por uma atualização do método da pesquisa participante nos contextos urbanos globalizados

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CADERNOS DE ESTUDOS SOCIAIS Volume 28, número 1, janeiro/junho de 2013 Para citar este artigo: VIRGÍLIO, Jefferson. Por uma atualização do método da pesquisa participante nos contextos urbanos globalizados. Cadernos de Estudos Sociais, Recife, v.28, n. 1, p. 74-92, jan/jun, 2013 (Dossiê Temático). Disponível em: < http://periodicos.fundaj.gov.br/index.php/CAD>. Acesso em: dia mês, ano. [v. em edição].[74] POR UMA ATUALIZAÇÃO DO MÉTODO DA PESQUISA PARTICIPANTE NOS CONTEXTOS URBANOS GLOBALIZADOS Jefferson Virgílio 1 Resumo Este artigo remete a reflexões produzidas após a realização de trabalho de campo sobre as manifestações estudantis portuguesas entre 2012 e 2013. Sugere a revisão e reconstrução de preconcepções metodológicas durante a execução do trabalho de campo em antropologia. Produz revisão teórica sobre a pesquisa e a militância na antropologia contemporânea enquanto profere diálogo com o observado em campo. Palavras-chave: Metodologia de pesquisa. Teoria antropológica. Antropologia reflexiva. Towards updating the participant observation method in urban globalized settings Abstract This article refers to reflections produced after conducting fieldwork about Portuguese student manifestations between 2012 and 2013. It suggests a revision and reconstruction of methodological preconceptions while performing fieldwork in anthropology. It puts forwards a theoretical review on research and activism in contemporary anthropology while promoting dialogue with the observed on the field. Keywords: Research methodology. Anthropological theory. Reflexive anthropology. Para una actualización del método de investigación participativa en los contextos urbanos globalizados Resumen Este artículo se refiere a las reflexiones producidas después de la realización del trabajo de campo sobre las manifestaciones estudiantiles portuguesas entre los años 2012 y 2013. Sugiere una revisión y reconstrucción de las preconcepciones metodológicas durante la ejecución del trabajo de campo en antropología. Genera una revisión teórica de la investigación y del activismo en la antropología contemporánea y articula con el campo observado. Palabras clave: Metodología de la investigación. Teoría antropológica. Antropología reflexiva. 1 Graduado em antropologia pela Universidade Federal de Santa Catarina. Mestrando em antropologia social pela UFSC. E-mail: [email protected].

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ResumoEste artigo remete a reflexões produzidas após a realização de trabalho de campo sobre as manifestações estudantis portuguesas entre 2012 e 2013. Sugere a revisão e reconstrução de preconcepções metodológicas durante a execução do trabalho de campo em antropologia. Produz revisão teórica sobre a pesquisa e a militância na antropologia contemporânea enquanto profere diálogo com o observado em campo.

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  • CADERNOS DE

    ESTUDOS

    SOCIAIS Volume 28, nmero 1, janeiro/junho de 2013

    Para citar este artigo: VIRGLIO, Jefferson. Por uma atualizao do mtodo da pesquisa participante nos

    contextos urbanos globalizados. Cadernos de Estudos Sociais, Recife, v.28, n. 1, p. 74-92, jan/jun, 2013

    (Dossi Temtico). Disponvel em: < http://periodicos.fundaj.gov.br/index.php/CAD>. Acesso em: dia ms, ano. [v. em edio].[74]

    POR UMA ATUALIZAO DO MTODO DA PESQUISA

    PARTICIPANTE NOS CONTEXTOS URBANOS GLOBALIZADOS

    Jefferson Virglio1

    Resumo

    Este artigo remete a reflexes produzidas aps a realizao de trabalho de campo

    sobre as manifestaes estudantis portuguesas entre 2012 e 2013. Sugere a reviso e

    reconstruo de preconcepes metodolgicas durante a execuo do trabalho de campo

    em antropologia. Produz reviso terica sobre a pesquisa e a militncia na antropologia

    contempornea enquanto profere dilogo com o observado em campo.

    Palavras-chave: Metodologia de pesquisa. Teoria antropolgica. Antropologia

    reflexiva.

    Towards updating the participant observation method in urban globalized settings

    Abstract

    This article refers to reflections produced after conducting fieldwork about

    Portuguese student manifestations between 2012 and 2013. It suggests a revision and

    reconstruction of methodological preconceptions while performing fieldwork in

    anthropology. It puts forwards a theoretical review on research and activism in

    contemporary anthropology while promoting dialogue with the observed on the field.

    Keywords: Research methodology. Anthropological theory. Reflexive anthropology.

    Para una actualizacin del mtodo de investigacin participativa en los contextos

    urbanos globalizados

    Resumen

    Este artculo se refiere a las reflexiones producidas despus de la realizacin del

    trabajo de campo sobre las manifestaciones estudiantiles portuguesas entre los aos

    2012 y 2013. Sugiere una revisin y reconstruccin de las preconcepciones

    metodolgicas durante la ejecucin del trabajo de campo en antropologa. Genera una

    revisin terica de la investigacin y del activismo en la antropologa contempornea y

    articula con el campo observado.

    Palabras clave: Metodologa de la investigacin. Teora antropolgica. Antropologa

    reflexiva.

    1 Graduado em antropologia pela Universidade Federal de Santa Catarina. Mestrando em antropologia

    social pela UFSC. E-mail: [email protected].

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    ESTUDOS

    SOCIAIS Volume 28, nmero 1, janeiro/junho de 2013

    Para citar este artigo: VIRGLIO, Jefferson. Por uma atualizao do mtodo da pesquisa participante nos

    contextos urbanos globalizados. Cadernos de Estudos Sociais, Recife, v.28, n. 1, p. 74-92, jan/jun, 2013

    (Dossi Temtico). Disponvel em: < http://periodicos.fundaj.gov.br/index.php/CAD>. Acesso em: dia ms, ano. [v. em edio].[75]

    INTRODUO

    Vivemos em um ambiente que prima por ser globalizado, unificado,

    padronizado, e ao invs de desenvolver melhores condies de vida, e situaes estveis

    para a sociedade, acaba por provocar as denominadas crises, e as catstrofes.

    Ambas as situaes solicitam uma ou mais anlises sociais que busquem

    identificar causas, explicaes e tentativas de compreenso, e na medida do possvel

    solues para tais eventos. possvel, esperado e recomendado que o antroplogo,

    como cientista social que , seja utilizado como analista nestas situaes, permitindo ao

    mesmo a execuo de uma de suas maiores caractersticas, que a etnografia.

    No entanto, realizar etnografia pode ser bastante complicado e peculiar, como os

    cenrios inseridos em contexto de violncias apresentados nas colees de Greenhouse

    et al (2002) e de Nordstrom e Robben (1995), ou mesmo o observado por Marcus

    (1995, p. 97-98) com a sua sugerida etnografia multissitiada, conforme o terreno onde o

    antroplogo se insere. O espao assim identificado contemporaneamente, como um

    dos provocadores de alteraes metodolgicas no nvel de pesquisa.

    Situaes de guerras, conflitos e confrontos militares, polticos e religiosos

    tendem a serem exemplos cruciais de campo onde o modelo de prtica etnogrfica

    necessitou ser adaptado (NORDSTROM; ROBBEN, 1995, p.4-6), seja por questes de

    sobrevivncia, seja por questes tericas de (idealizada) melhoria dos resultados em

    campo. O material aqui proposto pretende apresentar algumas reflexes sobre estas

    adaptaes, enquanto apresenta o observado em campo.

    Os movimentos sociais de protestos estudantis lisboetas apresentam significativo

    nvel de confronto com as foras policiais, sendo que, em algumas das manifestaes

    observadas, o contato fsico entre as partes ocorre de fato, com perceptveis danos

    corporais para os dois grupos envolvidos. Recordo ainda, que o contexto onde me

    identifico como pesquisador em antropologia para parte de meus interlocutores

    precedido por uma tentativa de minha expulso da manifestao pelos respectivos

    manifestantes, atravs do uso de fora fsica e violncia.

    Acrescento que no foram poucas as pessoas interlocutoras as quais eu acabei

    por descobrir que foram presas ou hospitalizadas aps confrontos com a PSP, com

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    Para citar este artigo: VIRGLIO, Jefferson. Por uma atualizao do mtodo da pesquisa participante nos

    contextos urbanos globalizados. Cadernos de Estudos Sociais, Recife, v.28, n. 1, p. 74-92, jan/jun, 2013

    (Dossi Temtico). Disponvel em: < http://periodicos.fundaj.gov.br/index.php/CAD>. Acesso em: dia ms, ano. [v. em edio].[76]

    algum destaque para as situaes que envolveram encontros em frente assembleia da

    repblica.

    Pretexto assim, por dissertar sobre a temtica, refletindo sobre a necessidade de

    existir maleabilidade nas regras e prticas antropolgicas enquanto realizo trabalho

    de campo na forma de etnografia, e principalmente, nas construes a serem

    apresentadas aps a realizao do trabalho de campo, uma vez que tal reviso acabou

    por ser realizada durante a minha anlise posterior dos dados construdos, sendo este

    texto resultado direto desta reflexo.

    No suposto sugerir a alterao em definitivo das prticas antropolgicas,

    tampouco sugerir que todo o terreno necessite de alteraes drsticas de metodologia.

    No entanto, alerta-se para a ocorrncia, em nvel global, de inmeros casos de conflito,

    confrontos em locais onde pode ser necessria (ou convocada), a interveno (ou

    participao) do antroplogo e da antroploga. Notadamente as representaes coletivas

    denominadas movimentos e manifestaes sociais.

    Sejam as manifestaes sociais estudantis, ou no, sejam movimentos sociais de

    protesto ou de apoio, podem acabar por ser o campo do antroplogo ou da antroploga,

    tanto pela sua contemporaneidade, como pela ainda existente urgncia de sua

    compreenso, ou at mesmo pela sua notvel abertura para interveno por parte do

    pesquisador (TOURAINE, 1990 p. 11-15).

    Adami (2008, p.22-24) j havia esclarecido que, apesar de similares, podem ser

    necessrias novas escolhas e usos metodolgicos, para contextos, em tese, relacionados.

    E esta sim, segundo Hugo Adami, a capacidade de perceber, e fazer uso de tais

    adaptaes, que de fato fazer etnografia.

    As prticas clssicas ou, comumente aceitas e utilizadas podem no ser

    suficientes para a plena execuo da atividade etnogrfica. E nestes casos, as alteraes

    necessrias podem ser bastante contrrias a preceitos conhecidos e defendidos pelo

    senso comum antropolgico.

    No a proposta discutir se as crises e catstrofes mundialmente, ou

    regionalmente conhecidas, como as manifestaes estudantis de Lisboa, so de fato

    reais ou falsas crises, ou se a sua dimenso corresponde ao informado e divulgado.

    Tampouco ser questionar tal situao entre eventuais exemplos aqui citados.

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    Para citar este artigo: VIRGLIO, Jefferson. Por uma atualizao do mtodo da pesquisa participante nos

    contextos urbanos globalizados. Cadernos de Estudos Sociais, Recife, v.28, n. 1, p. 74-92, jan/jun, 2013

    (Dossi Temtico). Disponvel em: < http://periodicos.fundaj.gov.br/index.php/CAD>. Acesso em: dia ms, ano. [v. em edio].[77]

    O ambiente, assim como os seus agentes, capaz de moldar os sujeitos que com

    ele interagem (BOURDIEU, 1990, p. 53). Esse sujeito, que sofre um possvel processo

    de moldagem pode ser tanto o sujeito de estudo do antroplogo como o prprio

    antroplogo. Ignorar essa capacidade, e possibilidade, de ser afetado do antroplogo,

    pelo seu campo de estudo, j problemtico em situaes menos catastrficas de

    pesquisa, e pode ser crucial em um terreno que viva o momento de crise ou de confronto

    mais evidenciado.

    SER AFETADO, ATIVISMO ANTROPOLGICO E TERRENOS SOB FOGO

    Favret-Saada (2005, p.158-161) demonstra a urgncia do antroplogo em estar

    ciente (e aberto) ao que denomina ser afetado, que pode vir a ocorrer em campo.

    Alm do j proposto por Jeanne Favret-Saada, eu sugiro que o antroplogo ao definir

    sua metodologia de trabalho, considere que diferentes campos podem produzir

    diferentes nveis e tipos de influncia sobre o antroplogo. Apenas esperar e estar

    disponvel a influncia do campo pode ser muito proveitoso como mtodo de

    experincia, porm um pouco (mais) arriscado em terrenos com algum teor de

    violncia. A abertura que Favret-Saada sugere pode (e deve) ser complementada por

    algo que busca o mesmo fim, mas por meio diferente. Marcus (1995, p.113-114) sugere

    que o antroplogo atue como ativista em determinadas situaes, se assim identificar

    melhor retorno de resultados das prticas de campo.

    O antroplogo, para George Marcus, ao realizar determinadas atividades de

    militncia junto ao objeto de estudo, permite maior proximidade com o mesmo,

    podendo obter maior diversidade e quantidade de informaes2 e novos valores de

    desenvolvimento em sua pesquisa. Enquanto que para Favret-Saada a primazia pelo

    inesperado, que no fundo est sendo esperado, inesperado este que pode ser utilizado

    como forma de obter desenvolvimento adicional na pesquisa, ao mesmo tempo em que

    se desenvolve com novos valores como profissional pesquisador.

    2 Deve ser desnecessrio salientar que eventuais juzos de valor no so o escopo deste material.

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    SOCIAIS Volume 28, nmero 1, janeiro/junho de 2013

    Para citar este artigo: VIRGLIO, Jefferson. Por uma atualizao do mtodo da pesquisa participante nos

    contextos urbanos globalizados. Cadernos de Estudos Sociais, Recife, v.28, n. 1, p. 74-92, jan/jun, 2013

    (Dossi Temtico). Disponvel em: < http://periodicos.fundaj.gov.br/index.php/CAD>. Acesso em: dia ms, ano. [v. em edio].[78]

    Saliento que Favret-Saada em seu texto defende que as duas aes esto

    relacionadas, o desenvolvimento na pesquisa no pode ocorrer se no houver

    desenvolvimento (e envolvimento) pessoal do pesquisador, sendo este realizado pelo

    fato de ser afetado.

    Marcus e Favret-Saada argumentam que suas prticas, que compreendo como

    complementares e que podem ser utilizadas em conjunto, no so aplicveis em

    qualquer local, por qualquer pesquisador, da mesma forma, e o convite prtica da

    mesma ocorre mais como sugesto, do que, efetivamente uma recomendao. No se

    prope mudar as prticas antropolgicas, e sim, adapt-las conforme o meio,

    pesquisador e momento vivido.

    Percebo como as metodologias por Marcus e Favret-Saada so fundamentais no

    desenvolvimento de minhas concluses sobre a pesquisa, a abertura para um maior

    envolvimento e participao junto aos manifestantes (como com todo um jogo de outros

    atores sociais) permitiu acesso a uma srie de questes que eu jamais julguei, antes,

    existir, e que permitiram refletir sobre as situaes vivenciadas em Lisboa. O segundo

    momento desta situao, a incentivada por Marcus, militncia, pretende-se que seja

    visvel aps o trmino da leitura deste material.

    A compilao organizada por Nordstrom e Robben (1995) um acumulado de

    situaes etnogrficas de risco, em locais e com pessoas que, supostamente, podem

    ser um tanto quanto pouco seguras para o antroplogo. Quer para a sua prpria vida,

    quer para a sua pesquisa. So terrenos, e com sujeitos, que no facilitam a prtica

    etnogrfica, propem novos questionamentos mesma, e dessa forma permitem a

    mesma se desenvolver para novas prticas, evoluir para novas aplicaes, com

    metodologias, recursos e discursos que em muito podem diferenciar do esperado.

    Este salto metodolgico, que se torna aceito apenas em situaes

    especiais, alm de muito saudvel para a manuteno da disciplina enquanto

    permanente (mas dinmica) construo do saber, ainda permite demonstrar de um modo

    mais visvel, a urgncia de menor estruturao dos modos de trabalho de campo em

    antropologia.

    Compreender de forma adequada estes terrenos sob fogo pode ser o maior

    desafio ao qual um antroplogo pode encontrar, principalmente quando o antroplogo

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    Para citar este artigo: VIRGLIO, Jefferson. Por uma atualizao do mtodo da pesquisa participante nos

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    externo ao meio e possui toda uma concepo daquele meio construda previamente. Eu

    por exemplo acumulara as duas situaes, uma vez que as minhas preconcepes

    incluam me enxergar como externo ao grupo ao qual suscitava a minha pesquisa, alm

    de uma srie de percepes errneas a respeito do campo, dos sujeitos, dos interesses,

    etc.

    preciso, portanto, alm de desconstruir suas percepes do mundo,

    desconstruir suas percepes tericas e prticas. Em determinados casos pode ocorrer

    necessidade de pouca adaptao, enquanto em outros, tudo o que at ento era

    conhecido, cai por terra. Como j demonstrado no captulo primeiro, os contextos de

    insero ao campo podem provocar uma completa reviso terica e metodolgica. E em

    contextos mais singulares, notadamente, aqueles com algum nvel de violncia, e at

    onde percebo tal qual meu campo, alm do observado por outros pesquisadores

    (DURO; SHORE, 2010), o discurso poltico um agravante para a situao de reviso

    metodolgica, e de insero como pesquisador-participante (idem).

    No , portanto, possvel, vivel, desejvel ou recomendvel realizar a tentativa

    de compreenso de contextos onde a violncia est inserida de forma to intrnseca no

    meio, e nos sujeitos que l se relacionam com as teorias e prticas convencionais.

    Sugere-se que terrenos em um momento de crise ou em situao de catstrofe (sejam

    prvios, recentes ou atuais) necessitam de condies de trabalho de campo bastante

    singulares conforme cada caso.

    A OBSERVAO PARTICIPANTE: UMA NOVA CONFIGURAO

    A questo central no est em listar ou identificar tais situaes, ou as analisar a

    fundo por terceiros, e sim, ter a percepo de que este tipo de situao ocorre, e que o

    antroplogo deve estar preparado, teoricamente e metodologicamente para tal

    confronto. A academia, em complemento, deve tambm ser capaz de lidar com isto.

    A etnografia que realizada em terreno problemtico no se resume apenas

    a coleta de dados, anlise de dados e reflexo terica. Alm disto, necessrio

    adaptar, previamente e/ou on air tais momentos, e tambm perceber como os nativos

    percebem o fenmeno da violncia, tanto em contextos externos, como em seus

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    prprios contextos. Em alguns casos, como aqueles relatados por Nordstrom e Robben

    (1995) pode ser possvel identificar que os prprios nativos se encontram

    completamente desorientados quanto as suas prprias percepes do espao onde

    vivem.

    A situao de crise (ou catstrofe) muito mais do que mexer com os preceitos

    tericos do antroplogo, transforma os valores e conhecimentos prvios dos nativos. O

    quotidiano inexiste, pois foi corrompido, abalado ou destrudo devido ocorrncia da

    srie de eventos. Identidades, valores, significados, esperanas e expectativas, projees

    e padres so perdidos ou desconstrudos.

    O antroplogo ento tem de estar ciente que no encontrar tais ndices de modo

    to facilitado, exposto ou evidente. possvel que no os encontre, ou que encontre

    uma verso disforme, alternativa ou inexistente em momentos prvios. uma questo

    de posicionamento terico do prprio antroplogo ao decidir se estes novos valores

    devem ser considerados, ou admitir que as sociedades estejam em constante

    transformao, ou mesmo, buscar (o improvvel) resgate ao conhecimento dos valores

    identitrios e sociais prvios3.

    Mesmo conceitos e laos de unio social nos quais so naturalmente bastante

    resistentes, como ligaes familiares e de parentesco, ou relaes organizadas por

    questes de crena e religio, podem perder sua efetividade, funcionalidade, ou mesmo

    deixar de existir ou de ser confivel em situaes de instabilidade extrema. possvel, e

    esperado, que os sujeitos de estudo demonstrem que eles no sabem at quando, de que

    forma, como e em quem confiar, por exemplo.

    Esta barreira ao mtodo antropolgico, pode ser comparada as dificuldades na

    realizao das primeiras etnografias, por tericos clssicos, como Malinowski, 1932,

    porm as dificuldades identificadas dificilmente entrariam no mesmo grau de

    complexidade. A situao atual est mais prxima de uma breve atualizao do que

    de uma completa reviso, como j exposto nos pargrafos iniciais.

    3 Eu pessoalmente no acredito na viabilidade prtica deste tipo de interveno. Percebo que na maior

    parte dos casos, por uma infinidade de motivos, este tipo de resgate idealizado a suposies que

    enxergam as transformaes culturais e sociais, sejam individuais ou coletivas, como um

    desenvolvimento quase que linear, sem ramificaes (ou desvios), e com agentes muito bem conhecidos,

    pontuais e independentes.

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    Para citar este artigo: VIRGLIO, Jefferson. Por uma atualizao do mtodo da pesquisa participante nos

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    Um pesquisador que no se afirme e posicione como uma parte ativa, e presente,

    do grupo, nesses contextos facilmente um dos primeiros laos a serem desfeitos pelas

    partes envolvidas. Uma vez que o descarte de parentes e amigos, que em suas

    palavras: mais atrapalham do que ajudam, ao serem contra a participao em

    manifestaes, pelos mais diversos motivos podem ocorrer, o que dir do antroplogo,

    que em muitos casos quase que um aliengena, alm de infiltrado e indesejado.

    Em paralelo as dvidas que as situaes de crise, ou catstrofe, podem trazer aos

    grupos sociais, existem obviamente as necessidades de reconstruo, tanto dos valores e

    laos sociais, como da prpria existncia de cada individuo.

    A incluso (ou aceite) de agentes (em tese) externos ao grupo ocorre em

    momentos pontuais, de crise, e o aproveitar desta possibilidade de entrada, pelo

    antroplogo, que permitida pelos sujeitos de estudo, no deveria ser alvo de

    contestao ou repudio por aqueles que ousam querer praticar antropologia,

    notadamente por aqueles que no estiveram naquele campo. sim, um claro chamado

    autoridade etnogrfica (CLIFFORD, 1989, p.118-119). Voc no sabe o que eu passei e

    o que eu vi, ouvi ou fiz l.

    Eu poderia reconstruir uma descrio mais detalhada do que eu acredito que

    aconteceu, tal qual Geertz (1973) ou Evans-Pritchard (1992, p.21-28), de modo a

    declarar como eu acredito que entrei em campo, mas principalmente como eu fui

    aceito pelos meus sujeitos de estudo. Mas eu compreendo que no existe um entrar

    em campo, ou um sair de campo. Estamos constantemente reforando e fazendo a

    manuteno de nossa posio.

    O etngrafo, com pouca ou nenhuma experincia em situaes de crise ou

    catstrofe, pode neste tipo de terreno identificar o modo como os nativos reconstroem

    seus valores, suas expectativas e seus modos de viver e saber, para orientar-se em sua

    reconstruo de prticas e mtodos de trabalho de campo.

    Em uma anlise de grossa comparao, ao mesmo tempo em que os nativos

    perderam os seus norteadores de funcionamento social aps e durante a situao de

    crise e catstrofe, o antroplogo perde os seus norteadores de orientao terica e

    metodolgica para realizao de trabalho de campo. uma oportunidade nica e

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    (Dossi Temtico). Disponvel em: < http://periodicos.fundaj.gov.br/index.php/CAD>. Acesso em: dia ms, ano. [v. em edio].[82]

    singular para desenvolver a capacidade de real adaptao e aprendizado perante o

    sujeito de pesquisa e o campo de estudo realizado.

    uma aplicao prtica e real da antropologia que h muito fora esquecida. O

    antroplogo no deveria apenas saber como descrever o outro, tal qual uma grande

    parte de antroplogos sugerem (e defendem em seus discursos e prticas). O papel do

    antroplogo tentar, inutilmente, compreender os sistemas onde terceiros esto

    inseridos. A descrio apenas um, dentre tantos, modos de tentar atingir esse saber.

    Alguns autores (Gellner, 1999: 3-5; Reynoso, 2007:136-140; Verde, 2010:266-267) j

    evidenciaram essa incapacidade dos antroplogos contemporneos, em efetivamente

    praticar antropologia e na insistncia em reduzir a disciplina a quase uma prtica

    literria de descrio (fabricada) do outro. O aprender o saber do outro foi perdido.

    A atualizao do mtodo de pesquisa que proponho na verdade uma tentativa de

    resgate deste valor.

    APROXIMAO JUNTO AOS SUJEITOS DE ESTUDO

    Alm de todos os fatos j apresentados, existe ainda a questo, que facilmente

    pode ser tida como central por antroplogos que apoiem uma antropologia da

    interveno social, sobre a ignorncia do antroplogo daquilo que pode ou no ser

    realizado a favor do outro, que facilmente pode ser identificado como vulnervel ou

    em situao problemtica.

    questionvel se o antroplogo deve manter-se afastado e inerte a percepo

    que inevitavelmente ter de indivduos inseridos em situao violenta. Se o meio for

    extremamente violento, agressivo ou impe valores e prticas que agridam outros seres

    humanos, papel do antroplogo, tanto como profissional, como pessoa intervir.

    E poucos so os atores e agentes que possuem essa opo como realidade e no

    apenas na forma de desejo ou discurso. Fica ento, a critrio do antroplogo, optar ou

    no pela interveno, enquanto possvel e vivel for, quer impea ou no a realizao de

    seu trabalho de campo.

    Tentar entender a violncia observada no trabalho de campo como experincia

    do outro, e se afastar da situao um tanto quanto conveniente e, de fato mais

  • CADERNOS DE

    ESTUDOS

    SOCIAIS Volume 28, nmero 1, janeiro/junho de 2013

    Para citar este artigo: VIRGLIO, Jefferson. Por uma atualizao do mtodo da pesquisa participante nos

    contextos urbanos globalizados. Cadernos de Estudos Sociais, Recife, v.28, n. 1, p. 74-92, jan/jun, 2013

    (Dossi Temtico). Disponvel em: < http://periodicos.fundaj.gov.br/index.php/CAD>. Acesso em: dia ms, ano. [v. em edio].[83]

    simples de ser realizado. Antes de optar por tal posio, o antroplogo deve estar

    ciente dos impactos sociais que est se sujeitando, e principalmente, sujeitando terceiros

    a receberem, tanto agora, como posteriormente.

    Respeitar a diversidade, ser relativista e manter a distncia no se resume a

    ser cego aos eventos, ignora-los ou mesmo aceitar tudo como se ocorre. No existe

    observao mosca na parede, toda observao intervencionista, e se tal constatao

    bvia, no faz sentido alegar que no intervm para reduzir, poupar ou eliminar o

    fator intervencionista da anlise.

    O que de fato ocorre , uma fraqueza e incapacidade do antroplogo, em dados

    casos, de intervir por receio a crticas posteriores ou por de fato no se identificar com

    os problemas dos outros. A primazia ainda pode ser para a academia, mesmo quando se

    considera a existncia do outro no clculo de ponderaes do que, quando, como

    e por quem fazer.

    Acaba-se por enxergar o grupo analisado da mesma forma que um qumico

    analisa um composto orgnico. O campo seu laboratrio. A etnografia seu mtodo.

    Ignora apenas que o qumico tem cincia que sua anlise provoca interveno no

    composto qumico, e tenta calcular os impactos e os reduzir, porm a posterior de seu

    trabalho pode, e provavelmente tentar resolver problemas, quer seja para si, quer seja

    para (a anlise de) um composto.

    O antroplogo que ignora a sua capacidade e o seu poder de interveno e

    influncia no passa de um garoto com um kit de qumica que brinca em sua garagem.

    No um cientista, seja l, a definio que queira ter e ser do termo.

    Esta interveno pode ocorrer no formato de algo mais disfarado, com

    reconhecimento mais acelerado, tal qual algum retorno para as partes envolvidas, como

    o trabalho de Paulo Granjo (1994; 2004), ou ocorrer como algo mais explicitado,

    porem com resultados, bastante atrasados e distribudo.

    Em ambos os casos, a principal preocupao dos pesquisadores remete a

    determinadas situaes (indesejadas) que podem acabar por provocar nos sujeitos de

    estudo no intervalo de tempo que existe entre a publicao do material e a efetiva ao

    de um agente externo e superior (Estado) na causa raiz do problema. O antroplogo

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    Para citar este artigo: VIRGLIO, Jefferson. Por uma atualizao do mtodo da pesquisa participante nos

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    deve ter noo do tipo de impacto, e do atraso de seus efeitos, que provocar ao agir

    por terceiros ou em conjunto com eles.

    PERDA (OU FIM) DO CAMPO OU DOS SUJEITOS DE ESTUDO

    A pesquisa realizada em campo que se encontra em situao de risco possui

    outro fato, este sim, de esperado, prvio conhecimento dos antroplogos: O risco de

    extino de seu objeto de estudo. Quando a discusso antropolgica poderia remeter

    denominada antropologia da salvao, que de fato foi praticada por antroplogos

    como Alfred Kroeber (1925) era comum chamada a possvel extino do objeto de

    estudo.

    O que ocorre no trabalho em terreno com situao de crise, assim como as

    manifestaes sociais, que so desejadas como temporrias e idealizadas como

    terminveis em sua prpria funo primria, similar, mas no limitado apenas ao

    futuro objeto de estudo e sim, alargado para a pesquisa corrente.

    Alm do risco iminente de a situao de crise, catstrofe, guerra, conflito ou

    confronto atingir maior desenvolvimento, possibilitando a destruio total do campo de

    estudo, e por consequncia de boa parte dos sujeitos de estudos, existem outros

    limitadores que o antroplogo pode se deparar, desde remoo de seu acesso ao

    campo, perda de contatos chave, etc.

    Para evitar e contornar esses incidentes, o que realizado pelo antroplogo,

    nesse tipo de ambiente, a reduo temporal, tanto de sua pesquisa, como de seu

    convvio com os nativos. Uma acelerao imposta em seu mtodo de trabalho, a fim

    de evitar ou reduzir a possibilidade de o mesmo ser interrompido antes de estar

    finalizado.

    Para o meu caso especfico, alguns atenuantes so identificados, desde sujeitos

    que apenas aceitavam conversar durante as manifestaes a indivduos que eram

    presos ou hospitalizados. Para o primeiro caso, h todo um conjunto de dificuldades

    imposto em tentar realizar um dilogo, entrevista ou conversa durante uma

    manifestao, tanto no que repercute a recursos disponveis, como a interferncias de

    ordem externa (e interna). J para o caso de sujeitos presos e/ou hospitalizados, remete

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    facilmente para a perda de contato, sendo que no raro a interrupo de uma

    comunicao que acabara de atingir algum avano, mnimo.

    E o fato do antroplogo, ainda se manter em sua situao, quer admita ou no,

    posio (e status) diferenciada perante os nativos, e de fato, privilegiada, no permite ao

    pesquisador obter as mesmas percepes sobre a violncia que os nativos so supostos

    de possuir. Com uma ou duas ligaes telefnicas, e em poucas horas, o antroplogo

    est fora do campo, e em segurana no conforto de sua academia.

    Eu, se assim desejasse, abandonava a manifestao e simplesmente voltava para

    casa. Para todos os efeitos, eu ainda poderia convocar a minha identidade de

    estudante estrangeiro e dizer que nada sabia sobre a manifestao e que mal conhecia

    Lisboa. Repare que no to somente uma questo de autoridade, e sim de alteridade no

    que repercute o distanciamento antroplogo e nativo. Quase que independente do

    contexto.

    O nativo, no possui essa singular capacidade de deslocamento da situao de

    violncia. Nos exemplos apresentados por Nordstrom & Robben, por exemplo, so

    raros os autores que problematizam esta situao, porm no podem, e de fato no

    abririam mo deste privilgio por uma melhor antropologia. At porque no se tem

    qualquer garantia de que se obtenha uma melhor antropologia, ou qualquer

    antropologia, com antroplogos mortos, presos, hospitalizados, deportados ou com risco

    de morte.

    A questo envolvendo a alteridade entre o antroplogo (na figura daquele que

    faz a pesquisa), e o nativo (na figura daquele que a pesquisa) identificvel no

    discurso crtico de alguns tericos brasileiros (RAMOS, 2007, p.8-10; RIBEIRO, 2006

    p.152-154) quando expressam a preocupao sobre uma antropologia que prima pelo

    estudo do extico. Compreendo que o desenvolvimento que este protagonismo de

    recorte de pesquisa projeta no de todo positivo no que tange o alargamento da

    perspectiva antropolgica. No somente no deve o antroplogo cair na armadilha da

    tentao de pesquisar somente, ou primariamente, o extico, como deve ser capaz de

    problematizar as situaes tidas como familiares.

    Tanto Ramos (2007), como Ribeiro (2006) sugerem como antropologias

    perifricas, no-hegemnicas, as quais, incluem aqueles realizadas por antroplogos e

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    antroplogas nativos emergem cada vez mais e permitem o alcanar de novas

    perspectivas de anlise. Esta emancipao de uma prvia dependncia (de capacidade

    de anlise crtica) do antroplogo enquanto outro4 esclarecedora sobre a pertinncia

    da no reduo da metodologia a ser utilizada em campo pelo pesquisador.

    No somente a metodologia do trabalho de campo no pode ser restrita a padres

    cannicos (VIRGLIO, 2013, p.11-13), como o nvel de alteridade, e os interesses

    pessoais, entre pesquisador e pesquisado no podem ser fixos e imutveis. Para o meu

    campo especfico, tanto a metodologia que primo por defender, onde o antroplogo

    parte da pesquisa, como instrumento, e como fonte de informao (em dilogo com

    Wall, 2006 e Cohen, 1992), como a identificao (e posicionamento do antroplogo) se

    mostram flutuantes. Saio da situao de pesquisador estrangeiro, invasor e estranho, na

    manifestao para estudante militante, que parte, dita como crucial e ativa, no

    movimento.

    Um primeiro desenvolvimento permite sugerir que este deslocamento no deve

    se reduzir ao estar em campo e estar analisando o campo, e sim remetendo a algo na

    linha de ser capaz de analisar o campo a partir de mltiplas perspectivas e posies, ora

    como pesquisador, ora como sujeito de estudo, ora como pesquisador que sujeito de

    estudo.

    Ocorre ainda, um segundo deslocamento, onde o antroplogo alm de praticar o

    deslocamento epistemolgico, pratica um deslocamento de funcionalidade. preciso ter

    em considerao que cada antroplogo ou antroploga atingir diferentes pontos de

    vista, e diferentes pontos de contato com o campo e com os atores ali existentes.

    Esses diferentes posicionamentos/pontos de vista, uma vez alternados pelo

    analista social permitem traar os primeiros rascunhos de um trao de vista, que

    permitir uma anlise mais ampla do observvel em campo.

    O deslocamento de funcionalidade se torna perceptvel quando o pesquisador

    problematiza as relaes que constri com o campo. Notadamente tendo em conta que

    estas relaes so variveis com cada identidade de pesquisador ou pesquisadora.

    4 A inverso de posio relativa para o outro intencional.

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    Esta situao, em meu campo, se torna visvel quando questiono a singularidade

    de minha situao acadmica em Portugal, visto, por exemplo, que eu assistia s aulas

    em duas universidades diferentes, e parte das reflexes que atingi foram possveis aps

    o contato com os docentes destas turmas adicionais.

    ANTROPLOGOS NATIVOS

    Um modo levemente eficaz de contornar a situao envolvendo a limitao de

    acesso ao campo, pelas particularidades desse, quando o prprio antroplogo

    residente ou originrio da situao, ou encontra-se em situao, em tese, prxima a do

    nativo. Esclareo que ter vivido 2-3 anos da infncia, ou ser bisneto de um suposto

    nativo no torna o antroplogo nativo, como alguns antroplogos nativos gostam de

    se afirmar. E viver antes da situao de crise, acompanhar a mesma distncia por 2-3

    anos, e depois resolver fazer campo, j com toda uma inveno histrica carregada na

    mente no tampouco de grande valia.

    A pertena a uma classe social (ou casta) infinitamente superior ao corpo (ou

    parte do corpo) de sujeitos de estudo tambm no uma mais valia. Toda essa pr-

    construo de valores e conceitos sobre o campo tem de ser removida5. Esta noo de

    identidade, muito bem definida, clara, e ancorada a partir de um nmero reduzidssimo

    de pontos criticada, e entendo que superada, pela noo de intelectuais cosmopolitas

    de Appiah (1996), na qual o autor sugere no somente uma identidade que transcende

    um eventual ponto de pertena, como permite a reflexo sobre uma pertena mltipla,

    tal qual a que eu observo quando transito de pesquisador brasileiro que infiltrado

    para estudante de cincias humanas que integrado.

    Acreditar (previamente) que possui valores compatveis aos dos nativos somente

    piora a situao. Um antroplogo externo, ciente que no possui tais valores, e que tente

    os conhecer de mais valia que um antroplogo automaticamente declarado, por si,

    5 Refiro-me a Mysore Narasimhachar Srinivas, Edward Said e todo o conjunto de antroplogos

    autodeclarados e/ou tidos como nativos. Notadamente aqueles que utilizam de sua natividade como discurso legitimador de suas concluses. Note que, neste material, eu no critico a restrio de campo, ou

    o protagonismo de pesquisa a nativos. A crtica reduz-se a avaliar determinadas concluses (da pesquisa, tidas como cientficas) por critrios tidos como de pertena e/ou identidade.

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    como nativo e que deduz ser um profundo conhecedor daqueles que estuda. Alguns

    exemplos podem ser encontrados na coletnea organizada por Jackson (1987),

    especialmente na construo de mltiplas identidades comportamentais que

    Mascarenhas-Keyes com tanto orgulho e satisfao apresenta (1987). Uma segunda

    leitura que contribui neste sentido Narayan (1997), por fornecer clara crtica aos

    supostos antroplogos nativos, remetendo, como mtodo paliativo, a utilizao de

    reais nativos como informantes, mais ou menos nos moldes do demonstrado por

    Turner com seu interlocutor Muchona (1970).

    O antroplogo nativo, quando de fato o , possui alguns diferenciais perante

    antroplogos externos, que tanto podem ser positivos, como negativos, e no

    necessariamente esses positivos e negativos sejam universais. Cada meio propicia e

    impede determinadas aes, comportamentos e anlises que no necessariamente

    correspondam ao observado em outros campos ou situaes de conflito.

    Para o meu caso especfico, ser estudante (e pesquisador) um valor positivo, e

    reconhecido por todos. E em um contexto poltico de disputa, onde a palavra tem poder,

    observei interesse de meus interlocutores em falar com algum que passasse a frente

    aquelas informaes transmitidas ao pesquisador.

    Observei em que a escolha das lideranas dos movimentos se dividia

    basicamente entre falar com pesquisadores ou com reprteres. Percebi que eu era visto

    como uma boa opo de interlocutor para muitos manifestantes porque os demais

    pesquisadores que encontrei em campo eram externos faculdade, e principalmente,

    mais velhos, e que reprteres eram vistos como suspeitos e sobre os quais os

    manifestantes tinham srias restries sobre o que eles queriam ouvir e ao que, como

    e onde publicado. Assim minha posio de antroplogo brasileiro e jovem me

    permitia ter uma escuta privilegiada no campo dos movimentos sociais portugueses.

    O antroplogo nativo deve ter cincia de sua situao singular, e realizar todo

    o seu trabalho com tal referncia clara e definida. Alguns autores abordam essa

    temtica, nomeadamente no contexto da antropologia urbana, pois o meio comum de

    origem de muitos antroplogos ocidentais (e no da zona rural ou selvagem, por razes

    bvias).

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    Variados identificadores de dificuldade de realizao de etnografia em terreno

    conhecido podem ser encontrados em Strathern (1987), os quais no se resumem a

    antropologia urbana. J, no campo da antropologia urbana, especialmente para o

    contexto brasileiro, porm com possibilidade real de adaptao para nativos de outros

    campos, Gilberto Velho (2002), acompanhado de outros tericos (CARDOSO, 1986;

    DAMATTA, 1987; DURHAM, 1984; MAGNANI, 1984; VELHO, 1979) demonstra

    algumas caractersticas de tal prtica (etnografia urbana) e a pertinncia deste recorte de

    pesquisa na prtica antropolgica que se evidncia na discusso da teoria antropolgica

    brasileira durante as dcadas de 70 e 80.

    Eu retorno que nem toda a situao de crise, ou catstrofe, pode ser deduzida

    ou identificada previamente pelo antroplogo. possvel que em determinado contexto,

    para determinada situao, com determinada rede de interlocutores, ocorra situao de

    crise, catstrofe com o antroplogo, ou pelo fato do mesmo estar demonstrando

    tentativa ou resistncia de ingresso no grupo estudado.

    Uma situao muito particular deste tipo demonstrada no estudo de caso de

    Adami (2008) entre os Hare Krshina, quando o pesquisador ao tentar se inserir no grupo

    (no exemplo espanhol), de forma apenas parcial, no bem visto por parte do grupo,

    e, portanto condicionado a determinados comportamentos por imposio e uso de

    fora fsica. Curiosamente, quando realizou similar ao no Brasil, o comportamento

    havia sido diferente, logo, no esperava tal comportamento no cenrio espanhol.

    Para o meu caso, como j explicitado, eu nem mesmo esperava realizar esta

    pesquisa, naquele momento, naquele contexto, e naquelas condies. O aparato de

    suporte terico mais especializado que me acompanhava, em muito era distante do que

    eu levaria para trabalhar com movimentos sociais estudantis. Tenciono afirmar que

    no teria atingido as mesmas concluses, e principalmente no sei se tomaria as mesmas

    posies, se tivesse chego (a campo) de outra maneira e com outro conjunto de teorias e

    metodologias.

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