porno-riquismo - universidade de coimbra · 2018. 10. 23. · publicado em 1899, numa era de...

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01-09-2018 Economia •olítica O nexo entre imobiliário, turismo e finança Porno-riquismo Em Portugal, sociedade extremamente desigual, há uma tendência para concentrar análises e políticas no combate à pobreza. Mas é pelo menos tão importante conhecer o lado oposto, o da riqueza. Observando a construção das novas formas de riqueza e o modo como nela interagem tendências económicas, nomeadamente na área do consumo ostentatório, políticas públicas e tratamento na comunicação social, dá-se conta de um novo fenómeno: o porno- riquismo, onde é visível o nexo entre imobiliário, turismo e finança internacional. O outro lado dos salários baixos e das desigualdades imorais. JOÃO RODRIGUES * N urna reportagem do Expresso so- bre o crescimento do luxo em Por- tugal, Miguel Guedes de Carvalho, director do grupo Amorim Lwcury (CEO, acrónimo em inglês, a língua dominante dos negócios sem fronteiras), afirmou que «não podemos ter pessoas de classe média ou média baixa a morar em prédios classifi- cados» 111. Guedes de Carvalho é casado com Paula Amorim, o principal rosto da maior fortuna nacional, deixada por Américo Amo- rim e hoje avaliada em 4502 milhões de eu- ros [21 . Daí o nome do grupo, detido e presi- dido por Paula Amorim, e que inclui, entre outros, «um espaço de indulgência único» na Avenida da Liberdade chamado JNcQuoi (a língua francesa ainda dá cartas no campo da distinção), englobando um restaurante e unia loja de luxo; esta última é parte de uma cadeia 131. A mesma reportagem do Expresso informa-nos que os clientes' mais indulgen- tes têm a honra de ter o seu nome gravado no balcão do bar Entre os 48 nomes aí grava- dos no primeiro ano de funcionamento en- contram-se o do milionário francês do imo- biliário Claude Berda, de que voltarão a ouvir falar neste artigo, o do político e advogado de privatizações para estrangeiros, José Luís Ar- naut, ou o do gestor de rendas eléctricas tam- bém para estrangeiros, António Mexia: «No- mes que num fim de tarde passado entre quei- jos e vinhos Barca Velha e Château Margaux gastam facilmente dez mil euros e outro tanto (ou mais) numa manhã de compras, na loja Fashion Clinic no piso de baixo, entre roupas e calçado Gucci, Valentino e Dolce&Gabbana». Por sua vez, no novo suplemento mensal do minguado Diário de Notícias chamado DN Ócio - «uma revista que aborda informação relativa ao mercado premium e de luxo - das questões práticas às aspiracionais», segundo o seu estatuto editorial - pode ler-se a ené- sima reportagem sobre a Avenida da Liber- dade, sobre os seus «guardiões do luxo»". Nela, Filipa Ferreira, «head concierge» (o in- glês cruza-se convenientemente com o fran- cês) do Tivoli Avenida da Liberdade, afirma que «o cliente pede e nós din'mos sempre que sim, (...) vamos ter de concretizar o pe- dido, seja como for». De forma certamente não intencional, a DN Ócio homenageia um li- vro clássico da economia política, que será em breve editado entre nós: A Teoria da Clamo Ociosa. Publicado em 1899, numa era de de- sigualdades igualmente cavadas, Thorstein Veblen cunhou aí a noção de consumo cons- pícuo, sendo um dos seus críticos mais lúci- dos. Para lá do ócio, a classe dominante dos grandes proprietários açgentava a sua repu- tação de base pecuniária no consumo osten- tatório, especializando-se de resto em activi- dades económicas predatórias de natureza predominantemente financeira. Ao mesmo tempo, os seus hábitos infectavam o resto da pirâmide social, gerando uma emulação con- sumista assente também no desperdício e na criação de obstáculos a uma comunidade in- clusiva e com hábitos funcionais". Ao serviço do porno-riquismo Avançando mais de um século e para este lado do Atlântico, cruzamos as declarações de Guedes de Carvalho e de Filipa Ferreira, oriundas dos dois lados da mesma avenida e da mesma divisão social, e encontramos uma realidade, com amplos reflexos me- diáticos, em ascensão neste país e que pre- cisa de um termo novo: pomo-riquismo. O pomo-riquismo é a nova fase do consumo conspícuo num tempo de capitalismo multi- -escalar com desigualdades pornográficas, onde o dinheiro assim concentrado é sem- pre quem mais ordena, incluindo na dimen- são pessoal, que é sempre política. O centro da cidade de Lisboa, ou do Porto, é cada vez mais visto como uma área para os ricos con- cretizarem todos os seus desejos, do prédio classificado ao hotel, passando pela loja, pelo restaurante e por uma miríade de serviços pessoais associados. Tudo de luxo. O pomo- -riquismo não se circunscreve ao centro das nos duas principais cidades, já que tam- bém transborda para certos enclaves nas suas periferias e mesmo, usando os termos da reportagem do Expresso acima referida, para a «autenticidade» da «província», ou seja, e só para dar um exemplo, para uma «aldeia recuperada», entre Condeixa e Pom- bal, onde os clientes «são recebidos num he- liporto privado, assinalado com um H em ta- manho gigante, com o mesmo tipo de letra da marca francesa Hermès». O que devem fazer muitos dos restan- tes 99% perante os hábitos dos 1%, e isto na mais heróica das hipóteses numéricas? Para os que são crescentemente compeli- dos pela especulação imobiliária a viver fora, mas a trabalhar dentro, das grandes cidades, servindo os ricos, a revista Visão, numa re- presentativa reportagem, dedicada às «ca- sas em Portugal que valem mais milhões», tem uma sugestão prática, mas de duvi- dosa moralidade, como em tudo nesta área: «Como sonhar ainda vai sendo actividade privada isenta de impostos, nada nos im- pede de apreciar uma moradia como aquela que está à venda na Quinta da Marinha por 28 milhões de euros, comercializada pela Sotheby's» 161 . Nas sociedades capitalistas, certa comunicação social contribui para que os standards pecuniários pornográficos fixa- dos pelos mais ricos, de resto muito pouco taxados, invadam até os sonhos. Nada que fosse estranho na era anterior de pomo-ri- quismo sobre a qual Veblen escreveu. No entanto, vale a pena descer do mundo onírico para o da realidade material con- creta, convocando o conhecimento, explici- tamente ao serviço de porno-riquismo, em linha com o que é apanágio, ainda que por vezes disfarçado, de toda a sabedoria econó- mica convencional. Segundo Helena Amaral Neto, coordenadora de cursos executivos na área do luxo no Instituto Superior de Eco- nomia e Gestão (ISEG), que vão da gestão de marras de luxo ao turismo e ao imobiliá- rio de luxo: «O segmento [do luxo] não tinha qualquer expressão antes de 2012. Tudo o que está a acontecer hoje vem do movi- mento do imobiliário, que depois gerou tu- rismo»rn. E tudo, segundo esta também con- sultora de luxo, já vale quase 5% do Produto Interno Bruto (PIB). No ano dois da Troika, o projecto de trans- formar Portugal numa espécie de Flórida da Europa ganhou literalmente terreno, assente no nexo entre imobiliário, turismo e finança internacional, com uma componente cres- cente de luxo, um padrão de especialização que tende a gerar baixos salários e enormes desigualdades socioeconómicas". O conheci- mento ao serviço do pomo-riquismo requer sempre um Estado que o institucionalize. Não é certamente por acaso que Helena Amaral Neto atribui a máxima importância a duas medidas de política fiscal: o estatuto de resi- dente não habitual, criado ainda no governo de José Sócrates, em 2009, e a autorização de residência para actividade de investimento, vulgo Vistos Gold, criada em 2012; e isto para não falar da possibilidade do que apoda de «global shoppers» (os chamados «consumi- dores globais») de fora da União Europeia e que podem pedir o reembolso do imposto sobre o valor acrescentado (IVA) para com- pras superiores a 75 euros; luxos fiais para um consumismo conspícuo que não gosta de fronteiras. A União Europeia já havia sido o principal agente na promoção da liberalização dos mo- vimentos de capital em parte do continente. O esvaziamento da soberania democrática a que repetidamente aí se procedeu, pri- vando os Estados nacionais de instrumen- tos decentes de política económica, favorece uma corrida para o fundo em matéria fiscal, com o capital agora livre para arbitrar: o po- der dos mais ricos aumentou e a carga fiscal que sobre eles recai diminuiu, à medida que os Estados competem para os seduzir. Con- cretizando o «modelo Flórida» deste lado do Atlântico, Portugal transformou-se num «el- dorado para os reformados» ricos, oriundos do centro europeu, em busca de sol, serviços pessoais relativamente baratos e, sobretudo, de borlas fiscais à boleia de duplas isenções de imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS)". Por sua vez, os estran- geiros em idade activa, que invistam e tra- balhem por cá em actividades de «elevado valor acrescentado», podem esperar pagar uma «taxa especial de 20% de I FtS» durante uma década [1(4. Para lá das seduções fiscais, no âmbito do estatuto do residente não habi-

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Page 1: Porno-riquismo - Universidade de Coimbra · 2018. 10. 23. · Publicado em 1899, numa era de de-sigualdades igualmente cavadas, Thorstein Veblen cunhou aí a noção de consumo cons-pícuo,

01-09-2018

Economia •olítica

O nexo entre imobiliário, turismo e finança

Porno-riquismo Em Portugal, sociedade extremamente desigual, há uma tendência para concentrar análises e políticas no combate à pobreza. Mas é pelo menos tão importante conhecer o lado oposto, o da riqueza. Observando a construção das novas formas de riqueza e o modo como nela interagem tendências económicas, nomeadamente na área do consumo ostentatório, políticas públicas e tratamento na comunicação social, dá-se conta de um novo fenómeno: o porno-riquismo, onde é visível o nexo entre imobiliário, turismo e finança internacional. O outro lado dos salários baixos e das desigualdades imorais.

JOÃO RODRIGUES *

N urna reportagem do Expresso so-bre o crescimento do luxo em Por-tugal, Miguel Guedes de Carvalho,

director do grupo Amorim Lwcury (CEO, acrónimo em inglês, a língua dominante dos negócios sem fronteiras), afirmou que «não podemos ter pessoas de classe média ou média baixa a morar em prédios classifi-cados»111. Guedes de Carvalho é casado com Paula Amorim, o principal rosto da maior fortuna nacional, deixada por Américo Amo-rim e hoje avaliada em 4502 milhões de eu-ros[21. Daí o nome do grupo, detido e presi-dido por Paula Amorim, e que inclui, entre outros, «um espaço de indulgência único» na Avenida da Liberdade chamado JNcQuoi (a língua francesa ainda dá cartas no campo da distinção), englobando um restaurante e unia loja de luxo; esta última é parte de uma cadeia131. A mesma reportagem do Expresso informa-nos que os clientes' mais indulgen-tes têm a honra de ter o seu nome gravado no balcão do bar Entre os 48 nomes aí grava-dos no primeiro ano de funcionamento en-contram-se o do milionário francês do imo-biliário Claude Berda, de que voltarão a ouvir falar neste artigo, o do político e advogado de privatizações para estrangeiros, José Luís Ar-naut, ou o do gestor de rendas eléctricas tam-bém para estrangeiros, António Mexia: «No-mes que num fim de tarde passado entre quei-jos e vinhos Barca Velha e Château Margaux gastam facilmente dez mil euros e outro tanto (ou mais) numa manhã de compras, na loja Fashion Clinic no piso de baixo, entre roupas e calçado Gucci, Valentino e Dolce&Gabbana».

Por sua vez, no novo suplemento mensal do minguado Diário de Notícias chamado DN Ócio - «uma revista que aborda informação relativa ao mercado premium e de luxo - das questões práticas às aspiracionais», segundo o seu estatuto editorial - pode ler-se a ené-sima reportagem sobre a Avenida da Liber-dade, sobre os seus «guardiões do luxo»". Nela, Filipa Ferreira, «head concierge» (o in-glês cruza-se convenientemente com o fran-cês) do Tivoli Avenida da Liberdade, afirma que «o cliente pede e nós din'mos sempre que sim, (...) vamos ter de concretizar o pe-

dido, seja como for». De forma certamente não intencional, a DN Ócio homenageia um li-vro clássico da economia política, que será em breve editado entre nós: A Teoria da Clamo Ociosa. Publicado em 1899, numa era de de-sigualdades igualmente cavadas, Thorstein Veblen cunhou aí a noção de consumo cons-pícuo, sendo um dos seus críticos mais lúci-dos. Para lá do ócio, a classe dominante dos grandes proprietários açgentava a sua repu-tação de base pecuniária no consumo osten-tatório, especializando-se de resto em activi-dades económicas predatórias de natureza predominantemente financeira. Ao mesmo tempo, os seus hábitos infectavam o resto da pirâmide social, gerando uma emulação con-sumista assente também no desperdício e na criação de obstáculos a uma comunidade in-clusiva e com hábitos funcionais".

Ao serviço do porno-riquismo

Avançando mais de um século e para este lado do Atlântico, cruzamos as declarações de Guedes de Carvalho e de Filipa Ferreira, oriundas dos dois lados da mesma avenida e da mesma divisão social, e encontramos uma realidade, com amplos reflexos me-diáticos, em ascensão neste país e que pre-cisa de um termo novo: pomo-riquismo. O pomo-riquismo é a nova fase do consumo conspícuo num tempo de capitalismo multi--escalar com desigualdades pornográficas, onde o dinheiro assim concentrado é sem-pre quem mais ordena, incluindo na dimen-são pessoal, que é sempre política. O centro da cidade de Lisboa, ou do Porto, é cada vez mais visto como uma área para os ricos con-cretizarem todos os seus desejos, do prédio classificado ao hotel, passando pela loja, pelo restaurante e por uma miríade de serviços pessoais associados. Tudo de luxo. O pomo--riquismo não se circunscreve ao centro das nos duas principais cidades, já que tam-bém transborda para certos enclaves nas suas periferias e mesmo, usando os termos da reportagem do Expresso acima referida, para a «autenticidade» da «província», ou

seja, e só para dar um exemplo, para uma «aldeia recuperada», entre Condeixa e Pom-bal, onde os clientes «são recebidos num he-liporto privado, assinalado com um H em ta-manho gigante, com o mesmo tipo de letra da marca francesa Hermès».

O que devem fazer muitos dos restan-tes 99% perante os hábitos dos 1%, e isto na mais heróica das hipóteses numéricas? Para os que são crescentemente compeli-dos pela especulação imobiliária a viver fora, mas a trabalhar dentro, das grandes cidades, servindo os ricos, a revista Visão, numa re-presentativa reportagem, dedicada às «ca-sas em Portugal que valem mais milhões», tem uma sugestão prática, mas de duvi-dosa moralidade, como em tudo nesta área: «Como sonhar ainda vai sendo actividade privada isenta de impostos, nada nos im-pede de apreciar uma moradia como aquela que está à venda na Quinta da Marinha por 28 milhões de euros, comercializada pela Sotheby's»161. Nas sociedades capitalistas, certa comunicação social contribui para que os standards pecuniários pornográficos fixa-dos pelos mais ricos, de resto muito pouco taxados, invadam até os sonhos. Nada que fosse estranho na era anterior de pomo-ri-quismo sobre a qual Veblen escreveu.

No entanto, vale a pena descer do mundo onírico para o da realidade material con-creta, convocando o conhecimento, explici-tamente ao serviço de porno-riquismo, em linha com o que é apanágio, ainda que por vezes disfarçado, de toda a sabedoria econó-mica convencional. Segundo Helena Amaral Neto, coordenadora de cursos executivos na área do luxo no Instituto Superior de Eco-nomia e Gestão (ISEG), que vão da gestão de marras de luxo ao turismo e ao imobiliá-rio de luxo: «O segmento [do luxo] não tinha qualquer expressão antes de 2012. Tudo o que está a acontecer hoje vem do movi-mento do imobiliário, que depois gerou tu-rismo»rn. E tudo, segundo esta também con-sultora de luxo, já vale quase 5% do Produto Interno Bruto (PIB).

No ano dois da Troika, o projecto de trans-formar Portugal numa espécie de Flórida da

Europa ganhou literalmente terreno, assente no nexo entre imobiliário, turismo e finança internacional, com uma componente cres-cente de luxo, um padrão de especialização que tende a gerar baixos salários e enormes desigualdades socioeconómicas". O conheci-mento ao serviço do pomo-riquismo requer sempre um Estado que o institucionalize. Não é certamente por acaso que Helena Amaral Neto atribui a máxima importância a duas medidas de política fiscal: o estatuto de resi-dente não habitual, criado ainda no governo de José Sócrates, em 2009, e a autorização de residência para actividade de investimento, vulgo Vistos Gold, criada em 2012; e isto para não falar da possibilidade do que apoda de «global shoppers» (os chamados «consumi-dores globais») de fora da União Europeia e que podem pedir o reembolso do imposto sobre o valor acrescentado (IVA) para com-pras superiores a 75 euros; luxos fiais para um consumismo conspícuo que não gosta de fronteiras.

A União Europeia já havia sido o principal agente na promoção da liberalização dos mo-vimentos de capital em parte do continente. O esvaziamento da soberania democrática a que repetidamente aí se procedeu, pri-vando os Estados nacionais de instrumen-tos decentes de política económica, favorece uma corrida para o fundo em matéria fiscal, com o capital agora livre para arbitrar: o po-der dos mais ricos aumentou e a carga fiscal que sobre eles recai diminuiu, à medida que os Estados competem para os seduzir. Con-cretizando o «modelo Flórida» deste lado do Atlântico, Portugal transformou-se num «el-dorado para os reformados» ricos, oriundos do centro europeu, em busca de sol, serviços pessoais relativamente baratos e, sobretudo, de borlas fiscais à boleia de duplas isenções de imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS)". Por sua vez, os estran-geiros em idade activa, que invistam e tra-balhem por cá em actividades de «elevado valor acrescentado», podem esperar pagar uma «taxa especial de 20% de I FtS» durante uma década[1(4. Para lá das seduções fiscais, no âmbito do estatuto do residente não habi-

Page 2: Porno-riquismo - Universidade de Coimbra · 2018. 10. 23. · Publicado em 1899, numa era de de-sigualdades igualmente cavadas, Thorstein Veblen cunhou aí a noção de consumo cons-pícuo,

EMMANUEL NASSAR Trap zero (2015) . Na Kubikgallery, Porto, a partir de 22 de Setembro

tual, Portugal transformou-se também num dos muitos países europeus - regiões seria mais correcto do ponto de vista da sobera-nia económica - que vende direitos, neste caso de residência, ao abrigo dos Vistos Gold. Tudo se compra e tudo se vende. O pomo-ri-quimo é sinónimo de corrupção geral.

Querem tudo

Revisitemos a declaração de Miguel Sousa Guedes, director da Amorico Luxury: «não podemos ter pessoas de classe média ou média baixa a morar em prédios classifica-dos». A questão da habitação sempre foi um terreno da luta de classes no capitalismo, sendo hoje unia das áreas em que o pomo--riquismo mais investe. Entretanto, a sua esposa, uma encarnação do capitalismo de herdeiros cada vez mais saliente, já tinha sido saudada no seu empreendedorismo independente na área do luxo por uma im-prensa habituada a idolatrar os ricos, no pre-ciso momento em que sucedia ao pai no con-selho de administração da Galp: o luxo é «um negócio que lhe deu independência finan-ceira e o saber quanto a custa ganhar» desde os anos noventa1111. Paula Amorim certa-mente aprendeu a aceder ao luxo do lado da procura antes de se lançar do lado da oferta e não foi certamente prejudicada nestes seus hábitos pelos laços familiares, em particular no que diz respeito ao acesso a capital nas suas várias encarnações.

Como isto está tudo pornograficamente ligado pela integração europeia, o nome da globalização capitalista mais intensa nesta parte do continente, note-se que a participa-

ção da familia Amorim na Galp é assegurada através da Amorim Energia Detendo cerca de 33% da Galp, a Amorim Energia está se-chada na Holanda para receber dividendos, com o mínimo de impostos. Ou seja, os por-nograficamente mais ricos estão sempre a beneficiar fiscalmente. Na Amorim Ener-gia participa também a angolana Esperanza Holding„ detida parcialmente por essa agora periclitante encarnação angolana do pomo--riquismo multi-escalar que é Isabel dos Santos, a que um dia declarou: «Tive sentido para os negócios desde muito nova Vendia ovos quando tinha seis anos» [121.

Naturalmente, o apelido Amorim cruza as rendas, pouco tributadas, dos combustí-veis com a cortiça, o rentismo fundiário ou a especulação imobiliária E daí as declara-ções do CEO da Amorim Luxury. Uma parte da Herdade da Comporta, correspondente ao fundo de investimento imobiliário nas mãos da falida Rioforte do antigo Grupo Espírito Santo, está na mira de Paula Amo-rim, em consórcio com o francês Claude Berda, um dos 48 que tem o nome inscrito no bar do restaurante da Avenida da Liber-dade com sotaque francês. Este consórcio tem concorrência apertada. Quando o lei-tor estiver a ler este jornal, poderá já sa-ber quem são os donos daquilo tudo. Sejam eles quem forem, Amorim e Berda, citados no Expresso, afirmam que «a Comporta tem todos os ingredientes para se tornar um destino turístico de excelência no mundo a par de Capri, Sardenha, Punta deI Este ou Saint Barths»1131. Os seus planos de cons-trução incluem, ainda segundo o Expresso,

cinco hotéis de luxo, muitos apartamentos

e moradias de luxo, o tão inevitável quanto insustentável campo de golfe e até uma igreja, desenhada por Frank Gehry, já que a história da agulha e do camelo parece ser o único espectro que, por agora, paira sob um porno-riquismo sem grandes razões para ter medo nesta vida. Age como se a história tivesse acabado.

Lembrando que o problema não é este ou aquele apelido, mas sim o sistema que lhes confere todo o poder, ficámos, entretanto, a saber; por uma reportagem da Visão, que, nos hectares a perder de vista onde os Espí-rito Santo diziam brincar aos pobrezinhos, foram feitas ao longo dos anos mais de uma centena de obras ilegais, que transformaram cabanas em moradias de luxo, numa zona su-postamente protegida por razões ambientais, à boleia de múltiplos indícios de corrupção, tendo sido já constituídos vários arguidos, incluindo antigos responsáveis autárquicos e responsáveis da herdada Pouco importa,

já que mesmo por aí, «há raças a passar de mão por €350 o metro quadrado [falta, pelo menos, um zero, €3500, arrisco eu] (os lotes mais pequenos estão a ser vendidos por mais de um milhão) e a serem alugados por €700 por noite via Airbnb»114). A mesma Visão que em Abril recomendava o sonho do porno-ri-quismo aos que não são ricos deu conta do pesadelo em Julho: na era do porno-riquismo, do desperdício sistemático, dos bens posicio-nais que implicam exdusão sistémica, tudo se vende e tudo se compra Mas sendo isto reconhecidamente verdade, a jornalista que assina a reportagem não resiste a convidar o leitor a sonhar com o luxo, embora num tom mais melancólico: «Se ficou com vontade de ser; por um dia, Espírito Santo nos seus tem-pos áureos, e andar pela Comporta com rou-pas chiques e chinelo no pé, saiba que algu-mas dessas casas já têm lotação esgotada até ao fim do ano».

Terminemos onde começamos, no centro da capital desta Flórida da Europa: «Sei que os meus consumidores são raros, diversos e complexos; estão bem conectados e têm po-der», revelou Paula Amorico na conferência internacional Condé Nast Luxury1151. Orga-nizada pela editora internacional da revista Vogue, Suzy Menkes, dedicada à «linguagem do luxo», foi uma das várias do género rea-lizadas recentemente em Lisboa Numa in-tervenção onde a introspecção esteve cer-tamente presente, Amorim afirmou ainda: «O que podemos oferecer àqueles que têm tudo? Àqueles que exigem o inesperado? Eles não querem produtos, querem experi-ências únicas, sentir algo que seja urn reflexo dos seus valores. Quanto mais virtuais as noçsAs vidas se tornam, mais apetite temos por autenticidade, serviços humanos, um respeito pela privacidade, pelo anonimato, pela personalização, por produtos feitos à medida, por conteúdo e por relações».

Querem tudo, comem mesmo tudo e dei-xam cada vez menos: pomo-riquismo é um nome feito à medida, por conteúdo e por relações, tal como o capitalismo realmente existente. ■

Professor auxiliar da Faculdade de Economia da

Universidade de Coimbra e Investigador do Centro

de Estudos Sociais. Co-autor do blogue Ladrões de

Bicicletas.

[1] Expresso, 14 de Julho de 2018. [2] Forbes, Julho/Agosto de 2018. [3] www.jncquotcont/pt/restaurante. [4] DN Ócio, 28 de Julho de 2018. [5] Thorstein Veblen, The Theory of. the Leisure Class, The Modern Library, Nova Iorque, 2001. [6] Visão, 26 de Abril de 2018. [7] Diário de Noticias, 14 de Maio de 2018. [8] Ainda antes de ascender ao cargo de economista-chefe do Fundo Monetário Internacional, entre 2008 e 2015, Olivier Blanchard já havia explicitamente defendido o «modelo Flórida» para Portugal, acompanhado da redução dos salários, num influente artigo que resultou de um estudo encomendado pelo Ministério das Finanças: «Adjustment within the Euro: the difficult case of Portugal», Portuguese Economic Journal, Abril de 2007, pp. 1-21. [9] Negócios, 2 de Maio de 2017. [10] www.portaldascomunidades. mne.pt/images/GADGARS_Regime_Fiscal_Residente_N cY0C 3 °/oik3o_ Habitual.pdf. [11] Negócios, 26 de Maio de 2017. [12] Negócios, 20 de Março de 2013_ [13] Expresso, 21 de Julho de 2018. [14] Visão, 26 de Julho de 2018. (15] www.vogue.pt/cnilux-dia-1-uma-vis-o-disruptiva-do-luxo.

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diplo;;INaph EDIÇÃO PORTUGUESA

ue Educação

Manuais escolares FERNANDO RAMALHO

Precariedade no superior ANDRÉ CARMO

MENSAL . II SÉRIE . N.° 143. SETEMBRO 2018. 4,90 EUROS . DIRECTORA: SANDRA MONTEIRO

O nexo entre imobiliário, turismo e finança internacional

Porno-riquismo JOÃO RODRIGUES

Liberais contra populistas, uma clivagem enganadora SERGE HALIMI e PIERRE RIMBERT

Budapeste, 23 de Maio de 2018. Stephen Bannon, de casaco sombrio um pouco largo e camisa violeta aberta sobre uma t-shirt, coloca-se perante uma plateia de

intelectuais e notáveis húngaros. «O rastilho que incendiou a

revolução Trump foi acendido a 15 de Setembro de 2008, às

9h00, quando o banco Lehman 8rothers foi forçado a declarar falência.» O antigo estratego da Casa Branca sabe que aqui a crise foi particularmente violenta. «As elites salvaram-se a si próprias. Socializaram completamente o risco», continua este antigo vice-presidente do banco Gotdman Sachs, cujas activi-dades políticas são financiadas por fundos especulativos. «E

quanto ao homem da rua, será que foi salvo?» Um tal «so-

cialismo para os ricos» teria provocado em vários pontos do globo «uma verdadeira revolta populista. Em 2010, Viktor Or-

bán regressou ao poder na Hungria»; ele foi «Trump antes de

Trump».

Uma década depois da tempestade financeira, o colapso económico mundial e a crise da dívida pública na Europa de-sapareceram dos terminais Bloornberg onde cintilam as curvas

vitais do capitalismo. Mas a sua onda de choque amplificou duas grandes desregulações.

Em primeiro lugar, a desregulação da ordem internacional liberal do pós-Guerra Fria, centrada na Organização do Tra-tado do Atlântico Norte (OTAN), nas instituições financeiras ocidentais, na liberalização do comércio. Se, contrariamente ao que prometia Mao Zedong, o vento de Leste ainda não venceu o vento de Oeste, a recomposição geopolítica já co-meçou: perto de trinta anos após a queda do Muro de Berlim,

o capitalismo de Estado chinês estende a sua influência; a «economia socialista de mercado», apoiada na prosperidade de uma classe média em ascensão, liga o seu futuro à globa-lização contínua das trocas comerciais, que corrói a indústria manufactureira da maior parte dos países ocidentais. Como a indústria dos Estados Unidos, que o presidente Donald Trump prometeu salvar da «carnificina» logo no seu primeiro dis-curso oficial.

O abalo de 2008 e as suas réplicas sacudiram também a ordem política que via na democracia de mercado a forma acabada da história. A soberba de urna tecnocracia untuosa, deslocalizada em Nova Iorque ou em Bruxelas, que impõe medidas impopulares em nome de peritos e da modernidade, abriu caminho a governos tonitruantes e conservadores. De Washington a Varsóvia, passando por Budapeste, Trump, Or-ban e Jarosfaw Kaczynski reclamam-se do capitalismo tanto como o fazem Barack Obama, Angela Merkel, Justin Tru-deau ou Emmanuel Macros; mas um capitalismo veiculado por uma outra cultura, «iliberal», nacional e autoritária, que exalta o país profundo em vez dos valores das grandes me-

trópoles. Esta fractura divide as classes dirigentes. É encenada e ampli-

ficada por uma comunicação social que limita o horizonte das escolhas políticas a estes dois irmãos-inimigos. Ora, os recém--chegados, tal como os outros, têm o objectivo de enriquecer os ricos, só que explorando o sentimento que o liberalismo e a social-democracia inspiram numa parte muitas vezes majoritária das classes populares: uma aversão tingida de raiva. p. 31

SOCIEDADE Portugal face ao declínio demográfico ALEXANDRE ABREU

GEOPOLÍTICA Quando a Rússia sonhava com a Europa HÉLÈNE RICHARD

EUROPA Suécia: o fiasco da privatização da escola VIOLETTE GAORANT

ENERGIA A luta contra a exploração de gás e petróleo LUÍS FAZENDEIRO

MÉDIO ORIENTE Lóbi israelita: o documentário proibido ALAIN GRESH

AMBIENTE Salmão: de comida de luxo a flagelo ecológico CÉDRIC GOUVERNEUR