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Tradução:

Revisão:

Colaboração:

Arte:

Capa:

René TakeutiElizabeth Miyashiro

Thiago de Mello

Gláucia Yassuco ShirayamaAnderson Félix Nunes

Iusse José Filho

Henrique Kubota

Todos os direitos reservados à Editora Brasil Seikyo Ltda.

por Daisaku IkedaPresidente da Soka Gakkai Internacional

Enviada à Organização das Nações Unidas (ONU)por ocasião do 31º aniversário da SGI, em 26 de janeiro de 2006.

A nova era do povo: umarede mundial de indivíduos

conscientes e fortes

Editora Brasil Seikyo Ltda. Administração e redação: Rua Tamandaré, 1007, São Paulo, SP — CEP: 01525-001Fones: (11) 3274-1940/1941/1942 — Fax (11) 3274-1949 / CGC 61.612.891/0001-21

Matrícula na Lei de Imprensa no 2092 — Registro no INPI no 0060117320Diretor-Presidente: Eduardo K. Taguchi — Jornalista responsável: Júlio Tadachi China (matrícula DRT no 17.595)

Fotolito e Impressão: Plural Editora e Gráfica Ltda. — Av. Marcos Penteado de Ulhôa Rodrigues, no 700,Tamboré, São Paulo, SP — CEP: 06500-000 — Fone: (11) 4152-9430 — Fax: (11) 4152-9560

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Neste aniversário de fundação da Soka Gak-

kai Internacional (SGI), eu gostaria de apresen-

tar algumas idéias com a esperança de servir à

construção de uma sociedade humana de paz e

coexistência criadora.

Resposta à crise mundialDois mil e cinco foi um ano histórico: o do 60º

aniversário do fim da Segunda Guerra Mundial.

Foi, sobretudo, o ano em que ocorreram fatos ter-

ríveis, que ameaçaram a vida de milhares de se-

res humanos.

Nada foi mais assustador do que a série de

desastres naturais em diferentes regiões do mun-

do. Antes mesmo de começar a se recuperar dos

danos do terremoto em Sumatra e do tsunami, a

Índia foi vítima, em julho de 2005, da grande

inundação e, no final de agosto, furacões causa-

ram enormes estragos na

costa sudeste do Golfo

dos Estados Unidos.

Grande parte da África

Ocidental continua a so-

frer de fome em virtude

da seca e da praga de ga-

fanhotos. Em outubro,

um grande terremoto no

nordeste de Caxemira

deixou mais de 73 mil

mortos e aproximada-

mente 3 milhões de pessoas desabrigadas.

O impacto do furacão Katrina, nos Estados

Unidos, que paralisou uma das maiores cidades

americanas, deixando-a totalmente inundada,

com seus cidadãos indefesos em condições ater-

radoras, tentando salvar-se por si próprios —, re-

velou de forma dolorosa a vulnerabilidade aos

desastres naturais, mesmo de sociedades indus-

triais avançadas.

O terrorismo continuou apavorando o mundo

com ataques que mataram e feriram elevado nú-

mero de civis inocentes, lançando profunda in-

segurança na vida das pessoas no decorrer de

2005. Em julho, homens-bomba causaram a mor-

te de dezenas e feriram centenas de pessoas com

ataques ao sistema de transporte público de Lon-

dres. Os ataques ganharam mais impacto porque

foram perpetrados durante a Cúpula do G-8, cer-

cada por medidas de alta segurança. Numa se-

qüência perturbadora, a violência crescente e in-

discriminada — no Egito, na Indonésia, no Ira-

que e em outras partes mais — ceifou a vida de

tantos seres humanos.

A intolerância para com as diferenças étni-

cas ou nacionais, freqüentemente agravadas por

movimentos populares internacionais, tem sido

a causa de conflitos e da violência criminal, e

muitas sociedades atravessam graves divisões.

Na região de Darfur, no oeste do Sudão, ataques

da milícia árabe, a Janjaweed, contra a popula-

A nova era do povo:uma rede mundial de indivíduos

conscientes e fortes

ção local, mataram dezenas de milhares de pes-

soas e deixaram aproximadamente dois milhões

de desabrigados. Essas condições, que os inspe-

tores das Nações Unidas chamaram de “a mais

grave crise humanitária do planeta”,1 não têm

melhorado, nem têm suas causas resolvidas.

Crimes abomináveis se sucedem à feição dos

ataques terroristas de setembro de 2001, com

uma crescente onda de violência e discrimina-

ção contra os muçulmanos. Enquanto isso, em

outubro e novembro do ano passado, jovens des-

contentes tomaram as ruas, causando tumulto por

toda a França, impondo o toque de recolher em

muitas cidades e regiões.

O avanço a passos rápidos da globalização

tem aumentado o risco de doenças infecciosas

que se desdobram em epidemias. A pandemia da

Aids afeta severamente a África Subsaariana. No

mundo inteiro, a Aids já matou mais de 25 mi-

lhões de pessoas, deixou cerca de 15 milhões de

órfãos. Atualmente, por volta de 40 milhões de

pessoas estão infectadas com o vírus HIV. Tam-

bém cresce a preocupação com o surgimento de

novos vírus da gripe. A mutação do vírus da gri-

pe animal, que poderia permitir a transmissão de

pessoa a pessoa, viria a causar vítimas nas pro-

porções da gripe espanhola de 1918-1919.

Todos esses fatos representam questões glo-

bais que, direta ou indiretamente, afetam a todos

nós. Em momento algum podemos considerá-los

como se estivessem dissociados de nós, como fo-

go lá do outro lado do rio, conforme afirma o adá-

gio japonês. Como o aquecimento global e a con-

tínua pobreza, que serve de solo fértil para o ter-

rorismo, essas questões estão organicamente li-

gadas ao processo de globalização. Devem ser vis-

tas como seus produtos intrínsecos, muito mais

do que mudanças revolucionárias na economia,

nas finanças ou na tecnologia de informação (IT),

com as quais são comumente associadas. É ur-

gente uma resposta holística que trate de ambos

os aspectos, negativo e positivo, da globalização.

Essas questões vão até a essência da história

humana e integram os esforços para criar uma

nova civilização mundial. Visto a escala desse

desafio, uma busca por resultados rápidos pode-

ria facilmente surtir o efeito contrário, lançando

as pessoas num estado de desespero e impotên-

cia ainda maior. Essa inquietude terrível confli-

ta com a esperança que bem merecia o início des-

te século. Em contrapartida, faríamos bem em

concordar com a advertência que ganhou fama

pelo movimento ambiental: pensar globalmente,

agir localmente.

De fato, quando enfrentamos um impasse des-

ta escala, nada é mais eficaz do que voltar nos-

sa atenção do macro para o micro — de eventos

de escala vasta e esmagadora para outros mais

imediatos e, portanto, tratáveis. Quando trans-

portamos questões globais para a realidade tan-

gível da vida diária, mesmo a maior e mais gra-

Voluntários da SGI

distribuem suprimentos

às vítimas do tsunami

(dezembro de 2004).

Gripe espanholaA pandemia da gripe espanhola (1918–1919) foi a mais devastadora

já registrada em toda a história da humanidade, matando entre 20 e40 milhões de pessoas, número este superior aos mortos na PrimeiraGuerra Mundial. O nome deve-se ao fato de ter irrompido na Espanha,causando cerca de 8 milhões de óbitos em maio de 1918. Acredita-se que a pandemia tenha se originado na China e se propagado aolongo das rotas marítimas e comerciais, chegando à América do Norte,Europa, Ásia, África, Brasil e sul do Pacífico.

O vírus infectou um quinto da população mundial e foi mais letal paraas pessoas de 20 a 40 anos. Esse quadro de morbidade é incomum paraa gripe, que normalmente mata idosos e crianças. A taxa de mortalidadepela contaminação do vírus da gripe espanhola foi de 2,5% em comparaçãoa menos de 0,1% dos casos de epidemias de gripe anteriores.

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e muitos outros fatos terríveis antes inimaginá-

veis. Com freqüência, ouvimos a respeito desses

incidentes, expressões como “inacreditáveis” e

“incompreensíveis”. Esses lamentos revelam o

modo como as pessoas tentam se agarrar à com-

preensão de eventos anormais que fogem ao sen-

tido comum.

Em 1997, a cidade japonesa de Kobe foi ce-

nário de uma série de assassinatos de crianças

praticados por um rapaz, ele próprio com apenas

14 anos. Conforme se comprovou, isso era ape-

nas o início de uma série de crimes cometidos

por crianças e adolescentes. O escritor e crítico

Kunio Yanaguida estudou esses incidentes e suas

causas, e apresentou esta análise: “Embora seja

impossível chegar à causa real, já se pode afir-

mar que, virtualmente, todas as crianças que pra-

ticaram esses crimes horrendos possuem estru-

tura espiritual egocêntrica, que revela total in-

diferença à dor alheia”.4

Esses incidentes mostram a característica mar-

cante do crime dos dias modernos. Fico pensan-

do se não estaria aí a razão para o medo e a in-

quietação que sentimos em nossa própria vida.

Pode ser instrutivo o contraste com os costu-

mes de épocas e lugares muito diferentes. É o

que mostra Fédor Dostoiévski (1821-1881) em

seu clássico Recordações da Casa dos Mortos, no

qual relata suas experiências durante quatro anos

de trabalho árduo na Sibéria.

O que Dostoiévski expressa nesta obra é a

empatia estendida pelos habitantes dessa terra

de exílio aos criminosos que se encontram entre

eles. Apesar de reconhecerem o mal das ofensas

cometidas, essa simpatia dos moradores locais

permite imaginar como alguém — incluindo eles

próprios — poderia acabar cometendo um crime

terrível se estivesse nas mesmas circunstâncias.

Por esta razão, essas ações não são “incompreen-

síveis”, mas podem perfeitamente ser compreen-

didas — quase como uma realidade sentida e

tangível. Desse modo, eles se referem aos crimes

como “infortúnios” e seus autores como “desa-

fortunados”. Dostoiévski oferece um retrato ví-

vido e irresistível da comunicação de coração a

coração, que atravessa as barreiras dos altos mu-

ros e do arame farpado.

Comparando isto com a patologia da socieda-

de contemporânea, onde a criminalidade juvenil

representa apenas a ponta visível do iceberg, evi-

dencia-se como sintoma principal a quase total

ausência de solidariedade. No Japão também, fre-

qüentemente imagens de TV nos mostram pes-

soas que ocupam posição de responsabilidade

procurando explicar suas más ações. Quando no

final são encurraladas, abaixam a cabeça para pe-

dir desculpas — como se isso bastasse para se

redimir de seus atos premeditados. Que benevo-

lência ou afeto algum jovem poderia vislumbrar

nas expressões horrendas e relapsas no rosto des-

ses adultos? Essa incapacidade para perceber e

sentir a dor dos outros cada dia se aprofunda mais.

Se a nossa humanidade for desenvolvida den-

tro do contexto das relações com as outras pes-

soas, o individualismo exacerbado perderá sua

influência. O reconhecimento da existência e do

respeito pelos outros é sempre firmado na capa-

cidade de controlar os desejos particulares de

uma pessoa, e isso só pode ser desenvolvido den-

tro da estrutura de interação humana. Há, por-

tanto, um vazio intolerável no âmago desse indi-

vidualismo extremo, uma instabilidade e insegu-

rança que o ronda e mostra a dimensão da alie-

nação de qualquer comportamento normal e sau-

dável. Em última análise, é incompatível com a

nossa própria condição humana.

ve delas pode ser compreendida em sua essên-

cia. Este modo de ver os fatos é a maior esperan-

ça para abrir o caminho em direção a soluções

sustentáveis e produtivas.

O indivíduo livre e oindividualismo exacerbado

No outono passado, uma resenha literária pu-

blicada no Seikyo Shimbun (jornal diário da So-

ka Gakkai) chamou minha atenção para a obra de

Bill McKibben, Basta: Mantendo-se Humano em

uma Era Engenhada.* McKibben trata de desa-

fios fundamentais da humanidade, criados por

avanços da tecnologia de ponta — como, por exem-

plo, a possibilidade de manipulação genética das

células germinais humanas. Ele adverte que se o

uso dessa tecnologia não for bem controlado po-

derá provocar a extinção dos seres humanos.

Examinando o progresso da civilização moder-

na desde a Revolução Industrial, McKibben escre-

ve: “O interessante é que todas essas mudanças

tomaram a mesma direção: trocaram o valor con-

textual por liberdade individual”.2 Ao nos aproxi-

marmos deste limite, ele alerta: “Mas agora — e

por fim, aqui está a essência do argumento — cor-

remos o risco de desaparecer até como indivíduos”.3

Ao buscar a máxima liberdade para o indiví-

duo, a civilização moderna tem focalizado pessoas

sarcásticas, livres de restrições e de nossos vários

“contextos”. Os ganhos materiais e de conveniên-

cia pessoal têm sido realmente grandes. Mas o que

seria, de fato, um “indivíduo livre”, despojado de

todo contexto — sem os laços de família, vizinhan-

ça, da comunidade nacional, do ambiente profis-

sional e regional, de associações religiosas e ou-

tras, e da convivência com a própria natureza? Afi-

nal, não seria uma ficção esse indivíduo livre? Se-

rá que o resultado lógico dessa busca de liberda-

Engenharia GenéticaA engenharia genética torna possível introduzir

ou remover informação genética específica emcélulas vivas.

A engenharia genética somática possibilita mudara constituição genética de células específicas docorpo que compreendem órgãos e tecidos — fígado,cérebro, ossos — de um indivíduo em particular.Isso possibilitaria tratar enfermidades como fibrosecística inserindo um gene “corretivo” em célulasdoentes. As mudanças afetam somente esse indivíduoe não são transmitidas às crianças.

A engenharia genética das células germinais temcomo alvo os genes em óvulos, esperma ou célulasnão-diferenciadas de um pré-embrião. As alteraçõesafetam cada célula no corpo do indivíduo resultante,e são transmitidas a todas as futuras gerações.Embora a engenharia de células germinais seja emalguns casos sugerida como um meio para evitara transmissão de doenças genéticas, o fato de queisso alteraria permanentemente a constituiçãogenética da espécie humana torna impossível preverseu impacto a longo prazo.

De forma esmagadora, líderes das áreas política,religiosa e científica opõem-se à manipulação dascélulas germinais.

de não passaria de individualismo exacerbado, a

materialização de desejo irrefreável?

Vivemos numa era repleta de perigos impre-

visíveis, que o sociólogo Ulrich Beck chamou de

“sociedade de risco”. Transportando essas ques-

tões para a dimensão individual, é possível es-

clarecer sua essência. Se isso não for devidamen-

te compreendido, continuaremos incapazes de

encontrar a saída do impasse esmagador de nos-

sa realidade mundial. Tudo recairá no indivíduo.

Em anos recentes, ocorreram no Japão uma

série de crimes brutais, praticados por crianças,

*Título traduzido

conforme o artigo de

Marcelo Gleiser,

“Medo da Ciência”,

publicado no

Jornal da Ciência, de

28 de julho de 2003.

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Esta observação corresponde à essência de

nosso movimento. Historicamente, as religiões

japonesas apresentam uma tendência para a su-

bordinação ao Estado. Isso ocorreu particular-

mente com o budismo no período Edo (1603-

1867), quando se consagrou efetivamente à sub-

serviência das autoridades. Um dos maiores in-

telectuais do início da ocidentalização no Japão,

Yukichi Fukuzawa (1835-1901), descreveu esse

estado: “Eu diria que a religião desapareceu do

Japão”.6 Imagino que o Dr. Swyngedouw perce-

beu que nosso movimento, baseado no Budismo

de Nitiren Daishonin, pode servir como antítese

eficaz dessa subserviência.

Se a missão primordial da religião é formar

indivíduos fortes e engajados, capazes de dar res-

postas criativas aos desafios da vida, então, mais

do que nunca, ela deve se levantar para essa ta-

refa agora, quando os ventos da incerteza e da

mudança açoitam cada canto do planeta, cada

aspecto de nossa vida.

Montaigne: modelo dehumanismo

Nos muitos anos que já se passaram, tentei,

com estas propostas, espalhar a luz do humanis-

mo budista. Fiel a meu propósito, este ano eu

gostaria de examinar a vida e as idéias do escri-

tor do século XVI, Michel de Montaigne (1533-

1592), conhecido como o “Pai da Tradição Mo-

ralista Francesa”. Montaigne é famoso neste as-

pecto porque, apesar de não ter ligação compro-

vável com o budismo, suas idéias são incrivel-

mente semelhantes ao humanismo expresso na

tradição do Budismo Mahayana, especialmente

aquela que se origina do Sutra de Lótus e que foi

desenvolvida por Nitiren Daishonin (1222-1282).

No primeiro de seus ensaios, obra pela qual

ele é mais conhecido, Montaigne declara: “Em

verdade o homem é de natureza muito pouco de-

finida, estranhamente desigual e diverso. Dificil-

mente o julgaríamos de maneira decidida e uni-

forme”.7 A começar por esta declaração — que

ressoa com a visão budista da imper-

manência — toda a obra de Montaig-

ne é imbuída de um senso da relativi-

dade e mutabilidade dos fenômenos.

Embora mais tarde esse pensamen-

to fosse caracterizado como “oriental”,

Montaigne não buscou o tipo de vida

sugerido pelas idéias budistas ociden-

tais — de ser impelido pela aversão à

natureza da vida efêmera, retirando-

se em uma montanha isolada. Apesar

de confessar sentir-se mais à vontade quando es-

crevia em seu castelo, ele se dedicava ao servi-

ço público em vários postos, como conselheiro

do Tribunal de Périgueux, prefeito de Bordeaux

e conselheiro de vários reis da França. Ele ain-

da apreciava e procurava manter contato com as

pessoas comuns. Digno de um representante da

tradição moralista, não se incomodava de ser co-

berto pela poeira deste mundo.

A vida de Montaigne coincidiu quase total-

Essa realidade não tem escapado dos olhos

da sociedade. O escritor e ex-chefe de gabine-

te Taichi Sakaiya, por exemplo, observou a de-

generação dos laços tradicionais, como os das

relações de família, comunidade e local de tra-

balho, e visualizou uma sociedade solidária, or-

ganizada em torno de interesses compartilha-

dos. Da mesma forma, o crítico e dramaturgo

Masakazu Yamazaki retrata a intensa sensação

de isolamento que a globalização pode provo-

car: a sensação de existir em um vazio infinito

em que as pessoas “gritam, mas não obtêm res-

posta”.5 Ele defende o desenvolvimento de re-

lações sociais alicerçadas na confiança e nas

responsabilidades recíprocas inevitáveis da vi-

da. Conforme esses observadores nos confir-

mam, nós somente podemos viver dentro do con-

texto da relação. Somente neste contexto pode-

mos ser realmente humanos.

A essência consistente e aconvicção da Soka Gakkai

Essas idéias são de grande interesse, mas não

podemos perder de vista o fato de que os prota-

gonistas de toda e qualquer reestrutura da socie-

dade sempre será cada um dos cidadãos. Se real-

mente chegarmos a ser ameaçados, conforme

McKibben diz, de “desaparecermos até como in-

divíduos”, é somente reconsiderando o signifi-

cado de ser um indivíduo que poderemos encon-

trar a saída da escuridão. Só com o forte desejo

de cada um de nós, de participar ativamente das

relações sociais, é que a sociedade unida pode-

rá existir como um todo funcional.

Surge aqui a necessidade crucial de uma es-

trutura que impeça indivíduos livres de caírem

no egoísmo incontrolável. Precisamos encontrar

o ponto de apoio sobre o qual as pessoas possam

desenvolver a vontade requerida para serem pró-

ativas, fortes e engajadas. Este é o caminho cer-

teiro que levará ao horizonte de uma nova civi-

lização, de uma nova era das pessoas. Esta é a

convicção que venho mantendo já faz tempo.

As atividades da SGI constituem um movi-

mento humanístico, fundamentado no budismo,

que visa a desenvolver indivíduos fortes, capa-

zes de responder aos desafios de nossa era. Pou-

cos descreveram isto de forma tão incisiva quan-

to o Dr. Jan Swyngedouw, professor emérito da

Universidade de Nanzan, em entrevista para o

Seikyo Shimbun no início dos anos 1980.

Depois de uma convivência de vinte anos com

a sociedade e as religiões japonesas, o Dr. Swynge-

douw considerou a diferença entre as atitudes

dos membros da Soka Gakkai em relação à fé e

à prática religiosa e às daquelas tradicionalmen-

te mantidas pelo povo japonês.

O primeiro ponto observado por ele foi a pro-

fundidade e autenticidade da convicção susten-

tada pelos membros. O segundo: a essência re-

ligiosa vital da filosofia da Soka Gakkai consis-

te em despertar as pessoas para o valor que têm

dentro de si mesmas como seres humanos. O Dr.

Swyngedouw declarou que a formação e o desen-

volvimento dessa espécie de “espinha dorsal”,

do caráter, possibilita à Soka Gakkai criar pes-

soas capazes de prestar contribuições reais para

a paz no mundo.

Dizem que a sociedade japonesa valoriza a

“harmonia” (wa, em japonês), mas essa harmo-

nia não se limita apenas ao Japão. A harmonia

pela qual o presidente Ikeda e os membros da So-

ka Gakkai se dedicam tem como objetivo a paz do

mundo, e acredito que representa importante re-

volução na atitude religiosa do Japão.

Tradição Moralista FrancesaA origem da tradição moralista francesa é geralmente creditada

aos ensaios de Montaigne. Na segunda metade do século XVII,escritores como Pascal (1623–1662), La Rochefoucauld (1613–1680)e Nicole (1625–1695) reviveram essa tradição de engajamentohumanista com o mundo e a levaram ao pleno florescimento. Noséculo XVIII, os escritores moralistas clássicos franceses foramconsiderados como filósofos por leitores na Inglaterra, Escócia eAmérica — apesar da tendência da França em vê-los principalmentecomo grandes estilistas — e essa interpretação anglo-americana deusurgimento ao que veio a ser conhecida como filosofia moral.

Michel de Montaigne

ILUSTRAÇÃO: HENRIQUE KUBOTA

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mente com as guerras religiosas que arruinaram

a Europa no século XVI. Contra esse cenário san-

grento, o tom e linguagem ponderados de seus

Ensaios tiveram importância e brilho particula-

res. Suas palavras são, de fato, como a flor de ló-

tus, cujas flores brancas emergem das profunde-

zas das águas lamacentas.

Frisei anteriormente a importância de trazer

para perto os desafios globais por meio das len-

tes da realidade pessoal imediata. Essa essência

do projeto de Montaigne fez dele um extraordi-

nário pensador, que trouxe como foco o tipo de

humanismo — o ethos de cidadania mundial —

próprio de uma era de globalização.

Uma visão universalNão podemos escapar da realidade pessoal

pura e imediata da nossa própria vida. Se tentar-

mos fugir, pagaremos um preço inevitável. Como

Montaigne afirma: “As pessoas obcecadas por

essa idéia de separar o corpo do espírito, de se

tornarem diferentes e de deixar de ser homens

não passam de loucos; não se transformam em

anjos e sim em feras; em lugar de se elevarem,

abaixam-se. Esses humores transcendentes apa-

voram-me, como os sítios excessivamente altos

e inacessíveis...”.8

Consta nos ensinamentos budistas: “O exem-

plo de um único indivíduo serve igualmente pa-

ra todos os seres vivos”.9 Do mesmo modo, por

meio da observação da humanidade de um úni-

co indivíduo, ele próprio, Montaigne revelou uma

visão universal de toda a humanidade. Ele foi,

portanto, capaz de enxergar as diferenças e dis-

criminações religiosas do passado, a partir do

cruel conflito entre católicos e protestantes. “Com-

parai nossos costumes”, escreveu, “aos dos mao-

metanos e pagãos e vede quanto os nossos são

inferiores”.10 “Não há hostilidade mais eficaz

que a dos cristãos. Nosso zelo é capaz de mara-

vilhas quando secunda nossa inclinação natural

para o ódio, a crueldade, a ambição, a avareza,

a intriga, a rebeldia... Nossa religião tem por ob-

jetivo extirpar os vícios; mas faz com que os dis-

simule, os alimente e os incentive.”11

Embora Montaigne se auto-identifique como

um católico, ele era totalmente livre de sectaris-

mos. Comedido e tolerante em todas as questões,

era inclemente em condenar aqueles que des-

prezavam seus semelhantes por discórdias reli-

giosas. Cerca de 200 anos antes da Revolução

Francesa e da Declaração dos Direitos do Ho-

mem e do Cidadão, num tempo em que o concei-

to de “liberdade religiosa” não tinha sido defi-

nido, ele incluiu em seu livro um ensaio intitu-

lado “Da Consciência”, ato de extrema coragem

para a época.

A universalidade de Montaigne atravessa os

limites da cultura e etnia com igual facilidade. A

distinção entre o civilizado e o bárbaro, que viria

a sustentar séculos de colonialismo e que foi uma

verdade aos olhos da maioria dos europeus, era,

para ele, uma invenção absurda. Sua descrição

dos nativos brasileiros é audaciosa, imparcial e,

ao mesmo tempo, cheia de entusiasmo. “Não ve-

jo nada de bárbaro ou selvagem no que dizem da-

queles povos; e, na verdade, cada qual conside-

ra bárbaro o que não se pratica em sua terra... A

essa gente chamamos selvagens como denomina-

mos selvagens os frutos que a natureza produz

sem intervenção do homem. No entanto aos ou-

tros, àqueles que alteramos por processos de cul-

tura e cujo desenvolvimento natural modificamos,

é que deveríamos aplicar o epíteto.”12

Montaigne era totalmente livre de discrimi-

nação e preconceitos fundamentados nas dife-

renças étnicas e nacionais que ainda hoje conti-

nuam a aprisionar tantas pessoas. Essa liberda-

de de espírito motivou o seu sincero apreço por

outro cidadão mundial, o grego Sócrates.

“Perguntaram a Sócrates de onde era e ele

não respondeu: de Atenas, mas: do mundo. Pa-

ra ele, cuja inteligência mais vasta e aberta que

a de outrem abarcava o universo e dele fazia sua

cidade, o objeto de sua afeição era o gênero hu-

mano.”13

A visão universal de Montaigne também não

o deixava se influenciar pelas diferenças de pa-

drão social. As seguintes passagens demonstram

isso claramente: “Quando consideramos um cam-

ponês e um rei, um nobre e um plebeu, um ma-

gistrado e um simples particular, um rico e um

pobre, uma enorme diferença nos salta aos olhos.

Mas essa diferença não consiste por assim dizer,

senão na diversidade de calçado que usam uns

e outros”.14 E: “Cem artesãos conheci, e cem la-

vradores, mais prudentes e felizes do que profes-

sores universitários. Com os primeiros gostaria

de me parecer”.15

Deste modo, Montaigne era capaz de rejeitar

as distinções de classe feudal com risos. Mas is-

so não significa que ele era um anarquista. Não

negava a ordem social à qual, como um aristo-

crata, pertencia. Montaigne era, portanto, uma

pessoa que abraçava a liberdade e generosidade

de espírito e, ao mesmo tempo, um conservador

ferrenho.

No escrito “A seleção do tempo”, Nitiren Dai-

shonin declara a respeito do governante Hei no

Saemon: “Pode parecer que, por ter nascido den-

tro de seu domínio, eu o siga em minhas ações,

mas jamais o seguirei em meu coração.”16 Mon-

taigne faz declarações de efeito semelhante. Ele

parece ter considerado isso como o melhor meio

de imitar a realidade, de fazer avançar gradativa-

mente a causa de alguém enquanto evita os hor-

rores da violência e do derramamento de sangue.

Outro aspecto único do pensamento de Mon-

taigne é que o seu olhar penetrante não se diri-

gia unicamente aos seres humanos, mas também

ao mundo natural, à vida animal e vegetal.

“Cumpre-nos ter certo respeito não somente

pelos animais, mas também por tudo o que en-

cerra a vida e sentimento, inclusive árvores e

plantas.”17

O pensamento de Montaigne difere nitida-

mente das visões estabelecidas de sua época, que

estabelecem distinções hierárquicas bem defini-

das entre os humanos e o resto da natureza. Sua

visão apresenta profunda similaridade com os

ensinamentos do budismo — de que todos os se-

res vivos possuem a natureza de Buda e que plan-

tas e árvores são capazes de atingir a ilumina-

ção. Acredito que essa perspectiva sobre a rela-

ção entre os homens e a natureza pode nos aju-

dar a resolver a crise ambiental do planeta.

Há outras passagens interessantes que demons-

tram como o ceticismo de Montaigne levou-o a re-

examinar até mesmo a rotina do dia-a-dia. No

mais longo de seus ensaios, escrito em defesa do

teólogo Raymond Sebond, lemos o seguinte:

“Quando brinco com minha gata, sei lá se ela não

se diverte mais do que eu?”18 Dessa declaração

ingênua pode ser obtida uma consciência da na-

tureza, da realidade e uma sensibilidade aguça-

da para com a vida, sem falar da afinidade entre

os seres humanos e seus animais de estimação.

Desta forma, Montaigne ilustra o ethos da

cidadania mundial, que considero ser a pró-

pria essência do humanismo, incluindo nor-

mas práticas e guias de comportamento. Mes-

mo tendo escrito há mais de 400 anos, Mon-

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12 13

taigne oferece um exemplo inspirador.

Há, creio eu, três aspectos cruciais em rela-

ção à prática e normas de um humanismo funda-

mentado no budismo: (1) uma aproximação gra-

dativa; (2) uma ênfase no diálogo; e (3) um enfo-

que no caráter ou integridade pessoal como va-

lor central. Isto é algo que enfatizo há anos e do

qual tratei num discurso proferido em janeiro de

1993 na Faculdade Claremont McKenna, nos Es-

tados Unidos. Estes também são temas freqüen-

tes na filosofia de Montaigne.

Uma aproximação gradativaAo ler os Ensaios, observa-se de imediato o

valor que Montaigne confere, talvez de forma exa-

gerada, ao hábito ou costume — um poder e uma

importância enormes às questões humanas. “Em

suma, a meu ver, não há o que o costume não fa-

ça ou não possa fazer; e com razão afirma Pínda-

ro, ao que me disseram, ser o hábito o rei e im-

perador do mundo.”19 “Nossos hábitos moldam

nossa vida a seu bel-prazer, como a bebida de Cir-

ce que modifica a nossa natureza a seu talante.”20

O foco constante na pessoa é a característica

da filosofia de Montaigne. Isto porque nossa rea-

lidade pessoal é diversa em todos os aspectos; nun-

ca é idêntica para duas pessoas. Ela pode contras-

tar completamente e, em grande parte, pode ser

decisivamente influenciada e moldada pelas tra-

dições e costumes particulares de certa localida-

de. “Em verdade, como ingerimos com o primei-

ro leite hábitos e costumes, e o mundo nos apare-

ce sob certo aspecto quando o percebemos pela

primeira vez, parece-nos não termos nascido se-

não com a condição de nos submetermos também

aos costumes; e imaginamos que as idéias aceitas

em torno de nós, e infundidas em nós por nossos

pais, são absolutas e ditadas pela natureza.”21

De novo se trata da natureza ilusória do indi-

víduo livre, desimpedido de todos os laços ou com-

promissos. As pessoas não podem simplesmente

ser “reajustadas” a uma condição de nulidade,

como uma folha de papel em branco, esperando

pacientemente a caneta do escritor. “Quaisquer

que sejam as possibilidades que tenhamos de cor-

rigi-lo e reorganizá-lo, não podemos, sem o que-

brar, dobrá-lo até perder o vinco antigo.”22

Quando lidamos com a realidade macro, por

exemplo, de uma nação ou Estado, precisamos

nos lembrar de que isto representa a interação

complexa de muitas realidades pessoais, locais

e culturais. Como tal, é possível obter medidas

específicas e graduais de experiências passadas

e aplicá-las cuidadosamente. Mas qualquer ten-

tativa de derrubar e reconstruir o estado em sua

totalidade de acordo com “medidas imaginadas

artificialmente”23 é uma expressão da arrogân-

cia humana destinada ao fracasso.

Esta é uma lição escrita nas profundezas do

ser de Montaigne pelas guerras religiosas infer-

nais que o assolou e que o deixou cético quanto

a quaisquer esforços por uma reforma radical.

“Mas querer refundir tão grande massa e tro-

car os alicerces de tamanho edifício é fazer co-

mo os que, para melhorar, apagam tudo, para cor-

rigir um defeito tudo desmantelam, para curar

matam o doente: ‘Não é bem mudar que preten-

dem; é destruir’.”24

Esta é a mesma pessoa que expressou idéias

que pressupôs, há uns 200 anos, a Declaração

dos Direitos do Homem e do Cidadão. Conforme

observei anteriormente, Montaigne teve a capa-

cidade única de adotar idéias que hoje seriam o

extremo oposto do espectro conservador-liberal.

Montaigne declarou: “A novidade, qualquer

forma que assuma, me aborrece profundamen-

te...”25 Esta desconfiança um tanto extrema em

relação à mudança demonstrada por Montaigne

certamente era uma reação ao massacre e à con-

vulsão social que ele havia testemunhado. Pode-

mos concordar ou discordar dele neste ponto, de-

pendendo muito de nossa opinião sobre mudan-

ças revolucionárias, como ocorreu na França e

na Rússia séculos mais tarde. Mas acerca de um

ponto pode haver um pouco de controvérsia, is-

to é, que os modernos proponentes de mudanças

revolucionárias têm sido superotimistas em afir-

mar a maleabilidade da natureza e da sociedade

humana. Este tipo de arrogância tem levado a ra-

dicalismos irracionais, violências, torturas e mas-

sacres, deixando um rastro de sangue.

Gostaria aqui de referir-me ao capítulo dos

Ensaios em que Montaigne, com base em sua

própria experiência no serviço público, discu-

te sobre a virtude política. Acredito que o se-

guinte trecho oferece uma descrição da aproxi-

mação gradativa: “A virtude que as coisas des-

te mundo exigem é uma virtude flexível, capaz

de se adaptar à fraqueza humana; não é pura

nem simples; não é reta, constante, imaculada.

(...) Quando nos misturamos à multidão, cabe-

nos abrir o caminho aos empurrões, avançar e

recuar e por vezes tomar por atalhos; e viver,

não como desejaríamos, mas como querem os

outros; não segundo o que nos propomos e sim

de acordo com o que nos impõem; segundo o

tempo, os homens e as coisas”.26

Conforme ele indica, vale a pena lembrar que

política é uma questão de habilidade e técnica,

de dar e tomar, de encontrar um equilíbrio entre

interesses conflitantes e de reunir várias opiniões.

É a arte de fazer acordos e de encontrar o ponto

para evitar que expectativas elevadas irreais pos-

sam levar ao desastre. Uma leitura cuidadosa dos

Ensaios nos permite reconhecer o sofrimento, a

paciência e a perseverança de Montaigne como

uma figura pública que afirmava que “o cami-

nho da lei é doloroso, imparcial e impositivo”,

em contraste com a violência e o poder que, para

ele, eram “caminhos ilegais e bárbaros”.27 Esta

fórmula contém importantes lições, que espero

sejam acatadas no Japão e no mundo inteiro.

Ênfase no diálogoNa busca de uma aproximação gradativa, o

diálogo é o meio mais eficaz que temos à nossa

disposição. Montaigne expressou seu puro amor

pelo diálogo da seguinte forma: “O mais provei-

toso e natural exercício de nosso espírito é, a meu

ver, a conversação. É-me a sua prática mais agra-

dável do que qualquer outra”.28 Neste capítulo,

Montaigne entra numa explanação detalhada do

espírito com o qual devemos nos aproximar do

diálogo, num engajamento com os outros. Gosta-

ria de enfocar aqui dois pontos em particular.

Primeiro, apesar de o próprio Montaigne ser

um membro da aristocracia, como já mencio-

nado, ele considerava a diferença entre bem-

nascidos e malnascidos como algo essencial-

mente irrelevante — não mais que uma ques-

tão dos sapatos que eles usavam. Humanista en-

gajado, ele declarou que era preferível ser um

bom escudeiro a ser um bom lógico.29 Ele pre-

feria conversar com as pessoas comuns, pois era

nelas que encontrava o verdadeiro diálogo e re-

finamento de caráter.

“Admiraria um espírito constituído de vá-

rios andares e que, desmontável à vontade, se

adaptasse a tudo o que o acaso lhe apresentas-

se; que pudesse conversar com o vizinho acer-

ca de construções, caça, demandas e com car-

pinteiro ou jardineiro.”30

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14 15

A aproximação gradativa, fundamentada em

nossa realidade imediata, somente pode ser efi-

caz quando praticada por uma pessoa controla-

da e magnânima, cujo interesse principal é o ser

humano.

Montaigne admirava Sócrates como o “mes-

tre dos sábios”.31 Isto porque “Sócrates expri-

mia-se de um modo natural e simples; assim fa-

la um campônio, assim fala uma mulher”.32 Em

outras palavras, o homem louvado como o mes-

tre número um da humanidade não tinha neces-

sidade de termos filosóficos sofisticados, trans-

punha facilmente o mar da linguagem, o mar das

pessoas, repartindo a sua sabedoria com todos

que encontrava e onde quer que fosse.

A seguir, Montaigne declara que, quando en-

gajado em diálogo: “Vã é a empresa de quem pre-

sume abraçar causas e conseqüências e condu-

zir os fatos pela mão...”33 Nesta frase, Montaig-

ne nos clama a deixarmos de lado a arrogância

humana e a nos engajarmos com aquelas forças

que superam nossos poderes de discernimento e

entendimento racional.

“Quando me consulto, esboço apenas o tema

de minhas reflexões e o encaro superficialmen-

te nos seus primeiros aspectos; o principal da ta-

refa, tenho por hábito confiá-lo ao céu.”34

Em termos religiosos, esta atitude pode ser

comparada à oração. Se perdermos de vista esse

tipo de humildade, aplicando fé indevida no po-

der das palavras, podemos ser facilmente arras-

tados por um cinismo destrutivo quando nossos

esforços para o diálogo chegarem a um impasse.

Deste ponto há um único passo para a rejeição

ao diálogo. Isto é algo que vivemos diariamente.

É óbvio que, em escala macro, pode resultar em

guerras, revoluções, violências e conflitos.

A advertência de Montaigne contra a vaida-

de é hoje mais relevante do que nunca. O impul-

so para moldar até mesmo os nossos filhos aos

nossos desejos, por meio de tecnologias como as

da engenharia genética, é exemplo típico da ar-

rogância humana mais terrível e catastrófica.

Caráter como valor principalGostaria agora de falar a respeito do caráter

como valor principal. Como já observei, a obra

Ensaios é repleta de expressões de visão mun-

dial, que de várias formas são análogas à com-

preensão oriental da impermanência e transito-

riedade de todas as coisas. Mas não é o tipo de

visão sentimental ou emotiva de impermanência,

comumente observada no Japão. Tampouco é um

desejo ardente por salvação que submete a pes-

soa a alguma vasta e inescrutável entidade, co-

mo um “céu” ou “natureza”, que domina nosso

ser individual. Ao contrário, possui um senso

concreto da realidade da existência diária.

Virtualmente, todos os 107 capítulos dos três

volumes de Ensaios possuem títulos que consti-

tuem conselhos de como melhorar a vida neste

mundo, temas e advertências que estão em sin-

tonia com as percepções do cotidiano das pes-

soas. Encontramos aqui a verdadeira essência de

Montaigne, o grande moralista francês, que sen-

tia um orgulho insuperável por ser um partici-

pante engajado na realidade da vida diária.

Montaigne abre os Ensaios com esta frase:

“Leitor, sou eu mesmo a matéria deste livro...”,35

e continua: “Deparamos em qualquer homem com

o Homem”.36 “Quero permanecer senhor de mim

mesmo.”37 “Eu que sou rei no assunto de que

trato...”,38 e “Quem não se conhece pode empa-

turrar-se com elogios imerecidos; eu não, porque

me vejo, me analiso e sei muito bem o que sou”.39

Assim, embora Montaigne tivesse o claro dis-

cernimento para reconhecer que tudo, incluindo

ele próprio, era inconstante e sujeito a mudar,

continuou a manter o mesmo interesse por ele

próprio. Sua preocupação principal era a busca

do caráter e da integridade das pessoas. “A mais

admirável obra-prima do homem consiste em vi-

ver com acerto. Em outras palavras, fazer cada

coisa em seu devido tempo. Tudo mais — reinar,

juntar, edificar — não passa de acessório e de

minúcia.”40

Com seu famoso lema “Que sais-je?” (O que

eu sei?), Montaigne assumiu o desafio de Sócra-

tes, engajando-se em um incessante processo de

autoquestionamento. Qual era o estado de vida

interior, a relação com a verdade, que Montaig-

ne — o cético e relativista — atingiu mediante

sua busca obsessiva e indagação inflexível? No

final do capítulo dos Ensaios encontramos estas

palavras: “Saber lealmente gozar do próprio ser,

eis a perfeição absoluta e divina. Nós só deseja-

mos condições diferentes das nossas porque não

sabemos tirar partido daquelas em que nos acha-

mos. Saímos de nós mesmos porque ignoramos o

que nos compete fazer. Embora usemos pernas

de pau, temos de mexer as do corpo para andar,

e é com o traseiro que nos sentamos no mais al-

to trono do mundo”.41

Dedicando-se ao processo inexorável de dú-

vida e questionamento, Montaigne exterminou o

dogmatismo e o fanatismo. Ele esmigalha a hi-

pocrisia arrogante. Por sua compreensão do ab-

soluto ser algo emanado de seu interior — cul-

tivado colocando-se o relativo em confronto com

o relativo, empilhando dúvida sobre dúvida —,

ele era capaz de evitar a armadilha de tratar co-

mo absoluto aqueles processos que são relativos

por natureza própria (como muitos marxistas, por

exemplo, fizeram posteriormente).

É neste aspecto que encontramos sua estrutu-

ra, o esteio de suas convicções. Foi isto que o pos-

sibilitou a continuar a dirigir críticas mordazes às

guerras religiosas, à exploração gananciosa das

colônias, ao sistema de classes — males que até

hoje ameaçam a vida e a dignidade humana.

A religião a serviçoda humanidade

O poeta e escritor Shigueharu Nakano (1902-

1979) escreveu um ensaio no qual comparou So-

seki Natsume (1867-1916) e Lu Xun (1881-1936),

gigantes da literatura japonesa e chinesa, res-

pectivamente. Nakano conclui que Lu Xun vai

além disso e “chega a ponto de lutar pró-ativa-

mente contra o mal, a ponto de realmente odiar

o mal. Ainda que não consiga vencer em sua ba-

talha, ele [Lu Xun] está determinado a marcar

politicamente seus oponentes, ele não os deixa-

rá desapercebidos”.42

Apesar do cenário histórico e cultural de am-

bos os escritores diferirem totalmente e de seu

temperamento serem contrastantes, Lu Xun e

Montaigne eram moralistas eminentes. A limita-

ção que Nakano identifica em Soseki Natsume é

certamente uma reflexão do senso de imperma-

nência japonesa, que tendia a encorajar a passi-

vidade ou mesmo a resignação. Em uma linha si-

milar, o Dr. Jan Swyngedouw, sociólogo da reli-

gião, o qual mencionei anteriormente, declarou

que a preocupação dos japoneses pela harmonia

é típica, limitando-se ao Japão. Em contraparti-

da, o movimento da Soka Gakkai aspira a uma

harmonia mais ampla, mundial. Neste sentido,

pergunto se ele estaria percebendo um compro-

misso moral com o diálogo, um espírito de com-

bater o mal sustentado pela força do caráter. A

missão da fé religiosa é fortalecer as pessoas in-

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teriormente. Do início ao fim de seus Ensaios,

Montaigne lança seu claro brado por este exato

propósito: a religião a serviço da humanidade.

O Buda, em sua última advertência a seus se-

guidores, pediu a eles e, conseqüentemente, a

nós: “Vivam como ilhas em relação a si mesmos,

sejam seu próprio refúgio, sem ninguém mais co-

mo seu refúgio, tenham o Darma como uma ilha,

o Darma como seu refúgio e nenhum outro mais”.43

Assim, o budismo ressalta a autoconfiança, a

crença espontânea na verdade do Darma, como

a base para elevar o caráter humano ao estado de

absoluta fruição, conhecido como iluminação.

Este é o eixo em torno do qual tudo gira.

É meu sincero desejo que este despertar, o

florescimento do caráter individual, torne-se a

essência e a convicção das pessoas do mundo in-

teiro, à medida em que avançam para assumir

seu verdadeiro papel como cidadãos pró-ativos

e engajados.

Liberdade, segurançae dignidade

Gostaria de falar a seguir sobre áreas especí-

ficas nas quais cidadãos comuns — pessoas for-

tes, engajadas, vivendo como indivíduos solidá-

rios — podem trabalhar na construção de uma co-

munidade global de paz e coexistência criadora.

As Nações Unidas devem servir como foro vi-

tal e ponto de convergência de nossos esforços.

A humanidade enfrenta uma variedade de ques-

tões complexas que ignoram totalmente frontei-

ras nacionais — ameaças como o terrorismo, con-

flitos armados, pobreza, degradação ambiental,

fome e doença. Uma Organização das Nações

Unidas reformada e fortalecida é essencial para

reunir sugestões eficazes e enfrentar os desafios

globais da nova era.

O ano de 2005 marcou o 60º aniversário das

Nações Unidas, e isto ofereceu um estímulo adi-

cional ao debate sobre a reforma. Em março, o

secretário-geral da ONU, Kofi Annan, lançou o

relatório “Um conceito mais amplo de liberda-

de: desenvolvimento, segurança e direitos huma-

nos para todos”. Nele, Annan amplia a missão

das Nações Unidas e as metas da reforma: liber-

dade para viver sem miséria, liberdade para vi-

ver sem temor e liberdade para viver com digni-

dade.

O relatório apresenta, em termos resolutos e

enérgicos, a relação interdependente entre essas

três liberdades: “A humanidade não desfrutará

de segurança sem desenvolvimento, não desfru-

tará de desenvolvimento sem segurança, e não

desfrutará de nenhum dos dois sem o respeito

pelos direitos humanos”.

De minha parte, venho continuamente enfa-

tizando que o desenvolvimento humano, a segu-

rança humana e os direitos humanos devem ser-

vir como princípios condutores para a reforma

das Nações Unidas. A missão fundamental da

ONU é simbolizada nas palavras iniciais da Car-

ta: “Nós, os povos...”. Ela deve dedicar-se ao

bem-estar de todos os cidadãos do mundo e à eli-

minação do sofrimento desnecessário da face da

Terra.

Após o debate contínuo das propostas do se-

cretário-geral e de outros, a Reunião Plenária de

Alto Nível da Assembléia Geral realizada em se-

tembro adotou o documento Cúpula 2005. É real-

mente lamentável que negociações difíceis e de-

moradas sobre seu teor tenham resultado na su-

pressão de toda menção de desarmamento e não-

proliferação de armas nucleares e acabaram sen-

do vistas como apenas mais um acordo geral so-

bre várias questões.

Sobre o Conselho de Segurança, os líderes

mundiais somente puderam expressar apoio pe-

la “reforma antecipada” e falharam por não dis-

cutir propostas debatidas há tempos, como a am-

pliação de seus membros. De minha parte, apóio

a reforma total do Conselho de Segurança — vi-

sando a uma divisão maior de responsabilidades

com uma perspectiva global.

Outras discussões são necessárias para obter

um consenso sobre o tipo de reforma que irá equi-

par fundamentalmente as Nações Unidas para

enfrentar os desafios deste mundo. Um aspecto

crucial para isso é a solidificação da base da re-

ceita das Nações Unidas. Em adição às contri-

buições financeiras dos Estados-Membros, me-

didas como a criação de um fundo popular para

as Nações Unidas, sugerida em minha proposta

de 2001, poderia ser considerada.

Apesar dessas deficiências, a Cúpula viu pro-

gressos em outras áreas. Os mais notáveis foram

acordos sobre medidas para estabelecer um Con-

selho de Direitos Humanos das Nações Unidas

para substituir a Comissão de Direitos Humanos;

criar uma nova Comissão de Consolidação da Paz;

e reformar o Fundo Rotativo Emergencial Cen-

tral para possibilitar respostas rápidas e efetivas

às crises humanitárias.

É uma triste realidade das Nações Unidas,

como uma organização intergovernamental, que

essas idéias e empreendimentos por reformas

inovadoras inevitavelmente enfrentem obstá-

culos inflexíveis de interesses nacionais con-

flitantes. Contudo, o pessimismo nada constrói

e, assim sendo, devemos focalizar a melhor for-

ma para implementar planos adequados e es-

tabelecer mecanismos efetivos para proteger e

melhorar a vida dos membros vulneráveis da

família humana.

A proteção dos direitos humanosAs atividades da Comissão de Direitos Hu-

manos das Nações Unidas, como constituída atual-

mente, incluem: direcionar questões de direitos

humanos em países específicos, e também as

questões comuns a diversos países e regiões, de-

bater e examinar meios para a promoção dos di-

reitos humanos, recomendar a adoção de resolu-

ções e tornar públicos os abusos com o intuito de

expor os responsáveis, coibindo essas práticas.

Contudo, ocorre uma forte tendência de poli-

tizar as questões dos direitos humanos — um re-

flexo direto da dinâmica da diplomacia entre os

Estados representados na Comissão — além do

insistente impasse dos governos, o que também

causa essa paralisia. Desta forma, há muito se

reconhece a necessidade de se restaurar a con-

fiança na Comissão e em seu trabalho.

Gostaria de apresentar algumas sugestões em

relação às funções e à estrutura do novo Conse-

lho de Direitos Humanos, que os líderes mun-

diais se comprometeram em estabelecer na Cú-

pula, em substituição à Comissão.

Em primeiro lugar, a educação para os direi-

tos humanos e a informação pública deveriam ser

itens permanentes da agenda do Conselho.

Examinar abusos específicos e reparar os da-

nos causados às vítimas estão entre as tarefas

mais importantes a serem herdadas da Comissão

de Direitos Humanos. Mas, além disso, são ne-

cessários esforços constantes para mudar os pa-

radigmas sociais e a cultura política que toleram

as violações aos direitos humanos. Esta é a úni-

ca forma de evitar que os abusos ocorram e que

essas práticas tão arraigadas se repitam.

O Programa Mundial de Educação para os Di-

reitos Humanos foi iniciado no ano passado. Tor-

nar a educação para os direitos humanos um item

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permanente na agenda do Conselho de Direitos

Humanos asseguraria seu consistente engaja-

mento com o programa e o encorajaria a monito-

rar ativamente sua implementação.

Em segundo lugar, gostaria de propor que re-

presentantes da sociedade civil tivessem ampla

oportunidade de participar dos trabalhos do Con-

selho de Direitos Humanos. É fato que os esfor-

ços das Nações Unidas para promover os direi-

tos humanos vêm sendo apoiados de forma sig-

nificativa por muitas organizações não-governa-

mentais (ONGs) e outras organizações da socie-

dade civil. Como uma das comissões funcionais

do Conselho Econômico e Social (Ecosoc), a Co-

missão de Direitos Humanos vem trabalhando

com ONGs em caráter consultivo. É meu since-

ro desejo que o Conselho de Direitos Humanos

mantenha e fortaleça a sua estrutura, de forma

que as ONGs possam continuar a falar nas ses-

sões plenárias, e se engaje em efetivas consultas

aos Estados e representantes das Nações Unidas.

Em terceiro lugar, gostaria de apoiar as rei-

vindicações para a criação de um organismo con-

sultivo de especialistas, subordinado ao Conse-

lho de Direitos Humanos.

Mais especificamente: gostaria que a já exis-

tente Subcomissão para a Promoção e Proteção

dos Direitos Humanos continue seus trabalhos,

ou que seja criado um organismo com funções

equivalentes. Além de suas funções investigati-

vas e de pesquisa em apoio aos processos deli-

berativos do Conselho de Direitos Humanos, o

organismo que antevejo deveria servir para re-

fletir as visões e preocupações da sociedade ci-

vil.Também proponho que qualquer desses orga-

nismos consultivos conduza os mecanismos, de-

senvolvidos a partir da subcomissão, dos relató-

rios especiais e dos grupos de trabalho sobre

questões específicas de direitos humanos, como

as relacionadas aos povos indígenas, às mino-

rias, entre outras.

A consolidação da pazDe acordo com as Nações Unidas, quase me-

tade dos países que emergem dos conflitos des-

cobrem-se novamente emaranhados neles num

prazo de cinco anos. É imperativo que esse ciclo

mortal de violência seja rompido. Para isso, nos

últimos dias de 2005, a Assembléia Geral da

ONU e o Conselho de Segurança agiram em con-

junto para estabelecer uma Comissão de Conso-

lidação da Paz. Esse organismo fornecerá acon-

selhamentos e recomendações para que a Assem-

bléia Geral e o Conselho de Segurança apóiem,

de forma sustentada, coordenada e integrada,

ações de auxílio internacional para todos os es-

tágios de recuperação dos conflitos violentos —

desde a construção da paz pós-conflito até a re-

construção.

Apóio completamente a criação da Comissão

de Consolidação da Paz, que assumirá funções

semelhantes àquelas do Conselho de Implemen-

tação da Paz, que ressaltei em minha proposta

de 2004.

As Nações Unidas encarregaram a Comissão

de Consolidação da Paz de uma série de tarefas.

Acredito que os três seguintes papéis são de im-

portância particular, e espero que todos os esfor-

ços sejam feitos para concretizar estes objetivos:

1. Engajar não apenas os líderes dos gover-

nos ou grupos envolvidos num conflito, mas tam-

bém homens e mulheres que vivem nas áreas con-

flitadas e empenhar-se para eliminar as ameaças

e os temores que enfrentam.

2. Consultar a sociedade civil e as ONGs e

coordenar ações com esses atores, a fim de asse-

gurar auxílio sustentado da comunidade interna-

cional durante todo o período necessário para o

processo de reconstrução da paz.

3. Abrir as portas para as pessoas de países

com experiência em recuperação pós-conflito e

na construção da paz, para que contribuam com

os povos de outras nações que sofrem as conse-

qüências do conflito.

A construção da paz e a reabilitação pós-con-

flito geralmente são consideradas sob os aspec-

tos gerais da reconstrução nacional, como a rea-

lização de eleições, a formação de novo governo

e a adoção de uma constituição. Mas a experiên-

cia do século XX atesta que a trágica armadilha

da história não pode ser desarmada, a menos que

o processo de recuperação seja baseado nas pers-

pectivas e nas preocupações das pessoas comuns.

Com esta lição em mente, penso que a Comissão

de Consolidação da Paz deve ver como seu o pa-

pel de assegurar que a cooperação internacional

tenha objetivos mais arrojados — que abrace a

reconstrução do cotidiano das pessoas, a recons-

trução da felicidade delas.

O engajamento dasociedade civil

Enquanto procuramos por uma reforma das

Nações Unidas que reflita as perspectivas e preo-

cupações dos cidadãos comuns, gostaria de en-

focar a revitalização da Assembléia Geral.

Embora seja desnecessário dizer que o Con-

selho de Segurança continuará a desempenhar

um papel central na manutenção da paz e da se-

gurança globais, a Assembléia Geral é também

crucialmente importante: é o único foro univer-

sal de diálogo onde os Estados-Membros podem

participar e propor soluções aos desafios mun-

diais. Estou convencido de que os esforços para

ampliar o acesso a esta assembléia da humani-

dade conduzirão ao fortalecimento de todo o sis-

tema das Nações Unidas.

O relatório do secretário-geral Kofi Annan ci-

tado anteriormente, “Um conceito mais amplo de

liberdade”, esclarece o seguinte sobre a direção

da reforma da Assembléia Geral: “Deve concen-

trar-se nas principais questões do dia e estabele-

cer mecanismos para engajar-se plena e sistema-

ticamente com a sociedade civil”. Embora seja

igualmente frustrante o fato de que nenhuma me-

dida específica tenha sido aprovada na Cúpula

Mundial 2005, indubitavelmente, esta medida é

a chave para fortalecer ainda mais a Assembléia

Geral. Assim, sugiro que sejam criadas oportu-

nidades freqüentes para que o presidente da As-

sembléia Geral e os integrantes de cada um de

seus comitês consultem mais as ONGs, para es-

tabelecer uma relação de efetiva colaboração com

a sociedade civil.

Em junho de 2005, a Assembléia Geral orga-

nizou dois dias de audições informais com a so-

ciedade civil, criando uma oportunidade para

que representantes de ONGs e especialistas de

todo o mundo expressassem uma ampla gama de

opiniões com relação à Cúpula Mundial 2005.

Foi a primeira experiência desse tipo na história

da ONU, posteriormente recebida positivamen-

te pelos participantes da Cúpula como um pas-

so rumo a um engajamento interativo entre a so-

ciedade civil e os Estados-Membros. Foi real-

mente um avanço pioneiro.

Ao mesmo tempo, as ONGs empreenderam a

corajosa iniciativa de organizar a Rede de ONGs

Millennium+5. Este grupo informal de ONGs reu-

nirá as opiniões da sociedade civil e as levará às

Nações Unidas. Acredito que estes esforços pa-

ra estabelecer foros de diálogo entre os cidadãos

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comuns do mundo e as Nações Unidas ajudarão

a consolidar as bases da ONU como um organis-

mo internacional sustentado por dois pilares gê-

meos: seus Estados-Membros e a sociedade civil.

Fundamentada na filosofia do humanismo bu-

dista, a SGI vem apoiando consistentemente as

atividades das Nações Unidas. Como ONG, atua-

mos ativamente de várias formas. Exemplo re-

cente foi a eleição de nosso representante como

presidente do Comitê de ONGs Religiosas nas

Nações Unidas, em junho do ano passado.

Da mesma forma, em feve-

reiro deste ano, em comemora-

ção de seu décimo aniversário,

o Instituto Toda para a Paz Glo-

bal e Pesquisa Política realiza-

rá uma conferência internacio-

nal em Los Angeles, que trata-

rá da reforma e do fortalecimen-

to da ONU. Esta conferência, elaborada com ba-

se no sucesso dos projetos de pesquisa desse ins-

tituto, explorará as iniciativas de transformação

da ONU em uma organização que trabalhe real-

mente para e pelas pessoas.

cooperação internacional e lidar com esse desa-

fio. É meu desejo que esforços contínuos sejam

empreendidos para descobrir novas abordagens

capazes de enfrentar as mudanças climáticas, ao

mesmo tempo em que apoiamos os objetivos des-

te Ano Internacional.

Como aconteceu com a questão da chuva áci-

da e do buraco na camada de ozônio, também

agora os esforços internacionais não se harmoni-

zam para enfrentar a mudança climática. O Pro-

tocolo de Kyoto, que finalmente entrou em vigor

em 2005, obriga seus signatários industrializa-

dos a reduzir, até 2012, suas emissões de gases

que provocam o efeito estufa em pelo menos 5%,

comparadas com o nível de 1990.

Contudo, o consenso científico é de que es-

sas medidas são insuficientes, e as emissões pre-

cisam ser reduzidas no mínimo pela metade do

nível atual para controlar o aquecimento global.

Hoje, o primeiro desafio é convencer novamen-

te os Estados Unidos e reunir os países em de-

senvolvimento, como a China e a Índia — cujas

emissões estão crescendo rapidamente — em al-

gum projeto de cooperação internacional. Essa

questão foi levantada pela Cúpula do G8 duran-

te o encontro em Gleneagles, em julho de 2005.

Durante a 11ª sessão da Conferência das Par-

tes da Convenção-Quadro de Mudança Climáti-

ca de 1992, realizada junto com o primeiro En-

contro das Partes do Protocolo de Kyoto em de-

zembro de 2005, em Montreal, no Canadá, foi

criado um grupo de trabalho para discutir, nos

O combate à mudança climáticaAgora, gostaria de voltar a atenção para a cri-

se ambiental que preocupa nosso planeta.

Em fevereiro de 2005, encontrei-me com a

ganhadora do Prêmio Nobel da Paz, professora

Wangari Maathai, que estava em visita ao Japão

na ocasião em que o Protocolo de Kyoto entrou

em vigor. Durante nosso encontro, a professora

Maathai falou das milhares de pessoas envolvi-

das no movimento mundial em prol do meio am-

biente, e afirmou que seu Prêmio Nobel serviu

para transmitir uma forte mensagem: proteger o

ambiente é de importância crucial para a con-

cretização da paz. Realmente, resolver a crise

ambiental global é parte integrante do desafio de

se construir um mundo pacífico.

A professora Maathai é mundialmente conhe-

cida pela fundação do Movimento Cinturão Ver-

de, que tem como objetivo combater a desertifi-

cação em sua terra natal, o Quênia. Durante os

últimos trinta anos, as muitas mulheres envolvi-

das no movimento plantaram 30 milhões de ár-

vores em toda a África.

A desertificação é um problema sério e cres-

cente, particularmente nas regiões secas e ári-

das da África e da Ásia. Há uma forte evidência

de que essa mudança climática antropogênica

está exacerbando o problema e seu impacto. A

desertificação é um dos temas da Avaliação de

Ecossistemas do Milênio, conduzida sob os aus-

pícios da ONU. O modo de vida de quase 2 bi-

lhões de pessoas, habitantes das regiões secas

do mundo, correrá grandes riscos se o aqueci-

mento global continuar agravando a desertifica-

ção no ritmo atual.

Foi diante deste cenário que as Nações Uni-

das declararam 2006 o “Ano Internacional dos

Desertos e da Desertificação” para promover a

Comitê de ONGs Religiosas das Nações Unidas

O Comitê de ONGs Religiosas (RNGO) das Nações Unidas écomposto por representantes de organizações nacionais e internacionaisregistradas na ONU e que definem seu trabalho como de naturezareligiosa, espiritual ou ética.

O Comitê vem se reunindo regularmente desde 1972 e partilhainformações e opiniões sobre questões complexas e eventos da ONU.Seu foco de atuação é duplo: serve como um foro para informar seusintegrantes religiosos sobre os atuais desafios globais e sobre o importantepapel que as Nações Unidas podem desempenhar no direcionamentodessas questões. Também divulga e promove valores religiosos e éticosnas deliberações das Nações Unidas.www.rngo.org

Conferência

Internacional

realizada pelo

Instituto Toda

(Moscou,

junho de 2001).

Wangari Maathai e

Daisaku Ikeda

(fevereiro de 2005).

Movimento Cinturão VerdeA bióloga e ambientalista Wangari Maathai criou

o Movimento Cinturão Verde no Quênia, em 1977,como um organização não-governamental de raízespopulares que reuniu mulheres quenianas das áreasrurais e as incentivou a plantar árvores, com o objetivode combater o desmatamento, restaurar sua principalfonte de combustível no preparo de alimentos e evitara erosão do solo.

O Movimento desenvolveu um programa formadopor quatro projetos principais: plantio de árvores emterrenos públicos; proporcionar segurança alimentaràs famílias; defesa do meio ambiente e conscientização;e educação cívica e ambiental. O Movimento temmais de 3 mil viveiros e oferece oportunidades detrabalho para mais de 80 mil pessoas.

Desde 1977, mais de 30 milhões de árvores foramplantadas e mais de 30 mil mulheres foram treinadasem administração florestal, processamento dealimentos e em vários outros negócios que as auxiliamna obtenção de renda, ao mesmo tempo em quepreservam suas terras e seus recursos. O Movimentoexpandiu-se para além do Quênia como uma RedePan-Africana do Verde que congrega 36 organizaçõesem 15 países africanos, além do Movimento CinturãoVerde Internacional.

Em 2004, Wangari Maathai recebeu o PrêmioNobel da Paz por seu trabalho no MovimentoCinturão Verde.www.greenbeltmovement.org

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próximos dois anos, sistemas sucessores do pro-

tocolo para o período após 2012. É significativo

que a conferência tenha propiciado um foro no

qual os representantes de todos os partidos pu-

dessem se encontrar e conversar. A participação

dos Estados Unidos e dos principais países de-

senvolvidos — embora condicionados à nature-

za não obrigatória das conversações — foi sufi-

ciente para salvar a convenção do colapso, o que

parecia iminente.

Como país-sede, que fez importantes contri-

buições para a consecução do Protocolo de Kyo-

to, acredito que o Japão tem um papel importan-

te a desempenhar no desenvolvimento de um sis-

tema sucessor. Certamente, será muito mais efe-

tivo o trabalho com países com um forte compro-

metimento com as questões ambientais.

O Protocolo de Kyoto estabelece que todas as

partes desenvolvam sua eficiência energética, in-

centivem o plantio de árvores e tomem outras me-

didas para reduzir as emissões e aumentar a re-

moção do dióxido de carbono da atmosfera. Pa-

ra facilitar esses esforços, também faz uso de um

sistema chamado Mecanismo de Kyoto, que per-

mite a absorção do carbono pelas florestas, atuan-

do como escoadouros de carbono para se chegar

aos objetivos de redução das emissões. O Japão,

além de empenhar o máximo esforço para alcan-

çar seus próprios objetivos, deve tomar a inicia-

tiva de auxiliar os outros países a preservar e res-

taurar suas florestas e criar novas fontes de ener-

gia renovável.

Além do Mecanismo de Kyoto, há ainda o Me-

canismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), que

possibilita os países desenvolvidos a investir em

projetos que reduzam a emissão dos gases do efei-

to estufa nos países em desenvolvimento. Tam-

bém merece todo nosso apoio a proposta feita pe-

los países desenvolvidos durante a Conferência

sobre Mudança Climática, em Montreal: acres-

centar os programas de conservação das flores-

tas aos já incluídos no MDL.

Estou convencido de que é crucial encorajar

os países em desenvolvimento a participarem nos

programas de redução de emissão, oferecendo

mecanismos construtivos que respondam às suas

necessidades específicas.

Estima-se que o desmatamento seja respon-

sável por 10% a 20% do aumento total de emis-

são de gases do efeito estufa no mundo. Há uma

extrema necessidade de se construir um sistema

global de cooperação para a conservação das flo-

restas. É com essas considerações em mente que

insisto na adoção de um Tratado Internacional pa-

ra o Desenvolvimento de Energia Renovável e pe-

lo estabelecimento de um Fundo Verde Global,

conforme apresentei em minha proposta de 2002.

Educação para odesenvolvimento sustentável

Em paralelo a estes esforços de combate ao

aquecimento global, penso que o Japão tem um

importante papel a desempenhar no campo da edu-

cação. A Década das Nações Unidas da Educa-

ção para o Desenvolvimento Sustentável (Deds)

iniciou-se no ano passado. A idéia, originalmen-

te criada pela SGI e outras ONGs, foi proposta pe-

lo governo japonês na Conferência Mundial sobre

Desenvolvimento Sustentável de 2002, em Joha-

nesburgo. Posteriormente, foi adotada formalmen-

te pela Assembléia Geral das Nações Unidas.

Como defensora da Deds, a SGI continuará a

trabalhar para promovê-la, por exemplo, por meio

da exposição “Sementes da Mudança: A Carta

da Terra e o Potencial Humano” e do documen-

tário “Uma Revolução Silenciosa”, cuja produ-

ção apoiamos.

Em outubro de 2005, a Organização das Na-

ções Unidas para a Educação, a Ciência e a Cul-

tura (Unesco) elaborou o Plano Internacional de

Implementação da Deds. Ela definiu seu objetivo

geral como sendo “integrar os princípios, valores

e práticas do desenvolvimento sustentável em to-

dos os aspectos da educação e do ensino”,44 e, com

esse objetivo, mudou os padrões de comportamen-

to e criou um futuro mais sustentável. A Unesco

também solicitou aos governos que formulassem

sistemas de implementação nacional e estruturas

para promover a Deds, a fim de elevar a conscien-

tização sobre desenvolvimento sustentável.

Como patrocinador da Deds, o Japão tem a par-

ticular responsabilidade de fornecer um modelo

de implementação local e internacional. Ele to-

maria a forma de cooperação e auxílio aos países

asiáticos e africanos, cujos cidadãos e modo de vi-

da são influenciados pelos efeitos da desertifica-

ção e por outras formas de degradação ambiental.

Tenho declarado em muitas ocasiões que o

caminho que o Japão deve trilhar no século XXI

é fazer do compromisso com o meio ambiente e

com o humanitarismo sua raison-d’être. Esses

compromissos se juntam aos esforços para for-

necer auxílio e assistência e possibilitarão às pes-

soas e sociedades avançarem no caminho do de-

senvolvimento sustentável.

Mecanismo de Desenvolvimento LimpoO Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) é

um dos três assim chamados “Mecanismos deFlexibilidade” do Protocolo de Kyoto, junto com oComércio de Emissões (o comércio de compensaçõesde emissões entre as nações desenvolvidas) e aImplementação Conjunta (a transferência de com-pensações de emissões entre as nações desen-volvidas). Esses mecanismos estão destinados afacilitar e a baratear os objetivos de redução deemissão de gases do efeito estufa que os paísesindustrializados concordaram no Protocolo de Kyoto.O MDL é o único mecanismo de flexibilidade queenvolve os países desenvolvidos, e também objetiva“auxiliar os países em desenvolvimento a alcançarum desenvolvimento sustentável”. Atualmente, ospaíses em desenvolvimento não possuem obrigaçõespara restringir suas emissões de gases do efeito estufa,mas o MDL os possibilita a contribuírem volunta-riamente com a redução global de emissão.

De acordo com as regras do MDL, um paísindustrializado com um objetivo de redução de gasesdo efeito estufa pode investir em um país emdesenvolvimento sem um objetivo de redução, e obtercréditos para emissões, utilizando esses créditos parasuas próprias metas. Exemplos típicos nesse sentidosão projetos nos países em desenvolvimento quereduzem as emissões ou removem o CO2 da atmosfera.http://cdm.unfccc.int/

Avaliação de Ecossistemas do MilênioA Avaliação de Ecossistemas do Milênio foi estabelecida pelo secretário-

geral das Nações Unidas, Kofi Annan, em junho de 2001 e completadaem março de 2005. Constitui-se na “primeira auditoria abrangente dasituação do capital natural da Terra” e foca os “serviços” (benefícios)que os ecossistemas proporcionam às pessoas, além de analisar comoas mudanças na qualidade desses serviços podem afetar o bem-estarhumano hoje e no futuro. A Avaliação também examina as respostasque podem ser adotadas no âmbito local, nacional e global paramelhorar a administração dos ecossistemas.

O Relatório Sintético da Avaliação de Ecossistemas do Milênio, lançadoem março de 2005, revelou que aproximadamente 60% dos “serviços”dos ecossistemas que mantêm a vida na Terra estão sendo degradadosou utilizados de forma não-sustentável. Ele adverte que essas conseqüênciasnocivas podem crescer significativamente nos próximos 50 anos. Issoinclui o surgimento de novas doenças, mudanças repentinas na qualidadeda água, formação de “zonas mortas” ao longo das costas, o colapsoda pesca e mudanças nos padrões regionais do clima.www.maweb.org/en/index/aspx

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A construção de umacomunidade do Leste Asiático

Quero agora tratar da Ásia, onde as relações

ainda estão muito fragilizadas pelos conflitos e

tensões da Guerra Fria.

Em dezembro de 2005, foi realizada a primei-

ra Reunião de Cúpula do Leste Asiático na Malá-

sia, com a presença de líderes de dezesseis paí-

ses: os dez membros da Associação das Nações

do Sudeste Asiático (Asean) mais o Japão, a Chi-

na, a Coréia do Sul, a Índia, a Austrália e a Nova

Zelândia. Com certeza, a maior realização dessa

cúpula foi iniciar um processo de diálogo entre os

chefes de governo da região com o objetivo de for-

mar uma Comunidade do Leste Asiático.

Durante a Cúpula da Asean+3 (Japão, China

e Coréia do Sul), reunida pouco antes da Cúpu-

la do Leste Asiático, os participantes adotaram

a Declaração de Kuala Lumpur, comprometen-

do-se, entre outras ações, a: (1) realizar a Cúpu-

la da Asean+3 anualmente, junto com a Cúpula

da Asean, oferecer incentivo político para a for-

mação da Comunidade do Leste da Ásia, e (2)

iniciar os esforços de todos para preparar uma

segunda Declaração Conjunta sobre a Coopera-

ção no Leste da Ásia em 2007, e assim, estabe-

lecer o direcionamento futuro para a formação da

Comunidade do Leste Asiático.

Para alguém que há muito trabalha para pro-

mover a paz e a amizade na Ásia, este consenso

não poderia ser mais bem-vindo. Espero sincera-

mente que todos os envolvidos possam ver além

dos limites de seus interesses nacionais e façam

um esforço concentrado para construir uma co-

munidade de nações livres da ameaça da guerra.

As bases para isso já foram estabelecidas. Co-

mo uma condição para a participação na Cúpula

do Leste Asiático, China, Japão, Coréia do Sul,

Índia, Nova Zelândia e Austrália assinaram o Tra-

tado de Amizade e Cooperação (TAC) no Sudeste

da Ásia. Isto ampliou a zona de países comprome-

tidos com os princípios do TAC, os quais incluem

“a resolução de diferenças e disputas por meios

pacíficos” e “a renúncia à ameaça ou uso da for-

ça”.45 Os mesmos princípios estão consagrados

na Carta das Nações Unidas. E se a consolidação

desses princípios nos países dessa região ajudar

a construir a paz e relacionamentos cooperativos,

então estará aberto o caminho para a institucio-

nalização da renúncia à guerra na região.

Para assegurar progressos nessa direção, é es-

sencial que haja diálogos regulares entre os che-

fes de governo, junto com um secretariado, que

trate de colocar em prática a cooperação regio-

nal. O acordo para estabelecer a Cúpula da

Asean+3 e a Cúpula do Leste Asiático de forma

regular vai além do cumprimento da primeira

dessas três condições. Com relação ao secreta-

riado, o grupo encarregado de debater o conteú-

do e desenvolver a linguagem para a segunda De-

claração Conjunta sobre a Cooperação no Leste

Asiático poderia se ampliar e se tornar uma co-

missão permanente do Leste Asiático no futuro.

Uma alternativa seria reorganizar o Comitê Per-

manente da Asean e seu secretariado, hoje res-

ponsáveis em administrar o dia-a-dia da Asean

para que cumpra sua função maior.

Essa comissão serviria para desenvolver as

estruturas regionais e assim direcionar questões

comuns entres os países. Isso incluiria: comba-

ter a propagação de novas epidemias de gripe e

outras ameaças na área da saúde pública e ser-

viço sanitário; implementar plenamente as lições

do terremoto e do tsunami de Sumatra de dezem-

bro de 2004 para fortalecer a cooperação regio-

nal na prevenção de desastres e a recuperação;

e evitar a destruição e degradação ambiental.

Trabalhar juntos em questões de interesse co-

mum certamente auxiliaria a forjar a confiança

na região, fortalecendo as bases de qualquer co-

munidade futura. E unir esta cooperação regio-

nal à iniciativa política resultante do diálogo no

âmbito da Cúpula certamente acelerará o pro-

gresso em direção ao estabelecimento de uma

Comunidade do Leste Asiático.

Um ethos de coexistênciaNo próximo ano, será celebrado o cinqüente-

nário da Comunidade Econômica Européia (CEE),

a precursora da atual União Européia (UE). Na

Europa, meio século de contínuo diálogo e coo-

peração construiu uma sólida base para uma co-

munidade regional, na qual a guerra é virtual-

mente impensável, um processo que continua por

meio de desafios, como a busca pela ratificação

da constituição da União Européia por todos os

Estados-Membros.

Assim, não seria agora a ocasião para que os

países do Leste Asiático lidassem definitivamen-

te com o legado de conflito e tensão que conti-

nua a assolar a região, a despeito do fim da Guer-

ra Fria, e se unissem para dar o primeiro passo

rumo à construção dessa comunidade? Os esfor-

ços para a construção de uma Comunidade do

Leste Asiático devem estar baseados em uma vi-

são de longo prazo, antevendo-se em 50 ou 100

anos um “Estados Unidos da Ásia”, similar aos

“Estados Unidos da Europa” imaginado por Vic-

tor Hugo (1802–1885). Em uma união dessa es-

pécie, elevados níveis de integração regional for-

neceriam um cenário onde cada nação com sua

cultura, brilhe, radiosa, com suas qualidades e

individualidades únicas, ao mesmo tempo em

que se enriqueça com os frutos da coexistência

pacífica e do florescimento mútuo.

Naturalmente, devemos nos lembrar de que

o processo de integração européia foi facilitado

por uma base espiritual comum: o legado da ci-

vilização cristã. Qual é, então, o equivalente no

Leste Asiático? As tentativas históricas de se cla-

mar por uma identidade comum subjacente, co-

mo a afirmação do autor japonês Tenshin Oka-

kura (1863–1913) de que a “Ásia é uma só”,46

podem ser criticadas como fantasia retórica, sem

substância real.

Comentei no passado (em um discurso em

outubro de 1992 na Academia de Ciências So-

ciais da China) que, no Leste da Ásia, diferen-

tes povos desenvolveram suas próprias cultu-

ras e tradições e que, portanto, eles não deve-

Associação das Nações do SudesteAsiático (Asean)

A Associação das Nações do Sudeste Asiático(Asean) foi estabelecida em 8 de agosto de 1967,pela Indonésia, Malásia, Filipinas, Cingapura eTailândia. Brunei juntou-se em 8 de janeiro de 1984;o Vietnã em 28 de julho de 1995; Laos e Mianmarem 23 de julho de 1997; e o Camboja em 30 deabril de 1999. Hoje, a região da Asean possui umapopulação de 500 milhões de habitantes, uma áreatotal de 4,5 milhões de quilômetros quadrados e umPIB de 737 bilhões de dólares.

O Tratado de Amizade e Cooperação (TAC) doSudeste da Ásia foi assinado durante a Primeira Cúpulada Asean, em 24 de fevereiro de 1976. Dentre seusprincípios-chave estão o respeito mútuo pelaindependência, soberania, igualdade, integridadeterritorial e identidade nacional de todos os países.China, Coréia do Sul e Japão (os países que compõemo “+3”) juntaram-se aos líderes da Asean em 2001,em uma reunião ampliada da Cúpula.www.aseansec.org

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riam ser considerados do mesmo modo. Contu-

do, na mesma ocasião, também expressei mi-

nha crença de que explicar todas essas cultu-

ras e tradições seria também a explicação de

um “ethos de coexistência”.

Com isto, quero dizer que viver em uma re-

gião que em sua maior parte desfruta de um

ambiente natural relativamente hospitaleiro e

compartilha de uma visão de natureza humana

que, em contraste com a ênfase ocidental no

individualismo, experimenta uma identidade

pessoal por meio de um engajamento íntimo

com os outros, faz com que adquiramos uma

tendência psicológica de ver a cooperação em

vez do conflito, a união em vez da fragmenta-

ção, o “nós” em vez do “eu”.

Experiências anteriores sugerem que qual-

quer espécie de integração no Leste da Ásia di-

ficilmente será atingida da noite para o dia, e

se provará como sendo muito difícil de susten-

tar, sem compreensão mútua, valores e uma ba-

se filosófica comum — e é precisamente por is-

to que dedico tanta energia para encorajar as

relações de pessoa a pessoa. Sempre acreditei

ser este o melhor caminho para alcançar uma

paz duradoura na Ásia.

Uma amizade duradouraentre a China e o Japão

Creio que as relações entre o Japão, a China

e a Coréia do Sul constituem um fator crítico na

construção de uma ampla comunidade no Leste

Asiático. Infelizmente, em anos recentes, as re-

lações entre os três países, em particular as re-

lações sino-japonesas, esfriaram consideravel-

mente. Elas precisam urgentemente voltar aos

trilhos generosos.

Um ditado afirma: quando se chega a um im-

vras naquele encontro inspiraram meus esforços

para construir laços culturais e educacionais en-

tre os cidadãos de ambos os países e forjar uma

amizade duradoura entre a China e o Japão.

Numa analogia, se as relações políticas e eco-

nômicas fossem navios, as relações entre as pes-

soas comuns seriam como os oceanos. Enquan-

to os oceanos da compreensão mútua e da ami-

zade continuarem a ligar as pessoas, as intera-

ções amigáveis permanecerão mesmo em meio

às crises em que os navios ficam encalhados. Es-

ta fé na importância das relações de pessoa a pes-

soa é a base de todas as minhas ações.

No ano passado, designado como o “Ano da

Amizade Nipo-Coreana”, publiquei o segundo

volume de diálogos com Cho Moon-Boo, ex-pre-

sidente da Universidade Nacional de Cheju, na

Coréia do Sul. No momento, estou engajado num

diálogo com Zhang Kaiyuan, professor da Uni-

versidade Normal da China Central, um dos maio-

res historiadores chineses.

Quando ele visitou o Japão em dezembro de

2005, o professor Zhang comentou que muitos

japoneses ajudaram e apoiaram o movimento re-

volucionário de Sun Yat-sen (1866–1925) que

derrubou a última dinastia imperial da China e

em 1912 estabeleceu a república. Ele repartiu

os seguintes pensamentos, com os quais concor-

dei plenamente:

Embora seja preciso respeitar a história, deve-

mos nos mover para além dela. A maior parte dos

dois mil anos em que a China e o Japão estive-

ram em contato foi caracterizada pela amizade.

Se essas duas grandes nações, separadas por uma

pequena porção de água estiverem em paz, ambas

prosperarão. Se entrarem em conflito, será pior

para as duas. Um relacionamento de cooperação

passe, é hora de retornar ao começo. Para encon-

trarmos um caminho de volta no atual impasse

das relações sino-japonesas, talvez a melhor ma-

neira seja recomeçar, relembrando aquele espí-

rito que prevalecia quando as relações diplomá-

ticas foram normalizadas pela primeira vez, no

início da década de 1970.

Pouco antes disso, quando, em 1968, clamei

pela normalização dessas relações, entre o po-

vo japonês havia medo e desconfiança dos chi-

neses, mesmo em âmbito individual, havia um

clima exacerbado pelo choque da Revolução

Cultural. Todos me criticaram por assumir es-

sa posição, mas acreditava firmemente, como

ainda hoje acredito, que sem relações amigá-

veis entre a China e o Japão jamais haverá paz

na Ásia, ou no mundo.

A Cúpula Sino-Japonesa, que propus, foi rea-

lizada em 1972, iluminando o caminho para um

histórico comunicado conjunto anunciando a nor-

malização das relações naquele mês de setem-

bro. Em maio de 1974, visitei a China pela pri-

meira vez, a convite da Associação da Amizade

Sino-Japonesa.

Quando retornei à China em dezembro, o pre-

miê Chu Enlai (1898–1976), que lutava contra

a doença, insistiu em se encontrar comigo, ape-

sar dos conselhos de seus médicos. Nosso diálo-

go abrangeu vários tópicos, mas tinha um tema

básico: o destino da Ásia e do mundo no século

XXI. “Agora é a época de construir uma amiza-

de que atravesse as gerações entre a China e o

Japão”, disse-me ele. “O último quarto do sécu-

lo XX será o período mais crítico na história do

mundo. Todas as nações devem se posicionar co-

mo iguais e ajudar umas às outras.”

Infelizmente, o premiê Chu faleceu um ano

depois, mas no transcorrer do tempo suas pala-

Cho Moon-Boo

(à esquerda) e

Daisaku Ikeda

(abril de 2005).

amigável, normal e estável é bom para a China e

bom para o Japão, para a Ásia e para o mundo.

A maior prioridade da diplomacia japonesa

desde o fim da Segunda Guerra Mundial foi man-

ter uma relação de cooperação com os Estados

Unidos. Mas talvez essa época tenha terminado,

embora se mantendo a mesma estrutura geral pa-

ra desenvolver outras relações internacionais di-

nâmicas, centralizadas na Ásia.

O recente acordo entre os governos chinês e

japonês para uma série de intercâmbios educa-

cionais recíprocos, envolvendo cerca de dois mil

estudantes anualmente é de alta importância. Faz

tempo que peço intercâmbios educacionais en-

tre os jovens da China e do Japão, como forma

de olhar para o futuro, ao mesmo tempo em que

confrontamos as lições do passado. Portanto, con-

sidero que esta experiência é muito bem-vinda.

Recomendo, com toda a veemência, que o Japão

reconheça o valor da construção de amizades du-

radouras que atravessem as gerações: é realmen-

te o melhor curso a seguir no século XXI. O Ja-

pão, a China e a Coréia do Sul devem trabalhar

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28 29

juntos para direcionar os desafios comuns que

enfrentam, forjando relações cooperativas que

desbravem o caminho rumo à criação de uma Co-

munidade do Leste Asiático.

Encarando o futuroAtualmente o Japão, a China e a Coréia do

Sul se unem para resolver a delicada questão do

desenvolvimento nuclear da Coréia do Norte.

Desde o processo das Conversações das Seis Par-

tes, em agosto de 2003, este tema prossegue, com

idas e vindas. Cinco rodadas de discussões go-

vernamentais já se realizaram.

Por fim, na quarta rodada de negociações rea-

lizada no ano passado, a primeira declaração con-

junta, que objetivou a resolução do problema nu-

clear norte-coreano, foi adotada e editada. Nesta

declaração, a Coréia do Norte “compromete-se a

abandonar todas as armas e programas nucleares

existentes e retornar, o mais breve possível, ao Tra-

tado de Não-Proliferação de Armas Nucleares (TNP)

e às salvaguardas da Agência Internacional de Ener-

gia Atômica (AIEA). De sua parte, os Estados Uni-

dos afirmaram que “não possuem armas nucleares

na Península Coreana nem intenção de agredir ou

invadir a República Democrática Popular da Co-

réia com armas nucleares ou convencionais”.

Finalmente a declaração deu às seis partes

das conversações um ponto de partida comum.

O próximo passo, contudo, revela-se mais difí-

cil: nenhum prazo ou procedimento específico

foi estabelecido para a Coréia do Norte abando-

nar de fato seu programa de proliferação de ar-

mas nucleares. Também permanece a questão

crítica da criação de um sistema de inspeção. E,

o que é uma pena, as próprias conversações es-

tão suspensas desde novembro do ano passado.

Na verdade, são temíveis as implicações des-

sa situação, se a nossa passividade permitir que

ela fique à deriva, numa época em que há crescen-

te preocupação quanto ao desenvolvimento do pro-

grama nuclear do Irã. Portanto, para que as con-

versações atinjam o próximo estágio, proponho a

realização de uma Cúpula de Chefes de Governo

das Seis Partes com a participação de altos repre-

sentantes das Nações Unidas e da AIEA, para en-

contrar a melhor forma de romper este impasse.

Um acordo alcançado pelos chefes de gover-

no teria peso para gerar um impulso irreversí-

vel. Chegando-se ao consenso, as partes pode-

riam então formar comitês de trabalho para li-

dar com questões específicas, estabelecendo

prazos para cada estágio do processo, até que

se verifique o abandono do programa de armas

nucleares. Dividir o problema em passos dis-

tintos, com prazos concretos, parece ser a me-

lhor forma de atingir progressos nesse proble-

ma aparentemente intratável.

Desta forma, as conversações das seis partes

propiciariam um sistema para a resolução dos pro-

blemas por meio de discussões regionais, sem o re-

curso do hard power da força militar. Uma vez que

esta abordagem se mostrar efetiva, crescerão mui-

to as chances de estabilidade e não-proliferação

das armas de destruição em massa, não apenas no

Leste da Ásia, mas também em outras regiões.

Por defender consistentemente que as con-

versações das seis partes se desenvolvam como

um foro de diálogo construtivo e permanente, ob-

jetivando manter a paz no nordeste da Ásia, fi-

quei particularmente gratificado ao ver que a de-

claração conjunta, mencionada antes, incluíram

estas palavras: “As Seis Partes concordam em

explorar modos e meios para promover a coope-

ração quanto à segurança no nordeste da Ásia”.

Especificamente com relação ao Japão, espera-

se que o relaxamento das tensões na região tam-

bém traga progressos na importante questão dos

cidadãos japoneses detidos pela Coréia do Nor-

te e nas negociações para a normalização das re-

lações diplomáticas entre os dois países.

Educação para a pazPara concluir, gostaria de enfatizar a impor-

tância da educação para o desarmamento, como

caminho de transformação dos paradigmas da so-

ciedade: que uma cultura de guerra, caracteri-

zada pelo conflito e confrontação, torne-se uma

cultura de paz fundamentada na cooperação e na

coexistência criadora.

No ano passado o mundo perdeu, por duas ve-

zes, a oportunidade de registrar o 60º aniversá-

rio do lançamento das bombas atômicas em Hi-

roshima e Nagasaki como contribuição para o

progresso positivo no desarmamento nuclear. Pri-

meiro, pelo insucesso da Conferência de Revi-

são do Tratado de Não-Proliferação Nuclear, em

maio. Depois, pela imperdoável omissão da ques-

tão nuclear, no documento final da Cúpula Mun-

dial, durante a Assembléia Geral das Nações Uni-

das, em setembro.

Este insucesso duplo é ainda mais trágico, à luz

das seguintes três tendências perturbadoras, iden-

tificadas pelo diretor-geral da AIEA, Mohamed El-

Baradei: o surgimento de um mercado negro nu-

clear, os esforços de mais países, cada vez mais de-

terminados a adquirir tecnologia para produzir ma-

terial físsil necessário às armas nucleares, e o cla-

ro desejo dos terroristas de adquirir armas de des-

truição em massa. O perigo colocado pelas armas

nucleares lança uma sombra extensa na comuni-

dade internacional, e alerta para o fato de que os

esforços para o desarmamento mundial permane-

çam numa conjuntura absolutamente crítica.

Em parte, isto pode ser atribuído à falta de

vontade política. Mas também é significativa a

falta de um grande movimento da opinião popu-

lar mundial exigindo o desarmamento. Embora

haja urgente necessidade de apoio ao sistema le-

gal internacional — por exemplo, ressuscitando

o TNP —, ao mesmo tempo, a opinião pública

deve elevar a sua voz. Em termos concretos, is-

to requer uma transformação fundamental nas

atitudes das pessoas, através da educação para

a paz e o desarmamento. Nos últimos anos, as

Nações Unidas vêm reconhecendo esta necessi-

dade. E em 2002 a Assembléia Geral adotou um

relatório especializado sobre a questão, “Estudo

das Nações Unidas sobre Educação para o De-

sarmamento e Não-Proliferação”.

Em minha opinião, é necessária uma mudan-

ça profunda nas idéias e na busca por novas abor-

dagens. Convocar a opinião pública para a cau-

sa do desarmamento requer não apenas especia-

listas ou aqueles já envolvidos nos movimentos

de paz, mas também pessoas de todas as esferas.

Conversações das Seis PartesAs Conversações das Seis Partes é o nome dado

aos encontros de representantes da República Popularda China, República Democrática Popular da Coréia,Coréia do Sul, Rússia, Japão e Estados Unidos. Essesencontros buscam uma resolução para a criserelacionada ao programa de armas nucleares daCoréia do Norte. Houve cinco rodadas de conversasaté o momento: em agosto de 2003, fevereiro de2004, junho de 2004, julho, agosto e setembro de2005, e novembro de 2005. Na declaraçãoconjunta de setembro de 2005, as partes reafirmaramunanimemente que o objetivo das conversações é a“desnuclearização verificável da Península Coreanade forma pacífica”.

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1. Pronk, "Relatório ao Conselho deSegurança”, 2005.2. McKibben, p. 45, 2003.3. Ibid., p. 46.4. Yanaguida, p. 157, 2005.5. Yamazaki, p. 311-312, 2003.6. Fukuzawa, p. 227, 1997.7. Montaigne, Ensaios, Por diversosmeios chega-se ao mesmo fim, v. I, p.10, 2003.8. Ibid., Da experiência, v. II, p. 224.9. Nitiren, p. 564, 1952.10. Montaigne, Ensaios, Apologia deRaymond Sebond, v. I, p. 206, 2003.11. Ibid., p. 207.12. Ibid., Dos canibais, v. I, p. 101.13. Ibid., Da educação das crianças, v.I, p. 80.14. Ibid., Das desigualdades entre oshomens, v. I, p. 125.15. Ibid., Apologia de RaymondSebond, v. I, p. 22616. Nitiren, p. 579, 1999.17. Montaigne, Ensaios, Da crueldade,

v. I, p. 204, 2003.18. Ibid., Apologia de RaymondSebond, v. I, p. 211.19. Ibid., Dos costumes e dainconveniência de mudar sem maiorescuidados as leis em vigor, v. I, p. 60.20. Ibid., Da experiência, v. II, p. 208.21. Ibid., Dos costumes e dainconveniência de mudar sem maiorescuidados as leis em vigor, v. I, p. 61.22. Ibid., Da vaidade, v. II, p. 156.23. Ibid., p. 156.24. Ibid., p. 157.25. Ibid., Dos costumes e dainconveniência de mudar sem maiorescuidados as leis em vigor, v. I, p. 63.26. Ibid., Da vaidade, v. II, p. 170-171.27. Ibid., Dos costumes e dainconveniência de mudar sem maiorescuidados as leis em vigor, v. I, p. 64.28. Ibid., Da arte da conversação, v. II,p.142.29. Cf. Ibid., Da vaidade, v. II, p. 154.

30. Ibid., Da companhia dos homens,das mulheres e dos livros, v. II, p. 99.31. Ibid., Da experiência, v. II, p.223.32. Ibid., Da fisionomia, v. II, p. 189.33. Ibid., Da arte da conversação, v. II,p. 147.34. Ibid., p. 147.35. Ibid., Do autor ao leitor, v. I, p. 7.36. Ibid., Do arrependimento, v. II, p.92.37. Ibid., A propósito de Virgílio, v. II,p. 108.38. Ibid., Da arte da conversação, v. II,p. 51.39. Ibid., A propósito de Virgílio, v. II,p. 110.40. Ibid., Da experiência, v. II, p. 221.41. Ibid., p. 224.42. Nakano, p. 35, 1996.43. Walshe, p. 245, 199544. Unesco, p. 6, 2005.45. Tratado, Artigo 2, 1976.46. Okakura, p. 1, 1903.

notas

Em vez de dar ênfase a aspectos técnicos e físi-

cos do desarmamento, é preciso uma transforma-

ção revolucionária no modo como as pessoas pen-

sam a paz, de forma que esta seja sentida como

uma realidade imediata e pessoal.

A paz não é simplesmente a ausência de guer-

ra. Uma sociedade realmente pacífica é aquela

na qual todos podem maximizar seu potencial e

construir vidas realizadas e livres de ameaças à

sua dignidade humana.

Como iniciativa prática, acredito que deve-

mos integrar plenamente a educação para o de-

sarmamento, no sentido ampliado que descrevi,

à Década Internacional para uma Cultura de Paz

e Não-Violência para as Crianças do Mundo

(2001–2010), e desenvolver atividades para es-

te fim na sociedade civil.

A base para estas iniciativas deve ser a mu-

dança do conceito de soberania nacional para

soberania humana. A educação para o desarma-

mento necessita de um movi-

mento popular que ajude a edu-

car os cidadãos do mundo que

estão firmemente comprometi-

dos com os interesses da huma-

nidade e do planeta, fortalecen-

do a solidariedade entre eles. A

disseminação do conhecimento

e da informação sobre o desar-

mamento não deve ser um fim

em si: a nossa maior prioridade

deve ser transformar a mente e

o comportamento de forma que

estes possam estar fundamen-

tados em uma cultura de paz.

De nossa parte, a SGI vem promovendo ex-

posições como “Construindo uma Cultura de Paz

para as Crianças do Mundo”. Para apoio deste

esforço inauguramos no ano passado os Centros

de Recursos para a Cultura de Paz, em nossos

centros culturais de Nova York e Los Angeles.

No próximo ano, para marcar o 50º aniversário

da Declaração pela Abolição das Armas Nuclea-

res feita por Jossei Toda (1900–1958), segundo

presidente da Soka Gakkai, promoveremos ati-

vidades comunitárias de paz em todo o mundo,

ao mesmo tempo em que continuaremos a tra-

balhar para transformar a cultura global de guer-

ra numa cultura global de paz.

Trabalhando juntos porum mundo sem guerras

Uma transformação no íntimo de um indiví-

duo pode encorajar mudanças similares em ou-

tros. E se isto se estende pela sociedade, gera um

poderoso raio de luz para a paz, que pode mol-

dar com firmeza a direção dos eventos. O impac-

to coletivo de “cidadãos comuns”, conscientes e

fortalecidos, pode impelir a humanidade rumo

aos objetivos irmãos do verdadeiro desarmamen-

to e do florescimento de uma cultura de paz.

Uma de minhas maiores alegrias foi o meu en-

contro e diálogo com o Dr. Joseph Rotblat, presi-

dente emérito das Conferências Pugwash sobre

Ciências e Questões Mundiais, que, infelizmente,

faleceu no ano passado. Jamais me esquecerei de

um certo comentário que ele me fez sobre como

livrar o mundo das armas nucleares e da guerra:

Quando uma pequenina pedra é lançada num

lago, as ondas viajam amplamente, a partir do

centro. Embora elas se tornem menos poderosas,

não desaparecem completamente. Cada pessoa

tem o poder de criar ondas que transformem a so-

ciedade. Se esses esforços forem concentrados e ca-

nalizados pelas ONGs, inevitavelmente crescerá o

poder de influenciar a sociedade... Se nos unir-

mos, podemos transformar o mundo. Pode levar

algum tempo, mas visto de uma perspectiva a lon-

go prazo, as pessoas acabarão vitoriosas...

Esta solidariedade de cidadãos conscientes, pe-

la qual o Dr. Rotblat tinha grandes esperanças, é

o que norteia o movimento do humanismo budista

da SGI em 190 países e territórios. Os próximos

cinco anos, até 2010, serão uma oportunidade úni-

ca. Com coragem e esperança, ansiamos trabalhar

com pessoas de igual mentalidade em todo o mun-

do. Só assim construiremos os alicerces de uma so-

ciedade global de paz e coexistência criadora.

Jossei Toda,

segundo

presidente da

Soka Gakkai.

Daisaku Ikeda e o

Dr. Joseph Rotblat

(outubro de 1989).

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B I B L I O G R A F I A

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34Proposta de paz proferidas porDaisaku Ikeda em 26 de janeiro, Dia da SGI

2005 — Uma nova era de diálogo: o triunfo do humanismo

2004 — Revolução interior: uma onda mundial pela paz

2003 — Por uma ética global — A dimensão da vida: um paradigma

2002 — O humanismo do caminho do meio — O alvorecer de uma civilização global

2001 — O desafio da nova era: construir a todo instante o “Século da Vida”

2000 — A paz pelo diálogo — É tempo de falar: uma cultura de paz

1999 — Pela cultura de paz — Uma visão cósmica

1998 — A humanidade e o novo milênio: do caos para o cosmos

1997 — Novos horizontes de uma civilização global

1996 — Rumo ao terceiro milênio: o desafio da cidadania global

1995 — Criando um século sem guerras através da solidariedade humana

1994 — A luz do espírito global: uma nova alvorada na história da humanidade

1993 — Rumo a um mundo mais humano no século vindouro

1992 — Uma Renascença de esperança e harmonia

1991 — O alvorecer do século da humanidade

1990 — O triunfo da democracia: rumo a um século de esperança

1989 — A alvorada de um novo globalismo

1988 — Entendimento cultural e desarmamento: os blocos edificadores da paz mundial

1987 — Propagando o brilho da paz: rumo ao século do povo

1986 — Rumo a um movimento global por uma paz duradoura

1985 — Novas ondas de paz rumo ao século XXI

1984 — Criando um movimento unido para um mundo sem guerras

1983 — Nova proposta para a paz e o desarmamento