porque somos tao tristes

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  • Por que somos to tristes?

    Sandra Mara Corazza1Palestra

    Formao Continuada: UNIFEBE (Brusque)

    Brusque, SC, 22 de julho de 2008.

    Somos tristes?

    Como pode algum dizer isso, se ns, professoras e professores, danamos,

    cantamos, rimos, at gargalhamos, quando fazemos assemblias e passeatas, tocamos

    sinetas nas praas e nos palcios dos governos, realizamos festas de So Joo, Dia do

    ndio, das Mes, dos Pais?

    Quem diz que somos tristes, ns que, na hora do recreio, nos divertimos tanto,

    vendendo e comprando artesanato, lingeries, semijias de plaqu, moletons, bolsas,

    panos de prato? Quem diz que somos tristes, se uma de nossas diverses preferidas

    reclamar dos alunos e, principalmente, de suas famlias? Elas no so verdadeiras

    famlias, so desestruturadas, no sabem cuidar nem educar os filhos... (Quase no se

    conhece professores que apreciem ou falem bem das famlias de seus alunos.)

    Quem se atreve a dizer que somos tristes no modo como nos relacionamos com

    nosso ofcio de educar?

    Ora, ora, todos os que trabalham com educao podemos dizer e, inclusive,

    testemunhar que somos tristes, isto , que, ao educar, predominam paixes tristes, foras

    reativas, ressentimentos e, at mesmo, infelicidades. Todos podemos dizer que essa

    tristeza do tipo grave, pesada, uma carga, j que nossas aes educativas julgam,

    medem, limitam, aniquilam a vida, sendo, em verdade, reaes contra a vida vigorosa e

    exuberante.

    E se trata de uma tristeza imensa, to duradoura, que nos leva exausto,

    desejar que chova muito para irem poucos alunos aula, que haja greve, que chegue

    logo o trmino do turno, ou, melhor ainda, as Abenoadas Frias.

    Improdutiva tristeza, expressa em lamentao, queixa, nostalgia: nunca, nunca,

    nunca... vamos encontrar a escola idealizada, o aluno sonhado, os colegas perfeitos.

    1 Professora Doutora da Linha de Pesquisa Filosofia da diferena e educao do Programa de Ps-Graduao em Educao e do Departamento de Ensino e Currculo da Faculdade de Educao da Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS. Pesquisadora e Coordenadora do Grupo de Pesquisa DIF artistagens, fabulaes, variaes junto ao CNPq.

  • Alimentada pelo hbito, pela tradio, pela assiduidade da rotina profissional, h

    quase um sculo, tal tristeza nos faz repetir os mesmos atos, exigir as mesmas

    condutas, ensinar os mesmos contedos, perguntar as mesmas perguntas e formular as

    mesmas solues a muitas geraes de alunos Pergunta: Quantas estaes tem o

    ano? Resposta: 4 estaes primavera, vero, outono, inverno. Pergunta: Em

    quantas partes dividido o corpo humano? Resposta: Trs: cabea, tronco, membros.

    Tristeza que nos compele a criar uma imagem pobre, medocre, indigente de ns

    mesmos, a qual nos faz pensar o j pensado, a dizer o j dito, a fazer o j feito, a ter

    cada vez menos idias, menos amor a nossa profisso, e quedarmos presos opinio,

    desenvolvendo profunda miopia para o que est longe, ao mesmo tempo, que uma no-

    escuta do que interessante, excepcional, naquilo que vivemos cotidianamente.

    Tristeza amiga da Caixa de Matrizes (herana dos colegas que nos antecederam,

    sem a qual difcil ensinar durante um ano inteiro!); tristeza apaixonada pelo Livro de

    Ocorrncias (Sem ele, no h escola que funcione!); tristeza amante da lista de regras

    (hoje, chamadas combinaes) de Boa Convivncia (apesar de sua atual natureza

    participativa, o estranho que essas regras vm se repetindo desde que eu estava no

    Curso Primrio: Levantar a mo quando quiser falar; No brigar; Ser amigo dos

    colegas; No gritar; No dizer palavro; No jogar lixo no cho; Ir ao banheiro

    apenas com autorizao; Comportar-se bem no refeitrio; No correr nos

    corredores por que diabos, ento, chamar de corredores? ; etc.).

    Tristes, paquidrmicos, cinzentos, feios, emburrados, burocrticos, mecnicos,

    de-mal-com-o-mundo, formalistas, severos, rgidos, forados, tensos... de tanto nos

    fazer juzes do bom senso e do senso comum, vigias da moral e pastores dos bons

    costumes.

    Tememos o desprezo dos colegas, se nos pusermos a inventar, a questionar, a

    problematizar o que da ordem do consenso?

    Por que aceitamos trabalhar separados da potncia de criar educao, pedagogia,

    currculo, da qual acreditvamos ser capazes? Por que no lutamos contra tudo o que

    ameaa a nossa vida criativa de educadores? Por que chegamos escola sempre

    vestidos com a pompa circunstanciada de todos os valores estabelecidos, dos quais

    resulta mais tristeza? Por que no trabalhamos de maneira leve e despojada, livre e bem-

    humorada, que crie condies de possibilidade para fazer de nossa profisso uma obra

    artstica?

    2

  • Est certo: nunca nos pagaram de modo justo, as condies de trabalho so

    pssimas, os horrios so abusivos, a formao limitada e limitadora. Acostumamo-

    nos a falar de nossa profisso como de alguma coisa disfuncionada, defeituosa,

    danificada, fora dos eixos, embora, sempre nos sensibilizemos pelas promessas polticas

    de esquerda e de direita em prol de uma educao plena como se ela pudesse, algum

    dia, existir!

    Ser que j no chega de tudo isso? Ser que a tristeza dos educadores no

    chegou a seu estado terminal? No est na hora de aniquilar a tristeza, de faze-la

    desaparecer, de liberar a vida, l onde ela prisioneira, de faze-la fugir? Pois, o

    magistrio, como todas as profisses que tratam da vida, s existe de verdade com

    improvisao e criao, com plenitude de vida, nunca com a falta de querer-viver, com

    a apatia, inapetncia, indiferena em relao ao necessrio esforo de viver-educar.

    Agora, necessrio perguntar: O que que amamos? O que que nos faz

    felizes em nosso oficio de educar? E, ao responder, eliminar tudo o que mgoa,

    acusao, culpa, tudo o que gruda em nossas percepes correntes e vividas, para ver,

    perceber, sentir, na vida de educador, algo muito maior do que o vivido, do que o

    percebido, do que o sentido, para desaprender o dado e o feito, que o melhor caminho

    para retomar, no tempo certo do intempestivo, o caminho por-fazer.

    No preciso ser triste para ser professor, mesmo se o que ocasiona nossa

    tristeza abominvel. J atravessamos, vrias vezes, o Aqueronte da nossa profisso,

    passamos sofrimentos inacreditveis, tivemos vertigens, adoecemos. Fomos

    assombrados pelos espectros do magistrio, pelas inumerveis geraes de professoras

    que educaram e se entristeceram, que viveram de modo estril e sem alegria, que

    sentiram o efeito do poder sobre elas, que as impedia de fazer o que queriam ou tinham

    capacidade para fazer.

    Talvez, seja preciso seguir todas aquelas que, da sua condio de professoras,

    fazem no um sacrifcio a um poder que sempre triste, que bloqueia a efetivao de

    suas potncias, mas, um cntico vida, e que, por isso, reinventam todos os gestos,

    fazem passar fluxos de novidades, atravessam os muros, deslocam os limites,

    transformam o ofcio de educar em um sistema solar e planetrio, vivo e mvel.

    Professoras que cintilam, vibram, viajam, mesmo permanecendo onde sempre

    estiveram, ao preencher e efetuar a potncia de educar, de nome Alegria.

    Professores do Desejo: este o seu nome, guerreiros, vitais, csmicos, alegres,

    afirmadores do mltiplo, do devir, do acaso, que, atravs das doenas do vivido, vivem

    3

  • a sade da sua profisso. Com uma serenidade que serena a mortificao, tantas vezes

    reproduzida, eles amam o que h de mais vivo no que fazem, inclinam-se sobre a beleza

    de educar, abraam a vida, fornecem exemplo de criao e da alegria de viver, pelas

    suas prprias vidas, mais do que pelos livros e palavras.

    Agora, ateno! Cada vez que nos encontrarmos com esses professores e

    professoras no nos assustemos! Eles so meio unheimlich, estranhos, no-familiares,

    impuros, infernais, inesperados. Acontece que eles so feitos apenas das intensidades de

    seus olhos e ouvidos-artistas, dos afectos alegres de seus coraes-artistas, das

    velocidades e lentides de suas existncias-artistas, do indito e do notvel de seus

    pensamentos-artistas. E, acima de tudo, do seu Educar-Artista, que o que, felizmente,

    para todos ns, espanta todas as mortes em vida.

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    Sandra Mara Corazza1