
personagens, mas sim no que concerne às descrições, às digressões e aos
comentários do narrador. Dessa forma, o Quaderna da minissérie fala menos, e
sobre menos assuntos, obras e pessoas, que o do Romance. De modo geral, ele se
limita a contextualizar a cena que será dramatizada em seguida e a expressar seus
sentimentos – ocultos para as demais personagens – em relação a uma cena que
acabou de ser exibida. Atua, ainda, de modo concomitante com a cena, com seus
lábios se movendo exatamente como os das personagens, para dar a entender ao
telespectador que aquele episódio já ocorreu e está sendo rememorado e contado
por ele no livro que escreve na cadeia.
A principal consequência dessa forma de concisão realizada pelos roteiristas
da minissérie foi a drástica diminuição das mais de quatrocentas referências a obras
literárias (canônicas e de cordel) e historiográficas, a fatos históricos, a romancistas,
cantadores e historiadores feitas no Romance.
Essa escolha do diretor torna a narrativa televisiva mais dinâmica que a do livro
não apenas para que ela “caiba” dentro dos cinco capítulos, mas também para que
se adeque melhor ao meio televisivo, em que não é comum termos, por muito
tempo, a ausência de ação e a presença de monólogos, e sim o contrário.
A primeira cena em que a concisão se faz presente na narrativa televisiva é a
da apresentação do narrador, que ocorre aos 00:05:25 – 00:07:45 do Capítulo I e
corresponde ao Folheto I do Romance (SUASSUNA, 2012, pp. 31-35). Ela
exemplifica a maneira como o procedimento foi adotado nas demais cenas.
A fim de apresentar o narrador, a cena televisiva limita-se a mostrá-lo dentro de
uma cadeia tecendo comentários sobre a terra onde se encontra e a fazer com que
ele diga seu nome e cognome e escreva, de maneira convulsiva, o que diz. Não são
mencionados ou mostrados seus antepassados, as obras literárias e historiográficas
a que se refere no Romance para exemplificar o tipo de obra que está produzindo e
tampouco a Guerra dos Doze, da qual participou em companhia do tio e padrinho.
Isso significa que a cena da minissérie se detém aos aspectos necessários ao
entendimento da personagem e da ação, descartando fatos históricos e
obras/personalidades/correntes literárias que não afetam diretamente os
acontecimentos da narrativa.
Em todas as outras cenas do primeiro capítulo esse procedimento é adotado.
Na cena da chegada do bando do Rapaz-do-Cavalo-Branco, na da morte de Pedro
161
Sebastião Garcia-Barretto, na do massacre de Pedra Bonita pelo bisavô de
Quaderna, na da apresentação de sua infância e na de sua ida à Pedra do Reino
para se autoproclamar como rei.
Entretanto, nessa última cena, além de a concisão dar-se no que diz respeito
aos comentários do narrador, é realizada também por encurtamento do tempo em
que as ações ocorrem, tendo por consequência tornar o episódio mais dinâmico,
porém não menos importante do que era no hipotexto. A visita a Luís do Triângulo e
as caçadas realizadas com ele, que no Romance duram três dias, na minissérie
duram apenas um dia, não sendo mencionadas as refeições do narrador tampouco
suas noites mal dormidas devido à ansiedade de chegar às Pedras.
No Capítulo II da minissérie, as concisões feitas alteram principalmente as falas
do narrador, não as ações.
Já no Capítulo III, pelo menos uma vez a concisão altera a ação. Na cena em
que Quaderna encontra Maria Safira na igreja antes de ir à delegacia para iniciar seu
depoimento, não aparecem todos os detalhes que aparecem no Romance e que
contribuem para que ele considere esse relacionamento um sacrilégio: não é
mostrado nem mencionado o fato de eles, mais de uma vez, terem feito sexo
próximo ao altar. É mostrada apenas a insinuação sexual de Maria Safira ao levantar
a saia e exibir as coxas e depois ao abaixar a parte de cima do vestido.
No Capítulo IV da minissérie, durante a reunião convocada às pressas para
discutir as causas políticas que estavam por trás da chegada do Rapaz-do-Cavalo-
Branco e as possíveis reações que a Vila tomaria com relação a essa invasão, o
Comendador Basílio Monteiro discursa, porém são omitidas as partes de seu
discurso que, no Romance, geram polêmica devido à divisão de opiniões com
relação às guerras e às revoltas ocorridas anteriormente na Vila. Isso ocorre porque,
na minissérie, não são mencionadas com detalhes essas revoltas todas, o que não
abriria espaço para que, nessa cena, fossem mostradas, com delongas, as
discrepâncias de posicionamentos políticos dentro da elite taperoaense.
Finalmente, no Capítulo V, na sequência em que o povo exalta Sinésio como
uma figura messiânica, aos 00:22:49 – 00:29:20, Lino Pedra-Verde não aparece
misturando inúmeros acontecimentos históricos com suas crenças como faz nos
folhetos LXXXI a LXXXIV do Romance (SUASSUNA, 2012, pp. 688-728). Essa
concisão da cena também decorre da proposta geral da minissérie em omitir as
citações feitas no Romance a fatos e textos históricos e a textos e autores literários.
162
Com isso, não seria apropriado que apenas nas falas de Lino nessa sequência
fossem feitas menções a esses fatos e textos omitidos ao longo de toda a narrativa
televisiva.
A extensão temática consiste em acrescentar a uma obra um episódio
totalmente estranho a ela. Cinco episódios importantes que não existiam no
Romance foram acrescentados na adaptação.
No primeiro capítulo da minissérie, foi acrescentada uma dança de roda feita
pelos atores, caracterizados como seus personagens, na Vila de Taperoá, com
Quaderna ao centro. Essa cena apresenta para o telespectador os personagens,
transmite-lhe a ideia de que a minissérie será narrada por Quaderna, ao redor de
quem a dança é feita, e antecipa a ele a possibilidade da circularidade narrativa,
uma vez que os diversos personagens da trama se juntam de forma aleatória para
dançar, não sendo possível a manutenção da divisão por núcleos de participação.
Figura 63: Quaderna, no centro da roda, aponta para os personagens como se estivesse
convidando o espectador a conhecê-los aos 00:02:35 do primeiro capítulo.
No segundo capítulo, são mostrados a ida de Quaderna e Sinésio à casa de
Edmundo Swendson e seu encontro com Heliana Swendson. Esse acréscimo é uma
explicitação do modo como o casal se conheceu e do encantamento de Sinésio por
Heliana, que fez da moça o grande amor de sua vida e cujo rosto estampou seu
manto de guerra à maneira dos cavaleiros medievais.
No quinto capítulo, foi feita a elucidação da morte de Pedro Sebastião Garcia-
163
Barretto e do destino de seus três filhos e foi acrescentada, ainda, a confissão de
Quaderna de que ele próprio escreveu a carta de denúncia ao Juiz Corregedor. Luiz
Fernando Carvalho alega ter acrescentado esses fechamentos para questões que
ficaram em aberto no Romance porque a minissérie não teria uma continuação,
diferentemente da obra suassuniana, que previa ainda mais duas partes que
poderiam vir a responder as questões deixadas pelo primeiro livro. A trilogia, no
entanto, não foi publicada por Suassuna até sua morte, em 23 de julho de 2014, e,
até o momento, não se sabe se foi concluída por ele.
A última cena da minissérie também consiste num acréscimo ao hipotexto:
Quaderna velho, no meio do sertão, acha três moedas, lembra-se do tio e padrinho
que foi morto, vê-se menino, declama um poema a respeito do assassinato de um
rei e sai tocando violino. Suassuna alegava que o diretor incluiu essa cena como
uma referência intertextual a um fato que a vida particular de ambos tinha em
comum: a perda da mãe (por Luiz Fernando) e do pai (por Suassuna) quando ainda
eram muito pequenos, com cinco e três anos de idade, respectivamente. Ele contava
que, em uma conversa entre os dois, comentou que tinha somente cinco memórias
de seu falecido pai, enquanto Luiz Fernando tinha apenas três memórias de sua
mãe. As moedas que aparecem na referida cena são, então, uma alusão a essas
poucas memórias de ambos, que, segundo Suassuna, durante a conversa pareciam
dois mendigos tentando se vangloriar de suas poucas posses (OLIVEIRA, 2009, pp.
48-49).
Conforme já mencionado no Capítulo I, a transmodalização intramodal é aquela
que transforma algumas características de um modo de representação sem
desqualificá-lo ou transformá-lo em outro.
No modo narrativo, as categorias de tempo, modo e voz são as que geralmente
são transformadas. A categoria temporal pode ser afetada em sua ordem e em sua
duração e frequência. O modo pode ser transformado no que diz respeito à distância
e à perspectiva. A vocalização pode se transformar de duas maneiras: passar da
terceira pessoa para a primeira, processo de vocalização, ou passar da terceira
pessoa para a primeira, processo de “desvocalização”.
No que diz respeito à ordem, analepses ou prolepses inexistentes no hipotexto
podem ser introduzidas no hipertexto ou, pelo contrário, as anacronias presentes no
hipotexto podem ser reorganizadas no hipertexto.
Com relação à duração e frequência, sumários podem se transformar em
164
cenas e cenas em sumários; elipses podem ser completadas ou segmentos
narrativos podem ser apagados; descrições podem ser introduzidas ou retiradas;
ações singulativas podem ser transformadas em iterativas e vice-versa.
Quanto à distância, a proporção de cenas (segmentos que mostram a ação
acontecendo) e sumários (segmentos que contam resumidamente um
acontecimento ocorrido) pode ser invertida.
No que diz respeito à perspectiva, o ponto de vista – ou focalização – pode ser
modificado: uma narrativa onisciente (não-focalizada) pode passar a ser focalizada
em uma personagem; já uma narrativa focalizada poderia ser desfocalizada e tornar-
se onisciente ou poderia ser transfocalizada, ou seja, ter o ponto de vista mudado de
uma personagem para outra.
Na minissérie, a categoria de voz não é alterada com relação ao Romance: o
hipertexto é narrado em primeira pessoa assim como o hipotexto. Tampouco são
transformados o ponto de vista, que permanece sendo o de Quaderna; a ordem,
com as analepses, as prolepses e as anacronias do hipotexto permanecendo no
hipertexto; e à distância da narrativa, que continua com a prevalência de cenas em
detrimento de sumários.
As modificações introduzidas na minissérie dizem respeito à duração da
narrativa, que é alterada em relação ao número de descrições que aparecem no
Romance, o qual é bastante diminuído devido a uma necessidade de comprimir o
texto original, bastante extenso, e também de retirar dele características que não
cabem ao meio televisivo, principalmente, por não serem necessárias, uma vez que
a montagem das cenas pode dar conta de representar visualmente espaços,
pessoas e sentimentos sem a necessidade de o narrador descrevê-los com
palavras, mas, também, por não serem convenientes à mídia televisiva, por tornarem
seu ritmo muito moroso no caso de serem utilizadas em excesso como na literatura.
Um exemplo de passagem da minissérie em que foi feita a alteração da
duração da narrativa com relação ao Romance é a cena em que Quaderna se
apresenta ao telespectador, a qual vai dos 00:05:25 aos 00:07:45 do primeiro
capítulo. No Romance, essa passagem ocorre dentro do Folheto I e vai da página 31
à página 35, dividida em nove parágrafos, dos quais somente o primeiro foi mantido
na minissérie.
Os parágrafos seguintes do Romance, do segundo ao nono, trazem várias
descrições e dão conta de vários fatos da Vila de Taperoá:
165
Daqui de cima, porém, o que vejo agora é a tripla face, de Paraíso, Purgatório e Inferno, do Sertão. Para os lados do poente, longe, azulada pela distância, a Serra do Pico, com a enorme e alta pedra que lhe dá nome. Perto, no leito seco do Rio Taperoá [...], grandes Cajueiros, com seus frutos vermelhos e cor de ouro. Para o outro lado, o do nascente, o da estrada de Campina Grande e Estaca-Zero, vejo pedaços esparsos e agrestes de tabuleiro, cobertos de Marmeleiros secos e Xiquexiques. Finalmente, para os lados do norte, vejo pedras, lajedos e serrotes, cercando a nossa Vila e cercados, eles mesmos por Favelas espinhentas e Urtigas, parecendo enormes Lagartos cinzentos [...] Aí, talvez por causa da situação em que me encontro, preso na Cadeia, o Sertão sob o Sol fagulhante do meio-dia, me aparece, ele todo, como uma enorme Cadeia, dentro da qual [...] estivéssemos todos nós [...].
*** É meio-dia, agora, em nossa Vila de Taperoá. Estamos a 9 de Outubro de 1938. É tempo de seca [...]. O Cabo Luís Riscão é filho daquele outro, de nome igual, que morreu, aqui mesmo na Cadeia, em 1912, na chamada “Guerra de Doze” [...]. Tem, portanto, o Cabo todos os motivos de má vontade contra mim. Mas como sou “de família de certa ordem” e lhe dou pequenas gorjetas, abranda essa má vontade de vez em quando. [...] Aproveitei, então, o fato de ter terminado logo a tarefa e deitei-me no chão de tábuas, perto da parede, pensando, procurando um modo hábil de iniciar este meu Memorial [...].
*** Para ser mais exato, preciso explicar ainda que meu “romance” é, mais, um Memorial que dirijo à Nação Brasileira, à guisa de defesa e apelo, no terrível processo em que me vejo envolvido. [...] sou, nada mais, nada menos, do que descendente, em linha masculina e direta, de Dom João Ferreira-Quaderna, mais conhecido como El-Rei Dom João II, O Execrável, homem sertanejo que, há um século, foi Rei da Pedra do Reino, no Sertão do Pajeú, na fronteira da Paraíba com Pernambuco. [...]
*** Agora, preso aqui na Cadeia, rememoro tudo quanto passei, e toda a minha vida parece-me um sonho, cheio de acontecimentos ao mesmo tempo grotescos e gloriosos. [...] É por isso também que, do fundo do cárcere onde estou trancafiado neste nosso ano de 1938 – faminto, esfarrapado, sujo, prematuramente envelhecido pelos sofrimentos aos 41 anos de idade – dirijo-me a todos os Brasileiros, sem exceção. [...] Escutem, pois, nobres Senhores e belas Damas de peitos brandos, minha terrível história [...]. (SUASSUNA, 2012, pp. 31-35)
A minissérie traz Quaderna na cadeia dizendo, na íntegra e em voz alta, o texto
do primeiro parágrafo do Folheto I do Romance. Nesse momento, ele é um homem
que parece ter entre trinta e quarenta anos de idade e chora segurando-se às grades
da janela da prisão.
166
Após isso, ela mostra o Juiz Corregedor chegando à Vila de Taperoá,
encarando e interpelando Quaderna, já retratado como um idoso, que se encontra
sobre o palco montado no centro da Vila: “- Pedro? Pedro Dinis Quaderna... és rei,
de fato? Foste rei de verdade?”.
Em seguida, volta a mostrar o Quaderna mais jovem na cadeia, respondendo
exaltadamente e com uma caneta na mão, ao questionamento do Juiz: “- Eu, Dom
Pedro Dinis Ferreira Quaderna, sou o mesmo Dom Pedro IV, O Decifrador, Rei do
Quinto Império e do Quinto Naipe, profeta da Igreja Católico-Sertaneja e pretendente
ao trono do Império do Brasil”.
Todas as descrições do sertão que Quaderna realiza no Romance são omitidas
nessa passagem da minissérie, bem como as descrições que faz da cadeia, do
Cabo Riscão e de seus ancestrais. O prédio da cadeia, que, no Romance, o
narrador diz ser velho, aparenta o ser também na tela, mas por meio do cenário
produzido com essa finalidade e da iluminação empregada, e não por palavras.
Algumas dessas descrições, no entanto, são feitas em outros trechos da minissérie,
em alguns casos, por outras personagens, tal como a descrição física que Quaderna
faz de si mesmo, a qual é transferida para a voz de Olavo Bilac no final do quinto
capítulo, quando Quaderna está sendo condecorado “Rei da Távola Redonda e da
Literatura do Brasil” por grandes mestres da literatura mundial e brasileira, bem
como pelo Arcebispo da Paraíba.
Além dessas omissões ou transferências de cenas, as menções às obras que
inspiraram Quaderna a escrever seu “romance” ou “memorial” também ficaram de
fora da cena de apresentação, bem como as referências a seus possíveis
interlocutores, os “nobres Senhores e belas Damas de peitos brandos” que terão o
poder de absolvê-lo ou condená-lo.
Com isso, podemos perceber qual é a proposta geral da minissérie: manter os
programas narrativos do hipotexto, retirando apenas as passagens que resultariam
incoerentes com o novo final criado para ela bem como as citações de contextos
histórico-sociais e de obras literárias/históricas que tornariam as cenas muito longas
e morosas.
Passaremos, agora, a analisar os procedimentos de adaptação utilizados pelo
diretor para recriar a imagem de Sinésio na minissérie à semelhança, ou não, do
Sinésio que aparece no Romance.
167
3.2 A Construção de Sinésio
Escolhemos analisar Sinésio, primo e sobrinho do narrador-protagonista do
Romance e da minissérie, devido ao fato de o livro que este está escrevendo de
dentro da cadeia ser a respeito dessa personagem, que é tão especial para ele que
é o centro de suas crenças e atitudes, as quais o levaram a ser preso.
Sinésio é ao mesmo tempo primo e sobrinho de Quaderna: é primo porque é
filho de Pedro Sebastião Garcia-Barretto, o qual é irmão da mãe de Quaderna, Maria
Sulpícia Garcia-Barretto, e é sobrinho porque é filho de sua irmã Joana Quaderna,
que se casou com o tio Pedro Sebastião após a morte de sua primeira esposa.
Ele é denominado de várias formas em ambas as produções: pelo primeiro
nome, Sinésio; pelo nome completo Sinésio Garcia-Barretto; pelo nome composto
de Sinésio Sebastião; pelo apelido de prinspe ou prinspo, prinspe/prinspo alumioso
ou apenas pelo adjetivo alumioso, por ser considerado uma reencarnação do rei
Dom Sebastião de Portugal que viria ao sertão a fim de iniciar uma guerra para
restaurar a monarquia e implantar um mundo de igualdade e felicidade para todos; e
pela alcunha de Rapaz-do-Cavalo-Branco, por retornar à cidade de Taperoá, após
cinco anos desaparecido, montado num cavalo de cor branca, o que também é uma
referência a Dom Sebastião, que teria lutado em Alcácer-Quibir sobre um cavalo
dessa cor.
Referências a Sinésio são feitas em 215 das 742 páginas do Romance e em
todos os capítulos da minissérie, em que aparece – direta ou indiretamente – em
vinte e sete sequências. Em ambas as obras, contudo, é mostrado ou referido mais
vezes a partir da terceira parte (do terceiro livro do Romance e do terceiro capítulo
da minissérie): no epítome, há uma menção a ele; no Livro I, há dezenove; no II,
oito; no III, sessenta e duas; no IV, cinquenta e nove e no V, sessenta e seis. No
capítulo 1 da minissérie, quatro aparições dele ocorrem; no 2, duas; no 3, cinco; no
4, nove e no 5, sete.
Aparições de Sinésio no Romance Aparições de Sinésio na Minissérie
Epítome:
- p. 27
Livro I:
- Folheto II (pp. 37, 43, 45, 46, 47, 48)
Capítulo 1:
- 00:03:18 – 00:04:22
- 00:07:46 – 00:10:57
- 00:10:58 – 00:15:08
168
- Folheto III (pp. 52, 53, 54, 55, 56, 58)
- Folheto IV (pp. 59, 60, 62)
- Folheto VI (p. 69)
- Folheto VII (p. 71)
- Folheto XV (p. 117)
- Folheto XVI (p. 121)
- 00:18:47 – 00:19:33
Livro II:
- Folheto XXIII (pp. 157, 163)
- Folheto XXV (pp. 165, 170)
- Folheto XXXIII (p. 212)
- Folheto XXXIV (p. 216)
- Folheto XXXVI (pp. 240, 241)
Capítulo 2:
- 00:13:13 – 00:17:49
- 00:17:50 – 00:18:24
Livro III:
- Folheto XXXVII (pp. 245, 247)
- Folheto XXXIX (pp. 253, 257, 268, 269)
- Folheto XLI (pp. 280, 286)
- Folheto XLIII (pp. 303, 304)
- Folheto XLIV (p. 306)
- Folheto XLVI (pp. 321, 322, 323)
- Folheto XLIX (p. 336)
- Folheto L (pp. 338, 346, 347, 354, 357)
- Folheto LI (pp. 359, 366, 367, 368, 369,
371)
- Folheto LII (pp. 372, 373, 374, 375,
376, 377, 378, 379)
- Folheto LV (pp. 398, 400, 401)
- Folheto LVI (pp. 403, 411, 412)
- Folheto LVII (pp. 413, 414, 418)
- Folheto LIX (pp. 419, 420, 421)
- Folheto LX (pp. 422, 423, 425)
- Folheto LXI (p. 427)
- Folheto LXII (pp. 432, 433, 434, 435,
436, 438, 439)
Capítulo 3:
- 00:27:14 – 00:28:10
- 00:31:50 – 00:37:17
- 00:40:21 – 00:43:25
- 00:44:54 – 00:46:00
- 00:46:01 – 00:52:08
169
- Folheto LXIII (pp. 439, 440, 441, 442,
443)
Livro IV:
- Folheto LXIV (pp. 449, 450, 451,
452,453, 457, 458)
- Folheto LXV (pp. 462, 463, 465, 466,
467)
- Folheto LXVI (pp. 468, 469, 471, 480)
- Folheto LXVII (pp. 483, 485, 486, 487,
488, 493, 494, 501)
- Folheto LXVIII (pp. 502, 503, 504, 506,
507, 513, 515, 516, 517)
- Folheto LXIX (pp. 523, 524, 525, 526)
- Folheto LXX (p. 531)
- Folheto LXXI (p. 532, 534, 536, 537)
- Folheto LXXII (pp. 554, 555, 557)
- Folheto LXXIII (pp. 560, 566)
- Folheto LXXIV (pp. 569, 570, 571, 577)
- Folheto LXXV (pp. 580, 584, 585, 586,
587, 588, 589, 590)
Capítulo 4:
- 00:01:11 – 00:02:31
- 00:03:15 – 00:04:13
- 00:06:53 – 00:07:38
- 00:07:39 – 00:10:07
- 00:10:08 – 00:13:45
- 00:19:44 – 00:22:24
- 00:29:37 – 00:33:20
- 00:33:21 – 00:35:00
- 00:39:01 – 00:42:45
Livro V:
- Folheto LXXVI (pp. 593, 594, 595, 596,
598, 599)
- Folheto LXXVII (pp. 603, 604, 606, 607,
608)
- Folheto LXXVIII (pp. 611, 615, 621)
- Folheto LXXX (pp. 654, 659, 660, 670,
672, 673, 674, 676, 677, 680, 681, 686,
687)
- Folheto LXXXI (pp. 690, 692, 693, 694)
- Folheto LXXXII (pp. 696, 697, 698, 699,
700, 703, 704, 705, 706, 708, 709, 710,
711, 712)
Capítulo 5:
- 00:01:11 – 00:03:38
- 00:03:39 – 00:16:55
- 00:16:56 – 00:18:37
- 00:18:38 – 00:22:07
- 00:22:50 – 00:29:21
- 00:29:22 – 00:33:19
- 00:33:20 – 00:35:51
170
- Folheto LXXXIII (pp. 713, 714, 719,
721, 722)
- Folheto LXXXIV (723, 724, 725, 726,
727, 729, 730, 731, 732)
- Folheto LXXXV (pp. 734, 735, 736,
737, 738, 739, 741)
Isso ocorre porque, como já vimos, a minissérie manteve praticamente toda a
estrutura do Romance, modificando pouco a ordem dos eventos e retirando ou
acrescentando poucas ações à narrativa romanesca. Com isso, em ambas as
produções, no início Sinésio aparece pouco, o que contribui para a criação de uma
aura de mistério acerca de qual teria sido sua atuação nos eventos que
desencadearam a prisão de Quaderna, e, aos poucos, vai aparecendo mais e
deixando transparecer, ao leitor e ao telespectador, um pouco mais de sua
participação na história que nos é contada por seu tio e primo.
Analisaremos apenas algumas das passagens em que Sinésio aparece no
Romance e na minissérie porque estaria fora de nossas possibilidades com este
trabalho tentar esgotar todas elas. Privilegiamos, assim, aquelas que consideramos
principais para a construção da personagem literária e da personagem televisiva e
dividimos o estudo em partes, respeitando a divisão de ambas as obras e os
conteúdos e sentidos que cada uma delas traz com mais intensidade,
respectivamente: a apresentação de Sinésio e de sua cavalgada; o surgimento de
seu amor por Heliana; as expectativas de todas as classes sociais da Vila em torno
de Sinésio e de seu bando; as profecias que haviam sido feitas pelo narrador
envolvendo o primo e que se converteram em crenças de cunho messiânico para as
pessoas humildes; e a mobilização do povo em torno do rapaz quando de sua
chegada.
3.2.1 Apresentação do Rapaz-do-Cavalo-Branco e de sua cavalgada
Tanto no epítome e no Livro I do Romance quanto no Capítulo 1 da minissérie,
faz-se a apresentação da personagem Sinésio para o leitor e o telespectador no que
diz respeito não só à sua aparência física, mas também às suas relações familiares
presentes e passadas, ao seu amor por Heliana Swendson e à sua história de vida.
Passaremos a mostrar como é feita essa apresentação na obra literária e na
171
produção televisiva.
A primeira aparição de Sinésio no Romance ocorre no epítome. Nele, a
personagem é referida como “misterioso Rapaz-do-Cavalo-Branco” e como “o mais
moço dos jovens Príncipes”, os quais são os “três irmãos sertanejos, Arésio,
Silvestre e Sinésio”. Diz-se, ainda, sobre ele que foi raptado pelos assassinos do pai
e sepultado “numa Masmorra onde ele penou durante dois anos” e evoca-se às
“Nobres Damas e Senhores” que ouçam o canto espantoso do narrador, o qual
abordará “a doida Desaventura/ de Sinésio, O Alumioso,/ o Cetro e sua centelha/ na
Bandeira aurivermelha/ do meu Sonho perigoso!” (SUASSUNA, 2012, p. 27).
Nessa referência feita à personagem, percebe-se um tratamento especial dado
a ela pelo narrador em detrimento de seus irmãos, pois somente ela aparece ao
longo de toda a apresentação da obra, enquanto de Arésio e Silvestre aparecem
apenas os nomes. Nota-se, também, um tratamento literário dado a ela nos versos
finais da página, pois indica-se que representou uma figural real (“o Cetro”) e uma
luz (“sua centelha” – daí ser chamado de “Alumioso”) de um sonho do narrador, o
qual ele está prestes a cantar no romance que se inicia.
No Folheto II do Romance, Quaderna descreve Sinésio no momento de sua
chegada à Taperoá em 1935:
[...] Cercava-o, efetivamente, uma atmosfera sobrenatural, uma espécie de “aura” que só mesmo o fogo da Poesia pode descrever e que, mesmo depois de sua chegada, ainda podia ser entrevista em torno da sua cabeça, pelo menos “por aqueles que tinham olhos para ver”. Tinha cerca de vinte e cinco anos. Não era simplesmente um rapaz: era um mancebo. Mais do que isso: era um Donzel. E tem gente aí pela rua, que, ainda hoje, garante que naquele tempo ele chegava, mesmo, a ser um donzelo. [...] Via-se que ele era o centro, motivo e honra da Cavalgada, porque lhe tinham destacado a maior, mais bela e melhor das montarias, um enorme e nobre animal branco, de narinas rosadas, de cauda e crinas cor de ouro, Cavalo que, como soubemos depois, tinha o nome legendário de “Tremedal”. Ele o montava, como observou mais tarde o Doutor Samuel, “com um ar ao mesmo tempo modesto e altivo de jovem Príncipe, recém coroado e que, por isso mesmo, ainda está convencido de sua realeza”. Alto, esbelto, de pele ligeiramente amorenada e de cabelos castanhos, montava com elegância, e de seus grandes olhos, também castanhos e um pouco melancólicos, espalhava-se sobre todo o seu rosto uma certa graça sonhadora que suavizava até certo ponto suas feições e sua natureza – às vezes arrebatada, enérgica, quase dura e meio enigmática, como depois viemos a notar, principalmente depois dos terríveis acontecimentos da morte de Arésio.
172
[...] o Rapaz-do-Cavalo-Branco usava um gibão mais artisticamente trabalhado do que os dos outros Cavaleiros. Assemelhava-se aos “gibões de honra e boniteza” que se usam nos desfiles de Cavalhadas e puxadas-de-boi. [...] O mais notável, porém, é que, atado ao pescoço por uma fechadura de prata, caía por trás das costas do Donzel, de modo a cobrir a garupa do cavalo “Tremedal”, um manto vermelho [...] encimado por uma figura a modo de “timbre”, uma bela Dama de cabelos soltos, vestida com um manto negro semeado de contra-arminhos de prata e mantendo as mãos cobertas. Era a Dama jovem e sonhosa, de olhos verdes, de cabelos lisos, finos, compridos e castanho-claros que seria, para o Rapaz-do-Cavalo-Branco, “o grande amor de sua vida”. (SUASSUNA, 2012, pp. 45-47)
Essa descrição demonstra a intenção do narrador de caracterizar o primo como
sendo diferente dos demais cavaleiros que o acompanhavam e de atribuir a ele não
apenas maior importância que aos outros, mas principalmente, a transcendência
necessária para alguém que viria a desempenhar um papel tão importante quanto o
que estava reservado a ele. Para isso, no primeiro parágrafo, Quaderna alude ao
texto bíblico referente ao nascimento de Cristo e à chegada dos Reis Magos ao local
onde Maria e José guardavam a criança ao dizer que o primo possuía uma aura que
poderia ser vista “por aqueles que tinham olhos para ver”. Isso quer dizer que
algumas pessoas não acreditavam nessa suposta aura, e que o narrador atribui esse
fato à incapacidade delas de acreditar no que ele acreditava e tentava lhes ensinar.
A seguir, no segundo parágrafo, Quaderna menciona que o primo estava com
vinte e cinco anos e era um Donzel. A escolha desse adjetivo revela a maneira como
o narrador quer dar a conhecer Sinésio: como um nobre prestes a se tornar um
cavaleiro; pois “donzel” era o termo que se utilizava, na Idade Média, para se referir
a um nobre jovem que ainda não tinha sido adubado cavaleiro, mas que havia
recebido treinamento para isso desde criança. Ele ainda faz um trocadilho com essa
palavra ao dizer que, além de donzel, Sinésio era considerado também “donzelo”,
que seria o termo masculino da palavra “donzela” com a acepção que lhe é dada na
contemporaneidade, isto é, de “moça virgem”. Assim, o primo, tal como dizia-se de
Dom Sebastião em sua época, nunca teria tido relações afetivas e sexuais apesar
de estar numa idade em que a maioria das pessoas já teria tido relacionamentos
desse tipo. Essa característica, então, aproxima-o de Dom Sebastião.
No parágrafo seguinte mais uma vez o narrador aproxima o primo de Dom
Sebastião ao mencionar que o cavalo dele tinha o mesmo nome do cavalo do rei
português, “Tremedal”, e que, assim como o do monarca, era branco. Esse cavalo
173
era o melhor de todos que vinham na cavalgada, e seu cavaleiro é visto como um
príncipe pelo Doutor Samuel. Sua descrição física é feita de modo a caracterizá-lo
com grandeza devido à sucessão de características consideradas positivas por
Quaderna atribuídas a ele: “alto, esbelto, de pele ligeiramente amorenada e de
cabelos castanhos, montava com elegância”. No entanto, Sinésio é descrito como
sendo misterioso, ou seja, aliando em si características opostas e que não são de
todo perceptíveis ao primeiro contato com ele: possui “grandes olhos, também
castanhos e um pouco melancólicos” dos quais “espalhava-se sobre todo o seu rosto
uma certa graça sonhadora que suavizava até certo ponto suas feições e sua
natureza – às vezes arrebatada, enérgica, quase dura e meio enigmática, como
depois viemos a notar” (grifo nosso).
Nos próximos parágrafos, o narrador descreve a vestimenta de Sinésio, mais
uma vez destacando-a da vestimenta dos demais cavaleiros por ser mais bem
trabalhada e elegante. O principal acessório, entretanto, é um manto vermelho que
ele leva às costas no qual aparece a imagem de uma moça. Essa imagem parece
contradizer a afirmação anterior de que o rapaz seria “donzelo”, mas Samuel adiante
defende-o alegando que os cavaleiros levavam consigo a imagem de uma dama a
quem serviriam em castidade, ou seja, que seriam um ideal pelo qual lutariam suas
batalhas. A presença desse manto, então, aproxima Sinésio, mais uma vez, dos
cavaleiros medievais.
A seguir, no Folheto III, quando Quaderna está narrando o episódio do ataque
que o bando de Sinésio sofreu de um grupo de cangaceiros ao chegar à Vila, ele
descreve a reação do rapaz e de seus companheiros:
Certos de que já tinham cumprido o objetivo principal da emboscada e matado o rapaz que lhes fora designado, queriam agora era escapar o mais depressa possível, fugindo à luta desigual com toda aquela tropa. [...] Foi a vez de soar o grito do Cigano, ordenando que a tropa de Cavaleiros saísse daquele mato perigoso, que novamente poderia favorecer os Cangaceiros, para emboscadas. A tropa, obedecendo a Praxedes, reuniu-se de novo na estrada, e todos, insensivelmente atraídos pela figura do Rapaz-do-Cavalo-Branco, fixaram os olhos nele, como a indagar até que ponto ele fora atingido pelos acontecimentos. Ele estava já de pé, segurando as rédeas de “Tremedal” e contemplando, absorto, o corpo do rapaz que morrera em seu lugar. O Doutor, depois de apanhar a importante pasta de documentos, caminhou para lá, puxando seu cavalo pela rédea: – Venha, vamos embora! – falou ele para o rapaz. – O que passou, passou! – Ele está morto? – perguntou o rapaz, sempre com expressão meio
174
ausente. – Está, sim! Mas vamos! – insistiu o Doutor Pedro Gouveia. [...] O rapaz, sempre olhando o corpo de Colatino, comentou: – É a primeira vez que vejo a morte! – É assim mesmo, é a vida! – disse o Doutor, apanhando a bandeira, espanando com o lenço a poeira que a sujara e passando-a a outro, para que assumisse o posto de matinador, de Colatino. E continuou: – Hoje ou amanhã, de tiro ou de doença, de qualquer jeito um dia ele tinha de morrer! Depois, talvez não seja esta a primeira vez que você vê a morte! Talvez você esteja somente esquecido, por causa de tudo o que passou, de outras mortes que viu, antes. Mas vamos sair logo daqui, que os Cangaceiros podem voltar com mais gente! [...] Montaram. O Rapaz-do-Cavalo-Branco também montou. Naquele tempo, as forças da violência e as divindades subterrâneas ainda estavam adormecidas em seu sangue, pois não tinham sido despertadas pelo veneno do nosso convívio. De modo que, sonhoso e absorto, ele ignorava naquele instante quantas cenas e quantas mortes como sua chegada iria causar entre nós, durante os três anos que medearam entre aquela Véspera de Pentecostes de 1935 e a Semana da Paixão deste nosso ano de 1938. Foi também esta cena inicial da “Demanda Novelosa do Reino do Sertão” que terminou batendo com meus costados na Cadeia onde estou preso, à mercê do julgamento de Vossas Excelências. Naquele dia porém, e mesmo com o aviso dado pela Providência com a morte de Colatino, ainda não estava rompida a descuidosa mas culposa ignorância em que estávamos todos nós que iríamos participar da terrível Desaventura do Rapaz-do-Cavalo-Branco. (SUASSUNA, 2012, pp. 56-58 – grifos do autor)
Nesse excerto, percebe-se que a atenção de todos os homens da cavalgada
se volta para Sinésio após o ataque dos cangaceiros devido a ele ser o centro dela
(como já havia sido dito no trecho anterior), o que é um sinal indicativo de sua
importância para os outros e é corroborado pelas afirmações do Doutor Pedro
Gouveia e de Quaderna que vêm a seguir.
O Doutor, ao ouvir Sinésio dizer que a morte de Colatino foi a primeira que ele
viu, responde que talvez o rapaz já tenha visto outras mortes antes daquele
momento, mas esteja esquecido delas por conta de tudo que passou. A palavra
“antes” e a frase “por causa de tudo o que passou” aparecem grifadas em itálico, o
que faz com que tenhamos que ler esse fragmento de maneira especial.
Primeiramente, entendemos esses grifos como marcações da entonação com a qual
a personagem proferiu essas palavras e, numa segunda leitura, interpretamos que o
Doutor dá ênfase a elas para insinuar uma relação entre Sinésio e um passado mais
remoto do que ele possa se lembrar, pois diz respeito à história de seus
antepassados e mesmo de Dom Sebastião. O que o Doutor pode estar insinuando a
175
Sinésio é que ele, sendo descendente dos líderes dos eventos da Serra do
Rodeador e da Pedra Bonita, já viu – se não com seus próprios olhos, pelo menos
pela herança de seu sangue – muitas mortes, ocorridas quando seus antepassados
profetizavam a volta do rei português. E se ele for mesmo, como acredita e ensina
Quaderna, o próprio Dom Sebastião ressuscitado, também já teria visto inúmeras
mortes nas batalhas das quais participou ativamente.
Quaderna também acredita na existência dessas “memórias” e, de certa forma,
admite sua “culpa” por trazê-las à tona para o primo e pelas consequências que elas
tiveram quando diz que “naquele tempo, as forças da violência e as divindades
subterrâneas ainda estavam adormecidas em seu sangue, pois não tinham sido
despertadas pelo veneno do nosso convívio” e “sonhoso e absorto, ele ignorava
naquele instante quantas cenas e quantas mortes como sua chegada iria causar
entre nós”. Assim, o narrador dá a entender que aquilo que o rapaz havia vindo
realizar não deu certo, pois sua história é uma “desaventura” na qual muitas pessoas
pereceram.
No Folheto IV, ao contar ao Juiz Corregedor sobre a morte do tio e o
desaparecimento de Sinésio, no mesmo dia, Quaderna revela o que ele e o povo
sertanejo pensavam sobre o rapaz:
Outra coisa misteriosa: no mesmo dia, Sinésio, o filho mais moço de meu Padrinho, desapareceu sem ninguém saber como. Dizia-se que fora raptado, a mando das pessoas que tinham degolado seu Pai, pessoas que odiavam o rapaz porque ele era amado pelo Povo sertanejo, que depositava nele as últimas esperanças de um enigmático Reino, semelhante àquele que meu bisavô criara. Sinésio fora raptado e, segundo se noticiou, morrera também de modo cruel e enigmático, dois anos depois, na Paraíba, o que não impedia o Povo de continuar esperando a volta e o Reino miraculoso dele. [...] Como foi que raptaram Sinésio, aquele rapaz alumioso, que concentrava em si as esperanças dos Sertanejos por um Reino de glória, de justiça, de beleza e de grandeza para todos? Bem, não posso avançar nada, porque aí é que está o nó! [...] Sim, nobres Senhores e belas Damas: porque eu, Quaderna (Quaderna, O Astrólogo, Quaderna, O Decifrador, como tantas vezes fui chamado); eu, Poeta-guerreiro e soberano de um Reino cujos súditos são, quase todos, cavalarianos, trocadores e ladrões de cavalo, desafio qualquer irônico, estrangeiro ou Brasileiro, primeiro a narrar uma história de amor mais sangrenta, terrível, cruel e delirante do que a minha; e, depois, a decifrar, antes que eu o faça, o centro enigmático de crime e sangue da minha história, isto é, a degola do meu Padrinho e a “desaparição profética” de seu filho Sinésio, O
176
Alumioso, esperança e bandeira do Reino Sertanejo. (SUASSUNA, 2012, pp. 60-62 – grifo do autor)
Nesse fragmento, Quaderna conta que o povo sertanejo depositava em Sinésio
a esperança de justiça social. Essa esperança, no entanto, não era calcada na
possibilidade de luta política real, em que a participação popular poderia obter
algumas conquistas nessa direção, mas sim num misticismo que mais uma vez
aproxima a imagem de Sinésio à do Rei Dom Sebastião de Portugal, uma vez que o
povo cria que ele poderia voltar mesmo após ter sido morto por seus inimigos, e que
traria não só justiça, mas também glória, beleza e grandeza para todos ao criar um
novo reino, semelhante ao que seu trisavô (bisavô de Quaderna) havia iniciado no
século anterior.
Sabendo, pela leitura do parágrafo seguinte, que Quaderna era astrólogo e
conhecido como “O Decifrador”, podemos inferir que ele tenha incentivado o povo a
pensar dessa maneira e, somando as informações obtidas dele nesse fragmento
com as informações reveladas nos parágrafos mostrados aqui anteriormente
(pertencentes ao Folheto III, pp. 56-58 do Romance), tomamos o conhecimento de
que ele instruiu Sinésio a pensar assim, o que acabou por causar muitas mortes
entre os anos de 1935 e 1938 e a prisão do próprio narrador, mas não levou à
criação de um novo reino, tampouco à obtenção de glória, justiça, beleza e grandeza
para todos.
Dessa forma, podemos concluir que as aparições de Sinésio no livro I do
Romance servem para criar sua imagem como a de uma figura enigmática porém
sagrada, diferente das demais por estar colocada acima delas e parecer-se com um
cavaleiro medieval e com o Rei Dom Sebastião, mas que, apesar de ser depositário
da admiração e da esperança do povo – o qual foi influenciado por seu tio e primo –
não obteve êxito naquilo que se esperava que ele fosse capaz de realizar, daí sua
história ser chamada pelo narrador de “desaventura”.
A aparição de Sinésio entre os 00:03:18 e os 00:04:22 do primeiro capítulo da
minissérie é equivalente à sua aparição no epítome do Romance, uma vez que o
texto deste foi mantido em sua quase totalidade. No entanto, a teatralidade das
cenas, isto é, a maneira como o texto verbal se combina com o visual e o sonoro,
além de reforçar os sentidos já expressos verbalmente, recriam sentidos que
estavam expressos no trecho do texto literário que não foi aproveitado na minissérie
e até mesmo transmite sentidos que não existiam no trecho correspondente do
177
Romance, mas sim em pontos mais avançados da narrativa.
Aos 00:03:18 do primeiro capítulo, Quaderna velho, interpretado pelo ator
Irandhir Santos, aparece no meio da Vila, em cima de seu palco móvel, e começa a
apresentar seu “Romance enigmático de crime e sangue” em tom de voz crescente,
solene, semelhante ao de um apresentador de circo ao dizer “Respeitável público!”.
Quando diz que trará indicações sobre os três irmãos sertanejos, mantém o tom
crescente e traz um sorriso ao rosto ao mencionar Arésio e Silvestre, sendo
acompanhado por uma música instrumental rápida, intitulada Maria Safira. Ao
mencionar Sinésio, contudo, modifica o tom e a expressão facial: sua voz vai se
abaixando enquanto pronuncia o nome e seu rosto se torna sério. Além disso, a
primeira música agitada é substituída por outra, um pouco mais lenta.
Em seguida, dos 00:04:02 aos 00:04:05, a câmera foca Sinésio, interpretado
por Paulo César Ferreira, em primeiríssimo plano observando algo por sobre o
ombro direito com uma expressão indecifrável por aparentar ser ao mesmo tempo de
seriedade, surpresa e introspecção.
Figura 64: Primeiríssimo plano de Sinésio observando algo com surpresa e introspecção.
A seguir, quando Quaderna fala sobre o rapto de Sinésio, aos 00:04:18, refere-
se a ele como “o mais moço dos jovens príncipes” e a imagem que é mostrada na
tela é a do rapaz em cima de seu cavalo, focado em ângulo contra-plongée contra o
Sol, o que intensifica o sentido de grandeza e luminosidade transmitido pelo apelido
de “Prinspo Alumioso” pelo qual Sinésio é tratado por uma parcela da população da
178
Vila de Taperoá. Ainda, a vestimenta do rapaz, caracterizada principalmente por
manto vermelho, bem como por elmo, colete e mangas de metal, assim como a cruz
que aparece próxima a ele no enquadramento dado, antecipam o sentido de que,
para Quaderna, o primo é um verdadeiro cavaleiro medieval que viveu no sertão nos
“dias atuais”, os quais, na diegese, correspondem às primeiras décadas do século
XX.
Figura 65: Ângulo contra-plongée de Sinésio contra o Sol.
A luz incidindo diretamente sobre sua cabeça remete à aura que o narrador do
Romance afirmava haver em torno da figura de Sinésio e dialoga com a imagem de
Cristo tal como ela é representada em diversas pinturas, inclusive de Giotto (figura
18, vide p. 73), e mesmo no cinema, como podemos ver na cena do batismo de
Jesus no filme de Roger Young, de 1999:
179
Figura 66: Aos 00:38:35 do filme Jesus (1999), Cristo (ao centro) é iluminado logo após ser
batizado por João Batista (à esquerda).
Logo em seguida, aos 00:04:21, Quaderna menciona que Sinésio ficou
“enterrado” numa masmorra onde “penou” durante anos após a morte do pai e a
imagem que se mostra nesse momento é a do rapaz deitado num ambiente escuro,
sem camisa, com os cabelos e a barba desgrenhados, aparentemente desmaiado
devido a maus tratos recebidos de seus raptores.
Figura 67: Sinésio “enterrado” numa masmorra.
Essa imagem opõe-se à anterior, construída de modo a demonstrar a grandeza
180
de Sinésio, e contribui para a criação de sentido de que a volta dele ocorreu após
um período de reclusão e cumprimento de uma “pena”, da qual ele saiu não só
revigorado, mas ressuscitado. Nesse sentido, sua imagem assemelha-se à figura
messiânica do Rei Dom Sebastião de Portugal, cujo mito dá conta de que ele
reaparecerá após expurgar seus pecados, e, mais uma vez, à do próprio Jesus
Cristo ao passar pela morte decorrente da crucificação e ressuscitar após três dias.
Os braços abertos de Sinésio também dialogam com imagens de pinturas e de
cinema/televisão, do Cristo morto após ser retirado da cruz, como vemos na tela The
Entombment (1602-1603), de Caravaggio, e na minissérie Jesus de Nazaré (1977),
de Franco Zeffirelli:
Figura 68: The Entombment. (1602-03). Óleo sobre tela, 300 x 203 cm – Pinacoteca,
Vaticano. Disponível em: http://www.wga.hu. Acesso em: 30 mar. 2015.
181
Figura 69: Às 04:39:10 da minissérie Jesus de Nazaré (1977), de Franco Zeffirelli, Maria
chora a morte de Jesus.
Mais adiante, dos 00:09:42 aos 00:10:06, Quaderna está em seu palco e
descreve Sinésio poeticamente enquanto o rapaz é filmado em primeiríssimo plano e
em ângulo contra-plongée: “Sinésio, cavaleiro puro do alto, vento fino do céu,
incauto peregrino no mundo, o cerca uma áurea que só o fogo da poesia pode
descrever”. A fala de Quaderna aqui remete à fala dele presente no fragmento entre
as páginas 45 e 47 do Romance, que engrandece o primo, e a imagem em
primeiríssimo plano e em ângulo contra-plongée, por sua vez, corrobora para a
criação desse efeito de sentido de engrandecimento da personagem.
A seguir, dos 00:10:07 aos 00:10:56, vê-se Sinésio com o olhar inquieto, frente
a cantadeiras que declamam:
Dizem que uma Sombra escura com duas Pontas na testa, por onde o Donzel caminha, ao lado, se manifesta. O Doutor, vela de sebo, sinal dos Magos errôneos, Lume lúgubre da Morte, lampadário do Demônio.
Esse poema está presente nas páginas 47 e 48 do Romance, onde é atribuído
por Quaderna ao cordelista Amador Santelmo em Vida, Aventuras e Morte de
Lampião e Maria Bonita, mas, na minissérie, apenas duas de suas sete estrofes
foram mantidas: a primeira, que sugere que uma sombra escura acompanha o
182
Donzel, e a penúltima, que relaciona um Doutor à morte e ao demônio. Esses
trechos escolhidos do poema de Santelmo indicam um lado obscuro em Sinésio e no
Doutor Pedro Gouveia, advogado que o acompanhava na cavalgada de volta à
Taperoá após seu desaparecimento por cinco anos, tornando a ambos figuras
ambíguas: se por um lado o primo do narrador é tido como “alumioso” e confia-se a
ele a esperança de que seja feito algum tipo de revolução que instaure a justiça
social no sertão, por outro diz-se que anda ao lado dele “uma sombra escura com
duas pontas na testa”, bem como o acompanha o “lume lúgubre da morte,
lampadário do demônio”. Essa instauração de ambiguidade cria o sentido presente
no Romance, e até então omitido na minissérie, de que a chegada de Sinésio seria
uma “desaventura”.
Dos 00:10:57 aos 00:12:46, o olhar de Sinésio ainda está inquieto e procura
algo, quando parece encontrar a personagem Heliana – interpretada pela atriz
Mayana Neiva – que, por sua vez, parece dançar para ele ao som de uma música
instrumental, intitulada A Pedra do Reino. Ele traz às costas o manto com a imagem
da moça e vê-se que ambos estão no mesmo espaço – diante do portal de entrada
da Vila de Taperoá –, mas não ao mesmo tempo, ou seja, o encontro dos olhares
não ocorre realmente, e sim como consequência da montagem, a qual, por revelar
que eles não ocupam o mesmo espaço físico, cria o sentido de que entre eles existe
um amor casto, que não envolve a conjunção carnal.
Dos 00:18:47 aos 00:19:33, Quaderna está sobre o palco montado no centro
da Vila de Taperoá e repete um trecho do texto do Romance presente na página 60:
“Sinésio, O Alumioso, esperança dos sertanejos por um reino de glória e justiça, de
beleza e de grandeza para todos. Um reino enigmático semelhante àquele que meu
bisavô criara”. Essa sequência revela que se espera de Sinésio que ele repita os
feitos do bisavô de Quaderna, o qual era seu trisavô. Dessa vez, porém, espera-se
que ele possa levar a cabo o que seu antepassado não conseguiu por ter sido traído
por um parente e morto pela polícia.
Assim, todos esses elementos, juntos, corroboram para que seja reforçada, na
minissérie, a importância de Sinésio para o narrador, que o trata de maneira
diferente daquela como trata os outros primos e se propõe a escrever sua história
igualando-o aos cavaleiros medievais, a Dom Sebastião e a Cristo, e o mistério
acerca de qual é o papel que o rapaz terá na narrativa – de salvador do povo
humilde que acredita nele ou de responsável, ao lado do Doutor, por algo ruim
183
relacionado à morte, como insinuam as mulheres em seu canto. No Romance, todos
esses sentidos já estavam presentes: Sinésio é exaltado como uma espécie de
salvador do povo sertanejo, mas tem um lado obscuro relacionado à morte que não
se pode desvendar, e que se espera que Quaderna revele.
3.2.2 Surgimento do herói e do amor por sua dama
No Livro II do Romance, Sinésio aparece muito pouco. Quaderna o menciona
duas vezes para dizer que a história de seus antepassados na Pedra Bonita era
responsável por fazê-lo acreditar que o primo estava voltando para realizar algo
grandioso, o que são reiterações do que ele já havia dito no Livro I e, em mais uma
das menções ao rapaz, ele revela que não estava na Vila no momento da chegada,
mas que sabia os detalhes dela e que, portanto, ela poderia ser o assunto do
“romance-epopéico” que pretendia escrever.
Contudo, a menção mais importante que o narrador do Romance faz a Sinésio
no Livro II, está na passagem em que ele conta sobre o relacionamento entre este, o
irmão Arésio e o pai de ambos. Quaderna explicita que Arésio e Sinésio tinham
diferenças, das quais ele marca não só as de personalidade, mas também as físicas,
a fim de contribuir com a contraposição que quer fazer entre os dois para justificar as
histórias que surgiram em torno deles. É levantada a hipótese, pelo narrador, de que
muitos dos acontecimentos sangrentos que se passaram com sua família deveram-
se a essas diferenças entre os dois irmãos e que a história da rivalidade de ambos
teria influenciado a população a criar em torno do mais novo “todas as legendas que
depois viriam aparecer”.
Muita coisa de sangrento que nos aconteceu veio das diferenças entre os dois: enquanto Arésio era um sujeito duro, solitário, violento, moreno, de barba cerrada e negros cabelos encaracolados, Sinésio era calmo, alumioso, alourado, estimado por todas as pessoas, principalmente pelos pobres, da fazenda e da Vila. Era o preferido do Pai; e talvez tenha sido tudo isso que terminou criando em torno dele todas as legendas que depois viriam aparecer. (SUASSUNA, 2012, p.163)
Assim, Arésio é caracterizado como um anti-herói “duro, solitário, violento,
moreno, de barba cerrada e negros cabelos encaracolados”, e Sinésio como um
herói “calmo, alumioso, alourado, estimado por todas as pessoas, principalmente
pelos pobres, da fazenda e da Vila” e como filho preferido de seu pai.
184
Na minissérie, Sinésio também é pouco mostrado, restringindo-se a
importância de sua aparição à de dar a conhecer ao telespectador como começou
seu envolvimento com Heliana Swendson.
No capítulo II da minissérie, aos 00:13:13, vemos a chegada de Sinésio e
Quaderna à casa de Edmundo Swendson, em Natal, às vésperas da eclosão da
Guerra de Princesa, em 1930. Eles vão para a casa dos Swendson a mando de
Pedro Sebastião Garcia-Barretto, que queria proteger o filho mais novo dos conflitos
que estavam prestes a ocorrer na Paraíba. Esse fato reitera, embora não
declaradamente, o que é dito no Livro II do Romance de que este é seu filho
predileto, pois somente com ele parece se preocupar em época de grande perigo
para todos, sequer mencionando Arésio e Silvestre.
Sinésio já traz o manto com o qual chegaria à Vila em 1935. Porém, esse
manto é vermelho sem nenhuma estampa, diferentemente do que ele viria a usar na
cavalgada à Taperoá, mostrada no capítulo 1, o qual tinha estampado o rosto de
uma mulher, mais precisamente de Heliana Swendson, cujo primeiro encontro com
Sinésio essa sequência mostrará ao telespectador.
Figura 70: Sinésio e Quaderna vão à casa de Edmundo Swendson em Natal aos 00:13:37
do segundo capítulo.
Ao adentrar a casa, Quaderna cumprimenta e conversa com Edmundo
Swendson enquanto Sinésio se afasta deles e caminha em direção ao jardim, o qual
é caracterizado de forma não naturalista: por um corredor decorado com telas em
185
que são pintadas flores e por um pequeno cômodo contendo vasos em que são
penduradas plantas.
Sinésio caminha pelo corredor até chegar ao pequeno cômodo em que está
Heliana. Lá, ele a observa cantar e passar mel em um dos seios e fica
impressionado com a imagem da moça enquanto ela e um grupo de mulheres
cantadeiras que estão presentes na cena reforçam o sentimento do rapaz ao cantar
a história do encontro de um cavaleiro com uma linda moça:
Uma moça de olhos claros vem num barco a navegar Bela como a garça branca no céu puro a esvoaçar Ela busca um cavaleiro que fugiu, mal pesar À fortaleza de pedra seu barco veio aportar seu barco veio aportar Sinal certo que trazia neste forte foi achar Ao bater sai uma dama Quem é ela? Quem será? Ao ver a outra que chega corpo claro de luar sente o sangue estremecer e o coração galopar pois a moça de olhos claros era linda de espantar
Assim como na sequência do capítulo 1 em que Sinésio e Heliana parecem se
olhar, mas sem que a câmera os focalize na mesma cena, aqui eles também trocam
olhares e sorrisos, mas apenas em um momento muito curto (00:17:18 ao 00:17:19)
aparecem enquadrados pela mesma câmera. Na maior parte da sequência, foi
utilizada a técnica do ponto–contraponto para indicar uma continuidade do cenário e
a presença simultânea de ambas as personagens na cena, porém, sem que o
telespectador possa confirmar visualmente essa presença. A forte sensualidade de
toda a sequência, expressa pelo seio nu da moça e pelos olhares desejosos que os
dois trocam, dessa forma, é um pouco atenuada devido aos futuros amantes não se
tocarem nem sequer chegarem próximos um ao outro. Com isso, é reiterado o
sentido de que o amor de ambos era casto como o amor do cavaleiro e da dama das
novelas de cavalaria medievais.
Dessa forma, vemos que no segundo livro do Romance e no segundo capítulo
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da minissérie, os principais sentidos gerados com as aparições de Sinésio são o de
que ele se contrapõe a seu irmão Arésio e é o filho preferido de seu pai – o que
justifica e antecipa a briga dos dois pela herança em detrimento de uma divisão
pacífica dos bens que poderia ser realizada, bem como a divisão do povo da Vila
entre os partidários de um e os partidários do outro quando Sinésio reaparece em
1935 – e de que o rapaz conheceu Heliana na casa do pai dela, Edmundo
Swendson, quando passou uma temporada por lá para sair do centro da Revolta de
Princesa a mando de Pedro Sebastião Garcia-Barretto, que queria protegê-lo. A
forma como é construída a sequência do encontro com Heliana cria o efeito de
sentido de grande sensualidade da moça, que encanta o rapaz, porém transmite a
ideia de que o amor deles é um amor como o dos cavaleiros medievais por suas
damas: puro e casto, sem o envolvimento físico e sexual que se espera de uma
relação romântica típica.
3.2.3 Expectativas em torno do Rapaz e de sua cavalgada
Sinésio é citado diversas vezes no Livro III do Romance. De modo geral, as
citações feitas a ele nesse capítulo da obra demonstram as expectativas que a
sociedade taperoaense tinha a seu respeito desde quando era jovem – antes de seu
rapto em 1930 – até o seu retorno à Vila em 1935 e a chegada do Juiz Corregedor
em 1938 para a instauração do inquérito.
As primeiras menções a ele que julgamos importantes para sua construção
como personagem são feitas por Samuel e Clemente no Folheto XXXIX e trazem a
impressão de que refletem o pensamento respectivamente da direita e da esquerda,
das quais os dois são representantes. Primeiramente, Samuel diz o que pensava do
Rapaz-do-Cavalo-Branco no momento de sua chegada:
Eu não nego a você, Quaderna: há três anos, em 1935, quando o Rapaz-do-Cavalo-Branco apareceu aqui, minha esperança era que ele fosse um iluminado, um Cavaleiro desses com que o Povo sonha e que os comunistas não são capazes de lhe oferecer, por causa do plebeísmo e da mania igualitária! Os “piolhos vermelhos” da marca de Clemente, Quaderna, só pensam em desenvolvimentos industriais e outras burguesices e engenheirices. Em vez de afidalgar o Povo, querem transformá-lo noutra Burguesia, pior ainda do que a outra! E são capazes de conseguir, ouça o que estou lhe dizendo! (SUASSUNA, 2012, p. 268 – grifo do autor)
Logo em seguida, Clemente rebate o comentário do rival:
187
Pois uma coisa eu lhe digo: quando, em 1935, apareceu o Rapaz-do-Cavalo-Branco, o motivo principal de eu tê-lo seguido em sua viagem foi a convicção em que eu estava de que ele iria repetir os feitos da “Coluna Prestes” no Sertão da Paraíba, em 1926. Sim, porque apesar de não sermos fidalgos, o fato é que a única figura de Cavaleiro que o Brasil deu até agora foi da Esquerda: foi o nosso grande, o nosso heróico Luís Carlos Prestes, Cavaleiro da Esperança do Povo do Brasil! (SUASSUNA, 2012, p. 269)
Os comentários dos mestres de Quaderna são feitos durante uma discussão
dos dois e visam a marcar as diferenças ideológicas e políticas existentes entre eles
e que os teriam levado a seguir Sinésio em 1935 por motivos diversos: Samuel, com
seus ideais fidalgos, esperava que o rapaz fosse uma espécie de cavaleiro salvador,
como Dom Sebastião, enquanto Clemente esperava que ele fosse um líder
comunista, como Luís Carlos Prestes. As verdadeiras razões deles, no entanto, eram
outras e similares, e não antagônicas como parecem ser em seus discursos: 1-)
dinheiro, uma vez que Quaderna lhes ofereceu uma espécie de “participação nos
lucros” do circo organizado para financiar a busca pelo tesouro escondido por Pedro
Sebastião Garcia-Barretto e, quando encontrado o tesouro, uma parte dele para
cada um; 2-) medo de que Sinésio e seu bando fossem contrários ao
posicionamento político de um ou de outro e os atacassem. Assim, Samuel e
Clemente fazem esses comentários acerca de Sinésio apenas para reforçar as
ideologias que eles, como intelectuais de Taperoá, pregam em seus discursos, mas
que no fundo não seguem.
A menção seguinte ocorre no Folheto XLVI, quando Quaderna traça um
paralelo entre suas crenças e o poema “O Reino da Pedra Fina”, de Leandro Gomes
de Barros, ao chegar à cadeia de Taperoá para prestar depoimento ao Juiz
Corregedor. Ele identifica as pessoas de seu convívio com as personagens do
poema e os locais onde suas histórias de vida se passaram com os cenários criados
pelo poeta:
[...] “as Pedras do Reino, por outras pedras cercadas” são alusões do romance aos dois rochedos gêmeos da Pedra Bonita, de onde, há um século, meus antepassados reinaram sobre o nosso País; o Reino é o Brasil, este Sertão do mundo; o Rei, sou eu; também sou eu o Cantador cuja voz se ouvia, clamando às armas; a Serra mais alta é a Borborema; a Fortaleza que salva é esta minha Obra, este meu Castelo, Fortaleza, Marco e Catedral-soterrada que eu possuo, como todos os Cantadores e Cangaceiros possuem os seus; a Princesa encantada, é Dona Heliana, a dos Olhos Verdes; assim como o Prinspe ou Príncipe legendário de quem eu conto a legenda
188
é o meu primo e sobrinho Sinésio, o Alumioso, que tanto a amou; finalmente, a busca da pedra perdida da Coroa Imperial (busca na qual o Povo mouro-cruzado do Brasil empenha seu sangue) é a “Revolução da Guerra do Reino”, que, se Deus bem me ouve, o Rapaz-do-Cavalo-Branco, enquanto eu permaneço aqui aprisionado, estará lá fora levando a bom termo, para glória do nosso sangue e da nossa Raça. (SUASSUNA, 2012, p. 323 – grifos do autor)
Nesse trecho, é revelado o que Quaderna espera de Sinésio no ano de 1938:
que ele esteja levando a cabo a Guerra do Reino, a qual colocará sua família no
trono do Brasil. Entretanto, se Sinésio estará mesmo tentando realizar essa
transformação política no Brasil ou se tudo não passa de uma confabulação de
Quaderna não nos é dado saber, uma vez que, ao identificar as personagens e os
cenários mencionados no poema de Leandro Gomes de Barros com as pessoas e
os locais de sua história de vida, o efeito de sentido gerado por sua narração é
ambíguo: Quaderna, sendo astrólogo, quer fazer crer que o poema era uma espécie
de profecia da realidade que estaria por vir, porém, ele também causa a impressão
de que, assim como o Dom Quixote de Cervantes, se envolveu tanto com a literatura
que se intoxicou dela e passou a enxergar a realidade como um desdobramento
dessa arte, criando expectativas inalcançáveis e uma realidade paralela para si
próprio e para seus seguidores. Essa identificação, todavia, nos permite perceber
claramente a forma de composição utilizada por Suassuna na escritura do Romance
e que faz parte da proposta do Movimento Armorial: ele se baseou em obras
populares existentes para criar o enredo de sua própria obra ao fazer o narrador
conhecê-las e relacionar sua história com as apresentadas nelas.
A seguir, no Folheto LI, Quaderna fala sobre a data escolhida pelo prefeito e
pelo presidente do conselho de Taperoá para a cavalhada:
Marcando a Cavalhada para essa data, parecia até que aqueles dois nobres varões já pressentiam os extraordinários acontecimentos que, por volta das quatro horas da tarde, vieram a se desencadear com a chegada do Rapaz-do-Cavalo-Branco e que trariam à nossa Vila indomável destroços sangrentos e reluzentes centelhas da minha “velha história perigosa”; história que todos julgavam “morta já e sepultada”, mas que, naquele dia, iria ressuscitar para mal das pessoas mais influentes e poderosas do lugar. É a história que formará, um dia, o “centro trágico e nó heróico” da minha Epopéia, o alicerce de pedra e cal do meu Castelo real e sertanejo. Devo, portanto, passar a narrá-la, pelo menos em seus episódios principais. (SUASSUNA, 2012, p. 359)
Nesse excerto, Quaderna novamente revela o quanto a chegada de Sinésio
189
poderia ser perigosa para as pessoas “influentes e poderosas” da Vila, o que reforça
nossa interpretação da passagem citada aqui anteriormente de que Samuel e
Clemente, diferentemente do que aparentam, juntam-se ao bando do rapaz por
medo de represálias, uma vez que são, respectivamente, Promotor e Advogado em
Taperoá, ou seja, fazem parte da elite por ocuparem posições de destaque social.
Ainda nesse Folheto, Quaderna conta que o desaparecimento de Sinésio e a
morte de seu pai foram relacionados a questões políticas e diz ao Juiz que o povo
acreditava que Sinésio havia sido encarcerado debaixo da terra em um subterrâneo
cavado durante a Guerra Holandesa:
Dom Pedro Sebastião, aliado aos Dantas, da Serra do Teixeira, e ao Coronel José Pereira Lima, Senhor da Vila da Princesa Isabel – centro principal da “Guerra de Princesa” –, era uma das principais colunas sertanejas da rebelião contra o Presidente João Pessoa! Começaram, então, imediatamente, a correr boatos que atribuíam a morte do velho Rei e a desaparição de seu filho, Dom Sinésio, o Alumioso, a motivos políticos. [...] Segundo os partidários de Dom Pedro Sebastião e Sinésio, o Presidente João Pessoa, primeiro, e, depois de seu assassinato, os seus seguidores mais fanáticos – como o Interventor Antenor Navarro, por exemplo – sabiam que o Prinspe Alumioso era uma vítima e refém precioso perante os Sertanejos rebelados da gloriosa “Guerra de Princesa”. Por isso, queriam conservá-lo prisioneiro, como elemento de intimidação e trunfo para a derrota dos partidários dele! Mas as pessoas que, aqui na Vila e no resto do Sertão, eram contrárias a Sinésio, isto é, os partidários do usineiro e dono de minas Antônio Noronha de Brito Moraes, esses diziam que Sinésio estava morto e bem morto, sepultado não no subterrâneo, mas sim debaixo dos clássicos e comuns sete palmos de terra que cobrem todo mundo! Como Vossa Excelência pode ver agora, em qualquer dos casos a expressão do Almanaque Charadístico se aplica perfeitamente, porque, seja no chão ou no subterrâneo, o fato é que a terra se abriu e Sinésio foi soterrado – ficou ali, soterranho, sepultado em suas entranhas! (SUASSUNA, 2012, pp. 367-369 – grifos do autor)
As questões políticas que Quaderna alega estarem por trás da morte do tio e
do desaparecimento do primo dizem respeito à participação deles na Guerra de
Princesa, em 1930, que faz com que a volta de Sinésio, em 1935, seja vista como
comprometedora para os poderosos do lugar, porque pode significar um
desdobramento dessa guerra, com uma possível vingança do rapaz e dos partidários
de Pedro Sebastião contra a morte do líder e o sequestro de seu filho, e com a
retomada da luta então interrompida.
O rapto de Sinésio, por sua vez, é visto pelos opositores de seu pai como tendo
190
desencadeado sua morte, após a qual ele teria sido enterrado “debaixo dos
clássicos e comuns sete palmos de terra que cobrem todo mundo”, o que significa,
para eles, que o Rapaz-do-Cavalo-Branco que apareceu na Vila em 1935 era um
impostor tentando se passar pelo morto a fim de mobilizar as massas para um fim
maior, temido por eles: a realização da revolução comunista. Por outro lado, o
sequestro do rapaz é retratado por Quaderna como um evento sobrenatural que o
assemelha a Dom Sebastião e a um Messias, uma vez que implica que ele pode ter
morrido enquanto era mantido preso em uma construção localizada no subterrâneo
e sido enterrado como qualquer pessoa, mas depois voltou à vida e à sua cidade
natal acompanhado de seguidores para lutar pelo povo e retomar o trono do Brasil.
Isso implica atribuir a Sinésio características sobre-humanas como as de Jesus
Cristo, atribuição essa que, nos Folhetos LV, LIX, LX, LXII e LXIII, é corroborada
quando o narrador diz crer que Sinésio era o Anjo do qual falara Álvares de Azevedo
no poema “Anima Mea”, quando revela o que o povo pensava sobre ele, quando
relata o pronunciamento do Doutor Pedro Gouveia para a população sobre a volta do
Rapaz e quando descreve/narra o reencontro deste com seu irmão Silvestre.
No Folheto LV, Quaderna diz que Álvares de Azevedo escreveu “versos
proféticos” sobre Sinésio, o que, como já dito por nós antes, é um sinal de como a
literatura determina a vida do narrador, assim como faz com Alonso Quijano, o Dom
Quixote, e é uma pista sobre a forma de composição utilizada por Suassuna – partir
de elementos das culturas popular e erudita, integrando-os, para produzir sua obra.
O narrador ainda diz que achava o primo perigoso por ser capaz de mobilizar o
povo, o que o Juiz usa como uma confissão de sua parte:
E fora talvez já pensando na aparição desse sonhoso e angélico Donzel em minha Epopéia, que o genial Bardo brasileiro, Álvares de Azevedo, escrevera aqueles versos proféticos que dizem: “Criatura de Deus, se peregrina invisível na Terra, restaurando a Justiça aos que sofrem, certamente que é um Anjo de Deus!” O Corregedor cortou, com ar incrédulo e irônico: – Quer dizer que, na sua opinião, aquele Rapaz-do-Cavalo-Branco era uma espécie de Anjo de candura, inocente e inofensivo! – Não, Sr. Corregedor! Um Anjo é uma coisa muito diferente do que as pessoas pensam! [...] – Então, o senhor acha que o Rapaz-do-Cavalo-Branco era perigoso! – Bem, Sr. Corregedor, quanto a isso estamos de pleno acordo! Não tenho a menor dúvida de que o Rapaz-do-Cavalo-Branco era perigoso, e basta ver tudo o que aconteceu depois da chegada dele
191
para entender isso! – Anote essa declaração, Dona Margarida, ela é fundamental para o inquérito! (SUASSUNA, 2012, pp. 400-401)
Adiante, nos Folhetos LIX e LX, Quaderna revela ao Juiz-Corregedor o que o
povo pensava de Sinésio:
“Então” – dizia o Povo, terrivelmente abalado – “esse Rapaz-do-Cavalo-Branco é aquele mesmo Sinésio Garcia-Barretto, raptado em 1930, morto em 1932 e ressuscitado agora, milagrosamente, nesta Véspera de Pentecostes de 1935!” Lembro a Vossa Excelência que estávamos, então, naqueles dias de grande agitação política que antecederam a Revolução Comunista de 1935. O Povo acreditara, sempre, que Sinésio retornaria a qualquer momento para chefiar uma vaga Revolução Sertaneja que ninguém sabia realmente o que era. Assim não admira que estes tenham sido os acontecimentos que terminaram me obrigando a comparecer como acusado neste inquérito, aberto agora por Vossa Excelência. [...] – Como eu vinha dizendo, estávamos às vésperas da Revolução Comunista de 1935. Ora, Sinésio concentrara em torno dele, durante todos aqueles anos, as esperanças de justiça da ralé sertaneja, como o senhor chamou há pouco. O Povo nunca perdera a fé na sua volta, quando ele, ressurreto, realizaria a Restauração, ou instauração de não sei que Reino, um Reino sertanejo no qual os proprietários seriam devorados por dragões e todos os Pobres, aleijados, cegos, infelizes e doentes ficariam de repente poderosos, perfeitos, venturosos, belos e imortais. Por isso, naquele Sábado, com a chegada epopéica do Rapaz-do-Cavalo-Branco, as duas idéias logo se juntavam num boato só. Sinésio viera para instaurar o Reino, e a guarda de Ciganos que o acompanhava não era senão a guarda-avançada de uma nova Coluna que o Guerreiro e Fidalgo-brasileiro, o Capitão Prestes, enviara ao Sertão para rebelá-lo e subvertê-lo, como já tinha feito em 1926, com a célebre “Coluna Prestes”! (SUASSUNA, 2012, pp.420-422)
Quaderna dá a entender que não sabe muito bem o que o povo esperava de
Sinésio: se a instauração de um reino igualitário de felicidade para todos por meio da
Revolução Sertaneja ou se uma mudança no cenário político e econômico por meio
da Revolução Comunista, chefiada por Luís Carlos Prestes. Entretanto, nós
sabemos que ele instruía seus discípulos acerca do que seria a Revolução Sertaneja
e de como ela poderia ser realizada: pelo exército que Sinésio construiria. Dessa
forma, entendemos que, como era um homem bem informado e instruído por
Samuel e Clemente, o narrador estava ciente do que se passava no Brasil real, e
misturava elementos da realidade do período em que vivia com suas próprias
crenças baseadas na história passada de sua família a fim de explicar o que estava
ocorrendo e criar para si o futuro desejado. Com isso, vemos que Quaderna articula
192
os diversos discursos vigentes – o da elite e o do povo humilde taperoaense – para
construir a história do primo e sua própria diante do Corregedor, mas manipula as
pessoas com menos instrução que ele a acreditar que o que está prestes a ocorrer é
o evento supostamente profetizado por ele da revolução sertaneja que, como num
passe de mágica, beneficiará a todos eles, vítimas das injustiças sociais.
Entretanto, podemos interpretar a intenção de Quaderna de maneira diferente
quando, no Folheto LXII, ele narra ao Juiz como teria sido a conversa que Sinésio
teve com um mendigo na noite de sua chegada à Vila:
– Seja o mais preciso que lhe for possível agora, Dom Pedro Dinis Quaderna! [...] Que foi que o Rapaz-do-Cavalo-Branco disse ao mendigo? O assunto era perigoso, de modo que procurei tergiversar e falei vagamente: – [...] Uns dizem que Sinésio apenas ofereceu uma esmola, que teria sido recusada pelo mendigo. Outros dizem que ele falou no Testamento e no Tesouro, ambos deixados por Dom Pedro Sebastião, indagando alguma coisa sobre o Roteiro perdido desse Tesouro. E, finalmente, a maioria diz que Sinésio teria feito alusões misteriosas ao Reino e à sua Missão, o que não deixa de ser estranho, diante da aparente insignificância daquele mendigo. [...] Dizem que as palavras que Sinésio proferiu foram as seguintes: “Meu Velho, posso fazer alguma coisa para ajudar você? Vim por causa do Crime, da Herança e do Reino! Você sabe alguma coisa sobre o Caminho e o Roteiro? Onde é que eu posso falar com Antônio Villar?” – Como? [...] O senhor sabia, Dom Pedro Dinis Quaderna, que Luís Carlos Prestes, o Chefe dos comunistas brasileiros, mais ou menos por esse tempo estava entrando no Brasil secretamente, vestido de Padre, e adotando exatamente esse falso nome de Antônio Villar? – Naquele momento, eu ainda não sabia disso não, Sr. Corregedor, mas soube logo mais, à noite, por intermédio do Comendador Basílio Monteiro! Mas, no caso de Sinésio, permanece uma dúvida. A maior parte das pessoas, aqui, acredita que não foi a Luís Carlos Prestes que ele se referiu, porque existe também, aqui na Vila, um Fazendeiro com esse nome, pertencente à mesma família do Contra-Almirante Frederico Villar. (SUASSUNA, 2012, pp. 433-434)
Quando Quaderna revela que procurou “tergiversar” ao responder ao
Corregedor, sua atitude nos faz pensar que possivelmente Sinésio e ele estivessem
envolvidos com a intentona comunista, e que toda a história contada por ele sobre a
restauração de sua família ao trono do Brasil seja apenas uma estratégia para
convencer o Juiz de que, com seu sonho delirante de tornar-se rei, ele estava alheio
às reais lutas políticas que ocorriam no Brasil. Podemos ainda pensar que Quaderna
instruía o povo humilde de Taperoá a pensar na vinda de um cavaleiro messiânico a
193
fim de conseguir mobilizá-lo para a revolução comunista, que seria a verdadeira
revolução que ele e os seus visavam a realizar. As menções que vêm a seguir
contribuem para que essa nossa interpretação seja possível devido ao fato de as
cenas narradas parecerem ter sido ensaiadas pelo bando de Sinésio em vez de
ocorridas naturalmente.
Uma delas é feita pelo advogado de Sinésio, Doutor Pedro Gouveia, ainda
nesse Folheto, com a intenção de sensibilizar o povo para a causa de seu cliente:
O Povo, que tinha acorrido todo para a Rua da Usina, esperava, silencioso, a volta do Doutor Pedro e de Frei Simão, como que aguardando uma explicação ou uma palavra de ordem que desse sentido a todos aqueles acontecimentos. O Doutor Pedro Gouveia, que parecia homem dotado para essas situações, não se negou a isso. E, do alto de seu cavalo, falou com certa imponência: – “Povo de Taperoá! Aquele rapaz, desaparecido daqui em 1930, maltratado por cruéis inimigos, que mataram seu Pai e o raptaram no mesmo dia; aquele rapaz, tão querido por todos os Pobres do nosso Sertão, voltou hoje aqui para reivindicar seus direitos sagrados! Há interesses poderosos, aliados contra ele e contra seus direitos! Como vocês viram, mal ele vai chegando à terra que para ele se tornou sagrada por causa do sangue de seu Pai, tentam matá-lo, para impedir o Moço-do-Cavalo-Branco de fazer a felicidade da Pobreza! Sozinho contra todos, raptado, perseguido, encarcerado, maltratado, órfão, agora ameaçado de morte, com quem poderia ele contar, senão com o Povo, esse Povo bom, sofredor e pobre, do Sertão? Foi sempre ao lado desse Povo que ele esteve, foi sempre a seu lado que ele apareceu, e é isso que os seus inimigos não perdoam! Por isso, eu e Frei Simão, protetores e amigos do Rapaz-do-Cavalo-Branco, pedimos a ajuda do Povo Sertanejo para Sinésio Garcia-Barretto!” (SUASSUNA, 2012, pp. 438-439 – grifos do autor)
Nesse trecho, temos a clara percepção de que o Doutor Pedro Gouveia quer,
pelo discurso, mobilizar as pessoas que o ouvem para que fiquem do lado de
Sinésio contra os poderosos. Para isso, ele lança mão de algumas estratégias: cria
uma identificação de seu cliente com o povo e com o sagrado, “aquele rapaz, tão
querido por todos os Pobres do nosso Sertão, voltou hoje aqui para reivindicar seus
direitos sagrados!”, “Foi sempre ao lado desse Povo que ele esteve, foi sempre a
seu lado que ele apareceu”; constrói sua imagem como a de vítima indefesa e
injustiçada, quase um mártir, utilizando-se de um processo de gradação dos
adjetivos empregados, “Sozinho contra todos, raptado, perseguido, encarcerado,
maltratado, órfão, agora ameaçado de morte”; e elogia o povo como forma de
seduzi-lo e trazê-lo para a luta: “com quem poderia ele contar, senão com o Povo,
esse Povo bom, sofredor e pobre, do Sertão?”. Assim, vê-se como era importante
194
a participação popular na revolução que Sinésio realizaria, fosse ela uma revolução
sertaneja ou comunista, e compreende-se por que o Doutor Pedro Gouveia, por ser
advogado e dominar com excelência a arte da retórica, tenha sido o designado para
fazer o primeiro discurso sobre o Rapaz.
A seguir, no Folheto LXIII, Quaderna narra o encontro de Sinésio com o irmão
Silvestre no dia de sua chegada à Vila, e reproduz as falas e gestos de Frei Simão e
de Silvestre que caracterizam Sinésio como um ser divino enviado ao sertão, o que
condiz com sua opinião. No entanto, a narração desse encontro inclui diferentes
versões, apresentadas pelo Juiz Corregedor, e que acabam instaurando o
plurilinguismo na cena e tornando-a ambígua:
– “Sinésio?” – indagou ele, esgazeado. – “O senhor disse Sinésio? Pelo amor de Jesus Cristo e de Nossa Senhora! Você é Sinésio? É Sinésio, mesmo? Eu sou Silvestre! Sou Silvestre, seu irmão!” – Ao ouvir essas palavras, Sr. Corregedor, dizem que Sinésio, profundamente emocionado, deu um passo para o irmão, o que foi suficiente para que os dois ficassem face a face. [...] Dizem que, colocando as duas mãos nos ombros de Silvestre, Sinésio disse algumas palavras em voz baixa e com os lábios trêmulos... O Corregedor interrompeu: – Já ouvi outra versão, segundo a qual esse Rapaz-do-Cavalo-Branco não disse nada nesse momento! Dizem que ele teria ficado imóvel, emocionado, com as mãos nos ombros do outro e olhando seus olhos, isso durante uma boa porção de tempo, até que o tal do Frei Simão interrompeu a cena! – É, tem umas pessoas por aí que contam assim! – expliquei. – Mas outras, fidedignas, me contaram que, pelo contrário, Sinésio falou, dizendo: “Então, Silvestre, ainda me conhece? Sou Sinésio! Sou eu, meu irmão!” E os dois se abraçaram, chorando. É verdade que, logo no dia seguinte, surgiram várias versões do acontecido, dizendo logo os partidários de Arésio que as palavras não tinham sido exatamente essas! – Há quem diga, mesmo, que em vez de Silvestre, o Rapaz-do-Cavalo-Branco teria chamado seu pretenso irmão de Silvério! – É, mas muita gente, também, diz que ele acertou e chamou o irmão foi de Silvestre, mesmo! E mesmo que não tivesse acertado, Sr. Corregedor, os sofrimentos podem tê-lo perturbado um pouco, causando o erro! O senhor pensa que ver o Pai assassinado, ser raptado no mesmo dia, ser preso sem culpa nenhuma, ser soterrado, morrer de fome, solidão e desespero, e, ainda por cima, ressuscitar numa estrada sertaneja é alguma brincadeira? De qualquer modo, sei que Silvestre, abraçado ao pescoço do irmão, dizia: “Meu Deus, será verdade mesmo? Será que Sinésio está vivo? Sim, é ele, meu coração me diz que é!” (SUASSUNA, 2012, pp. 439-440)
Nesse trecho, a justificativa que Quaderna dá para o possível erro cometido por
Sinésio ao confundir o nome do irmão, bem como a presença de discursos
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contraditórios na narração nos causam estranhamento e nos fazem pensar na
possibilidade de tudo ser realmente uma farsa armada para sensibilizar o povo e
conquistá-lo para a luta: Sinésio não teria morrido e ressuscitado, e sim morrido e
sido substituído por outro rapaz, que, no momento do “reencontro” com o suposto
irmão, confundiu o nome ensinado para ele por Frei Simão e pelo Doutor Pedro
Gouveia na preparação da revolução. É nisso que acredita a elite taperoaense, ao
contrário do povo mais humilde da cidade, que, como se verá em seguida, acredita
no mesmo que Quaderna por ter sido instruído por ele.
Mais adiante no Folheto LXIII, Frei Simão é apresentado a Silvestre e faz de
sua presença uma interpretação mística: a de que ele seria o Mestre Quiou, da Serra
do Rodeador, ressuscitado:
[...] Dizem que Sinésio, tomando o irmão pelo braço, apresentou-o ao Frade, dizendo: “Frei Simão, este aqui é meu irmão, o segundo, aquele que era pegado comigo e que eu lhe disse que ficaria do nosso lado, de qualquer jeito! É Silvestre!” Dando mostras de um espanto visível para todos, Frei Simão arregalou os olhos e gritou: “O quê? Como foi que você disse? Você disse, aí, Silvestre, foi, Sinésio? Rapaz, você se chama Silvestre? Pergunto porque, se você se chama, mesmo, Silvestre, o Doutor Pedro precisa saber disso imediatamente!” [...] “Doutor Pedro, chegue aqui pelo amor de Deus! Veja se o nosso Sinésio não é, de fato, uma criatura de Deus! Veja se tudo isso não é coisa divina, coisa do Divino Espírito Santo! Olhe, veja quem está aqui, ressuscitado: Silvestre, o Guia, aquele mesmo Rei e profeta da Serra do Rodeador! É o nosso Silvestre Quiou, O Enviado!” (SUASSUNA, p. 441 – grifos do autor)
Por fim, é a vez de Silvestre falar de Sinésio e tratá-lo de uma maneira que o
exalta a ponto de elevá-lo ao nível de Jesus Cristo. Pelo discurso apaixonado e pela
postura que apresenta diante do irmão, Silvestre causa comoção em todo o povo
presente na cena de seu reencontro, que toma sua fala como uma verdadeira
oração e repete-a como uma ladainha:
“Mas meu Deus, será verdade mesmo? É verdade, tudo me diz que é verdade! Sinésio ressuscitou, e ressuscitou, com ele, o sangue de meu Pai! Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo! Sinésio ressuscitou, ressuscitou o Prinspe da Bandeira do Divino do Sertão! Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!” “Para sempre seja louvado!” – começavam, já, a repetir, em coro, os Sertanejos, sempre meio dispostos a uma boa ladainha. Então, Sr. Corregedor, sucedeu um outro fato mais ou menos inesperado. De repente, Silvestre, certamente impressionado com tudo o que acontecera, ajoelhou-se na poeira do chão e beijou a mão do ressuscitado, o que terminou por desgarrar, de vez, tudo quanto era fanatismo sertanejo represado. (SUASSUNA, 2012, p. 442)
196
Nesse trecho, quando Silvestre se ajoelha diante do irmão e beija sua mão,
segundo Quaderna, desperta na multidão “tudo quanto era fanatismo sertanejo
represado”, o que significa que Sinésio, Frei Simão, o Doutor Pedro Gouveia,
Silvestre (este talvez sem intenção) e Quaderna tiveram êxito em convencer o povo
de que deviam ficar do seu lado e segui-los.
No terceiro capítulo da minissérie, há três menções e aparições importantes de
Sinésio, algumas das quais recriam os sentidos produzidos no Livro III do Romance.
A primeira menção que analisaremos ocorre na sequência que vai de 00:33:22
a 00:37:17. De 00:33:22 até 00:35:24, vemos Silvestre vagando pelo sertão após a
morte de seu pai e o desaparecimento de Sinésio. Ele aparece em primeiro plano
falando de si próprio como filho bastardo e menciona o sumiço do irmão com forte
pesar. A cena é cortada pelas imagens de Sinésio em primeiríssimo plano olhando
algo por sobre os ombros (figura 64, vide p. 177) e deitado em um local escuro,
aparentemente desmaiado (figura 67, vide p. 179) e, quando retorna para Silvestre,
ele está desesperado, chamando pelo irmão. Essa sequência produz o significado
de que ele soube da prisão e da morte de Sinésio e, por isso, desesperou-se. Logo
em seguida, a cena é cortada novamente para o rapaz deitado e desacordado, mas
dessa vez Arésio está ao seu lado tocando em seu rosto e fazendo sinal afirmativo
com a cabeça, o que indica que ele está fazendo o reconhecimento do corpo do
irmão, fato que é confirmado pelo narrador Quaderna na cena seguinte a essa.
De 00:35:25 a 00:37:17, Quaderna diz ao Juiz Corregedor que após o
desaparecimento de Sinésio e a morte de seu pai, Antônio Moraes foi nomeado
inventariante dos bens dos Garcia-Barretto devido à ausência de testamento. No
entanto, antes de completar essa afirmação, é interrompido pelo Juiz ao dizer que
Sinésio teria sido raptado a mando do governo do estado (da Paraíba?), o que
significa que o magistrado não estaria disposto a aceitar acusações contra o sistema
ao qual pertencia e do qual era representante. Quaderna diz, ainda, que a ausência
de testamento dividiu a população entre os que defendiam que o herdeiro da fortuna
de Pedro Sebastião deveria ser Arério e os que defendiam que era Sinésio quem
deveria herdar os bens do pai.
Os partidários de Sinésio eram as pessoas humildes da cidade. Quaderna diz
quem são eles dos 00:36:50 aos 00:37:17 (figura 62, vide p. 159): “os almocreves,
os cambiteiros, os ciganos, as lavadeiras, os vaqueiros, os cabras-do-eito, as
mulheres-damas, os fazedores-de-chapéu-de-palha, os cavalarianos, os cabras-do-
197
rifle, as fateiras, os cantadores, os cangaceiros...”.
Os partidários de Arésio, por sua vez, eram as autoridades, os fazendeiros e os
ricos. Dos 00:36:15 aos 00:36:49, aparecem em cena essas pessoas (figura 61, vide
p. 159), que têm prestígio e lugar reservado num palanque durante a realização da
Cavalhada, evento público que Quaderna ajuda a organizar todos os anos. Nessa
sequência, é reiterado parcialmente o sentido já presente no Livro III do Romance de
que Samuel e Clemente no fundo não seguem as ideologias políticas que pregam,
mas aliam-se aos ricos e poderosos para obter vantagens pessoais. Aqui, o sentido
é parcialmente recriado porque Clemente mostra-se incoerente com seu
posicionamento político ao subir no palanque e assistir ao evento em meio a essas
pessoas ricas e poderosas, sendo criticado pelo esquerdista Eusébio Monteiro por
acomodar-se ao lado do Comendador Basílio Monteiro em vez de ficar ao lado do
povo.
A segunda aparição de Sinésio que analisaremos vai dos 00:42:30 aos
00:43:25. Nos três primeiros segundos da sequência, Sinésio está ao lado do Doutor
Pedro Gouveia e aparece olhando para ele de soslaio, em primeiro plano e em
ângulo contra-plongée, com uma expressão de cumplicidade, como se estivesse
esperando que o outro fizesse algo previamente combinado entre eles. A seguir, o
Doutor toma a frente e bate à porta do Doutor Manuel Viana Pais, juiz de direito de
Taperoá, para falar sobre seu cliente e diz que Sinésio foi raptado no dia da morte de
seu pai, mas que está de volta, “amparado pela caravana do povo”, para reivindicar
seu direito ao nome de sua família e à sua herança. Enquanto discorre sobre
Sinésio, este mantém o olhar sempre fixo diante de si, sendo, por duas vezes,
filmado por ângulos diferentes em que música e névoa o acompanham, mas se
mantendo tranquilo e com a mesma expressão no rosto. O Doutor Pedro, por sua
vez, mantém tom de voz altivo e o olhar com expressão de alegria e entusiasmo,
enquanto o Doutor Manuel mantém um ar de incredulidade com relação ao que está
ouvindo.
198
Figura 71: Expressões faciais de Sinésio, Doutor Pedro e Doutor Manuel aos 00:42:55 e aos
00:43:14 do terceiro capítulo.
As expressões faciais das personagens em toda a sequência dão indícios da
maneira como cada uma se comporta em relação ao acontecimento que estão
vivenciando e que representará o modo como os partidários de cada um o
interpretará nas sequências seguintes: o Doutor Manuel – representante da elite
taperoaense – mostra desconfiança em relação às alegações do advogado do rapaz,
assim como farão os outros membros dessa elite; o Doutor Pedro mostra
empolgação e veemência para fazer crer que seu discurso é verdadeiro; e Sinésio
mostra-se superior a tudo que o rodeia por manter-se impassível e calado durante
toda a sequência. A música que acompanha sua aparição na tela, a qual não
conseguimos identificar na trilha sonora da minissérie, assemelha-se a um canto
religioso e ajuda a corroborar com o sentido dado ao retorno de Sinésio pelo Doutor
Pedro: o da busca por um direito sagrado. O povo humilde se manifestará em
relação ao rapaz exatamente como o Doutor Pedro e ele próprio: crerá com
veemência e empolgação que o rapaz é um ser superior e sagrado a quem deve
apoiar.
A terceira aparição de Sinésio que estudaremos aqui vai de 00:46:14 até o fim
do capítulo, aos 00:52:08.
Sua primeira parte vai de 00:46:14 a 00:48:15, e nela a multidão aparece
aglomerada e exaltada escutando Nazário, um velho tido como profeta, após a
chegada do bando de Sinésio à Vila. É noite e o homem diz, em tom de voz
exaltado, que teve uma visão profética na qual encontrava-se na furna de uma onça
e este animal conversava com ele, ordenando-o que conclamasse o povo para
encontrar a furna real, ao que ela retribuiria fazendo a felicidade de todos tornando-
os ricos, bonitos, poderosos e imortais. Após terminar sua fala, Nazário esmorece e
199
senta-se, aparentando cansaço extremo e sendo amparado por uma jovem que o
acompanha, a qual, conforme mencionado no roteiro da minissérie, é sua filha Dina-
me-dói.
Nessa passagem, destacam-se as posturas assumidas pelo Doutor Pedro
Gouveia e por Sinésio ante as palavras do velho profeta. Aquele faz a multidão calar-
se para ouvir o que o homem tem a dizer e presta bastante atenção em seu
discurso. Podemos perceber que ele se interessa pelo que é dito mesmo antes de
Nazário falar e, com isso, concluir que, possivelmente, ele já soubesse de antemão
o que o homem diria porque os dois haviam conversado a sós e o conteúdo lhe
havia parecido interessante de ser divulgado ao povo com a finalidade de obter seu
auxílio à causa de Sinésio, ou, ainda, porque o discurso havia sido premeditado
entre eles para ludibriar o povo, impressionando-o e mobilizando-o para o fim
desejado.
A postura de Sinésio também causa certa estranheza, uma vez que ele presta
atenção nas palavras de Nazário, mas se mostra assustado quando o velho diz que
a onça transformará todo o povo em seres imortais. Essa apreensão que ele
aparenta não é coerente com o que alguém que há pouco ressuscitou e a quem é
atribuída a capacidade de transformar a realidade sentiria. Pelo contrário, ela parece
ser fruto da ausência dessa crença, o que poderia indicar, assim como no Romance,
a possibilidade de o rapaz ser mesmo um impostor.
Figura 72: Aos 00:47:22 do terceiro capítulo, Sinésio assusta-se ao ouvir a palavra “imortal”.
200
Sua segunda parte vai de 00:48:16 a 00:52:08. Nela, primeiramente, Sinésio
afasta-se de Nazário e, ao deparar-se com um mendigo sentado no chão, agacha-se
a sua frente. Ele demonstra querer conversar com o homem, mas, quando este o
encara, aparenta sentir medo e levanta-se, virando-lhe as costas. O homem então
aponta uma arma em sua direção e dispara, mas erra o tiro e sai correndo. No
entanto, ele próprio é alvejado poucos metros adiante e morre, enquanto Sinésio fica
a um canto, recuperando-se do susto.
Em seguida, o Doutor Pedro clama à multidão de maneira parecida como faz a
personagem do Romance nas página 438 e 439: identifica Sinésio com o povo e
com o sagrado ao chamá-lo de “nosso prinspo” e dizer que ele voltou para “reclamar
seus direitos sagrados”, e seduz o povo para a luta ao dizer que “ele sabe que pode
contar com o povo sofrido do nosso sertão” e que “vai começar uma guerra grande e
dolorosa, mas vai ser uma guerra de libertação”.
Por fim, Silvestre, que está em meio à multidão, aparece junto do Doutor Pedro
gritando pelo irmão. O Doutor, então, aponta para o rapaz e os dois se aproximam,
emocionados. Silvestre chora dizendo que acredita realmente que seu irmão não
morreu e que é ele quem está na sua frente. Sinésio afirma ser o irmão de Silvestre
e chora convulsivamente ao abraçá-lo, enquanto as pessoas presentes ajoelham-se
diante da cena. Seu choro é filmado em primeiríssimo plano, o que aumenta a
intensidade do acontecimento, e vemos Sinésio tremer bastante, o que faz parecer
que seu choro é forçado.
Figura 73: Sinésio chora ao reencontrar Silvestre aos 00:52:02 do terceiro capítulo.
201
Essa interpretação da sequência torna-a análoga à do Romance, em que há
ambiguidade devido a haver duas versões do fato: a de que Sinésio teria falado com
o irmão assim que se aproximou dele e acertado seu nome, e a de que não teria
falado nada com ele a princípio, errando seu nome (chamando-o de Silvério)
quando, depois de alguns momentos de silêncio, começou uma conversa. Isso
significa que tanto Ariano Suassuna quanto Luiz Fernando Carvalho criam Sinésio e
os homens de seu bando, principalmente o Doutor Pedro Gouveia, com
ambiguidade: ao mesmo tempo fazendo com que o leitor/telespectador creia na
possibilidade de que eles tenham ido à Taperoá por uma causa sobrenatural, ou
acredite que eles sejam impostores que apenas têm a intenção fazer o povo crer
que a causa é sagrada a fim de manipulá-lo a dar apoio incondicional a ela.
3.2.4 Profecias de Quaderna e crenças em Sinésio
No quarto Livro do Romance, bem como no quarto capítulo de minissérie, o
número de menções e aparições de Sinésio é bastante grande. Escolhemos estudar
aquelas que se referem às profecias que Quaderna faz e à esperança de salvação
que o povo simples do sertão tem em Sinésio.
No Folheto LXIV, o Juiz Corregedor revela a Quaderna acusações que foram
feitas contra ele:
A carta que recebi é extensa e faz cerca de sessenta acusações contra o senhor. Entre estas, duas muito importantes! A primeira, diz que o senhor descende daqueles fanáticos execráveis que, na Pedra do Reino, de 1835 a 1838, subverteram o Sertão com uma “seita” sanguinária, degolando mulheres, crianças e cachorros. Diz a carta que o senhor mesmo se encarregou de lembrar isso à ralé sertaneja daqui, conseguindo, assim, por mais estranho que pareça, assumir uma certa ascendência sobre ela. Dizem que o senhor fez isso, a princípio, apenas para explorar o Povo, inclusive em dinheiro; mas que, depois, com a chegada de Sinésio, foi por causa disso que pôde aliciar tanta gente para a expedição do tal Rapaz-do-Cavalo-Branco. Segundo a carta, o fato de pertencer àquela família sanguinária e subversiva é o motivo da sua ascendência sobre os Cangaceiros, Cantadores, Vaqueiros e mais toda essa ralé sertaneja de fateiras, prostitutas, tangerinos e contrabandistas de cachaça. [...] – Por que não me contou nada sobre as ligações que estabeleceu, no espírito dos Sertanejos ignorantes, entre a seita da Pedra do Reino e a expedição sediciosa de seu primo e sobrinho, Sinésio, O Alumioso? (SUASSUNA, 2012, pp. 457-458)
Nessa passagem, o Juiz acusa Quaderna de ter se utilizado da história do
202
bisavô para explorar as pessoas simples de Taperoá até a chegada de Sinésio e,
quando da chegada dele, para persuadi-las a apoiar sua causa e, por meio do
processo de adjetivação que o magistrado utiliza, é possível ver seu posicionamento
negativo com relação à comunidade, o qual corresponde ao posicionamento das
pessoas de sua classe social: “fanáticos execráveis”, “seita sanguinária”, “família
sanguinária e subversiva”.
Com isso, podemos perceber que a forma como a população humilde vê
Sinésio – como um ser puro, sagrado, redentor, que estaria prestes a desencadear
uma grande transformação social ao dar aos pobres riqueza, beleza, felicidade e até
mesmo a imortalidade – é contrária à forma como o Juiz e a elite taperoaense o vê,
e lhe foi incutida por Quaderna. Logo, o narrador foi o mentor da crença messiânica
desenvolvida em torno de seu primo, a qual propagava em sua coluna astrológica no
Almanaque do Cariri, e que perpassava inclusive sua crença religiosa, como vemos
no Folheto LXXII, em que ele realiza seu ritual litúrgico sobre um tabuleiro e reza, no
dia da chegada de Sinésio e de seu bando à Vila:
“Ó Adonai! Ó Onça Tapuia, Negra e Malhada do Divino do Sertão! [...] O Príncipe é o verdadeiro dono do Brasil! Das ondas do Mar, Dom Sinésio Sebastião sairá com todo o seu Exército. Tira a todos, no fio da Espada, desse papel da República, e o sangue há de ir até a junta grossa. Quem for Republicano, mude-se para os Estados Unidos! O Tempo está chegando, o Século vem vindo! É preciso que Deus e o Povo não deixem em silêncio a causa verdadeira e a origem de todos os obstáculos que o Presidente da República e seus cupinchas levantam, para impedir que a Família imperial dos Quadernas chegue de novo ao Trono do Brasil: é o medo, é o horror de que todos ficaram possuídos, ao saber que, na Pedra do Reino, há um século, Dom João II, O Execrável, mandou sacrificar sete mil Cachorros que, se o Reino tivesse continuado, teriam ressuscitado como indômitos Dragões, para devorar os poderosos e confirmar o Império, acabando a escravidão do Povo, a traição ao Brasil, e instaurando, de uma vez para sempre, a justiça e a monarquia do Povo, através da Coroa de couro e prata da Onça Malhada do Sertão!” [...] “Quando Quaderna estender sua mão, quando o Rei brandir o seu Cetro e o Profeta seu Báculo, o Príncipe do Povo, o Moço-do-Cavalo-Branco será suscitado e o Mar fará soçobrar os traidores, refluindo depois, ao amanhecer, para o lugar que ocupava. Naqueles dias, o Rei escreverá um Canto para o ensinar ao Povo do Brasil, aos filhos do Sertão do Mundo. E depois de suscitado o Príncipe pelo Canto, o Senhor do Fogo ordenará a Sinésio, filho de Dom Pedro Sebastião, dizendo: ‘Anima-te, sê forte e tem coragem, porque tu farás entrar os filhos do Sertão no Reino que lhes prometi; e Eu estarei com o Povo.’[...]” (SUASSUNA, 2012, pp. 553-557)
203
Quaderna está sozinho e reza para que as divindades de seu catolicismo
sertanejo possibilitem que seu primo acabe com a república e instaure a monarquia
no Brasil. Ele até cria uma oração em que essa divindade fala diretamente com
Sinésio, encorajando-o a ir em frente para fazer entrar os “filhos do Sertão” no reino
prometido. Essa passagem explicita a crença do narrador em seu primo bem como a
maneira pela qual ela era transmitida às demais pessoas de Taperoá: pelo discurso
(pseudo)religioso de Quaderna.
No Folheto LXXV, Lino Pedra-Verde reitera essa crença ao encontrar-se com
Quaderna, que ficou cego logo após a realização de seu ritual litúrgico no tabuleiro,
na tarde da chegada de Sinésio e seu bando, e contar para ele as últimas notícias,
atribuindo a volta do rapaz às profecias do narrador no Almanaque:
– “[...] Sei é que, de repente, meus olhos começaram a esquentar, senti aquela dor desadorada, eles chocaram, estalaram, e eu ceguei!” – “Meu Jesus, minha Nossa Senhora! Então você ouviu essas coisas passando na estrada, foi? Era ele, não era?” – indagou Lino, em delírio, sem ligar muito para o que me acontecera e pensando, só, no Rapaz-do-Cavalo-Branco. – “Ele, quem?” – perguntei espantado, porque, com os olhos daquele jeito, a lembrança de Sinésio não me ocorrera, absolutamente, depois do aparecimento dos Gaviões. – “Era o nosso Prinspe, Dom Sinésio, O Alumioso, que voltou, Dinis!” – gritou Lino, como se tivesse sido atingido pelo raio. – “O que, Lino? Que é que você está dizendo?” – perguntei, incrédulo, e atribuindo sua exaltação a uma doideira causada pelo Vinho da Pedra do Reino. – “Bem que você nos dizia, meu Rei Dom Pedro Dinis Quaderna!” – continuou Lino, exaltando-se cada vez mais. – “Bem que você profetizou, para a era entre 35 e 38, o aparecimento do Rapaz-do-Cavalo-Branco, no Almanaque do Cariri! Venha, venha comigo! Vamos pra Taperoá, porque o Prinspe-do-Cavalo-Branco ressuscitou e vai começar a tribuzana, o boi-de-fogo da Guerra do Reino do Sertão!” [...] – “[...] Me disseram que tinha passado uma Cavalhada, toda luzida, com um Frade e uma bandeira na frente, e com um Rapaz no meio, montado num cavalo branco! Aí, Dinis, fui eu que fiquei feito doido! E não era para menos, porque isso era o que você e o Profeta Nazário tinham profetizado todo ano, desde 1930, no Almanaque do Cariri, desde que roubaram e mataram o filho mais moço do nosso Rei Degolado, Dom Pedro Sebastião! É o nosso Prinspe Alumioso do Cavalo Branco, que voltou ressuscitado, para fazer a desgraça dos ricos e a felicidade dos pobres aqui do Sertão! (SUASSUNA, 2012, pp. 584-587 – grifos do autor)
Essa declaração de Lino torna clara a responsabilidade do narrador quanto à
204
construção e disseminação, por todo o sertão, da crença messiânica que tem
Sinésio como figura central. O cantador, que crê veementemente nas profecias de
Quaderna apesar de não vê-lo como santo, finaliza sua fala deixando transparecer
qual papel seu mestre devia desempenhar agora que os acontecimentos
profetizados por ele começavam a se desenrolar:
– “Sabe duma coisa, Dinis? É bem possível que não tenha sido estoporamento! Vá ver que foi a Visão da Pantasmagoria do Prinspe que cegou você! Você, Dinis, apesar de Rei e Profeta, é homem safado e pecador! Talvez esteja com algum pecado cabeludo nessa sua consciência preta, e foi por isso que não teve o direito de avistar o nosso Prinspe Alumioso da Bandeira do Divino! Você mesmo escreveu na sua Profecia deste ano que o nosso rapaz santo teria que voltar como Criatura pura e limpa de toda mancha! Ora, é claro, claríssimo, que uma Criatura assim não pode ser avistada por um sacana como você! Mas, por outro lado, pecador ou não pecador, de consciência limpa ou podre, está escrito que o Reino só vai para o Prinspe pela mão daquele que é o Rei e o Profeta da Pedra do Reino! É por isso que, se você não foi capaz de ver o Prinspe, pode, pelo menos, ver o Cosmorama dele! E basta! Tendo visto isso, sua obrigação, Dinis, é reunir o Povo lá em Taperoá, contando para todos como vai começar a Guerra do Reino do Sertão do Brasil! Vamos embora, Dom Pedro Dinis Quaderna! Vamos que o Sol está se chegando para o poente, e eu quero chegar na Vila com ele ainda de fora, com luz que dê para eu ver a cara alumiada do nosso Prinspe!” (SUASSUNA, 2012, pp. 589-590)
Nesse trecho, vemos que Lino crê em Quaderna, considerando-o, de fato,
como rei e profeta, e, portanto, acreditando no que ele havia escrito a respeito da
volta de Sinésio e da guerra que ele iria empreender a fim de transformar a realidade
social do sertão. Ele representa o povo e, devido a seu ofício de cantador, ajuda a
propagar essas ideias para mais pessoas.
Analisaremos três menções e aparições de Sinésio no quarto capítulo da
minissérie: de 00:06:53 a 00:07:38, de 00:30:38 a 00:32:49 e de 00:39:55 a
00:42:25.
Dos 00:06:53 aos 00:07:38, Quaderna encontra-se na cadeia prestando
depoimento ao Juiz-Corregedor. Este acaba de descobrir que o narrador é
descendente de João Ferreira, da Pedra Bonita, e o acusa de unir os sertanejos
contra as autoridades quando do reaparecimento de Sinésio na Vila com o intuito de
restaurar o império de sua família, o qual, naquele momento, teria o próprio
Quaderna como imperador. O narrador então confessa que queria mesmo ser
imperador do sertão e do Brasil para poder se tornar o Gênio da Raça Brasileira,
205
mas que também tinha a intenção de juntar o movimento da Pedra do Reino com a
Guerra de Princesa e com a “demanda novelosa de Sinésio”, segundo ele, porque
“isso é uma saga literária da mulesta”. O Juiz, então, visivelmente alterado, pede
para que a escrevente Dona Margarida anote a confissão de Quaderna e esse é o
primeiro momento em que sabemos sem ser por fazer conjecturas, mas sim por
ouvi-lo dizer, que ele deliberadamente engendrou a história de Sinésio na da Guerra
de Princesa e na da Pedra Bonita com o objetivo de conquistar apoio para subir ao
trono do Brasil.
Dos 00:30:38 aos 00:32:49, vemos Quaderna realizando o ritual litúrgico de seu
catolicismo sertanejo no alto de um lajedo. Ele se encontra caracterizado como rei e
como autoridade religiosa, ambas posições que ocupa nessa religião inventada por
ele: usa uma coroa e um manto, e segura um cetro na mão esquerda e um báculo
na mão direita.
Figura 74: Quaderna em ritual do catolicismo sertanejo aos 00:31:06 do quarto capítulo.
Ele profere palavras semelhantes às que a personagem do Romance diz entre
as páginas 553 e 557, e o que mais se destaca nessa sequência é que ele se
encontra em estado de consciência alterado devido ao seu vinho da Pedra do Reino,
que tem propriedades alucinógenas e que, diz-se, foi utilizado por seu bisavô na
Pedra Bonita a fim de tornar as pessoas mais propensas a acreditar no que ele dizia
e sacrificar-se em prol da volta de Dom Sebastião.
Na passagem do Romance, também podemos inferir que Quaderna esteja sob
206
efeito de seu vinho porque ele afirma tê-lo bebido durante a execução de seu ritual.
Aqui, porém, podemos ver em seus olhos e em seu comportamento exaltado o efeito
do alucinógeno: seus olhos ficam esbugalhados e seu olhar fixo, sua voz torna-se
mais alta e sua fala com ritmo mais acelerado, e seus movimentos corporais tornam-
se mais intensos.
Figura 75: Quaderna sob efeito do vinho da Pedra do Reino aos 00:32:11 do quarto capítulo.
Dos 00:39:55 aos 00:42:25, Lino encontra Quaderna de joelhos na beira da
estrada do lajedo e estranha o fato até saber por que o narrador está ali. Ao tomar
conhecimento da forma como se deu a cegueira de seu mestre, Lino se exalta e
levanta as mãos ao céu dirigindo-se a Jesus Cristo e à Nossa Senhora, pois, como a
cegueira ocorreu exatamente no momento em que Quaderna escutava esturros de
onça, batidas de casco de cavalos, chiados de roda de carreta e piados de gaviões –
todos presentes na cavalgada de Sinésio segundo Lino provavelmente ouvira falar –,
ele crê que a profecia feita pelo narrador de que naquele ano o rapaz voltaria para
dar início à Guerra do Reino está acontecendo.
207
Figura 76: Lino Pedra-Verde agradece pela volta de Sinésio aos 00:41:09 do quarto capítulo.
Lino tem a mesma reação que a da personagem do Romance, porém seu
discurso para Quaderna é mais curto. Ele não descreve a cavalgada e não menciona
em que veículo de comunicação o mestre havia profetizado, junto com Nazário, a
volta de Sinésio (o Almanaque do Cariri) desde 1930. Além disso, ele não diz que o
reino só será de Sinésio pela intervenção do “Rei e Profeta”, que é como considera
Quaderna, nem o exorta a ir à Vila para falar com o povo e orientá-lo sobre a guerra.
Ele apenas diz que quer chegar à Taperoá ainda com a luz do sol para ver melhor o
rosto do “Prinspo” e que Quaderna acertou ao profetizar a volta dele.
Essas omissões feitas na minissérie em relação ao Romance tornam a cena
mais curta e ágil, e fazem com que Lino pareça menos fanático pela ideia da guerra
e mais curioso em verificar se o rapaz é Sinésio mesmo e o que vai ocorrer em caso
afirmativo. Seu fanatismo, contudo, será mostrado adiante, no quinto e último
capítulo da minissérie.
3.2.5 Milagres do Prinspo e mobilização do povo
No quinto Livro do Romance bem como no quinto capítulo da minissérie, as
menções e aparições de Sinésio são também bastante numerosas. As que
consideramos como mais importantes para analisar, todavia, são apenas aquelas
que dizem respeito ao comportamento da população no dia da chegada do rapaz e
de seu bando à Vila, no sábado, 1º de junho de 1935, véspera de Pentecostes.
208
No Folheto LXXXI, a população humilde está reunida na praça após a
chegada de Sinésio à Vila e um homem que estava no meio da multidão pergunta a
Quaderna a respeito do rapaz:
– “Seu Quaderna, é verdade que esse Rapaz-do-Cavalo-Branco veio para começar a Guerra do Reino? Ele é, mesmo, Dom Sinésio Sebastião, O Alumioso que apareceu de novo pra fazer a felicidade de nós?” – “Não sei!” – respondi com a voz soturna que a cegueira agora me emprestava. – “Como é que eu posso saber isso, se estou cego? [...] De repente, passou pela estrada a tropa de Cavaleiros e carretas que vinha com o Rapaz-do-Cavalo-Branco: na mesma hora, dois Gaviões desceram do Sol e me cegaram! Estou cego, cego de guia!” – “Valha-me Deus! Ave Maria! Nossa Senhora!” – gritou a mesma voz que tinha falado antes. – “Já vi que o Rapaz-do-Cavalo-Branco é Ele mesmo! Vocês estão vendo o que eu dizia? É verdade ou não é? Cadê aquele cego que estava aqui, ainda agora? – “Estão dizendo, por aí, que ele foi curado da cegueira, por milagre!” – explicou outra voz. – “Depois que atiraram no Rapaz-do-Cavalo-Branco, dizem que o cego chegou pra perto do Prinspe, tocou na roupa dele e ficou bom da vista!” – “Pois ele ficou bom na mesma hora em que eu ceguei!” – disse eu, assombrado. – “[...] Na certa, tem sempre a mesma conta de cegos, no mundo: como o daqui foi curado por ter tocado na roupa do Prinspe, Seu Quaderna ficou cego no lugar dele!” – “[...] De repente, Lino Pedra-Verde, enervado pela erva-moura e pelo vinho sagrado da Pedra do Reino, gritou para o Povo: – “Minha gente, vamos cantar o nosso sagrado Hino da Santa Pedra do Reino!”. [...] – Anote a senhora aí, Dona Margarida, que o nosso Dom Pedro Dinis Quaderna confessa que, naquele ano de 1935, os seus adeptos já eram inumeráveis, e que, no dia da chegada do Rapaz-do-Cavalo-Branco, todo o Povo cantava o tal Hino da Pedra do Reino! (SUASSUNA, 2012, pp. 692-694)
Quaderna é tido pelo povo humilde como profeta e sábio, daí o motivo para o
homem se dirigir a ele a fim de sanar suas dúvidas com relação aos acontecimentos
e tratá-lo como “Seu Quaderna”. Ao saber que o narrador ficou cego devido a dois
gaviões que o atacaram no mesmo momento em que a cavalgada chegava à Vila, o
homem fica impressionado e adquire a certeza de que o rapaz é mesmo Sinésio.
Ele, então, afirma sua crença ao povo, que, também acreditando, atribui ao rapaz o
mesmo milagre conhecido pelos cristãos como tendo sido um dos realizados por
Jesus: a cura de um cego.
Nesse trecho, percebe-se a que ponto chegou a exacerbação do povo frente
ao reaparecimento de Sinésio e compreende-se a importância que Quaderna teve
209
em engendrar essas ideias em suas mentes durante cinco anos para que, nesse
momento, elas se caracterizassem como mais que uma crença no rapaz: como uma
verdadeira fé em seus poderes de cura tanto no que diz respeito ao indivíduo cego
que readquiriu a visão, quanto no que diz respeito à situação precária de toda a
população pobre do sertão.
A seguir, no Folheto LXXXII, Lino Pedra-Verde confirma essa participação de
Quaderna para a conversão de Sinésio em figura sagrada ao explicar a Samuel qual
é a importância do rapaz em sua concepção aprendida no Almanaque do Cariri,
onde o narrador mantinha uma coluna:
– “Nosso Prinspe apareceu na Serra do Rodeador, no tempo do ronca, no tempo de Dom João Pamparra e de Dom Pedro Cipó-Pau. Estava escondido na Casa da Pedra de onde a Santa falava, no soterranho! O nome do nosso Prinspe varia, ora é Dom Sebastião, ora é São Sebastião, conforme a necessidade! Ali, na Serra do Rodeador, mataram o nosso Prinspe e mataram também o Profeta dele, Silvestre José dos Santos, o homem dos santos, também chamado de Mestre Quiou, O Enviado. Era o Profeta montado em seu alazão, e o Prinspe no cavalo branco! Mas o Prinspe ressuscitou, e apareceu de novo, na Pedra do Reino do Pajeú, sustentado pelos quatro Reis, os bisavós, aqui, do nosso Rei e Profeta, Dom Pedro Dinis Quaderna. [...] – “[...] Por exemplo: eu sei, de fonte segura, que, na Pedra do Reino, mataram de novo o nosso Prinspe, que estava no Sacrário, trancado, escondido e encoberto pelo encantamento! O folheto que o nosso Quaderna, aqui, publicou sobre o assunto explica tudo [...]. Aí, o nosso Prinspe morreu de novo. Mas ressuscitou outra vez, agora no Império do Belo-Monte de Canudos, em 1897, já no tempo do reinado do nosso Dom Pedro III, mais conhecido como Pedro Justino Quaderna, pai aqui do nosso Dom Pedro IV! [...] é sempre assim que as coisas se passam: é um Rei castanho, no seu alazão, servindo de Profeta e sustança para o Prinspe-do-Cavalo-Branco! [...] Toda aquela guerra, foi porque o Governo de turcos tem medo e raiva do nosso Prinspe, do Príncipe do Povo! Sim, porque ele estava lá, como sempre, trancado no Sacrário. O pessoal de fora, cego, só via Aquele-que-aparecia, o Descoberto, o nosso Santo Antônio Peregrino, Antônio Conselheiro. [...] O certo é que, ganha aqui, fode-se ali, terminaram matando de novo o nosso Prinspe! Mas aí chegava o nosso tempo e a vez desse Cariri velho do inferno das pedras! E apareceu o nosso velho Rei, Dom Pedro Sebastião, e lá ele mandava chamar para morar com ele o nosso Dom Pedro III! E lá Dom Pedro Justino se casava com Dona Maria Sulpícia, e lá nascia o nosso Dinis, o nosso Dom Pedro IV! E era tudo esperando o nascimento do Prinspe, porque, como Dom Pedro III tinha explicado no Almanaque do Cariri, Dom Pedro Sebastião Garcia-Barretto era o mesmo Dom Sebastião da Pedra do Reino, era o mesmo que matou o Porco para libertar a Onça, na África! [...] Aí, Dom Pedro Sebastião casou com Joana, filha de Dom Pedro III, porque era preciso que o
210
Prinspe tivesse o sangue do pessoal Quaderna, da Pedra do Reino! Tudo isso foi sendo explicado aos poucos, no Almanaque! E aí, em 1910, nascia o nosso Prinspe, vindo do Sol, montado num cavalo de asas e trazido pelo cometa! Era, afinal, o nosso Dom Sinésio Sebastião, filho de São Sebastião, o Santo-do-Cavalo-Branco. E lá começou, de novo, a tribuzana da Guerra do Reino! (SUASSUNA, 2012, pp. 696-699)
Segundo Lino – e, portanto, segundo o narrador – Sinésio seria Dom Sebastião
ressuscitado diversas vezes. Assim, vê-se que o cantador acredita num poder
sobrenatural de Sinésio para realizar uma revolução social porque crê no mito de
Dom Sebastião como uma verdade, da qual tomou conhecimento por meio de
Quaderna. Este, por sua vez, conheceu o mito por meio de seu mestre Samuel, e
adequou-o para que fosse aceito em meio à realidade sertaneja de sua época e o
levasse a sobressair-se com relação ao restante do povo.
A seguir, no Folheto LXXXIII, o Doutor Pedro Gouveia fala sobre Sinésio da
mesma maneira como Lino e Quaderna, e seu modo de falar faz com que este
perceba sua astúcia e confesse ao Juiz que, antes da chegada do Doutor, ele era o
único na Vila que tinha grande poder de persuasão sobre o povo:
– “Meu Povo, meus filhos! Vão embora, por favor! O nosso Sinésio está cansado e não pode mais aparecer a vocês hoje, de jeito nenhum! Fiquem descansados em suas casas, porque a nossa causa será vitoriosa! Ainda existem juízes em nossa terra, e confiamos em Deus e no nosso Direito. Mas não causem confusões com as autoridades não, porque isso pode, inclusive, nos prejudicar! Digo isso em benefício do nosso Sinésio, do Rapaz-do-Cavalo-Branco, desse Esperado, tão querido, tão amado pelo Povo do Sertão do Cariri!” – [...] O que sei é que, quando ele falou nisso e disse que Sinésio era O Esperado, eu vi, mais uma vez, que aquele Doutor Pedro era um homem com quem eu iria aprender muita coisa, num campo em que, até aquele dia, eu tinha sido o único, aqui na Vila. (SUASSUNA, 2012, p. 714)
Essa passagem dá a entender que Quaderna sabe reconhecer no Doutor
Pedro uma estratégia de manipulação porque ele próprio era um manipulador e sua
revelação transmite o sentido de ambiguidade de toda a crença do narrador:
sabemos claramente que ele a articula de modo a fazer com que o povo acredite
que seu primo e ele próprio são de família real e os venerem como ele crê que
merecem, dando-lhes prestígio e até mesmo dinheiro. Além disso, ele incita o povo a
uma guerra que transformaria o Brasil novamente em um império e o colocaria no
trono exatamente no momento em que se arma a revolução comunista. Assim, fica a
211
dúvida se ele apenas concebeu a crença para benefício próprio, ou seja, para
explorar o povo – caso em que o Doutor Pedro, Frei Simão e Sinésio (seja ele o
verdadeiro ou um impostor) teriam se aproveitado dela para obterem, eles também,
benefícios – ou se ele e o bando de Sinésio tinham alguma relação com a Intentona
Comunista e elaboraram toda a profecia visando a conquistar adeptos para ela.
A seguir, Quaderna relata a conversa do Doutor Pedro Gouveia com um
popular e que corrobora a visão que ele tem do advogado de que é muito esperto e
teria muito a lhe ensinar sobre a arte da persuasão pela palavra:
– “Doutor Pedro, é verdade que o senhor encontrou o Rapaz-do-Cavalo-Branco, nuzinho, andando por uma estrada, sem se lembrar de ninguém, sem saber de onde tinha vindo e sem saber até mesmo como era o nome dele?” – “Por que você pergunta isso, meu filho?” – indagou o Doutor Pedro, que não batia prego sem estopa nem andava sem saber onde estava pisando. – “Pergunto, Doutor, porque a discussão sobre isso, aqui na rua, está a maior do mundo! Uns dizem que o rapaz foi encontrado nu, e, outros, que ele vinha vestido numa espécie de camisolão branco, tendo na mão esquerda duas flores – uma amarela e outra encarnada – e segurando, na mão direita, uma bandeira! Qual é a história verdadeira, Doutor?” – “Todas duas, meu filho!” – explicou solenemente o Doutor, e eu, mais uma vez, vi que tinha muito a aprender com aquele homem. – “As duas versões são verdadeiras, não criem divisões entre os nossos! Eu encontrei Sinésio perdido, extraviado, nu como Deus o criou, coitado, e trazendo, como você disse, numa mão as duas flores – a amarela e a vermelha – e na outra mão a bandeira do Divino! Sem uma roupa para dar a ele naquela hora, improvisamos, com um lençol, a túnica branca da qual vocês ouviram falar! Ele estava, além disso, um pouco perturbado pelos sofrimentos que passou. Mas, com todo cuidado, nós tratamos de reeducá-lo e de lembrar a ele os fatos mais importantes de sua vida, de modo que ele, hoje, já está quase inteiramente recuperado! Mas amanhã é que tudo isso será melhor esclarecido, para conhecimento de todos! Vão embora, saiam, vão para suas casas! Dispersem-se, que, amanhã, eu prometo que o nosso Sinésio falará com todos vocês e até os olhos dos cegos se esclarecerão!” – concluiu ele. (SUASSUNA, 2012, p. 722)
O Doutor Pedro procura aliar as duas versões existentes sobre seu encontro
com Sinésio a fim de evitar que haja discórdias entre as pessoas que ele deseja que
fiquem a seu lado e Quaderna vê nisso uma estratégia de manipulação inteligente
com a qual diz que poderá aprender. Nota-se, ainda nessa passagem, a
identificação de Sinésio com Jesus Cristo feita pelo povo quando se diz que ele foi
encontrado vestindo um “camisolão branco”, e corroborada pelo Doutor, quando diz
212
que o “camisolão” seria, na verdade, um lençol branco improvisado como túnica para
cobrir o rapaz, que vinha nu na estrada, e quando afirma que Sinésio falará com o
povo no dia seguinte e, então, “até os olhos dos cegos se esclarecerão”.
Em seguida, no Folheto LXXXIV, é o Frade que também dá mostras de
perspicácia quando Lino Pedra-Verde lhe pergunta se ele esteve presente na Serra
do Rodeador, como o povo está pensando que esteve:
– “O senhor é Frei Simão, o frade santo da Serra do Rodeador e da Pedra do Reino? O rapaz que veio com o senhor é o nosso Prinspe, o Santo-do-cavalo-branco, que vem comandar os Sertanejos para a nossa Guerra do Reino? É verdade que ele veio para vingar o Pai, provar que é o Filho e, ao mesmo tempo, trazer o fogo do Espírito Santo para acabar com as injustiças e os sofrimentos do mundo?” O Frade vendo que o momento era bom, pegou a bandeira vermelha do Divino e aprestou-se para descer do Palanque. Já na escada, falou, respondendo à pergunta de Lino: – “Vocês perguntam se o rapaz é o Príncipe... Quem sou eu para responder? Pode ser e pode não ser! Tudo se esclarecerá, e a Justiça é quem dará a palavra definitiva e final! Será que esse rapaz é Sinésio, filho do fazendeiro degolado aqui, em 1930? Pode ser e pode não ser, e vocês mesmos avaliarão, pelo que acontecer daqui por diante, se ele é ou não é o que vocês esperam. Uma coisa, porém, eu digo e garanto a vocês, meus filhos: é que o muito tem vergonha de dar pouco e, se a justiça humana falhar, a Justiça divina absolutamente não falhará!” – concluiu ele com ar majestoso e começando a descer os degraus. – “É Frei Simão, meu Povo, é Frei Simão! Só pode ser Frei Simão!” – gritou Lino Pedra-Verde com ar de doido, escumando pela boca e revirando os olhos. [...] – “Que é isso, meus filhos? Que doidice é essa? Guardem seus respeitos para Deus e para aquela criatura limpa e santa que veio conosco, montado em seu cavalo branco! Guardem seus respeitos para ele, porque eu, eu sou um pecador! (SUASSUNA, 2012, p. 726)
O Frade parece não querer responder à pergunta de Lino. Ele aparentemente
quer que a própria população julgue se Sinésio é quem eles pensam que é. No
entanto, ao dizer a frase “se a justiça humana falhar, a Justiça divina absolutamente
não falhará”, ele demonstra que acredita que o rapaz é Sinésio e que, se o povo não
acreditar nele, estará cometendo uma injustiça. Esse sentido é intensificado ainda
por sua frase final, em que diz para o povo guardar seus respeitos para Deus e para
Sinésio: “aquela criatura limpa e santa que veio conosco, montado em seu cavalo
branco! Guardem seus respeitos para ele, porque eu, eu sou um pecador!”. Dessa
forma, vemos em seu discurso uma estratégia bem elaborada para convencer a
população a enxergar o rapaz como uma figura sagrada e apoiar sua causa, e
213
grande semelhança com o discurso de Quaderna e do Doutor Pedro Gouveia.
Esses três líderes, então, alcançam seus objetivos ao conseguirem criar uma
divisão entre os partidários de Arésio, que permaneceram na Vila, e os de Sinésio,
que subiram o tabuleiro para se alistar no exército do rapaz:
Estavam já delimitados os dois campos, com os partidários de Arésio na rua, e os de Sinésio no alto Tabuleiro que dominava a Vila. Ia se travar a luta. Houvera a primeira fase, cuja crispação mais sangrenta fora o assassinato do velho e austero Rei, morto por degola. Surgia, agora, outra fase, a daquele enigmático Valete de Copas brotado do sangue dele e que abria a nova rodada do jogo. Encerrava-se a fase do Crime, ia começar a da Vingança implacável. (SUASSUNA, 2012, p. 732)
Há uma elipse na narrativa a partir do momento em que a população se junta
no tabuleiro para apoiar Sinésio em 1935 até o momento da narração de Quaderna,
em 1938. Sabe-se que algumas pessoas saíram em expedição pelo sertão, com um
circo, para buscar o tesouro escondido por Pedro Sebastião, sabe-se que Arésio
morreu, que Sinésio e Silvestre desapareceram novamente, e sabe-se que essa
história do rapaz mereceu o título de “desaventura”. O que de fato ocorreu entre o
momento em que o povo “se alistou” para lutar pelo rapaz e o momento da narração
é omitido por Quaderna. Isso provavelmente se deve ao fato de Ariano Suassuna ter
a intenção de continuar a narrativa em mais dois volumes, o que acabou não
fazendo.
No quinto capítulo da minissérie, Sinésio é mencionado e mostrado em
praticamente todas as sequências, entretanto, escolhemos apenas duas delas para
estudar a mobilização do povo ao redor do rapaz. A primeira delas vai de 00:01:11 a
00:03:13 e a segunda, de 00:22:50 a 00:28:47.
De 00:01:11 a 00:03:13, vemos o povo reunido e exaltado na rua e Lino
chegando ao centro da Vila acompanhado de Quaderna, que está cego e ainda
vestido com o manto e a coroa usada no ritual litúrgico do catolicismo sertanejo. O
cantador exclama “Eita, que o mundo virou nos eixos e o mando mudou de mão!” e
se refere a Quaderna como “meu rei” enquanto cantadeiras entoam cantos sagrados
e ele conduz o narrador até sua casa, onde se encontram com Samuel e Clemente.
Clemente está eufórico e diz: “Ao que parece, começou a revolução que vai
estabelecer a República Popular do Brasil, a primeira da América Latina. O povo é
imprevisível!”. Enquanto isso, Samuel está visivelmente amedrontado e responde:
“Mas aí eu poderei ser sumariamente fuzilado pela canalha, pelo populacho”.
214
Quaderna então intercede: “Vocês deviam era atentar para a revelação mais
importante desta noite. [...] O principal problema da disputa entre Arésio e Sinésio,
irmão contra irmão, é o tesouro que o pai deles deixou. O tesouro! E eu tenho uma
proposta a fazer”. A proposta que ele fará é de os três montarem um circo e
seguirem o bando de Sinésio em busca do tesouro. O circo financiaria as buscas.
Vemos aqui que o povo está bastante eufórico acreditando que o que está se
passando é uma revolução que transformará as relações de poder existentes na
sociedade. Lino expressa isso ao dizer que “o mundo virou nos eixos e o mando
mudou de mão”, enquanto Clemente comemora o fato de que “começou a revolução
que vai estabelecer a República Popular do Brasil, a primeira da América Latina”,
referindo-se à revolução comunista. Samuel está amedrontado com a possibilidade
de essa revolução estar começando por sempre ter se posicionado contra ela, e
Quaderna está mais focado na questão familiar que se desenrolará – a briga entre
seus primos Arésio e Sinésio pela herança de Pedro Sebastião.
De 00:22:50 a 00:28:47, vemos Lino entoando o hino da Pedra do Reino e
liderando um grupo de pessoas que estão na praça e acompanham a letra, e
Quaderna chegando, já sem as vestes litúrgicas, acompanhado de Samuel e
Clemente.
Samuel diz a Lino para parar de incitar o povo, que já está ficando exaltado
com os “hinos malucos” do cantador e tem uma discussão com ele quando o ouve
dizer que o motivo da exaltação é a volta de Dom Sebastião, o qual, para ele, é
Sinésio.
Quaderna interrompe e diz que Samuel e Clemente são “mais incrédulos que
São Tomé”, mas que ele próprio, mesmo estando cego, acredita que o rapaz é
Sinésio e se dispõe a escrever a epopeia dele. Lino, então, serve o vinho da Pedra
do Reino para Quaderna para que ele volte a enxergar, sob a alegação de que ele
mesmo sempre diz que a receita é milagrosa.
Há então um corte para o Frade, que sobe no palanque das cavalhadas para
falar ao povo. Podemos ver muitas pessoas segurando velas, o que indica um
envolvimento religioso delas com o acontecimento que estão prestigiando, como se
fosse uma procissão. O Frade diz que aconteceu um milagre: quando ocorreu a
emboscada, ele foi alvo de vários disparos, mas não foi atingido por nenhum, pois
todos os projéteis acabavam apenas encostando no seu hábito e caindo dentro de
suas botas e dos bolsos de sua batina. Ele inicia um sermão afirmando que o maior
215
milagre do dia é o aparecimento do Rapaz-do-Cavalo-Branco e que o fogo de
Pentecostes está prestes a iluminar o sertão e queimar aqueles que forem
pecadores. Então, ele pergunta a multidão se ela está disposta a se alistar debaixo
da bandeira de Sinésio, que é a bandeira do Divino Espírito Santo, e o povo,
exaltado, grita em resposta “Estamos, Santo Pai, estamos!”.
Figura 77: Povo escuta Frei Simão falar sobre Sinésio aos 00:26:43 do quinto capítulo.
A seguir, ocorre um novo corte de volta para Quaderna e Lino, que beberam o
vinho da Pedra do Reino e estão tendo visões delirantes enquanto o povo os
observa curioso e exaltado. Eles veem: fogo, raios, onças, gaviões, cavalos, uma
corça, sangue, um cálice de ouro, ataúdes, mouros, freis e combates; visões que
dizem ser “antecessoras da Pedra do Reino”.
Percebemos, assim, que essa sequência traz mostras de que a população
estava tomada de um furor de cunho messiânico com o reaparecimento de Sinésio.
As pessoas traziam velas para a rua como se estivessem louvando algum santo ou
mesmo a Deus e estavam emocionadas, dispostas a lutar pelo rapaz que acabara
de chegar porque acreditavam que ele era uma criatura santa capaz de transformar
a vida de todos aqueles que estivessem a seu lado.
Nessa sequência, os responsáveis por exacerbar a fé das pessoas foram o
Frade, com sua pregação, Lino e Quaderna, com suas cantorias e visões de
elementos considerados sagrados para aqueles que conheciam as profecias feitas
pelo narrador. Os três contribuem para que a massa reunida no centro da Vila
216
experimente de forma coletiva os mesmos sentimentos que eles expressam de
respeito e adoração por Sinésio como por uma divindade e de fé em que ele seja
capaz de melhorar suas vidas.
Lino Pedra-Verde pode ser visto como ingênuo, sendo apenas um crente que,
por ser cantador, tem voz e, por isso, influência sobre os outros. Quaderna e o
Frade, contudo, devem ser analisados como personagens ambíguas, que podem
realmente crer que Sinésio seja Dom Sebastião ressuscitado para instaurar o
“Quinto Império de Jesus Cristo na Terra” ou podem ser agentes da revolução
comunista que apenas se utilizam do mito do rei português para conseguir adeptos.
O Frade mesmo prova para nós telespectadores sua intenção de impressionar as
pessoas quando mente: ele diz para o povo que as balas dirigidas a ele paravam
quando o tocavam e caíam dentro de suas botas quando, na verdade, a câmera nos
mostrou que ele não foi alvo de nenhum tiro, mas que saiu recolhendo os projéteis
do chão após o término do tiroteio justamente para, mais tarde, usá-los em seu
sermão.
Dessa forma, não só Quaderna, o Frade e o Doutor Pedro Gouveia nos são
mostrados com ambiguidade, como também – e principalmente – Sinésio, que é a
figura central dos discursos desses três líderes que o acompanham e cuja imagem é
construída mais pelo que os três dizem e fazem do que por suas próprias palavras e
ações.
Contudo, a finalidade da luta que pretendem empreender juntos e a favor de
Sinésio não fica clara, provavelmente porque Ariano Suassuna deixaria para
esclarecê-la no segundo ou no terceiro volume que pretendia escrever para
completar a obra, concebida como uma trilogia, mas que depois não quis continuar.
Porém, existe a possibilidade de que, mesmo concluindo a trilogia, Suassuna não
tivesse dado respostas a essas questões. Seu grande propósito com a escrita do
Romance, e que teria sido mantido por Carvalho na adaptação, pode ter sido
representar os vários discursos vigentes na sociedade não só da época da diegese,
mas também da época da criação do Romance, por meio da inserção do
plurilinguismo na narrativa, articulando “verdade” e “mentira”, “verdade” e
“manipulação”, dentro dos posicionamentos das personagens e, principalmente, do
narrador.
Dessa forma, a princípio, a finalidade da luta de Sinésio parece ser apenas o
encontro da fortuna escondida pelo pai do rapaz, pois ele tinha direito a reivindicar
217
parte dos bens de Pedro Sebastião para poder retomar sua vida. No entanto, para
ele ir atrás dos bens supostamente enterrados por seu pai, não precisaria invocar
todo um exército. Menos ainda, criar em torno de si histórias fantásticas que dão
conta de que ele havia ressuscitado e sido capaz de curar um homem cego e que o
assemelham a um messias. Assim, se todas essas estratégias foram utilizadas, é
porque a finalidade da luta era maior: seria o desenvolvimento de um novo
movimento messiânico semelhante ao que João Ferreira criara na Pedra do Reino,
caso em que Quaderna se tornaria imperador do Brasil, ou a realização da revolução
comunista, comandada por Luís Carlos Prestes. De qualquer maneira, sabemos que
os objetivos não foram alcançados devido ao Golpe de 1937, que reprimiu qualquer
tipo de revolta ou revolução transformando a luta em uma “desaventura” e levando o
narrador à cadeia, o qual, no entanto, apesar de estar preso no ano de 1938, não
perdeu a esperança de que Sinésio pudesse estar dando continuidade à Guerra e
conta sua história para tornar-se o Gênio da Raça Brasileira já que, até o momento,
não pode tornar-se rei. Com isso, percebemos que todos os relatos que temos no
Romance consistem em representações discursivas dos anseios de diferentes
camadas da sociedade, e não em uma “verdade” ou em uma “mentira” narrada por
Quaderna.
A minissérie constrói, à sua maneira, os mesmos sentidos do Romance. O
autor desta optou por concluir alguns aspectos deixados em aberto por Suassuna e
também contou muitos dos episódios de modo mais conciso bem como omitiu várias
citações de escritores e de obras literárias, históricas, sociológicas etc., a fim de
tornar possível a reconstrução da narrativa do Romance em um formato tão curto
quanto uma microssérie, e também porque não seria necessário manter todas essas
citações, uma vez que com a inserção de apenas algumas delas seria possível
recriar os sentidos visados.
Com isso, atingiu o objetivo da equipe ao produzir a minissérie: homenagear
Ariano Suassuna por seus oitenta anos, completados em 16 de junho de 2007.
Entretanto, podemos dizer que reverenciou a obra suassuniana não por tê-la
adaptado de modo a reconstruir muitos dos sentidos de forma consensual – ou seja,
por ter sido “fiel” –, mas por ter produzido a minissérie com cuidado: não
subestimando o telespectador ao simplificar a linguagem, empregando toda a mão
de obra da região onde se passa a narrativa e saindo do padrão óbvio empregado
na maioria das produções televisivas ao recorrer a fontes ricas com as quais
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dialogar para construir desde as cores e formas dos cenários, do figurino e da
maquiagem, até as técnicas de preparação dos atores, de filmagem e de narração.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ariano Suassuna mostrou-se um observador sagaz quando, percebendo uma
mesma tendência apresentada por vários artistas nordestinos da cerâmica, pintura,
tapeçaria, gravura, teatro, escultura, romance, poesia e música, reuniu-os no ano de
1970 e fundou o Movimento Armorial, que consistia em criar, de maneira
sistematizada, uma arte erudita original a partir de elementos da cultura popular
nordestina, mesclando heranças culturais aprendidas com os povos indígenas e
negros com influências ibéricas.
Segundo Santos, a arte armorial resultou em trabalhos que se percebem como
cultos devido à multiplicidade de referências culturais que apresentam bem como à
reflexão teórica desenvolvida paralelamente à criação (2000, p. 98) e assim é o
Romance d’A Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta, considerado por
Suassuna como sua mais importante obra e na qual trabalhou durante treze anos.
No Romance, Pedro Dinis Ferreira Quaderna é o narrador que, através de um
depoimento que presta ao Juiz Corregedor que aparece em Taperoá no ano de 1938
para investigar vários levantes ocorridos entre 1930 e 1935, escreve sua epopeia, a
qual gira em torno da história pregressa de suas famílias materna – os Garcia-
Barretto – e paterna – os Ferreira-Quaderna – bem como de seu primo e sobrinho
Sinésio, também descendente dessas duas famílias.
Quaderna considera seus antepassados especiais: a família materna por ser
abastada e por haver sobre ela a versão apresentada, por seu mestre Samuel, de
que teria se iniciado no Brasil com a chegada aqui de Dom Sebastião de Portugal
após ter desaparecido na África, e a paterna por ter sido responsável pelo
desenvolvimento de crenças messiânicas envolvendo a figura do monarca
português, tendo seu bisavô, João Ferreira Quaderna, se autoproclamado rei em
Pedra Bonita e levado multidões a segui-lo. Talvez seja por isso que acredita que
Sinésio seja Dom Sebastião e que ele próprio seja o profeta que tornará possível a
realização da profecia sobre a qual se construiu o mito sebastianista: a de que o rei
desaparecido em Alcácer-Quibir voltaria para instaurar o Quinto e último Império de
Jesus Cristo na Terra, quando todas as injustiças do mundo seriam desfeitas e as
mazelas curadas, e quando Quaderna poderia ser o Imperador do Brasil, uma vez
que a república estaria desfeita.
No entanto, vemos que Quaderna demonstra claramente que a narrativa que
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está nos contando é fruto de sua articulação e intervém para explicitar suas opiniões,
as quais, às vezes, são contraditas por outras personagens e nos deixam na dúvida
a respeito do teor do que ele está dizendo – como na questão do motivo dele para
apoiar Sinésio –, pois nós sabemos menos que as personagens e que ele próprio.
Isso ocorre porque ele assume que seu saber tem limites, e até exagera esses
limites ao fingir não ter conhecimento de algumas coisas, as quais depois deixa
escapar – como no momento em que revela ao Juiz Corregedor, depois de ter dito
que não acreditava ser visto com superioridade pelo povo, que era ele mesmo quem
fazia questão de evidenciar sua descendência de João Ferreira Quaderna, “rei” da
Pedra Bonita, para as pessoas humildes a fim de se sobressair em relação a elas.
Todo esse sonho grandioso do narrador se passa em um período conturbado
da história do Brasil: as quatro primeiras décadas do século XX, época em que a
república era recente e houve diversos levantes contra a ordem vigente dos quais
sua família e ele próprio participaram, como a Guerra de Doze (1912), a Revolta de
Juazeiro (1914), a Coluna Prestes (1926) e a Guerra de Princesa (1930). Por isso,
Quaderna é considerado suspeito de envolvimento político com essas revoltas pelo
Juiz Corregedor que chega à Taperoá após o Golpe de 1937 ter sido dado por
Getúlio Vargas e, portanto, após a repressão ter aumentado. Também é considerado
suspeito porque, entre 1930 e 1935, transmitia para o povo humilde do sertão suas
ideias acerca de seu direito ao trono do Brasil e de Sinésio ser um donzel que
estaria prestes a voltar para transformar a vida de todos – fazendo a alegria dos
pobres e a desgraça dos ricos – e, com isso, quando a chegada do primo e sobrinho
realmente ocorre, é visto, assim como ele, como um possível aliado de Luís Carlos
Prestes que quer implantar o comunismo no Brasil.
Suassuna constrói essa história através de Quaderna utilizando-se de
elementos presentes na cultura popular brasileira – mais especificamente nordestina
–, como a literatura de cordel, na concepção da forma e do conteúdo do Romance.
Desde o título da obra e o desenho da capa, às gravuras e divisões internas, vê-se
uma construção inspirada na forma dos folhetos de cordel: o título se inicia com a
palavra “romance”, que é um subgênero da literatura de cordel, a capa traz uma
gravura feita pelo próprio autor usando o método de xilogravura e as divisões
internas não são chamadas de capítulos ou subcapítulos, mas sim de Livros e
Folhetos. Desde a referência que a segunda parte do título “o príncipe do sangue do
vai-e-volta” faz ao folheto História do Príncipe do Barro Branco e a Princesa do
221
Reino do Vai Não Torna, de Severino Milanês, às menções a poetas e cantadores
reais nos quais Quaderna se inspira, como Leandro Gomes de Barros, João
Melchíades – que inclusive é ficcionalizado e aparece na narrativa como padrinho de
crisma do narrador –, e Lino Pedra Azul – também ficcionalizado, mas com o nome
de Lino Pedra-Verde, vê-se que o conteúdo do Romance envolve diretamente essa
literatura.
A minissérie reconstrói basicamente os mesmos sentidos do Romance, pois
respeita os preceitos do Movimento Armorial por ter sido concebida à luz do Projeto
Quadrante, que visa a produzir adaptações televisivas de obras literárias a partir da
região em que se passam as narrativas de origem, utilizando-se de mão de obra
local em todas as etapas e esferas da produção: desde a escolha do pessoal que
prestaria o serviço de catering até a escolha dos atores que interpretariam as
personagens principais.
Assim, a minissérie foi gravada em Taperoá e, similarmente ao Romance,
dialogou com a literatura de cordel quando manteve algumas das gravuras de
Suassuna nas bandeiras e no manto de Sinésio, e apresentou os cantadores João
Melchíades e Lino Pedra-Verde atuando em cena. No entanto, diferentemente do
Romance, que em seu principal paratexto – a capa – dialogava intensamente com o
cordel, em seu principal paratexto – a vinheta de abertura –, buscou dialogar de
forma discreta com o cordel, e de modo intenso com os elementos internos à
narrativa do Romance que foram mantidos na minissérie, tais como as
características das personagens, a presença da heráldica, o ponto de vista da
narração e a circularidade narrativa, antecipando-os ao telespectador.
Com relação ao processo de adaptação propriamente dito, o diretor Luiz
Fernando Carvalho utilizou expressivamente apenas quatro dos procedimentos
transformacionais apresentados por Genette para transpor a narrativa do Romance
para o formato audiovisual: três que são essenciais para possibilitar qualquer
adaptação fílmica ou televisiva – a excisão, a concisão e a transmodalização
intramodal, e um que foi necessário para possibilitar essa adaptação em particular, a
extensão temática. Ele retirou algumas cenas cujos sentidos não eram
particularmente importantes ou que poderiam ser transmitidos por outras passagens,
contou muitos dos episódios de maneira mais concisa, isto é, em que o tempo em
que ocorreram foi encurtado, assim como omitiu várias das citações que Quaderna
faz a escritores e a obras literárias, históricas, sociológicas etc. que tornariam a
222
narrativa televisiva muito morosa e optou por incluir um desfecho a alguns pontos
deixados em aberto por Suassuna devido ao fato de que já sabia, de antemão, que
sua adaptação não teria continuação – diferentemente do escritor, que previa mais
duas partes para complementar a narrativa do livro, mas que, posteriormente,
desistiu da ideia.
Em Conjunções, Disjunções, Transmutações: da Literatura ao Cinema e à TV
(2005, p. 39), Anna Maria Balogh afirma que, segundo Roman Jakobson e os
formalistas russos de modo geral, pode ser considerada artística toda obra que
manifesta na sua constituição a preponderância hierárquica da função poética da
linguagem e que causa o efeito de estranhamento no enunciatário, processo que
exige um enunciador com conhecimento suficiente acerca da série cultural na qual
atua e sobre as que lhe são correlatas para poder inovar, fazer rupturas e apresentar
desvios, bem como um enunciatário com uma competência similar para poder
classificá-los como tais. Para a autora, são considerados objetos artísticos as obras
literárias e fílmicas em geral, excluídos a literatura de massa, na qual se incluem os
best-sellers, e o cinema dito comercial.
Quanto à televisão, a autora aponta alguns elementos que tornam problemática
a sua inclusão na categoria “arte”: a baixa definição de sua imagem (algo que está
mudando com a chegada da HDTV – TV de alta definição); a recepção de sua
produção, que se dá no ambiente doméstico, com luz e grandes possibilidades de
dispersão da atenção; a serialidade de sua programação, que se caracteriza como
uma “estética da repetição”; e sua comercialidade explícita, que possibilita ao
espectador apenas a opção de apreciar os programas televisivos de modo
fragmentado (BALOGH, 2005, p. 46).
Para pagar as inúmeras horas no ar, passou-se a veicular a mensagem de
modo fragmentado – em que ocorre um número de interrupções no fluxo de cada
programa para dar lugar aos intervalos comerciais – e para alimentar a voracidade
da televisão, criou-se uma forma industrial de produção: a serialidade, que se tornou
característica da TV, e que a torna mais próxima da produção em série da indústria
do que obras artísticas em geral, conforme observou Omar Clabrese em seu artigo
“Los Replicantes” (Análisi, 1984, pp. 71-90): “há uma oposição entre a serialidade e
os conceitos de artisticidade consagrados, baseados no caráter único, singular e
irrepetível da obra de arte” (apud BALOGH, 2005, p. 144).
Entretanto, o crítico é de opinião que tais conceitos devam ser revistos
223
precisamente à luz do poderoso alcance da televisão, que, no Brasil, segundo Hélio
Guimarães, possui uma capacidade única de mobilização nacional, de agrupamento
em torno da ficção televisual de grupos e segmentos da população que não
compartilham repertório ficcional algum a não ser aquele oferecido pela TV
(PELLEGRINI et al, 2003, p. 104), mas que sofre o preconceito de uma visão
mistificada e mistificadora, sendo pensada como algo homogêneo, de qualidade
inequivocamente mais baixa do que qualquer livro, o que nem sempre corresponde
à verdade, já que há livros e programas de todos os padrões de qualidade
(PELLEGRINI et al, 2003, pp. 95-96).
Acreditamos que, ao se assistir à minissérie A Pedra d’O Reino, tenhamos que
repensar esse preconceito contra os produtos televisivos, uma vez que o trabalho de
Luiz Fernando Carvalho, por ser fruto do Projeto Quadrante, que visa a deslocar a
produção do eixo Rio-São Paulo de modo a aproximar as obras dos locais onde se
passam as narrativas, mostrou-se inovador na maneira de contar a história: não a
contou de forma naturalista, em que a narrativa tenta ser uma mimese da vida real,
mas evidenciou seu status de construto ficcional ao utilizar painéis para representar
as pedras onde o bisavô de Quaderna dizia que Dom Sebastião apareceria se o
povo se sacrificasse, ao apresentar em várias cenas, no lugar de animais reais,
bonecos feitos por artesãos do nordeste e ao manter um narrador que se intromete
na história que está contando em vez de criar a narrativa de modo a gerar o efeito de
sentido de que ela transcorre “como se fosse observada de uma janela
transparente”, na expressão de Ismail Xavier (2003, p. 69).
Diferenciou-se, ainda, da maioria das produções televisivas por dialogar com o
teatro no que diz respeito à preparação de atores e à incorporação de elementos da
commedia dell’arte, como as personagens Arlecchino (Quaderna), Colombina (Dona
Margarida), Brighella (Clemente) e Dottore (Samuel), e com a pintura de Giotto para
a composição das cores “terrosas”, as quais, para Carvalho, eram as ideais para
retratar o sertão suassuniano.
Com isso, o trabalho de Luiz Fernando Carvalho conseguiu um grande êxito,
tendo sido muito aclamado pela crítica, mas não obteve sucesso de público. Então,
nos resta o questionamento: o que justifica a baixa audiência de um programa
produzido com tanto cuidado? Terá sido a ambiguidade de seu herói, que já no
primeiro capítulo é tido como um cavaleiro salvador do povo sertanejo, mas tem um
lado obscuro que não é desvendado pelo narrador? Ou o seu amor por Heliana
224
Swendson, que é mostrado somente através dos olhares que ambos trocam, porém
não é concretizado de imediato, mas só no final do quinto capítulo, quando ele vai
ao encontro dela, beija-lhe a mão e a leva embora de Taperoá em seu cavalo
branco? Ou terá sido a falta de esclarecimento, logo nos primeiros minutos da
minissérie, quanto a Sinésio ser mesmo Dom Sebastião ou, pelo contrário, ser um
impostor (o que nunca chega a ser revelado)? Enfim, a justificativa para a baixa
audiência seria o fato de o discurso não ter sido construído numa linguagem
convencional para o meio televisão – e mesmo para o gênero minissérie, apesar de
esse gênero já ser reconhecido pela inovação e não banalização da linguagem – e
ter dificultado a compreensão por parte do telespectador, que se desmotivou de
continuar acompanhando a história?
Provavelmente, a resposta para todas essas perguntas seja sim, embora não
se possa afirmar, mas atribuir somente à complexidade da linguagem a culpa pela
não conquista de público pode ser perigoso caso a emissora de TV em questão opte
por podar a criação a fim de evitar novos “fracassos”, pois, como afirma Pierre
Bordieu, “há, hoje, uma ‘mentalidade-índice-de-audiência’ nas salas de redação, nas
editoras etc. Por toda parte, pensa-se em termos de sucesso comercial” (1997, p.
37). Para o autor, isso significa que “cada vez mais o mercado é reconhecido como
instância legítima de legitimação”, o que pode ser preocupante, pois pode colocar
em questão as condições mesmas da produção de obras que podem parecer
esotéricas porque não vão ao encontro das expectativas do público geral, mas que,
com o tempo, seriam capazes de criar seu próprio público (BORDIEU, 1997, p. 38).
Isso pode estar por trás da não realização, até hoje, das outras duas
adaptações previstas quando do início do Projeto Quadrante: “Dois Irmãos”, de
Milton Hatoum (que apenas agora está “saindo da gaveta”, prevista para ir ao ar no
segundo semestre de 2015, e que traz alguns atores da região sudeste e
conhecidos do grande público para interpretar as personagens principais, como
Cauã Reymond, Juliana Paes e Eliane Giardini) e “Dançar Tango em Porto Alegre”,
de Érico Veríssimo? Esperamos que não, mas acreditamos ser possível que sim,
pois Luiz Fernando produziu A Pedra d’o Reino em 2007 e já no ano seguinte Capitu
(cuja materialidade da linguagem é tão ousada quanto à de sua antecessora no que
diz respeito aos diálogos com outros gêneros discursivos, mas que, diferentemente
dela, tem sua narrativa contada de forma linear), o que nos faria esperar que as
duas últimas produções do Projeto Quadrante não fossem levar tanto tempo para
225
serem apresentadas.
No entanto, cremos que sejam necessárias mais pesquisas para tentar
descobrir se o que diferenciou Hoje é Dia de Maria – primeira e segunda jornadas –,
por exemplo, de A Pedra d’O Reino, em termos de sucesso de público, teria sido o
fato de que aquela apresentava inúmeras inovações, mas não tantas quanto esta, e
qual (ou quais) das inovações afastou o telespectador, ou se outros fatores externos
ao texto podem ter influenciado o resultado, tais como estratégia de divulgação
utilizada para cada uma, o elenco empregado, o horário e a época do ano em que
foram transmitidas, os demais programas de outras emissoras com os quais
disputavam a audiência e os programas da própria Rede Globo após os quais se
iniciavam a aos quais antecediam. Assim, consideramos interessante que se faça
um estudo comparativo entre esta e outra(s) minissérie(s) inovadora(s) e que se
estude, além da questão da adaptação, como fizemos aqui, questões referentes à
estética da recepção desse gênero do discurso, analisando a história do gênero em
si bem como sua história dentro da televisão brasileira.
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http://nilsonxavier.blogosfera.uol.com.br/2012/03/06/canal-viva-reprisa-a-minisserie-
os-maias/. Acesso em: 20 jan. 2015.
235
ANEXO I – ÁRVORE GENEALÓGICA DE QUADERNA
236
ANEXO II - TRILHAS SONORAS DA MINISSÉRIE7
TRILHA SONORA 1
Disco 1:
1-) Quaderna;
2-) Canto Gregoriano;
3-) Ser-Tão;
4-) Taperoá;
5-) Maria Safira;
6-) Colibri;
7-) Circorama;
8-) Phantasmagoria;
9-) Transfigurada;
10-) Medieval;
11-) Onça Caetana;
12-) A Pedra do Reino;
13-) Viginal;
14-) Catitu com Cascavel;
15-) Silvestre
Disco 2:
1-) Revoada – Quinteto Armorial;
2-) Romance da Bela Infanta – Quinteto Armorial;
3-) Mourão – Quinteto Armorial;
4-) Ponteio Acutilado – Quinteto Armorial;
5-) Toré – Quinteto Armorial;
6-) Rasga – Quinteto Armorial;
7-) Toque dos Caboclinhos – Quinteto Armorial;
8-) Entremeio para uma Rabeca… – Quinteto Armonial;
9-) Lancinante – Quinteto Armorial;
10-) Xincuan – Quinteto Armorial;
7 Disponíveis em: http://www.teledramaturgia.com.br/tele/pedradoreinot.asp. Acesso em: 20 jan. 2015.
237
11-) Cantiga – Quinteto Armorial;
12-) Toque dos Encantados – Quinteto Armorial;
13-) Toque dos Degradados – Quarteto Romançal;
14-) Toque dos Orixás – Quarteto Romançal
TRILHA SONORA 2
1-) Alvorada – Os Inácios
2-) Perguntinha Cabulosa – Jessier Quirino
3-) Menina Bonita – Maria de Lurdes Augisto
4-) Matinas – Banda Cabaçal São Jão Batista
5-) Mineiro Pau – Grupo de Côco Ciranda da Caiana
6-) Côco Verde – Josildo Sá
7-) Toada do Cavalo – Luiz Paixão
8-) Assentei Praça – Renata Rosa
9-) Vento Corredor – Tiné e Caçapa
10-) Tema dum Brinquedo Chamado Viver – Sandra Belê
11-) As Obras da Natureza – Zé de Teté
12-) Machadeiro – João e Chinelo
13-) Guerreia, São Jorge – Alessandra Leão
14-) Terra de Reis – Siba
15-) 50 Anos de Cultura Popular – Mestre Salustiano
238
ANEXO III – EXTRAS DO DVD
1-) Nossa carroça:
Contém 47 fotografias dos ensaios preparatórios.
2-) Taperoá:
Vídeo com 48 minutos de duração contendo depoimentos de Ariano Suassuna, dos
autores e atores da minissérie e de outros participantes da produção, tais como
cenógrafos, artistas plásticos, editores e preparadores corporais. Escolhemos cinco
trechos para reproduzir aqui:
a-) Ariano Suassuna: Taperoá, pra mim, não é – não era até hoje – uma cidade
comum. Quando comecei a escrever, comecei a fazer de Taperoá o centro de tudo o
que eu escrevia, de maneira que a cidade foi tomando um sentido literário e mítico
até. Poderia ser uma tentativa de reinvenção literária da cidade que o menino Ariano
conheceu. Taperoá é a base física da cidade literária que eu construí com toda
minha obra de escritor. Então é uma alegria muito grande ver essa que eu considero
a obra mais complexa de todas as que eu escrevi até hoje ser filmada aqui em
Taperoá.
239
b-) Irandhir Santos: Quando soube que ia ser algo beirando o Expressionismo, ali
colado ao teatro, ao teatro na tevê, eu achei fantástico, porque o leque de
possibilidades em relação à expressão física, vocal e tudo mais aumenta.
c-) Marcio Hashimoto Soares (editor): A proposta que eu acho que o Luiz faz que é
exatamente nessa narrativa... dessa estrutura circular, foi a de criar tempos
diferentes. Você tem sempre uma passagem de cetro do Quaderna velho pro
Quaderna, do Quaderna criança que passa pro Quaderna adolescente, que são
esses quatro narradores. E a gente tem todos esses Quadernas convivendo no
mesmo espaço, dialogando entre si.
d-) Luiz Fernando Carvalho: Se eu tivesse que resumir esse projeto em uma única
palavra, diria “encontros”. A referência maior e certamente a qual devemos nos
agarrar diariamente é a vida. Não há nada que possa nos interessar mais do que a
vida. Tudo começa e termina com a experiência de estarmos vivos, com os nossos
sentidos e as nossas observações sobre este mundo que nos cerca. A linguagem é
a vida, tudo que você viu, leu, ouviu, viveu e sentiu desde que nasceu ou muito
antes, sabe-se lá, até o momento em que vamos rodar as cenas. Vida, criar um
processo de trabalho a partir dos atores locais foi minha grande alegria. Foi o que
naquele momento se tornou cada vez mais necessário e imprescindível para mim.
Soaria tristemente imitativo falar de um Brasil tão profundo através de
representantes oficiais.
e-) Braúlio Tavares: O sangue do vai-e-volta aí se refere ao mito de Dom Sebastião,
que é aquele rei que morre e ressuscita. O Sinésio é, num certo sentido, a volta de
Dom Sebastião de Portugal, até pela semelhança física, de ser um donzel, também
é uma figura meio crística. É um prinspe, ou prinspo, como dizem os cordelistas, e
Ariano gosta de dizer também, que morre e que ressuscita. Ele vai e volta, ele vai e
volta, toda hora ele está voltando.
3-) Ficha técnica:
Disponível na vinheta de abertura:
TÍTULO: A Pedra d’O Reino
240
BASEADO EM: Romance d’A Pedra do reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta
(1971), de Ariano Suassuna
ELENCO: Irandhir Santos como Quaderna, Cacá Carvalho como Juiz Corregedor,
Abdias Campos, Alyyne Pereira, Américo Oliveira, Anthero Montenegro, Beatriz
Lelis, Claudete Andrade, Everaldo Pontes, Flávio Rocha, Germano Haiut, Hilda
Torres, Iziane Mascarenhas, João Ferreira, Jones Melo, Júlio Rocha, Jyokonda
Rocha, Lázaro Machado, Manoel Constantino, Márcio Tadeu, Mayana Neiva, Mestre
Salustiano, Millene Ramalho, Moisés Gonçalves, Nelson Lima, Nill De Pádua, Paulo
César Ferreira, Pedro Henrique, Pedro Salustiano, Prazeres Barbosa, Sandra Belê,
Servílio De Holanda, Sôia Lira, Tavinho Teixeira, Tay Lopez
ATORES CONVIDADOS: Frank Menezes, Jackyson Costa, Jessier Quirino e Luiz
Carlos Vasconcelos
ATRIZES CONVIDADAS: Marcélia Cartaxo e Renata Rosa
AS CRIANÇAS: Felipe Rodrigues, Jéssica Araújo e Vanderson Taveira
MÚSICA ORIGINAL: Marco Antônio Guimarães
MÚSICA ADICIONAL: Antônio Madureira
ESCRITO POR: Bráulio Tavares, Luis Alberto de Abreu e Luiz Fernando Carvalho
DIREÇÃO GERAL: Luiz Fernando Carvalho
Disponível no final do DVD 2:
ELENCO – PARTICIPAÇÕES ESPECIAIS: Cléber Pereira, Elias Mendonça, Frank
Santos, Grupo de Cultura Os Cariris – PB, Henrique Albuquerque, Humberto Lopes,
João Saturnino de Oliveira, Marina Pereira Dantas, Vanderléia Pimenta, Walbert
Mattos, Cavalo Marinho de Biu Roque – PE (Boi Brasileiro de Itaquitinga), Jorge
Alves Ferreira (Dô), Jorge Borba da Silva (Zé Borba), José Francisco de Barros Filho
(Cidrak), Josefa Ribeiro Rodrigues (Zefinha), Luis Alves Ferreira (Mestre Luiz
Paixão), Luiz Carneiro do Nascimento (Luiz Carneiro), Maria Soares da Silva
(Maíca), Severino Alexandre da Silva (Mestre Biu Alexandre), Severino Augusto
Armírio Filho (Mina). As crianças: Alan Farias de Souza, Aline Almeida da S.
Gouveia, Allane de Oliveira Garcia, Amanda da Silva Gouveia, Edvânia Sabrina
Costa, Flavia Luzia Brasil de Moura, Igor Marcelino D. dos Santos, José Henrique da
Costa, Larissa Lopes, Maria Dantas Nunes Bezerra, Pedro Luiz da Silva Filho,
Renato Alfredo de O. Garcia, Silvia Avelino da Costa, população de Taperoá – PB
241
AUTORIZAÇÕES ESPECIAIS: SATED RJ
PALESTRANTES (OFICINAS DE PREPARAÇÃO): Ariano Suassuna, Fernanda
Montenegro, Dr. Carlos Byington, Dr.ª Maria Helena Guerra, Joana D’Arc e equipe,
Instituto Ricardo Brennand
DIRETORA ASSISTENTE: Raquel Couto
ASSISTENTES DE DIREÇÃO: Gizella Werneck e Manuel Dantas Vilar Suassuna
CONTINUIDADE: Adelina Pontual
ASSISTENTE DE CONTINUIDADE: Juliana Moreira Alves
PREPARAÇÃO DE ELENCO: Ricardo Blat
PREPARAÇÃO CORPORAL: Tiche Vianna, Lúcia Cordeiro e Mônica Nassif
PREPARAÇÃO VOCAL: Fátima França e Salvador Alcântara
1ª ASSISTENTE DE CÂMERA: Júlia Equi
2º ASSISTENTE DE CÂMERA: Tiago Rivaldo
ASSISTENTE DE CÂMERA / 2ª UNIDADE: Fernando Young
VÍDEO ASSISTENTE: Antonio Holanda
PROJETO E OPERAÇÃO DE BUTTERFLY: José “Jamelão” Medeiros
OPERAÇÃO DO BUTTERFLY: Álvaro Brito e Francisco Uchôa
CHEFE DE MAQUINÁRIA: “Cesinha” Coelho
CHEFE DE ELÉTRICA: Warley “Miquéias”
1º ASSISTENTE DE MAQUINÁRIA: Djalma Reis de Carvalho
1º ASSISTENTE DE ELÉTRICA: Alexandre Vaz
MAQUINÁRIA E ELÉTRICA: Antonio Augusto Filho, Israel Basso, Jorge Feliciano da
Silva, Manoel Barnete Júnior, Anísio Pacheco Alquezar
MIXAGEM: Armando Torres Jr. e Paulo Gama
SOM DIRETO: Geraldo Ribeiro
MICROFONISTAS: Alexandre Dumbra e Fernando Duca
EDIÇÃO DE SOM, RUÍDOS E EFEITOS: Beto Ferraz
EDITORES DE SOM: Paulo Gama, Cauê Custódio e Malú Souza
ESTÚDIO DE MIXAGEM: Estúdios Mega SP
GERÊNCIA ESTÚDIOS MEGA: Guilherme Reis
ASSISTENTES DE MIXAGEM: André Tadeu, Diego Fragoso e Rodrigo Ferrante
PRODUÇÃO DA TRILHA ORIGINAL: Cláudio Costa
ENG. GRAVAÇÃO / ACÚSTICO ESTÚDIO MG: Elias Issa
ASSISTENTE DE GRAVAÇÃO: Leandro Calazans
242
MIXAGEM / REC ESTÚDIO MG: Alexandre Martins
COORDENAÇÃO DE ARTE: Isabel Gouvêa
ARTISTAS PLÁSTICOS: Clécio Régis, Maritônio Portela, Maurício Castro e Mestre
Mamulengueiro Zé Lopes
ASSISTENTE DE DIREÇÃO DE ARTE: Vladimir Carvalho
PRODUTOR DE ARTE: Ricardo Cerqueira
PRODUTOR DE OBJETOS: Joãomiguel Pinheiro
ASSISTENTE DE ARTE: Francelícia Pereira
ASSISTENTE DE MAMULENGUEIRA: Marinês Silva
ARTESÃOS: Bado, Dittoluz, Fernandes Soares, Hemerson de Souza, José
Arimatéia, Júlio Alexandre, Inês da Silva, Ivaneide Oliveira, João Joaquim da Silva,
Maria Aparecida Oliveira, Maria das Graças Galdino, Maria Lúcia Alves de Lima,
Marinês Silva, Sebastião de Oliveira Borges
EFEITOS VISUAIS DE CENA: Petrúcio Linhares e Wellen Guerra
CONTRA-REGRA DE CENA: Genilson dos Santos
APOIO À ARTE: Alliny Tarcianny Medeiros Silva, Andrea Maria de Farias, Breno da
Silva Campos, David Chernenko P. Marques, Diego Diago Aires da Silva, Elizângela
Hilário da Silva, Fabiana Araújo da Silva Diniz, Geovane da Silva, Ismael de Melo
Oliveira, Joacil de Oliveira da Silva, João Batista da Silva, José Adriano Neves Diniz,
José David da Silva, Jucoene Gouveia dos Santos, Juliana Estevam de Farias, Júlio
Cezar Tomaz de Farias, Kerla Rodrigues, Márcio Charles da Silva Cariri, Maria das
Graças G. Santos, Maria José G. dos Santos, Moisés Neves Diniz, Salomão
Lourenço, Severino Celestino de Sousa
FIGURINISTA ASSISTENTE: Maribel Espinoza
MODELISTA: Maria Madalena de Oliveira
PRODUTORA DE FIGURINO: Ingrid Mata
ARTESÃOS: Alex Porto, Ana Lúcia Queiroz, Felipe Vilar, Júnior Saboga, Mairla
Sobral, Lorena Cavalcante, Jobson Pereira, Joelson Gomes, Jádiê Ramos Vilar,
Renata Pimenta, Sérgio Nascimento, Simone Cavalcante
COSTUREIRAS: Clara Pimenta, Gabriela Vilar, Jaqueline Ramos Vilar, Maria
Aparecida Cavalcante, Fátima da Silva, Fátima Lima, Mazé Ramos Vilar, Robeli
Vicente, Vera Vilar
CENÓGRAFA ASSISTENTE: Flávia Suzue
CHEFIA DE CENOTÉCNICA: Emildonício Lima “Neno”
243
PRODUTOR DE CENOGRAFIA: Diogo Balbino
PRODUTORA DE OBJETOS: Leila Bastos
ENGENHEIRO: Paulo Lobo
CONSULTORIA DE ARTE CENOGRÁFICA: Gilmar Crisóstomo
ARTISTA PLÁSTICO: Renato dos Santos Pereira
SERRALHEIROS: Ronaldo Paes de M. Sobrinho, Romero Paes de Melo, Francisco
Abel Moreira
MARCENEIRO: Maurício Cassemiro da Silva
MESTRES CENOTÉCNICOS: José Ivan Moreira Marques, Jober Torres
CENOTÉCNICOS: David de Oliveira Cândido, Claudio Souza Campos, Gilson
Marcos Gonçalves, Rogério de Lima Lemos, Nivaldo Freitas dos S. Junior, José
Remédios, Sebastião Vitorino, Antonio Lima, Silvio Elias, Décio José Junior, Luciano
Gomes do Santos, Agnaldo Alves Coutinho, José Tibúrcio da Silva, Isak Alves da
Silva
PINTURA DE ARTE CENOGRÁFICA: Bruno Costa, Vicente Silva, Maximiliano Silva,
André Evangelista
CONTROLE DE ACERVO CENOGRÁFICO: Rosivaldo José de Araújo, Damião
Teles Alves, Willames Nascimento
OBRAS DA CIDADE CENOGRÁFICA: Aderson Soares, Adnilson Pereira Batista,
Adriano José da Silva, Aguinaldo Lopes da Silva, Alexandre Sandro A. de Lima,
Alexandro Soares, Aline Alves da Silva Farias, Antônio de Assis Dias, Antônio de
Oliveira Silva, Antônio Marcelino Gouveia, Antônio Pedro da Silva, Antônio Pereira
dos Santos, Carlos Eduardo dos Santos, Cícero Gomes dos Santos, Cleodon Lima
da Silva, Damião Francisco Bulcão, Damião Teles Alves, Douglas Michel R. de
Souza, Edigar Pereira da Silva, Edileuza Pereira da Silva, Edilson Batista dos
Santos, Edinaldo José Xavier, Edinaldo R. do Nascimento, Edneide Gouveia
Correia, Fabio Cícero Serafim, Fábio Júnior Alves Ferreira, Felipe Adelino dos
Santos, Fernando Vilar de A. Francioli, Francisco de Assis de Oliveira, Francisco de
Assis Justino, Francisco de Assis Santos, Francisco Gonzaga de Lima, Francisco
Pereira dos Santos, Francisco Roberto de Oliveira, Gabriel Fonseca de Araújo,
Gilberto dos Santos, Gilmar Bezerra Carlos, Giovany Soares Monteiro, Gival Lopes
dos Santos, Gonçalo José da Silva, Ivaldete Neves Diniz Ramos, João Paulo
Gouveia Martins, João Paulo Levino da Silva, Jones Monteiro Soares, Josafá
Guedes, José Alipio Ananias, José Amaro das Neves, José Cleiton dos Santos
244
Gomes, José Diniz Cordeiro, José Edinaldo da Silva Freitas, José Eliton F. Santos
Gomes, José Fransueldo de Farias, José Galdino da Silva, José Jacinto dos Santos,
José Marcelo de Queiroz Lima, José Maria dos Santos, José Pereira de Farias, José
Roberes Gomes da Silva, José Ronaldo de Souza, José Tomaz de Oliveira, Joselino
Ferreira de Lima, Joselino Pequeno da Silva, Julio Laurindo da Silva, Leandro
Bezerra da Silva, Luis dos Santos Besserra, Luiz Alves de Lima, Luiz Mendes,
Marcelo Delmiro, Marcelo Gouveia da Silva, Marcos Alves Pequeno, Marcos Antonio
M. Levino, Maria José G. dos Santos, Nelson Andrade dos Santos, Nilton Alves de
Souza, Othoniel Ângelo de Sousa, Patricio Benedito dos Santos, Paulo Cezar de
Oliveira, Pedro Gabriel dos Santos, Perazo José da Silva, Reginaldo da Silva,
Ricellio Fabrício F. Brasilino, Robson Ferreira, Romualdo de Souza, Sebatião José
da Conceição, Sebastião Martins, Sebastião Rufino de Andrade, Sergio Valentim
Costa, Severino Celestino de Sousa, Tomaz Ananias, Valdemar Cristino, Valdir
Marinho Barbosa, Vinicius W. do Nascimento, Wagner Bruno de Costa Silva,
Wagner Soares Alves
CABELEIREIROS: Márcia Elias, Bob Paulino
MAQUIADORES: Marcos Freire, Jéssica Menezes
APOIO À CARACTERIZAÇÃO: Flávia Farias Campos, Maria Mônica de Oliveira,
Bertiza de Lima, Cíntia Matias Rodrigues, Edivânia de Farias Lima
DIREÇÃO DE PRODUÇÃO: Alcir Lacerda Filho
GERÊNCIA DE PRODUÇÃO: Fábio Zavala
PLATÔ: Eudes Santos
PRODUÇÃO E LOGÍSTICA: Kika Latache
PRODUÇÃO: Márcio Guerra, Stefanie Korb, Manuel Dantas Vilar, Antonio Carlos
Accioly, Bianca Marques, Tais Caetano, Thais Freire
TECNOLOGIA E INFORMÁTICA: Alexandre Q. Xavier
PRODUÇÃO INFRA-ESTRUTURA: Paula D’Emery
EQUIPE DE PRODUÇÃO INFRA-ESTRUTURA: Maria Suely Farias Diniz, Maria
Solange Alves Diniz, Valdir de Lima Vieira, José Batista de Lima, Lúcia Betânia
Gomes
ASSISTENTE DE PLATÔ: Alexandre “Dinho” Carvalho
DEPARTAMENTO JURÍDICO: Dr.ª Luna Oksman
DEPARTAMENTO ADM. FINANCEIRO: Milene Bastos
ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO: Roberta Frederico
245
PESQUISA: Selma Siqueira
SECRETARIA DE ELENCO: Ana Suely V. Gomes
EQUIPE MÉDICA: Dr. Gilberto da Silva Filho, Dr. Hiarles Sampaio Brito, Enfa.
Elizete Oliveira Andrade
PESQUISA DE LOCAÇÃO: Manuel Dantas Suassuna, Joãomiguel Pinheiro, Eudes
Santos
PESQUISA DE ELENCO: Rutílio Oliveira, Manoel Constantino
PESQUISA DE FIGURAÇÃO: Alluana Jane Brasilina de Faria, Jarbas de Souza
Alves, José Batista de Lima “Canhoto”
ESTAGIÁRIOS: Janna Sâmara Ramos, Semirames Villar de Araújo, Vinicius de
Ferreira Campos
COORDENAÇÃO DE PÓS-PRODUÇÃO: Maria Clara Fernandez
MONTAGEM: Marcio Hashimoto Soares
MONTAGEM ADICIONAL: Pedro Duran
ASSISTENTE DE MONTAGEM: Renato Briano
PÓS-PRODUTORES: Gustavo Gaiarsa, Helô Lopes, Paulo Saias, Renato Tilhe
ABERTURAS E EFEITOS DIGITAIS HD: Vetor / Lobo
DIREÇÃO DE CRIAÇÃO (ABERTURA E EFEITOS): Mateus de Paula Santos,
Carlos Bêla
PRODUÇÃO EXECUTIVA: Alberto Lopes
COORDENAÇÃO GERAL: João Tenório
ABERTURA: Carlos Bêla
DESIGN E ANIMAÇÃO 2D: Gabriel Dietrich, Roger Marmo
COORDENAÇÃO 2D: Dudi Ciampolini
ILUSTRAÇÕES: Cadu Macedo, Fernanda Heynen, João Paulo Ruas
ANIMAÇÃO ADICIONAL: Adrianus Cafeu, Chico Jofilsan, Francisco de Assis
Sanches, Janaína Bonacelli, Marcos Felix, Mao Ambrósio, Michel Vênus, Paulo
Nobre, Rodrigo Ribeiro, Sergio Rocha
ASSISTENTES DE FINALIZAÇÃO: Diego Ruiz, Gabriela Scorza, Renan Teixeira
Azevedo
SUPERVISÃO 3D: Frederic Palácio
COORDENAÇÃO 3D: André Sernaglia, Cristiane Santos
MODELAGEM 3D: Danilo Enoki
246
TRACKING / ROTOSCOPIA 3D: Felipe Mattos, Guga Certain, Henrique de Freitas
Júnior
ROTOSCOPIA 2D: Gassan Abd Abdouni
MAP: Domingos Ferreira de Aquino, Vanderlei Zafalon Junior
RIG: Guilherme Gonçalves Rizzo, Tiago Dias
ANIMAÇÃO: Alexandre Martins, Michel Bidart
RENDER: Cleverson Martins Leal, Felipe Bauer, Franck Falgueyrac, Gustavo Yamin
PESQUISA E DESENVOLVIMENTO: Luiz Garrido
COMPOSIÇÃO: Carlos “Bodão” Campos
PÓS-PRODUÇÃO DE IMAGEM HD: Teleimage
COLORISTA SÊNIOR: Sérgio Pasqualino
SUPERVISÃO DE IMAGEM: Marcelo Siqueira, ABC
COORDENAÇÃO DE RECONSTRUÇÃO DE IMAGEM: Robson Sartori
GENERAL MANAGER: Patrick Siaretta
DIREÇÃO COMERCIAL: Jerome Merle
CONSULTORIA: Alex Pimentel
ATENDIMENTO: Ariadne Mazzetti
COORDENAÇÃO: Karina Vanes, Mariana Zdravca
SUPERVISÃO LABORATÓRIO: José A. de Blasiis, ABC
REVELAÇÃO: Emerson R. da Silva, Ernani Nula Max, Francisco G. Pereira,
Josevaldo Ribeiro de Faria
PREPARAÇÃO DE NEGATIVOS: Fernanda Rosa, Luciana Valério da Silva, Priscila
Cavichioli, Vera Lúcia Machado
QUÍMICOS: José Roberto de Oliveira, Rinaldo Piagerini
ASSISTENTE DE EDIÇÃO: Alex Ferreira
TELECINE OFF LINE: Luan Montmart
SCAN HD: Carolina Sasse, João Theodoro, Luciano Guimarães, Manuel Junior,
Ricardo Herling
RECONSTRUÇÃO DE IMAGEM: Aruan Santos, Benedito de Jesus Bertholi, Carlos
Eduardo Couto, Carlos Focca, Daniel Klump Cortez, David, Danielle Divardin,
Eduardo Monte Alegre, Emerson Bonadias, Fabíola Fernanda Caetano, Gabriel
Ferreira, J. Cambé, Jefferson Ietto Novo, Julio Luiz Valizi Lima, Lucas, Luiz Tella
Neto, Marcelo Ferreira “PJ”, Marcelo Martins, Marcelo Finotti, Maurício “Cabelo”,
Michel Zigaib, Omar Colocci, Renata B. Borges, Renata Ferreira Pinto, Renato
247
Battaglia, Ricardo Alvarez Filho, Ricardo Filho, Rodrigo Aben, Rodrigo Aananias
Barros, Rodrigo Brinco, Rogério Marinho, Rogério Merlino, Thiago Dantas, Valdo
Caetando, Vanderson
PÓS-PRODUÇÃO HD: Equipe Academia de Filmes
SUPERVISÃO: Francisco Ruiz
CONSUTORIA: Alexandre Q. Xavier
COMPOSIÇÃO E EFEITOS: Marcell Hernandis
FINALIZAÇÃO: Cristiano Meira, Mario Abirajara, Tais Orsioli, Thais Barcelos, Diego
Roque, Jorge Luis, Tadeu Carraca, Leonard Araújo
RECONSTRUÇÃO DE IMAGEM: Alex Ferreira, Edson Costa, Fabio Fatorelli, Gabriel
Alves Lobato, Gilberto Caldas, João Nathan
CÂMERA: Murilo Azevedo
PRODUÇÃO DE ELENCO: Léo Gama
WEB DESIGN: André Luiz Machado, Fabrício Bianchi
ASSISTENTE WEB DESIGN: Andre Luiz Ignacio de Lima
WEB CONTEÚDO “A PEDRA DO REINO”: Bráulio Tavares
EDITORA DE WEB: Bárbara Duflles
PRODUTOR DE VÍDEO WEB: Douglas Fairbanks
GERÊNCIA DE DIREITOS AUTORAIS: Berenice Sofiete
GERÊNCIA DE OPERAÇÕES: Celso Araújo
ASSISTENTE ADMINISTRATIVO: Carla Madeira
COORDENAÇÃO DE PLANEJAMENTO E CONTROLE: Lissandra Mattos
ASSISTENTE EXECUTIVA: Ângela Rocha
CATERING: João Luis “Nunes” Costa, Arte e Magia
EQUIPE DE INFRA-ESTRUTURA: Adriana Rodrigues, Ana Cristina do Nascimento,
Ana Lúcia da S. B. dos Santos, Ana Paula Ferreira da Silva, Auricélia Levino,
Edineuza da Silva Pereira, Edjane Santos da S. Fernandes, Elba dos Santos, Elcio
Silva, Francisca Alves Ananias, Francisca Pereira dos Anjos, Geana Maria Bezerra,
Genilda Teófilo da Silva, Inês de Lima Lourenço Correia, Jacinta Campina do
Nascimento, José Batista de Lima, José Humberto Sales, Juraneide Oliveira Silva,
Luzia de Fátima V. Marinho, Luzia Regina de Farias, Maria das Graças dos Santos,
Maria do Socorro, Maria do Socorro L. Silva, Maria do Socorro Souza Silva, Maria
Ednalda Bezerra Pereira, Maria José dos Santos, Maria Selma F. dos Santos, Maria
Socorro Drielly S. Farias, Matilde de Lucena Lopes, Mônica Valéria Aires de Souza,
248
Regina Patrícia A. Nascimento, Regina Silva dos Santos, Rosilda Maria de Oliveira,
Rosilda Vidal da Silva, Tânia Maria Rufino da Silva, Valdir de Lima Vieira, Vera Lucia
Ramos
MOTORISTAS: Alberto Souza Ramos, Aldemir Sousa Ramos, Alexandre Nobre
Herculano, Clemildo Lucena Amorim, Edílson André Barbosa, Edson Gomes,
Francisco André B. de Oliveira, Grênio Santos de Araújo, Hemerson Costa de
Oliveira, Jaciro Santos, Joabe Saraiva Filho, João Batista Solto, João José da Silva
Filho, João Tomaz de Farias, Judivan Rodrigues, Marco Lopes, Moisés José
Ferreira, Nivaldo Fraga Brito, Noé Santos Silva, Paulo Carlos Costa Pereira,
Reginaldo F. dos Santos, Roberto de Moura Porfírio, Rosimeri Amorim, Willame de
Campos
VIGILÂNCIA: Carlos A. de Araújo (Chefia), Ademar dos Santos, André Luiz Ramos,
Anselmo Hilário Gouveia, Carlos Antonio Diniz, Carlos Martins G. dos Santos, Elaildo
Oliveira Andrade, Geraldo Alexandre da Silva, João Batista Oliveira Andrade, João
Souza Meira Junior, José Ademilson de Gouveia, José Alyson de Lucena Lopes,
José Augusto Oliveira Silva, José Carlos Paulo dos Santos, José Vital Duarte,
Reginaldo da Silva, Roberto Amaro, Ronieri Lourenço de Moraes, Wilder Guedes
Diniz
NEGATIVOS: 16 mm / Kodak
AGRADECIMENTOS ESPECIAIS: Governo do Estado da Paraíba, SAELPA – PB,
Antonio Luiz Mendes, Edna Palatnik, Quanta Lighting, Rain Network, Teleimage,
Vetor Zero / Lobo Filmes, Vox Mundi
AGRADECIMENTOS: Adroaldo Carneiro, Adston Mantovani Jr., Aion
Cinematográfica, Alberto Lopes, Alceu Batistão, Alexandre Tan, Alice Monteiro Lima,
Antiquário Nota Dez, Balduíno Lelis de Farias, Carlos “Cacá” Carvalho, Câmera
Dois, Carmen Mello, Cartório Único de Taperoá, Casa Cult. Mem. Severino Cabral,
CHESF, Chico Assis, Cine – Cidade, Cine – Pró, Cláudio Lira (CHESF),
Comandante Albert (CHESF), Comandante Góes (CHESF), Coronel Beltrão, Coronel
Lima Irmão, Cristina Fantato, Cuco Cine Vídeo, Danieli Turolla, Dr. João Pinto, Dr.ª
Telma Rocha, Edina Fujii, Eduardo Ferrão, Eduardo Goldenstein, Elias Santeiro,
Elias Sultanum, Fábio Lima, Fábrica Brasileira de Imagens, Fernando Vilela,
Francisco José Tavares, Frederic Murilo Breyton, Fundação Roberto Marinho,
Helena Reuza de Queiros Dinis, Hotel Pedra do Reino, Jandira Tavares de Oliveira,
Janete Rodrigues, JKL Cine, João de Oliveira Chaves, João Pedro Albuquerque,
249
João Pereira da Silva “Joãozinho”, Jonilson Vieira Santos “Nenen”, José Ferreira,
Lúcia Basto, Luciana Queroga, Luciano Campos Mendes, Luis Monteiro, Lunetterie –
RJ, Major Marcelo Bezerra e Equipe, Marcelo Oliveira, Márcio Langeani, Maria Dulce
de M. de Farias, Maria J. A. de Vasconcelos (MUFP), Marily Raphul, Marly de Assis
Pimenta, Mazinho Guinchos, Mitra Diocesana de Patos – PB, Motion, Museu da
Cidade de S. Luzia – PB, Museu de S. João do Cariri – PB, Museu Univ. Federal
Paraíba, Nestor Cavalcante Bezerra, NETO – Campina Grande, Paróquia N. S. da
Conceição – PB, Paróquia N. S. dos Milagres – PB, Patrícia Hockensmith, Patrick
Siaretta, Peta e Adonias (Massame e Areia), Pol. Civil do Estado da Paraíba, Pol.
Mil. do Estado da Paraíba, Prefeitura de Santa Luzia – PB, Prefeitura de Taperoá –
PB, Prof. Daniel Duarte Ferreira, Raimunda Ferreira, Ricardo Grandi, Roberto
Bicudo, Roberto Piquet, Rômulo Errico, Salomão Barreto Villar, Saulo Souza Gondin,
Sec. Adm. Penit. da Paraíba, Sec. Educ. e Esporte de S. Luzia, Sec. Planejamento
da Paraíba, 2º Grup. Bombeiros – Campina Grande, Sérgio Gallo, Silvia Alves,
Simone Lamosa, Tadeu Jungle, Universidade Federal da Paraíba, Valter Onishi,
Vilma Guimarães
PRODUÇÃO EXECUTIVA: Academia de Filmes
DIREÇÃO DE NÚCLEO / TV GLOBO: Luiz Fernando Carvalho
CRÉDITOS DE AUTORAÇÃO:
Coordenação: Cleber Tumasonis
Supervisão: Rodrigo Garcia
Designers: Alexandre Madugu, Flávia Marcato
Autoração: Ariel Bertelo, Stefano Pashalidis, Thiago Dell’Orti
Assistente: André Godoi