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POR UMA INFLEXÃO DECOLONIAL E ANTIRACISTA NAS
RACIONALIDADES DO ACORDO ENTRE MERCOSUL E UNIÃO
EUROPEIA
Entre os dias 11 e 13 de dezembro, a Coalizão Negra por Direitos esteve em
Bruxelas para produzir incidência junto ao Parlamento Europeu com objetivo de parar o
acordo entre o MERCOSUL e a União Europeia. Representada por Mariah Rafaela Silva,
professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro e membro do Grupo Conexão G de
Cidadania LGBT de favelas, Renata Prado da Frente Nacional de Mulheres do Funk e
Denildo Rodrigues da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras
Rurais Quilombolas (CONAQ).
A Coalização é um coletivo que reúne diversas organizações negras de diversos
segmentos e agendas de atuação e incidência política atuando em nível nacional. Atuamos
de maneira interseccional buscando fortalecer alianças para a promoção dos povos pretos
e racializados no Brasil, através de incidência política no congresso nacional, fóruns
internacionais e nos mais variados espaços de desenvolvimento social.
O ano 2019 tem sido um ano bastante movimentado para a Coalizão, em função
da conjuntura e do panorama político e social no Brasil. Entretanto, é importante pontuar
que a construção de coalizões e alianças nacionais não é exatamente uma coisa nova, de
tempos em tempos é necessário fortalecer laços para promoção e garantia de direitos dos
povos pretos e racializados para lutar contra o desmantelamento legal e garantir acesso a
direitos. Como foi o caso, por exemplo, da Frente Negra Brasileira no início do Século
XX e o Movimento Negro Unificado por volta de 1978 para fazer frente à ditadura
brasileira, depois unidades para incidência do movimento negro no processo constituinte
de 1988, para a marcha de Zumbi dos Palmares em 1995, para articulação da participação
do Brasil no tratado de Durban em 2003. Enfim, esse breve panorama histórico demonstra
a possibilidade e a necessidade de articulação dos diversos movimentos negros, com suas
pautas e agendas, para o enfrentamento de crises institucionais, do combate ético visceral
ao racismo em seus mais variadas níveis, bem como o enfrentamento do genocídio e da
aniquilação subjetiva e cultural dos povos pretos e racializados.
A atual conjuntura brasileira, novamente exige que nós nos reúnamos a partir da
necessidade ética fundamental de combater um gérmen neofascista e extremamente
perigoso para o Planeta, sintetizado na figura de Jair Messias Bolsonaro, vulgo presidente
da República Federativa do Brasil. Trata-se de um momento, não necessariamente novo,
mas extremamente delicado para o debate racial, de gênero, de sexualidade, de
territorialidade e redistribuição de renda, moradia e meio ambiente.
Diante das circunstâncias, os povos pretos, racializados, periféricos e favelados,
que são alvos direto dessa política neofascista tropical e a radicalização das políticas de
matabilidade, se organizam para a continuidade de seu empoderamento, garantia por
direitos e, sobretudo, da luta pelo direito à vida, direito fundamental e inalienável
ratificado nos mais variadas tratados internacionais. Portanto, é no contexto das eleições
de 2018 em que 105 organizações se reúnem para formar a Coalizão Negra por Direitos.
A atuação da Coalizão tem sido intensiva desde então, produzindo incidência na Câmara
Federal de Deputados, no Senado, Supremo Tribunal Federal, na Organização dos
Estados Americanos, Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Comissão de
Direitos Humanos da ONU, universidades brasileiras e estadunidenses e agora, aqui, no
Parlamento Europeu.
A missão fundamental da Coalizão é a luta organizada e unificada em defesa de
direitos humanos para a população afrobrasileira e a construção e fortalecimento de
organizações representativas da população negra para que possamos representar a nós
mesmos, pela nossa própria voz, a partir do que sofremos, lutamos e experienciamos no
curso da história e não mais a partir de intermediários ou tradutores de nossas vivências,
experiências e visão de mundo e objetivos culturais e políticos.
Estamos aqui porque acreditamos que o acordo entre a União Europeia e o
Mercosul irá contribuir para a manutenção da vulnerabilização dos povos pretos e
racializados, pessoas indígenas, pessoas LGBTQI+, em especial mulheres transexuais e
travestis negras, povos quilombolas, moradores de periferias e favelas, bem como
migrantes, sobretudo os negros e racializados em função das múltiplas dinâmicas do
racismo em sua intersecção com violações e discriminações de gênero, sexualidade,
classe social, origem geográfica e linguagem. Nesse sentido, estamos aqui para lutar
contra a institucionalização global do racismo, através de tratados econômicos como este.
Entretanto, imaginamos que vocês devam estar se perguntando: “mas que de
modo esse acordo impacta nas políticas raciais, gênero, classe e território?”. Para
responder essa pergunta, certamente é necessário visitar brevemente as três grandes linhas
nas quais o acordo se ancora, nominalmente a (1) agricultura, (2) meio ambiente e (3)
trabalho. É importante frisar que, grosso modo, este acordo se torna extremamente
oportuno para a Europa e a manutenção de sua política de dominação econômica e
cultural a nível global, uma vez que está inserido num longo contexto de negociação,
aproximadamente duas décadas, que recentemente ganha novos contornos políticos e
econômicos em função de um cenário internacional absolutamente restrito, a partir da
guerra comercial entre Estados Unidos e China. É diante desse panorama que a União
Europeia busca articular acordos de livre comércio com várias regiões do globo terrestre.
O Mercosul é uma delas e passa a ser, estrategicamente relevante para a política de
comercialização internacional, na medida em que busca se “blindar” ou, minimamente,
escapar das ressonâncias tarifárias prejudiciais que a queda de braços entre a China e os
Estados Unidos provoca, numa dinâmica de selvageria do capitalismo global integrado.
É no esteio desse panorama de acirramento político e ético-diplomático – com o
levante de diversos partidos e reconfigurações de governos com inclinação neofascista ao
redor do mundo – que ressurge no horizonte acordos como esse, tendo como um dos eixos
de gravidade o tema da agricultura. Dizemos isso, pois a agricultura é um dos pilares do
Mercado Comum do Sul ou, simplesmente, MERCOSUL. Para se ter uma ideia, o perfil
de produtos que serão negociados em direção ao território europeu, em geral, se concentra
em alimentos perecíveis, como frutas e sucos, e proteína animal. Trata-se de produtos de
baixa densidade tecnológica, dependentes de questões sazonais e climáticas e que não
fortalecem, de maneira geral, o desenvolvimento industrial dos países do bloco do
Mercosul, reduzindo a matriz Industrial Brasileira, por exemplo, praticamente ao
processamento de proteína animal. Isso faz o tema da indústria e tecnologia altamente
relevante para a discussão e um ponto nevrálgico na analogia à lógica agrícola, uma vez
que cabe aos países do bloco europeu a “transferência” de tecnologia. Para citar alguns
exemplos, temos na lista medicamentos para as medicinas veterinária e humana, além de
produtos manufaturados, peças de automóveis e óleo bruto refinado. Mas aqui é
importantíssimo uma ressalva: a tecnologia transferida não é necessariamente para o
desenvolvimento das indústrias dos países latino americanos, mas para empresas
europeias que atuam no bloco do sul.
O desejo das classes dominantes brasileiras, por exemplo, é unicamente o de
acessar as cadeias globais de valor, sem se importar de fato com a posição subserviente
das indústrias locais e a capacidade de autodesenvolvimento. Em suma, o acordo tornaria
o Mercosul numa espécie de grande plataforma de montagem, uma vez que a tecnologia
“transferida” seria exclusivamente vantajosa para as empresas europeias que já atuam na
América Latina, especialmente empresas automobilísticas, além de tornar os países do
bloco sul em meros eixos de exportação de produtos perecíveis, aumentando deste modo
as políticas latifundiárias, o avanço da monocultura e, por conseguinte, a intensificação
do processo de desindustrialização. Em outras palavras, trata-se fundamentalmente de
uma política recolonização através de novas vias econômicas, tecnológicas, políticas e
culturais, utilizando-se de estratégias ideológicamente aprimoradas e movimentos
articulados das elites industriais dominantes para dar conta dos novos cenários de disputa
de poder global, bem como as transformações econômicas em países periféricos nas
últimas décadas, em especial o Brasil.
É evidente que isso traz consequências para o trabalho e para o meio ambiente, na
medida em que o acordo representa uma espécie de “carta branca” para o latifúndio no
Brasil. Os desdobramentos dessa política de mercado incidem diretamente na produção e
aumento da violência no campo, a partir da intensificação dos conflitos agrários e das
disputas por terras agriculturáveis, e o desmantelamento das leis trabalhistas. É
importante lembrar que o setor agrícola, de modo geral, é cada vez menos intensivo em
mão de obra. Ou seja, cada vez mais a mão de obra humana é substituída por
equipamentos mecânicos fazendo com que a redistribuição de renda, além de
drasticamente assimétrica, seja ainda mais impactada ao passo em que o grande
latifundiário passa a investir na automatização do processo de produção e na concentração
de renda em mercados de aplicação e rendimento.
Para o meio ambiente essa é uma política catastrófica. Estamos falando da
intensificação do desmatamento e de queimadas propositais para fins de ampliação de
áreas de pasto e agricultura, de modo a ampliar, por exemplo, o mercado de grãos. Isso
tem incidência direta nas legislações ambientais que têm sido sistematicamente violadas,
além da escassez de recursos humanos para fiscalização bem como a perseguição e
genocídio de defensores de direitos humanos, fiscais e ativistas. Não obstante, produzindo
incidência na manutenção da corrupção com propósitos de violar tratados, emitir
documentos falsos e notas frias para grilagem de terras.
O elo enfraquecido dessa corrente é o trabalhador. Sobretudo os trabalhadores
negros e racializados, na medida em que esse acordo, dada a política de corrupção atrelada
às nuances do inconsciente colonial coletivo, comum às elites brasileiras, desmantela os
empregos industriais ainda parcos no país, fratura as leis trabalhistas, contribui para o
alargamento da pobreza, para a escassez dos postos de trabalho, para a exploração do
trabalho infantil, para a baixa remuneração e, sobretudo, tem efeito nefasto para as
políticas raciais e de gênero. Os processos de privatização das grandes empresas
brasileiras e suas subsidiárias é um sintoma desse processo cujo efeito colateral é a
destruição dos postos de trabalho e a precarização social, bem como o drástico impacto
sobre a violência racial, de gênero e sexual.
Temos certeza que os senhores estão cientes, por exemplo, o que representou o
acordo de livre comércio, por volta de 1994, entre Estados Unidos e México, o impacto
que isso causou nos fluxos migratórios como decorrência do aumento da pobreza, da
violência e da falta de trabalho para o povo mexicano. Diante desse cenário, enfatizamos
que o acordo é favorável exclusivamente a Europa que sabe que os países do Mercosul
têm dificuldades e resistências às aplicações e fiscalizações das políticas em direitos
humanos, fazendo com que a Europa tenha uma carta na manga para impor medidas
restritivas. Por outro lado, a própria Europa passaria a contribuir com novas ondas
migratórias em virtude da operacionalização de suas próprias lógicas de imperialismo
econômica. Outrossim, é valiosíssimo pontuar que o tema dos direitos humanos não pode
sequer ser vislumbrando sem um denso e ético compromisso racial.
O tema racial é muito caro para as políticas em direitos humanos no Brasil.
Nenhum acordo com impactos profundos para os modos de vida do povo brasileiro, e
latino americano, de modo geral, pode ser levado à cabo sem um profundo debate racial.
Primeiramente, estamos falando de um país que foi o último país no ocidente a abolir a
escravidão dos povos pretos forçados à diáspora. Estamos falando de um país onde o
navio negreiro foi rapidamente substituído pela prisão ao longo do século XX, e essa
política é reatualizada ganhando novos contornos necropolíticos ao longo dessas duas
décadas do século XXI. Para título de curiosidade, o Brasil tem atualmente cerca de 870
mil presos. 2/3 da população carcerária brasileira é negra. Bruxelas, a cidade onde
estamos, por exemplo, tem cerca 1 milhão e 200 mil habitantes. O número de presos no
Brasil corresponde quase que a totalidade da população de Bruxelas. Estamos falando de
um país que ao longo de sua história recente criou leis específicas para incriminar a
cultura negra (cito exemplos, o samba, a capoeira e as religiões de matriz africana ao
longo dos séculos XIX e XX, com diferentes nuances e reatualizações) produzindo um
tipo de engrenagem coletiva social que facilita, ou melhor, que convida a criminalização
do funk, da dança e dos modos de viver dos mais distintos povos pretos que vivem no
Brasil do século XXI, que insiste em parecer com o Brasil dos tempos em que os invasores
portugueses, franceses, espanhóis, holandeses e ingleses disputavam terras e o tráfico de
pessoas escravizadas.
Estamos falando de um país que atualmente permite que um projeto de lei como
o “pacote Moro” tramite no Congresso Nacional sem qualquer espanto das elites
dominantes com o teor macabro e potencialmente letal para aquelas pessoas já vivem
cotidianamente com o sangue escorrendo pelos seus pés. A elite branca que domina o
Brasil se comporta como verdadeiros amoladores de faca, num ritual histórico fúnebre
cujo cenário pouco se difere de um abatedouro, tendo como centro de gravidade a carne
negra sistematicamente dilacerada por essas racionalidades políticas de organização
social.
Essa mesma elite, é preciso dizer, é composta por descendentes e herdeiros
daqueles que outrora traficaram negros para as terras da América e que hoje ocupam o
congresso nacional, o senado, as mais diversas casas legislativas em níveis estaduais e
municipais, a suprema corte do país, tribunais de justiça, autarquias e instituições. O
cenário de dominação política, econômica e cultural do país remonta, portanto, a grande
fazenda colonial de tempos passados. Em outras palavras, trata-se de um negócio de
famílias, de famílias coloniais. O pacote Moro ou, nos termos do slogan do governo
Bolsonaro, Pacote Anticrime, representa a formalização da declaração de morte do povo
preto e periférico, contribui drasticamente para aumento mais radical do encarceramento,
viola a Constituição Federal de 1988 e fragiliza ainda mais, o que já é absurdamente
frágil, ao propor a flexibilização e menor rigor na apuração e punição de casos de
homicídio cometidos por agentes de segurança do Estado.
Para se ter uma ideia, atualmente no Brasil existe um dispositivo de matabilidade
intitulado autos de resistência. A questão é que enquanto dispositivo jurídico o auto de
resistência não existe, ele opera a partir da lógica de autodefesa, que agora muda de nome
em função da conjuntura política e da ampla repercussão negativa, em contextos
internacionais, que a fala do governador do Rio de Janeiro – ao sobrevoar uma favela de
helicóptero e dizer, segurando um fuzil, “a polícia vai mirar na cabecinha e... fogo!” –
ganhando o extenso título de homicídios decorrentes de intervenção de agentes de estado.
Na prática, trata-se de uma ferramenta amplamente utilizada por agentes públicos em
incursões policiais em favelas, o que blinda policiais militares que utilizam desse recurso
legal para escapar das punições pelas mortes deliberadas que eles provocam. A polícia
brasileira é a que mais mata no mundo e também a que mais morre, completando esse o
cortejo fúnebre instalado na grande fazenda tropical chamada Brasil. Outro ponto do
pacote Moro, que preocupa defensores de direitos humanos e ativistas do movimento
negro, é a proposta de flexibilização do porte de armas. Na verdade, isso irá representar
o aumento das mortes de jovens negros, racializados, pobres e mulheres transexuais (que
já são vítimas frequentes de armas de fogo).
Alguns dados, que corroboram o que estou falando, de janeiro a outubro do ano
corrente, ou seja 2019, a polícia do Rio de Janeiro matou 1.546 pessoas. Esse número
representa um aumento de 13% em relação ao mesmo período do ano passado. É o maior
número de mortes provocadas por agentes de estado desde 1998. Esses são dados oficiais
do Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro. Isso significa que há um aumento
da violência na atual gestão política brasileira, nas mais variadas instâncias do poder
legislativo, através do respaldo semiótico que tais atores políticos facilitam. De modo que
o racismo institucional se configura como prática estruturante e ideológica dos governos
federal, estadual e municipal, ao menos no caso do Rio de Janeiro, efetivando a negação
do direito à mobilidade, à educação, à cultura e ao lazer. Em suma, uma negação radical
do direito à vida.
Essa dinâmica de violência recai, sobretudo, sobre as mulheres negras e pobres,
pois precisam lidar com a dobra da violência de maneira multidimensional: física,
psicológica, econômica e emocional. Essas mulheres são vítimas ao perder seus filhos e
maridos, ao se expor a humilhações para precisar visitar seus maridos e filhos nas prisões
e sendo, literalmente, mortas. Citamos aqui alguns dados disponíveis no relatório de
homicídios de Adolescentes e Jovens no Estado do Rio de Janeiro, publicado
recentemente pelo Observatório de Favelas,
No ano de 2017, 4.936 mulheres foram vitimas de violencia letal no
Brasil, o que corresponde a cerca de 13 assassinatos por dia. A
desigualdade racial tambem se expressa de forma relevante entre as
mulheres: 66% das mulheres assassinadas no pais sao negras. Entre
2007 e 2017, a taxa de homicidios de mulheres negras cresceu 29,9%,
enquanto a de mulheres nao negras teve crescimento de 4,5% (IPEA e
FBSP, 2019).
Qualquer perspectiva de acordo que vise exclusivamente políticas de
regulamentação, sem avaliar os impactos efetivos na vida das pessoas, sem levar em
consideração o caráter interseccional, tomando elementos como raça, gênero e
sexualidade, e tencionando-os com as políticas e dinâmicas territoriais, climáticas,
ambientais e trabalhistas é, fundamentalmente, um acordo estéril que ignora a vida
humana, produzindo verdadeiros sistemas valorativos entre organismos vivos e seres
humanos para privilegiar fluxos econômicos contribuindo, deste modo, para a
manutenção do derramamento de sangue no Brasil.
Esse ponto é o que torna relevante, por exemplo, o tema das transexualidades
afrodiaspóricas para esse debate. Recentemente, uma pesquisa do Instituto Transformar,
para a produção de um informe sobre a situação de violação de direitos humanos da
população trans afro-brasileira no Rio de Janeiro, revelou dados que nos saltaram aos
olhos, a partir das inúmeras entrevistas que foram produzidas com pessoas transexuais
negras, em sua maioria moradoras de favelas, percebeu-se que 100% das participantes
relataram que a maior violência que sofrem é produzida por agentes do estado. 10% das
mulheres apresentaram marcas de tiros do corpo, elas foram alvejadas em pontos de
prostituição, em grande parte controlado por policiais. 96% das entrevistadas são
profissionais do sexo (no caso das mulheres transexuais e travestis), e grande parte delas
são migrantes ou já viveram em situação de rua, indicando uma profunda defasagem
dessas pessoas no mercado formal de trabalho, de educação e moradia. Uma pesquisa de
uma outra organização, a ANTRA, aponta que a média de vida de uma mulher transexual
no Brasil é de 35 anos. Estamos falando da menor perspectiva de vida entre os grupos em
situação de vulnerabilidade econômica e social, resta saber, no entanto, a percentagem da
média de vida de mulheres transexuais negras e moradoras de periferias, sobre isso ainda
não se tem dados. Nesse sentido, a falta de dados é em si um dado. Portanto, Esse acordo
tem o poder de tornar praticamente impossível uma situação que já é profundamente
arbitrária, uma vez que contribuiu estruturalmente para precarização dos postos de
trabalho e distribuição de renda, além de contribuir para violência de gênero,
estigmatização da atuação profissional de pessoas trans, além de força-las a migrar, tendo
na prostituição a única saída possível, bem como facilitar a exploração sexual dessas
pessoas.
Além disso, no que tange à facilitação do porte de armas, isso representa riscos
preponderantes para mulheres transexuais e travestis e para a população de jovens negros.
O dossiê da violência contra a população LGBT, produzindo em 2016 pela Rede AFRO
LGBT, aponta que
[...] morrem por armas de fogo no Brasil 2,6 mais pessoas negras do
que brancas. Enquanto, entre os anos de 2003 e 2014, a taxa de
homicídios por armas de fogo caiu 27,1% para pessoas brancas, a
mesma aumentou para pessoas negras em 9,9%. Quando voltamos o
olhar para a juventude negra, que, como é sabido, vem sofrendo uma
vitimização tão alarmante a ponto de o Estado brasileiro assumir o
genocídio da juventude negra nesses termos (Waiselfisz, 2014), os
números não são menos alarmantes. Enquanto o número de vítimas
jovens brancas cai em 32,3%, o número de vítimas jovens negras
aumenta em 32,4% [...] (Dossiê Rede Afro LGBT, 2016, p.13).
É importante enfatizar novamente que a população de mulheres transexuais e
travestis no Brasil está entre os grupos de maior vulnerabilização e, atualmente, segundo
dados da ONG Transgender Europe é o país que mais mata pessoas trans no Planeta.
Além disso, é importante tornar nítido que as pessoas negras e racializadas compõe o
grupo de trabalhadores com menor concentração de rendimento entre todos os
trabalhados. Destacamos que, de acordo com o último censo oficial, a população
brasileira que se autodeclarava negra (grupo formado por pretos e pardos) representa 55%
do contingente populacional. Estamos falando, portanto, que a população negra é a
maioria no Brasil e é a que mais sofre com a falta de oportunidades e com a desigualdade
social. Inclusive, no que diz respeito à violação dos direitos e da vida de crianças e
adolescentes. Trazemos aqui alguns dados, para materializar o que estamos tratando:
Figura 1 - Taxa de analfabetismo: 4,2% entre as pessoas brancas e 9,9% entre as pretas e pardas (PNAD 2018);
Figura 2 - Das 1835 crianças de 5 a 17 anos que trabalhavam em 2016, 35,9% delas eram brancas e 64,1% eram
pretas ou pardas (PNAD, 2016);
Esses gráficos, são apenas algumas amostras da assimetria entre negros e não
negros no Brasil como efeito colateral de uma política colonial histórica e ressonâncias
estruturais de um capitalismo selvagem. Diante desse panorama, há dois elementos que
precisam ser discutidos e que produzem ressonâncias diretas nas dinâmicas do acordo.
Primeiramente das fragilidades das instituições democráticas brasileiras, no cumprimento
de leis, fiscalização e aplicação dos tratados internacionais que o Brasil assinou e se
comprometeu a cumprir. Em outras palavras, a permissividade do estado e a omissão a
temas e garantias humanas relevantes com aval do estado numa grande dinâmica de
poder. E, vinculado a isto, a garantia de proteção dos defensores de direitos humanos. A
atual configuração política tem acirrado processos de perseguição e assassinatos de
defensores de direitos humanos. Eu, uma pesquisadora e ativista dos direitos humanos,
estou sendo processada pela Justiça Militar Brasileira por ter questionado o abuso de
poder de um militar, por exemplo.
A responsabilidade, portanto, recai sobre o colo europeu. Ela passa a ser
especialmente europeia, não apenas para criar rotas de fuga à guerra comercial entre
Estados Unidos e China, mas, sobretudo, na medida em que aceitar esse acordo a torna
imediatamente numa amoladora de facas. Passa a ocupar o lugar daqueles que não se
importam com o sangue que escorre, com as feridas sociais abertas, ao contrário, opera
pela manutenção das políticas coloniais que ignoram o direito fundamental à vida. Se a
União Europeia é contra o genocídio do povo judeu e rechaça o nazismo, ela não pode
Figura 3 - Taxa de desocupação: 9,5% entre as pessoas brancas, 14,1% entre as pardas e 14,4% entre as pretas
(PNAD, 2016).
fazer vista grossa ao genocídio da população negra e tão pouco se vincular ao sadismo de
Bolsonaro e os capatazes da fazenda colonial tropical.