por uma estética da restituição - vale

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VALE, Alexandre Fleming Câmara. Por uma estética da restituição: notas sobre o uso do vídeo na pesquisa antropológica. Tessituras, Pelotas, v. 2, n. 2, p. 162-200, jul./dez. 2014. POR UMA ESTÉTICA DA RESTITUIÇÃO: notas sobre o uso do vídeo na pesquisa antropológica Alexandre Fleming Câmara Vale 1 Resumo: Neste artigo viso refletir acerca de algumas das consequências heurísticas, éticas e políticas da implicação epistemológica do vídeo no trabalho antropológico de campo. Partindo de três experiências pessoais de pesquisa em antropologia visual, indago pela maneira como, no âmbito de uma antropologia da restituição, somos constantemente interpelados em relação a questão da intersubjetividade, da autoria e dos afetos no processo de realização documental. Palavras-chave: Antropologia da restituição; estética; filme etnográfico; autoria. Abstract: This paper intend to unveil some of the heuristic, ethical and political consequences of the epistemological implications on the use of video for anthropological fieldwork. Taking as a point of depart three personal experiences in visual anthropology, it seeks to reflect on the ways fieldworkers, dealing with anthropology of restitution, are constantly demanded to question themselves about intersubjectivity, authorship and affects during filmmaking process. Keyswords: Anthropology or restitution; aesthetics; ethnographic film; authorship. Ao longo de minha trajetória como pesquisador, pensar conjuntamente a etnografia e o registro imagético vem apontando para intercâmbios inusitados, achados não convencionais de campo e uma grande 1 Professor no Departamento de Ciências Sociais e no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará. Doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará. E-mail: [email protected] .

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  • VALE, Alexandre Fleming Cmara. Por uma esttica da restituio: notas sobre o uso do vdeo na pesquisa antropolgica. Tessituras, Pelotas, v. 2, n. 2, p. 162-200, jul./dez. 2014.

    POR UMA ESTTICA DA RESTITUIO: notas sobre o uso do vdeo

    na pesquisa antropolgica

    Alexandre Fleming Cmara Vale1

    Resumo: Neste artigo viso refletir acerca de algumas das consequncias heursticas, ticas e polticas da implicao epistemolgica do vdeo no trabalho antropolgico de campo. Partindo de trs experincias pessoais de pesquisa em antropologia visual, indago pela maneira como, no mbito de uma antropologia da restituio, somos constantemente interpelados em relao a questo da intersubjetividade, da autoria e dos afetos no processo de realizao documental. Palavras-chave: Antropologia da restituio; esttica; filme etnogrfico; autoria.

    Abstract: This paper intend to unveil some of the heuristic, ethical and political consequences of the epistemological implications on the use of video for anthropological fieldwork. Taking as a point of depart three personal experiences in visual anthropology, it seeks to reflect on the ways fieldworkers, dealing with anthropology of restitution, are constantly demanded to question themselves about intersubjectivity, authorship and affects during filmmaking process. Keyswords: Anthropology or restitution; aesthetics; ethnographic film; authorship.

    Ao longo de minha trajetria como pesquisador, pensar

    conjuntamente a etnografia e o registro imagtico vem apontando para

    intercmbios inusitados, achados no convencionais de campo e uma grande

    1 Professor no Departamento de Cincias Sociais e no Programa de Ps-Graduao em

    Sociologia da Universidade Federal do Cear. Doutor em Sociologia pela Universidade

    Federal do Cear. E-mail: [email protected] .

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    Tessituras

    VALE, Alexandre Fleming Cmara. Por uma esttica da restituio: notas sobre o uso do vdeo na pesquisa antropolgica. Tessituras, Pelotas, v. 2, n. 2, p. 162-200, jul./dez. 2014.

    revitalizao na maneira tradicional de vivenciar a experincia do trabalho

    de pesquisa, especialmente quando analisados luz da problemtica da

    restituio em antropologia. Levando-se em conta que etnografias so, ao

    mesmo tempo, semelhantes e distintas em relao s narrativas flmicas e

    que ambas encenam o processo de auto-modelagem ficcional (CLIFFORD,

    1998) em sistemas relacionais de cultura e linguagem que podem ser

    chamados de etnogrficos, parto aqui de trs de minhas experincias de

    pesquisas (desenvolvidas, respectivamente, no mestrado, no doutorado e no

    ps-doutorado) que transformaram-se em documentrios, tambm

    realizados por mim.

    A partir dessas experincias, busco refletir sobre algumas das

    consequncias heursticas, ticas e polticas da implicao epistemolgica do

    vdeo no trabalho antropolgico de campo, indagando pela maneira como, no

    mbito de uma antropologia da restituio2, somos interpelados em relao

    questo da intersubjetividade, da autoria e dos afetos no processo de

    realizao documental. Se Geertz (2001) est correto ao se referir ao

    trabalho de campo como uma experincia completa, seria possvel pensar

    que tal experincia teria mais chances de atingir sua maturidade quando

    mediada pela experincia esttica do processo documental, pensado em

    termos da restituio antropolgica? Poder-se-ia, ainda, pensar que nas

    discusses em torno do lugar situado (poltica de posio) daquele que

    2 A pesquisa colaborativa e a restituio de dados etnogrficos constituem dois processos

    que emergiram em resposta s exigncias ticas e polticas do processo de pesquisa, na

    esteira dos debates tericos sobre a crise da representao em antropologia (CLIFFORD e

    MARCUS, 1986). O mtodo colaborativo tornou-se uma condio incontornvel da

    antropologia acadmica e aplicada. Ele tem contribudo de forma decisiva para a

    multiplicao de projetos de restituio de dados etnogrficos, auxiliado pelo acesso

    crescente s tecnologias da informao e da comunicao. Esse processo, essencialmente

    dialgico e participativo, que envolve estratgias discursivas de identificao de

    problemticas de pesquisas e a devoluo de achados etnogrficos (vistos como objetos de saber) na forma de textos, imagens, sons ou vdeos numricos, constituem o interesse central de uma antropologia da restituio (DE LARGY HEALY, 2011). Na Frana, o

    trabalho de Franoise Zonaben (1994), De lobjet de la restitution en anthropologie considerado como um dos textos fundadores dessa discusso, seguido pelo trabalho de

    Bertrand Bergier (2000), Repres pour une restitution des rsultats de la recherche en

    sciences sociales. Intrts et limites. No Brasil, o empenho na construo de uma

    antropologia colaborativa e da restituio tem sido uma marca nos trabalhos vinculados

    antropologia visual.

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    VALE, Alexandre Fleming Cmara. Por uma esttica da restituio: notas sobre o uso do vdeo na pesquisa antropolgica. Tessituras, Pelotas, v. 2, n. 2, p. 162-200, jul./dez. 2014.

    descreve culturas, a construo da empatia e o controle das transferncias -

    fundamentais para o encontro etnogrfico - ganhem contornos meta-

    reflexivos quando mediados pelos procedimentos e processos compartilhados

    de fabricao das imagens?

    As pesquisas acima mencionadas envolveram atividades ligadas

    marginalizao e estigmatizao sociais, em contextos de sexualidade

    (MALINOWSKI, 1980) dissidentes, e tiveram como personagens principais

    travestis, transexuais e transgneros, algumas delas vivendo da prestao

    de servios sexuais. A primeira, publicada com o ttulo No escurinho do

    cinema: cenas de um pblico implcito (VALE, 2000) tratava da realidade

    cotidiana de pessoas trans em um cinema para a exibio de filmes

    pornogrficos no centro da cidade de Fortaleza. Essa pesquisa deu lugar ao

    documentrio Cinema Caradura (VALE, 2009) 3, realizado alguns anos

    depois. A produo desse documentrio constituiu um primeiro esforo nesse

    trnsito entre o regime das palavras e o regime das imagens. Essa passagem

    reforou em mim a compreenso do status modelado e contingente de todas

    as descries culturais e de todos aqueles que descrevem culturas; ela

    tambm permitiu-me iniciar o processo de reconfigurao da centralidade da

    escrita em relao s imagens, tornando possvel a compreenso de que,

    para alm de um mero trnsito ou comparao entre regimes semiticos

    distintos4, o milagre da cmera pode nos levar para outro mundo.

    A segunda pesquisa, O Voo da beleza: experincia trans e migrao

    (VALE, 2013), abordou a experincia migratria de pessoas transgnero

    brasileiras para a Europa. Ela foi fruto de um trabalho de campo de longa

    3 Acessvel em: http://www.youtube.com/watch?v=7FFn8ii6b0M . 4 Referindo-se a uma problemtica comparabilidade entre discurso textual e discurso imagtico, Gonalves (2008, p. 124-127) sugere que as imagens, mesmo que no possam ser vistas como opostas s palavras, devem ser pensadas em sua produtividade e agenciamento

    prprios. Nesse sentido, a escrita no pode simplesmente transitar para a imagem, restringindo-se a expor algo j conhecido e tomando como base os processos literrios. O

    agenciamento imagtico , antes, da ordem da explorao e da descoberta, encadeia

    procedimentos do sonho e do devaneio. As ideias de exposio e da explorao, pensadas em

    termos de rituais metodolgicos especficos na construo de um filme, apresentam-se como chaves de leitura privilegiadas para refletir acerca das imbricadas relaes entre imagem e escrita (GONALVES, 2008, p. 124-127).

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    VALE, Alexandre Fleming Cmara. Por uma esttica da restituio: notas sobre o uso do vdeo na pesquisa antropolgica. Tessituras, Pelotas, v. 2, n. 2, p. 162-200, jul./dez. 2014.

    durao (primeiro trabalho de campo realizado no perodo de 2000 a 2003,

    com visitaes em 2005, 2007, 2009 e a coleta das imagens em 2010)

    realizado em trs lugares especficos: na sede da associao Preveno,

    Ao, Sade e Trabalho para as Transgneros (PASTT)5, em um prdio

    residencial localizado em um subrbio parisiense habitado exclusivamente

    por pessoas trans e no Bois de Boulogne, uma tradicional zona de

    prostituio da capital francesa, utilizada como local de trabalho por

    algumas das pessoas entrevistadas. Essa pesquisa deu lugar ao

    documentrio de mesmo nome, O Voo da Beleza6, expresso nativa ou

    mica utilizada pelas trans para expressar, paradoxalmente, o momento em

    que so deportadas da Europa por serem imigrantes ilegais.

    Em ambas as pesquisas, a utilizao da cmera ocorreu muito tempo

    depois de finalizado o trabalho de campo, em momentos pontuais. A

    experincia de realizao de O Voo da Beleza, entretanto, ganhou novos

    contornos quando regressei para a Frana no incio de 2013, com o intuito de

    realizar um ps-doutorado. Ela deu lugar a uma intensa experimentao

    imagtica. Isso significou reconfigurar o processo flmico (uma nova edio e

    novos achados), seguindo algumas indicaes da antropologia da restituio

    e dos ensinamentos adquiridos nas aulas prticas e tericas do Centro

    Granada de Antropologia Visual7. Retomei ento o trabalho de campo com

    as trans que haviam participado do filme, agora com a uma Canon XA20 em

    5 O PASTT uma associao franco-brasileira fundada e dirigida por Camille Cabral,

    transexual e mdica paraibana que reside em Paris desde a dcada de 80. O PASTT possui

    um micro-nibus para realizao das noitadas de preveno. 6 Acessvel em: http://www.youtube.com/watch?v=ZgVNsRPhfPo . 7 Durante a realizao de meu ps-doutorado na Frana, em 2013, tive a oportunidade de

    me deslocar para a Inglaterra e realizar o mdulo intensivo do curso Filmmaking for

    Fieldwork, realizado pelo Centro Granada e Antropologia Visual, da Universidade de

    Manchester. Esse curso, idealizado e ministrado pela equipe de Paul Henley, abriu vrias

    vias de reflexo sobre a esttica do filme e seus desdobramentos ticos e metodolgicos. A

    orientao do Centro Granada mescla a epistemologia relativa ao cinema observacional de

    Paul Henley e David MacDougall e a provocao jocosa ao Cinema Verit de Jean Rouch.

    Guiada pela busca de um equilbrio entre o regime das palavras e o regime das imagens, tal orientao aposta na possibilidade de que o antroplogo venha a apreender, simtrica e

    horizontalmente, a viso de mundo de seus interlocutores por meio de um trabalho de

    cmera suave, paciente e examinador. Nessa experincia, tanto a cronologia dos eventos,

    quanto intensidade e qualidade das relaes entre antroplogos e interlocutores, pautadas

    pela experincia do vivido, devem compor a narrativa editorial.

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    Tessituras

    VALE, Alexandre Fleming Cmara. Por uma esttica da restituio: notas sobre o uso do vdeo na pesquisa antropolgica. Tessituras, Pelotas, v. 2, n. 2, p. 162-200, jul./dez. 2014.

    mos. Coletei um novo material a partir de uma experincia compartilhada

    de recepo e apropriao de O Voo da Beleza, em sesses de visionamento

    individual e coletivo do filme e de alguns rushes do material que estava

    coletando para um novo documentrio, Dom e Beleza, ainda em andamento.

    Se, nas experincias preliminares com as imagens, o milagre da

    cmera, ainda encontrava-se marcado pelo encantamento apressado em

    relao potncia, sutileza, e originalidade das imagens em comparao

    com as palavras, em Dom e Beleza, a compreenso dessa especificidade da

    imagem passou a operar de forma mais consistente. Lembro aqui algumas

    palavras de Francis Flaherty, parceira e colaboradora de Robert Flaherty

    que, em uma prosa potica e profunda, oferece indicaes para pensar o

    sentido dessa relao entre as palavras e as imagens. Falando sobre os

    filmes realizados por ela e seu marido, ela dizia:

    ....era todo um processo puramente visual que no tinha nada

    a ver com palavras, estava alm de qualquer palavra. O olhar

    rpido e as palavras so lentas. O olhar imediato e as

    palavras so mediadas. Olhar completo e as as palavras so

    divididas. Essas duas coisas, palavra e olhar, tm ritmos

    diferentes e pertencem a mundos diferentes. E o milagre da

    cmera que ela pode nos levar para fora do mundo verbal,

    para outro mundo. Fora do mundo dos muitos sentidos, para o mundo de um nico sentido. Fora de um mundo no qual nos

    complicamos, embaralhamos e foramos as palavras, para um

    mundo mais claro, calmo e completo, onde a alma faz sua

    morada e descansa. A poesia sabe melhor sobre isso, o que

    essa barreira entre esses dois mundos que se busca superar e

    que no pode ser superada apenas por palavras (FLAHERTY,

    1960, apud GONALVES, 2008, p. 37).

    Descobri a posteriori o quo prejudicial a supervalorizao da escrita

    havia sido para a realizao dos filmes Cinema Caradura e O Voo da Beleza.

    Mas, como lembrou Claudine de France (1998, p. 315), no se apagam em

    um dia dois mil anos de supremacia de uma economia da expresso

    fundamentada na unidade indissocivel entre observao direta e escrita8.

    8 Claudine de France destaca dois rituais metodolgicos que marcam a histria do filme etnogrfico. Um deles consiste em utilizar o filme como meio de exposio de resultados

    obtidos com a ajuda de recursos extracinematogrficos, como a observao direta e dados

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    Tessituras

    VALE, Alexandre Fleming Cmara. Por uma esttica da restituio: notas sobre o uso do vdeo na pesquisa antropolgica. Tessituras, Pelotas, v. 2, n. 2, p. 162-200, jul./dez. 2014.

    Em Dom e Beleza, no entanto, o uso da cmera esteve presente desde o

    incio do trabalho de campo, de forma orgnica, interessada, ldica e, por

    vezes, atrapalhada. A escolha de seu ttulo, especialmente no que tange ao

    dom ou ddiva, indica o empenho em pensar a produo imagtica em

    antropologia como uma espcie de arena de dons e contra-dons audiovisuais,

    onde os efeitos de liberdade e de misria do processo migratrio e das

    experincias trans, apresentados em o Voo da Beleza, pudessem ser

    circunscritos a partir dos discursos de acompanhamento dessas imagens,

    devidamente restitudas e dialogicamente vivenciadas.

    A ideia da restituio demarca assim uma distino qualitativa em

    relao a termos como difuso", propagao" ou transmisso", no que se

    refere circulao do conhecimento no processo de pesquisa antropolgica

    (SCHURMANS, CHARMILLOT e DAYER, 2014). Restituio sinaliza aqui

    para a revitalizao da experincia colaborativa de pesquisa, prpria do

    filme exploratrio, sugerindo a renovao de um questionamento tico,

    epistemolgico e prtico no que tange ao conhecimento gerado pelo trabalho

    de campo e ao uso que dele feito, tanto pelo/a antroplogo/a, quanto por

    seus/suas interlocutores/as. Ao contrrio de uma perspectiva vertical e

    hierrquica do conhecimento, a ideia de restituio aposta na

    horizontalidade das relaes, no no sentido de uma idealizao do

    interlocutor/a "em vias de se tornar antroplogo/a", mas no sentido do

    reconhecimento do valor de uma produo coletiva e compartilhada de

    saberes.

    Nesses processos de restituio, a utilizao das imagens no

    prescinde de uma reflexo crtica acerca do lugar que ocupa aquele que se

    coletados na entrevista oral. Tal ritual d lugar ao que denomina de filme de exposio, no qual o valor atribudo pesquisa previa superestimado. Mesmo reconhecendo que tais

    filmes possam ter mritos incontestveis, seus inconvenientes so tributrios da longa e pujante hegemonia do binmio formado pela observao direta (imediata e no-

    instrumentalizada pela cmera) e pela escrita. Sua economia de expresso baseia-se muito mais no reconhecimento e na exposio de algo j conhecido do que na descoberta sui

    generis ou desvelamento do real com a cmera. Essas ltimas caractersticas seriam

    prprias do segundo tipo de ritual metodolgico destacado pela autora, cujo resultado seria

    o filme de explorao (DE FRANCE, 1998, p. 305-310).

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    Tessituras

    VALE, Alexandre Fleming Cmara. Por uma esttica da restituio: notas sobre o uso do vdeo na pesquisa antropolgica. Tessituras, Pelotas, v. 2, n. 2, p. 162-200, jul./dez. 2014.

    apropria do material flmico. MacDougall (1998) prope uma viso

    diferenciada em relao aos realizadores que enxergam a produo

    audiovisual como uma maneira de retirar algo das pessoas concernidas no

    processo flmico, como fonte de controle e poder. Mesmo que tal perspectiva

    de extrao do conhecimento no esteja ausente de sua proposta de

    abordagem do processo de filmagem, ele entende tal experincia como

    proposio, aprendizado, provocao e partilha: como horizontalidade

    dialgica que opera no registro da interlocuo e no da passividade do outro

    tomado como mero informante. Essa atitude, reforada pela ideia de que

    nesse processo est implcito um tipo de aprendizado que habilita o

    antroplogo a ser ensinado pelas circunstncias enquanto partilha delas,

    distingue, por exemplo, a produo de um filme etnogrfico do documentrio

    (TORRESAN, 2014).

    Uma vez que as imagens no existem como mera ilustrao de um

    roteiro previamente estabelecido e controlvel, o etngrafo visual aposta na

    construo de virtualidades estticas que, por serem construdas

    coletivamente, incorporam a eficcia imagtica do dilogo, cultivado na

    horizontalidade e simetria das relaes culturais e afetivas a partir de onde

    tece as figuraes do vivido. Em Significado e Ser, MacDougall, diz:

    Ao fazer filmes, estamos constantemente avanando nossas

    prprias ideias sobre um mundo cuja existncia no deve

    nada a ns. Em filmes de fico, bem como em filmes de no

    fico, usamos materiais encontrados nesse mundo. Ns os modelamos em redes de significao, mas dentro dessas

    redes somos pegos por relances de existncia mais

    inesperados e poderosos do que qualquer coisa que

    pudssemos criar. (...) Um bom filme reflete o jogo entre o

    significado e o ser, e seus significados levam em conta a

    autonomia do ser (Macdougall, 2009, p. 65).

    Falar em autonomia do ser no significa romantizar as experincias

    de campo ou transformar a figurao antropolgica em um panfleto. Ao

    pensar a textualizao antropolgica ou a representao flmica, deve-se

    levar em conta que estamos lidando com textos e imagens especialmente

    negociadas em processos de restituio que implicam, segundo Marcus

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    Tessituras

    VALE, Alexandre Fleming Cmara. Por uma esttica da restituio: notas sobre o uso do vdeo na pesquisa antropolgica. Tessituras, Pelotas, v. 2, n. 2, p. 162-200, jul./dez. 2014.

    (2009), em colaboraes comprometidas e entendimentos de imaginrios

    em suas consequncias. Talvez Geertz (2001) tenha razo ao dizer que

    numa pesquisa de campo uma fico (no uma falsidade) o fato de que

    ns e eles/as somos membros de uma mesma comunidade moral, mas tal

    fato no impede, pelo menos no deveria impedir, a possibilidade de que

    pudssemos estabelecer um dilogo com em vez de um discurso sobre

    suas experincias e modos de vida. Essa ideia de que no fazemos parte da

    mesma comunidade moral e da ironia que suscita, diz Geertz,

    est no corao da pesquisa antropolgica de campo bem

    sucedida e reconhecer a tenso moral e a ambiguidade tica

    implcitas no encontro antroplogo/informante, e ainda assim

    ser capaz de dissip-la atravs das prprias aes e atitudes,

    o que tal encontro exige de ambas as partes para ser

    autntico e efetivamente ocorrer (GEERTZ, 2001, p. 43).

    E descobrir isso, continua Geertz,

    descobrir tambm algo muito complicado e no

    inteiramente claro sobre a natureza da sinceridade e da

    insinceridade, da autenticidade e da hipocrisia, da

    honestidade e da auto-iluso. O trabalho de campo uma

    experincia completa. O difcil decidir o que foi aprendido

    (GEERTZ, 2001, p. 43).

    Nesse sentido, o trabalho de campo e o processo flmico - pensados

    fundamentalmente como processo de aprendizagens recprocas -, no

    existem como abstraes, no existem sem sujeitos concretos em situaes

    sociais especficas, com os quais compartilhamos experincias, identificaes

    e vivncias. O fato de que o uso de uma cmera no trabalho de campo deve

    ser pensado como catalizador de relaes e no como um mero instrumento

    de coleta de material emprico, implica tambm que sua introduo no

    contexto de uma pesquisa dependente de uma srie de fatores e no pode

    se dar de forma irrefletida. O resultado desse trabalho no apenas

    intensifica a dimenso tica das experincias de pesquisa - na medida

    tambm em que o registro visual possui um alcance mais amplo do que o

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    Tessituras

    VALE, Alexandre Fleming Cmara. Por uma esttica da restituio: notas sobre o uso do vdeo na pesquisa antropolgica. Tessituras, Pelotas, v. 2, n. 2, p. 162-200, jul./dez. 2014.

    registro escrito -, mas atua como mediao privilegiada no conhecimento da

    experincia subjetiva de nossos/nossas interlocutores/as.

    Infelizmente, ou felizmente, no h prescries ou frmulas para a

    forma com a qual a cmera poder proporcionar o tipo de aprendizado

    exigido pela prtica da antropologia visual. Cada contexto de pesquisa

    tributrio de relaes de poder e dominao que lhe prprio, dialoga com

    as instncias da lei e da ordenao social e supe a habilidade do

    pesquisador em fazer valer a identificao transcultural que o processo de

    empatia supe; ao mesmo tempo em que exige dele ou dela uma constante

    vigilncia crtica em torno do que ser figurado nas imagens. O ideal que

    os interlocutores participem em todos os momentos da produo do trabalho,

    opinando sobre a representao que pretendem dar de si prprios.

    Entretanto, dependendo do contexto da pesquisa, essa participao no

    possvel, nem desejada. Foi o que aconteceu, por exemplo, no momento da

    realizao de Cinema Caradura, documentrio pensado a partir da

    observao etnogrfica vivenciada em uma sala de cinema para a exibio

    de filmes pornogrficos no centro da cidade de Fortaleza.

    No escurinho do cinema...

    Ao realizar uma etnografia de prticas sexuais no interior de um

    cinquentenrio cinema local, o Cine Jangada, busquei salientar as condies

    de existncia e constituio daquele espao sociocultural, enfatizando a

    interao cotidiana com os espectadores-atores daquele pblico ou daquela

    plateia que, heterognea em grupos, prticas e motivaes, se identificava

    por uma conjuno especfica comum que se referia, num primeiro momento,

    recepo de um produto feito para excitar, num espao simultaneamente

    legtimo e liminar. Essa conjuno, em parte, identificava esses

    espectadores que, no geral, estavam ali para tomar parte em um ritual

    especfico, no escuro, no anonimato, no silncio, na efemeridade ou

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    Tessituras

    VALE, Alexandre Fleming Cmara. Por uma esttica da restituio: notas sobre o uso do vdeo na pesquisa antropolgica. Tessituras, Pelotas, v. 2, n. 2, p. 162-200, jul./dez. 2014.

    impessoalidade de um encontro episdico. Obviamente que em tal contexto,

    como se ver na descrio a seguir9, a utilizao de uma cmera seria

    invivel e suspeita. Na poca dessa pesquisa, meu interesse no havia

    enveredado pela antropologia visual e a possibilidade de me utilizar do texto

    escrito para a elaborao de um roteiro de documentrio s surgiria alguns

    anos depois.

    A socialidade daquele espao se fazia jogo social10, no sentido de que

    uma infinidade de atos constitutivos de rituais j estavam postos em

    estado de possibilidades e exigncias objetivas. Qualquer um que entrasse

    naquele cinema saberia que s usuais exigncias de compartilhar o

    escurinho de uma sala de exibio, somar-se-iam outras. Essas exigncias,

    as coaes que lhes eram correlatas e os registros categoriais e

    classificatrios que tinham lugar ali dentro impunham-se queles que, por

    terem o sentido do jogo daquela plateia, estavam preparados para receb-

    las e realiz-las. O jogo metfora que se utiliza para dizer que o mundo

    social composto de lutas macro e micropolticas no cinema, guardava

    suas particularidades: a entrada no Jangada envolvia um tipo de clculo e

    planejamento, uma noo, culturalmente situada de riscos e perdas; aquela

    plateia se identificava por uma conjuno comum, mas ao mesmo tempo no

    queria que isso fosse explicitamente partilhado, pois estaria sujeito luz do

    dia, depois do escurinho urbano do Jangada.

    9 Para escrever sobre as experincias de pesquisa envolvidas na presente reflexo, lancei

    mo de trechos j escritos, tanto em No Escurinho do Cinema: cenas de um pblico

    implcito (VALE, 2000), quanto em O Voo da Beleza: experincia trans e migrao (VALE,

    2013). Eles foram, em certa medida, re-inscritos em funo da problemtica proposta neste

    artigo. 10 A noo de jogo social pensada aqui a partir da sociologia reflexiva de Pierre Bourdieu. O jogo ou o sentido do jogo, nesse autor, supe uma teoria da ao social segundo a qual os agentes no so transformados em simples epifenmenos da estrutura.

    A ao, diz Bourdieu, no a simples execuo de uma regra, a obedincia a uma regra. Os agentes sociais, tanto nas sociedades arcaicas como nas nossas, no so autmatos

    regulados como relgios, segundo leis mecnicas que lhes escapam. Nos jogos mais

    complexos as trocas matrimoniais, por exemplo, ou as prticas rituais , eles investem os princpios incorporados de um habitus gerador: esse sistema de disposies adquiridas pela

    experincia, logo variveis segundo o lugar e o momento. Esse sentido do jogo o que permite gerar uma infinidade de lances adaptados infinidade de situaes possveis, que nenhuma regra, por mais complexa que seja, pode prever (BOURDIEU, 1990, p. 21).

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    Tessituras

    VALE, Alexandre Fleming Cmara. Por uma esttica da restituio: notas sobre o uso do vdeo na pesquisa antropolgica. Tessituras, Pelotas, v. 2, n. 2, p. 162-200, jul./dez. 2014.

    Naquela sala de exibio, a comunho das imagens - dado o efeito de

    realidade que proporcionava a seus espectadores -, remetia possibilidade

    de comung-las interativamente, ou ento acompanhar seus efeitos na

    plateia. No Jangada, o argumento de uma troca econmica desinteressada,

    instrumentalmente legtima, dissimulava o leque sem fim de possibilidades

    que os atores sociais esperavam encontrar ao entrar no cinema, e o intervalo

    temporal entre a compra do ingresso e o recebimento do produto veiculado

    pela tela inclua outras expectativas, ancoradas na ambiguidade que a

    entrada naquele cinema suscitava: um cinema socialmente classificado de

    cinema de viados, mas que s exibia filmes hetero-direcionados.

    No claro-escuro do Jangada, a socialidade inter-ditada nos corpos se

    vivenciava na possibilidade de pr em prtica tcnicas corporais tidas

    como indesejveis do ponto de vista moral. O claro da tela,

    institucionalmente assegurado pela rede de produo de bens e servios do

    mercado sexual, iluminava a difusa, espetacular e subterrnea comunho

    das imagens na plateia. Tudo se passava como se dois espetculos

    acontecessem simultaneamente: cenas de um pblico implcito fervilhavam

    diante da explicitude das cenas na tela. No estar juntos dos espectadores

    em questo, o mistrio a ser decifrado estava inscrito na carne; na carne que

    triunfa no carnaval, transposio da ambgua cultura sexual brasileira,

    onde entre quatro paredes tudo possvel. Na plateia, homos, heteros,

    bis e trans numa grande nebulosa de gneros, onde tudo, ou quase tudo

    podia acontecer.

    No cinema, o sentimento da transgresso que revelava o prazer estava

    intrinsecamente relacionado proibio e exposio do obsceno (aquilo que

    est fora de cena), tanto na tela como na plateia, e operava como uma

    celebrao do prazer que, preso nas carapuas da interdio, se libertava na

    forma da transgresso. No por mero acaso que a entrada no cinema

    envolvia a adoo de um pseudnimo, um nome falso, como garantia de

    sigilo. Anonimato, proibio e transgresso constituam os pilares da

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    Tessituras

    VALE, Alexandre Fleming Cmara. Por uma esttica da restituio: notas sobre o uso do vdeo na pesquisa antropolgica. Tessituras, Pelotas, v. 2, n. 2, p. 162-200, jul./dez. 2014.

    socialidade que tinha lugar naquela sala de exibio, guiados pela

    iconografia daquilo que usualmente no se apresenta na vida cotidiana.

    Associada aos gestos, aliava-se a ateno especial em relao posio

    e movimentao dos espectadores na sala de exibio. Na medida em que o

    fluxo narrativo do porn intensificava seus nmeros, a mobilidade no

    interior da sala aumentava. A percepo do espao se voltava ento para a

    busca do encontro, para a efetivao das demandas suscitadas a partir das

    imagens e do estar juntos no cinema. Nesse sentido, estar sentado nas

    primeiras filas, circulando nas laterais das cadeiras, ficar em p no final da

    sala, estar no ptio ou no banheiro era subjetivamente decodificado em

    termos de prticas e possibilidades.

    O cinema tambm era palco e camarim das travestis (na poca elas

    se auto-definiam assim). A mudana de nome, usual entre os outros

    espectadores, agora no estava articulada apenas ao sigilo e ao anonimato,

    mas a uma mudana na aparncia e no prprio corpo. Nessas espectadoras-

    atrizes, o cinema encontrava um espetculo parte. Parodiando a

    feminilidade ou reinventando o feminino, algumas travestis faziam vida

    (prostituio) e, em funo da concorrncia ou da falta de clientes,

    reclamavam quando tinha muita bicha na plateia. Na hiper-realidade de

    suas performances, algumas diziam-se mais mulheres do que as mulheres,

    melhores que as atrizes. Numa invocao simultaneamente icnica e

    irnica, apaixonadas por seduzir a partir dos signos que ritualizavam, elas

    transcodificavam os jogos do sexo num jogo total, gestual, sensual, segundo

    o qual, naquele espao, tudo era maquiagem, teatro e seduo.

    Ali elas encontraram um espao, no s para a prostituio, mas

    tambm um espao de sociabilidade onde, mesmo com a concorrncia e

    conflitos inerentes atividade que desenvolviam, podiam desfrutar, na

    legitimidade de uma transgresso organizada (BATAILLE, 1987), laos de

    amizade e solidariedade. Contrastivamente, em relao a uma plateia

    silenciosa e submetida ao anonimato, as travestis se distinguiam ao lanar

    mo no s da fala, mas do riso, da brincadeira, da jocosidade. Se, no

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    Tessituras

    VALE, Alexandre Fleming Cmara. Por uma esttica da restituio: notas sobre o uso do vdeo na pesquisa antropolgica. Tessituras, Pelotas, v. 2, n. 2, p. 162-200, jul./dez. 2014.

    cinema, o sexo era o mana, e os signos do sexo, o capital simblico em torno

    do qual giravam as codificaes daquele espao-territrio, as travestis,

    melhor do que ningum, sabiam lanar mo de seu corpo para

    transubstancializar o sexo em signos, transformando, como elas diziam, o

    cinema em teatro, camarim, terreiro, casa, rua, alpendre.

    Com as travestis, a sala realizava assim o paradoxo de socialidade e

    anonimato, fantasia e realidade. A sala virava alegoria da travesti, daquela

    que aparentemente se faz passar por outra, que joga com a dubiedade de

    papis, interstcio, mutao. E como alegoria que se caracteriza

    justamente por ser uma forma figurada de um pensamento, uma coisa

    representando de fato outra, uma metfora ou, ainda, um certo elemento da

    narrativa que se remete simbolicamente ao conjunto no qual est inserido ,

    a noo de plateia modificava-se, porque o tela (espectador) ali era tambm

    protagonista e fazia sua entrada em cena.

    O escuro ali era, lembrando Barthes (1980), a cor de um erotismo

    difuso e annimo. Mas seria esse escuro e essa transgresso o monoplio de

    pessoas homo-direcionadas? Qual o sentido de figurar aquela experincia em

    um documentrio e quais seriam os ganhos disso para uma experincia

    poltica do sexual? No seria um investimento fadado ao exotismo voyeur de

    um filme jornalstico? Quando me dispus a filmar o Escurinho do Cinema,

    cheguei a sondar dois ou trs frequentadores usuais da sala para uma

    entrevista, mas nunca acreditei que tal empreitada fosse possvel. O

    anonimato, o silncio, a impessoalidade e uma socialidade do tipo o corpo

    contra a palavra eram as reivindicaes mais presentes ali dentro. Tratava-

    se de um escuro sobre-codificado, e, de maneira geral, as pessoas que

    frequentavam o cinema eram patologizadas pelo mundo heteronormativo

    (BUTLER, 2004) como pervertidas ou doentes sexuais. Tudo se passava

    como se heterossexuais jamais tivessem utilizado o escurinho do cinema em

    suas prticas erticas e transgressivas. E no entanto, esse jogo ertico do

    proibido e do permitido em uma sala escura tinha sua gnese histrica no

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    Tessituras

    VALE, Alexandre Fleming Cmara. Por uma esttica da restituio: notas sobre o uso do vdeo na pesquisa antropolgica. Tessituras, Pelotas, v. 2, n. 2, p. 162-200, jul./dez. 2014.

    momento em que apareceu, no cenrio da cidade, esse novo espao

    sociocultural especfico denominado sala de exibio11.

    Conforme j foi destacado, quando pensei na realizao de um filme

    sobre a experincia no cinema, a pesquisa de campo j havia sido concluda.

    Eu me valia do trabalho escrito para selecionar os aspectos que considerava

    mais significativos daquela experincia. O filme era guiado pela palavra:

    partia dos achados de campo que eu e Simone Lima, que dirigiu o filme

    comigo, encontrvamos no texto. A dimenso diacrnica do trabalho,

    vinculada a uma pesquisa histrica em arquivos de jornais sobre os rituais

    do cinema, tomou a dianteira. A dimenso propriamente sincrnica da

    pesquisa, textualizada a partir de quase dois anos de observao

    observadora12 dos rituais cotidianos e das prticas sexuais no interior da

    sala, no poderia ser filmada por duas razes muito simples: primeiramente

    pela legtima reivindicao de anonimato em torno daquela socialidade e,

    11 Quando surgiram os filmes tidos como imorais, ainda na segunda dcada do sculo passado, fascinao e medo pairavam no ar: naquele espao annimo, povoado, numeroso e

    aglomerado, aquelas imagens poderiam corromper a mais perfeita ndole familiar e desembocar na constituio de verdadeiras escolas de perverso social. Em 1916, quando efetivamente tem incio a polmica em torno de filmes considerados indecentes ou imorais, os jornais locais davam vozes s crticas da Igreja e das distintas famlias fortalezenses, contra esses abusos do cinema. Em uma matria publicada pelo jornal Correio do Cear, editada em 30 de maio de 1916, esse jornal chamava a ateno do Grupo

    Severiano Ribeiro para as programaes de suas salas, reforando as crticas que no dia

    anterior haviam sido feitas por outro jornal, tambm local, acerca das exhibies indignas e das fitas altamente Immoraes, assim se posicionando: Secundamos o brado dos nossos collegas do Dirio do Estado que ainda hontem manifestaram o desagrado da famlia de Fortaleza, ante o procedimento daquela casa [Cine Polytheama], que se est transformando

    numa verdadeira escola de perverso social (Jornal Correio do Cear, Fortaleza, 30.5.16). 12 Lembro que, na poca em que foi realizada essa pesquisa, lancei mo desse conceito para

    demarcar minha opo metodolgica pela no participao nas prticas sexuais que

    aconteciam no interior do cinema. O conceito de observao observadora proposto por Massimo Canevacci, segundo o qual a observao no mais seria participante da ao, mas meta-observao, dizia ento, tem o mrito de acentuar a reflexividade do

    conhecimento sobre si mesmo, abrindo espao para se pensar, as interdies que o

    pesquisador deve se colocar para viabilizar uma pesquisa. Chamando a ateno para um

    tipo de observao que observa a si prprio como sujeito que observa o contexto, Canevacci sugere que para estabelecer os prprios fundamentos do mtodo, o pesquisador realiza em si prprio um doloroso esforo de estranhamento: olhar obliquamente o superconhecido [...]

    com a mesma ingenuidade com que se observa um panorama extico, com a mesma vontade

    de imerso nessa sedutora diferena. Mas tambm com a mesma seriedade com que se

    contempla uma obra de arte. Somente depois desta operao dupla seja no sentido numrico como no de ambivalncia (operao metodolgica e tambm psicolgico-

    comportamental) ser possvel passar fase mais criativa, a da interpretao, atravessando a opacidade da tela tornando-a transparente (CANEVACCI, 1993, p. 31).

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    Tessituras

    VALE, Alexandre Fleming Cmara. Por uma esttica da restituio: notas sobre o uso do vdeo na pesquisa antropolgica. Tessituras, Pelotas, v. 2, n. 2, p. 162-200, jul./dez. 2014.

    segundo, porque o cinema j havia fechado suas portas, dando lugar a um

    processo de reordenao da geografia social das salas de exibio na cidade

    de Fortaleza. No centro da cidade, a pornografia virou destino; as grandes

    salas que antes existiam, fecharam suas portas e migraram para os

    shopping centers. Esse processo foi o fio condutor de Cinema Caradura.

    Como no era possvel realizar o filme com os interlocutores com os

    quais eu havia convivido na sala, optamos por entrevistar cinfilos da cidade

    que falavam, de maneira jocosa e confortvel, de suas transgresses no

    escurinho do cinema. Eu lamentava deixar de fora do filme toda a riqueza

    etnogrfica da socialidade do Cine Jangada, especialmente concretizada nas

    performances de pessoas trans, que frequentavam cotidianamente o cinema.

    Ainda consegui incluir algumas falas de Dediane Souza, uma militante

    trans que falava da experincia das travestis no cinema, destacando que

    este ltimo, para elas, no era apenas um lugar de prostituio, mas um

    lugar seguro de convvio diurno, ou seja, uma convivncia construda como

    forma de resposta violncia sofrida por elas.

    Assim, ao abordar a realidade do cinema entrevistando respeitveis

    cinfilos e historiadores tidos como heterossexuais, ou envolvendo a histria

    do Cine Jangada na histria mais ampla das salas de cinema fortalezenses,

    com seus rituais e transgresses, imaginei estar contribuindo para uma

    equidade nas prticas, sugerindo a despatologizao e a desnaturalizao do

    escurinho urbano do Jangada como monoplio de pessoas homo-

    direcionadas. Cinema Caradura, como intitulamos o filme, estava longe de

    uma antropologia visual compartilhada. As imagens ainda no figuravam

    em minhas incurses antropolgicas no sentido da construo de um tipo de

    imagem-conhecimento na qual a dimenso intersubjetiva da pesquisa e o

    jogo ldico com a cmera atuassem como catalizadores de relaes e como

    prtica de engajamento reflexivo radical, no sentido, j referido aqui, de

    colaboraes comprometidas ou entendimentos imaginrios em suas

    consequncias. Essas questes surgiram de forma mais intensa a partir das

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    Tessituras

    VALE, Alexandre Fleming Cmara. Por uma esttica da restituio: notas sobre o uso do vdeo na pesquisa antropolgica. Tessituras, Pelotas, v. 2, n. 2, p. 162-200, jul./dez. 2014.

    experimentaes imagticas que tiveram lugar no momento da realizao de

    O Voo da Beleza.

    O Voo da Beleza: restituio e experincias compartilhadas

    Em dezembro de 1999, dois anos depois da pesquisa realizada no

    cinema, revi algumas das travestis e transgneros que havia entrevistado. O

    contexto era diferente: no se tratava mais da invisibilidade e da

    clandestinidade de um cinema porn, mas daquele das mobilizaes de luta

    contra a Aids. Nesse novo contexto, algumas mudanas eram notrias.

    poca da pesquisa no cinema, por exemplo, ressignificaes como as

    travestis e transgnero estavam apenas comeando no Brasil. Tampouco

    se falaria em transfobia ou de travestilidade (em oposio a denominao

    patologizante de travestismo). Essas mudanas indicavam uma

    repolitizao do campo sexual, orientada tanto pelo envolvimento de

    travestis, transexuais e pessoas transgnero na agenda LGBTT, quanto pelo

    surgimento de novas teorias engajadas na crtica normatizao sexual,

    como a Teoria Queer que, desde ento, passou a figurar na literatura sobre

    gnero e sexualidade do Brasil como um elemento incontornvel de crtica

    cultural13.

    Em janeiro de 2000, financiado pela Capes, parti para um doutorado

    sanduche de dois anos em Paris, vinculado Escola de Altos Estudos em

    Cincias Sociais e ao Laboratrio de Antropologia Social. A agenda poltica

    do movimento transgnero, tanto aqui, quanto na Europa, lanava louvveis

    13 A teoria Queer nasceu em certos meios homossexuais e no falso v-la como o captulo

    mais recente da histria gay nos Estados Unidos. Ela tambm responde pelo movimento de

    intercmbio e crtica da cincia e da identidade realizado pela ps-modernidade. As

    questes que levanta sobre a informao, a legitimidade e a credibilidade das culturas

    minoritrias esto longe de se reduzirem s sublimaes intelectuais de uma orientao

    sexual particular. Tampouco trata-se de eloquentes zombarias e celebraes inconsequentes de uma teoria comprometida com a cansativa construo de slogans. Algumas ferramentas conceituais que a teoria Queer oferece indagam sobre as relaes

    entre a cultura majoritria (cientificista, falocntrica e heterocentrada) e sobre a

    possibilidade e o valor dos processos de subjetivao comunitrios.

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    Tessituras

    VALE, Alexandre Fleming Cmara. Por uma esttica da restituio: notas sobre o uso do vdeo na pesquisa antropolgica. Tessituras, Pelotas, v. 2, n. 2, p. 162-200, jul./dez. 2014.

    questionamentos aos trabalhos acadmicos, saudava o surgimento de

    pessoas trans como intelectuais orgnicas e lideranas polticas, e

    recusava a abordagem de sua experincia como algo restrito prostituio.

    Do ponto de vista terico, a experincia trans passou a figurar como

    experincia privilegiada na compreenso da dimenso performativa dos

    lugares de gnero, questionando binarismos, como homem e mulher,

    masculino e feminino. Tal experincia interpelava, assim, no apenas a

    construo naturalizada da sexualidade, mas, pela via da crtica noo de

    normatividade, questionava tambm os movimentos feminista e

    homossexual.

    Para travestis e transgneros, a desconstruo dos sexos no

    constitui apenas uma questo terica, mas uma prtica concreta. Elas

    ressignificam a representao social da feminilidade e do corpo feminino em

    signos que so por elas apropriados e dos quais se servem em suas prticas

    sociais. Estas prticas convidam a repensar o processo de construo social

    dos sexos, bem como os fundamentos sociais da produo individual de uma

    aparncia e de uma identidade de sexo, de gnero ou performativa. A

    experincia de travestis e transgneros possibilitava agora mostrar, de uma

    maneira geral, a importncia do corpo na formao das identidades, ou

    melhor, na constituio de alteridades e territorialidades dissidentes.

    O livro O Voo da Beleza: experincia trans e migrao (VALE, 2013),

    resultado de minha pesquisa no doutorado, abordou aspectos constitutivos

    da experincia transgnero, pensados a partir dos efeitos de liberdade e

    misria dos processos migratrios. O sentido e algumas das significaes

    desse deslocamento, sua importncia para as pessoas trans e o trabalho

    sexual so analisados a partir de um trabalho de campo de longa durao. Se

    ultrapassar limites constitui o ethos mesmo da experincia travesti e

    transgnero, a partir daquilo que elas denominam de processo de

    feminilidade, a Europa ensejava o coroamento de uma vida vivida em

    fronteiras e ultrapassagens. Nesses deslocamentos, descer em Paris se

    apresentava como sonho dourado de pessoas que cedo conheceram a

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    Tessituras

    VALE, Alexandre Fleming Cmara. Por uma esttica da restituio: notas sobre o uso do vdeo na pesquisa antropolgica. Tessituras, Pelotas, v. 2, n. 2, p. 162-200, jul./dez. 2014.

    injria, a violncia domstica e encontraram, na prestao de servios

    sexuais, uma fonte de renda. Os processos migratrios, a conquista de novos

    territrios e o intercmbio de informaes e experincias so constitutivos

    dessa efervescncia de significados relativos visibilidade transgnero.

    Hedonistas ou no, as reverberaes do assim chamado voo da beleza so

    mais intensas do que podem parecer.

    A experincia travesti e transgnero, vivenciada como reinveno de si

    e como construo corporal e existencial dissidente em relao s normas de

    gnero, constitui um lugar privilegiado para a compreenso das experincias

    de contato ou contrastivas. Se o imigrante, originalmente, atopos (SAYAD,

    1998), sem lugar, desclassificado, inclassificvel, ento travestis,

    transexuais e transgneros acumulam como que homologias de no-

    lugares. O estigma imigrante amalgama com outras posies e disposies

    sociais. Tudo se passa como se houvesse um trao geral, uma espcie de

    estrutura comum de inferiorizao, que demanda a todo momento - mas

    especialmente nos momentos de conflito - pela memria do sentido do

    posicionamento que o estrangeiro ocupa em territrio alheio. Em Paris, por

    exemplo, no incomum, em um bate-boca no supermercado, na farmcia,

    nas caladas, que uma interpelao do tipo volte para a sua terra (rentrez

    chez vous) ecoe e mobilize os significados do que seja pertencimento,

    Estado, Nao.

    Alm da referncia queer neste trabalho, optei tambm por

    textualizar14 o material coletado a partir da categoria de experincia, tal

    como foi pensada por Victor Turner (1987). Falar de travestis e transgneros

    referindo-se sempre a esse conceito nadar na contra corrente da ortodoxia

    estrutural-funcional, com seus modelos fechados e estticos de sistemas

    14 A textualizao pensada aqui como uma pr-condio para a interpretao. Trata-se, segundo Clifford, de um processo pelo qual o comportamento, as tradies, as aes rituais etc., no escritas, vm a ser fixadas (como algo com um significado), autonomizadas (separadas por uma especfica inteno autoral), tornadas relevantes (para um mundo contextual) e abertas (para a interpretao por um pblico competente). O comportamento assim transformado se torna suscetvel leitura, um processo que no depende mais de interlocuo de um sujeito presente (CLIFFORD, 1998, p. 197).

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    Tessituras

    VALE, Alexandre Fleming Cmara. Por uma esttica da restituio: notas sobre o uso do vdeo na pesquisa antropolgica. Tessituras, Pelotas, v. 2, n. 2, p. 162-200, jul./dez. 2014.

    sociais. E ao falar de experincia, no fazia referncia apenas cognio ou

    aos dados do sentido (sense data), mas tambm aos sentimentos e

    expectativas. Pensava a experincia, no apenas como o sumo diludo da

    razo, mas como tudo o que, do vivido, mostra-se tambm em imagens e

    impresses, reminiscncias e atualizaes. Assim, a realidade primeira a

    experincia vivida como pensamento e desejo, palavra e imagem. Levar em

    considerao os sentimentos e as expectativas em um trabalho sobre vidas

    travestis e transgneros em circunstncias extremas que envolvem a

    migrao, o no reconhecimento de seus nomes sociais e, em muitos casos, a

    Aids, parecia-me incontornvel. Mas como se inserir nessa realidade com

    uma cmera? Como fazer-se credvel diante de uma realidade com tantos

    conflitos? Como transformar essa realidade de pesquisa, com tantas

    demandas emergenciais, em um projeto colaborativo?

    Durante o trabalho de campo, a exemplo daquele realizado na sala de

    cinema, a utilizao da cmera foi restringida pela resistncia que algumas

    tinham em ser filmadas. Apesar da pesquisa no se limitar atividade

    profissional das pessoas trans, abordando as condies de moradia na

    Europa, o trabalho nas associaes e as relaes de solidariedade existentes

    entre elas, uma parte considervel do trabalho foi realizada no Bois, onde

    pessoas trans do mundo inteiro lanavam mo do trabalho sexual como meio

    de vida na Europa. Minha presena no nibus da associao PASTT com

    uma cmera, nas noitadas de preveno, especialmente em funo da

    situao irregular de algumas dessas imigrantes, levantava suspeitas e

    havia sido gentilmente interditada pela presidente da associao.

    Concentrei meus esforos na etnografia da experincia trans e abandonei

    temporariamente o projeto de realizao desse novo documentrio. Defendi

    a tese em 2005, mas retornei vrias vezes Paris, sempre em contato com

    minhas interlocutoras. A possibilidade de voltar para a coleta das imagens

    deu-se em 2010, quando consegui um financiamento e retornei com uma

    equipe de dois cmeras e um produtor para realizar o Voo da Beleza.

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    Tessituras

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    A clivagem entre pessoas transgneros com papel e sem papel foi a

    ideia condutora na realizao desse documentrio. Os dados coletados no

    trabalho de campo sinalizavam para importncia que era atribuda ao fato

    de ter os papis, inclusive como possibilidade de no realizao do temido

    voo da beleza. Para a elaborao de um esboo de roteiro, parti de uma

    reflexo de Marisa Peirano (2009) sobre os documentos de identidade. Tais

    documentos consistem naquilo que Latour (2007 apud PEIRANO, 2009)

    denomina de Plug-ins. Esses ltimos participam de uma dinmica que se

    traduz em reconhecimento e identificao:

    reconhecemos uma face familiar em um grupo de pessoas por

    sua postura, gestos e pequenos detalhes. Identificar algum

    que nunca vimos antes um procedimento diferente: temos

    que comparar a descrio de traos individuais presentes em

    um documento, por exemplo, e a pessoa em questo

    (LATOUR, 2007, apud PEIRANO, 2009, p. 53-80).

    Os Plug-ins so subjetificadores, personalizadores ou

    individualizadores e fazem parte de cosmologias. So, como destacou

    Peirano (PEIRANO, 2009, p. 76) esses amuletos cobiados por uns, objetos

    restritivos e indesejveis para outros, nossos duplos que no podemos perder

    de vista. Eles tm sentido e vida prpria. Foi essa preciosa pista que abriu

    a narrativa flmica do Voo da Beleza. Naquele contexto, os documentos de

    identidade eram duplamente reivindicados. Primeiramente, pelo

    reconhecimento, por parte das trans, de seus nomes sociais e, em segundo

    lugar, como visto de permanncia no territrio francs.

    Coletamos o material em 22 dias. Os contatos haviam sido feitos

    previamente, por telefone ou e-mail. Olhando para esse processo

    retrospectivamente, considero que, se por um lado, a grande familiaridade

    que eu nutria com algumas de minhas interlocutoras durante a realizao

    da etnografia possibilitara-me um acesso quase irrestrito s suas

    experincias, por outro, o fato de aterrissar em Paris para a realizao de

    um documentrio com uma equipe de pessoas que elas desconheciam,

    poderia ter colocado srios riscos sua efetivao. Nos anos que

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    Tessituras

    VALE, Alexandre Fleming Cmara. Por uma esttica da restituio: notas sobre o uso do vdeo na pesquisa antropolgica. Tessituras, Pelotas, v. 2, n. 2, p. 162-200, jul./dez. 2014.

    antecederam a coleta das imagens, em 2005, 2007, 2009, eu havia restitudo

    para elas trechos dos roteiros sexuais15 de suas vidas, narrados na tese.

    Havia utilizado, como de praxe, nomes fictcios, e a recepo desse

    material contribua tanto para a anlise das condies de produo dos

    dados etnogrficos, quanto para a prpria construo da problemtica da

    pesquisa. Essas situaes de restituio tinham (e tm) o sentido de instituir

    um jogo tico e intelectual imperativo na pesquisa colaborativa, abrindo

    espao para o exerccio ao direito de vigilncia sobre as representaes que

    so produzidas sobre elas no discurso cientifico. No horizonte de uma

    pesquisa participativa, no me interessava t-las como meras informantes,

    mas como parceiras epistmicas (DE LARGY HEALY, 2011) atuando

    diretamente na produo do corpus cientfico que diz respeito as suas

    experincias de vida.

    Eu teria evitado alguns problemas se tivesse tido a oportunidade de

    fazer um trabalho de restituio com as imagens de O Voo da Beleza

    anlogo ao que fiz para ao trabalho escrito. Como a coleta das mais de 30

    horas de imagens para este filme foi feita de forma pontual, no perodo de

    trs semanas, no havia tempo para visualizar o material com elas e

    tampouco elas poderiam estar presentes no momento da edio do filme,

    pois, uma vez realizada a coleta, eu retornaria para o Brasil para finalizar a

    edio. Se o filme contava com o trabalho prvio de restituio realizado

    para escrita da tese, no trabalho com as imagens, o mesmo s foi acontecer

    posteriormente, com o filme editado, em meio realizao de um novo filme,

    durante o perodo do ps-doutorado. Mas efetivamente aquele trabalho de

    15 Heilborn destaca que valores e prticas sociais modelam, orientam e esculpem desejos e

    modos de viver a sexualidade, dando origem a carreiras sexuais/amorosas ou roteiros sexuais. Para Heilborn, essa ferramenta conceitual tem o mrito de poder cotejar as trajetrias e cenrios sexuais distintos, seja pelo prisma de classe, seja pelo de gnero. A

    autora ressalta que a sucesso de experincias, as datas e circunstncias em que ocorrem, os intervalos entre elas e seus desdobramentos em suma, o desenrolar dos eventos traduzem-se em roteiros sexuais, delineados sobre um pano de fundo onde se combinam as

    diferentes marcas sociais que delimitam o campo de possibilidades dos indivduos: origem e

    classe social, histria familiar, etapa do ciclo de vida em que se encontram, as relaes de

    gnero institudas no universo em que habitam. Todos esses elementos fornecem as balizas

    para o processo de modelao da sujetividade, entendido como as circunstncias sociais e

    biogrficas que ensejam o sentido do eu (HEILBORN, 1999, p. 40-41).

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    Tessituras

    VALE, Alexandre Fleming Cmara. Por uma esttica da restituio: notas sobre o uso do vdeo na pesquisa antropolgica. Tessituras, Pelotas, v. 2, n. 2, p. 162-200, jul./dez. 2014.

    restituio realizado na tese foi fundamental, especialmente no momento

    das entrevistas filmadas. A familiaridade com suas experincias e a empatia

    que eu gozava entre o grupo, me possibilitava abordar questes j

    conhecidas, conduzindo os dilogos a partir de alguns eixos sobre os quais eu

    j havia textualizado e discutido com elas: experincia no Brasil e migrao,

    violncia domstica e estigmatizaces sociais, modificaes e performances

    corporais, militncia poltica e engajamento na associao, trabalho sexual e

    perspectivas de retorno para o Brasil, dentre outros. Como se pode observar,

    uma atitude metodolgica de exposio, baseado no registro escrito, ainda

    predominava em minha maneira de pensar a antropologia visual.

    Finalizei a edio do filme em 2012 e parti novamente para Paris

    para realizar o lanamento de O Voo da Beleza. Mostrei o filme em Paris na

    Maison du Brsil, e depois em Toulouse e Estrasburgo. A recepo do filme,

    em termos gerais, foi boa, mas, como toda recepo, contextual e sujeita s

    conjunturas polticas relativas ao contedo filmado. O momento era

    particularmente denso no que tange imigrao, prostituio e Aids. A

    onda anti-migratria, em determinados momentos mascarada de bom-

    mocismo contra o proxenetismo e o trfico de seres humanos, aumentava.

    Se muitas trans saudaram o filme por ter mostrado uma viso positiva e

    engajada da experincia transgnero, narrando a vida como ela , outras

    (poucas) o criticaram por ter abordado aspectos que julgavam

    inapropriados, como a cafetinagem entre aquelas que vivem do trabalho

    sexual e uma certa nfase nesse ltimo. As imagens entretanto,

    possibilitaram uma aproximao e uma apreciao de meu trabalho que

    jamais teria caso tivesse ficado apenas na etnografia escrita.

    O que significa, ento, para o pesquisador/a engajar-se numa

    problematizao da restituio? preciso arcar com o nus de possveis

    conflitos de interpretaes que a perspectiva da restituio coloca em cena.

    Ela pode indicar uma quebra na empatia ou abalar a crena de uma

    experincia mimtica e de identificao recproca (como aconteceu quando se

    tratava apenas do trabalho da tese de doutorado). Ela pode ainda

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    Tessituras

    VALE, Alexandre Fleming Cmara. Por uma esttica da restituio: notas sobre o uso do vdeo na pesquisa antropolgica. Tessituras, Pelotas, v. 2, n. 2, p. 162-200, jul./dez. 2014.

    desencadear um processo segundo o qual a autonomia necessria para a

    construo da problemtica da pesquisa fica hipotecada pelos humores e

    rumores da discordncia ou dos conflitos de interesses, como foi o caso do

    lanamento de O Voo da Beleza, quando uma dissidncia na Associao

    PASTT influenciou algumas leituras negativas do filme. O jogo que a

    restituio estabelece indica um lugar preciso: ela implica em relaes de

    poder e dominao pensadas em termos macro e microscpicos, cuja

    capilaridade se estende por todo o tecido social. Nos momentos de embate

    em torno da restituio, a reivindicao pela representao legtima e pelo

    uso legtimo dessa representao concentra, condensa, atualiza e revela

    essas lgicas polticas. De uma maneira ou de outra, a restituio algo

    esperado pelos/as interlocutores/as da pesquisa. Para Zonabend,

    a restituio participa de todo o processo de pesquisa, desde

    seu comeo. De alguma maneira ela faz parte do contrato

    implcito entre observador e observado () e, em suma, garante tanto a veracidade dos propsitos como a fidelidade

    de sua retranscrio. Ela funciona como um controle a

    posteriori da pesquisa. Ela tem portanto, uma dupla funo:

    deontolgica e epistemolgica (ZONABEND, 1994, p. 4).

    Ou seja, falar de restituio significa que essas experincias de

    retorno dos dados coletados ou contra-ddivas textuais e imagticas no

    constituem eventos separados da pesquisa. Ao contrrio, so nesses

    momentos privilegiados do trabalho de campo que as pretenses de

    objetividade so colocadas sob suspeita, e nos quais tem lugar um processo

    comunicativo que implica necessariamente aquele ensinamento

    hermenutico da fuso de horizontes. Fuso aqui no significa harmonia

    ou equilbrio, mas um processo argumentativo no qual os sujeitos levantam,

    a partir de atos (performticos) de fala, tanto pretenses de validade em

    relao "verdade dos achados do campo e da anlise empreendida, quanto

    em relao veracidade" dos sentimentos e do tipo de envolvimento que a

    experincia de campo ps em prtica.

    A restituio implica naquilo que existe de contratual entre

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    Tessituras

    VALE, Alexandre Fleming Cmara. Por uma esttica da restituio: notas sobre o uso do vdeo na pesquisa antropolgica. Tessituras, Pelotas, v. 2, n. 2, p. 162-200, jul./dez. 2014.

    pesquisadores/as e interlocutores/as; parte integrante de todo o processo de

    pesquisa e no apenas um a posteriori. O ideal que ela consiga implicar

    os/as interlocutores/as concernidos/as durante todo o processo de pesquisa,

    desde a formulao do problema a ser estudado. Uma ateno particular em

    relao confidencialidade das identidades ou omisso de lugares, redes e

    imagens, especialmente quando h dissidncias e rupturas sem retorno,

    necessria para a manuteno do bom andamento da pesquisa. Afinal, dir

    Flamant:

    o objetivo da anlise etnolgica no consiste tanto em contar

    o que se passa em um lugar preciso entre tal ou qual pessoa,

    mas desvelar as lgicas sociais e simblicas incorporadas

    nesses lugares e nas prticas desses autores. Mascarar as

    identidades serve para criar uma alteridade entre os atores

    reais e suas personagens, relativizar o carter

    potencialmente sensacionalista da descrio dos fatos,

    preservando o objeto da pesquisa no centro do texto. Tal

    exerccio necessita uma distino clara entre as informaes

    fundamentais para a anlise e as informaes anexas ou

    passveis de serem transpostas de uma situao outra

    (FLAMANT, 2005, p. 142).

    No caso do texto antropolgico, tal empenho talvez seja mais fcil do

    que quando se trata da restituio de imagens, em que uma suavizao

    ttica da linguagem impossvel. Existe ainda, segundo Flamant (2005), a

    necessidade de iniciar a restituio textual e, eu diria, imagtica, somente

    depois que a perspectiva da anlise esteja relativamente estabilizada,

    optando, prioritariamente pelas pessoas concernidas e que disponibilizaram

    seu tempo para a pesquisa. Essa precauo pode evitar muitos mal

    entendidos, alm de ampliar o espao para a dimenso dialgica da

    pesquisa. Pontos de vista distintos do lugar a debates e, tanto o

    pesquisador, quanto seus/suas interlocutores/as, so autnomos em relao

    as suas interpretaes, mesmo se os lugares sociais de onde falam sejam

    distintos. Ou seja, a restituio, para os/as interlocutores/as, no possvel

    de ser realizada nos mesmos termos da restituio que se enderea

    comunidade cientfica. Ela supe um discurso diferente, levando-se em

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    Tessituras

    VALE, Alexandre Fleming Cmara. Por uma esttica da restituio: notas sobre o uso do vdeo na pesquisa antropolgica. Tessituras, Pelotas, v. 2, n. 2, p. 162-200, jul./dez. 2014.

    considerao que o saber comum e o saber cientfico possuem especificidades

    que lhes so prprias e nem sempre so compatveis no que se refere ao

    entendimento de seus contedos. Nesse contexto, encontrar formas mais

    brandas de falar dos conflitos ou uma tica do bem dizer, especialmente no

    que tange a anlises que precisam ser amadurecidas, no significa

    manipulao ou falta de sinceridade, mas sim uma ttica de proteo da

    autonomia do/da pesquisador/a, evitando que ela ou ele tenha sua

    autonomia hipotecada.

    Essas apreciaes, na verdade, esto no cerne do empreendimento da

    antropologia visual informada pelas situaes de teatralizao 16 da

    restituio. Somente levando a srio a recepo e apropriao das imagens, o

    antroplogo pode efetivamente garantir a eficcia da dialogia e do trabalho

    colaborativo. A autoria um risco, primeiramente para as pessoas

    concernidas e, em segundo lugar, para o etngrafo, que no faz parte,

    diretamente, da comunidade moral pesquisada. O empreendimento

    colaborativo, alm de propor uma partilha em torno do poder que possui

    aquele que ir figurar, por meio de recursos tcnicos, uma determinada

    imagem do grupo, tambm evita os riscos de ver seu trabalho abjurado. As

    boas intenes de uma autoria no mediada nunca so suficientes para a

    pretenso de um trabalho que se quer simtrico, respeitoso e engajado. Ao

    mesmo tempo, levando-se em conta o agenciamento e a indeterminao da

    imagem flmica, preciso muito investimento e muita habilidade para o

    estabelecimento do consenso ou de um unssono em relao ao que foi feito.

    16 Para Bellagarde, a restituio implica em teatralizao, no sentido empregado por

    Gofman e Turner de dramaturgia social. A restituio, diz o autor, faz parte de uma espetacularizao (mise en spectacle) do objeto de estudo, ela uma representao

    destinada a um pblico. Trata-se de um espetculo social no qual estamos implicados em

    graus variados e onde o retorno das informaes deve ser feito de uma forma acessvel ao

    pblico visado. Dessa forma, ela produz uma representao do objeto e, nesse sentido, ela

    tanto uma mise en scne de sentimentos, uma ordenao das sensaes quanto uma

    formalizao (mise en forme) dos fatos observados, um logos. Essa mise en scne ou

    espetacularizao supe a identificao do pblico concernido, pois ela diretamente

    dependente da natureza desse pblico e de sua capacidade em reconhecer o discurso que ele

    recebe. A restituio teatralizao (BELLAGARDE, 2003, p. 99).

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    Tessituras

    VALE, Alexandre Fleming Cmara. Por uma esttica da restituio: notas sobre o uso do vdeo na pesquisa antropolgica. Tessituras, Pelotas, v. 2, n. 2, p. 162-200, jul./dez. 2014.

    A ideia de uma experincia de aprendizado vital na produo de um

    filme etnogrfico. A empreitada de comunicar um entendimento sobre a vida

    alheia, especialmente quando se trata de dimenses que envolvem a

    sexualidade e o gnero, supe um rduo trabalho, bem como o empenho em

    compreender que a figurao de uma realidade especfica no se reduz ao

    mero conhecimento tcnico. Paul Henley, referindo-se a essa compreenso

    do processo flmico, destaca que

    o papel potencialmente mais recompensador para o filme na

    antropologia de um instrumento para comunicar um

    entendimento da experincia incorporada de modos diversos

    de vida experimentada. Fazer um filme que comunica tal

    entendimento a uma audincia de vivncia cultural diferente

    daquela dos sujeitos requer altos nveis de habilidades, tanto

    tcnicas, quanto estticas, de autoria na filmagem. Isso no

    pode ser feito simplesmente apontando-se a cmera na

    direo certa e ligando-a, como se ela no fosse mais do que

    um espelho refletindo a natureza (HENLEYb, 2009, p. 103).

    Para ele, a questo que se coloca em relao autoria no recai sobre

    at onde pode ir a manipulao de autoria do material filmado e o que

    aceitvel na realizao de filmes etnogrficos, mas sim que grau e que tipo

    de manipulao do material filmado so compatveis com os objetivos

    intelectuais gerais e o posicionamento tico da antropologia contempornea

    (HENLEYb, 2009).

    Nesse contexto, a experincia da restituio desempenha um lugar

    fundamental. Se a antropologia sempre prezou por uma abordagem da

    experincia de pesquisa na perspectiva de uma relao de empatia,

    traduzida na habilidade em se colocar "no lugar do outro", ento, a

    problemtica de restituio, tambm ela, deve ser pensada nesses termos.

    Ou seja, a restituio no deve ser analisada apenas pelo ponto de vista do

    antroplogo e das consequncias da relao que ele ou ela estabelece com

    seus interlocutores/as. Alm de ser um dado relacional, a restituio

    tambm uma experincia territorializada, ou seja, tributria da lgica social

    e simblica que anima o contexto espacial e histrico no qual as relaes

    esto inseridas. Nesse sentido, seguindo a reflexo de Flamant (2005), o

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    Tessituras

    VALE, Alexandre Fleming Cmara. Por uma esttica da restituio: notas sobre o uso do vdeo na pesquisa antropolgica. Tessituras, Pelotas, v. 2, n. 2, p. 162-200, jul./dez. 2014.

    ponto de vista do Outro na situao de recepo das informaes restitudas

    dialoga com as relaes de poder e dominao na qual os/as interlocutores/as

    esto inseridos/as. No h nada a ganhar com uma atitude de

    etnocentrismo moralizador do pesquisador defensivo que gasta todos os

    seus cartuchos para denunciar as "estratgias de manipulao

    empreendidas por seus/suas interlocutores/as, sem buscar compreender

    minimamente as razes de tais atitudes e de suas recusas. Especialmente

    para a antropologia, que originalmente se define como uma disciplina

    empenhada na compreenso de populaes minoritrias, levar a srio as

    recusas e analisar o contexto social no qual se inserem, identificando as

    reverberaes e as consequncias que as revelaes do antroplogo tero em

    suas vidas, parece ser um caminho mais fecundo para uma antropologia que

    se pretende simtrica (GOLDMAN, 1999). Compreender o tipo de relaes

    que os/as interlocutores/as constroem, explcita ou implicitamente, em

    relao ao antroplogo nesses momentos de restituio retira esse ltimo do

    pedestal imaginrio que a academia criou para ele.

    As experincias subsequentes ao Voo da Beleza, pensadas a partir de

    uma antropologia da restituio e dos 10 mandamentos do cinema

    observacional 17 , tornaram mais densas a minha relao com as

    protagonistas da pesquisa. E tambm mais sinceras, na medida em que os

    17 Angela Torresan, professora no Centro Granada de Antropologia Visual, destaca que Paul

    Henley chama algumas de suas regras prticas em relao ao processo de filmagem e de

    edio de os 10 mandamentos do cinema observacional. Tais regras dizem respeito a: 1. Ausncia de roteiro pr-definido, mas planejamento mnimo; 2. Ausncia de direo, essa

    deve ser em colaborao com os protagonistas para que se possa identificar situaes boas a

    serem filmadas; 3. Ausncia de uso de trip, a no ser para planos gerais, ou panoramas,

    planos inclinados, etc.; 4. Ausncia de entrevistas; testemunhos so preferencialmente

    gravados enquanto a pessoas est envolvida em alguma atividade, ou no seu prprio

    ambiente; conversas com o cmera, conversas entre os protagonistas so preferveis do que

    entrevistas formais; 5. Um estilo de filmagem que no chame ateno para sua prpria

    esttica, beautiful shots, mas que respeite regras bsicas de bom enquadramento,

    movimentos de cmera estvel e suave. No que tange s regras relativas edio, seus

    mandamentos prosseguem assim: 6. Ausncia de narrao do tipo analtica, sala de aula. Mas se h necessidade de fornecer informao contextual, a voz deve ser do prprio

    cineasta, informal e em dilogo com o filme; 7. Uso de msica deve ser diegtico, ou seja,

    deve emergir de situaes filmadas; 8. Ausncia de efeitos especiais; 9. Edio que respeite

    a cronologia dos eventos e mantenha, o mais possvel, a estrutura das cenas; 10. As regras

    acima no devem ser quebradas, a no ser quando necessrio ou apropriado (TORRESAN,

    2014, p. 7-8).

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    Tessituras

    VALE, Alexandre Fleming Cmara. Por uma esttica da restituio: notas sobre o uso do vdeo na pesquisa antropolgica. Tessituras, Pelotas, v. 2, n. 2, p. 162-200, jul./dez. 2014.

    conflitos de interpretaes foram contornados. A colocao em cena de uma

    esttica da restituio, na artesania de Dom e Beleza, possibilitou

    circunscrever tenses prprias quela experincia e permitiu um tipo de

    reflexividade compartilhada que reverberou nessa nova montagem do

    trabalho, viabilizando o dilogo em torno das escolhas, decises e

    consequncias da figurao que seria mostrada para um pblico mais amplo.

    Pela via da esttica da restituio, o contra-dom visual trouxe tambm para

    a cena da pesquisa a dimenso coletiva e relacional do trabalho de campo,

    oferecendo um produto final no qual as protagonistas podiam se reconhecer

    enquanto parte constitutiva dos resultados apresentados. Alm disso, os

    debates em torno do que seria vivel ou no apresentar implicou na

    tematizao dos sentimentos como base da relao de respeito estabelecida.

    guisa de concluso: a esttica da restituio como guia no fazer

    antropolgico

    Na pesquisa em cincias sociais, a reflexividade e a restituio devem

    ser tomadas como ncoras do trabalho antropolgico de campo e como

    marcadores conceituais para pensar a ideia de autoria ou de autorias, no

    plural. A autoria implica em compreender os fenmenos, no como reflexo

    do real, mas como uma construo do esprito que levanta problemas. Isso

    implica vigilncia crtica em relao aos lugares de enunciao do

    pesquisador. Como esses lugares afetam a produo do conhecimento

    antropolgico? Como eles devem ser pensados no momento da produo

    flmica? A discusso sobre a autoria inclui necessariamente uma reflexo

    sobre a autoridade etnogrfica e sobre como essa ltima se constri no

    trplice movimento que envolve empatia, distanciamento e controle das

    transferncias, pensados a partir das demandas ou solicitaes de

    nossos/nossas interlocutores/as.

    Mesmo reconhecendo que o trabalho de campo uma atividade

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    Tessituras

    VALE, Alexandre Fleming Cmara. Por uma esttica da restituio: notas sobre o uso do vdeo na pesquisa antropolgica. Tessituras, Pelotas, v. 2, n. 2, p. 162-200, jul./dez. 2014.

    coletiva, deve-se atentar tambm para a sua assimetria fundamental, aquilo

    que poderamos denominar, com Geertz (2001), de ironia antropolgica,

    entendida aqui como experincia assimtrica e passvel de envolver relaes

    de poder. Nesse sentido, o interesse do pesquisador deve voltar-se, em um

    primeiro momento, para a maneira como se estabelece o contrato e as

    negociaes de interesses nem sempre convergentes entre pesquisadores

    e colaboradores. E, em seguida, para os lugares silenciados no processo

    que envolve as estratgias de campo e os lugares de enunciao do

    pesquisador. Como contornar essas assimetrias? Como tentar garantir que a

    inspirao do observador se aproxima de forma fidedigna da inspirao

    coletiva que ele observa? Como pensar a importncia do envolvimento

    dos/das protagonistas na construo dos significados e sentidos de um texto

    ou de um filme?

    A tematizao da restituio dos resultados da pesquisa talvez

    indique um caminho para contornar tais problemas. Ela percebida pelos

    antroplogos como uma restrio recente. Ela no se aplicava, por exemplo,

    aos trabalhos de campo tradicionais, realizados alm-mar, quando a

    distncia geogrfica e o no acesso aos resultados do trabalho pelas

    comunidades concernidas, desempenhava o papel de garantir uma

    objetividade inquestionvel em relao aos achados de campo. Os tempos

    mudaram e a diferena deixou de habitar terras estrangeiras, se que um

    dia habitou! Na passagem de uma etnologia das sociedades de tradio oral

    para as sociedades da escrita, da informao e da comunicao, os antigos

    informantes agora se informam literalmente a respeito do que dito

    sobre eles a partir do acesso aos trabalhos etnogrficos, sejam eles textuais

    ou flmicos. Eles e elas interpelam os feitos antropolgicos, produzem seus

    intelectuais orgnicos, criam suas modalidades de controle em relao ao

    que escrito ou visto sobre eles e nos interpelam sobre as consequncias de

    nossas revelaes.

    A preocupao fundamental com a reflexividade o que permite ao

    pesquisador gestar um tipo de escuta e de olhar atentos s demandas ou

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    Tessituras

    VALE, Alexandre Fleming Cmara. Por uma esttica da restituio: notas sobre o uso do vdeo na pesquisa antropolgica. Tessituras, Pelotas, v. 2, n. 2, p. 162-200, jul./dez. 2014.

    solicitaes de seus/suas colaboradores/as. Essas solicitaes emergem no

    contato direto e de longa durao e interpelam o pesquisador, descentrando

    o esquema referencial operativo ou as disposies no questionadas do

    capital simblico que o pesquisador/a carrega consigo quando vai a campo.

    Como nos lembra a Barros (2014, p. 6), os projetos de pesquisa so

    desenhados distantes do campo, respondendo a interesses e dinmicas da

    academia e/ou do tipo de debate suscitados pelas experincias e contextos

    socioculturais dos pesquisadores. Nessa perspectiva levantada pela autora,

    qual o sentido em operar o que ela denomina de uma etnografia da

    etnografia ou ainda de objetivao do sujeito da objetivao? Como tal

    reflexo afeta ou pe em jogo a definio da autoria? Sem essa vigilncia

    crtica no h, diz a autora (BARROS, 2014, p. 6), como olhar a si mesmo

    durante todo o processo da pesquisa, flexionar-se ou retornar

    constantemente problematizao sobre a autotransformao durante suas

    prprias aes. Dito de outra maneira, a restituio que realizada para

    nossos pares, no pode mais deixar de ser informada pela restituio

    realizada para nossos/nossas interlocutores/as.

    A objetivao do sujeito da objetivao demanda uma interpelao ao

    prprio saber antropolgico e maneira como ele concebe a alteridade. Em

    que sentido a esttica da restituio poderia contribuir nessa interpelao?

    Ela no deveria, necessariamente colocar em cheque a estranha relao que

    a antropologia estabeleceu com o tempo e a historicidade? Lembro aqui da

    reflexo de Johannes Fabian (2013) acerca do alocronismo fundacional da

    antropologia 18 , ou seja, a tendncia irrefletida de algumas tradies

    18 Em O Tempo e o Outro: como a antropologia estabelece seu objeto, Fabian (2013) realiza uma meta-anlise do projeto antropolgico em geral e uma desconstruo de suas

    formaes temporais realizadas. O autor parte de trs noes dependentes entre si: a ideia

    de uma orientao alocrnica e fundacional na antropologia tem como correlato a ideia da

    negao da coetaneidade s sociedades estudadas pelos antroplogos e essa, por sua vez,

    sugere um uso esquizognico do Tempo. Tudo se passa como se o Outro, nos trabalhos

    antropolgicos, deixasse de ser contemporneo de ns mesmos. Esse o sentido da negao

    da coetaneidade, uma operao epistemolgica e poltica que implica em uma localizao

    hierarquicamente distanciada do Outro que suprime a simultaneidade e a

    contemporaneidade do encontro etnogrfico. Nisso consiste o alocronismo fundacional da

    antropologia, localizado por Fabian no apenas no evolucionismo mas em todos os discursos

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    Tessituras

    VALE, Alexandre Fleming Cmara. Por uma esttica da restituio: notas sobre o uso do vdeo na pesquisa antropolgica. Tessituras, Pelotas, v. 2, n. 2, p. 162-200, jul./dez. 2014.

    antropolgicas em construir e instrumentalizar objetos antropolgicos como

    incorporaes de tempos passados, narrados no eterno presente

    etnogrfico. Tal perspectiva marcou profundamente o conhecimento

    antropolgico, no apenas no que tange histria, mas tambm no que se

    refere intersubjetividade fundante do processo de pesquisa e as relaes de

    poder implicadas nesse ltimo. Esse rebaixamento diacrnico do Outro,

    essa negao da coetaneidade, coloca antroplogos e seus leitores em uma

    estrutura de tempo privilegiada, ao passo que desterram o Outro para um

    estgio de desenvolvimento inferior.

    As reverberaes de uma perspectiva alocrnica do saber

    antropolgico tem como consequncia uma verticalizao do conhecimento.

    O trabalho de campo deve caminhar para uma compreenso do tempo de

    seu outro como comunho cotemporal de experincias, de incluso do

    Outro no Tempo antropolgico, contornando assim a discrepncia entre a

    esfera intersubjetiva do trabalho de campo e o rebaixamento diacrnico do

    Outro. Nesse sentido, a utilizao de uma abordagem compartilhada no

    processo de filmagem no poderia ser pensada como uma forma de resposta

    a essa epistemologia da relegao temporal e da participao efetiva no

    processo de produo do conhecimento, mediado agora pela esttica? Ou,

    dito de outra maneira, tal como uma resposta a essa ausncia crtica da

    antropologia, em que a intersubjetividade passa a ser pensada por meio da

    mediao flmica colaborativa e horizontal, recuperando assim a esttica

    como guia no fazer das disciplinas retrico-humanistas? Finalmente a

    esttica estaria assumindo o lugar que lhe conferido na inteligibilidade das

    construes sociais de conhecimento, retomando faculdades at ento

    relegadas a segundo plano, como a sensibilidade, os sentimentos e a

    criatividade?

    objetificantes de uma antropologia cientificista. O funcionalismo, o culturalismo e o

    estruturalismo tambm no resolveram, segundo Fabian (2013, p. 57), a questo do tempo

    universal: eles a ignoraram, na melhor das hipteses, e negaram sua importncia, na pior delas. Afinal de contas, dir Fabian (2013, p. 70) preciso imaginao e coragem para conceber o que aconteceria ao Ocidente (e antropologia) se sua fortaleza temporal fosse

    subitamente invadida pelo Tempo de seu Outro.

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    Tessituras

    VALE, Alexandre Fleming Cmara. Por uma esttica da restituio: notas sobre o uso do vdeo na pesquisa antropolgica. Tessituras, Pelotas, v. 2, n. 2, p. 162-200, jul./dez. 2014.

    A suposio da esttica como aquela que vai refletir ou orientar a

    reflexo no fazer das disciplinas retrico-humanistas uma das

    problemticas mais pertinentes levantadas hoje no cenrio das ideias. Ao

    que tudo indica, pela reflexo esttica que as cincias sociais encontram

    alternativas para pensar para alm de algumas das dicotomias que marcam

    sua trajetria: explicao nomottica e interpretao idiogrfica, objetivismo

    e subjetivismo, explicaes causais e explicaes racionais, qualitativo e

    quantitativo... Especialmente hoje, quando lembramos das crticas de

    Gadamer (1977) em relao ao metodologismo da cincia e pretenso desta

    ltima em ser a nica verdade vlida, hierarquicamente superior verdade

    que existe no mito, na arte, na religio e/ou na imagem, superar esses

    binarismos tem se colocado como uma urgncia nas cincias sociais. Se a

    esttica j foi chamada de a prima pobre da lgica, ligada s faculdades

    inferiores como a sensibilidade, a memria, a imaginao e os sentimentos,

    penso que seu lugar no mais pode ser denegado por aqueles que pretendem

    refletir sobre teoria social para alm do vis das claras e distintas ideias

    cartesianas.

    Geertz (2001, p. 46) est correto ao dizer que a vocao para aplicar o

    mtodo cientfico investigao dos assuntos humanos uma vocao para

    confrontar diretamente o divrcio entre a razo e o sentimento. Esse ltimo

    central para a construo da autoria. Descortinar o lugar que a partilha de

    sentimentos desempenha no trabalho de campo mediado pela utilizao da

    cmera em situaes de restituio particularmente interessante para

    pensar as noes de reflexividade da subjetividade e de autoria na narrativa

    antropolgica, em que normalmente os sentimentos so considerados como

    prejudiciais e as representaes explcitas da presena do autor tendem,

    como outros embaraos, a ficar relegadas aos prefcios, notas ou apndices,

    como destaca o referido autor em sua reflexo sobre o dilema da

    assinatura. A ideia de um substrato coletivo para as emoes ajuda a situar

    a dimenso afetiva das trocas comuns, bem como a elucidar o processo

    segundo o qual a construo da identidade do pesquisador dialogicamente

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    Tessituras

    VALE, Alexandre Fleming Cmara. Por uma esttica da restituio: notas sobre o uso do vdeo na pesquisa antropolgica. Tessituras, Pelotas, v. 2, n. 2, p. 162-200, jul./dez. 2014.

    mediada. Ela viabiliza a possibilidade de um eu etnogrfico (Clifford,

    1998) que reconhece, no afeto e, eu diria, na ironia, o status modelado e

    contingente de todas as descries culturais e de todos aqueles/as que

    descrevem culturas.

    Para a segunda montagem de O Voo da Beleza parti de uma

    prerrogativa rouchiana para a utilizao da cmera no trabalho de campo.

    Nada de uma ideia na cabea e uma cmera na mo, mas de imagens

    produzidas em situaes interativas de aprendizagem e conhecimento

    mtuo. Se, no caso de minhas interlocutoras, a escrita da tese, mesmo que

    compartilhada e restituda, por vezes implicou em distncia e em falta de

    interesse, o processo de filmagem, pensado no mbito de uma antropologia

    compartilhada o nosso filme, como elas costumavam falar -, reverberou

    em discursos de acompanhamento das imagens, em que a representao

    que o grupo queria de si passou a figurar como a tnica central. Essa

    representao dialogava diretamente com as reivindicaes de uma

    representao da travestilidade (e no do travestismo) como questo de

    poltica sexual: uma experincia fundamentalmente marcada pela

    identidade de gnero, dissociada da prostituio como destino e da

    delinquncia como condio natural.

    Acreditando, penso que acertadamente, na ideia de que o uso da

    cmera, alm de estabelecer um contato face-a-face mais estreito e

    confidencial, se apresenta como um poderoso e indispensvel exerccio para

    aprender a olhar, investi na reflexividade da subjetividade, na ateno aos

    afetos como instncia privilegiada para desvendar identificaes e conflitos,

    bem como na dialogia como recurso na construo da autoria. Depois de

    determinado perodo pesquisando, quando o processo de interconhecimento

    j estava estabelecido graas a minha postura de me deixar afetar pelo

    outro, compartilhar dificuldades tcnicas nas filmagens e narrar

    abertamente minha experincia como homem gay vivendo em Paris -, pude

    desfrutar de uma experincia mais simtrica com minhas interlocutoras. A

    empatia aumentou, os conflitos em torno de algumas passagens da primeira

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    Tessituras

    VALE, Alexandre Fleming Cmara. Por uma esttica da restituio: notas sobre o uso do vdeo na pesquisa antropolgica. Tessituras, Pelotas, v. 2, n. 2, p. 162-200, jul./dez. 2014.

    montagem de O Voo da Beleza foram discutidos e uma nova verso foi

    pensada.

    Isso no aconteceu sem conflitos de interpretaes e aprendizados

    mtuos. O modo dialgico no operou como idealizao de solidariedade,

    mas como catalizador de uma experincia simtrica e emptica. Isso

    tampouco significa dizer que a autoria desapareceu, mas foi informada pela

    intersubjetividade fundamental daquele encontro etnogrfico. No

    passamos a fazer parte da m