porque não existe gênero jornalístico interpretativo

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SBPJor – Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo VIII Encontro Nacional de Pesquisadores em Jornalismo (Universidade Federal do Maranhão, São Luís), novembro de 2010 :::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: :::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: :::::::::::::::::::::::::::: Porque não existe gênero jornalístico interpretativo Lia Seixas 1 Resumo: O objetivo deste artigo é explicar porque não acreditamos na existência de gênero jornalístico interpretativo. Defendemos que qualquer ato linguístico contém o gesto da interpretação e a necessidade, portanto, de se compreender bem o conceito de interpretação, para, depois se afirmar a existência de “gênero interpretativo”. Apresentamos a compreensão de interpretativo nos estudos de jornalismo no Brasil (BELTRÃO; MARQUES DE MELO; ERBOLATO; MEDINA). Analisamos o gesto da interpretação dentro do fazer jornalístico, comparando composições discursivas, como notícia e reportagem. Sugerimos uma compreensão para o evento da significação, com níveis de interpretação para o tratamento dos objetos de realidade, denter os quais objetos de acordo e desacordo. O trabalho se fundamenta teoricamente na Nova Retórica (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA), em leitura da Teoria da Argumentação (por GUERRA; GOMES), na Pragmática (AUSTIN; SEARLE) e na Análise do Discurso (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU; ORLANDI). Palavras-chave: gênero jornalístico; gênero interpretativo; interpretação; análise do discurso; pragmática. 1 Jornalista e professora de jornalismo da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia. Doutorado sobre gêneros jornalísticos pelo Pós-Com da UFBA. Mantém o blog www.generosjornalisticos.com.

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Page 1: Porque não existe gênero jornalístico interpretativo

SBPJor – Associação Brasileira de Pesquisadores em JornalismoVIII Encontro Nacional de Pesquisadores em Jornalismo

(Universidade Federal do Maranhão, São Luís), novembro de 2010::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

Porque não existe gênero jornalístico interpretativo

Lia Seixas 1

Resumo: O objetivo deste artigo é explicar porque não acreditamos na existência de gênero jornalístico interpretativo. Defendemos que qualquer ato linguístico contém o gesto da interpretação e a necessidade, portanto, de se compreender bem o conceito de interpretação, para, depois se afirmar a existência de “gênero interpretativo”. Apresentamos a compreensão de interpretativo nos estudos de jornalismo no Brasil (BELTRÃO; MARQUES DE MELO; ERBOLATO; MEDINA). Analisamos o gesto da interpretação dentro do fazer jornalístico, comparando composições discursivas, como notícia e reportagem. Sugerimos uma compreensão para o evento da significação, com níveis de interpretação para o tratamento dos objetos de realidade, denter os quais objetos de acordo e desacordo. O trabalho se fundamenta teoricamente na Nova Retórica (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA), em leitura da Teoria da Argumentação (por GUERRA; GOMES), na Pragmática (AUSTIN; SEARLE) e na Análise do Discurso (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU; ORLANDI).

Palavras-chave: gênero jornalístico; gênero interpretativo; interpretação; análise do discurso; pragmática.

1. O que se chama de gênero interpretativo

Nos estudos do jornalismo brasileiro, os gêneros jornalísticos já foram divididos

em informativo e opinativo (MARQUES DE MELO, 1985); informativo, interpretativo

e opinativo (BELTRÃO, 1978); informativo, opinativo, educativo, de entretenimento

(autores que estudaram televisão e rádio); e mais recentemente, informativo, opinativo,

interpretativo, diversional e utilitário (MARQUES DE MELO, 2010). O gênero

1 Jornalista e professora de jornalismo da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia. Doutorado sobre gêneros jornalísticos pelo Pós-Com da UFBA. Mantém o blog www.generosjornalisticos.com.

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interpretativo que, para Marques de Melo, volta agora a aparecer nos veículos

jornalísticos, nasce na década de 70 com o New Journalism2, ganhando destaque

acadêmico com o livro “Jornalismo Interpretativo” de Luiz Beltrão em 1976.

Ainda hoje, para estudos de jornalismo, o “jornalismo interpretativo”3 é aquele

da reportagem, do livro-reportagem, do “relato ampliado”. Já foi também da

“reportagem em profundidade”, com antecedentes, projeção de futuro, prognóstico

informação íntegra e análise (BELTRÃO, 1976). Atualmente, concordando com o

trabalho de Dias at al (1998), Marques de Melo defende que as composições do

“jornalismo interpretativo” seriam: análise, perfil, enquete e cronologia, enquanto a

reportagem estaria no “gênero informativo”. Embora haja divergências quanto à

tipologia em “gênero interpretativo”, curiosamente há certo consenso quanto à definição

de “jornalismo interpretativo” ou do que seria a função de interpretar. O “jornalismo

interpretativo” é aquele que explica as causas de uma ocorrência, não factual a

princípio; tem vasta contextualização ou aprofundamento do contexto; humanização do

fato jornalístico, e indica as consequências desta ocorrência com diagnósticos e

prognósticos de fontes especializadas (ERBOLATO, 2002, p.34; MEDINA, 2003,

p.127). As palavras “contextualização”, “humanização”, “aprofundamento” e

“explicação” aparecem com frequência nas definições. Mas, como o objetivo principal

sempre é a taxonomia, as definições são cientificamente pobres, como concluem os

pesquisadores Lailton Costa e Janine Lucht em artigo que abrange grande parte da

literatura acadêmica sobre jornalismo “interpretativo”:

A primeira “vertente” [de Beltrão, Nava, Kinderman, Pereira Lima] concentra as possibilidades interpretativas em torno da reportagem e merece mais estudos para, quem sabe, desenvolver critérios mais sólidos de classificação, para o formato e a definição de seus caracteres enquanto gênero interpretativo, uma vez que nas classificações já legitimadas no âmbito acadêmico a reportagem é fixada no gênero informativo. [...]A outra “vertente”, presente em Dias et AL (1998) e Marques de Melo (2006), amplia o número de formatos interpretativos, mas também não

2 O New Journalism é um fenômeno influenciado pela imprensa underground de 60 nos EUA e se configurou no fazer jornalístico que “mistura” jornalismo com literatura em função da linguagem. As referências são autores como Gay Talese, Tom Wolfe, Normam Mailer, Hunter Thompson.3 Os estudos também consideram “jornalismo interpretativo” como se existissem vários jornalismos. Talvez trate-se de tipos de jornalismo ou ainda de gêneros do jornalismo. Seria um jornalismo com função principal de interpretar, talvez.

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estabelece critérios bem definidos de conceituação e caracterização destes, como é o caso da “análise” – na classificação de Dias et al – e do “dossiê” – na classificação de Marques de Melo. (COSTA; LUCHT, 2010, p. 121) (grifo nosso)

Pelo menos dois termos principais, portanto, parecem estar frequentemente

associados à definição de gênero interpretativo: interpretação, claramente; e

contextualização, muitas vezes denominada, em sentido lato, como “aprofundamento”

do contexto. A questão, na verdade, é que “interpretação” e “contextualização”

costumam ser tratadas como termos e não como conceitos, menos ainda com a

compreensão de que são categorias-chave para se compreender o fazer jornalístico. Este

é um dos grandes problemas dos estudos de gêneros jornalísticos: trabalhar com

conceitos com se fossem apenas termos, ou melhor, com categorias tratadas como tal

nos estudos de jornalismo. Se analisarmos os conceitos de interpretação - como, aliás, já

foi feito por Josenildo Guerra dentro dos estudos brasileiros – e contextualização,

certamente chegaremos à conclusão de que não existe gênero jornalístico interpretativo.

Claro, em se tratando de fazer jornalístico, com as competências de reconhecimento, de

procedimento e discursiva4.

Nos estudos de jornalismo, o “interpretativo” também quer dizer “função

interpretativa” ou “função de interpretar”. Convencionou-se dizer que cada composição

discursiva (texto, matéria) tem uma finalidade. Mas não se analisa os diversos atos

lingüísticos de uma composição jornalística; quais são as finalidades reconhecidas

socialmente para a instituição jornalística brasileira; qual a relação entre a função da

composição e a função da instituição, se existir uma relação; ou ainda, se não existe esta

relação, porque ela não existe. Os analistas do discurso têm reafirmado a existência de

várias finalidades, com a preponderância de uma finalidade5.

Todas as classificações brasileiras são, essencialmente, funcionalistas, ou seja,

consideram a função ou finalidade como o critério mais importante de separação entre

os textos, matérias, enfim, composições discursivas, como sugerimos nomear. Isso

significa dizer que, na análise das composições discursivas dos jornais, programas de

4 As competências mobilizadas no fazer jornalístico estão em leitura de Nelson Traquina dos autores Ericson, Baranek e Chan (1987). (SEIXAS, 2009, p. 157).5 Patrick Charaudeau é o autor que sugere esta relação entre as finalidades. (CHARAUDEAU, 2006).

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rádio e TV ou de produtos digitais jornalísticos, reúne-se aqueles que teriam a mesma

função principal, seja informar ou opinar ou interpretar. Estas funções, assim, seriam

reconhecidas socialmente. Com isso, o que se está afirmando é que há um dado

reconhecimento intersubjetivo pela sociedade brasileira sem que isso tenha sido

analisado.

Com o objetivo de não seguir a função como o “critério de saída” para uma

análise de gênero, mas um “critério de chegada”, exatamente porque esta análise ainda

não foi feita, temos sugerido, com a tese e com os últimos artigos apresentados em

20096, uma análise de elementos extra e intralingüísticos do ato comunicativo de uma

composição discursiva jornalística. Aqui, neste artigo, propormos uma análise da lógica

da interpretação no jornalismo, ou seja, o evento da significação na composição

discursiva jornalística. Para isso, faremos também uma comparação entre notícia e

reportagem, identificando os níveis de interpretação em composições discursivas

consideradas, respectivamente, dos gêneros informativo e interpretativo pelos estudos

de gêneros jornalísticos, apontando ainda elementos para a compreensão da categoria

“contextualização”.

2. A interpretação no fazer jornalístico

O gesto da interpretação trata-se da difícil dialética do evento e da significação.

Para esta dialética, as respostas da Pragmática e da Análise do Discurso parecem, num

primeiro momento, opostas, mas, na verdade não são, porque se encontram na

“intersubjetividade”. É certo que a Análise do Discurso está mais preocupada com a

relação do sujeito com a língua, com a história, com os sentidos. Os sentidos das

palavras seriam, para a AD, constituídos dentro das “formações discursivas”

(FOUCAULT, 1969) em suas relações. Interpretação seria um “ato de domínio

simbólico”:

6 O principal artigo neste sentido foi apresentado na Intercom 2009. SEIXAS, Lia. Gêneros Jornalísticos: partindo do discurso para chegar à finalidade. XXXII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, Curitiba, setembro de 2009. Disponível em: http://www.generosjornalisticos.com/p/artigos.html. Acesso em julho de 2010.

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[...] A Análise do Discurso visa compreender como os objetos simbólicos produzem sentidos, analisando assim os próprios gestos de interpretação que ela considera como atos no domínio simbólico, pois eles intervêm no real do sentido. A Análise do Discurso não estaciona na interpretação, trabalha seus limites, seus mecanismos, como parte dos processos de significação. Também não procura um sentido verdadeiro através de uma “chave” de interpretação. Não há uma verdade oculta atrás do texto. Há gestos de interpretação que o constituem e que o analista, com seu dispositivo, deve ser capaz de compreender. (ORLANDI, 2001, p.26) (grifo nosso)

Diferentemente, a Pragmática trabalha com parâmetros de verdade, tendo como

fundamentação principal a hermenêutica. A Pragmática entende que o conteúdo

proposicional é determinado pelos dispositivos indicadores da força ilocucionária:

[...] As diferenças, por exemplo, entre um relato e uma predição envolvem o fato de que a predição tem de tratar do passado e do presente. Essas diferenças correspondem a diferenças quanto às condições do conteúdo proposicional, como se explicou em Speech Acts. (SEARLE, 1995, p. 09)

Como o foco é o sucesso do ato, as proposições devem estar adequadas ao ato a

ser realizado. Estar adequada quer dizer também seguir convenções da linguagem

institucional, convenções estas que fariam parte do “saber social” (ISER, 1996). Os

parâmetros de verdade seriam, assim, aqueles da intersubjetividade, cujo equivalente,

para a AD, seria o interdiscurso. Intersubjetividade está associada a interconhecimento,

e o interconhecimento está ligado a compreensão. É a circularidade que envolve

compreensão e interpretação da experiência existencial humana, do círculo

hermenêutico:

[...] O ato de interpretar então é a operação dos significados dados na compreensão, de modo que aquilo que se interpreta já é, de antemão, antecipado pelas possibilidades inscritas na compreensão. O interpretar só é possível, aliás, graças a essa antecipação na qual a compreensão disponibiliza os sentidos construídos pela experiência das gerações passadas. [...] (GUERRA, 2003, p. 168) (grifo nosso)

Esta compossibilidade que têm as coisas, ou seja, as possibilidades de relações

com outras, estão no saber social, operado pela intersubjetividade. Poderíamos dizer que

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a AD trabalha esta “compossibilidade” das coisas na dimensão da “formação

discursiva” (FOUCAULT, 1969), o que se traduz em “compossibilidade de sentidos”,

enquanto a Pragmática entende a “compossibilidade” das coisas na experiência das

gerações passadas. Está-se, então, na AD, no âmbito das “regularidades” que constituem

o conceito de “formação discursiva”:

No caso em que se pode descrever, entre um certo número de enunciados, um sistema de dispersão semelhante, e no caso em que entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações), diremos, por convenção, que se trata de uma formação discursiva – evitando, assim, palavras demasiado carregadas de condições e consequências, inadequadas, aliás, para designar dispersão semelhante, tais como “ciência”, ou “ideologia”, ou “teoria”, ou “domínio da objetividade”. [...] (FOUCAULT, 1969, p. 53)

A lógica é das “regras de formação” de objetos, conceitos, modalidades

enunciativas e escolhas temáticas. É a compossibilidade inscrita no “regime dos

objetos” que possibilita a formação de um “objeto do discurso”. Considerando-se que

há formas de convivência entre a “compossibilidade das coisas” e uma

“compossibilidade dos sentidos” para dadas “formações discursivas”, essa convivência

na prática jornalística se dá pela relação estabelecida entre compromisso realizado

(atos lingüísticos) e objeto de realidade (realidade atual), mediante a compreensão do

saber social comum e, mais especificamente, dos tópicos jornalísticos.

Os tópicos funcionam como os objetos de acordo (PERELMAN), pois

constituem o saber social sobre objetos, idéias, opiniões. Conhecer o sentido de uma

palavra seria saber quais “lugares comuns” (topoï) estão fundamentalmente associados a

eles (Teoria da Argumentação). São essas crenças comuns de uma comunidade

discursiva que asseguram o encadeamento dos enunciados7. A noção de topoï, portanto,

7 “[...] O que a retórica antiga chamaria topoï, lugares, é hoje estudada por diversas disciplinas que se equilibra sobre as configurações verbais do saber comum, dos topoï da pragmática integrada ao estereótipo nestas acepções variantes. Além disso, a análise do discurso e os estudos literários privilegiaram, sob as denominações do “discurso social”, “interdiscurso”, “intertexto”, o espaço discursivo global no qual se articulam as opiniões dominantes e as representações coletivas. Ligar-se-á então a noção de “doxa” ou opinião comum, de uma parte, àqueles conjuntos discursivos – discurso social e interdiscurso – que a sustentam, de outra parte, às formas (lógica) discursivas particulares – topoï (lugares comuns) de todos os tipos, idéias recebidas, estereótipos, etc. - onde ela emerge de maneira concreta.” (AMOSSY, 2006, p. 99-100)

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aparece na AD sustentada por conceitos como intertextualidade e interdiscurso,

herdeiros da noção de dialogismo de Bakhtin. De outro lado, os tópicos, trabalhados

pela nova retórica de PERELMAN (1996) e pela pragmática integrada de Anscombre e

Ducrot (1983), vêm da herança aristotélica, que dividia os lugares comuns e os lugares

específicos. Os lugares comuns, para Aristóteles, se referiam às opiniões validadas

consideradas como dotadas de um grau máximo de generalidade. Os lugares específicos

eram as opiniões validadas relativas a um dos três tipos discursivos da retórica:

judiciário, deliberativo e epidítico. Para a análise das lógicas enunciativas do discurso

jornalístico e compreensão de seus objetos de realidade, trabalhamos, com duas noções

que parecem opostas, mas que, para nós, se completam: os lugares comuns como

premissas de ordem geral que permitem fundar valores e hierarquias (PERELMAN,

1996); e a noção de opinião comum compartilhada, que pode relevar opiniões validadas

e aceitas por um determinado período.

O objeto de realidade é a matéria-prima do fazer jornalístico: unidades da

realidade atual. Defendemos que a realidade é composta de diversos objetos, dentre os

quais os fatos. Existe uma primeira diferença, em geral, não desconhecida entre fato e

acontecimento. O fato é algo que passou, ocorrido. O que caracteriza o fato, portanto, é

o resultado de uma ação, passada. Já o acontecimento é fenômeno em processo que se

apresenta na atualidade, ou algo que tem determinado grau de probabilidade de ocorrer.

Um incidente no metrô é um fato, mas este fato está relacionado a vários

acontecimentos como o processo de investigação sobre o que provocou o incidente. Os

acontecimentos podem estar em ocorrência ou terem um dado grau de probabilidade de

ocorrer, ou seja, acontecimentos prováveis, previsíveis (porque convencionados) e

possíveis também são objeto de conhecimento do jornalismo. Existe, inclusive, uma

série de tipos de objetos de difícil delimitação e, inclusive, nomeação pela linguagem. A

realidade inclui desde o que é verificável pela simples observação, os chamados

“objetos de acordo” de fácil comprovação, como fatos passíveis de constatação

intersubjetiva pela simples presença, “objetos de acordo” que não são passíveis de

verificação, como “verdades” de saberes científicos, até intenções de declarações,

objetos abstratos impossíveis de se verificar e mesmo de se alcançar acordo. A partir

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dos “objetos de acordo”, sistematizados por PERELMAN e Olbrechts-Tyteca

(PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 1996, p.77), organizamos uma lista de objetos

de realidade mais frequentes no discurso jornalístico:

Objeto de Realidade DefiniçãoDeclaração 1. de autoridade (perfomativa, quando faz ao dizer);   2.de conhecimento (especialista);   3.de testemunho.

Geralmente, a declaração vem com aspas. A declaração de autoridade se constitui numa ação pela fala e implica uma mudança na realidade, uma (re)ação de atores sociais do mesmo campo social de quem emitiu a declaração. A declaração de conhecimento é fala de um especialista sobre, e somente sobre algo ligado à sua área de conhecimento. A declaração de testemunho é uma fala de um ator social (pessoa) que presenciou algo, participou de algo que está sendo noticiado. A autoridade de ser uma fonte vem do fato de ter testemunhado

Fato dado:   1. passível de constatação;   2. passado recente ou histórico.

O fato passível de constatação é aquela ocorrência que pode ser constatada por simples observação intersubjetiva. Veja que constatar é diferente de verificar. Nem tudo que pode ser verificado, com documentos, por exemplo, é constatável. Fato de passado recente é uma ocorrência anterior ao fato principal (da notícia). Geralmente faz parte do que se chama de contextualização fato recente pode ou não ser comprovado e ser ou não já conhecido da sociedade.

“Verdades” 1. saberes tidos como verdadeiros; (senso comum)   2. sistemas complexos de ligações entre fatos como objeto de acordo, relativo não só a teorias científicas, mas a saberes compartilhados e estabilizados pela experiência, mas que transcendem as experiências e estão em constante atualização   3.Dados, estatísticas com estatuto de verdade resultante de saber científico

“Verdades” são afirmações que uma sociedade tem como saber verdadeiro por que já é conhecido de todos e se cristalizou culturalmente. (EX:  O álcool é um produto que serve para fazer assepsia das mãos, de instrumentos cirúrgicos). Os sistemas de verdades são aqueles provindos de teorias, como por exemplo a teoria de evolução  de Darwin. Dados podem ser estatísticos ou não, mas devem ser resultado de pesquisa e estarem enunciados desta maneira no texto. Não é qualquer número ou dado, mas aquele resultante de um saber científico, que exigiu ou sondagem ou pesquisa. Por terem sido gerados no campo científico, esses dados são tratados como verdades inquestionáveis. Esses dados têm essa força.

Dados de saber especializado Os dados de saber especializado não são necessariamente provindos de pesquisa, podem ser dados enunciados por alguma fonte especializada, dados que podem ser comprovados por documentos, dados até que podem ser verificados.

Regras: 1. normas e regras conhecidas por uma sociedade 2. normas e regras de saberes especializados

Trata-se de qualquer norma ou regra de um campo social. Ex: A regra geral para se aprovar um projeto de lei ordinária é a maioria simples de votos, que corresponde ao número devotos favoráveis superior ao número devotos contrários. 

Comportamento de ator social Trata-se de uma maneira de agir, um comportamento enunciado no texto geralmente de forma descritiva.

Estado psicológico de pessoas O estado psicológico trata do que pensa, sente um ator social. É um objeto impossível de verificar, mas é enunciado porque se fez uma apuração com ações, comportamentos recentes.

“Opinião pública” São opiniões da sociedade em acordo num momento determinado. É opinião que parece consensual num determinado contexto para uma determinada sociedade.

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(SEIXAS, 2009)8

Esta lista, certamente, não pretende esgotar unidades de eventos da realidade,

mas mostrar: 1) como são variados os objetos com os quais o fazer jornalístico precisa

lidar e; 2) como, na relação com compromisso e tópicos, os objetos são re-construídos

frequentemente como fatos dados, constatáveis (aqueles sob os quais não se tem

dúvidas). Daí a compreensão consensual de que jornalismo trata de fatos.

Os compromissos de um ato de linguagem constituem o propósito reconhecido

do fazer linguístico, ação efetivamente realizada ao se proferir algo9. O compromisso se

dá na e pela realização do ato linguístico. O assertivo, ato linguístico mais frequente do

discurso jornalístico da grande imprensa, teria como propósito comprometer o

enunciador com a adequação da proposição à realidade. Ainda que o enunciador não

tenha a intenção ou propósito de asserir, se ele realizar uma asserção, estará

comprometido com a “verdade da proposição”, nas palavras da pragmática, ou com a

adequação do enunciado à realidade, nas palavras da AD.

Na realização de qualquer ato linguístico (assertivo, opinativo, expressivo,

diretivo) existe gesto de interpretação10. As proposições formadas de acordo com a

compossibilidade dos sentidos são resultado de interpretação. No caso do fazer

jornalístico, trata-se de interpretação da realidade atual. As proposições se constituem

em compromissos assumidos, portanto, de responsabilidade de sujeitos, sejam estes

indivíduos e/ou organizações. A partir do momento em que se relaciona mais de um

objeto de realidade, está-se interpretando. Talvez aquilo que se chama de

“aprofundamento” ou “aprofundamento de contexto” em estudos de jornalismo, possa

ser compreendido como níveis de interpretação. Vejamos.

3. A lógica enunciativa do discurso jornalístico

8 O quadro foi originalmente criado na tese de doutorado e reformulado em 2009 para a disciplina Teorias do Jornalismo da UFBA.9 Compromisso inevitável do emissor na e pela realização do ato linguístico. (SEARLE, 1995).10 É importante afirmar que essa expressão “gesto da interpretação” (PÊCHEUX, 1969) destaca o nível simbólico do ato linguístico, ou seja, ato de um sujeito, marcado pela relação com o silêncio, ideologia, história (ORLANDI, 1996, p.18).

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Existe um mútuo condicionamento entre os atos de linguagem e os objetos de

realidade no discurso jornalístico (para a AD, “estratégias discursivas”).

Frequentemente nas composições denominadas notícia, o objeto se realiza como fato

passível de constatação no ato de linguagem. Na verdade, é um resultado de saber

produzido pela atividade de apuração e discursiva jornalística. Uma ocorrência de

natureza constatável por simples observação ou ainda verificável, ainda que não tenha

sido constatada pelo fazer jornalístico, vai se realizar com fato exatamente pelo saber

social quanto a esse tipo de ocorrência. Este é o caso de manifestações, crimes,

acidentes, enfim, incidentes que podem ser intersubjetivamente constatados pela

presença, mas não o foram pelo fazer jornalístico. Com exemplo:

“O goleiro Bruno, do Flamengo, não compareceu novamente ao depoimento

marcado para esta terça-feira (20) na Delegacia de Atendimento à Mulher

(Deam) de Jacarepaguá, na Zona Oeste do Rio. O atleta é acusado pela ex-

namorada, Eliza Samudio, de sequestro, ameaça e agressão”11.

O primeiro período de uma webnotícia do G1, quase um ano antes do

desaparecimento da ex-namorada, é uma asserção sobre uma ocorrência não constatada

pelo fazer jornalístico, mas verificada e que, naturalmente, segundo a compossibilidade

das coisas, tem a possibilidade de ser verificada e comprovada. Diz-se, assim que se

trata de um fato, pois se realiza como tal no discurso, estando este último adequado à

realidade. Consequentemente, o objeto de realidade se configura com um objeto de

acordo.

Em exemplos como este, a interpretação do fazer jornalístico passa

desapercebida, como se não existisse. A asserção não só trata de um objeto de realidade

verificável, como não o relaciona, explicitamente, com nenhum outro objeto de

realidade. O segundo período, entretanto, contextualiza ou, pode-se dizer, explica12 o

11 GOLEIRO DO FLA NÃO PRESTA DEPOIMENTO PELA SEGUNDA VEZ. G1, no Rio. O portal de Notícias da Globo. Disponível em: http://g1.globo.com/Noticias/Rio/0,,MUL1348131-5606,00-GOLEIRO+DO+FLA+NAO+PRESTA+DEPOIMENTO+PELA+SEGUNDA+VEZ.html. Acesso em julho de 2010.12 É interessante citar aqui que Marques de Melo reivindica o sentido de “interpretativo” como aquele do inglês, em que interpretar seria próximo do explicar em português. “Interpret […] verb 1 to translate a speaker’s words, while he or she is speaking, into the language of his or her hearers […]; 2 to explain the

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motivo pelo qual ele foi convocado à Delegacia de Atendimento à Mulher. A ligação

operada pela simples sucessão de proposições, melhor, de asserções, estabelece relações

entre objetos de realidade que podem ser de causa, efeito ou temporais. Mas, como são

dois objetos de acordo, o nível de interpretação operado pelo fazer jornalístico nos

parece baixo, quase inexistente (lembrando que duas competências foram praticadas

aqui: seleção e hierarquização). Poder-se-ia dizer: “Trata-se de estratégia discursiva”.

Mas vai além disso, pois a chave está na mútua influência entre objeto de realidade e

compromisso linguístico:

[...] o objeto de realidade reconhecido também é um elemento de configuração do ato de linguagem. O objeto de realidade reconhecido é aquele que se configura no ato da troca comunicativa. O objeto de realidade se constitui no e pelo ato de linguagem. O compromisso que o caracteriza, por sua vez, se firma na relação entre objeto de realidade reconhecido segundo os tópicos universais e os tópicos jornalísticos. (SEIXAS, 2009, p.185)

Quando os objetos de realidade não são objetos de acordo, ou seja, não são

objetos com parâmetros intersubjetivos de verificação, comprovação, compreensão, fica

mais claro o gesto da interpretação. O nível da interpretação parece aumentar em função

das conexões operadas pelo fazer jornalístico. Outro exemplo do mesmo caso, agora em

2010:

“Num ambiente em que traição, orgias e sexo irresponsável são

considerados “muito comuns” – como declarou o goleiro do Flamengo,

Bruno Fernandes a VEJA – é certo que algo vai dar errado. Muitas vezes já

deu. Mas, a acreditar na tese da polícia, o desaparecimento da jovem Eliza

Samudio supera em gravidade quaisquer aventuras dessas com um pé na

bandidagem e outro na sordidez, que certos astros do futebol, nacional já

protagonizaram. ‘Tudo indica que Eliza foi assassinada. E Bruno é o

primeiro e único suspeito da nossa lista”, afirma Edson Moreira, delegado-

chefe do Departamento de Homicídio e proteção à pessoa de Minas

Gerais”13.

meaning of […]; 3 to show or bring out the meaning of in one’s performance of it […]”. PASSWORD: ENGLISH DICTIONARY FOR SPEAKERS OF PORTUGUESE. Tradução e edição de John Parker e Monica Stahel da Silva. São Paulo: Martins Fontes, 1995.13 GASPAR, Malu; ROGAR, Silvia; SEGALLA, Vinícius. O suspeito número 1. Revista Veja. Edição de 7 de julho de 2010, p. 80.

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(Universidade Federal do Maranhão, São Luís), novembro de 2010::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

A primeira proposição do primeiro parágrafo de reportagem da Veja trata da

relação entre um evento e suas consequências. Embora seja quase um senso comum,

esta conexão entre objetos de realidade verificável e outros indefinidos se realiza como

um objeto de desacordo. Não se encontra parâmetros exatos a ponto de torná-lo, no

saber social, um objeto de acordo. Como a adequação entre enunciado e realidade não

parece verossímil segundo os tópicos, o parâmetro de verossimilhança é transferido para

a subjetividade do(s) enunciador(es). O lugar social, a competência e o poder do

enunciador neste momento vão servir de parâmetro para aqueles objetos sob os quais

não se tem saber social prévio, sob os quais não se tem acordo social ou sob os quais se

faz julgamento de valor. Transfere-se a responsabilidade para a subjetividade, a ponto

de se poder compreender um nível tão alto de interpretação que o ato linguístico se

realiza como opinativo. Neste não há adequação do enunciado à realidade, mas

adequação da crença do enunciador à realidade. Por isso, implica-se a linha editorial da

organização jornalística (enunciador) e a “opinião” dos jornalistas (assinam e editam a

reportagem).

O saber social contém a crença de que todo objeto tratado pela atividade

jornalística tem a qualidade de verificação (QV), ou seja, pode ser verificado por

parâmetros do saber comum ou dos saberes científicos. Cada objeto de realidade tem

uma espécie de coeficiente de verificação (CV). O coeficiente de verificação de um

objeto de realidade é medido pelos tópicos universais e pelos tópicos jornalísticos. Essa

dinâmica tem ainda um elemento importante do saber jornalístico: o nível de

necessidade de verificação (NV) em determinado contexto para determinada ocorrência

noticiosa. O objeto pode ser passível de verificação, mas não haver necessidade de

verificação. Quanto maior for coeficiente de verificação de um objeto de realidade,

maior o grau de verossimilhança e, consequentemente, mais próximo de uma evidência

está. Se há necessidade de verificação, mas o objeto de realidade não pode ser

verificado por parâmetros intersubjetivos (de campos sociais diversos), então a

tendência é que o ato linguístico se realize como “opinativo”.

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4. Apontamentos finais

Conclusão possível: os tipos de objetos de realidade e as conexões entre estes

objetos de realidade são responsáveis pelas diferenças de nível de interpretação em

diferentes composições, como notícia e reportagem. Quanto mais objetos de desacordo,

mais facilmente se constituem opinativos. Quanto mais conexões entre diferentes

objetos de realidade, maior o nível de interpretação. Quanto maior o nível de

interpretação, mais contextualizado ou “aprofundado” é um assunto. Um fato de

passado histórico trazido numa reportagem não é, senão, contextualização:

“Assediado por clubes europeus como Milan e Porto, o goleiro Bruno, de 25

anos, ídolo e capitão do Flamengo, seguiu o percurso clássico do menino

talentoso que saiu da pobreza para o estrelato. Sem completar o ensino

básico, assinou seu primeiro contrato como jogador profissional aos 18

anos, com o Atlético Mineiro. Dois anos depois, estreava no Flamengo, onde

recebe hoje 200.000 reais por mês. Sua ascensão precoce veio acompanhada

do pacote que costumam usufruir os craques do esporte: fama, dinheiro e,

claro, amantes. [...]”14.

Os fatos do passado do goleiro Bruno trazidos no segundo período do segundo

parágrafo da reportagem da Veja são plenamente verificáveis e, portanto, o

compromisso linguístico assumido é de adequação do enunciado à realidade. Já no

terceiro período, como o objeto de realidade se aproxima do senso comum, o

compromisso pode se realizar como assertivo ou opinativo, dependendo do leitor-

participante. Há, portanto, um limite muito tênue entre os dois atos linguísticos,

enquanto interpretação é a operação chave para qualquer composição jornalística. Para

Wilson Gomes, na dimensão da própria apreensão de um fato:

[...], apreender um fato significa interpretá-lo, mas interpretar significa reagir diante do fato entendido como mundo; a interpretação, de qualquer sorte, como diz Umberto Eco, não é produzida pela estrutura da mente humana, mas pela realidade construída pela semiose. (GOMES, 2009, p.62)

14 GASPAR, Malu; ROGAR, Silvia; SEGALLA, Vinícius. O suspeito número 1. Revista Veja. Edição de 7 de julho de 2010, p. 81.

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Os atos linguísticos nos chamados “gêneros informativos” constituem, assim, na

origem, interpretação. Sem a conexão, sem relacionar os diversos eventos, fatos,

acontecimentos, enfim, objetos de realidade, não há fazer jornalístico. Não há como se

dimensionar uma ocorrência como notícia (qualidade de noticiabilidade) sem a operar

seleções e conexões, ainda que apareçam na composição discursiva por sucessão.

Portanto, outra conclusão possível é: a diferença de nível não equivale a

diferença de ação. Tem-se interpretação tanto em notícia como em reportagem, perfil ou

cronologia. Se na notícia é comum a sucessão para marcar causa, no perfil é comum a

descrição do personagem. Enquanto na primeira composição parece não haver

interpretação, na segunda, a interpretação é explícita. Motivo: a descrição trabalha com

objetos de desacordo, como comportamento social, estado psicológico, gestos

constatados, observados, “sentidos” pelos indivíduos-jornalistas.

É possível dizer que uma reportagem contém desde assertivos a opinativos,

enquanto notícias contêm mais de 90% de assertivos (como observado na tese15). Caso

uma pesquisa quantitativa de atos linguísticos seja feita em reportagens e esta revele que

51% dos atos se realizam como opinativos, será que se poderá dizer que a função é

opinativa e a reportagem seria uma composição do “gênero opinativo”? Isso seria o

mesmo que dizer que a função principal é mensurada pela quantidade de atos

linguísticos. Mas, a quantidade de atos lingüísticos realizados não é apenas um elemento

a se considerar na genericidade de composições discursivas. Há a questão da relação

entre os compromissos destes atos lingüísticos e a função da instituição jornalística, que

deve ser reconhecida por dada sociedade. Na sociedade brasileira, quais funções sociais

tem uma instituição jornalística? Uma vez que se identifiquem as funções aceitas, é

preciso conhecer as relações entre estas e as composições, entre as composições e os

compromissos linguísticos assumidos nas composições.

Chegando à finalidade, depois de investigar o conceito de interpretação, pode-se

sugerir: para se afirmar que existe gênero interpretativo é preciso que a interpretação

constitua – de acordo com o que se tem consensual na literatura acadêmica hoje –

função principal de dada composição discursiva. Com isso, deve-se provar que cada

composição discursiva tem funções que integram parte de um sistema em

15 (SEIXAS, 2009)

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funcionamento do campo jornalístico. Deve-se ainda compreender a relação entre

função de composição discursiva com função de instituição social e como essa função

de interpretar se relaciona com os atos lingüísticos assertivos e opinativos. Por fim,

deve-se desenvolver uma definição de interpretação que explique a dialética do evento e

da significação.

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