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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Igor Volpato Bedone Imputação de danos na omissão estatal Mestrado em Direito SÃO PAULO 2013

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Igor Volpato Bedone

Imputação de danos na omissão estatal

Mestrado em Direito

SÃO PAULO

2013

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Igor Volpato Bedone

Imputação de danos na omissão estatal

Mestrado em Direito

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Direito, sob a orientação da Profa. Dra. Odete Novais Carneiro Queiroz.

SÃO PAULO

2013

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Banca Examinadora

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A SALVADOR BEDONE e JOSÉ VOLPATO,

por terem, cada um a sua maneira,

me legado a importância e o valor do

estudo, do conhecimento e do trabalho.

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AGRADECIMENTOS

Se há algo que o autor desta dissertação não aprecia são clichês. Tanto na

vida como nas artes, ou no mundo jurídico. Todavia, ao cabo de um trabalho tão

árduo e desgastante, impossível fugir da tradição de mencionar todos os que tiveram

sua parcela de colaboração durante essa caminhada.

Em primeiro lugar, agradeço à Procuradoria Geral do Estado de São Paulo

pelo apoio institucional que dá aos seus membros que querem estudar e se

aperfeiçoar. Carreira da qual me orgulho muito ser integrante, e que tem a difícil

missão de defender o Estado, em um país em que as pessoas são individualistas e

muitas vezes não têm respeito e cuidado com a res pública. “Por amor às causas

perdidas” é que, corajosamente, atuamos. Agradeço aos meus colegas e amigos

procuradores que nesse período estiveram comigo defendendo a São Paulo

Previdência – SPPrev, diante de um Judiciário nem sempre receptivo, atuando

bravamente, mas sem perder a ternura jamais.

Agradeço também aos meus amigos da Faculdade de Direito do Largo São

Francisco, instituição em que me formei, no maior âmbito que essa palavra pode

significar. Pela grande quantidade de pessoas, faço o agradecimento em nome do

nosso grande líder, Anderson Cortez Mendes, hoje juiz de Direito, que dignifica e

honra a magistratura paulista, e também em nome de José Francisco Rossetto, hoje

meu colega de Procuradoria, cuja inteligência e senso crítico são sempre fonte de

inspiração.

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Não posso deixar de mencionar, ainda, outros amigos de faculdade que,

trilhando a seara acadêmica, me deram o exemplo e a gana de partir também por

esse caminho. Pessoas brilhantes com as quais aprendo imensamente, e pelas

quais nutro imensa admiração: Rafael, Felipe, Paulo, Régis, Thomaz e Luis Gustavo.

Sou muito grato, também, aos meus colegas no mestrado da Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo, instituição que me acolheu muito bem desde o

início da pós-graduação, e que contribuiu sobremaneira com minha formação

intelectual. Agradeço, assim, a Gabriel, Raquel e Daniel, colegas de mestrado, com

os quais aprendi muito em milhares de discussões acadêmicas, sempre respeitosas

e francas. Agradeço, também, à minha orientadora, Professora Doutora Odete

Novais Carneiro Queiroz, pela sua generosidade e sabedoria em me orientar e por

me ter como assistente na graduação da PUC-SP no ano de 2011.

Meus agradecimentos, também, àqueles sem os quais eu não teria chegado

aonde cheguei. Pessoas que, em uma família repleta de médicos, foram meu norte,

inspiração e exemplo, não só profissional, mas também de vida. Assim, agradeço a:

Paulo Curi Neto, brilhante Conselheiro do Tribunal de Contas de Rondônia, meu

querido primo, cuja obstinação, honestidade, inteligência e cultura são fontes de

profunda admiração; Wiliam Sebastião Bedone, meu tio e “pai paulistano”,

Procurador do Ministério Público do Trabalho e professor universitário, que

carinhosamente me acolheu quando aquele jovem de 17 anos veio do interior para a

Capital, e cujos conselhos e exemplos foram fundamentais na minha formação como

profissional e como homem.

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Agradeço, ainda, à minha família, que é origem e destino de tudo o que faço

na vida. Primeiramente, agradeço a minha nova família, que ganhei a partir de 2009:

minha querida sogra Carmen Lúcia, meu querido sogro José Carlos, meus queridos

cunhados Vitor e Gisella, e, por fim, meus sobrinhos loirinhos que são o orgulho do

tio, Gustavo e Helena. Agradeço, também, aos meus irmãos e cunhados, pessoas

que amo ter ao meu lado, sempre: Rebeca, Ivan e Anna, Raquel e Fábio. Sem

esquecer, por último, de Henrique, o primeiro neto da família, que está vindo por aí.

Chegando ao final desses agradecimentos, menciono meus amados pais Ivan

e Regina. A palavra “tudo” é insuficiente para significar o que eles fizeram – e

fazem –, não só por mim, mas por todos os meus irmãos. Meu amor e gratidão são

imensuráveis. Obrigado por terem constituído essa família maravilhosa, por nos

terem legado o exemplo de retidão, ternura e generosidade. Espero poder ser para

os meus filhos os pais que vocês são para mim.

Finalmente, agradeço à minha esposa Marina, pela paciência de suportar fins

de semana perdidos para que eu pudesse escrever esta dissertação, por ter dado

um novo significado em minha vida, por me ensinar diariamente o que é a felicidade

e o amor. Sem ela, nada disso teria acontecido. Meu amor é incondicional.

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RESUMO

BEDONE, Igor Volpato. Imputação de danos na omissão estatal. 2013. 241 f.

Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica, São Paulo.

Esta dissertação aborda a imputação de danos ao Estado por sua conduta

omissiva. A principal meta é avaliar se há responsabilidade objetiva ou subjetiva

quando se está diante de omissões estatais, conforme notória divergência

doutrinária, refletida na jurisprudência. A abordagem metodológica é essencialmente

dogmática, e optou-se por desenvolver o trabalho a partir do estudo das construções

dogmáticas típicas do direito civil, como a conduta, o nexo de causalidade e a culpa.

Pretende-se, assim, estabelecer um diálogo entre esses conceitos e o direito

administrativo, ramo em que em geral é tratada a responsabilidade civil do Estado.

Afinal, se é dito por parte da doutrina que na omissão há um dever de agir que,

violado, implica responsabilidade subjetiva, é imperioso estudar o que é culpa, e

quando uma conduta omissiva torna-se civilmente relevante. Ao final, verificar-se-á

que esse debate está mal focado no elemento subjetivo da responsabilidade,

quando deveria estar na relação de causalidade, ou melhor, de imputação dos

danos. Avaliar-se-á, também, o importante papel das causas de não incidência de

responsabilidade dentro do processo de imputação de responsabilidade por omissão

do Estado.

Palavras-chave: responsabilidade civil, Estado, imputação de danos, omissão e

excludentes de causalidade.

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ABSTRACT

BEDONE, Igor Volpato. Imputação de danos na omissão estatal. 2013. 241 f.

Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica, São Paulo.

This essay focuses on the attribution of liability to the State for its omissive

conduct. The main objective is to discuss whether State omission gives rise to strict

liability or fault liability, a question that is the subject of a well-known controversy in

legal doctrine, echoed by jurisprudence. The methodology employed is essentially

dogmatic, and I have chosen to build this essay on Civil Law concepts such as

conduct, causation and liability. The underlying purpose is to compare such concepts

with those of Administrative Law, the branch of law which establishes the general

boundaries of civil liability of the State. If some writers argue that omission is

characterized by a duty to act which, if breached, imposes fault liability, one must

study what is “fault” and when an omissive conduct becomes relevant from a Civil

Law perspective. In the end, it will be shown that the debate is wrongly centered on

the subjective element of fault, when it should focus on causation, or rather on

attribution of liability. The importance of the causes for not imposing liability as part of

the process of assessing the State’s liability for omission is also discussed.

Keywords: civil liability, State, attribution of liability, omission and causation

exclusion

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 12

1. Objeto ............................................................................................................. 12

2. Metodologia, método de trabalho e abordagem metodológica ....................... 15

3. Corte epistemológico e objeto de estudo ........................................................ 20

4. Plano de trabalho ............................................................................................ 24

1. OMISSÃO CIVILMENTE RELEVANTE, IMPUTAÇÃO DE DANOS E CULPA ................................................................................................................ 27

1.1 Omissão relevante para efeito de responsabilidade civil ......................... 27

1.1.1 Introdução ...................................................................................... 27

1.1.2 A omissão no direito penal ............................................................. 29

1.1.3 A omissão como modalidade da conduta humana ......................... 32

1.1.4 O problema das fontes do dever jurídico de agir ............................ 42

1.1.4.1 Contribuições do direito estrangeiro .................................. 42

1.1.4.2 Lei ...................................................................................... 53

1.1.4.3 Negócio jurídico ................................................................. 56

1.1.4.4 Risco anteriormente criado pelo omitente ......................... 59

1.1.4.5 Outras hipóteses ................................................................ 65

1.1.5 Conclusão ...................................................................................... 70

1.2 Nexo de causalidade e imputação de danos ........................................... 71

1.2.1 Aspectos gerais acerca do nexo causal ......................................... 71

1.2.2 Teorias sobre causalidade (imputação de danos) .......................... 77

1.2.2.1 Conditio sine qua non ........................................................ 78

1.2.2.2 Causalidade adequada ...................................................... 79

1.2.2.3 Escopo da norma violada .................................................. 85

1.2.3 Danos diretos e imediatos .............................................................. 89

1.2.3.1 Conclusão sobre as teorias ............................................... 93

1.2.4 Conclusão: a imputação de danos na conduta omissiva ................ 97

1.3 A evolução do conceito de culpa para a dogmática de Direito Civil ....... 100

1.3.1 Introdução .................................................................................... 100

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1.3.2 Conceito de culpa dentro do sistema clássico de responsabilidade civil .................................................................. 101

1.4 A responsabilidade objetiva e a objetivação da ideia de culpa .............. 107

1.4.1 Estrutura ....................................................................................... 113

1.4.1.1 Negligência e omissão ..................................................... 119

1.4.2 Conclusão .................................................................................... 122

2. IMPUTAÇÃO DE DANOS NA OMISSÃO ESTATAL 125

2.1 Introdução .............................................................................................. 125

2.2 A responsabilidade subjetiva ................................................................. 131

2.2.1 A faute du service ......................................................................... 138

2.3 A responsabilidade objetiva ................................................................... 147

2.4 Omissão genérica e omissão específica ................................................ 155

2.5 Posicionamento da jurisprudência ......................................................... 160

2.6 Imputação de danos na omissão estatal ................................................ 170

2.6.1 As fontes do dever de agir na omissão estatal ........................... 178

2.6.2 Excludentes da responsabilidade estatal na conduta omissiva: a definição da abrangência do dever de agir .............. 186

2.6.2.1 Teoria geral das excludentes ........................................... 186

2.6.2.2 Excludentes da responsabilidade estatal ......................... 193

2.6.2.3 Excludentes da imputação de danos na omissão estatal ........................................................................... 198

2.6.2.3.1 Fato exclusivo da vítima ......................... 198

2.6.2.3.2 Caso fortuito ou força maior e fato exclusivo de terceiro – o âmbito de proteção da norma ............................... 201

2.7 Proposta de interpretação do artigo 37, § 6.º, da Constituição Federal ...... 214

CONCLUSÕES ....................................................................................................... 216

REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 227

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INTRODUÇÃO

1. Objeto

A presente dissertação discutirá a imputação de danos ao Estado (em sentido

amplo) em razão de sua omissão. A ideia nasceu a partir do diuturno trabalho em

casos concretos nos quais este autor, atuando como Procurador do Estado de São

Paulo, constatou certa insuficiência das construções dogmáticas para a solução de

problemas envolvendo a responsabilidade civil por omissão.

A riqueza desses casos gerou a percepção de que o confronto que se

apresenta hoje na dogmática, no Brasil em especial, acerca da responsabilidade do

Estado por omissão não abarca toda a dimensão do tema, de modo que ambas as

posições são incompletas para solucionar os casos concretos colocados diante dos

operadores do direito.

É famoso o dissenso doutrinário que existe na matéria. Conforme será

pormenorizadamente exposto mais adiante, de um lado defende-se a tese de que,

tratando-se de omissão, é preciso verificar o dever de agir infringido pela

Administração Pública. Assim, se o ente público deveria agir e não o fez, a

responsabilidade passa a ser subjetiva, não objetiva. Lança-se mão da tese da faute

du service, também conhecida como culpa anônima, que ensejaria a

responsabilidade subjetiva do Estado, pois tratar-se-ia de serviço público não

executado, ou executado de maneira errada, ou, ainda, tardiamente.

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Por outro lado, entende-se que, não tendo o artigo 37, § 6.º, da Constituição

Federal feito qualquer ressalva, não caberia ao intérprete fazê-la, motivo pelo qual a

responsabilidade civil do Estado deveria ser sempre objetiva.

Percebe-se, assim, que se convencionou limitar esse debate apenas no

elemento subjetivo da responsabilidade civil. É necessária a comprovação de culpa?

A responsabilidade é objetiva ou subjetiva? São apenas essas perguntas que os

operadores do direito, em geral, fazem a si mesmos quando são colocados diante de

casos tais.

Tais indagações são, todavia, insuficientes para lidar com toda a

complexidade dos problemas envolvendo a responsabilidade civil do Estado quando

se trata de omissão imputada ao ente público. Alguns exemplos tornam evidente tal

fato.

Tornou-se corriqueira no Brasil, infelizmente, a morte de detentos em

estabelecimentos penitenciários. Imagine-se que ocorra uma briga entre facções em

determinado presídio, levando a óbito alguém que cumpria pena no

estabelecimento, sob a custódia do Estado. Trata-se de responsabilidade do Estado

por omissão, afinal este deixou de impedir o resultado danoso, ou seja, não atuou

sobre desdobramento causal em curso. O intérprete adepto da corrente subjetiva

deve indagar o quê a respeito do caso para solucioná-lo? Se houve culpa na

atividade estatal? Como avaliar a culpa, um parâmetro pessoal de conduta, para

aferir responsabilidade nesse caso? Será necessário avaliar toda a execução

orçamentária do sistema de Administração penitenciária? Será necessário contar o

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número de detentos por cela, checar o número de agentes que cuidavam do

estabelecimento?

Por outro lado, se for dito que a responsabilidade simplesmente é objetiva,

isso significa que o Estado deveria interromper qualquer desdobramento causal

gerador de danos? Considerando que a Constituição Federal atribui uma imensa

gama de deveres ao Estado, teria ele de agir sempre, sendo responsabilizado por

qualquer dano sofrido por um de seus cidadãos?

Esta dissertação, destarte, nasceu com intuito claro de ser instrumento para a

solução de problemas. Não se pretende a simples compilação de doutrinas, ou a

repetição de lições já por todos conhecidas, que muitas vezes se revelam meras

abstrações, sem qualquer utilidade para resolver as questões que afligem o

operador do direito. Pelo contrário, a preocupação do trabalho é servir como uma

ferramenta de auxílio na compreensão da responsabilidade civil do Estado na

conduta omissiva. Como bem lembra Menezes de Cordeiro, “o Direito é um modo de

resolver casos concretos”.1

Tal assertiva não significa, todavia, desapego pela teoria, ou foco somente em

soluções particulares. O rigor teórico e acadêmico é preocupação primeira do

trabalho. O que se pretende dizer é que o trabalho será desenvolvido visando à

resolução de problemas concretos, reais, da responsabilidade civil do Estado por

omissão. Esse escopo será detalhado no item seguinte.

1 Prefácio da obra de CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na

ciência do direito. Tradução de António Menezes de Cordeiro. 4. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008. p. XXIV.

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2. Metodologia, método de trabalho e abordagem metodológica

A ciência, caso haja pretensão de designá-la como tal, precisa ter um

método.2 É imprescindível, assim, indicar, de plano, o método de trabalho que será

desenvolvido. Antes, todavia, deve-se fazer uma breve distinção entre o método de

trabalho, metodologia e abordagem metodológica.

A metodologia tem por objeto “o estudo dos diversos processos que devem

disciplinar a pesquisa do real, de acordo com as peculiaridades de cada campo de

indagação”.3 A metodologia jurídica, ou método da Ciência do Direito, procura

apontar formas mediante as quais o jurista deve conhecer o direito. Os autores de

filosofia e de teoria geral do direito por séculos debateram (e debatem) a

metodologia jurídica, premidos pela necessidade de justificar e comprovar seu

caráter científico.

Karl Larenz, em sua monumental obra sobre esse assunto,4 traça um

panorama bem amplo sobre as discussões metodológicas que intrigaram os juristas

desde o século XIX. Arthur Kaufmann5 também expõe de maneira eloquente os

diversos movimentos que se apresentaram nos últimos dois séculos.

2 Miguel Reale ensina que o que distingue uma ciência de outra não é o objeto, mas o método.

Com efeito, diversas ciências podem ter o mesmo objeto, mas a distinção de uma em relação a outra dar-se-á pela abordagem que cada uma dá àquele objeto (cf. Filosofia do direito. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 74-78).

3 Idem, ibidem, p. 29. 4 LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. Tradução de José Lamego. 5. ed. Lisboa:

Fundação Calouste Gulbenkian, 2009. p. 9-241. 5 KAUFMANN, Arthur. A problemática da filosofia do direito ao longo da história. In: ––––––;

HASSEMER, Winfried (Org.). Introdução à filosofia do direito e à teoria do direito contemporâneas. Tradução de Marcos Keel e Manuel Seca de Oliveira. 2. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2009. p. 57 e ss.

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Nesse sentido, a escola histórica de Savigny,6 a jurisprudência dos conceitos de

Puchta,7 a jurisprudência dos interesses de Philipp Heck,8 o positivismo lógico-jurídico

de Kelsen,9 a jurisprudência da valoração do próprio Larenz,10 isso para ficar nas

6 Friedrich Carl v. Savigny é considerado o pai da metodologia moderna. Maior expoente da escola

histórica do direito, sistematizou os métodos clássicos de interpretação da norma jurídica: gramatical, lógico, histórico e sistemático. Propunha que o critério decisivo para a aplicação jurídica é a vontade do legislador, de modo que se identificava com a chamada teoria subjetivista da interpretação. Repudiava, assim, o método teleológico de interpretação (Cf. LARENZ, Karl. Metodologia..., p. 9-19; KAUFMANN, Arthur. A problemática..., p. 162-166).

7 A jurisprudência dos conceitos, fruto da escola pandectista alemã, concebe o direito como um sistema fechado e estanque, sendo tarefa do jurista deduzir uma pirâmide de conceitos a partir de um conceito supremo. Os conteúdos jurídicos devem, desta maneira, ser deduzidos de maneira lógica dos conceitos superiores, de modo que vão ganhando, paulatinamente, maior concretude. Tal “genealogia dos conceitos”, assim designada pelo pai da teoria, Georg Friedrich Puchta, garante um sistema baseado em um método dedutivo, ou seja, elege a subsunção como forma primordial de aplicação do direito. A definição desse conceito supremo, do qual a pirâmide seria deduzida, é tarefa da filosofia do direito, não da dogmática jurídica (cf. LARENZ, Karl. Metodologia..., p. 21 e ss.; KAUFMANN, Arthur. A problemática..., p. 167-170).

8 A jurisprudência dos interesses de Philipp Heck tentou romper com o formalismo da jurisprudência dos conceitos, que pretendia reduzir o fenômeno jurídico à mera lógica formal, mediante a simples subsunção e dedução de conceitos. O juiz na interpretação da norma deve procurar reconstituir a intenção do legislador (interpretação subjetiva) e dar ao caso, mediante a investigação dos interesses que foram o substrato da norma, a solução que melhor se coadune com aquela intenção. Heck denominou o método da jurisprudência dos conceitos de método da inversão, pois, ao abstrair em conceitos as soluções para os casos da vida, acabava por distanciar-se da realidade, gerando injustiça. O sistema criado por essa metodologia seria, assim, aberto, ante o reconhecimento da existência de lacunas. A jurisprudência dos interesses sofreu severa crítica por colocar os interesses tanto como fator causal do direito – criador da legislação (ser) – como critério de valoração dos próprios interesses (dever-ser). De qualquer modo, ainda que lhe falte rigor científico, seu papel de rompimento do formalismo da jurisprudência dos conceitos foi fundamental (Cf. LARENZ, Karl. Metodologia..., p. 63-77; KAUFMANN, Arthur. A problemática..., p. 173-174).

9 A teoria pura do direito foi escrita em um período em que as ciências humanas tinham a necessidade de se afirmar como tais. Para afixar o rótulo de “Ciência” ao direito, foi Kelsen buscar um método que seria próprio do jurista, distinguindo sua tarefa daquela do sociólogo, do historiador, do psicólogo etc. A preocupação de afirmação do direito como ciência, por um lado, e de sua distinção das demais disciplinas dentro das ciências humanas, por outro, está por trás da Teoria Pura. O trabalho de Kelsen, assim, figura no campo da epistemologia, ou seja, consiste em uma explanação do modo pelo qual o jurista deve conhecer o direito. Não se trata, portanto, de ontologia (o que é o direito?), ou de uma teoria da Justiça. Kelsen, a partir da lógica transcendental kantiana, coloca a norma em um plano diferente do plano fático, de modo a existirem dois planos: o do ser e o do dever-ser. Naquele plano, próprio das demais ciências, trabalha-se com a relação de causalidade (“se A é, B é”), enquanto neste, típico da ciência do direito, trabalha-se com a ideia de imputação (“se A é, B deve-ser”). Caberia ao jurista, assim, ater-se ao plano normativo, avaliando se a norma é válida, ou seja, se ela tem fundamento de validade em norma superior, e se ela tem o mínimo de eficácia. A aplicação da norma não seria tarefa da Ciência do Direito, mas sim da política. O objeto da Ciência do Direito, destarte, seria somente a norma, mediante a aplicação do método normológico de imputação (Teoria pura do direito. Tradução de João Batista Machado. 8. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009. passim; REALE, Miguel. Filosofia..., p. 455-480; DINIZ, Maria Helena. A ciência jurídica. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 13-30).

10 Larenz entende que a discussão metodológica contemporânea, ultrapassadas as fases da jurisprudência dos conceitos e da jurisprudência dos interesses, residiria na captação pelo intérprete da valoração subjacente à norma jurídica, de modo a conferir a solução mais adequada

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metodologias mais conhecidas, foram formas de estabelecer critérios mediante os quais

o jurista deve conhecer e aplicar o direito. O método tópico, de Viehweg,11 bem como o

sistemático, defendido por Claus-Wilhelm Canaris,12 também constituem discussões no

campo metodológico. Pietro Perlingieri entende ser impossível a eleição de uma única

metodologia para lidar com o direito, sendo própria da Ciência do Direito a pluralidade

metodológica, cabendo ao jurista estabelecer uma mediação dentro dessa

diversidade.13 Na tradição anglo-saxônica, célebre é a postura metodológica de Ronald

Dworkin,14 com sua teoria General Principles of Law.

ao caso concreto. Nisso residiria a problemática da “jurisprudência da valoração”, sobre a qual se debruça a filosofia do direito. O jusfilósofo alemão rompe, assim, com o pensamento jurídico formalista abstrato, defendendo um pensamento metodológico compreensivo e orientado a valores (Metodologia..., p. 163-182 e 297 e ss.).

11 Para Theodor Viehweg, o direito não comporta uma estrutura sistemática, que permitiria a dedução de todas as suas proposições a partir de alguns axiomas superiores. O modo de realização do Direito seria, então, tópico, ou seja, baseado no problema colocado diante do intérprete. Tal problema é solucionado mediante tópicos, ou seja, lugares-comuns compartilhados com o interlocutor que fundamentam a solução encontrada. O pensamento tópico é, portanto, problemático, não sistemático, à medida que regressa sempre ao problema (caso concreto), não ensejando soluções abstratas, nem um sistema unívoco e completo, mas sim uma pluralidade de sistemas. Para a tópica, então, a Ciência do Direito deve ser entendida como um processo especial de solução de problemas, uma teoria da praxe (cf. LARENZ, Karl. Metodologia..., p. 201-215; CANARIS, Claus-Wilhelm, Pensamento sistemático e conceito..., p. 245 e ss.).

12 Claus-Wilhelm Canaris teceu crítica à tópica, reafirmando o caráter sistemático da Ciência do Direito, cabendo ela somente erupções ocasionais. Canaris confere ao sistema as características de ordem e unidade, e adjetiva o sistema jurídico como aberto, uma vez que está em constante evolução. Para o autor, a tópica não fornece adequadamente a resposta de qual entre os diversos tópicos ligados ao problema deve ser escolhido para solucioná-lo, cabendo somente ao sistema cumprir essa função de escolha (CANARIS, Claus-Wilhelm, Pensamento sistemático e conceito..., p. 279-289).

13 PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Tradução de Maria Cristina De Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 123-126.

14 Ronald Dworkin faz um ataque geral ao positivismo (general attack on positivism), afirmando que direito não se apresenta somente sobre a forma de regras (rules), mas também sob a forma de princípios (general principles of Law). As primeiras são aplicadas na maneira do “tudo ou nada”, sendo impossível, destarte, a aplicação de duas regras contraditórias ao mesmo tempo (uma delas necessariamente deve perder a validade), ao passo que os segundos têm dimensão de peso e de significado, de modo que dois princípios podem entrar em conflito sem que um deles perca a validade. Para ele, o juiz deve levar em conta os princípios para aplicação do direito, sobretudo quando se coloca diante dos hard cases (Cf. KAUFMANN, Arthur. A problemática..., p. 156-160; ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 35-40; DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 23-203).

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Percebe-se, assim, que a metodologia jurídica é área própria da Filosofia do

Direito. Sua finalidade não é a solução de casos concretos, mas sim estudar a forma

pela qual o direito deve ser conhecido pelo jurista. Sua abordagem é, pois,

zetética,15 isto é, as perguntas e respostas feitas pelo estudioso são infinitas. Esta

dissertação, ao contrário, situa-se na esfera da dogmática, não sendo seara

adequada, destarte, para a discussão filosófica sobre metodologia.

A metodologia jurídica ou método da Ciência do Direito não se confunde,

porém, com o método de trabalho e com a abordagem metodológica. Quanto ao

primeiro aspecto, o trabalho, como é a regra geral quando se trata de pesquisa

jurídica, limita-se à análise da doutrina e da jurisprudência.

Quanto à abordagem metodológica, o enfoque é, como visto, dogmático.16

Seguindo a divisão proposta por Ralf Dreier e Robert Alexy, segundo os quais a

dogmática jurídica poderia ser dividida em três dimensões – a analítica, a empírica e

a normativa –, este é um trabalho essencialmente dogmático e seu enfoque é

analítico por excelência.17

15 Cf. FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2010.

p. 21 e ss. 16 Diferentemente da zetética, cujas questões são infinitas, a dogmática trabalha com questões

finitas. Ela é regida pelo que se chama de princípio da proibição da negação isto é, princípio da não negação dos pontos de partida de séries argumentativas, ou princípio da inegabilidade dos pontos de partida. Sua preocupação primeira é a decidibilidade de conflitos, ou seja, a construção de instrumentos analíticos para solucionar os problemas colocados diante do intérprete. Por isso, sob o enfoque dogmático, a discussão jamais será infinita como no zetético, pois há a necessidade de solucionar a questão colocada diante do intérprete. A ciência jurídica dogmática atua, assim, como ferramenta para decidibilidade de conflitos, ressaltando seu caráter de tecnologia (FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução..., p. 58-67).

17 AFONSO DA SILVA, Virgílio. O conteúdo essencial dos direitos fundamentais e a eficácia das normas constitucionais. 2005. Tese (Titularidade em Direito Constitucional) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, p. 32-33.

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Na dimensão analítica, aquilo de que se trata é da consideração sistemático-

conceitual do direito válido, o que se dá por meio da análise dos conceitos básicos e

mais elementares envolvidos no objeto da pesquisa, da investigação a respeito das

relações existentes entre os conceitos trabalhados e do exame das formas de

fundamentação jurídica.

Entretanto, além da dimensão analítica, também as outras duas – empírica e

normativa – são fundamentais para a consecução deste trabalho.

Quanto à dimensão empírica da dogmática jurídica, o que nos interessa é o

aspecto relacionado ao conhecimento do direito positivamente válido, não somente

no sentido de mera descrição do direito legislado, mas também da descrição e

prognóstico da prática judicial, isto é, do direito judicial, dimensão que se concretiza

no exame da aplicação do direito pelos órgãos jurisdicionais, o que será feito,

particularmente, na análise de casos concretos.

Por fim, na dimensão normativa da dogmática jurídica se trata da orientação e

crítica da práxis jurídica, especialmente da práxis jurisprudencial, sendo constitutiva

a questão de saber qual é, no caso concreto e sobre a base do direito positivo

válido, a decisão correta, sentido em que essa dimensão é, em muitos casos, a

própria expressão do conceito de trabalho acadêmico: fornecer uma resposta

adequada ao problema analisado.

Não se resume o trabalho a isso, contudo. Com efeito, não tem ele por

escopo dar resposta a um caso concreto específico, e, sim, desenvolver um modelo

de análise que sirva como instrumento na discussão dos casos concretos, de forma

que não se trata de uma análise teórica centrada em si mesma, mas de fornecer um

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modelo que possa servir de instrumento para lidar com casos de responsabilidade

civil do Estado por omissão.

Assim, se a ciência do direito tem de cumprir racionalmente sua tarefa prática

de responder o que é devido nos casos reais ou imaginados, tem então que vincular

racionalmente as três dimensões da dogmática jurídica como condição necessária

da racionalidade da ciência do direito como disciplina prática.

Em suma, pretende-se o cotejo das três dimensões da dogmática na

consecução deste projeto: a analítica para desenvolver o modelo teórico, a empírica

para conhecer a realidade da jurisprudência atual envolvendo o tema colocado neste

trabalho e a normativa para indicar o caminho que se entende ideal na aplicação dos

conceitos sobre ele.

3. Corte epistemológico e objeto de estudo

Corolário do rigor de método que pretende se imprimir nesta dissertação,

cumpre fixar o objeto a ser estudado, realizando um corte epistemológico18 em

matérias afins ao tema que, por exigência metódica, não serão ora tratadas.

Consoante mencionado inicialmente, o objeto de estudo será a imputação de

danos na omissão estatal, particularmente o dissenso doutrinário – refletido em

decisões judiciais –, que debate o elemento subjetivo dessa responsabilidade, ou

seja, se ela é objetiva ou subjetiva. Foi referido no início que o tratamento

18 “Se [...] estudamos as condições do conhecimento nos domínios de cada ciência particular,

melhor é denominar esse estudo Epistemologia, que quer dizer ‘doutrina, ou ciência da ciência”: é a teoria particular de cada ciência” (REALE, Miguel. Filosofia..., p. 31).

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dogmático em geral dado à questão é insuficiente para solucionar os casos

concretos.

Não se pode olvidar, contudo, o posicionamento de quem entende que a

responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito público não é sempre objetiva,

independentemente da natureza da conduta (comissiva ou omissiva). Em outras

palavras, além da divergência doutrinária da espécie de responsabilidade civil

(subjetiva ou objetiva) do Estado, existente quando a conduta é omissiva, há

doutrina, a despeito do artigo 37, § 6.º, da Constituição Federal, que defende a

responsabilidade civil subjetiva das pessoas jurídicas de direito público em outras

hipóteses, além daquela já mencionada da conduta omissiva.

Sérgio Severo19 aborda muito bem o tema. O seguinte trecho de sua obra

introduz seu pensamento sobre o tema:

Muitas vezes repetida, uma das “verdades” mais falsas do direito brasileiro é a erradicação da culpa na responsabilidade pública, derivada de uma exegese que não corresponde ao sentido do § 6.º do art. 37 da CF, tampouco considera a absoluta impossibilidade de o risco solucionar determinadas situações de fato.

[...].

A responsabilidade objetiva do Estado, sublimando de forma absoluta a noção de funcionamento anormal (faute du service) no direito brasileiro, se fosse uma asserção verdadeira, seria pioneira no plano do direito comparado. Nem a França, em homenagem a Boris Starck, ousou tanto. Não é assim na Itália. Não é assim na Alemanha. Não é assim em Portugal. Não é assim na Inglaterra. Não é assim na Argentina.20

19 SEVERO, Sérgio. Tratado da responsabilidade pública. São Paulo: Saraiva, 2009. 20 Idem, ibidem, p. 247.

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No que tange ao direito português, citado no trecho anterior, a Lei 67/2007

regulamentou a responsabilidade civil do Estado e demais entidades públicas,

prevendo dois regimes gerais de responsabilidade: (i) por fato ilícito, que será

caracterizado em três hipóteses: quando houver culpa leve do agente público,

quando houver funcionamento anormal do serviço, a faute du service (nesses dois

casos, responsabilidade exclusiva do Estado) e, por último, quando houver culpa

grave ou dolo (caso em que a responsabilidade é solidária do Estado com o agente

público); (ii) pelo risco, próprio de atividades desempenhadas pelo Estado que sejam

essencialmente perigosas, quando a responsabilidade será objetiva, exonerável

somente quando houver caso fortuito ou de força maior.21 Em Portugal, destarte,

resta claro que a responsabilidade das pessoas jurídicas de direito público não é

objetiva em todos os casos.

De acordo com Sérgio Severo, o sistema de responsabilidade civil do Estado

não é unidimensional, ou seja, somente objetivo, em interpretação fria do texto

constitucional. Assim, a culpa teria papel na responsabilidade civil do Estado em

duas hipóteses: nos casos de funcionamento anormal do serviço público (faute du

service) e quando a ação for de caráter nitidamente privado, por força do princípio

da isonomia.

No primeiro caso, só haveria responsabilidade estatal se comprovado

funcionamento anormal do serviço público. Não seria a culpa própria do direito civil,

lastreada em elementos volitivos do agente, mas sim a culpa anônima, baseada em

num standard calcado na noção de que a ação administrativa deve dar-se de acordo 21 Cf. RANGEL DE MESQUITA, Maria José. O regime da responsabilidade civil extracontratual do

Estado e demais entidades públicas e o Direito da União Europeia. Lisboa: Almedina, 2009. p. 19-25.

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com um padrão adequado de funcionamento. Como dito no item 1 desta Introdução,

a teoria da faute du service é o ponto de partida dos defensores da responsabilidade

subjetiva do Estado quando se trata de conduta omissiva, embora a

responsabilidade por omissão não abarque toda a fenomenologia da faute du

service. Será, pois, abordada neste trabalho quando relacionar-se com a

responsabilidade civil do Estado por omissão.

Nesse segundo aspecto levantado pelo autor, quando a atividade

desempenhada pelo Estado for equivalente a que desenvolveria um particular, o

fator de atribuição não seria objetivo, mas sim subjetivo. Interessantes questões são

por ele elaboradas para ilustrar tal assertiva:

a) Em um acidente de trânsito, o fato de o Estado ser proprietário de um dos

veículos envolvidos no sinistro gerará tratamento mais benéfico ao particular,

tratamento esse que não ocorreria se o outro envolvido também ostentasse tal

condição?

b) Como aceitar que dois pacientes, sujeitos à mesma intervenção cirúrgica

em que foram empregados a técnica adequada e meios suficientes, possam receber

tratamento jurídico distinto caso o hospital seja público ou particular?22

Os exemplos parecem lógicos. Eventual cirurgia cardíaca feita em hospital

público que ensejasse óbito do paciente, mesmo que realizada sem qualquer erro

médico, deveria ensejar responsabilidade civil estatal, pelo disposto no artigo 37, §

6.º, da Constituição Federal? Não teria que ser avaliada, in casu, a culpa do agente

22 RANGEL DE MESQUITA, Maria José. O regime..., p. 259.

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público, de modo a tornar tal responsabilidade subjetiva? Ou o Estado deve pagar

indenização a todos aqueles que morrem diariamente no Sistema Único de Saúde,

independentemente de mau funcionamento do serviço?

Essa defesa da necessidade de aferição de culpa, quando se tratar de conduta

estatal equiparável ao particular, ao certo, merece aprofundamento e estudo. Não será,

todavia, o foco desta dissertação. Realiza-se, assim, um corte epistemológico: parte-se

do pressuposto – epistemológico, repita-se – de que a responsabilidade dos entes

estatais é objetiva, de modo a centrar seu objeto apenas na famosa discussão

doutrinária: quando a conduta é omissiva, tal responsabilidade torna-se subjetiva?

4. Plano de trabalho

Estabelecidos o objeto (a responsabilidade civil extracontratual dos entes

estatais é subjetiva quando se trata de conduta omissiva?), o enfoque metodológico

(dogmático, em suas três perspectivas) e realizado o corte epistemológico, de modo

a pressupor que a responsabilidade do Estado é sempre objetiva em condutas

comissivas, cabe indicar qual plano de trabalho que será desenvolvido.

A quase totalidade dos trabalhos envolvendo esse tema é feita na cadeira de

direito administrativo. A apresentação é sempre muito parecida, passando por uma

introdução histórica da responsabilidade civil estatal, tanto alhures como no Brasil, para

depois se expor sumariamente as duas correntes, filiando-se a uma delas. Temas vitais

para a adequada compreensão do tema, como a conduta omissiva, a culpa, a ilicitude e

o nexo de causalidade não são abordados, e, quando o são, é de maneira muito

perfunctória. Talvez seja por isso que o tema ainda desperta tanta disputa.

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Assim, a pretensão desta dissertação é dar um enfoque eminentemente de

direito civil ao problema da omissão estatal, a partir dos conceitos de conduta, culpa

e nexo de causalidade, que deverão dialogar com construções próprias do direito

administrativo, como a faute du service. Afinal, o sistema de responsabilidade civil é

um só, não havendo razão para atribuir tratamento dúplice ao problema dos danos

por omissão estatal.23

Na primeira metade do trabalho, será feito um estudo de teoria geral da

responsabilidade civil. Serão abordados a conduta, o nexo de causalidade e a culpa.

No que tange à primeira, já que o tema desenvolvido é a responsabilidade por

omissão, cumpre analisar se a omissão pode ser equiparada à ação como

modalidade de conduta e, em caso afirmativo, quais critérios tornam a omissão

civilmente relevante. No que se refere ao assim chamado nexo causal, que na

conduta omissiva na verdade é um juízo de imputação, conforme será visto, é

importante que se entenda como uma omissão, um não fazer, pode ser vinculada a

determinado resultado, de modo a ensejar a responsabilidade civil de alguém que

não agiu quando deveria ter agido.

Por fim, no tocante à culpa, uma vez que os partidários da corrente

subjetivista afirmam ser necessária sua verificação para que haja responsabilidade

23 Concorda-se com Yussef Said Cahali quando ele diz que a responsabilidade civil do Estado é

matéria muito mais afeta ao direito civil do que a qualquer outro ramo do direito: “Fiéis ao primado do direito civil como direito comum da tradição romanística, e convictos de que a divisão do direito visa mais precipuamente a finalidades metodológicas e didáticas, somos daqueles que – em posição reconhecidamente não ortodoxa – continuam entendendo que o instituto da responsabilidade civil do Estado ainda conserva os vínculos de filiação natural às suas origens civilísticas; tolera-se, é certo – e em matéria de concessões o direito civil sempre foi pródigo –, a pretensão dos publicistas em simplesmente adotá-lo; mas condenamos a voracidade dos administrativistas que pretendem transformá-lo em filho ingênito do direito público, desconhecendo ou olvidando que os princípios fundamentais que hoje remarcam o instituto foram elaborados pelo direito comum da responsabilidade civil, a partir do século passado” (Responsabilidade civil do Estado. 4. ed. São Paulo: RT, 2012. p. 24-25).

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civil, ainda que sob a forma da culpa anônima (faute du service), é imperioso saber o

que se entende por culpa dentro da tradição da dogmática de direito civil, de modo

que se verifique se há mesmo culpa quando a responsabilidade é imputada ao

Estado a título de omissão.

Na segunda metade desta dissertação, será detalhada a disputa existente

entre as correntes, com os argumentos de parte a parte. Será avaliada, ainda, a tese

da culpa anônima, cotejando-a com o conceito corrente de culpa para o direito civil,

com escopo de analisar a compatibilidade entre as figuras. Revistos, assim, todos os

pontos que circundam a matéria, será avaliado se o enfoque atualmente corrente na

dogmática acerca da responsabilidade civil do Estado por omissão, qual seja,

compartimentado no elemento subjetivo da responsabilidade civil (é necessária a

verificação de culpa?), é suficiente, e, em caso negativo, como deveria ser

considerada a questão pelo operador do direito.

Perceba-se que será dispensada a abordagem histórica, que ganhará mera

referência no início do segundo capítulo. E tal dispensa não é à toa, pois não se vê

utilidade em passar páginas e mais páginas tratando da história de determinado

instituto se tais informações não serão úteis para o deslinde do tema.24 O foco é

dogmático, é contribuir para a formulação de instrumentos técnicos visando à

decidibilidade dos conflitos.

24 Luciano Oliveira escreveu interessantíssimo texto criticando, de maneira contundente, alguns

vícios da pesquisa jurídica no Brasil, e o maior deles é a realização de escorços históricos que nada contribuem para a solução do problema colocado no trabalho, e o maior exemplo desse mau hábito é a constante menção ao código de Hamurabi, não importa qual seja o tema em discussão, como direito do trabalho, recuperação judicial ou contratos. Cf. Não fale do Código de Hamurabi. Disponível em: <http://www.esmape.com.br/downloads/Luciano_Oliveira_Nao_fale_do_codigo_de_Hamurabi.rtf>. Material da 1.ª aula da Disciplina Metodologia da Pesquisa Jurídica, ministrada nos Cursos de Especialização TeleVirtuais da Universidade Anhanguera – UNIDERP/REDE LFG.

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CAPÍTULO 1

OMISSÃO CIVILMENTE RELEVANTE, IMPUTAÇÃO

DE DANOS E CULPA

1.1 Omissão relevante para efeito de responsabilidade civil

1.1.1 Introdução

Convencionou-se dizer, no Brasil, que os elementos ou pressupostos da

responsabilidade civil são a conduta, o dano, o nexo de causalidade e a culpa em

sentido amplo. Os três primeiros são pressupostos objetivos, ao passo que a culpa,

por se referir ao agente, é um pressuposto subjetivo. Caso se faça necessária a

presença de todos esses elementos para a configuração da responsabilidade, será

esta subjetiva; prescindido-se do elemento subjetivo (culpa), a responsabilidade é

objetiva.25

25 Como foi dito, essa forma de apresentação dos pressupostos é a mais conhecida na dogmática

nacional, mas não é a única. Agostinho Alvim, por exemplo, coloca a conduta dentro da culpa, afirmando que os pressupostos do dever de indenizar são a culpa, o dano e o nexo de causalidade (Da inexecução das obrigações civis. 3. ed. São Paulo: Editora Jurídica e Universitária, 1965. p. 177-178). No direito português, Pedro Pitta e Cunha Nunes de Carvalho afirma que a corrente dominante enumera cinco pressupostos: fato, ilicitude, culpa, dano e nexo de causalidade (Omissão e dever de agir em direito civil. Coimbra: Almedina, 1999. p. 13 e ss.). Menezes de Cordeiro, por sua vez, diz que há orientações descritivas e sintéticas acerca do tema: “Nas diversas doutrinas, salvaguardados os elementos os elementos essenciais consoante pertençam ao sistema napoleónico ou ao germânico, a ordenação de pressupostos é muito variável. [...] encontramos, fundamentalmente, duas linhas: orientações descritivas; orientações sintéticas. As orientações descritivas vêm enumerar os pressupostos de acordo com uma tradição que, remontando a Guilherme Moreira e aos cultores germânicos, se veio a aperfeiçoar, ao longo do século XX. Podemos considerar que ela estabilizou em torno de cinco elementos: facto, ilicitude, culpa, dano e nexo de causalidade. As orientações sintéticas, que bem conhecem esses elementos, contrapõem a artificialidade dos cortes efectuados. Assim, Pessoa Jorge, ao considerar, apenas, o acto ilícito e o prejuízo reparável, inclui, no primeiro, o facto, a ilicitude e a culpabilidade, tratando ainda as causas de justificação e as de escusa; no prejuízo reparável têm lugar o dano e o nexo de causalidade. A opção, por uma ou por outra, desde que sejam dadas as competentes explicações, surge como uma orientação estilística ou pedagógica” (Tratado de direito civil português. Direito das obrigações. Coimbra: Almedina, 2010. t. III, p. 430-431).

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Tradicionalmente, ensina a doutrina que a conduta,26 como elemento objetivo

da responsabilidade civil, pode assumir duas formas, quais sejam ação e omissão.

Conduta é, portanto, “o comportamento humano voluntário que se exterioriza através

de uma ação ou omissão, produzindo consequências jurídicas”.27 A conduta

comissiva é de fácil apreensão, uma vez que há um comportamento positivo, ativo,

que desencadeia determinado fenômeno causal. Jogar uma pedra em um rio é uma

ação que desencadeia o fenômeno de formar ondas concêntricas em seu leito;

chutar uma bola é ação que desencadeia o fenômeno de movê-la do lugar, e assim

por diante.

Quando se está diante da omissão, o panorama, todavia, se altera

radicalmente, tornando muito mais difícil a compreensão por parte do observador,

pois na omissão não há alteração da realidade perceptível pela observação, à

medida que a conduta é negativa, é um não fazer.

Diante dessa característica de abstenção, de vazio, de “nada”, própria da

omissão, emerge a questão de como seria possível reuni-la com a ação na rubrica

de conduta humana, para efeito de responsabilidade civil. Em outros termos:

considerando-se que a omissão não tem existência no plano natural, de que maneira

enquadrá-la como conduta humana? Caso a resposta seja afirmativa, sob quais

26 Pedro Pitta e Cunha Nunes de Carvalho prefere o termo comportamento ao conduta. De acordo

com o autor português, comportamento é termo mais abrangente que conduta, pois inclui a realidade complexa envolvendo a conduta (ativa ou omissiva) e seu evento (resultado), que, para ele, não podem ser separadas. O termo conduta, assim, é reservado somente para designação de atividade corporal, em oposição ao resultado (Omissão e dever de agir em direito civil..., p. 38-39). Para efeito deste trabalho será utilizado o termo conduta, mais comum na dogmática brasileira, e preciso para designar tanto a ação como a omissão humana, no contexto da responsabilidade civil.

27 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2010. p. 24.

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critérios? As respostas a essas perguntas serão desenvolvidas nos próximos

tópicos.

Antes, todavia, vale ressaltar que a abordagem da omissão é muito

aprofundada na dogmática do direito penal, mais até que na dogmática civilista,

constatação também feita pela dogmática lusitana.28 É de extrema valia, assim,

passar os olhos sobre a matéria à luz da dogmática do direito penal.

1.1.2 A omissão no direito penal

O sistema clássico de direito penal, tributado, sobretudo, a Liszt, Von Beling e

Radbruch, apreciava a conduta de uma maneira meramente mecanicista ou

naturalista. Ação era o movimento corporal causador de alguma alteração

perceptível no mundo fenomênico. Tal conceito, por óbvio, não permite o

enquadramento da omissão como conduta humana, à medida que esta,

naturalisticamente falando, é um não fazer, um “nada”. A vetusta tese revelou-se

artificial e inútil, conduzindo a conclusões bizarras, por não cobrir todas as formas de

comportamento humano que interessam ao direito.29

A dogmática de direito penal, assim, evoluiu no sentido de afastar a

concepção da omissão como uma realidade em si mesma, tomando por fundamento

da omissão a ação esperada que o omitente deixou de praticar. A omissão não

28 “É no campo do direito penal (onde significativamente a acção apresenta a sua força patológica

mais intensa) que a teoria da acção tem sido alvo de tratamento mais aprofundado. Será, pois, por aí que iremos começar a construção do nosso conceito de comportamento humano em Direito Civil, conceito que procuraremos que seja suficientemente abrangente por forma a abarcar todos os comportamentos ilícitos como os lícitos” (CARVALHO, Pedro Pitta e Cunha Nunes de. Omissão e dever de agir em direito civil..., p. 40).

29 Idem, ibidem, p. 40-41.

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seria, portanto, mera abstenção, mas sim o juízo que se forma desse não fazer, a

partir da ação esperada.

Antes do tipo, isto é, em nível da conduta, não há omissões, pois todas são ações. E assim é porque “omitir” não é um puro “não fazer”: “omitir” é apenas “não fazer” o que se deve fazer, e este dever não poderá ser conhecido enquanto não se chega à norma, ou seja, enquanto não se chega à tipicidade.30

O ângulo de análise não é meramente natural, mas normativo, à medida que

se trata de uma ação esperada pelo fato de ser normativamente devida.31 A omissão

não se caracterizaria, assim, por um aspecto naturalístico, causal, mas sim por um

aspecto normativo, consistente em um dever de prática de determinado ato que não

foi praticado, derivado de imposição normativa, seja legal, seja negocial, ou, ainda,

derivada de situação anterior de risco criado pelo próprio omitente. Quando o

omitente se coloca nessa posição, diz a doutrina que está em posição de garante, à

medida que deve garantir a não ocorrência do resultado.

Nelson Hungria demonstra que a omissão pode ser considerada causa

somente do ponto de vista lógico, mas não sob o aspecto naturalístico, pois a

omissão é causa do resultado por não impedir seu advento, e o dever jurídico de

impedi-lo pode decorrer de um mandamento expresso da ordem jurídica, de uma

30 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. 6.

ed. São Paulo: RT, 2005. v. 1, p. 462. 31 “Esse comportamento [omissão], que consiste em um não fazer, não revela espontaneamente o

seu conteúdo. Este é o não cumprimento da ação devida, isto é, da ação que teremos de caracterizar, não como uma ação qualquer, mas como ação determinada que, nas circunstâncias, era de esperar do agente. Assim, o elemento naturalista de voluntário comportamento negativo do agente que se completa pelo elemento normativo da ação que era de esperar da ação devida, o que importa, não no juízo de alguém, mas no contraste real e efetivo entre esse comportamento e uma norma; normativo em sentido muito geral, como vimos, não estritamente jurídico” (BRUNO, Aníbal. Direito penal: parte geral. Introdução, norma penal, fato punível. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005. t. I, p. 93).

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relação contratual ou de uma situação de perigo em que o omitente tenha se

colocado previamente.32 No mesmo sentido ensinam Magalhães Noronha33 e Cezar

Roberto Bitencourt.34

Portanto, a omissão, do ponto de vista naturalístico, é um nada, de onde nada

advém. Sua relevância jurídica, destarte, aparecerá a partir da expectativa de uma

conduta não realizada, a qual, caso tivesse ocorrido, interviria no desdobramento

causal, obstando o resultado.

Nosso Código Penal prevê as hipóteses da omissão penalmente relevante.

Basicamente, são as situações em que o agente está na situação de garante, seja

pelo risco por ele mesmo criado, seja pelo dever legal ou contratual de evitar o

resultado (artigo 13, § 2.º, do Código Penal).35 Esse dispositivo do Código Penal é

próprio dos crimes comissivos por omissão, isto é, aqueles que são praticados por

comissão, mas que, eventualmente, podem ser praticados por omissão, desde que

preenchidos os requisitos desse artigo em comento. Não se podem confundi-los com

os crimes omissivos próprios, isto é, crimes de mera conduta praticados apenas na

32 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal: arts. 11 ao 27. 6 ed. Rio de Janeiro: Forense,

1983, v. 1, t. II, p. 53-54. Note-se que essa obra também foi escrita antes da reforma do Código Penal de 1984, de modo que ainda não existia o artigo 13, § 2.º, do referido diploma, que acaba por abraçar essa sugestão de Nelson Hungria, arrolando justamente as fontes por ele apontadas como geradoras do dever de impedir o resultado.

33 Cf. MAGALHÃES NORONHA. Direito penal. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 117 e ss. 34 “Na omissão não existe causalidade, considerada sob o aspecto naturalístico. Como já afirmava

Sauer, sob o ponto de vista científico, natural e lógico, ‘do nada não pode vir nada’. No entanto, o próprio Sauer admitia a causalidade na omissão, concluindo que ‘a omissão é causal quando a ação esperada (sociologicamente) provavelmente teria evitado o resultado. Na verdade, existe tão somente um vínculo jurídico, diante da equiparação entre omissão e ação. E toda equiparação feita pelo Direito, quando não se fundamenta na realidade, nada mais é do que uma ficção jurídica” (BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de direito penal: parte geral. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 187).

35 Art. 13, § 2.º: A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem: a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado; c) com o seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado.

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modalidade omissiva (por exemplo, omissão de socorro), em que não há resultado

naturalístico e, portanto, não se cogita sobre a pesquisa do nexo causal.36

Analisando-se a dogmática penal, percebe-se que a omissão torna-se relevante

quando existe um dever jurídico de impedir o resultado. A omissão, naturalisticamente,

não produz resultado, e as tentativas de comprovação em sentido contrário, pela teoria

mecanicista ou naturalista, há muito são rechaçadas. O nexo causal na conduta

omissiva, destarte, é meramente normativo, a partir de um dever de interrupção do

processo causal naturalístico derivado de uma norma jurídica, de um negócio jurídico ou

de um risco criado (artigo 13, 2.º, do Código Penal).

1.1.3 A omissão como modalidade da conduta humana

Feita a incursão sobre o direito penal, deve-se dar adequada resposta às

indagações colocadas na introdução deste item: como enquadrar a omissão como

conduta, e quais os critérios que tornariam determinado comportamento omissivo

relevante para efeito de responsabilidade civil.

Considera-se, em opinião ratificada por José Virgílio Vita Neto,37 que o tema

da conduta humana não é adequadamente abordado pela dogmática de direito civil.

36 “A omissão terá o mesmo valor penalístico da ação quando se colocar, por força de um dever

jurídico (art. 13, § 2.º), na posição de garantidor da não ocorrência do resultado. Não se trata, pois, como salienta Wessels, de um ‘não fazer’ passivo, mas da ‘não execução de uma certa atividade juridicamente exigida’. Nessa linha, que é a mesma que temos sustentado, que o Supremo Tribunal Federal, acolhendo o parecer que emitimos, decidiu: ‘A causalidade, nos crimes omissivos por omissão, não é fática, mas jurídica, consistente em não haver atuado o omitente, como devia e podia, para evitar o resultado’ (RTJ 116:177)” (ASSIS TOLEDO, Francisco de. Princípios básicos de direito penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 117-118).

37 “Na filosofia e na teoria geral do direito muito se discutiu com respeito às características que o comportamento humano deveria apresentar para ser recebido pelo ordenamento jurídico como apto a acarretar consequências jurídicas. Apesar de repercutirem sobre todos os âmbitos do direito, essas discussões, historicamente, pouco se desenvolveram na dogmática civil. O

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A responsabilidade civil historicamente teve um cunho moralista, de modo que os

estudos da dogmática sempre deitaram os olhos sobre a vontade, sobre o aspecto

subjetivo da conduta, negligenciando-se, assim, a conduta como dado objetivo. Em

Portugal, Menezes de Cordeiro e Pedro Pitta e Cunha Nunes de Carvalho são da

mesma opinião.38 Na Itália, Giuseppe Cricenti ratifica tal conclusão.39 Em geral, é

feita menção sobre a conduta somente na seara da responsabilidade civil, quando

deveria ser objeto de estudo da Teoria Geral do Direito Civil, à medida que é

pressuposto da geração de efeitos em todas as esferas do direito privado.

Pedro Pitta e Cunha Nunes de Carvalho indaga se é possível um conceito

pré-jurídico de omissão, ou seja, se ela existe somente como realidade jurídico-

normativa, ou se existe independentemente dela, como modalidade de conduta

humana.40 Para que se chegue à resposta, antes é mister analisar algumas teorias

feitas acerca do tema.

A teoria naturalista ou mecanicista já foi explanada na seara do direito penal,

e as mesmas críticas ali realizadas valem aqui. Trata-se de concepção ultrapassada

e de pouca operabilidade jurídica.

voluntarismo dominante não deixa praticamente qualquer espaço para o desenvolvimento dogmático do conceito de conduta” (VITA NETO, José Virgílio. A atribuição de responsabilidade contratual. 2007. Tese (Doutorado em Direito) – FADUSP, São Paulo, p. 94).

38 CARVALHO, Pedro Pitta e Cunha Nunes de. Omissão e dever de agir..., p. 39. 39 “L’omissione constituisce um tema critico. Raramente le dottrine giuridiche se ne occupano,

preferendo indagare la condotta umana sotto il suo aspetto attivo, in ciò manifestando una sorta di condizionamento filosofico: soltanto l’azione, e non l’omissione, è sempre stata considerata una categoria dell’essere, una sua modalità accidentale, una circostanza che caratterizza l’uomo” (A omissão constitui um tema crítico. Raramente a doutrina jurídica se ocupa dele, preferindo indagar sobre a conduta humana somente em seu aspecto ativo, com isso manifestando uma espécie de condicionamento filosófico: somente a ação, e não a omissão, foi sempre considerada uma categoria do ser, uma modalidade acidental dele, uma circunstância que caracteriza o homem – tradução nossa) (CRICENTI, Giuseppe. Il problema della colpa omissiva. Padova: Cedam, 2002. p. 55).

40 CARVALHO, Pedro Pitta e Cunha Nunes de. Omissão e dever de agir..., p. 85 e ss.

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A teoria do aliud facere defende a ideia de que o ser humano nunca está sem

fazer nada. Se o homem dorme, está dormindo; se está deitado sobre a relva vendo

o céu, está vendo o céu. Assim, não existiria jamais omissão propriamente, mas uma

ação diferente daquela que não foi praticada.41

Uma crítica central pode ser feita à teoria do aliud facere ou aliud agere: a

confusão da causalidade jurídica com uma causalidade natural. Embora,

naturalisticamente, a omissão não possa mesmo produzir o resultado, juridicamente

ela o pode. A atividade desempenhada, no caso, embora exista naturalisticamente, é

juridicamente irrelevante, enquanto aquela não realizada, em que pese não existir no

mundo fenomênico, será considerada para efeito de verificação de responsabilidade.

O tema ainda será aprofundado no item sobre nexo causal e imputação de danos.

Para a teoria normativista, a omissão só existe como realidade jurídica, uma

vez que se configura pela violação de norma legal que impõe dever de agir, de modo

a interromper desdobramento causal em curso. Quando se perscrutou sobre a

omissão no direito penal, viu-se que se considera a omissão como uma modalidade

de conduta humana, e que sua análise deve ser feita visando a determinado ato não

realizado. Ela não é, portanto, um dado em si, devendo ser cotejada com uma

conduta comissiva que restou não praticada. As lições da dogmática do direito penal

demonstram esse fenômeno demonstrando que na omissão há uma expectativa

41 “Nesta perspectiva, a omissão não surge como o contrário ou a negação da acção, mas como a

acção efetivamente praticada, em vez daquela que não foi levada a cabo. Escreveu Luden, precursor desta teoria, que o omitente ‘tem necessariamente de ter feito alguma coisa, e isso tem de ser sempre uma acção positiva, nem que ela tenha consistido no mero ficar-se a ver, ou numa ausência do local. E esta ação positiva é então a única causa do resultado criminoso. É nesse sentido que escreve Massari que ‘todos os delitos são comissivos’” (CARVALHO, Pedro Pitta e Cunha Nunes de. Omissão e dever de agir..., p. 99). Veja-se, ainda: CRICENTI, Giuseppe. Il problema..., p. 57.

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normativamente gerada de prática de uma conduta que teria evitado o resultado

(artigo 13, § 2.º, do Código Penal).42

Giuseppe Cricenti explana bem a teoria normativista:

Segundo a teoria normativista, como é notório, a omissão é perceptível somente em referência a uma norma que impõe agir de certo modo ou de conseguir determinado resultado, e assim consiste no descumprimento de algo devido, no sentido genérico do termo, na recusa de um comportamento que determinada regra impõe executar (tradução nossa).43

A adoção da tese puramente normativista implica importante consequência

dogmática. Afinal, se a omissão existe somente quando se viola dever de agir,

normativamente imposto, ela acaba por se confundir com a ilicitude. Assim, em vez

de a omissão figurar ao lado da ação como modalidade de conduta, ela se desloca

para a esfera da ilicitude. Essa importante consequência, a qual muitas vezes não é

notada, é bem explicitada por Pedro Pitta e Cunha Nunes de Carvalho:

Se é certo que a omissão enquanto pressuposto da responsabilidade civil (e também da responsabilidade criminal) é um dado jurídico, (pelo menos na generalidade dos ordenamentos jurídicos), discute-se se consiste ou não numa forma de comportamento ao lado da acção, se é uma realidade pré-jurídica ou se tem existência meramente normativa, e, portanto, se deve ser referida a propósito do pressuposto “facto voluntário” ou “comportamento humano”, ou se deve ser estudada apenas em sede de ilicitude.44

42 Giuseppe Cricenti assevera a predominância da teoria normativista também entre os penalistas

italianos, como Grispigni, Caraccioli e Cadoppi (Il problema..., p. 57). 43 “Secondola teoria normativa, como è noto, l’omissione è percepibile soltanto in riferimento ad uma

norma que impone di agire in un certo modo o di consiguire un certo resultato, e dunque consiste nel non compiere qual cosa di dovuto, nel senso genérico del termine, nel rifiuto di un comportamento che determinate regole impongono di compiere” (Idem, ibidem, p. 57).

44 CARVALHO, Pedro Pitta e Cunha Nunes de. Omissão e dever de agir..., p. 89-90.

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Entende o autor português que a omissão não significa “não fazer nada”, mas

sim “não fazer algo”. O conceito de omissão, necessariamente, implica a

representação de uma dada ação que acabou por ser omitida. Tal ação, todavia, há

de ser “algo que era esperado”, concluindo-se assim que a omissão é mais do que a

simples inércia ou inatividade, pois esse elemento é acrescido da esperança de uma

determinada ação que ao final foi omitida. Como ensina José de Oliveira Ascensão:

A omissão não é o nada, nem é não fazer nada: que o agente se mexa ou não, é irrelevante. Há omissão quando o agente não interfere na realidade exterior para evitar um evento, quando o podia fazer: isso estava na dependência de sua vontade.45

Ilustrando a assertiva, Pedro Pitta e Cunha Nunes de Carvalho fornece o

exemplo de um jantar. Se A não foi a um jantar na casa de B, só faz sentido dizer

que ele se omitiu caso houvesse algum motivo de supor que ele iria ao evento. Não

há sentido em dizer que A se omitiu de ir ao jantar se não foi convidado por B.46

Então, é possível dizer que há um conceito pré-jurídico de omissão,

consistente na abstenção de determinada conduta que, pelo contexto, era

socialmente esperada. Esse requisito da esperança acaba por realizar uma função

limitativa, pois a omissão restaria caracterizada somente caso a conduta não

realizada fosse esperada, exigível, pelo contexto social. Excluem-se, assim, todos os

demais infinitos comportamentos humanos que poderiam ser adotados.

Este conceito pré-jurídico de omissão contém um elemento fundamental para a relevância jurídica de qualquer comportamento: a relevância social, que resulta do facto de a acção ser socialmente

45 ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito civil: teoria geral. Ações e fatos jurídicos. 3. ed. São Paulo:

Saraiva, 2010. v. 2, p. 23. 46 Idem, ibidem, p. 117.

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esperada. Conforme observávamos, os comportamentos jurídicos são, antes de mais, comportamentos de relevância social. A relevância social da omissão é, pois, o primeiro elemento da relevância jurídica da omissão.

[...]

Trata-se, pois, de um critério fundamentalmente objectivo, embora aberto. Mas não arbitrário: é o costume, são os usos e as normas de cortesia, enfim os valores sociais que indicam se era ou não de esperar a ação.47

Assim, é sob esse conceito pré-jurídico de omissão, como modalidade de

conduta ao lado de ação, que o Direito construirá seu conceito jurídico.

Juridicamente, a omissão, para efeito da responsabilidade civil, pode ser

conceituada como a abstenção de uma conduta socialmente esperada, em razão de

imposição de dever de agir pelo ordenamento jurídico.

A teoria normativista, destarte, acerta ao relacionar a omissão com o dever de

agir, mas exagera ao tentar compartimentar toda a fenomenologia da omissão

dentro do Direito, pois, como visto, é possível vislumbrar um conceito pré-jurídico de

omissão, a partir da expectativa social do desempenho de determinado ato.

Tendo em vista que a omissão, para ser civilmente relevante, deve implicar a

violação de um dever de agir imposto pelo ordenamento jurídico, impende esclarecer

como se relacionam a omissão e a ilicitude.

A ilicitude pode ser compreendida como a contrariedade à ordem jurídica, que

se revela pela prática de conduta contrária à lei sem o enquadramento em preceito

permissivo. Nesse sentido, ainda que a conduta, à primeira vista, seja contrária ao

47 ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito civil..., p. 119. Ainda: “No existe, por tanto, una omisiónen

si; juridicamente ‘omitir’ no significa un mero no hacer nada, sino un no hacer la acción decretada” (GOLDENBERG, Isidoro H. La relación de causalidad em la responsabilid civil. Buenos Aires: Astrea, 1989. p. 200).

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ordenamento jurídico integral, a ilicitude será neutralizada quando a ordem jurídica

permitir, de maneira expressa, a prática do ato (no Código Civil, artigo 188;48 no

Código Penal, artigo 23). Nesse diapasão, ensinam Zaffaroni e Pierangeli que a

“antijuridicidade é, pois, o choque da conduta com a ordem jurídica, entendida não

só como uma ordem normativa (antinormatividade), mas como uma ordem normativa

e de preceitos permissivos”.49

Ilicitude, no aspecto material, “se constitui da lesão produzida pelo

comportamento humano que fere o interesse jurídico protegido”.50 No aspecto

formal, significa a violação de norma jurídica.51 O aspecto formal tem mais interesse

no direito penal, em que existem crimes de mera conduta e crimes formais, que se

consumam independentemente de qualquer resultado. Na responsabilidade civil, em

que não há ilícito sem dano, e também pelo fato de não trabalhar com a tipicidade

fechada própria do direito penal, a perspectiva formal da ilicitude perde

importância.52 Ensina Roberto Senise Lisboa:

Como a responsabilidade civil funda-se na concepção de tipologias abertas, a antijuridicidade exerce uma função indiciária do tipo, preponderando no direito civil a chamada antijuridicidade material, ou seja, deixa-se de lado a noção segundo a qual somente haveria ilícito na ilegalidade. Superou-se, como observa Carlos Roberto Gonçalves, a ideia de numerus clausus dos direitos subjetivos

48 “Art. 188. Não constituem atos ilícitos: I – os praticados em legítima defesa ou no exercício regular

de direito reconhecido; II – a deterioração ou destruição da coisa alheia, ou a lesão a pessoa, a fim de remover perigo iminente. Parágrafo único. No caso do inciso II, o ato será legítimo somente quando as circunstâncias o tornarem absolutamente necessário, não excedendo os limites do indispensável para a remoção do perigo.”

49 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual..., p. 488. 50 BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual..., p. 237. 51 “Ato ilícito, na definição clássica de Planiol, nada mais é do que a violação de um dever

preexistente, que se impõe ao agente. É a transgressão de um dever jurídico” (LOUREIRO, Francisco Eduardo. Ato ilícito. In: LOTUFO, Renan; NANNI, Giovanni Ettore (Org.). Teoria geral do direito civil. São Paulo: RT, 2008. p. 722).

52 LOUREIRO, Francisco Eduardo. Ato ilícito, p. 69.

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tutelados, característica da antijuridicidade formal, adotando-se a concepção do dever de reparação de todo e qualquer dano ressarcível.53

Para alguns autores, o ato ilícito é somente aquele praticado com culpa,54 de

modo que ele exige mais que a violação da norma, mas também a censurabilidade,

a ligação da conduta subjetivamente ao sujeito (culpabilidade). Os atos violadores

de interesses alheios sem culpa seriam meramente antijurídicos, mas não ilícitos.

Fernando Noronha55 utiliza a nomenclatura de ilicitude objetiva para os atos sem

culpa e ilicitude subjetiva para aqueles com culpa. Os atos que ensejam

responsabilidade objetiva não seriam, pois, ilícitos, mas meramente antijurídicos.

Sérgio Cavalieri Filho afirma que o conceito estrito de ilicitude, abrangendo somente

os atos culposos, tornou-se insuficiente para o direito civil, de modo que atualmente

trabalha-se com um conceito mais amplo de ilicitude, que envolve também a

responsabilidade objetiva.56 Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho

entendem que, com a vigência do Código Civil de 2002, o ato, para ser ilícito, não

precisa ser culposo.57

Apesar das divergências de nomenclatura, não há substancial diferença no

tratamento da ilicitude na omissão, se comparada à ação. Alguns argumentos

podem ser arrolados para referendar a assertiva.

53 LISBOA, Roberto Senise. Manual de direito civil: obrigações e responsabilidade civil. 5. ed. São

Paulo: Saraiva, 2010. p. 261. 54 Cf. GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998. p. 488. 55 NORONHA, Fernando. Direito das obrigações. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 382-392. 56 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa..., p. 7-13. 57 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil:

responsabilidade civil. São Paulo: Saraiva, 2003. v. 3, p. 490-492.

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Em primeiro lugar, no aspecto formal da ilicitude, se é verdade que a omissão

só é ilícita quando a ação é imposta, também é verdade que a ação também

somente é ilícita quando é proibida.

No aspecto material da ilicitude, a única diferença refere-se ao âmbito dela,

que na omissão é mais apertado se comparado à ação. Para essa ser ilícita, deve

haver violação de direitos alheios sem causa de justificação. Já para a omissão ser

ilícita, além desses dois requisitos, deve haver a violação ao dever de agir imposto

pela norma.58

Giuseppe Cricenti, em que pese não faça referência à ilicitude, também

percebe essa distinção, dizendo que o sistema italiano de responsabilidade civil é

atípico para as condutas comissivas, baseado no neminem laedere,59 e típico para a

responsabilidade por omissão, pois deve haver violação de um dever específico de

agir. Por isso, para o autor italiano, o neminem laedere é norma primária na conduta

ativa, e norma meramente secundária na omissiva.60

58 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso..., p. 136. 59 A famosa máxima latina do Neminem laedere, isto é, “não lesar a outrem”, aparece no Digesto,

uma das partes do Corpus Juris Civilis de Justiniano, por obra de Ulpiano, no ano de 526 d.C. Sobre a origem histórica do princípio v. DONNINI, Rogério. Prevenção de danos e extensão do princípio do neminem laedere. In: ––––––; NERY, Rosa Maria de Andrade (Coord.) Responsabilidade civil: estudos em homenagem ao professor Rui Geraldo Camargo Viana. São Paulo: RT, 2009. p. 483 e ss.

60 “La differenza tra azione ed omissione, nel campo della responsabilità aquiliana, è dunque principalmente uma differenza tra un sistema che riposa su uma clausola generale, ed uno che invece risiede in um insieme di prevision ispeciali, ognuna avente una propria fattispecie: l’azione illecita riposa sulla regola generale dell’art. 2.043 c.cc; le omissioni sono rilevanti solo se costitui scono violazione di specifici e tipici doveri di agiri, espressi in singole norme o in singole fonti dell’ordinamento” (A diferença entre a ação e a omissão, no campo da responsabilidade aquiliana, é principalmente uma diferença entre um sistema que repousa em uma cláusula geral, e outro que, pelo contrário, reside em uma série de previsões especiais, cada uma tendo uma própria hipótese de incidência: a ação ilícita repousa sob a regra geral do artigo 2.043 c.c.; as omissões são relevantes somente se constituírem violação de específicos e típicos deveres de agir, expressos em normas ou fontes do ordenamento determinadas – tradução nossa). CRICENTI, Giuseppe. Il problema..., p. 2.

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Do exposto até o momento, pode-se dizer que existe um conceito pré-jurídico

de omissão, consistente em uma abstenção qualificada por uma expectativa,

socialmente gerada, da prática de determinado ato. Para a responsabilidade civil, a

omissão será relevante quando houver, pelo ordenamento, a imposição de

determinado dever de agir que restou não observado pelo omitente. Viu-se, ainda,

que a ilicitude presente no ilícito omissivo não difere, substancialmente, daquela dos

ilícitos comissivos.

Vale lembrar que não há dever de indenizar sem dano. Assim, só haverá

ilícito omissivo se sobrevier um prejuízo, seja material, seja moral, para a vítima. A

omissão, destarte, além de conduta não realizada, tem de ter um parâmetro

adicional de análise, qual seja o evento danoso.61

Para que seja feita essa aproximação desses elementos, ou seja, a

abstenção, a ação devida e o resultado, a dogmática se vale da noção do nexo

causal, tema que será objeto de estudo em item posterior.

A responsabilidade por omissão gira em torno, assim, do dever de agir.

Questão tormentosa é saber quais as fontes do dever jurídico de agir. Foi visto que o

Código Penal, no artigo 13, § 2.º, reconhece a lei, o negócio jurídico ou o risco

anteriormente criado como fontes desse dever. Desse tema se ocupará o próximo

item.

61 “Conseguentemente l’omissione non può essere definita a priori, ma vari costruita in vista del

problema, centrale per la responsabilità civile, di attribuzione o menodi um evento ad soggetto” (A omissão não pode ser definida a priori, mas será construída tendo em vista o problema, central para a responsabilidade civil, de atribuição ao menos de um evento ao sujeito – tradução nossa). CRICENTI, Giuseppe. Il problema..., p. 77.

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1.1.4 O problema das fontes do dever jurídico de agir

1.1.4.1 Contribuições do direito estrangeiro

A legislação brasileira não contribui com o jurista no que tange à

responsabilidade civil por omissão. Com efeito, nosso Código Civil, em seu artigo

186,62 aponta que a omissão pode ser causa de dano, mais nada. Não há qualquer

referência a dever jurídico de agir, bem como não há qualquer pista sobre quais as

fontes que podem gerar ao omitente referido dever, apto a impedir desdobramento

causal em curso.

Como se viu, o Código Penal tem artigo que prevê a relevância causal da

omissão quando há dever legal, dever contratual ou quando há risco anterior

criado pelo próprio omitente. A doutrina civilista brasileira, em geral, limita-se a

afirmar a relevância civil da omissão quando há dever de agir. Alguns autores

chegam a apontar aquelas fontes prescritas pelo Código Penal. Vejam-se

Francisco Amaral,63 Sérgio Cavalieri Filho,64 Rui Stoco, Paulo Nader,65 Maria

62 “Artigo 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito

e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.” 63 “O comportamento do agente pode consistir também em omissão, que será causa jurídica do

dano se houver dever de agir, de praticar o ato omitido, como, por exemplo, no caso do ascendente que deixa de alimentar o descendente pelo qual é responsável; ou o técnico que deixa de prestar auxílio a quem era obrigado” (AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 7. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 553).

64 “A omissão, todavia, como pura atividade negativa, a rigor não pode gerar, física ou materialmente, o dano sofrido pelo lesado, porquanto do nada nada provém. Mas tem-se entendido que a omissão adquire relevância jurídica, e torna o omitente responsável, quando este tem um dever jurídico de agir, de praticar um ato para impedir o resultado, dever, esse, que pode advir da lei, do negócio jurídico ou de uma conduta anterior do próprio omitente, criando o risco da ocorrência do resultado, devendo, por isso, agir para impedi-lo” (CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa..., p. 24).

65 “Em síntese, somente haverá responsabilidade civil por ato omissivo se o agente tiver o dever jurídico de praticar uma conduta positiva, isto é, uma ação” (NADER, Paulo. Curso de direito civil: responsabilidade civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010. v. 7, p. 69).

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Helena Diniz,66 Francisco Eduardo Loureiro,67 Carlos Roberto Gonçalves68 e

Fernando Noronha.69 Isidoro H. Goldenberg também menciona como fontes do

dever de agir um dispositivo legal (un precepto legal), um negócio jurídico (un

negocio juridico) e uma conduta anterior (una conducta precedente que impone una

posterior obligación).70

O Código Civil português, em seu artigo 486,71 prevê a responsabilidade civil

por omissão quando houver dever jurídico de praticar o ato, derivado da lei ou do

negócio jurídico. O dispositivo é importante ao reconhecer a omissão como

modalidade de conduta, como fonte da responsabilidade civil e, ao mesmo tempo,

por exigir uma especificidade da ilicitude, não presente na responsabilidade por

comissão: a violação de um dever jurídico de agir.72 Menezes de Cordeiro73 e José

66 “O comportamento do agente poderá ser uma comissão ou uma omissão. A comissão vem a ser

a prática de um ato que não se deveria efetivar, e a omissão, a não observância de um dever de agir ou da prática de certo ato que deveria realizar-se” (DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: responsabilidade civil. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. v. 7, p. 56).

67 “O comportamento omissivo é a inatividade, a inércia de quem tem o dever jurídico de agir, para impedir o resultado. Tal dever pode advir da lei, do negócio jurídico ou das circunstâncias do caso, em especial a conduta antecedente do agente” (LOUREIRO, Francisco Eduardo. Ato ilícito, p. 723).

68 “Para que se configure a responsabilidade por omissão é necessário que exista o dever jurídico de praticar determinado fato (de não se omitir) e que se demonstre que, com sua prática, o dano poderia ser evitado. O dever jurídico de agir (de não se omitir) pode ser imposto por lei (dever de prestar socorro às vítimas de acidente imposto a todo condutor de veículo pelo art. 176, I, do Código de Trânsito Brasileiro) ou resultar de convenção (dever de guarda, de vigilância, de custódia) e até da criação de alguma situação especial de perigo” (GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: responsabilidade civil. São Paulo: Saraiva, 2007. v. 4, p. 41).

69 “A conduta culposa pode ser comissiva ou omissiva. Mesmo com relação às condutas omissivas, para que se possa falar em atuação culposa é necessário que o responsável tivesse o dever de praticar o fato omitido, só não tendo agido por negligência, imprudência ou imperícia, ou mesmo por voluntária opção (dolo)” (NORONHA, Fernando. Direito..., p. 496).

70 GOLDENBERG, Isidoro H. La relación de causalidad..., p. 201. 71 “Art. 486. As simples omissões dão lugar à obrigação de reparar os danos, quando,

independentemente dos outros requisitos legais, havia, por força da lei ou do negócio jurídico, o dever de praticar o acto omitido.”

72 Cf. CARVALHO, Pedro Pitta e Cunha Nunes de. Omissão e dever de agir..., p. 145. 73 MENEZES DE CORDEIRO, António. Tratado..., p. 436.

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de Oliveira Ascensão,74 comentando tal dispositivo, asseveram que o direito

português somente reconhece a responsabilidade civil por omissão quando presente

o dever de praticar o ato omitido.

Além disso, conforme ensina Menezes de Cordeiro, conhece o direito

português a figura dos “deveres de tráfego”,75 isto é, deveres de proteção que

nascem sempre que alguém crie ou controle uma fonte de perigo, cabendo-lhe as

medidas necessárias para evitar ou prevenir os danos. Os artigos 491,76 49277 e

49378 são os veículos de positivação dos deveres de tráfego expressamente

previstos no direito lusitano. O primeiro prevê a responsabilidade daqueles que

vigiem incapazes pelos danos que estes causarem a terceiros (fora do âmbito da

responsabilidade contratual, portanto); o segundo determina a responsabilidade do

dono do edifício pelo dano que ele causar a outrem; o terceiro, em sua primeira

parte, traz a responsabilização pelo fato da coisa ou de animal, e em sua segunda

74 ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito civil..., v. 2, p. 23. 75 “Os deveres de tráfego são, hoje, derivados do § 823/I do BGB ou do nosso artigo 483.º/1.

Fundamentalmente eles surgem quando alguém crie ou controle um fonte de perigo: cabem-lhe, então, as medidas necessárias para prevenir ou evitar danos” (MENEZES DE CORDEIRO, António. Tratado..., p. 573).

76 “Art. 491.º As pessoas que, por lei ou negócio jurídico, forem obrigadas a vigiar outras, por virtude da incapacidade natural destas, são responsáveis pelos danos que elas causarem a terceiro, salvo se mostrarem que cumpriram o seu dever de vigilância ou que os danos se teriam produzido ainda que o tivessem cumprido.”

77 “Art. 492.º 1. O proprietário ou possuidor de edifício ou de outra obra que ruir, no todo ou em parte, por vício de construção ou defeito de conservação, responde pelos danos causados, salvo se provar que não houve culpa de sua parte ou que, mesmo com a diligência devida, se não teriam evitado os danos. 2. A pessoa obrigada, por lei ou negócio jurídico, a conservar o edifício ou a obra responde, em lugar do proprietário ou possuidor, quando os danos forem devidos exclusivamente a defeito de conservação.”

78 “Art. 493.º 1. Quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel, com o dever de a vigiar, e bem assim quem tiver assumido o encargo de vigilância de quaisquer animais, responde pelos danos que a coisa ou os animais causarem, salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido anda que não houvesse culpa sua. 2. Quem causar danos a outrem no exercício de uma actividade, perigosa por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, excepto se mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir.”

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parte, por fim, prevê a hipótese de danos causados pelo desempenho de atividades

perigosas.

No que tange às três últimas hipóteses, há figuras semelhantes no Código

Civil brasileiro. A responsabilidade pelo fato do animal está prevista no artigo 936;79

a responsabilidade pela ruína de edifício está no artigo 937;80 a cláusula geral do

parágrafo único do artigo 927 positiva a responsabilidade objetiva para as atividades

de risco; já a responsabilidade daquele que vigiava incapaz, por danos cometidos

pelo último a terceiro, não tem previsão no sistema brasileiro. Todavia, como o artigo

932, I, determina que para a responsabilidade dos pais em relação aos filhos ser

efetivada estes devem estar na “na companhia” daqueles, tem-se entendido que,

quando um terceiro tem a vigilância, a responsabilidade dos pais é afastada,

incidindo sobre o terceiro.81 A doutrina, no Brasil, não costuma tratar esses temas

dentro da omissão, em que pese, a rigor, haja omissão de dever de cuidado (guarda

de animais e coisas, vigilância de incapazes, manutenção de edifícios) nesses

casos. Como se trata, todavia, de responsabilidade objetiva, não sendo necessária a

comprovação de culpa in vigilando ou in eligendo, perde a importância do estudo da

conduta do omitente, preferindo a doutrina focalizar os elementos de ligação da

fonte do dano (incapaz, coisa, animal ou edifício) com o responsável.

79 “Art. 936. O dono, ou detentor, do animal ressarcirá o dano por este causado, se não provar culpa

da vítima ou força maior.” 80 “Art. 937. O dono do edifício ou construção responde pelos danos que resultarem de sua ruína, se

esta provier da falta de reparos, cuja necessidade fosse manifesta.” 81 “Encontrando-se o filho na guarda de apenas um de seus progenitores, não são chamados os

dois para responder pelos seus atos. Acontece que repousa a responsabilidade na pessoa daquele que exerce a guarda e vigilância. Se estão sob a autoridade dos avós, ou de outros parentes, de um educador, de um estabelecimento de ensino, ou da empresa onde trabalha, igual tratamento deve aplicar-se, incidindo neles a responsabilidade” (RIZZARDO, Arnaldo. Responsabilidade civil. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 113).

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Da análise desses dispositivos do Código português (artigos 491 a 493) vê-se

que só há afastamento da responsabilidade em dois casos: quando se comprovar

que não houve culpa82 de quem tinha a responsabilidade sobre o incapaz, coisa,

animal ou edifício; ou quando, mesmo havendo culpa, se comprovar que o dano

sobreviria de qualquer maneira (causa virtual com relevância negativa).

No primeiro caso, deve o responsável comprovar que executou todos os

deveres de diligência exigidos no caso concreto, valendo ressaltar a observação de

Menezes de Cordeiro no sentido de que “tais deveres não são, todavia,

predeterminados, nem nos seus sujeitos, nem no seu conteúdo, [...]. Eles nascem e

desaparecem ao sabor de muitas circunstâncias [...]”.83 Em um caso concreto, o

ônus da prova certamente será invertido, pois, uma vez constatado o dano, caberá

ao omitente comprovar que tomou todos os cuidados necessários. A presunção é

relativa, admitindo-se prova em contrário, senão haveria responsabilidade objetiva.84

82 Menezes de Cordeiro entende que o termo “culpa” é mal empregado no caso, porque o que se

deve analisar não é propriamente a culpa, mas sim a violação do dever, seja de vigilância, seja de guarda, seja de diligência. Violação de dever, para ele, é ilicitude. O termo “culpa” é, assim, utilizado não como a culpa pressuposto da responsabilidade civil, mas como o termo faute, do código napoleônico, que abrange a conduta, a ilicitude e a culpa. Para o autor português, a responsabilidade pelos deveres de tráfego tem aspectos de responsabilidade aquiliana, pois os deveres não têm conteúdo predeterminado, mas têm aspectos de responsabilidade contratual, tendo em vista presunção de culpa e a ausência de distinção entre a culpa e a ilicitude. Por isso, baseado em Cannaris, ele defende uma terceira via da responsabilidade civil, entre a aquiliana e a contratual. (Tratado..., p. 397-403 e 588-589).

83 MENEZES DE CORDEIRO. Tratado..., p. 588. 84 Pelo critério de sua intensidade, as presunções podem ser absolutas ou relativas. No primeiro

caso, elas alteram a própria estrutura do instituto de direito material, visto que o fato presumido não precisa sequer ser discutido dentro do processo. Por isso, costuma-se dizer que a presunção absoluta não admite contraprova. Na usucapião extraordinária, por exemplo, a boa-fé é presumida de maneira absoluta em razão do maior lapso temporal. Assim, ela deixa de ser um requisito do próprio instituto (art. 1.238, CC). As presunções absolutas, portanto, são fenômenos de direito material, não de direito processual, visto que os fatos por ela presumidos sequer podem ser colocados dentro do objeto de prova do processo instaurado (cognição no plano horizontal), alterando a própria configuração substancial do instituto. Em razão dessa força, as presunções absolutas são sempre legais, ou seja, devem estar previstas no direito positivo. As presunções relativas, por sua vez, não atuam no plano do direito material, mas sim do direito processual, invertendo o ônus da prova dentro do processo. Considerando que o ônus probandi é de quem

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Note-se que nos deveres de tráfego resta bem nítida a distinção entre a culpa

e a omissão, de modo a infirmar o raciocínio de que a responsabilidade civil por

omissão é subjetiva, bem como a confusão entre negligência e omissão. Uma coisa

é o dever de agir imputado pela norma jurídica, no caso o dever de proteção sobre a

fonte de perigo. Caso haja referido dever, uma vez descumprido, há omissão. Trata-

se de uma análise objetiva. Em um segundo plano, será avaliada a culpa. Mesmo

desincumbindo-se do dever de agir, existindo dano, há responsabilidade? Se a

responsabilidade for subjetiva, não, pois aí certamente não terá havido culpa, à

medida que foi observado padrão de diligência exigido. Caso a responsabilidade

seja objetiva, todavia, ainda que tomados todos os cuidados, haverá

responsabilidade. É errôneo, assim, identificar a omissão com a culpa e a

negligência (sempre que há omissão, há negligência e, portanto, responsabilidade

subjetiva).

Verifica-se, portanto, que, enquanto na conduta comissiva a culpa é um

elemento que a impulsiona, na omissão a culpa é avaliada anteriormente ao ato de

abstenção em si, ou seja, avalia-se se todos os deveres prévios de cuidado foram

devidamente tomados.

alega o fato cuja comprovação lhe interessa, de acordo com o princípio do interesse (art. 333, CPC), a presunção relativa faz com que esse encargo seja invertido. Assim, uma parte alega – sem prova – determinado fato que, sendo presumido, deve ter a contraprova realizada pela parte adversa. A presunção relativa, destarte, ao invés de retirar determinado fato do objeto da prova, apenas altera a regra de julgamento, de modo que o magistrado imputa o encargo probatório não àquele que alegou o fato presumido (como determina o artigo 333 do CPC), mas sim à parte contrária. As presunções relativas, por não alterarem a própria configuração do direito material, podem decorrer diretamente da lei ou podem ser de criação do intelecto do magistrado. Exemplo do primeiro caso (praesumptiones legis) é a garantia de inversão do ônus da prova para o consumidor hipossuficiente (artigo 6.º, VIII, CDC). Já as presunções judiciais (praesumptiones hominis) são aquelas criadas nos casos concretos em que o juiz, a partir das máximas da experiência, pode tomar um fato como provado, invertendo assim o ônus probatório, como lhe faculta o artigo 335 do Código de Processo Civil (cf. DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. v. 3, p. 113 e ss.).

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Veja-se, por exemplo, o caso de uma agência bancária. A instituição

financeira tem que garantir a incolumidade física e patrimonial do seu cliente dentro

do estabelecimento, pois eventuais crimes contra o patrimônio são riscos inerentes à

própria atividade (fortuito interno). A responsabilidade do fornecedor, no caso, é

objetiva, conforme disposições do Código de Defesa do Consumidor (artigo 6.º, I,

c.c. artigo 14). Nesse sentido, eventual assalto em agência bancária induz

necessariamente à responsabilidade civil. De nada adianta a instituição financeira

demonstrar em juízo que contratou a melhor empresa de segurança do mercado,

que o número de seguranças era adequado, que estes fizeram o possível quando do

crime, enfim, não há que cotejar sobre a culpa. Há de analisar somente os

elementos objetivos, pois a responsabilidade é objetiva. Há dever de agir? Sim. O

desdobramento causal foi interrompido? Não. Houve dano? Sim. Conclusão: há

responsabilidade civil. O item 3.4.1 tratará especificamente sobre a distinção entre

negligência e omissão.

Já a segunda hipótese de afastamento prevista nos artigos supracitados da

legislação portuguesa refere-se à causa virtual, assim conceituada por Fernando

Noronha:

Às vezes acontece que um dano, cuja verificação se podia ter como consequência adequada de um determinado fato, venha a ser produzido por outro, sem relação de causa e efeito com o primeiro. [...] O primeiro fato, tido como adequado para produzir o resultado danoso mas que não chegou a produzi-lo, é chamado de causa virtual, ou hipotética. O segundo, que efetivamente veio a produzir o dano, é a causa real, ou operante, deste.85

85 NORONHA, Fernando. Direito..., p. 688.

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O autor da causa virtual pode invocar a causa real, de modo a sustentar que o

dano foi produzido por outra causa, quando então se fala em relevância positiva da

causa virtual, ou seja, analisa-se se ela pode por si mesma fundamentar a obrigação

de indenizar. Por outro lado, quando o autor da causa real invocar a causa virtual,

tem-se a relevância negativa da causa virtual, pois o primeiro tentará se libertar de

eventual obrigação de indenizar invocando-a.

Na hipótese sub examine, aquele que infringiu o dever de tráfego tentará

demonstrar que o dano sobreviria de qualquer maneira, ainda que ele tivesse sido

diligente. Tentará, assim, invocar a relevância negativa da causa virtual,

comprovando que sua displicência foi inócua na produção do evento danoso, pois

este apareceria de qualquer maneira em razão da causa virtual, que acabou não

ocorrendo pelo fato de a conduta do agente (causa real) o ter causado antes. Não se

trata, note-se, de caso fortuito ou de força maior, pois nesse caso não é a conduta

do agente que causa o dano (excludente de causalidade), mas sim o evento

irresistível e inevitável. Aqui, é o próprio agente que causa o dano, mas a lei lhe

confere a possibilidade de exonerar-se comprovando que outra causa

inexoravelmente o produziria.

Na Itália, o artigo 2.04386 do Código Civil, a exemplo do Código Civil pátrio,

não prevê qualquer critério sobre a relevância da omissão na responsabilidade civil.

Em razão disso, Giuseppe Cricenti afirma que tal dispositivo desempenha duplo

papel na responsabilidade civil: é norma primária quando se trata de conduta ativa,

mas norma secundária quando se trata de conduta omissiva, pois nesse caso a 86 “Art. 2.043. Qualunque fatto doloso o colposo, che cagiona ad altri um danno ingiusto, obbliga

colui che ha commesso Il fatto a risarcire Il danno” (Qualquer fato doloso ou culposo que ocasiona um dano injusto, obriga aquele que o cometeu a ressarcir o dano – tradução nossa).

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responsabilidade dependerá de outra norma impondo o dever de praticar aquele ato

omitido.87

Na França, o artigo 138288 do Código Civil prevê a regra geral sobre a

responsabilidade civil, e também não cuida da hipótese da omissão. Tal fato não

impediu, todavia, o reconhecimento da responsabilidade civil por omissão por parte

dos maiores civilistas franceses, como Louis Josserand, Paul Eismein e René

Savatier, relacionando-a com o dever de praticar o ato que acabou omitido.89

O panorama no direito alemão é bem parecido com aquele do francês, visto

que a lei civil também não trata da omissão como pressuposto da responsabilidade

civil, embora autores como Enneccerus, Karl Larenz e Josef Esser reconheçam

hipóteses de responsabilidade civil por omissão.90

Na Argentina, a doutrina faz distinção entre a omissão pura e simples e a

comissão por omissão. Na doutrina brasileira, tal dicotomia é estabelecida no direito

penal, mas não costuma ser reproduzida nas obras de direito civil. Na omissão

própria, simples omissão ou omissão propriamente dita, “el sujeto infringe el

mandamento legal, no ejecutando la atuación prescripta por la norma, con

87 “Allora l’art. 2.043 c.c. finisce con l’avere um ruolo diverso nelle due ipotesi: nel caso di condotte

attive è considerata una norma primaria, que contiene essa stessa Il precetto la cui violazione importa responsabilità civile; nel caso, invece, di condotte omissive, diventa una norma secondaria, che se limita a fornire la sanzione per la violazione di quelle norme che contengono um obbligo de agire” (Então o artigo 2.043 acaba tendo um papel diverso nas duas hipóteses: no caso de conduta ativa é considerado uma norma primária, que contém ela mesma o preceito de cuja violação importa a responsabilidade civil; no caso, ao contrário, da conduta omissiva, torna-se uma norma secundária, que se limita a fornecer a sanção pela violação daquela norma que contém o dever de agir – tradução nossa). CRICENTI, Giuseppe. Il problema..., p. 2.

88 “Art. 1.382. Tout fait quelconque de l’homme, qui cause à autrui un dommage, oblige celui par la faute du quel il est arrivé à le réparer” (Todo fato humano, que causa dano a outrem, obriga aquele que agiu com culpa a repará-lo – tradução nossa).

89 Cf. CARVALHO, Pedro Pitta e Cunha Nunes de. Omissão e dever de agir..., p. 177-188. 90 Idem, ibidem, p. 205-208.

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independencia de las consecuencias perjudiciales que produce o pudiera producir su

inactividad”.91 Já a comissão por omissão, ou omissão imprópria, “es solo un medio

para alcanzar el resultado prejudicial querido por el agente”.92 Diferentemente do

que ocorre com os ilícitos de pura omissão, que se tipificam somente com a infração

do dever de atuar, prescindindo-se da vontade do agente, nas omissões impróprias

a causalidade da conduta está dirigida à criação de um estado de fato que se traduz

em um resultado comissivo. Essa distinção será retomada no Capítulo 2, item 2.6.1.

Ainda de acordo com a doutrina argentina, as omissões próprias estão

previstas no artigo 1.07493 do Código Civil argentino, que prevê a responsabilidade

por omissão quando a lei impuser dever de praticar o ato omitido, ao passo que a

omissão por comissão está contida no artigo 1.07394 do mesmo diploma. No primeiro

caso, haveria verdadeira responsabilidade objetiva, pois não seria necessário

perquirir qualquer elemento subjetivo, mas somente um dever de agir não

cumprido.95 No segundo caso, a responsabilidade emergiria somente se cotejada

com o parâmetro da culpa.96

91 GOLDENBERG, Isidoro H. La relación de causalidad..., p. 202. 92 Idem, ibidem, p. 203. 93 “Art. 1.074. Toda persona que por cualquier omisión hubiese ocasionado un perjuicio, será

responsable solamente cuando una disposición de la ley le impusiere laobligación de cumplir el hecho omitido.”

94 “Art. 1.073. El delito puede ser un hecho negativo o de omisión, o un hecho positivo.” 95 “De nuestra óptica, la norma del artículo 1074 se refiere a las omisiones simples y no a las

hipótesisen que la abstención es el modo buscado, ex profeso, para causar daño; la conducta es imputable en cuanto preexiste una obligación legal de actuar, segun el mismo criterio objetivo del artículo 1066; de donde si existe el previo deber legal de actuar, la omisión hará nacer la responsabilidad civil con la prescindencia de los aspectos subjetivos del agente” (LATRUBESSE, Gustavo Carranza. Responsabilidad del Estado por su actividad lícita. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1998. p. 46).

96 “La omisión en la acción implica una forma de manifestación de la culpa en tanto se omite adoptar la diligencia debida de acuerdo con la naturaleza de la acción encarada, relacionada con las circunstancias de persona, tiempo y lugar (art. 512 del Cciv)” (SALOMONI, Jorge Luis. La

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Ensina Isidoro H. Goldenberg97 que doutrina argentina se divide sobre a

abrangência desse dever de agir (deber de obrar). De um lado, há quem dê uma

interpretação restritiva ao preceito, de modo que somente o dever legal expresso de

cumprir o ato omitido pode gerar responsabilidade ao omitente. O esteio

argumentativo dessa corrente é o princípio da legalidade (art. 19 da Constituição

argentina), segundo o qual ninguém é obrigado a fazer algo senão em virtude de lei,

bem como o conceito de nexo de causalidade, pois, se não houver dever de agir

imposto em lei, não existirá nexo causal entre a omissão e o dano.98

De outro lado, dá-se uma interpretação ampliativa, de modo que não é

necessário um dever especificamente previsto em lei, podendo este ser extraído dos

deveres gerais de conduta, da moral e dons bons costumes. Pretende essa corrente

uma compreensão mais ampla da ordem normativa, não casuística e baseada no

modelo de proibição expressa. Afirma, ademais, que, se o sistema de

responsabilidade civil é baseado na culpa, quem estava em condições de evitar o

dano – de acordo com as circunstâncias do caso concreto e com as aptidões

intelectuais da pessoa –, e prefere não evitá-lo, é considerado culpado, e, portanto,

responsável. Fica ultrapassado, assim, o argumento com base na relação de

causalidade, pois a omissão mostra-se apta a produzir o resultado. Filiando-se a tal

responsabilidad del Estado por omisión. In: FREITAS, Juarez (Coord.). Responsabilidade civil do Estado. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 121).

97 GOLDENBERG, Isidoro H. La relación de causalidad..., p. 208-216. 98 Assim pensa Gustavo Carranza Latrubesse: “Tomamos partido por la tesis restrictiva que exige la

preexistencia de una obligación legal, lo que nos hace tomar distancia de los supuestos de existencia de ‘deber jurídico de obrar’ que atrapan situaciones de mayor latitud en donde la simple omisión pudiera llegar a constituir la causa adecuada, o la concausa, de un resultado dañoso, no previsto ni, menos, querido por quien lo presencia sin decidirse a intervenir para interrumpir el proceso causal en curso. Sólo em situaciones muy especial escabría valorar a la abstención como un supuesto de ‘abuso de derecho’ a no intervenir, no existiendo un deber expreso de obrar” (Responsabilidad del Estado..., p. 45).

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corrente, Isidoro H. Goldenberg aponta que é mais adequada do ponto de vista

axiológico, consentânea com a solidariedade social e com o artigo 1.109 do Código

Civil daquele país, que prevê dever de prudência, cuidado e diligência no convívio

social.99

Trazidas à baila essas contribuições do direito estrangeiro, nota-se que a

maioria dos sistemas de tradição romano-germânica, tal qual o brasileiro, não

aponta quais as fontes geradoras do dever de agir ínsito à responsabilidade civil por

omissão. Somente o português e o argentino o fazem de maneira clara, sendo a

disposição do segundo muito genérica. De qualquer maneira, isso não impediu que

a doutrina dos mais diversos países reconhecesse a responsabilidade civil em casos

tais.

Pelas citações da doutrina brasileira, acima transcritas, nota-se que ela,

quando muito, faz referência à lei, ao negócio jurídico e ao risco anteriormente

criado como fontes dessa espécie de responsabilidade, não por coincidência as

fontes presentes no Código Penal. As duas primeiras fontes estão presentes

também na legislação portuguesa. Cada uma dessas hipóteses será analisada em

separado, nos itens subsequentes.

1.1.4.2 Lei

Quando se diz que a lei é fonte de dever jurídico, ou de obrigação, a assertiva

tem de ser especificada para não levar a confusões terminológicas. De fato, todo e

qualquer dever jurídico tem como fonte suprema o ordenamento jurídico. Ele é quem

99 GOLDENBERG, Isidoro H. La relación de causalidad..., p. 213.

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dá significação jurídica aos fatos da vida social. O contrato, por exemplo, só pode

ser fonte de obrigação porque assim prevê a lei.

O sentido que se pretende aqui, todavia, é diverso. Quando se indaga sobre a

fonte do dever de impedir o resultado, perscruta-se qual o fato jurídico a que a lei

atribui o poder de criação do referido dever. Dizer simplesmente “lei” pode dar a

impressão de que se refere à norma abstrata, não a um fato produtor de efeitos

jurídicos.

Orlando Gomes, para distinguir as figuras, faz referência à causa imediata

e causa mediata da obrigação. A primeira é sempre e unicamente a lei, o

ordenamento jurídico; já as fontes mediatas são fatos, ou seja, causas ou

situações da vida suscetíveis de produzirem aqueles efeitos que abstratamente a

lei prevê. O verdadeiro problema das fontes das obrigações é, portanto, das

fontes mediatas, sendo tarefa do jurista saber quais fatos podem ter a

significação jurídica de criação de obrigações jurídicas. É enganosa, assim, a

noção de “obrigação legal”, como aquela que decorre de maneira direta da lei,

pois mesmo nessas é mister a ocorrência de um fato ao qual a lei atribui o efeito

de criar a obrigação.100

Nesse sentido, em vez de se utilizar o termo “lei” para designar a fonte do

dever jurídico de impedir o resultado, o correto seria dizer “outras situações previstas

100 Cf. GOMES, Orlando. Obrigações. 16. ed. Forense: Rio de Janeiro, 2004. p. 32-35. Carlos

Roberto Gonçalves também apresenta o conceito de fontes das obrigações como os “fatos jurídicos que condicionam o aparecimento das obrigações” (grifo nosso) (Direito civil brasileiro: teoria geral das obrigações. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. v. 2, p. 30).

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em lei”, que têm o condão de determinar ao omitente o dever de sustar

desdobramento causal em curso.101

Não é somente a lei civil que pode prever hipóteses de dever de agir para

evitar desdobramentos causais. De acordo com o princípio da unidade do

ordenamento, determinada conduta, em idênticas circunstâncias, não pode ser

proibida e permitida ao mesmo tempo. Como ensina Tercio Sampaio Ferraz Jr.,102 a

questão de saber se o sistema jurídico é essencialmente consistente ou unitário é

uma questão tipicamente zetética. Todavia, sob o enfoque dogmático, o sistema tem

de ser unitário para permitir que os conflitos sejam decididos e que seja atingida a

finalidade de pacificação social. Em razão disso, normas não podem ser conflitantes,

ou seja, eventuais antinomias devem ser solucionadas.103

Nesse diapasão, considerando-se que o sistema jurídico é um todo unitário, o

dever de agir pode ser imposto por outros ramos do Direito, como o Penal,

Administrativo, Tributário etc.104 Pode-se concluir, portanto, que a “lei” só pode ser

101 Cf. CARVALHO, Pedro Pitta e Cunha Nunes de. Omissão e dever de agir..., p. 144. 102 “Por consistência deve ser entendida a inocorrência ou a extirpação de antinomias, isto é, da

presença simultânea de normas válidas que se excluem mutuamente. De certa forma, já mencionamos a questão, ao falar de norma-origem, como aquela que principia nova série e que não se deriva de nenhuma outra porque, em relação a elas, é contraditória ou incompatível. Como isso, queremos dizer que, do ponto de vista zetético, é possível discutir se a consistência do ordenamento é ou não como uma qualidade essencial de seu sistema. Não obstante, reconhecíamos que a concepção do ordenamento como um sistema unitário e consistente, diríamos agora, é um pressuposto (ideológico) que a dogmática assume prevalecentemente. Por isso, a análise das antinomias normativas é um tema importante para a concepção do ordenamento” (FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução..., p. 174).

103 “Esse princípio da unidade pode levar-nos à questão da correção do direito incorreto. Se se apresentar uma antinomia, ou um conflito entre normas, ter-se-á um estado incorreto do sistema, que precisará ser solucionado, pois o postulado desse princípio é o da resolução das contradições. O sistema jurídico deverá, teoricamente, formar um todo coerente, devendo, por isso, excluir qualquer contradição lógica nas asserções, feitas pelo jurista, elaborador do sistema, sobre as normas, para assegurar sua homogeneidade e garantir a segurança na aplicação do direito” (DINIZ, Maria Helena. Conflito de normas. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 13).

104 Cf. CARVALHO, Pedro Pitta e Cunha Nunes de. Omissão e dever de agir..., p. 146.

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compreendida como fonte do dever de agir se entendida a expressão como

“hipóteses previstas em lei”, ou seja, fatos que a lei qualifica como criadores do

dever de agir do omitente, dado que tais deveres podem ser criados por outros

ramos do direito, além do próprio direito civil.

1.1.4.3 Negócio jurídico

Negócio jurídico é “uma ação em que a finalidade do agente de produzir

efeitos jurídicos é positivamente relevante para a ordem jurídica”.105 Ou, ainda, é “a

declaração de vontade privada destinada a produzir efeitos que o agente pretende e

o direito reconhece”.106 Na lição de Orlando Gomes, “é toda declaração de vontade

destinada à produção de efeitos jurídicos correspondentes ao intento prático do

declarante, se reconhecido e garantido pela lei”.107 Difere do ato jurídico em sentido

estrito porque, enquanto neste os efeitos são ex lege, naquele são ex voluntate.

O negócio jurídico é, pois, o instrumento pelo qual o sujeito de direitos cria,

extingue ou modifica relações ou situações jurídicas,108 podendo imprimir-lhes

efeitos que a lei permite, no campo da autonomia privada. Autonomia privada e

negócio jurídico são, pois, duas noções que se complementam: “a autonomia

105 ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito civil..., v. 2, p. 66. 106 AMARAL, Francisco. Direito civil..., p. 383. 107 GOMES, Orlando. Introdução..., p. 269. 108 Enfatiza-se aqui a noção de situação jurídica, pouco utilizada pela dogmática brasileira, que

trabalha mais comumente apenas com a noção de relação jurídica. José de Oliveira Ascensão demonstra que não existem relações jurídicas absolutas, constituindo tal conceito em um “absurdo prático e linguístico”. Demonstra o autor português em casos nos quais normalmente se diz tratar de “relação jurídica absoluta”, isto é, oponível erga omnes (como o direito de propriedade), nada mais há que uma situação jurídica, que se pode conceituar como situações de pessoas, resultantes da valoração histórica da ordem jurídica. As relações, com perdão da tautologia, têm de ser relativas, não poderiam jamais ser absolutas, ou seja, só há relação quando a posição de um sujeito define-se somente em referência à do outro (cf. Direito civil: teoria geral. Relações e situações jurídicas. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 9-46).

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privada é o poder de autodeterminação, e o negócio jurídico é o instrumento através

do qual o poder de autodeterminação se concretiza”.109

O negócio jurídico por excelência é o contrato, aquele bilateral, ou seja,

dependente de duas vontades para sua formação (ou de múltiplas vontades, no

caso do contrato de sociedade).110 Quando o negócio jurídico se formar por apenas

uma vontade, como no caso do testamento, ele é unilateral, não sendo, portanto,

contrato. A necessidade da presença de duas vontades não implica a necessidade

de prestações para ambas as partes, pois pode ocorrer de o contrato prever

prestação apenas para uma parte (v.g., contrato de doação – contrato unilateral), ou

para ambas (v.g., contrato de compra e venda – contrato bilateral).

Destarte, quando se diz que o dever jurídico de impedir desdobramento

causal pode advir de negócio jurídico, significa que o próprio omitente pode ter se

obrigado previamente a não permitir a ocorrência de determinado resultado. No

caso, indubitavelmente está-se falando em responsabilidade civil contratual,111 não

em responsabilidade aquiliana.112 A babá, por exemplo, que se distrai, de modo que

109 GOMES, Orlando. Introdução..., p. 264. 110 Cf. GOMES, Orlando. Contratos. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 3-5. 111 “Antiga divisão da responsabilidade é a que distingue em contratual e extracontratual, conforme

deriva de um contrato ou de mera conduta culposa. Na primeira, dá-se a infração de um dever contratual, enquanto na segunda a violação deriva da desobediência a um dever legal” (RIZZARDO, Arnaldo. Responsabilidade civil, p. 41). Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho arrolam três diferenças entre a responsabilidade civil contratual e extracontratual: quanto à fonte do dever violado (contrato num caso, dever genérico de não lesar a outrem no outro); quanto ao ônus da prova da culpa (presumida no primeiro caso, não presumida no outro) e quanto à capacidade (cotejo entre artigos 180 e 928 do Código Civil) (cf. Novo curso de direito civil – contratos: teoria geral. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. v. 4, p. 328 e ss.). Há muitos autores que defendem a inexistência de qualquer diferença ontológica entre as modalidades de responsabilidade (Cf. CALIXTO, Marcelo Junqueira. A culpa na responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 75-84).

112 Menezes de Cordeiro, ao comentar o artigo 486 do Código Civil português, também exara tal entendimento: “A obrigação derivada de negócio jurídico e que seja desrespeitada por omissão dá azo a responsabilidade obrigacional” (Tratado..., p. 436). No mesmo sentido Pedro Pitta e Cunha

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a criança da qual estava tomando conta acaba por se machucar, responderá por

inadimplemento contratual, gerado por conduta omissiva.

É impróprio, assim, falar em negócio jurídico como fonte do dever de agir na

seara da responsabilidade civil aquiliana, uma vez que, tratando-se de prestação

comprometida via negócio jurídico, a seara própria de aferição de responsabilidade

será a contratual. A garantia da inocorrência do resultado dependerá da modalidade

de obrigação assumida via negócio, isto é, se é de meio ou de resultado.

Na obrigação de meio, o devedor não se compromete com o resultado ulterior

da atividade para a qual se obrigou. Na obrigação de resultado, o devedor será

responsável sempre que o resultado não for atingido. No Brasil, convencionou-se

chamar “obrigação de meio” e “obrigação de resultado”. O mais correto, todavia, é

dizer “prestação”, visto que não se focaliza toda a relação obrigacional, mas sim

apenas a parte dela que representa o bem a ser entregue, ou a conduta a ser

realizada.113

No que tange às pessoas jurídicas de direito público, vale lembrar que elas

podem contratar em regime de direito privado parcialmente derrogado pelo regime

de direito público (contratos privados da Administração), ou podem celebrar

Nunes de Carvalho: “Ora, o artigo 496, pelo menos na parte em que se refere ao negócio jurídico como fonte do dever de praticar o acto omitido, abrange um caso de responsabilidade obrigacional quando se refere à violação de obrigação de actuar emergente de negócio jurídico, nesta medida apresentando-se como deslocado” (Omissão e dever de agir..., p. 143).

113 Essa distinção surgiu como temperamento de um critério puramente objetivo de responsabilidade contratual, no qual a responsabilidade emerge da simples ausência de prestação. Esse sistema puramente objetivo é de inspiração pandectista e acabou sendo adotado pelo código fascista italiano de 1942. O vínculo contratual gera a necessidade de ocorrer a prestação, e sua frustração implica comportamento arbitrário do devedor. Surgiram dificuldades, todavia, para hipóteses de impossibilidade objetiva e subjetiva de oferecimento da prestação, quando então se forjou a distinção em tela (Cf. VITA NETO, José Virgílio. A atribuição de responsabilidade..., p. 10).

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contratos de uma maneira especial, em regime exorbitante do direito comum

(contratos administrativos).114 No segundo caso, os dispositivos de responsabilidade

contratual do Código Civil lhes são aplicáveis somente de maneira subsidiária, pois a

regulamentação da matéria é dada primordialmente pela Lei 8.666/1993. De

qualquer maneira, caso algum ente público descumpra determinado dever de agir

derivado de obrigação contratual, não se estará, novamente, na seara da

responsabilidade civil aquiliana.

Em conclusão, não se vislumbra a possibilidade de um negócio jurídico – em

particular, do contrato – ser a fonte do dever de agir, caracterizador da omissão

relevante para efeito de responsabilidade civil, sem que seja dentro da esfera

contratual.

1.1.4.4 Risco anteriormente criado pelo omitente

Quando se analisou a omissão relevante para o direito penal, viu-se que a

derradeira hipótese do artigo 13, § 2.º, do Código Penal é aquela que prevê a

responsabilidade daquele que criar risco de cujo desdobramento sobrevier o

resultado. Trata-se da hipótese conhecida em doutrina como “conduta precedente

do sujeito”.115

Pedro Pitta e Cunha Nunes de Carvalho denomina tal figura de ingerência,

assim conceituando-a: “A ingerência, como fonte da posição do garante, traduz a

ideia de que, se alguém com o seu comportamento, criar perigo para certo bem 114 Cf. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 25. ed. São Paulo:

Atlas, 2012. p. 171-175. 115 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual..., p. 467.

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jurídico, fica investido no dever jurídico de o remover”.116 Afirma o autor português

que, metodologicamente, andou bem o legislador lusitano ao não incluir a figura no

artigo 486 do Código Civil, ao lado da lei e do negócio jurídico, pois a situação de

perigo representa por si só um dano, de modo que a relevância jurídica da situação

pode ser dada pela regra geral da responsabilidade civil. Ele admite, não obstante,

que a ingerência não pode deixar de ser reconhecida como fonte do dever de agir.117

Tendo em vista que o Código Civil brasileiro não arrola qualquer modalidade de

omissão civilmente relevante, tal debate acaba por carecer de importância.

Questão difícil é saber se o dever de ingerência surge somente se o perigo

anterior foi criado culposamente pelo omitente, ou se, pelo contrário, se mostra

independentemente de culpa, podendo lhe ser objetivamente imputado. Para o autor

citado no parágrafo acima, só faz sentido falar em ingerência como fonte do dever

de agir se a situação de perigo foi ilícita e culposamente criada pelo sujeito, dado

que a culpa é a regra do sistema de responsabilidade civil, de modo que a

imputação objetiva de um resultado não seria adequada ao ordenamento. Para ele,

haverá dever de agir para impedir o resultado independentemente de culpa no

perigo anteriormente criado somente se o omitente abusar do direito de liberdade,

ou seja, se sua recusa de impedir o desdobramento causal for indevida pelo fato de

a ingerência não lhe acarretar qualquer risco ou prejuízo. No caso, porém, o

fundamento de responsabilização não seria propriamente a violação do dever de

ingerência, mas sim o abuso de direito.118-119

116 CARVALHO, Pedro Pitta e Cunha Nunes de. Omissão e dever de agir..., p. 224. 117 Idem, ibidem, p. 224-225. 118 Idem, p. 226-227.

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A posição externada pelo autor português não resiste a uma análise mais

acurada. Em primeiro lugar, ele parte do pressuposto de que a responsabilidade civil

é sempre subjetiva, o que no direito brasileiro está longe de ser verdade. Com efeito,

o Código Civil de 2002, ao positivar a regra geral da responsabilidade civil, em seu

artigo 186, não fugiu da concepção tradicional, ao exigir a culpa para verificação da

responsabilidade. Todavia, abriu diversas exceções para a responsabilidade

objetiva, como na cláusula geral do artigo 927, parágrafo único, na responsabilidade

por ato de terceiro (artigo 932), na responsabilidade pelo fato da coisa (artigos 936 a

938), no abuso de direito (artigo 187), na responsabilidade do empresário (artigo

931) e na responsabilidade civil do Estado (artigo 43), entre outras hipóteses. Sem

contar, ainda, as inúmeras hipóteses de responsabilidade civil objetiva previstas em

leis extravagantes, com destaque para o Código de Defesa do Consumidor.

Não se pode dizer, assim, que o risco tem de ser criado por culpa porque a

legislação assim o exige. É o mesmo que reconhecer, a contrario sensu, que nos

casos de responsabilidade objetiva não é necessária a verificação de culpa na

criação do risco.

Giuseppe Cricenti tem um posicionamento interessante ao vislumbrar dois

momentos da conduta: um anterior à verificação do risco e outro, posterior. Para

ilustrar sua ideia, fornece dois exemplos: no primeiro caso, alguém abre um buraco

na rua, sem sinalizar adequadamente o perigo aos transeuntes; no segundo caso,

119 O abuso de direito está previsto no artigo 187 do Código Civil: Art. 187. Também comete ato

ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. Nos dizeres de Alvino Lima: “[...]: no ato abusivo há obediência apenas dos limites objetivos do preceito legal, mas fere-se ostensivamente a destinação do direito e o espírito da instituição” (Culpa e risco. São Paulo: RT, 1963. p. 219).

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alguém passa pela rua e nota outra pessoa se afogando, sem prestar o adequado

socorro. Assim, no primeiro caso, a conduta tida por omissiva (não sinalização do

buraco) é posterior ao risco criado pelo próprio agente, ao passo que no segundo a

omissão aparece após a concretização de um risco anterior, não criado pelo

omitente.

Para o autor italiano, quando o próprio agente cria – via conduta comissiva –

o risco, sem tomar as cautelas inerentes a ele, não se pode falar propriamente em

responsabilidade por omissão, mas sim em responsabilidade por comissão. A

verdadeira responsabilidade por omissão apareceria somente quando o risco fosse

criado por um terceiro, tendo o omitente dever de impedir a concretização desse

risco. A imputação da responsabilidade por omissão dependerá, justamente, do

reconhecimento desse dever de agir. Veja-se:

Se então a conduta daquele que abre o buraco é ativa, a questão sobre sua responsabilidade pelo dano causado ao passante depende do reconhecimento de uma obrigação cautelar de sinalizar o buraco ou de adotar outra cautela: no caso afirmativo se tratará de culpa in committendo, em decorrência da omissão de respeito a uma regra de cautela.

É omissiva, ao contrário, a conduta daquele que se depara com um incêndio em coisa alheia, iniciado por um terceiro ou acidentalmente; e assim é porque ele não contribuiu de nenhum modo para o risco que o evento ou ocasião em seguida assumiu; para quem, consequentemente, a questão de sua responsabilidade depende do reconhecimento da existência de uma obrigação de agir no socorro do patrimônio alheio (tradução nossa).120

120 “Se dunque la condotta di chi ha aperto la buca è attiva, la questione della sua responsabilità per i

danni causati al passante dipende dal riconoscimento di um obbligo cautelare di segnalare la buca o di adottare una qualche cautela: in caso affermativo si tratterà di culpa in comittendo, cioè di omesso rispetto di uma regola cautelare. È omissiva, invece, la condotta di colui che si imbatte nell’incendio di cosa altrui, appicato da um terzo o sorto accidentalmente; e loè in quanto egli non ha in alcun modo contribuito al rischio o all’occasione di quell’evento há poi portato; per cui, conseguentemente, la questione della sua responsabilità dipende del riconoscimento dell’esistenzadi um obbligodiagire in soccorso del patrimonio altrui” (CRICENTI, Giuseppe. Il problema..., p. 85).

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Cricenti denomina como negligente a conduta no caso de risco anterior pelo

próprio omitente.121 Portanto, desfaz uma confusão muito comum, que é a de

confundir uma das modalidades de culpa (negligência), com a omissão, que é

modalidade de conduta. O tema será objeto de exposição em item específico

(1.3.4.1).

A dificuldade do critério apresentado pelo civilista italiano, qual seja de dividir

a conduta em dois momentos e aferir quem criou o risco, é dizer quando uma

atividade é ou não fonte do risco. Ele dá o exemplo que bem ilustra tal dificuldade:

um assalto a agência bancária. A conduta é inteiramente de terceiro. Há omissão da

pessoa jurídica (instituição financeira), ou há negligência (ausência de cautela)? O

critério apresentado é o seguinte: se o risco for inerente à atividade, estar-se-ia

diante da culpa comissiva (negligência); por outro lado, se o risco não for inerente à

atividade, será um problema de culpa omissiva, sendo então necessário perscrutar a

fonte do dever de agir.122 A construção assemelha-se àquela do direito consumerista

entre o fortuito interno e o fortuito externo.123

Ainda que pairem divergências sobre a hipótese de a ingerência ser ou não

responsabilidade por omissão, não há efeitos práticos relevantes em adotar uma

121 CRICENTI, Giuseppe. Il problema..., p. 77-86. 122 “Si propone allora di precisare il critério nel seguente modo: se il rischio é funzionalmente

collegato alla attività svolta, il non averlo evitato costituisce colpa commissiva, e dunque ipotesi di condotta attiva; se invece il rischio non è funzionalmente collegato alla attività svolta, malo è solo occasionalmente (nel senso chel’attività costituisce mera occasione per il verificarsi di quel rischio) allora il non averlo evitato comporta un problema di colpa omissiva [...]” (Propõe-se então precisar o critério do seguinte modo: se o risco é funcionalmente ligado à atividade em análise, não evitá-lo constitui culpa comissiva, e assim hipótese de conduta ativa; se ao contrário o risco não é funcionalmente ligado à atividade em análise, mas o é só ocasionalmente (no sentido que a atividade constitui mera ocasião para a verificação do risco), então não evitá-lo comporta um problema de culpa omissiva, [...] – tradução nossa). Idem, ibidem, p. 67.

123 Cf. CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa..., p. 185-186.

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posição ou outra. De qualquer maneira, o importante é que se saiba que, uma vez

criado o risco, emerge dever de agir àquele que criou o risco, podendo, então, ser

responsabilizado caso fique inerte.

A figura dos deveres de tráfego, presente na dogmática lusitana, pode ser

enquadrada nessa rubrica. Conforme já foi relatado, os deveres de tráfego surgem

quando alguém controla uma fonte de risco ou perigo. Trata-se exatamente da

hipótese ora relatada, ou seja, risco anteriormente criado. Menezes de Cordeiro

fornece uma gama de exemplos de situações que ensejam deveres de tráfego,

como: responsabilidade pelo espaço (quem controla um espaço deve prevenir os

perigos que lá ocorram ou podem ocorrer), abertura ao tráfego (quem tenha local

aberto ao tráfego deve garantir por sua segurança) e criação de perigo (aquele que

cria perigo deve tomar medidas adequadas para ele não se concretizar em dano).124

Conclui-se, então, a par da divergência (se no caso em tela há estritamente

responsabilidade por omissão), que aquele que cria perigo, ou tem controle sobre

uma fonte de risco, tem dever de agir para evitar a concretização do dano.

Sobrevindo o dano, eventual responsabilidade dependerá de o regime de

responsabilidade ser subjetivo ou objetivo. Sendo objetivo, ainda que toda a

diligência tenha sido empregada, emergirá a responsabilidade, salvo alguma

excludente de causalidade.

124 MENEZES DE CORDEIRO, António. Tratado…, p. 573.

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1.1.4.5 Outras hipóteses

Do exposto até o momento, viu-se que nossa legislação não prevê critérios

para a omissão civilmente relevante. Constatou-se, ainda, que a doutrina nacional

pouco se aprofunda no assunto, e, quando muito, aponta que as fontes de geração

de responsabilidade são a “lei”, o negócio jurídico e o risco anteriormente criado,

praticamente reproduzindo os dispositivos do Código Penal referentes ao assunto.

Há casos limítrofes, todavia, em que poderá haver dificuldade para o

enquadramento do dever de agir em alguma dessas três fontes. Pedro Pitta e Cunha

Nunes de Carvalho fornece três exemplos:

1) Um avô que vê o neto afogar-se na banheira, e, mesmo podendo salvá-lo

sem qualquer risco pessoal, mantém-se inerte.

2) Uma babá obriga-se a cuidar de uma criança, que se coloca em perigo,

sem que a babá nada faça para salvá-la; o contrato, todavia, tinha algum vício,

sendo nulo.

3) Uma pessoa está passando pela rua e vê um homem caído sobre um trilho

de trem, sendo que poderia salvá-lo sem qualquer risco pessoal; ela prefere,

todavia, nada fazer.125

Segundo o autor, nenhuma das fontes relatadas até o momento, a rigor,

poderia fundamentar dever de agir para interromper os respectivos desdobramentos

causais. Com efeito, no primeiro caso, o avô, como regra geral, não tem dever de

125 CARVALHO, Pedro Pitta e Cunha Nunes de. Omissão e dever de agir..., p. 150-151.

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auxílio e assistência sobre o neto, pois tal dever cabe aos pais, detentores do poder

familiar. O dever de auxílio e sustento dos ascendentes de segundo grau é somente

subsidiário. No segundo caso, o contrato é nulo, de modo que a babá não tinha

obrigação legalmente constituída de evitar o resultado danoso. E, por último, no

terceiro caso, o risco não foi criado pelo omitente, pois, quando este passava, a

vítima já estava sobre o trilho do trem. O que se pode concluir, portanto, a respeito

desses casos? Não haveria qualquer dever jurídico de agir, de modo a interromper

os desdobramentos causais geradores de dano?

O autor português responde às indagações com a figura do abuso de direito.

Afirma que a omissão em casos tais implicaria a utilização do direito de liberdade em

desacordo com sua finalidade social, configurando, assim, abuso.126 Em sentido

equivalente, entende Isidoro H. Goldenberg.127 Marcelo Junqueira Calixto faz

referência à solidariedade e às circunstâncias do caso concreto como fatores de

imposição do dever de agir em situações tais.128 Menezes de Cordeiro, citado por

126 “Sendo assim, como os casos extremos (em que repugnaria fortemente admitir a inexistência de

um dever de agir) são casos qualificáveis como casos de abuso de liberdade por parte do omitente, de acordo com a regra geral para a figura do abuso de direito (no sentido amplo da prerrogativa privada), devem ser tratados como situações em que a liberdade não existe. Não existindo liberdade, há, necessariamente imposição, no caso, imposição de agir, que é o necessário reverso da medalha” (CARVALHO, Pedro Pitta e Cunha Nunes de. Omissão e dever de agir..., p. 222-223). O abuso de direito está previsto no artigo 187 do Código Civil, e sobre ele já foi feita referência no item 1.1.4.3.

127 “Ya sea por violentar la finalidad de la norma o el contenido ético del derecho (buena fe, moral y buenas costumbres) incurre en comportamiento abusivo y se sitúa en el campo do injusto, quien con su proceder omisivo contribuye efectivamente al acaecimiento del suceso perjudicial o nocivo” (Seja por violentar a finalidade da norma ou o conteúdo ético do direito (boa-fé, moral e bons costumes) incorre em comportamento abusivo e se situa no campo do injusto quem, com seu proceder omissivo, contribui efetivamente para a ocorrência do evento adverso ou nocivo – tradução nossa). GOLDENBERG, Isidoro H. La relación de causalidad..., p. 215.

128 “A solidariedade social, afirmada constitucionalmente (art. 3.º, I), impõe a especial consideração pela pessoa dos demais cidadãos, mas não se consegue, de antemão, determinar a partir de que momento aquele que se omitiu deveria ter atuado a fim de evitar a ocorrência do dano. Não se pode exigir que todos sejam o ‘bom samaritano’ do Evangelho, tampouco se pode admitir toda e qualquer forma de omissão. A solução da questão é, portanto, inevitavelmente remetida às circunstâncias do caso concreto, no qual a consideração dos fatores de tempo e local terá fundamental importância para que se afirme o dever de agir, e a conseqüente culpa omissiva, ou

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Pedro Pitta e Cunha Nunes Carvalho, também faz menção às circunstâncias do

caso concreto, apelando, ainda, à boa-fé.129

No que tange ao Estado, é importante lembrar que exerce função

administrativa, isto é, a edição de atos na aplicação concreta da lei, em busca da

realização do bem comum. Celebre é a assertiva de Seabra Fagundes dizendo que

administrar é aplicar a lei de ofício,130 ressaltando a perspectiva de que a

Administração Pública deve sempre observar a estrita legalidade quando do

desempenho da função administrativa, e também que ela não é inerte como o Poder

Judiciário.

A ideia de função remete à transcendência, pois aquele que a exerce não o

faz para o próprio benefício, mas sim para o benefício de terceiros. Como bem

ressalta Marçal Justen Filho:

Pode-se afirmar, então, que a função consiste na atribuição a um sujeito do encargo de perseguir a satisfação de um interesse ou de um direito que ultrapassa a sua órbita própria e individual. Como contrapartida da atribuição desse encargo, o sujeito recebe um poder jurídico, cujo conteúdo e delimitação dependem das circunstâncias e da adequação à realização de um fim imposto pelo direito.131

se privilegie a liberdade humana, dispensando o agente de tal dever” (CALIXTO, Marcelo Junqueira. A culpa..., p. 89).

129 “Menezes de Cordeiro sugere que a solução para tais hipóteses seja dada casuisticamente, à luz das normas aplicáveis e no espírito dado, pela boa-fé, à colaboração intersubjectiva que deve reinar no espaço jurídico’, concluindo pela existência do dever de agir fundado na boa-fé ‘nos casos-limite – em que, por exemplo, um dano máximo pode ser evitado, com esforço mínimo” (Tratado..., p. 168).

130 Cf. NOHARA, Irene Patrícia. Direito administrativo. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 66. 131 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 8. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p.

113.

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Note-se, portanto, que a função administrativa é encarada sob uma tríplice

perspectiva: da transcendência do interesse, do dever de praticar o ato e do poder

de fazê-lo, devendo os demais a ele se sujeitar. Por isso que se diz que a função

administrativa é um dever-poder,132 isto é, poder subordinado ao dever estatal de

satisfação dos interesses públicos.

Não há, pois, direito subjetivo de exercício da função administrativa, mas sim

poder jurídico para exercê-la, contraposto ao dever que a ordem jurídica impõe ao

seu titular de perseguir o interesse público, com a devida sujeição dos demais

integrantes da comunidade.

Justamente por inexistir direito subjetivo ao titular do exercício da função

pública é que não há autonomia da vontade para o agente público. A autonomia

da vontade é construção própria do direito privado, umbilicalmente ligada ao

conceito de direito subjetivo, segundo a qual o sujeito de direitos tem autonomia

para criar obrigações com o fim de atendimento aos seus fins egoísticos,

privados. No exercício da função pública, os interesses buscados são os de

terceiros, indisponíveis para seu titular. Ainda que haja relativa liberdade na

escolha de meios durante o exercício da função, não há liberdade para a

escolha de fins.133

Por isso que a Administração Pública é regida pelo princípio da estrita

legalidade, isto é, não basta que sua atuação seja compatível com o ordenamento

jurídico (isto é, não contrária a ele), ela deve lhe ser conforme (ou seja, deve haver

132 Cf. BANDEIRA DE MELO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 22. ed. São Paulo:

Malheiros, 2007. p. 70 e ss. 133 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso..., p. 112-113.

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previsão legal para sua atuação).134 Na Administração Pública não há, portanto,

liberdade nem vontade pessoal.

Nesse sentido, para agentes públicos em exercício da função, difícil

imaginar que o intérprete tenha de se socorrer dessa construção do dever de

ingerência, baseada em cláusulas gerais, como acima exposto, pois o poder-

dever funcional é, antes, uma imposição imediatamente emergente da lei. Como

não há vontade pessoal na função administrativa, não haveria nem que se

cogitar sobre o agente público querer ou não praticar o ato, ou, em outras

palavras, preferir ficar inerte.

Pode-se concluir, portanto, que em casos limítrofes não se pode justificar o

dever de ingerência somente com as fontes mais comumente apontadas, como a lei,

o contrato e o risco anteriormente produzidos, devendo o intérprete lançar mão de

cláusulas gerais135 como a boa-fé e a solidariedade, ou ainda da figura do abuso de

direito, sempre com olhos voltados ao caso concreto. Difícil imaginar a hipótese para

o Estado, tendo em vista a estrita legalidade que rege a função administrativa, um

poder-dever do agente público.

134 “Se administrar envolve o dispêndio de verbas públicas, para que exista respeito aos princípios

democrático e republicano e à consequente indisponibilidade do interesse público é imprescindível que a Administração Pública aja em conformidade com a lei, uma vez que ela não dispõe da mesma liberdade dos particulares” (NOHARA, Irene Patrícia. Direito administrativo, p. 66).

135 “Cláusulas gerais são proposições normativas cuja hipótese de fato (fattispecie), em virtude de sua ampla abstração e generalidade, pode disciplinar um amplo número de casos, conferindo ao intérprete maior autonomia na sua função criadora. Diferem das regras jurídicas pelo fato de estas contarem com estrutura mais precisa, menos vaga. Apresentam certa indeterminação na hipótese de fato, e por isso elas só se compreendem em cotejo com outras realidades normativas” (AMARAL, Francisco. Direito civil..., p. 105-106).

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1.1.5 Conclusão

O objetivo deste item era demonstrar como a omissão pode ser considerada

modalidade de conduta humana, ao lado da ação, de modo a ser um elemento da

responsabilidade civil, distinguindo-se ainda de figuras afins como a ilicitude e a

negligência (que é modalidade de culpa).

Em primeiro lugar, viu-se que é possível elaborar um conceito pré-jurídico da

omissão, consistente na expectativa social em torno de determinado comportamento

que acaba por ser omitido. Assim, a omissão jamais é um conceito neutro, uma mera

abstenção, devendo ser cotejada com o resultado que acabou sendo gerado pela

ausência de intervenção, bem como com o dever de agir. Nesse sentido se diz que a

omissão deve ser analisada no contexto conduta-evento.

Outro ponto importante foi a análise das fontes do dever de agir, isto é, de

onde emana o dever de agir consistente na expectativa da ação, que acaba por

qualificar a omissão como tal. Foi feito um exame do direito estrangeiro, em que se

notou que são poucos os sistemas de direito positivo que fixam normas para o tema,

e quando o fazem é de maneira incompleta. A primeira fonte apontada, a lei, na

verdade deve ser entendida como outras hipóteses legalmente previstas. Quanto ao

negócio jurídico, sua relevância como fonte insere-se na responsabilidade civil

contratual. No que tange ao risco criado anteriormente pelo omitente, foi feito um

cotejo com os deveres de tráfego, figura da doutrina portuguesa, oportunidade em

que se procurou pontificar que a omissão não pode ser equiparada à culpa, sendo

dois fenômenos distintos. Foi trazida à baila, ainda, a posição do autor italiano

Giuseppe Cricenti, para quem, quando o próprio omitente cria o risco, está-se diante

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de responsabilidade por comissão, culposa pela negligência, que se configura como

ausência de cautela em conduta ativa. Foi visto, por último, que se admite a omissão

civilmente relevante ainda que não haja dever expresso de agir em situações em

que não haja risco pessoal ao omitente, com base na figura do abuso de direito e na

cláusula geral da solidariedade.

Terminadas as considerações sobre a omissão como modalidade de conduta,

vale lembrar que sua avaliação deve ser feita dentro do contexto conduta-evento,

sendo tal aproximação feita pelo nexo de causalidade, ideia representada mais

precisamente pela expressão nexo de imputação, conforme será visto no item a

seguir.

1.2 Nexo de causalidade e imputação de danos

1.2.1 Aspectos gerais acerca do nexo causal

A causalidade é fundamental para compreender a omissão e, por

conseguinte, a omissão estatal. Conforme visto no primeiro item, na omissão há um

determinado dano que é atribuído a alguém que não agiu quando deveria agir. É

justamente o elemento da causalidade, que neste trabalho será chamada de

imputação, que conecta o dano ao responsável.

A noção de causalidade vem do método filosófico científico, que procura

explicar a natureza mediante a criação de cadeias de causa e efeito. Tendo em vista

que nada pode existir sem uma causa, a ciência pode explicar tudo o que há no

mundo mediante o estabelecimento de liames causais. Enquanto o método

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filosófico-científico procura encontrar uma causa (desconhecida) para determinado

evento (conhecido), na ciência do direito procura-se estabelecer uma relação causal

entre dois fatos conhecidos, vislumbrando-se, assim, a especificidade da concepção

jurídica de causalidade.136

Muitas obras, talvez a maioria dos livros brasileiros sobre responsabilidade

civil, propalam a ideia de que o nexo causal na responsabilidade civil é puramente

naturalístico. É muito comum a lição de que o nexo causal é o elemento fático da

responsabilidade civil, ou que é a relação de fato entre o sujeito autor da ação e o

dano.137 Não se ratifica tal opinião, pois o nexo causal ou de imputação é tão jurídico

quanto os demais elementos da responsabilidade civil. Se fosse acertada a assertiva

de que a causalidade é uma “questão de fato” sempre que houvesse causalidade

natural entre conduta e dano, haveria responsabilidade, conclusão que está longe de

ser correta.138

136 “Alors que les premiers cherchent en effet à remonter d’um phénomène connu vers sa cause a

priori inconnue, le juriste doit simplesment vérifier si, entre deux faits connus (le fait dommageable e le dommage) il existe um lien de causalité suffisamment caractérisé” (Enquanto os primeiros (filósofos) procuram remontar de um fenômeno conhecido sua causa a priori desconhecida, o jurista deve simplesmente verificar se, entre dois fatos conhecidos (o fato danoso e o dano), existe uma relação de causalidade suficientemente caracterizada – tradução nossa) (VINEY, Geneviève; JOURDAIN, Patrice. Traité de droit civil: les conditions de la responsabilité. 3. ed. Paris: LGDJ, 2006. p. 181).

137 “O nexo causal não é exclusivamente jurídico; decorre primeiro das leis naturais. É o vínculo, a ligação ou relação de causa e efeito entre a conduta e o resultado. A relação causal estabelece o vínculo entre um determinado comportamento e um evento, permitindo concluir, com base nas leis naturais, se a ação ou omissão do agente foi ou não a causa do dano; determina se o resultado surge como consequência natural da voluntária conduta do agente” (CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa..., p. 47); “O nexo causal constitui um dos elementos essenciais da responsabilidade civil. É o vínculo entre a conduta e o resultado. Mas a determinação do nexo causal traduz-se em uma quaestio facti” (STOCO, Rui. Tratado de responsabilidade civil. 7. ed. São Paulo: RT, 2007. p. 150). “Assim sendo, a questão do nexo causal é uma quaestio factie não quaestio juris, uma vez que deverá ser apreciada pelo juiz da causa” (DINIZ, Maria Helena. Curso..., v. 7, p. 128); “O nexo é aferido objetivamente, é uma questão de fato” (LISBOA, Roberto Senise. Manual..., p. 308).

138 “Falamos, intencionalmente, em correção ou em substituição (meramente parcial) da causalidade de carácter naturalístico. Na verdade, ponto de partida da averiguação do nexo de causalidade é, ainda hoje, o critério natural-científico de causa, ainda que restringido ou alterado por força das

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Isidoro H. Goldenberg, nesse sentido, define três planos em que a

causalidade pode ser avaliada: a) ontológico, que é o plano dos fatos reais; b)

gnosiológico, que é do conhecimento e enunciado da relação causal; c) jurídico, que

é aquele que contempla os modos pelos quais o fenômeno causal é captado

normativamente. Enquanto as ciências naturais trabalham com a causalidade no

plano ontológico, isto é, no plano fático, buscando conexões de causa-efeito, a

ciência do direito trabalha no plano jurídico, em que uma norma determinará um

juízo de valor sobre determinada cadeia causal.139 Arremata o autor:

Como se señala en la obra de Enneccerus, es necesario precisar con mayor rigor en el plano jurídico el concepto filosófico de causa: “no se trata para nada de causa y efecto, e nel sentido de las ciencias naturales, sino de si una determinada conducta que debe ser reconecida como fundamento jurídico suficiente para la atribuición de consecuencias jurídicas, o sea de la relación de fundamento a consecuencia.140

valorações jurídicas em jogo: tal sucede quer se opte pela via da adequação, quer pela via da ponderação do fim da norma. Faltando esta, falha a causalidade jurídica. A verdadeira aquisição das teorias da causalidade em sentido jurídico é a consagração da inadmissibilidade da afirmação inversa: com a juridificação do conceito de causa, o facto que é conditio sine qua non do dano deixa de ser necessariamente sua causa em sentido jurídico, i. e., pode existir causalidade (naturalística) sem haver imputação (jurídica)” (PERESTRELO DE OLIVEIRA, Ana. Causalidade e imputação na responsabilidade civil ambiental. Lisboa: Almedina, 2007. p. 52-53).

139 GOLDENBERG, Isidoro H. La relación de causalidad..., p. 8. 140 Idem, ibidem, p. 10-11. No mesmo sentido: “O problema da causalidade jurídica não constitui,

portanto, em um verdadeiro problema de causalidade, na medida em que esta será definida pela pesquisa da causalidade material. A causalidade jurídica resolve-se nas próprias escolhas legislativas sobre os critérios que deverão ser utilizados para definir a relevância de determinada série causal para a delimitação da responsabilidade civil do agente e sua quantificação” (MULHOLLAND, Caitlin Sampaio. A responsabilidade civil por presunção de causalidade. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2010. p. 100); “O nexo causal puramente naturalístico não serve às necessidades de Direito. O Direito cria o seu conceito próprio de causalidade, conceito esse que vem formulado em termos tais que é aplicável tanto às acções (em sentido estrito) como às omissões” (CARVALHO, Pedro Pitta e Cunha Nunes de. Omissão e dever de agir..., p. 123); “Ao contrário do que se pensa, o conceito de nexo não é somente natural, mas legal. A lei pode ampliar o nexo, atribuindo responsabilidade a quem não criou diretamente o dano. Cria-se por um nexo de imputação, um terceiro responsável pela segurança, pela garantia ou pelo risco” (LOUREIRO, Francisco Eduardo. Ato ilícito, p. 728); “De fato, reconhece-se, há muito, que o nexo de causalidade natural ou lógico diferencia-se do jurídico, no sentido de que nem tudo que, no mundo dos fatos ou da razão, é considerado como causa de um evento pode assim ser considerado juridicamente” (SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2009. p. 53); “A relação de causalidade, tal qual a disciplina da responsabilidade civil, deve muito mais ‘a escolhas político-filosóficas do que a evidências lógico-

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A pesquisa do nexo causal realiza-se em duas etapas: em um primeiro

momento, analisa-se a causalidade material, que naturalisticamente conecta o dano

ao evento que o gerou; em um segundo momento, verifica-se a causalidade jurídica,

que a partir do corte realizado pela causalidade material aponta quem deve ser

considerado causador do dano e os limites da indenização que terá de ser paga.

A avaliação naturalística da causalidade, destarte, é somente uma parte da

avaliação da causalidade dentro da responsabilidade civil, que não se resume à

mera observação da realidade, mas implica a realização de um juízo de valor a partir

de uma escolha legislativa. Percebe-se que a questão da ligação entre o dano e a

conduta não é uma autêntica questão de causalidade material, mas sim de

imputação, ou seja, de atribuição daquele resultado (dano) a uma das condições a

ele ligadas, normativamente.141 Na responsabilidade por omissão, essa realidade é

ainda mais evidente, visto que, naturalisticamente, qualquer conexão do dano com a

conduta, ou seja, do resultado com sua causa, é inviável. Daí a razão de chamar o

presente trabalho de “imputação de danos na omissão estatal”, realçando o aspecto

de que, quando há responsabilização por omissão, escolhe-se, a partir de premissas

constantes no ordenamento jurídico, alguém que será responsabilizado por um dano

(naturalisticamente) causado por outrem.

racionais” (CRUZ, Gisela Sampaio da. O problema do nexo causal na responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 8).

141 “A imputação objetiva do resultado quer significar o artifício jurídico por meio do qual se atribui a um sujeito a responsabilidade por um resultado (de dano, no caso) à conta de sua não evitação, como exigida pelo Direito, ainda que produzido por outrem. Por isso, não entra em pauta o nexo de causalidade material (ou relação de causalidade, como se queira) entre comportamento e resultado, porque fenomenicamente – no ‘plano do ser’, pois – reconhecido como inexistente” (FERREIRA, Daniel. Responsabilidade civil do Estado por omissão. In: GUERRA, Alexandre Dartanhan de Mello et al. (Coord.). Responsabilidade civil do Estado: desafios contemporâneos. São Paulo: Quartier Latin, 2010. p. 58).

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O advento da responsabilidade independentemente de culpa, ou seja, a

responsabilidade objetiva, fez redobrar a atenção sobre o nexo causal, cuja

interrupção consiste, em tais hipóteses, na única possibilidade de vitória do réu. A

rigor, o juízo de responsabilidade, em casos de responsabilidade objetiva, nada mais

é do que um juízo sobre a existência do nexo causal entre fato e dano.142

Apesar da existência de várias teorias acerca do nexo causal, o que se

observa pela prática jurisprudencial é que o nexo de causalidade, no mais das

vezes, não é apreciado de maneira técnica. Premida pelo imperativo de não deixar

vítimas desamparadas, a jurisprudência tem progressivamente promovido uma

erosão do nexo causal como filtro de reparação.143 Trata-se de percepção

generalizada na doutrina.144

142 “A importância do estudo do nexo causal tem avultado, nestes últimos tempos, uma vez que a

teoria do risco prescinde da culpa, para fundamento da responsabilidade, e só lhes bastam o dano e o nexo causal” (ALVIM, Agostinho. Da inexecução..., p. 325-326).

143 “Se, sob o ponto de vista teórico, não resta dúvida de que a teoria dominante em matéria de nexo causal vem sofrendo certas relativizações em seu rigor originário, a análise da prática jurisprudencial no que tange à aferição de causalidade revela um cenário muito mais preocupante. Não apenas se verifica um emprego muitas vezes atécnico das construções teóricas acima examinadas, como se nota uma verdadeira profusão de raciocínios inconciliáveis que desafiam a redução das decisões judiciais a um posicionamento minimamente uniforme” (SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas..., p. 60-61).

144 “A grande crítica que se faz no Brasil em relação à determinação do nexo causal é dirigida aos magistrados que, em última instância, são aos que incumbem (sic) a difícil tarefa de identificar o nexo causal e justificar a imputação dos danos e a sua limitação. A completa falta de critérios jurídicos e a actínia para a definição e pesquisa do nexo causal gerou uma confusão terminológica e uma miscelânea de decisões que ora adotam como justificativa a teoria da causalidade adequada, ora adotam a teoria do dano direto e imediato, ou até mesmo a teoria da equivalência das condições. Mas mesmo assim, ainda existem aqueles que utilizam uma das três denominações, com o fundamento teórico de outra teoria” (MULHOLLAND, Caitlin Sampaio. A responsabilidade civil.., p. 189); “Tantas foram as teses que se desenvolveram, principalmente na Alemanha, França e Itália, com o objetivo de estabelecer os limites definidores do nexo causal na ordem jurídica, que os tribunais brasileiros não raras vezes confundem as teorias. De fato, no Brasil, a verificação do nexo de causalidade é feita de forma intuitiva e atécnica, ora sob a influência de uma escola, ora de outra” (CRUZ, Gisela Sampaio da. O problema..., p. 122); Rafael Peteffi da Silva, após descrever as teorias sobre a causalidade, comenta: “O objetivo das seções anteriores foi dar uma retrospectiva da utilização ortodoxa do nexo de causalidade, indispensável para o posterior estudo da causalidade alternativa. Todavia, não deverá causar espécie o fato de haver acórdãos isolados ou mesmo algumas linhas jurisprudenciais que se afastem dos grandes

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Além do multifacetado e muitas vezes pouco técnico tratamento

jurisprudencial, a erosão do nexo causal como filtro de reparação também se dá em

construções doutrinárias que pretendem sua progressiva relativização, como a

causalidade alternativa,145 a responsabilidade pelo fato mais grave146 e a presunção

balizamentos aqui traçados” (Responsabilidade pela perda de uma chance. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2009. p. 45); “[...] os Tribunais fixam o nexo de causalidade de forma intuitiva, invocando alternativamente a teoria da causalidade adequada, da interrupção do nexo causal, e da conditio sine qua non, sempre na busca de um liame de necessariedade entre causa e efeito, de modo que o resultado danoso seja consequência do fato lesivo. Para se entender, portanto, o panorama da causalidade na jurisprudência brasileira, torna-se indispensável ter em linha de conta não as designações das teorias, não raro tratadas de modo eclético ou atécnico pelas Cortes, senão a motivação que inspira as decisões, permeadas predominantemente pela teoria da causalidade necessária” (TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, t. II, p. 70-71); “Diante da análise das três principais teorias determinantes do nexo causal (equivalência das condições, causalidade adequada e danos diretos e imediatos) e ainda das decisões judiciais acima referidas, é-nos lícito concluir que não há uniformidade na doutrina nem na jurisprudência brasileira na utilização das teorias do nexo causal. Desafortunadamente, há sérios equívocos, tanto na conceituação precisa do que seja uma das teorias, como no método de aplicação in concreto ou in abstracto na verificação da causa efetiva do dano. Por vezes se fundamenta o nexo causal em mais de uma teoria, inclusive havendo ‘fusão’ teórica de conceitos jurídicos distintos. Ademais, nas hipóteses de eventos com causalidade múltipla, nem sempre fica definida a ocorrência de mera concausa ou a existência de causas concomitantes, o que implicaria repartição dos prejuízos entre os agentes direta e imediatamente envolvidos” (SANTOS, Rodrigo Valgas dos. Nexo causal e excludentes da responsabilidade extracontratual do Estado. In: FREITAS, Juarez (Coord.). Responsabilidade civil do Estado. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 283).

145 Trata-se da hipótese em que o dano advém de um grupo identificado, sendo impossível definir a pessoa exata que causou o dano, de modo que todo o grupo é responsabilizado. A hipótese não tem previsão legal, sendo distinta da solidariedade, pois nesse caso o autor do dano é identificado, somente o pagamento que é devido do grupo todo, que depois pode cobrar do autor do dano (cf. TEPEDINO, Gustavo. Nexo de causalidade: conceito, teorias e aplicação na jurisprudência brasileira. In: RODRIGUES JR., Otavio Luiz; MAMEDE, Gladston; VITAL DA ROCHA, Maria (Coord.). Responsabilidade civil contemporânea. São Paulo: Atlas, 2011. p. 117; PERESTRELO DE OLIVEIRA, Ana. Causalidade..., p. 107-111; NORONHA, Fernando. Direito..., p. 681-682).

146 A teoria da responsabilidade do resultado mais grave envolve a questão das concausas, isto é, da multiplicidade de causas geradoras do dano, particularmente quando elas são preexistentes. A concausa caracteriza-se pelo fato de ser exterior à vontade do agente, caminhando ao lado da causa principal, por ele deflagrada. No direito penal, o artigo 13, § 1.º, do Código Penal cuida expressamente do tema, determinando que a causa superveniente relativamente independente exclui a causalidade quando, por si só, produz o resultado. Pela redação do dispositivo, fica claro que a concausa preexistente e concomitante não exclui a causalidade na responsabilidade penal, pois a lei faz referência somente à superveniente, e desde que inaugure novo processo causal (por si só produza o resultado). No direito civil, todavia, a questão ganha contornos mais difíceis, haja vista que a culpa é cada vez mais prescindível e, quando não é, tem caráter normativo, não anímico, de modo que se torna irrelevante a investigação das motivações do agente. Surge, então, a dificuldade de saber como fixar a responsabilidade em casos de concausas preexistentes. Pela teoria da responsabilidade do resultado mais grave, apelidada no direito anglo-saxão de the thin skull rule ou the egg-shell skull rule, o agente responde pelo dano ainda que ele tenha se dado por condições preexistentes particulares da vítima. Assim, a cadeia causal não sofreria limitação em razão de concausas preexistentes. É preciso certo esforço de

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de causalidade.147 Todos esses movimentos têm alterado a feição clássica do

instituto.

Não obstante, a doutrina arrola diversas teorias que estipulam critérios para a

imputação de danos ao autor de determinada conduta. Esse será o objeto do

próximo item.

1.2.2 Teorias sobre causalidade (imputação de danos)

Existem algumas teorias para a avaliação do nexo de causalidade. Destacar-

se-ão aquelas comumente comentadas,148 começando-se pela teoria da

equivalência dos antecedentes causais.

interpretação para considerar que a concausa preexistente insere-se dentro da causalidade adequada. Se essa depende de um juízo de normalidade e probabilidade, difícil sustentar que um pequeno corte no braço de um hemofílico é causa adequada para o evento morte. Ou, mais difícil ainda, dizer que se trata de um dano direto e imediato. Na verdade, a responsabilidade pelo resultado mais grave insere-se também dentro da tendência de plena reparação das vítimas de dano, ainda que, sob a ótica estrita do nexo causal, não fosse caso de reparação. Destarte, a responsabilidade pelo resultado mais grave é mais uma forma de relativização ou flexibilização da relação de causalidade (cf. SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas..., p. 70-72).

147 Caitlin Sampaio Mulholland desenvolve uma tese acerca da presunção de causalidade. A partir da premissa solidarista, defende que a causalidade deve ser avaliada por um juízo probabilístico. Não seria necessária, destarte, a prova plena do nexo causal, mas somente um nexo de probabilidade que, com fulcro no artigo 335 do Código de Processo Civil, autorizaria o magistrado a ter a causalidade como presumida. Para tanto, entende a autora que a teoria causal a ser utilizada seria a da causalidade adequada, que se baseia na probabilidade do evento danoso. A probabilidade, por sua vez, seria aferida mediante técnicas estatísticas – análise matemática de uma pluralidade de casos semelhantes para definição de um padrão de geração de danos – e lógicas – análise por um raciocínio lógico-indutivo a probabilidade da ocorrência do dano – combinadas (A responsabilidade civil..., p. 281-337).

148 Gisela Sampaio da Cruz faz referência a outras teorias, como da causa próxima, da causa eficiente, da causa preponderante e da ação humana (O problema..., passim). Rafael Peteffi da Silva traz outras teorias sobre a causalidade, buscadas no direito norte-americano, para fundamentar sua tese de responsabilidade pela perda de uma chance. São elas: causation as fact e proximate cause (Responsabilidade..., p. 32 e ss.).

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1.2.2.1 Conditio sine qua non

Atribuída ao penalista alemão Von Buri, do século XIX, a teoria da conditio

sine qua non, ou da equivalência dos antecedentes causais, é uma teoria de

causalidade naturalística, não normativa. Ela não faz distinção entre causa e

condição, de modo que toda condição antecedente ao resultado é causa, não

perscrutando qual delas foi mais ou menos eficaz para a produção do resultado.

Assim, faz-se um juízo hipotético de eliminação, uma operação mental na qual se

suprime o fato investigado: caso o resultado persista, não é causa; se o resultado

desaparecer, o fato analisado é considerado causa. O defeito da teoria é não limitar

a cadeia causal, pois, se cada evento que contribui para o resultado for considerado

causa, a relação de causalidade tenderá ao infinito.149

A equivalência dos antecedentes causais é de muita valia na esfera penal, tanto

que vem expressamente albergada pelo artigo 13, caput, do Código Penal. Sua

desvantagem é o fato de não limitar a cadeia causal, à medida que todo antecedente

vira causa. Em que pese seja insuficiente para fundamentar um juízo normativo de

imputação completo, a teoria da equivalência das condições é adequada para a

verificação da causalidade natural, à medida que não implica a realização de juízo de

valor, mas somente o sequenciamento naturalístico de eventos. Menezes de Cordeiro

coloca a teoria da equivalência das condições como filtro negativo para efeito de

verificação da causalidade dentro da responsabilidade civil, que depois terá de ser

complementado por outras formas de avaliação causal. “No primeiro plano, opera, como

149 Sobre o tema: ALVIM, Agostinho. Da inexecução..., p. 329; TEPEDINO, Gustavo. Nexo de

causalidade..., p. 109; NORONHA, Fernando. Direito..., p. 614-618; GOLDENBERG, Isidoro H. La relación de causalidad..., p. 19-25; MENEZES DE CORDEIRO, António. Tratado..., p. 531-532; NADER, Paulo. Curso..., p. 115; CAVALIERI Filho, Sérgio. Programa..., p. 48; VINEY, Geneviève, JOURDAIN, Patrice. Traité..., p. 188, LISBOA, Roberto Senise. Manual..., p. 312.

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filtro negativo, a conditio sine qua non: se o fato ilícito foi indiferente para a produção do

dano, não há como imputá-lo ao agente.”150 No mesmo sentido entende Fernando

Noronha.151 Caitilin Sampaio Mulholland concorda, mas faz duas restrições: não é

necessária prova indiscutível e certa da causalidade, bastando mera probabilidade para

caracterização da equivalência das condições; caso mais de um agente tenha

contribuído para o dano, e se cada conduta pudesse causar o dano de per si, nenhum

deles poderá eximir-se da responsabilidade sob a alegação de que o mesmo dano se

daria pela ação do outro agente.152

Quando a conduta é omissiva, todavia, impossível fazer o juízo hipotético de

eliminação, uma vez que a “causa” não existiu no mundo fático. A conduta omissiva,

conforme visto no item anterior, torna-se relevante quando há uma expectativa da

conduta, que é gerada por um dever de agir do omitente. É inadequada, destarte, uma

avaliação meramente causal do fenômeno, que deve ser normativa. O tema será

exposto adiante.

Tendo em vista que a teoria da equivalência das condições atua como mero filtro

negativo, conforme exposto, é mister analisar as demais teorias acerca da matéria.

1.2.2.2 Causalidade adequada

A segunda teoria que se deve ressaltar é a da causalidade adequada, que

surge como uma tentativa de correção ou de aprimoramento da teoria da

150 MENEZES DE CORDEIRO, António. Tratado..., p. 549. 151 NORONHA, Fernando. Direito..., p. 636. 152 MULHOLLAND, Caitlin Sampaio. A responsabilidade civil..., p. 161.

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equivalência dos antecedentes. De acordo com essa teoria, a causalidade adequada

envolveria não um juízo concreto acerca da causa do evento danoso, mas uma

avaliação abstrata fundada em um princípio de normalidade. Observa-se o que

ocorre comumente na vida (id quod plerumque accidit) e afirma-se que determinado

fato só pode ser considerado causa se, segundo o curso normal das coisas, poderia

produzi-lo. Conforme ensina Agostinho Alvim:

O raciocínio em que ela se apoia é o seguinte: apreciando certo dano, temos que concluir que o fato que o originou era capaz de lhe dar causa. Mas, pergunta-se, tal relação de causa e efeito existe sempre, em casos dessa natureza, ou existiu nesse caso, por força de circunstâncias especiais? Se existe sempre, diz-se que a causa era adequada a produzir o efeito; se somente uma circunstância acidental explica essa causalidade, diz-se que a causa não era adequada.153

A ideia de normalidade “consubstancia-se em um juízo de probabilidade sobre

a conduta do sujeito que se pretende responsável e as consequências verificadas no

caso concreto, em comparação com aquilo que habitualmente ocorre”.154 Assim, a

teoria da causalidade adequada implica um juízo de valor realizado pelo observador

da cadeia causal, que deverá avaliar se aquele fato analisado, de acordo com um

padrão de probabilidade do que normalmente ocorre, acrescido das circunstâncias

concretas do caso, é adequado à produção do resultado.

Para avaliar se aquele dano pode ser considerado consequência normal da

causa é feita a prognose retrospectiva, ou prognose póstuma,155 para a doutrina

153 ALVIM, Agostinho. Da inexecução..., p. 329. Segundo ensina Rui Stoco, para a teoria da

causalidade adequada “nem todas as condições serão consideradas causa, mas tão somente aquela que for mais apropriada a produzir o resultado, ou seja, aquela que de acordo com a experiência comum for mais idônea à realização do evento danoso” (Tratado..., p. 151).

154 SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas..., p. 57. 155 Cf. CARVALHO, Pedro Pitta e Cunha Nunes de. Omissão e dever de agir..., p. 60.

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portuguesa, isto é, a exigência de o juiz se colocar na situação concreta do agente

para emissão de sua decisão, levando em conta as circunstâncias que ele

conhecia.156 O juízo deve sempre ser feito em abstrato, ou seja, tendo como

referência aquilo que normalmente ocorre.157 Isso significa que fatores particulares

do caso concreto, alheios à normalidade, não seriam considerados para efeito de

causalidade. Por exemplo, se alguém toma uma pancada na cabeça, que não seria

capaz de causar grandes danos, mas que naquela pessoa acaba gerando-lhe a

morte em razão de uma deficiência no crânio, a princípio não haveria causalidade

adequada entre a conduta do autor da pancada e o dano (morte), levando em conta

a excepcionalidade do caso. Conforme se verá mais adiante, esse aspecto é

criticado por parte da doutrina.

A teoria da causalidade tem duas formulações: positiva e negativa. Para a

primeira, causa adequada é aquela que favorece a produção do dano; para a

segunda, é aquela que não é estranha à tal produção. A formulação positiva,

tributada a Träger, defende que um fato deve ser considerado causa adequada de

156 “Nesse exercício de prognose retrospectiva, o observador coloca-se no momento anterior àquele

em que o fato ocorreu e tenta prognosticar, de acordo com as regras da experiência comum, se era normalmente previsível que o dano viesse a ocorrer. Se concluir que o dano era imprevisível, a causalidade ficará excluída. Se concluir que era previsível, como consequência do fato praticado, mesmo que estatisticamente não fosse muito provável que viesse a ocorrer, a causalidade será adequada” (NORONHA, Fernando. Direito..., p. 628).

157 “Este juicio de idoneidad o cálculo de probabilidades tiene que plantarse en abstracto, o en general, con prescindencia de lo efectivamente sucedido, atendiendo a lo que usualmente ocurre; y no en concreto ou particular, es decir, como se han producido realmente las cosas” (GOLDENBERG, Isidoro H. La relación de causalidad..., p. 34). “[...] les partisans de cette thèse font appel à l’idée de previsibilité, em précisant généralement que cette notion doit s’aprrécier objectivement et non d’après la psychologie de l’auteur” ([...] os partidários dessa teoria fazem apelo à ideia de previsibilidade, precisando geralmente que essa noção deve ser apreciada objetivamente e não sob a ótica da psicologia do autor – tradução nossa) (VINEY, Geneviève; JOURDAIN, Patrice. Traité..., p. 189). “Nessa prognose retrospectiva, só se consideram os efeitos abstratos que, a partir do fato em causa, possam ser tidos como previsíveis. Se os efeitos concretos, efetivamente verificados, estiverem em conformidade com tais efeitos abstratos, existirá nexo de causalidade. Não haverá causalidade [...] quando pudermos afirmar que o efeito abstrato [...] se teria igualmente verificado sem o fato” (NORONHA, Fernando. Direito..., p. 628).

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um evento quando favoreça a produção deste. O dano deve ter possibilidade de ser

previsto como uma consequência natural ou provável do fato em análise. Já pela

formulação negativa, sistematizada por Enneccerus, a causa adequada é aquela

que, segundo as regras da experiência, não é indiferente ao dano. Assim, sua

formulação é negativa: procura-se a causa inadequada, de modo que a causalidade

só fica excluída quando se trate de desdobramentos indiferentes ao fato.158

Entre as duas formulações, a negativa tem sido preferida pelo fato de ser

mais ampla que a positiva, bem como por facilitar a comprovação do nexo causal

por parte da vítima. Na verdade, elas são complementares: em primeiro lugar, faz-se

a abordagem positiva, e, caso seja ela insuficiente, lança-se mão da abordagem

negativa. É possível que um evento não seja consequência provável de um fato,

mas também não lhe seja indiferente. Nesse sentido, a formulação positiva falharia,

sendo, então, necessário recorrer à negativa. A causalidade ficará excluída por

ambas as formulações quando os danos decorrerem de circunstâncias

extraordinárias e imprevisíveis, de acordo com regras da experiência.159 Como

ensina Fernando Noronha:

158 Cf. NORONHA, Fernando. Direito..., p. 628-630. 159 Alguns exemplos esclarecem a questão: “A investigação da causalidade através destas duas

formulações se dará primeiramente utilizando-se a perspectiva positiva da adequação, para, num segundo momento, não tendo sido possível a identificação do liame causal, passar-se à formulação negativa da causalidade. Para a análise positiva do nexo causal, se pudermos concluir que um determinado evento ou atividade favorece a realização de um dano, possibilitando-o de acordo com a previsibilidade ou normalidade, teremos determinada a existência de um nexo causal. Se, contudo, não é possível realizar a demonstração de que o dano foi efeito normal, previsível e provável de uma conduta ou atividade, parte-se para a interpretação negativa do liame causal. A partir desta perspectiva, a relação causal será estabelecida se for possível demonstrar que o dano não foi consequência extraordinária e indiferente à conduta imputada. Os danos não indenizáveis serão somente aqueles que são consequências de circunstâncias extraordinárias e imprevisíveis que não seriam consideradas por um julgador experiente. Podemos exemplificar a aplicação deste método de investigação do nexo causal da seguinte maneira: uma pessoa submete-se a uma cirurgia qualquer. Após a intervenção, o paciente fica internado uma semana no Hospital aonde (sic) vem a falecer em

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Em termos práticos, essa facilitação da prova do nexo de causalidade é a principal vantagem da formulação negativa. A positiva põe a prova da adequação a cargo do lesado, o que é injustificável; se o lesante praticou um fato suscetível de causar o dano, ou se esse fato aconteceu dentro da sua esfera de risco, sobre ele deve cair o ônus de provar que, apesar da condicionalidade, não houve adequação entre tal fato e o dano.160

A teoria da causalidade adequada não ficou imune às críticas. Para

Geneviève Viney e Patrice Jourdain, ao recorrer a elementos como a previsibilidade

e probabilidade, ela mistura o campo da causalidade com o campo da culpa.161

Afirmam, ainda, que a probabilidade não condiz necessariamente com a verdade,

mas determinada circunstância pode não ser uma causa objetivamente provável,

porém pode causar o dano em situações específicas.162 Menezes de Cordeiro

entende que a causalidade adequada é um critério frágil quando colocado diante das

vicissitudes dos casos da vida real, visto que circunstâncias particulares, concretas,

podem ser adequadas em casos específicos para produção de determinado dano.

Ele dá o seguinte exemplo: se A atinge B no peito com um tiro, e B morre, a causa é

decorrência de uma infecção bacteriana hospitalar. A investigação da causa do evento morte através da formulação positiva dar-se-á com a resposta à seguinte pergunta: foi a intervenção cirúrgica um evento que favoreceu a ocorrência do dano, sendo este efeito previsível, provável e normal da cirurgia? Acredita-se que a resposta seja negativa. Não podemos considerar a morte do paciente por contração de infecção hospitalar como efeito provável da cirurgia. Existe o risco de infecção, mas este risco não é anormal, ou ainda, é risco que faz parte da atividade cirúrgica e de internação. Contudo, se continuarmos a análise do nexo de causalidade, agora através de uma perspectiva negativa, a resposta será diversa. Isto porque, devemos averiguar se a infecção hospitalar é consequência extraordinária e imprevisível da realização da cirurgia. A resposta deverá ser negativa, isto é, a infecção e consequente morte de um paciente não pode ser considerada como efeito imprevisível da cirurgia. Assim sendo, estará estabelecido o nexo causal e o hospital deverá responsabilizar-se pelos danos causados ao paciente” (MULHOLLAND, Caitilin. A responsabilidade civil..., p. 157-158).

160 NORONHA, Fernando. Direito..., p. 632. 161 “[...] c’est qu’en faisant appel à la notion de previsibilité ou de probabilité du dommage, elle tend à

instituer une confusion entre faute et causalité” ([...] ao fazer referência à noção de previsibilidade ou de probabilidade do dano, ela (causalidade adequada) tende a instituir uma confusão entre culpa e causalidade – tradução nossa). VINEY, Geneviève; JOURDAIN, Patrice. Traité..., p. 191.

162 Idem, ibidem, p. 191.

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certamente adequada; se A deixa cair os óculos e B morre de susto, a causa não

será adequada. Imagine-se, porém, que A sabe de grave enfermidade cardíaca de

B, e deixa cair os óculos com o intuito de matá-lo de susto. Se B morre, a causa é

adequada? Se a resposta for positiva, estará demonstrado que a causalidade

adequada não é bitola alguma, mas sim um vazio que é preenchido pelo bom senso

e por juízos de natureza ética.163

A consideração meramente em abstrato da causa adequada, em suma, é

uma quimera. O aplicador terá sempre de valer-se de elementos concretos para

avaliar a adequação, conforme exemplo do doutrinador português citado acima.

Esse ponto é muito importante para colocar uma pá de cal na tentativa daqueles que

pretendem diferenciar a causalidade adequada e a teoria dos danos diretos e

imediatos com a suposta abstração da primeira e a concretude da segunda (vide

item 1.2.2.6). Pedro Pitta e Cunha Nunes Carvalho também ratifica a assertiva.164 O

doutrinador português Fernando Pessoa Jorge percebeu essa circunstância, e

defende que a análise pela causalidade adequada não deve abranger apenas a

causa e o efeito isoladamente considerados, mas todo o processo causal, pois pode

acontecer de o comportamento do agente ser adequado em abstrato, mas não ter

causado o dano no caso concreto.165

163 MENEZES DE CORDEIRO, António. Tratado…, p. 535. Wilson Melo da Silva também arrola

algumas limitações acerca da causalidade adequada (Responsabilidade sem culpa e socialização do risco. Belo Horizonte: Bernardo Alvares, 1962. p. 215-217).

164 “É então necessário que o facto seja adequado à produção do dano, isto é, que o facto tenha tornado mais provável a verificação do prejuízo, ou seja, tenha agravado o risco de sua verificação. O critério para apuramento do aumento do risco é um critério empírico, fornecido portanto pelos dados da experiência. Exige-se ao juiz (ou a quem aprecia a situação) que faça apelo à sua experiência de vida para emitir a decisão sobre a adequação (ou não) do facto para provocar o prejuízo” (CARVALHO, Pedro Pitta e Cunha Nunes. Omissão e dever de agir..., p. 57).

165 Cf. CRUZ, Gisela Sampaio da. O problema..., p. 79.

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Essa abertura da teoria, de modo que, a depender do observador, qualquer

causa pode ser adequada à produção de determinado resultado, levou a doutrina

alemã ao desenvolvimento da teoria do escopo da norma violada

(schutzzwecklehre). Essa teoria será objeto do próximo tópico.

1.2.2.3 Escopo da norma violada

A teoria do escopo da norma violada, ou teoria do escopo de proteção da

norma violada, ou teoria da relatividade aquiliana, ou, por último, teoria do fim da

norma, sistematizada pelo jurista alemão Rabel, pode ser formulada nos seguintes

termos: “a causalidade juridicamente relevante verifica-se em relação aos danos

causados pelo facto, em termos de conditio sine qua non, nos bens tutelados pela

norma jurídica violada”.166

A teoria, assim, preleciona que os danos devem ser indenizados no âmbito de

proteção que a norma violada pela conduta prevê, em uma perspectiva

teleológica.167 Em outros termos, ultrapassado o filtro naturalístico representado pela

conditio sine qua non, avalia-se quais condutas, possíveis causas do dano, estão no

âmbito do escopo da norma violada, ou seja, avalia-se a razão de ser da norma para

se concluir se há sentido em tratar aquela conduta como causa do dano. Conforme

ensina Ana Perestrelo de Oliveira:

166 MENEZES DE CORDEIRO, António. Tratado…, p. 537. 167 A interpretação teleológica ativa a participação do intérprete na configuração do sentido, pois o

movimento interpretativo parte das consequências avaliadas das normas e retorna para o interior do sistema. O hermeneuta parte do princípio de que a norma sempre tem um objetivo que serve como parâmetro de controle da própria previsão legal (Cf. FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução..., p. 266-267).

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O dano é imputável ao agente se existir um nexo causal efectivo entre a conduta e o dano (i.e. se o facto do agente tiver causado o dano) e se, para além disso, existir uma conexão teleológica entre o facto e o dano (i.e. se o fim da norma violada pela conduta do agente era o de evitar resultados danosos da espécie do produzido); por outras palavras, exige-se que o resultado ocorrido seja abrangido pelo âmbito de protecção da norma.168

No mesmo sentido:

Quando se trata de determinar quais são os danos que devem ser reparados, há que partir do exame da norma jurídica que foi violada: será sua ratio legis que esclarecerá quais são os valores e interesses tutelados, quais são em especial os danos que podem ser reparados e quais são as pessoas que a norma intenta proteger. Assim, a ação de reparação deve ser reservada às pessoas que a norma violada intenta proteger e deve ter por objeto apenas os danos visados pela mesma.169

Um caso julgado pela Corte de Cassação italiana em 1978 ilustra bem a

teoria. Um prédio foi construído além da altura mínima permitida, violando assim a lei

municipal, sem que a fiscalização da Prefeitura tivesse percebido a irregularidade. O

prédio veio a ruir, e então a Municipalidade foi processada para pagar indenização

pelos danos sofridos. Decidiu-se pelo não pagamento de indenização, pois a norma

sobre altura do edifício tem o escopo de ordenar a paisagem urbana, não tendo, no

caso, relação com a ruína do edifício. Não se poderia, falar, assim, que o dano

estava no âmbito de proteção da norma.170

O autor desta dissertação deparou-se certa feita com um caso que também

serve de perfeito exemplo para aplicação da teoria.171 Uma professora da rede

168 PERESTRELO DE OLIVEIRA, Ana. Causalidade..., p. 60. 169 NORONHA, Fernando. Direito..., p. 643. 170 MULHOLLAND, Caitilin. A responsabilidade civil..., p. 176-177. 171 Processo 00001251-57.2009.8.26.0125, 2.ª Vara Judicial da Comarca de Capivari/SP.

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estadual foi vítima de uma brincadeira de extremo mau gosto por parte de seus

alunos, que colaram um adorno – representando um rabo de burro – em suas

nádegas, e fizeram um filme por meio de câmera que vem acoplada a aparelhos de

telefone celular. O filme foi divulgado na rede mundial de computadores, e diante do

dano moral a vítima ajuizou ação contra os representantes legais dos menores, o

Estado de São Paulo e também a empresa proprietária da plataforma de vídeos. O

fundamento da pretensão dirigida contra a Fazenda Estadual era uma norma

administrativa que impedia os alunos da rede de portarem celulares em sala de aula.

Assim, uma vez descumprida a norma, estaria caracterizada a ilicitude e, portanto, o

Estado de São Paulo deveria ser chamado a indenizar.

Em contestação, foi demonstrado que a norma apontada pela autora da

demanda tinha como objetivo dar aos servidores responsáveis pelas escolas das

redes estaduais um fundamento jurídico-normativo para que fosse proibida a

presença de celulares em sala de aula. Era um fundamento expresso para alicerçar

a autoridade de diretores, professores e inspetores de alunos. Não era, como quis

fazer crer a demandante, uma norma que impusesse ao Estado como pessoa

jurídica a obrigação de impedir que todos os milhões de alunos da rede estadual

portassem celulares em sala de aula, pois, se assim fosse, seria uma norma

inexequível, à medida que exigiria a revista pessoal de todos os alunos – em sua

grande maioria menores – por todos os dias. Perfilhar diariamente todos os alunos

dentro da rede estadual, para ser efetivada uma revista, ao certo não seria uma

conduta esperada dentro do Estado de Direito.

Destarte, o dano que ocorreu à professora está absolutamente fora do âmbito

de proteção da norma supostamente descumprida, revelando-se assim que não há

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como ser apontado nexo causal e, consequentemente, responsabilidade estatal. A

responsabilidade civil é exclusiva dos representantes legais dos menores.172

Percebe-se que, muito mais do que uma nova teoria de causalidade, a teoria

do escopo da norma é um complemento à causalidade adequada, no sentido de que

um dano não pode ser indenizável se advier de uma conduta que está fora do

âmbito de proteção da norma, apesar de ser uma causa adequada. A teoria não é

muito mencionada pelos autores brasileiros, embora seja de larga aplicação na

Alemanha e esteja bem presente na doutrina portuguesa. Na França, a teoria é

conhecida como teoria da relatividade aquiliana (relativité aquilienne), e de acordo

com Geneviève Viney e Patrice Jourdain nunca teve verdadeiro sucesso no país.173

A principal crítica sofrida pela teoria é no sentido de que nem sempre é

fácil ao intérprete perscrutar o objetivo da norma, de modo que essa investigação

ficaria restrita aos casos em que exista uma norma explícita por meio da qual seja

possível identificar hermeneuticamente os objetivos do legislador ao positivá-la.

Nos demais, a análise da causalidade restaria dificultada, podendo levar à

arbitrariedade.174 De qualquer maneira, conforme dito, a teoria é muito mais um

complemento à causalidade adequada do que uma maneira de per si de

verificação de causalidade.

172 O juiz do caso acabou por excluir a Fazenda do Estado de São Paulo do processo, alegando que

era parte ilegítima, por não vislumbrar o nexo de causalidade entre a conduta estatal e o dano, que foi praticado por terceiros. Em que pese possa haver controvérsias sobre o acerto do instrumento processual utilizado, e mesmo sem que não tenha se desenvolvido o raciocínio de âmbito de proteção da norma descumprida, o fato é que a decisão acabou por ser, na prática, coincidente com aquilo que foi exposto.

173 VINEY, Geneviève; JOURDAIN, Patrice. Traité..., p. 186. 174 Idem, ibidem, p. 186.

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1.2.3 Danos diretos e imediatos

A teoria dos danos diretos e imediatos, também conhecida como teoria da

interrupção do nexo causal ou teoria da causalidade necessária, é muito mais

popular no Brasil do que na doutrina estrangeira. Com efeito, os livros

portugueses175 sequer chegam a citá-la, o mesmo acontecendo com Geneviève

Viney e Patrice Jourdain176 e, ainda, com o argentino Isidoro H. Goldenberg, em sua

monografia sobre nexo causal já citada neste trabalho.177 A teoria ganhou

desenvolvimento na Itália, e teve como principal propagador no Brasil o professor

Agostinho Alvim, que acabou por popularizá-la pelo País.

Tendo em vista a redação do artigo 403178 do Código Civil, muitos autores

sustentam que se trata de teoria abraçada pelo direito positivo brasileiro, em que

pese o artigo esteja topologicamente fora da responsabilidade civil, mais

precisamente na parte de inexecução contratual. O preceito é inspirado no artigo

1.151179 do Código Civil francês, que acabou por inspirar também o artigo 1.223180

do Código Civil italiano.

175 MENEZES DE CORDEIRO, António. Tratado..., passim; CARVALHO, Pedro Pitta e Cunha Nunes de.

Omissão e dever de agir..., passim; PERESTRELO DE OLIVEIRA, Ana. Causalidade..., passim. 176 VINEY, Geneviève; JOURDAIN, Patrice. Traité…, passim. 177 GOLDENBERG, Isidoro H. La relación de causalidad..., passim. 178 “Art. 403. Ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os

prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato, sem prejuízo do disposto na lei processual.”

179 “Art. 1.151. Dans les cas mêmes ou l’inexecution de la convention resulte du dol du débiteur, les dommages et intérêts ne doivent comprendre, à l’égard de la perte éprouvée par le créancier et du gain dont il a été prive, que cequi est la suite immédiate et directe de l’exécution de la convention” (Mesmo no caso em que a inexecução da convenção resulte em dolo do devedor, as perdas e danos não devem compreender, com relação à perda sofrida pelo credor e o ganho de que este tenha sido privado, senão aquilo que é uma consequência direta e imediata da inexecução da convenção – tradução nossa).

180 “Art. 1.223. Il risarcimento del danno per l’inadempimento o il ritardo deve comprendere cosi la perdita súbita dal creditore come il mancato guadagno in quanto ne siano conseguenza immediata

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É duvidosa a posição de que o artigo 403 significaria a adoção pelo direito

brasileiro da teoria dos danos diretos e imediatos. Com efeito, vê-se pela redação do

artigo que se fala em critério de fixação de perdas e danos. Não se refere, em

absoluto, sobre ligação de conduta com resultado para efeito de responsabilidade

civil, mas, repita-se, somente a um critério de apuração de perdas e danos. Tanto é

assim que o artigo está no Capítulo III, intitulado “Das perdas e danos”, no Título IV

(“Do inadimplemento das obrigações”) do Livro I (“Direito das obrigações”) da Parte

Especial do Código. Se o legislador quisesse adotar referida teoria para efeito de

nexo causal da responsabilidade civil aquiliana, teria inserido um dispositivo no

Título IX (“Da responsabilidade civil”) do livro das obrigações.

A origem remota da teoria se deve ao tratadista francês Robert Pothier,

que a usou para tratar da liquidação de danos um caso emblemático: a compra

de uma vaca pestilenta por um fazendeiro, animal esse que acabou por destruir

todo o seu rebanho. O questionamento colocado era de como aferir a quantia

devida pelo vendedor a título de indenização.181 Notem-se dois pontos: o caso era

de inexecução contratual; o objetivo era de liquidação do dano, não de ligação de

conduta humana ao resultado danoso, que é o problema central da causalidade

dentro da responsabilidade civil aquiliana. A própria doutrina francesa trata do

artigo 1.151 do código daquele país dentro da rubrica “o liame entre o dano inicial

e suas consequências ulteriores” (Le lien entre le dommage initial et ses

conséquences ultérieures), restando claro que a temática da ideia do dano direto

e diretta” (O ressarcimento do dano pelo inadimplemento ou atraso deve compreender tanto o dano emergente do credor como o lucro cessante enquanto deles for consequência direta e imediata – tradução nossa).

181 MULHOLLAND, Caitlin Sampaio. A responsabilidade civil..., p. 167.

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e imediato refere-se à liquidação do prejuízo, não à vinculação do dano ao

responsável.182

Não obstante, não são poucos os doutrinadores que apontam essa teoria

como aquela abraçada pelo sistema de direito positivo,183 posição que restou

reforçada pela menção da teoria pelo Supremo Tribunal Federal, de acordo com

Gustavo Tepedino.184 Vários autores, todavia, dizem que a teoria a ser aplicada é a

da causalidade adequada.185 De qualquer modo, conforme será analisado mais

aprofundadamente no item 1.2.2.6, não há diferença prática entre dizer que houve

adoção de uma ou outra teoria.

De acordo com a teoria dos danos diretos e imediatos, considera-se causa

jurídica apenas o evento que se vincula diretamente ao dano, sem a interferência

de outra condição sucessiva. Agostinho Alvim, após discorrer sobre diversas

acepções da teoria, particularmente na doutrina italiana, sustenta que os termos

“direto” e “imediato” são dúbios, sendo preferível trabalhar com a expressão

“causa necessária”. É assim que o autor introduz a subteoria da necessariedade,

afirmando que “a expressão direto e imediato significa o nexo causal

necessário”,186 ou seja, o dano filia-se necessariamente à causa, que pode de per

182 Cf. VINEY, Geneviève; Jourdain, PATRICE. Traité…, p. 207 e ss. 183 Cf. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro..., v. 4, p. 331; RIZZARDO, Arnaldo.

Responsabilidade civil, p. 76; BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Responsabilidade civil. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 108; CRUZ, Gisela Sampaio da. O problema..., p. 111.

184 TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil, t. II, p. 63 e ss. Em outro artigo, o autor também se filia à corrente da adoção desta teoria pelo direito brasileiro (Cf. Nexo de causalidade..., p. 110).

185 MULHOLLAN, Caitlin Sampaio. Presunção..., p. 165; LISBOA, Roberto Senise. Manual..., p. 315; CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa..., p. 50; NORONHA, Fernando. Direito..., p. 635-636.

186 ALVIM, Agostinho. Da inexecução…, p. 341.

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si explicá-lo. Carlos Roberto Gonçalves187 e Gustavo Tepedino188 definem a

teoria, ambos fazendo menção à noção de necessariedade, ressaltando o

comentário do segundo, no sentido de que o dano não precisa ser consequência

imediata, podendo ser remota.

Em conclusão, a necessariedade seria um aperfeiçoamento da causalidade

direta e imediata de modo que o nexo causal implicaria a necessariedade do

dano, sendo desimportante assim se a consequência é direta ou indireta,

bastando que haja certeza de que ela advenha daquela causa. Uma vez que

constam do artigo 403 os termos direto e imediato, e os próprios defensores da

teoria dizem que onde se lê direto e imediato deve-se ler necessário, de modo

que o dano, por ser indireto e mediato, não vê como o nosso sistema possa ter

adotado a teoria em comento neste item. Ademais, como assevera Fernando

Noronha, se a interpretação literal do artigo 403 já seria inaceitável, a ideia de

necessariedade também não é suficiente, pois nos casos de causalidade múltipla,

ou concausas, não existem causas que podem por si sós explicar o dano (causas

necessárias).189

187 “A teoria dos danos diretos e imediatos nada mais é do que um amálgama das anteriores, uma

espécie de meio-termo, mais razoável. Requer ela que haja, entre a conduta e o dano, uma relação de causa e efeito direta e imediata. É indenizável todo dano que se filia a uma causa, desde que esta seja necessária, por não existir outra que explique o mesmo dano. Quer a lei que o dano seja efeito direto e imediato da inexecução” (GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro..., v. 4, p. 331).

188 “Formulou-se a construção evolutiva da teoria da relação causal imediata, denominada de subteoria da necessariedade da causa, que considera sinônimas e reforçativas as expressões dano direto e dano imediato, ambas identificadas com a ideia da necessariedade do liame entre causa e efeito. Em outros termos, o dever de reparar surge quando o evento danoso é efeito necessário de certa causa. Podem-se identificar, assim, na mesma série causal, danos indiretos, passíveis de ressarcimento, desde que sejam consequência direta (o adjetivo pode ser aqui empregado), porque necessária, de um ato ilícito ou atividade objetivamente considerada” (TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil, t. II, p. 69).

189 NORONHA, Fernando. Direito..., p. 622-626.

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1.2.3.1 Conclusão sobre as teorias

Expostas as teorias, é preciso que se conclua como se deve chegar à

verificação da causalidade, ou, na terminologia que se entende mais adequada, da

imputação de determinado dano àquele que por ele deverá responder.

Geneviève Viney e Patrice Jourdain manifestam-se a favor de uma

abordagem dual, ou dualista, sobre essa questão (pour une dualité d’approches).

Defendem os autores franceses que a verificação do nexo de causalidade deve ser

feita em duas etapas, e na primeira delas utilizar-se-á a teoria da equivalência das

condições, e na segunda, a causalidade adequada. Os franceses se alinham, assim,

às posições de Fernando Noronha e Menezes de Cordeiro, descritas no item 1.2.2.1,

que tratam a equivalência das condições como um primeiro filtro (negativo) para

aferição da causalidade jurídica.

A primeira etapa, chamada de “fundo” (le fond), consistiria, em um primeiro

passo, na aplicação da teoria da equivalência das condições para avaliar as

possíveis causas. Em um segundo passo, seria aplicado um limite à causalidade

puramente natural representada pela teoria da conditio sine qua non, perscrutando-

se um fato que pudesse explicar o dano. Segundo os autores, “Isso vem a exigir não

somente um liame material de necessidade, mas ainda uma relação mais intelectual

de adequação entre o fato gerador de responsabilidade e o dano, [...]” (tradução

nossa).190 Não é esclarecida a contento, todavia, a ferramenta teórica a estabelecer

tal relação “intelectual”. Já a segunda etapa da avaliação da causalidade, designada

190 “Cela revient à exiger non seulement um lien matériel de necessité, mais encore une relation plus

intellectuelle d’adéquation entre le fait générateur de responsabilité et le dommage, [...]” (VINEY, Geneviève; Jourdain, PATRICE. Traité…, p. 192).

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de “prova” (la preuve), lançaria mão da noção de probabilidade ou previsibilidade

objetiva, própria da causalidade adequada, para permitir que a causalidade seja

presumida sempre que houver probabilidade de um determinado dano ter sido

originado por aquela causa pesquisada.191

Menezes de Cordeiro sustenta a avaliação da causalidade em duas frentes:

como pressuposto da responsabilidade civil, ou seja, como elemento de ligação da

conduta ao dano; como bitola da indenização, isto é, enquanto critério para aferição

de quais danos devem ser reparados. Nesse primeiro passo, atua a equivalência

das condições, como filtro negativo, conforme se expôs no item 1.2.2.1; em segundo

lugar, aplica-se a causalidade adequada para avaliar se, dentro de um padrão de

normalidade, era provável ou possível a produção do dano; em um terceiro passo,

analisa-se se o dano não foi obtido por via anômala, mas propositalmente (evita-se,

assim, aquele problema exposto pelo autor português no item 1.2.2.2, em que se

obtém o resultado por via anormal, mas com uso consciente dessa via e sabido pelo

autor do dano que ela era apta a produzir o resultado); por último, analise-se se a

causalidade está dentro do escopo da norma violada.

A segunda frente, ou seja, aquela do nexo causal como bitola de indenização,

cuidará dos problemas como do dano indireto ou em ricochete, bem como a

ingerência das causas anômalas não provocadas, entre outros problemas, a afetar o

montante do dano a ser indenizado.192 Aqui sim deve entrar a teoria dos danos

diretos e imediatos, não na relação causal em si, ou seja, na ligação entre autor da

conduta e dano.

191 VINEY, Geneviève; Jourdain, PATRICE. Traité…, p. 192-194. 192 MENEZES DE CORDEIRO, António. Tratado..., p. 548-550.

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Fernando Noronha afirma também que a primeira etapa de aferição da

causalidade é a aplicação da equivalência das condições. Em segundo lugar, deve-

se aplicar a causalidade adequada, de modo que se verifique, conforme as regras

da experiência comum (id quod plerumque accidit) se o resultado é consequência

normalmente previsível daquele fato. Para tanto, deve-se utilizar a prognose

retrospectiva, ou seja, o intérprete deve se colocar no momento anterior ao dano

para avaliar se era possível prognosticá-lo. Nessa fase, primeiro lança-se mão da

formulação positiva da causalidade adequada, e, se infrutífera a pesquisa do nexo

causal, vale-se da formulação negativa. Assim, os danos não indenizáveis serão

somente aqueles decorrentes de circunstâncias extraordinárias, de situações

improváveis. Como arremata o próprio autor:

Pode-se resumir tudo em uma fórmula sintética, dizendo que, para que se dê como verificado o nexo de causalidade, basta que haja séria possibilidade de ocorrência do dano, é suficiente que este não seja atribuível a circunstâncias extraordinárias, a situações improváveis, que não seriam consideradas por um julgador prudente.193

Após definir sua sistemática de aferir a causalidade jurídica, Noronha

reconhece que a causalidade adequada não é suficiente para trazer uma solução

justa para todos os casos, particularmente no que tange à extensão dos danos que

deverão ser indenizados. Assim, entende o autor que deverá haver um complemento

à causalidade jurídica com a noção do escopo da norma violada, a partir da

percepção de que um dano, para ser reparável, deve ser bem protegido pelo

193 NORONHA, Fernando. Direito..., p. 637-638.

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ordenamento.194 Nota-se, assim, que o raciocínio de Noronha é, em última análise,

bem semelhante ao de Menezes de Cordeiro.

Viu-se, assim, que a aferição de causalidade jurídica ou imputação requer

uma progressiva utilização de teorias: equivalência das condições, causalidade

adequada (formulação positiva e negativa, nesta ordem), por último, a teoria do

escopo da norma violada, devendo-se frisar a observação de Menezes de Cordeiro

no sentido de utilização proposital de uma causa anômala. Nenhum dos autores

trazidos à baila neste item faz referência à teoria dos danos diretos e imediatos,

pois, como repetidamente foi dito, essa teoria é mais adequada à verificação da

extensão dos danos passíveis de ressarcimento do que à conexão entre conduta e

dano.

Não obstante, ainda que se entenda que tal teoria é adotada pelo nosso direito

positivo, não há, em última análise, substanciais diferenças entre a teoria da

causalidade adequada e a dos danos diretos e imediatos, mormente caso se considere

que o juízo de adequação, para ser completo, poderá lançar mão de uma avaliação in

concreto quando se tratar de causa anômala. Rafael Peteffi da Silva demonstra que o

exame da adequação causal guarda estreita relação com o exame da causa direta e

imediata, afirmando ainda que as teorias propõem somente enfoques distintos.195

Gustavo Tepedino também sustenta que as duas teorias acabam levando a resultados

idênticos.196 Caitilin Sampaio Mulholland assevera que a diferença entre as teorias é

que a causalidade adequada usa um padrão de análise abstrato, ao passo que a teoria

194 NORONHA, Fernando. Direito..., p. 640-647. 195 SILVA, Rafael Peteffi da. Responsabilidade civil..., p. 40 e ss. 196 TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil, t. II, p. 71 e ss.

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dos danos diretos e imediatos utiliza um padrão de análise concreto.197 Tal distinção

não se identifica, todavia, à medida que é possível a verificação no caso concreto de

uma causa anômala (vide item 1.2.2.2). A própria autora, na sequência, reconhece que

a causalidade adequada não é analisada em abstrato na prática, nem em Portugal que

a adota de maneira expressa, dizendo que, “[...] ao fim, todas (as teorias sobre a

causalidade) levam ao mesmo resultado, quando adotadas as condições mitigadoras

individuais de cada uma das teorias analisadas”.198 Na Itália não há distinção no que

tange à aplicação das teorias.199

De qualquer maneira, como bem esclarece Enneccerus, a questão do nexo

causal não se pode resolver “nunca de una manera plenamente satisfactoria

mediante reglas abstractas, sino que en los casos de duda ha de resolverse por el

juez según su libre convicción, ponderando todas las circunstancias.200 Enfim,

nenhuma teoria da causalidade estará imune a críticas, e casos concretos, com

pluralidade de causas, sempre gerarão dificuldades ao aplicador.

1.2.4 Conclusão: a imputação de danos na conduta omissiva

Partindo-se das lições até o momento trazidas à baila, como regra geral pode-

se dizer que determinada conduta é causa de um dano sempre que, dadas as regras

197 MULHOLLAND, Caitilin Sampaio. A responsabilidade civil..., p. 173-174. 198 Idem, ibidem, p. 173. 199 “Na prática, para a doutrina italiana, os efeitos da aplicação da teoria da causa direta e imediata e

da causalidade adequada seriam os mesmos. Significa isso dizer que somente serão consideradas para ressarcimento as consequências danosas que são efeitos normais, adequados e prováveis da conduta ou atividade do ofensor” (Idem, ibidem, p. 173).

200 ENNECCERUS, Ludwig; KIPP, Theodor; WOLF, Martin. Tratado de derecho civil: derecho de obligaciones. Tradução de Blas Péres Gonzáles e José Alguer da 35. ed. alemã. 2. ed. Barcelona: Bosch, 1954. Tomo II. Apud CRUZ, Gisela Sampaio da. O problema..., p. 111.

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da experiência e as circunstâncias conhecidas ou cognoscíveis pelo agente, se

mostra apta ou idônea a agravar o risco de produção dele. Dado esse critério geral,

deve-se adaptá-lo às hipóteses de omissão, lembrando-se sempre ser mais

adequado falar em imputação dos danos ao omitente do que propriamente em

relação causal entre omissão e dano, pois, como visto, ela não existe.

Antunes Varela201 propõe o seguinte: “A omissão é causa de um dano sempre

que haja o dever jurídico de praticar um acto que, seguramente, ou muito

provavelmente, teria impedido a consumação desse dano”. Pedro Pitta e Cunha

Nunes de Carvalho pontifica:

Existe nexo de causalidade entre uma omissão e certo evento quando, dadas as regras da experiência e as circunstâncias conhecidas ou cognoscíveis pelo sujeito, a prática do acto omitido teria, segura ou muito provavelmente, evitado esse evento, previsto ou previsível pelo sujeito.202

Note-se que o autor acrescenta o elemento da previsibilidade, tanto do evento

(dano) como também da conduta omitida que teria evitado o dano. Não parece ser

um elemento adequado, pois previsibilidade remete à culpa, que, além de constituir

outro elemento da responsabilidade civil, não seria exigível em casos de

responsabilidade objetiva, como nos casos de omissão estatal. É mais acertado,

portanto, trabalhar somente com a noção de probabilidade, como faz Antunes

Varela: a omissão é “causa” quando há o dever de agir e desde que a ação,

provavelmente, impedisse o dano.

201 Apud CARVALHO, Pedro Pitta e Cunha Nunes. Omissão e dever de agir..., p. 126. 202 Idem, ibidem, p. 126.

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A partir das lições trazidas à baila neste item, podem-se adicionar alguns

elementos ao conceito de Pedro Pitta e Cunha Nunes Carvalho. Em primeiro lugar,

não cabe a aplicação da equivalência das condições como filtro negativo, pois ela

implica uma avaliação meramente naturalística de causalidade, que não cabe para

hipóteses de omissão.

Em segundo lugar, é bom complementar o raciocínio da imputação de danos

à conduta omissiva com a ideia do escopo da norma protegida, que pode ter

particular significado na omissão. Com efeito, o dano deve ter alguma relação com o

dever de agir imposto pela norma, deve estar dentro do seu âmbito de proteção.

Considerando que a bitola de ilicitude na omissão é mais estrita, conforme já foi

visto, justamente pela exigência de um específico dever de agir, a ideia de escopo

de norma violada adquire ainda maior relevância para se perscrutar se determinado

dano pode ser imputado ao omitente, analisando-se se a conduta esperada tinha a

finalidade de obstar aquele tipo específico de dano.

Analisados a omissão, como modalidade de comportamento, e o nexo de

causalidade (imputação), que na verdade são uma realidade ontológica una, à

medida que o entendimento da omissão só é possível se cotejado dentro da

perspectiva conduta-evento, o próximo item cuidará da culpa. Considerando que o

objetivo deste trabalho é analisar a responsabilidade do Estado por omissão, o que

para muitos se trata de uma responsabilidade subjetiva, é mister perscrutar a ideia

de culpa, bem como uma de suas modalidades, a negligência, não raro confundida

com a omissão.

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1.3 A evolução do conceito de culpa para a dogmática de Direito Civil

1.3.1 Introdução

Tendo em vista que uma parcela da doutrina entende que a responsabilidade

civil do Estado por omissão é subjetiva, é crucial que se saiba o que se entende,

atualmente, por culpa. Desse mister se ocupará o presente item.

O sistema clássico de responsabilidade civil, em que para o

ressarcimento do dano é necessária uma conduta culposa que se conecta

causalmente a um prejuízo no patrimônio alheio, é produto símbolo do século

XIX, precisamente do Código Civil francês de 1804. Tem ele como pano de

fundo um sistema individualista e patrimonialista, de índole burguesa, forjado

dentro do Estado liberal.

A culpa, assim, nasceu com a função de ser um verdadeiro filtro da reparação

civil, de modo que nem todo dano seria indenizado, mas somente aquele que era

produto da vontade viciada, ou seja, culposa do agente.

Tal sistema tornou-se obsoleto, notadamente com a evolução tecnológica,

pois deixava à margem dele diversas vítimas de danos cujos autores não tinham a

culpa comprovada. Ele passou, assim, por um processo de objetivação, em que a

culpa paulatinamente tornou-se prescindível. A objetivação, ademais, deu-se

também dentro do próprio conceito de culpa, que aos poucos perdeu uma porção de

seu caráter psicológico.

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Neste item, serão verificadas quais as etapas na alteração do conceito de

culpa para a dogmática de direito civil, e como esta enxerga, atualmente, esse

importante elemento da responsabilidade civil.

1.3.2 Conceito de culpa dentro do sistema clássico de responsabilidade civil

A noção corrente de responsabilidade civil, isto é, a ideia de recuperação de

equilíbrio instrumentalizada pela reparação de dano, é criação recente. Em que pese

se reconheçam origens desde o direito romano para a responsabilidade civil,203 sua

criação como um dever geral204 de não lesar a outrem é atribuída ao Código Civil

francês de 1804.205

Esse é o momento em que emerge o Estado liberal-burguês. Os valores

fundamentais dessa nova concepção de Estado, essenciais para solapar os pilares

203 Giselda Hironaka desfaz uma confusão muito comum, qual seja dizer que a culpa tem nascimento

como a lex Aquilia de damno, do século III a.C. Ensina a autora que o direito romano nunca concebeu uma ideia geral de responsabilidade civil, nem colocou a culpa como elemento do dever de indenizar. A criação da culpa dar-se-ia séculos mais tarde, somente com a formulação francesa de responsabilidade, de cunho moral, como será visto adiante. “Como revelaria Michel Villey em seu estudo sobre as origens do conceito de responsabilidade, a culpa existe na concepção romana, mas ela é um fator acidental. A culpa não é, na lex Aquilia, um elemento fundamental disso que hoje chamaríamos de responsabilidade. O fator fundamental é a causalidade do agente em relação ao dano, ou seja, o que obriga alguém a reparar é ter sido causa de um dano e não ter desejado causar esse dano que efetivamente causou” (Responsabilidade pressuposta. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. p. 56-57). No mesmo sentido: “Acredita-se que o significado da culpa [na lex Aquilia) estivesse mais próximo de uma questão de imputação objetiva do dano ou de nexo de causalidade entre a conduta e o resultado danoso, o que explicaria, igualmente, a responsabilidade das crianças e dos loucos pelos danos causados” (CALIXTO, Marcelo Junqueira. A culpa..., p. 129).

204 “O direito romano da responsabilidade civil assentava na tipicidade dos delicta. As previsões respectivas incluíam, caso a caso, os elementos objectivos e subjectivos da imputação, bem como o âmbito desta: é natural, uma vez que toda a problemática, cristalizada nos modelos de decisão oferecidos pelos jurisprudentes, é unitária” (MENEZES DE CORDEIRO, António. Tratado..., p. 317).

205 “De interesse geral, portanto, recordar que, aperfeiçoando, a pouco e pouco, as ideias românicas, ele [modelo francês] estabeleceu nitidamente um princípio geral de responsabilidade civil, abandonando o critério de enumerar os casos de composição obrigatória” (AGUIAR DIAS, José de. Da responsabilidade civil. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1960. t. I, p. 36).

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que alicerçavam o ancién regime, eram a igualdade e a liberdade.206 A primeira

implicava o fim dos privilégios tipicamente feudais que eram concedidos às classes

dominantes; a segunda implicava a possibilidade de livre exercício da iniciativa

econômica, bem como as liberdades públicas, que ficaram consagradas como os

direitos fundamentais de primeira geração.207 Veja-se lição de Fernando Noronha:

O dogma da culpa era essencialmente adequado ao individualismo do “laissez faire, laissez passer” novecentista, tutelando os interesses da dominante classe dos empresários (a “burguesia”, como então de dizia): em nascentes economias industriais, como eram as europeias e também a norte-americana desse século XIX, obrigar à reparação de danos ditos “inevitáveis”, apesar de toda a diligência, implicaria em prejudicar o desenvolvimento econômico, impondo às empresas custos tido como incomportáveis, porque elas, ao mesmo tempo, não estavam em condições de impedir os acidentes, nem de transferir para a sociedade o ônus respectivo, através da indústria seguradora, então incipiente.208

O sistema edificado sobre tais pressupostos é aquele que coloca a

propriedade como valor primordial do ordenamento, que pode circular mediante o

206 “O estudo da reparação pelo dano causado foi concebido pelo modelo liberal clássico sob uma

ótica estritamente econômica, voltada para proteção do patrimônio, inicialmente fixado na história como conjunto de bens e direitos de um sujeito. A grande preocupação dos juristas modernistas foi proporcionar a unidade política dos territórios europeus por meio da unificação legislativa, procurando dar um termo às contradições existentes entre o direito romano recepcionado e desenvolvido pelos glosadores e pós-glosadores, as leis esparsas e os costumes das localidades. O direito civil tornou-se um paradigma do liberalismo clássico, quando em França se erigiu uma codificação muito bem elaborada, fruto de 36 leis orientadas por regular normas sobre: pessoas, coisas e a propriedade. Fiel à divisão tripartite de Gaio seguida por Justiniano, incorporou a teoria da responsabilidade civil subjetiva, fundada na concepção inafastável da culpa como pressuposto do ilícito” (LISBOA, Roberto Senise. Manual..., p. 264).

207 “Assegurar o exercício dos direitos fundamentais era, em parte, nessa primeira fase de desenvolvimento desses direitos, garantir o espaço privado como lugar jurídico do exercício de plena liberdade individual, sem intervenção estatal. [...]. Foi, pois, na internalidade desses limites que se construiu o direito privado – e, mais especificamente, o Direito Civil. Essa racionalidade se expressa nas codificações do século XIX e manifesta clara finalidade de constituir instrumento assecuratório de liberdade individual, e espaço de não intervenção estatal” (FACHIN, Luiz Edson. Constituição e Estado Social: os obstáculos à concretização da Constituição. Coimbra: Coimbra Editora, 2008. p. 238-239).

208 NORONHA, Fernando de. Responsabilidade civil: uma tentativa de ressistematização. In: NERY JR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade (Coord.). Doutrinas essenciais – responsabilidade civil. São Paulo: RT, 2010. v. 1, p. 152.

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contrato.209 Cabe ao Estado, assim, garantir a propriedade e a circulação de

riquezas, assegurando assim as condições institucionais para a atividade burguesa.

As características desse sistema são: o individualismo, ou seja, cabe ao Estado não

intervir nas relações entre particulares, mantendo somente as condições

institucionais para que elas se estabeleçam; o método de simples subsunção210 na

aplicação do direito, sendo vedado ao juiz interpretar a lei, cabendo-lhe somente

procurar uma solução prêt-à-porter dentro do sistema de direito positivo,

perfeitamente adaptável ao caso concreto (o juiz deve ser a “boca da lei”: la bouche

de la loi). Os movimentos de codificação são reflexos desse tempo, pois com os

códigos se pretende engessar a atividade judicial, de modo a garantir a maior

certeza e segurança jurídica possível, essencial para a atividade burguesa.211

É nesse pano de fundo que a teoria da responsabilidade civil baseada na

culpa foi erigida. A culpa desempenhou o papel de filtro nas reparações, de modo

209 “O Código francês, que deveria refletir os princípios da Revolução (Liberdade, Fraternidade,

Igualdade), centralizou-se em dois institutos, tomados como valores fundamentais: propriedade e contrato. Admitiu que a propriedade deveria ser para todos e que deveria existir liberdade contratual para todos. Essa liberdade foi entendida como algo inato a todo ser humano, com o que todo ser humano era livre para contratar como e com quem quisesse” (LOTUFO, Renan. A codificação: o Código Civil de 2002. In: ––––––; NANNI, Giovanni Ettori (Org.). Teoria geral do direito civil. São Paulo: Atlas, 2008. p. 86).

210 Winfried Hassemer resume muito bem a pretensão da metodologia da subsunção: “Seria exclusivamente a codificação que garantiria, em cada caso, a correção da decisão. A sentença judicial não teria outra tarefa senão a de concretizar o conteúdo da lei tendo em vista o caso concreto. A vinculação do juiz à lei é imperativa. O ideal de segurança jurídica parece atingido: a norma geral vincula a decisão de vários casos no sentido de estabelecer uma jurisprudência regular e uniforme. As decisões jurídicas particulares podem ser, cada uma delas, previstas de antemão, pois decorrem da norma jurídica antecipadamente formulada” (Sistema jurídico e codificação: a vinculação do juiz à lei. In: ––––––; KAUFMANN, Arthur; (Coord.). Introdução à filosofia do direito e à teoria do direito contemporâneas. Tradução de Marcos Keel e Manuel Seca de Oliveira. 2. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2009. p. 282).

211 “As imagens trazidas pelo tempo autorizam afirmar que o direito civil do século XIX, ditado por aquela mesma burguesia que havia recentemente assumido o poder político – e por consequência o de legislar –, gravitou em torno de seus principais interesses: a manutenção da liberdade e preservação da propriedade” (CATALAN, Marcos Jorge. A morte da culpa na responsabilidade civil contratual. 2011. Tese (Doutorado em Direito) – FADUSP, São Paulo, p. 21.

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que nem todo dano gerado pela atividade produtiva e de circulação de riquezas seria

indenizado, mas somente aquele que pudesse ser vinculado à vontade do agente. O

sistema era tipicamente individualista.212

A culpa é, portanto, o elemento central desse sistema de responsabilidade,

conferindo-lhe acentuada carga moral, advinda da necessidade de comprovação da

vontade viciada para a condenação do autor do dano.213 A vontade, por sua vez,

relaciona-se com a liberdade conferida pelo Estado ao indivíduo. Tal concepção

remonta à filosofia burguesa do final do século XVIII e início do século XIX, cujo

valor primordial era a liberdade individual. Nesse sentido, se o homem usar mal a

liberdade, de modo a causar prejuízo a outrem, deve ser obrigado à reparação.

Trata-se de reminiscência da própria filosofia judaico-cristã segundo a qual o homem

tem a culpa intrínseca ao seu ser, a partir do cometimento do pecado original,214

212 “O homem seria livre na expansão de suas atividades física, intelectual e moral, a todos se

impondo a obrigação do respeito à livre expansão dessas atividades individuais, que só encontrariam óbices ali onde tivesse início a liberdade alheia. E corolário lógico disse seria que, do ponto de vista moral, apenas pelos atos voluntários, conscientes, responderia o cidadão, muito embora de seus atos involuntários, prejuízos pudessem resultar. Os atos do homem, quando não produtos de uma vontade consciente, poder-se-iam equiparar aos fatos do acaso, da força cega e que, por isso mesmo, não obrigariam àquele que, deles, tivesse sido causa eficiente ou necessária. Assim, pelos postulados da doutrina individualista do Direito, soberanamente se imporia, na sua esfera, a vontade individual. E, em torno dessa vontade livre do homem livre, senhor de seus atos, gravitariam normas de proteção jurídica. E daí que, na externação dela, dessa vontade, sempre se estabeleceria a prevalência do querido sobre o declarado, toda vez em que, por motivos quaisquer, um conflito se estabelecesse entre o “dito” e o “pensado”, tal como resulta dos ensinamentos de Savigny e de outros corifeus da chamada Willens Theorie ou teria volitiva da declaração da vontade” (MELO DA SILVA, Wilson. Responsabilidade sem culpa..., p. 29).

213 “Em resumo, o que se colhe dessa breve referência aos diplomas civis projetados ou já vigentes no século XIX é a percepção da culpa como fundamento nuclear, senão único, da responsabilidade civil, o que também se explica pelo intenso individualismo que marcava a sociedade de então” (CALIXTO, Marcelo Junqueira. A culpa..., p. 148).

214 “Ora, faz parte da natureza humana, portanto, a culpa, segundo a ética cristã: todo ser humano, concebido pela moral cristã como imputável pelo pecado original, é considerado responsável, quer dizer, é considerado como aquele que deve responder pela sua natureza decaída e, por isso mesmo, é a ele que se atribuo um dever específico de compensação, por meio da expiação de seus próprios pecados. A forma de fazer esse pagamento, mostra a moral cristã, é assumir a vida piedosa, ser fiel a Deus e à autoridade da religião. O homem não tem, segundo a concepção cristã, o direito natural de se recusar a cumprir esse dever porque sua culpa está estabelecida na sua própria natureza, da qual ele não se desliga jamais. Não importa o que o homem faça com o

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sendo dotado de livre-arbítrio pela providência divina para a expiação do pecado,

sendo punido caso não se valha dele adequadamente.215

Essa configuração de culpa é essencialmente vinculada ao estado de ânimo

do agente,216 que deveria, via operação mental, prever os resultados de sua ação e

atuar da maneira diligente, de acordo com um padrão médio calcado nas

expectativas sociais e com as circunstâncias. Esse padrão médio foi buscado no

direito romano, sob o afamado rótulo de bonus paterfamilias.

A culpa, portanto, inicialmente é tida como elemento psicológico, sendo

eminentemente subjetiva, restando o padrão médio do bonus paterfamilias (homem

médio) como única porção objetiva da culpa.217

O escopo tradicional da responsabilidade civil, assim, em sua formulação

clássica, é a reparação, levando o ofendido ao status quo ante.218 Nesse sentido,

que sobrou de seu livre-arbítrio na terra, ele não tem direito natural de utilizá-lo contra esse dever de expiar sua culpa” (HIRONAKA, Giselda Maria F. Novaes. Responsabilidade..., p. 78-79).

215 “[...] tanto a força obrigatória dos contratos [...], como o dever de reparar parecem ter sido construídos tendo, por fundamento basilar e comum, a noção de pecado. Imprudência e negligência são falhas graves, afirma Tomás de Aquino, e por isso, devem ser combatidas a todo custo. Assim, aquele que se permite influenciar por falhas que poderiam ser evitadas deve ser sancionado, e sanção aqui quer dizer punição, sofrimento, expiação, agonia. Nesse contexto, a culpa atua como fundamento do castigo infligido ao responsável pelos danos causados a outrem e, não, como deveria ocorrer, enquanto critério capaz de distribuir justiça em cada situação concretamente estabelecida” (CATALAN, Marcos Jorge. A morte..., p. 169).

216 “O viés subjetivista que informava a compreensão da culpa pode ser justificado. Estando ela vinculada, por razões históricas, à concepção de pecado – noção da qual não conseguira separar-se, até esse momento do tempo –, era comumente equiparada a uma falta moral associada a impulsos anímicos do agente” (CATALAN, Marcos Jorge. A morte..., p. 173).

217 “A culpa, quando recém-separada da ilicitude, começou por assumir um alcance puramente psicológico. Sendo a ilicitude (na altura) o puro dado objectivo da dissonância entre a conduta do agente e a estatuição normativa por ele desrespeitada, a culpa permitiria imputar o ocorrido à vontade livre daquele” (MENEZES DE CORDEIRO, António. Tratado..., p. 466).

218 “A responsabilidade civil consiste, assim, na obrigação de reparar, para o agente causador ou por imposição legal, os danos suportados pela vítima, sejam eles materiais, morais ou à imagem. Dessa forma, o agente causador tem o dever de indenizar, ou seja, tornar o lesado indene (ileso), quando possível, com a sua restituição à situação anterior, isto é, antes do evento danoso. Na

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cabe à responsabilidade civil simplesmente retomar o estado anterior ao dano

(função reparatória) ou, na impossibilidade de isso acontecer, compensar a vítima

pelo dano sofrido (função compensatória).219 O foco dessa concepção de

responsabilidade, destarte, não é a vítima ou o dano, mas sim o ato ilícito, ou seja, a

procura do culpado.

Em conclusão, pode-se dizer que o sistema clássico de responsabilidade civil,

de origem francesa, é eminentemente individualista e patrimonialista, e tem como

elemento central e fundamento a culpa psicológica, conceito que carrega forte carga

moral, à medida que os danos cometidos só devem ser indenizados quando

derivados do mau uso da liberdade concedida pelo Estado.220

Com o passar do tempo, todavia, a obsolescência do modelo se impôs e

inexoravelmente ele se alterou.

hipótese de impossibilidade dessa restituição, resta a fixação de quantia em dinheiro (indenização pecuniária)” (DONNINI, Rogério Ferraz. Prevenção..., p. 490).

219 Atualmente, com a paulatina transformação da responsabilidade civil em um direito de danos, defendem-se também as funções punitiva e dissuasória para a responsabilidade civil. Nesse sentido: VAZ, Caroline. Funções da responsabilidade civil: da reparação à punição e dissuasão. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. passim; DONNINI, Rogério. Prevenção..., p. 498 e ss.

220 Esse foi o sistema adotado pelo Código Civil de 1916, cujo artigo 159 exigia, para a verificação da responsabilidade civil, uma conduta culposa causadora de dano. “O modelo francês que inspirou o brasileiro de 1916 é eminentemente burguês. Voltado para institutos nitidamente individualistas como propriedade e contrato, preocupou-se em disciplinar a circulação de riquezas na sociedade sob os influxos do capitalismo, cuja vocação ocidental impunha decisivamente” (LISBOA, Roberto Senise. Manual..., p. 264-265). “Em matéria de responsabilidade civil, o Código Civil de 1916 era tipicamente oitocentista. As concepções que prevaleciam ao tempo de sua elaboração e que, por isso, o influenciaram, foram as descritas na seção anterior: por uma lado, a separação entre responsabilidade penal e civil, não obstante alguns resquícios da antiga confusão, já referidos; por outro lado, a ideia de que toda responsabilidade deve ter como fundamento último a culpa; por outro lado ainda, a distinção entre responsabilidade contratual e extracontratual” (NORONHA, Fernando. Direito..., p. 559).

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1.4 A responsabilidade objetiva e a objetivação da ideia de culpa

O avanço tecnológico do final do século XIX, acelerado durante o século XX,

tornou insuficiente o sistema que exigia a comprovação de culpa ligada a um fundo

moral.221 Essa concepção puramente psicológica da culpa, exigindo do magistrado a

aferição do estado anímico do agente, tornou-se incompatível com a nova realidade,

em que muitos dos danos não eram gerados propriamente das pessoas, mas sim

das máquinas,222 tornando-se impossível, assim, perscrutar elemento subjetivo.223

Na seara dos acidentes de trabalho essa obsolescência se mostrou de maneira mais

nítida.224

Para fundamentar a responsabilidade civil objetiva, a doutrina francesa,

principalmente Raymond Saleilles e Louis Josserand, depois seguidos por Georges

221 “Se o Código Civil de 1916 condensou uma evolução multimilenar, consagrando soluções que ao

tempo eram consideradas as mais perfeitas, a verdade é que elas em poucas décadas deixaram de atender às necessidades sociais, No século XX, as concepções oitocentistas foram atropeladas pelo processo histórico” (NORONHA, Fernando. Direito..., p. 560-561).

222 Cf. LIMA, Alvino. Culpa e risco, p. 117 e ss. 223 “Dentro do critério da responsabilidade fundada na culpa não era possível resolver um sem-

número de casos, que a civilização moderna criara ou agravara; imprescindível se tornara, para a solução do problema da responsabilidade extracontratual, afastar-se do elemento moral, da pesquisa psicológica, do íntimo do agente, ou da possibilidade de previsão ou de diligência, para colocar a questão sob um aspecto até então não encarado devidamente, isto é, sob o ponto de vista exclusivo da reparação do dano. [...]. Os problemas da responsabilidade são tão somente os problemas da reparação de perdas. O dano e a reparação não devem ser aferidos pela medida da culpabilidade, mas devem emergir do fato causador da lesão de um bem jurídico, a fim de se manterem incólumes os interesses em jogo, cujo desequilíbrio é manifesto, se ficarmos dentro dos estreitos limites da responsabilidade subjetiva” (LIMA, Alvino. Culpa e risco, p. 119-120).

224 “Foi no campo dos acidentes de trabalho que a noção de culpa, como fundamento da responsabilidade, revelou-se primeiramente insuficiente. Na medida em que a produção passou a ser mecanizada, aumentou vertiginosamente o número de acidentes, não só em razão do despreparo dos operários mas, também, e principalmente, pelo empirismo das máquinas então utilizadas, expondo os trabalhadores a grandes riscos. O operário ficava desamparado diante da dificuldade – não raro, impossibilidade – de provar culpa do patrão. A injustiça que esse desamparo representava estava a exigir uma revisão do fundamento da responsabilidade civil” (CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa..., p. 141).

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Ripert,225 cunharam a teoria do risco, que seria o fundamento pelo qual se deve

abandonar o elemento subjetivo (culpa). Risco é perigo, é probabilidade de dano,

importando assim dizer que aquele que exerce uma atividade perigosa deve assumir

os riscos a ela inerentes, reparando assim eventuais danos colaterais gerados pelo

desempenho da atividade.226

O direito brasileiro, no decorrer do século XX, passou a adotar a objetivação da

responsabilidade em diversos ramos de atividade, por exemplo, no Decreto Legislativo

2.681/1912, na Lei de Acidentes de Trabalho, na Constituição Federal de 1946 (vide

Capítulo 2, item 2.1), no Código Brasileiro de Aeronáutica, na Lei 6.453/1977 (atividades

nucleares), na Lei 6.938/1981 e, finalmente, no Código de Defesa do Consumidor, que

ao positivar a objetivação da responsabilidade do fornecedor estende tal disciplina para

os contratos de massa diuturnamente celebrados no País.

Enquanto a culpa tem um pressuposto individualista, conforme demonstrado

no item anterior, a responsabilidade objetiva, baseada no risco, tem um cunho

solidarista,227 à medida que toda a sociedade deve arcar com a reparação daqueles

que experimentam os danos derivados das atividades que a todos aproveitam.

225 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa..., p. 142; SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas..., p.

19; RIZZARDO, Arnaldo. Responsabilidade civil, p. 32; STOCO, Rui. Tratado..., p. 157. 226 “Para essa teoria (do risco), toda pessoa que exerce alguma atividade cria um risco de dano para

terceiros. E deve ser obrigada a repará-lo, ainda que sua conduta seja isenta de culpa. A responsabilidade civil desloca-se da noção de culpa para a ideia de risco, ora encarada como ‘risco-proveito’, que se funda no princípio segundo o qual é reparável o dano causado a outrem em consequência de uma atividade realizada em benefício do responsável (ubi emolumentum, ibi onus); ora mais genericamente como ‘risco-criado’, a que se subordina todo aquele que, sem indagação de culpa, expuser alguém a suportá-lo” (GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro..., v. 4, p. 31).

227 Cf. VIEIRA, Patrícia Ribeiro Serra. A responsabilidade civil objetiva no direito de danos. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 86 e ss.

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Rosa Maria de Andrade Nery228 faz interessante cotejo entre ato e atividade, o

primeiro reservado ao direito civil, o segundo ao direito mercantil, distinção essa que

reflete na compreensão da responsabilidade civil. Afirma referida autora que os atos

são frutos da volição e da subjetividade, ao passo que a atividade é fruto da

confiança pública realizada e da objetividade. O ato é ligado à vontade e à boa-fé,

com origem no direito canônico, ao passo que a atividade, vinculada ao direito

germânico e com influência da cultura oriental, é associada às noções de lealdade e

fraternidade, que são objetivas.

Na responsabilidade civil, tal distinção reflete no regime de responsabilidade,

que é subjetiva para os atos e objetiva para a atividade. O ato, como manifestação

do sujeito, de sua subjetividade, tem de ser avaliado pelo parâmetro da culpa, que é

o índice estabelecido pelo Estado para o cidadão bem exercer sua liberdade. A

atividade, por sua vez, deve ensejar uma responsabilidade objetiva, com

fundamento no risco que seu desempenho acarreta. José Cretella Junior também

coloca muito bem essa distinção.229

Paralelamente à criação de hipóteses de responsabilidade objetiva, nos

casos remanescentes de responsabilidade subjetiva, a culpa passou por um

nítido processo de objetivação,230 derivado das mesmas dificuldades que levaram

228 NERY, Rosa Maria de Andrade. Ato e atividade. Revista de Direito Privado, São Paulo: RT, n. 22,

p. 9-21, abr.-jun. 2005. 229 “A culpa é vinculada ao homem, o risco é ligado ao serviço, à empresa, à coisa, ao

aparelhamento. A culpa é pessoal, subjetiva; pressupõe o complexo de operações do espírito humano, de ações e reações, de iniciativas, e inibições, de providências e inércias. O risco ultrapassa o círculo das possibilidades humanas para filiar-se ao engenho, à máquina, à coisa, pelo caráter impessoal e objetivo que o caracteriza” (Comentários à Constituição brasileira de 1988, 1991, v. 2., p. 1019). Apud CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa..., p. 142.

230 “Gradativamente, foi perdendo espaço a concepção de culpa como stato d’animo do agente. Preocupações com a consciência da lesão ao direito alheio, com a previsibilidade do dano e com a reprovabilidade moral da conduta praticada esmoreceram diante das dificuldades de concreta

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ao nascimento da responsabilidade objetiva.231 Nasceu, assim, a culpa

objetiva.

Aquela noção tradicional de culpa, relacionada ao estado de ânimo de agente e

à reprovação moral, paulatinamente perdeu força, substituída pela culpa

normativamente definida. “Entende-se, hoje, a culpa como uma realidade normativa: um

juízo de censura formulado pelo Direito, relativamente à conduta ilícita do agente.”232

Dentro dessa nova realidade, perdem importância o elemento volitivo, as

aptidões e a capacidade pessoal do agente, destacando-se um padrão objetivo,

abstrato, de conduta, que uma vez violado enseja a responsabilidade civil. A ideia de

previsibilidade também perde terreno, não importando se o agente previu ou não

previu, ou ainda se poderia prever: caso não adotada a conduta normativamente

esperada, ele é culpado. Nesse sentido, a culpa perde seu viés psicológico para

ganhar um normativo. Como menciona José Jairo Gomes,233 trata-se de um

fenômeno típico da pós-modernidade.

demonstração destes aspectos, culminando com a consagração da chamada culpa objetiva. Sob tal designação, a culpa passou a ser entendida como ‘erro de conduta’, apreciado não em concreto, com base nas condições e na capacidade do próprio agente que se pretendia responsável, mas em abstrato, isto é, em uma objetiva comparação com um modelo geral de comportamento. [...] parte da doutrina passou a reservar a tal concepção a denominação culpa normativa, por fundar-se em um juízo normativo entre a conduta concreta do sujeito e o modelo abstrato de comportamento” (SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas..., p. 34-35).

231 Sobre a culpa na responsabilidade extracontratual, ensina Wilson de Melo da Silva, ao comentar o processo de objetivação da culpa: “Para a melhoria da situação da vítima, por bem houveram, os D.D. e, com eles, a jurisprudência, que acabou por lhes acatar os ensinamentos, de ampliar as presunções, comuns, de culpa. Ao invés de demonstrar, o lesado, de conformidade com os cânones consagrados da teoria clássica, além da relação de causa e o efeito entre o ato e o dano, a imputabilidade, subjetiva, do evento atribuível ao autor dele, bastava que ficasse apenas na simples relação de causa e efeito entre o ato do agente e a lesão de que se queixasse. A culpa psicológica, subjetiva, do agente, seria, então, presumida” (Responsabilidade sem culpa..., p. 156).

232 MENEZES DE CORDEIRO, António. Tratado..., p. 467. 233 “O esforço para a superação da culpa (fenômeno psicológico) como fundamento da

responsabilidade civil pode também ser apontado como uma tendência pós-moderna. Hoje, está

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O aspecto moral perde, assim, importância, bem como o estado psicológico

do agente, sua previsibilidade do resultado danoso. Não importa mais a repreensão

do agente pelo mau uso de sua liberdade, mas sim a reparação da vítima pela

violação de um padrão adequado de ação.234 Marcos Jorge Catalan235 reconhece o

mesmo fenômeno.

A porção objetiva da culpa clássica, antigamente dada pelo critério do “bom

pai de família”, também não resistiu ao passar do tempo. Esse critério se revelou

uma fórmula vazia, à medida que não existe nem pode ser aferido um padrão médio

de cuidado e diligência. A abstração do modelo, em última análise, acaba por relegar

ao julgador a tarefa de preencher totalmente seu conteúdo, de modo que as

convicções da pessoa do magistrado, no sentido do que se entende por cautela,

probidade e diligência, acabam por prevalecer.236

claro, delineia-se uma clara separação entre culpa, de um lado, e responsabilidade, de outro. Uma coisa é o que vai na (sic) consciência do agente causador do dano; outra, bem diversa, é a sua responsabilização pelo dano provocado ou oportunizado por uma atividade a ele relacionada. Não por outra razão a culpa subjetiva tem cedido espaço para a culpa objetiva e, sobretudo, para a responsabilidade objetiva” (GOMES, José Jairo. Responsabilidade civil na pós-modernidade. In: NERY JR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade (Coord.). Doutrinas essenciais: responsabilidade civil. São Paulo: RT, 2010. v. 1, p. 262).

234 “Questiona-se se a conduta danosa foi ou não razoável para afastar ou atribuir a obrigação de indenizar. Isto é, se a conduta foi conforme o direito ou não. Neste momento não se analisa a previsibilidade do dano por parte do agente que o causou, mas realiza-se uma investigação objetiva da conduta: violou-se ou não o standard socialmente adequado de agir?” (MULHOLLAND, Caitlin Sampaio. A responsabilidade civil..., p. 43).

235 “Ao se propor a identificação da culpa a partir da comparação de condutas – a do caso concreto, com a do modelo abstrato –, basta que aquela destoe desta para que a conduta reprimida pelo direito se caracterize. A culpa passou a ser compreendida como um critério psiconormativo-social desprovido de qualquer influência moral ou religiosa. Em verdade, o que o constante passar do tempo demonstrou é que a culpa é mais socionormativa que psíquica. Isso pode ser percebido quando aquela é tratada como um ‘erro de conduta’, cuja aferição se dará abstratamente, mediante recurso a parâmetros objetivos de identificação. Exige-se a comparação da conduta desempenhada com aquela que deveria ser adotada pelo bom pai de família, bom profissional etc.” (CATALAN, Marcos Jorge. A morte..., p. 178-179).

236 “[...] a pretensa neutralidade do modelo abstrato de comportamento, seja na tradição romano-germânica, seja na anglo-saxônica, oculta, a rigor, um modelo específico antropologicamente definido: o do próprio julgador. É mesmo intuitivo que, na aplicação de um standard de elevado

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A tendência atual, tendo em vista a obsolescência do critério do homem médio

para aferição de culpa, é fixar diversos modelos ou padrões de conduta, a serem

aplicados dependendo das circunstâncias fáticas e da condição socioeconômica do

próprio autor do dano. Os juízes muitas vezes recorrem a entidades e pareces técnicos

para se municiarem de informações suficientes que os permitam definir se a conduta

naquele caso seguiu ou não o padrão esperado. Tal fenômeno é denominado por

Anderson Schreiber de fragmentação dos modelos de conduta.237

Percebe-se que a noção de culpa como fundamento da responsabilidade civil

passou por um processo de objetivação, à medida que inicialmente era concebida

sob a ótica do agente causador do dano, com índice de reprovação moral de sua

conduta inepta, e atualmente tende a ser visualizada como um padrão de diligência

objetivamente dado, com uma nítida tendência de multiplicação de seus standards

pelos diversos campos de atuação humana.238

grau de generalização, o juiz venha a exigir, deliberada ou inconscientemente, do réu o mesmo cuidado que ele e seus pares adotariam no seu lugar. [...]. Todavia, a aplicação do modelo, construído sobre a formação socioeconômica do magistrado, a certos cenários fáticos, mostra-se artificial ou ineficaz, porque desacompanhada de fatores antropológicos que contextualizam a inserção do réu na situação que culmina com o evento danoso” (SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas..., p. 39). No mesmo sentido: “Evidentemente este critério, por demais subjetivo, possibilita ao magistrado, ao julgar o caso concreto, decidir com base em parâmetros individuais e referidos à sua formação sociocultural, na medida em que não se pode esperar que este conteúdo abstrato da diligência mediana seja eterna e universalmente o mesmo” (MULHOLLAND, Caitlin Sampaio. A responsabilidade civil..., p. 44-45).

237 “A definição de um padrão único de diligência e razoabilidade parece, de todo, incompatível com uma realidade complexa e plural, como a que caracteriza as sociedades contemporâneas. Daí fomentar-se, por toda parte, um fenômeno que se poderia designar como fragmentação dos modelos de conduta, ou seja, a utilização de parâmetros de comportamento específicos e diferenciados para as mais diversas situações” (SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas..., p. 41). No mesmo sentido: “A tendência, portanto, é a análise da culpa através da chamada ‘fragmentação dos modelos de conduta’, levando-se em conta parâmetros diferenciados para a conduta individualizada, isto é, standards específicos para cada caso concreto analisado. [...]. A culpa passa a ser investigada a partir de critérios mais objetivos, livrando o magistrado da árdua tarefa de apontar a existência de uma culpa abstratamente considerada” (MULHOLLAND, Caitlin Sampaio. A responsabilidade civil..., p. 45).

238 “Trata-se de processo amplo [objetivação da responsabilidade civil], que não se limita apenas ao crescimento paulatino das hipóteses legais de responsabilidade objetiva, indicando, também,

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De qualquer maneira, seja psicológica, seja normativa, a culpa continua

sendo um índice de avaliação individual, de atos humanos, de condutas pessoais,

mediante a utilização das noções de negligência, imprudência ou imperícia. O

próximo item ocupar-se-á da estrutura interna da culpa.

1.4.1 Estrutura

Nos itens anteriores, foi visto o contexto histórico da criação moderna da

noção de culpa, bem como os motivos pelos quais essa noção foi se alterando

durante as últimas décadas. Viu-se, ainda, que o sistema de responsabilidade civil

atual não é baseado somente na culpa, mas também no risco, mediante processos

de responsabilização objetiva. Por fim, constatou-se que, para as remanescentes

hipóteses de responsabilidade subjetiva, o caráter psicológico da culpa perdeu força,

ganhando relevo uma feição normativa, com diversos standards de comportamento

a serem observados. Nesse item, será colocada uma lupa dentro do instituto de

culpa, para ver sua estrutura e como ela se revela.

Os conceitos de culpa são inúmeros. Paulo Nader,239 Rui Stoco,240 Agostinho

Alvim,241 Aguiar Dias,242 Arnaldo Rizzardo,243 Roberto Senise Lisboa,244 Francisco

mais recentemente, a formulação, no âmbito da responsabilidade subjetiva, da concepção normativa de culpa. Vale dizer, a valoração do ato ilícito verifica-se não a partir de elementos intencionais do agente, e sim com base em padrões de comportamento considerados razoáveis para o fato concreto – standards de conduta” (TEPEDINO, Gustavo. Nexo de causalidade, p. 107).

239 “Na responsabilidade subjetiva, a culpa lato sensu é um dos elementos essenciais à formação do ato ilícito. Se o agente não obrou voluntária ou culposamente, advindo o ato de culpa estrita da vítima, de terceiro ou de caso fortuito ou força maior, não será responsável por danos advindos a outrem” (NADER, Paulo. Curso..., p. 97).

240 “A nossa legislação não definiu nem conceituou a culpa. [...]. Em proposições simples, dolo é a vontade dirigida a um fim ilícito, é um comportamento consciente e voltado à realização de um desiderato. [...]. A culpa em sentido estrito, entretanto, traduz o comportamento equivocado da pessoa, despida da intenção de lesar ou de violar direito, mas da qual se poderia exigir

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Amaral,245 Orlando Gomes,246 Carlos Roberto Gonçalves,247 Marcelo Junqueira

Calixto,248 Alvino Lima,249 Francisco Eduardo Loureiro,250 Sérgio Cavalieri Filho,251

comportamento diverso, posto que erro inescusável ou sem justificativa plausível e evitável para o homo medius” (STOCO, Rui. Tratado..., p. 130).

241 O autor, após transcrever lições de Savatier e Chironi, decompõe a culpa em dois elementos: objetivo e subjetivo. O primeiro seria o dever violado, o segundo, a imputabilidade do agente, isto é, possibilidade de conhecer e observar referido dever (ALVIM, Agostinho. Da inexecução..., p. 238-248).

242 “Para nos inteirarmos da noção de culpa, cumpre partir da concepção do fato violador de uma obrigação (dever) preexistente. Êsse fato constitui o ato ilícito, de que é substratum da culpa. Esta o qualifica. A culpa, genericamente entendida, é, pois, fundo animador ao ato ilícito, da injúria, ofensa ou má conduta imputável. Nessa figura encontram-se dois elementos: o objetivo, expressado na iliceidade, e o subjetivo, do mau procedimento imputável” (DIAS, Aguiar. Da responsabilidade civil, t. I, p. 135).

243 O autor reconhece a dificuldade de conceituar a culpa, arrolando doutrina francesa, italiana e alemã sobre o tema. Ao final, conclui que a culpa é violação proposital de um dever jurídico (dolo), ou violação de um dever não proposital, mas que o agente poderia conhecer (culpa sem sentido estrito) (RIZZARDO, Arnaldo. Responsabilidade civil, p. 1-3).

244 “Culpa é a violação de uma norma anterior. [...]. Na apreciação da culpa, deve-se verificar o comportamento do agente e a previsibilidade do evento danoso, atendendo-se a um critério de observância ou não do dever de cuidado que todas as pessoas devem se pautar para realizarem atos jurídicos não prejudiciais aos interesses alheios” (LISBOA, Roberto Senise. Manual..., p. 318).

245 “A culpa consiste na violação de um dever que o agente podia conhecer e observar. Seus pressupostos são um dever violado (elemento objetivo) e a culpabilidade ou imputabilidade do agente (elemento subjetivo). Esta, por sua vez, desdobra-se em dois elementos: a) possibilidade para o agente, de conhecer o dever (discernimento); b) possibilidade de observá-lo (previsibilidade e evitabilidade do ato ilícito)” (AMARAL, Francisco. Direito civil..., p. 555).

246 “Culpa é o ‘termo geral com que se designa o elemento subjetivo da injúria em Direito Civil’. Toda violação imputável de um dever jurídico, intencional ou não, e comportamento culposo” (GOMES, Orlando. Introdução..., p. 489).

247 “Agir com culpa significa atuar o agente em termos de, pessoalmente, merecer a censura ou reprovação do direito. E o agente só pode ser pessoalmente censurado, ou reprovado na sua conduta, quando, em face das circunstâncias concretas da situação, caiba a afirmação de que ele podia e devia ter agido de outro modo” (GONÇALVES, Carlos Roberto. Curso..., v. 4, p. 295).

248 “[...] é possível formular o conceito de culpa nos seguintes termos: erro de conduta, imputável ao agente, consistente em não adotar o cuidado que teria sido adotado pelo ser humano prudente nas circunstâncias do caso concreto” (CALIXTO, Marcelo Junqueira. A culpa..., p. 31).

249 “Culpa é um êrro de conduta, moralmente imputável ao agente que não seria cometido por uma pessoa avisada, em iguais circunstâncias de fato” (LIMA, Alvino Culpa e risco, p. 76).

250 “Pode-se afirmar que a culpa consiste em um erro de conduta, com quebra de um dever que o agente podia conhecer e observar, segundo padrões de comportamento médio. É um desvio da normalidade no agir ou abster-se, do modelo ideal (standard) de conduta. A concepção denominada normativa da culpa entende que o erro de conduta, na ausência de norma legal, ou contratual específica, deriva do neminem laedere, do princípio geral de direito que manda respeitar as pessoas e os bens” (LOUREIRO, Francisco Eduardo. Ato ilícito, p. 724-725).

251 “[…] pode-se conceituar a culpa como conduta voluntária contrária ao dever de cuidado imposto pelo Direito, com a produção de um evento danoso involuntário, porém previsto ou previsível” (CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa..., p. 35).

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Anderson Schreiber,252 Caitlin Sampaio Mulholland,253 Maria Helena Diniz,254 entre

milhares de outros autores, nacionais e estrangeiros, deram sua contribuição.

Das lições transcritas conclui-se, de plano, que o direito positivo brasileiro não

conceituou a culpa, expondo apenas suas formas de manifestação, quais sejam

negligência, imprudência e imperícia (culpa em sentido estrito). Conclui-se, ainda,

que a culpa em sentido amplo abrange também o dolo, isto é, a vontade deliberada

de violar o ordenamento jurídico e lesar interesse alheio, que não guarda qualquer

relação com aquele dolo que é vício do negócio jurídico (artigos 145 a 150 do

Código Civil). De resto, restam algumas divergências.

Em linhas gerais, vê-se que a doutrina tem dois posicionamentos básicos:

para alguns, deve ser avaliado não somente o padrão abstrato de comportamento,

mas também o íntimo do agente, a consciência do autor do dano. Em outros termos,

deve-se perscrutar se ele previu ou poderia prever o resultado danoso.255 Para uma

252 “A apreciação em abstrato do comportamento do agente, imune aos aspectos anímicos do sujeito,

justifica a expressão culpa objetiva, sem confundi-la com a responsabilidade objetiva, que prescinde da culpa. Para evitar confusões, contudo, parte da doutrina passou a reservar a tal concepção a denominação de culpa normativa, por fundar-se em um juízo normativo entre a conduta concreta do sujeito e o modelo abstrato de comportamento’’ (SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas..., p. 35).

253 A autora debate se a culpa deve ser analisada de maneira abstrata, ou seja, segundo standards objetivos de comportamento, ou de acordo com o caso concreto, considerando-se o nível de conhecimento do autor do dano e sua conduta específica. Ela conclui que, por um imperativo de não deixar vítimas de dano descobertas, a noção de culpa objetivou-se, de modo que seu aspecto subjetivo (imputabilidade e culpabilidade) perdeu terreno para o objetivo, vigorando, pois, uma noção normativa de culpa. “A culpa é assim o desvio de um padrão esperado de conduta de alguém que age de boa-fé e diligentemente” (MULHOLLAND, Caitlin Sampaio. A responsabilidade civil..., p. 38-56).

254 “René Savatier, de modo lapidar, define-a como a inexecução de um dever que o agente podia conhecer e observar. Pressupõe, portanto, um dever violado (elemento objetivo) e a imputabilidade do agente (elemento subjetivo)” (DINIZ, Maria Helena. Curso..., p. 59).

255 “O primeiro grupo é constituído por definições que, de certo modo, inspiram-se em uma concepção moral de culpabilidade. O ato danoso deve ser imputado a seu autor. Assim, mister se faz não só que haja ele violado uma regra de conduta, mas que, agindo dentro de seu livre-arbítrio, tenha o agente tido a possibilidade de prever, de agir diferentemente, impedindo, se lhe

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segunda corrente, é irrelevante tal investigação. Aquela posição é chamada por

Alvino Lima de culpa in concreto, enquanto a última, de culpa in abstracto.256

Para aqueles que focalizam a culpa dentro do plano do agente, é fundamental

o conceito de imputabilidade, ou seja, a capacidade de ser punido, de entender o

caráter ilícito do fato. A culpa seria, então, desdobrada em dois elementos: o

objetivo, que é a violação de um dever geral de cuidado, e um subjetivo, qual seja a

imputabilidade, isto é, a possibilidade de essa violação ser conectada ao autor. Essa

estrutura da culpa é coincidente com sua noção tradicional, isto é, psicológica,

vinculada a um fundo moral, consoante se demonstrou no item 1.3.3.

Para outros, essa visão de culpa não condiz com o direito civil hodierno, com

um sistema constitucional baseado na solidariedade, haja vista que a necessidade

de perscrutar o plano subjetivo do agente implica a ausência de ressarcimento de

diversos tipos de danos.257 Dizem, ademais, que o requisito da imputabilidade foi

gradativamente perdendo importância dentro do direito civil, tanto é assim que os

mecanismos de responsabilização indireta acabam por responsabilizar alguém pelo

aprouvesse, o evento danoso” (RODRIGUES, Silvio. Direito civil: responsabilidade civil. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. v. 4, p. 145).

256 LIMA, Alvino. Culpa e risco, p. 63. 257 “A apreciação in concreto da culpa estaria de acordo com o princípio ético-jurídico da

responsabilidade subjetiva, no que este tem de conteúdo moral (sanção justa do agente), mas seria incompatível com as necessidades sociais, que exigem indenização justa dos lesados: é legítimo que cada pessoa espere que as outras se comportem de harmonia com os padrões conhecidos de perícia, prudência e diligência. Por isso, sempre se privilegiou a apreciação in abstracto, desde a Roma antiga, que nos legou a modelo, ainda hoje válido, do bonus paterfamílias. E tal como em Roma ‘bom pai de família’ já apontava para um modelo abstrato de bom cidadão, atualmente a apreciação in abstracto da culpa conduz, no âmbito da culpa profissional, ao modelo do bom profissional – e até do bom especialista, quando ele assim se fizer considerar” (NORONHA, Fernando. Responsabilidade civil..., p. 165). Ainda: “Podemos considerar que o conceito normativo de culpa permite um alargamento do âmbito da responsabilidade civil, com uma mais diferenciada atenção pelos valores em presença” (MENEZES DE CORDEIRO, António. Tratado..., p. 469).

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dano (CC, artigo 932),258 sem contar, ainda, a responsabilização do incapaz (artigo

92).259 Responsabilizar diretamente um incapaz, ou seja, imputar conduta a alguém

que, em tese, é inimputável seria prova cabal da opção do sistema em favor da

vítima, da reparação do dano, da solidariedade, em menoscabo da feição moralista

e individualista da responsabilidade civil. Não importaria, assim, o plano do sujeito, o

fato de ele não poder prever o dano, ou de determinar-se de acordo com a previsão:

importaria, sim, que houve prejuízo, de modo que o sistema busca uma forma de

repará-lo.260

A tendência atual é de analisar a culpa in abstracto, ou seja, não a partir do

plano do agente, mas com parâmetro no comportamento que era esperado para o

258 “Art. 932. São também responsáveis pela reparação civil: I – os pais, pelos filhos menores que

estiverem sob sua autoridade e em sua companhia; II – o tutor e o curador, pelos pupilos e curatelados, que se acharem nas mesmas condições; III – o empregador ou comitente, por seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele; IV – os donos de hotéis, hospedarias, casas ou estabelecimentos onde se albergue por dinheiro, mesmo para fins de educação, pelos seus hóspedes, moradores e educandos; V – os que gratuitamente houverem participado nos produtos do crime, até a concorrente quantia.”

259 “Art. 928. O incapaz responde pelos prejuízos que causar, se as pessoas por ele responsáveis não tiverem obrigação de fazê-lo ou não dispuserem de meios suficientes. Parágrafo único. A indenização prevista neste artigo, que deverá ser equitativa, não terá lugar se privar do necessário o incapaz ou as pessoas que dele dependerem.”

260 Em artigo escrito em 1987, Mário Moacyr Porto já defendia a supressão da noção de imputabilidade para verificação da culpa, que deveria ser analisada in abstracto, não de acordo com as vicissitudes subjetivas do causador do dano. “Um capítulo da problemática da responsabilidade civil que está a exigir corajosa revisão é o que respeita à imputabilidade, isto é, a capacidade de discernimento, a aptidão psíquica de distinguir o bem do mal, elemento considerado, entre nós, imprescindível à caracterização da culpa e, consequentemente, do dever de indenizar. [...]. Pelo exposto, parece-nos satisfatória a definição de culpa que nos dão Mazeaud, Mazeaud e Tunc: ‘Há culpa quando um erro de conduta não teria sido cometido por uma pessoa avisada (prudente e diligente) colocadas nas mesmas circunstâncias externas do autor do dano’. Resulta daí que a conduta do agente deverá ser apreciada in abstracto, em face das circunstâncias externas, objetivas, e não em conformidade com sua individualidade interna, subjetiva. Se um dano é objetivamente ilícito, é ressarcível, pouco importando que o agente seja inimputável. A culpa – nunca é demais repetir – é noção social, pois o objetivo não é descobrir um culpado, mas assegurar a reparação de um prejuízo” (O ocaso da culpa como fundamento da responsabilidade civil. In: NERY JR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade (Coord.). Doutrinas essenciais: responsabilidade civil. São Paulo: RT, 2010. v. 1, p. 501).

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caso.261 Não há somente um padrão esperado (bonus paterfamilias), mas sim

diversos padrões, a depender da conduta do caso concreto, naquilo que se designou

fragmentação dos modelos de conduta.

De qualquer modo, não se pode perder de vista que a culpa é um parâmetro

individual de análise, isto é, de atos humanos, sob pena de desvirtuamento de seu

próprio conceito.262 A exigência da previsibilidade, ainda que objetiva, e também de

um erro de conduta, denota que a culpa se vincula à vontade, embora de maneira

menos intensa que em sua formulação inicial.

Conforme foi dito no início deste item, o artigo 186 do Código Civil faz

referência a duas formas de manifestação da culpa: negligência e imprudência. O

artigo 18, II,263 do Código Penal também faz menção à imperícia, modalidade de

manifestação da culpa também muito presente na doutrina de direito civil. A

261 “Para se verificar se existiu, ou não, erro de conduta, e portanto culpa, por parte do agente

causador do dano, mister se faz comparar o seu comportamento com aquele que seria normal e correntio em um homem médio, fixado como padrão. Se de tal comparação resultar que o dano derivou de uma imprudência, imperícia ou negligência do autor do dano, nos quais não incorreria o homem padrão, criado in abstracto pelo julgador, caracteriza-se a culpa, ou seja, o erro de conduta” (RODRIGUES, Silvio. Direito civil..., p. 146).

262 Para Marcos Jorge Catalan, a identificação da culpa com a violação de um dever abstrato, ou seja, a culpa objetiva ou normativa independentemente de qualquer vínculo com a vontade, acabou por vincular sua noção à de antijuridicidade, uma vez que ela passou a ser a violação de um dever jurídico preexistente, a não observância de uma regra objetiva de conduta, o descumprimento de um padrão abstrato que é devido. Todo o caráter subjetivo próprio do conceito de culpa, portanto, esvai-se. Para o autor, essa releitura acaba por aproximar ou, até mesmo, fundir o sistema subjetivista de atribuição de responsabilidade ao sistema objetivista, de modo que basta a não apresentação de prestação para a configuração da responsabilidade. Esse processo, na verdade, levaria à morte da culpa enquanto elemento de aferição de responsabilidade civil contratual. “Curioso é que parece passar despercebido aos autores que, ao confundirem – ou fundirem – a culpa com a antijuridicidade, desaparece por completo sua utilidade. Se o Direito é uma ciência prescritiva – e não meramente descritiva –, é inegável que os comportamentos que destoem de seus comandos hão de ser havidos como antijurídicos, embora não sejam necessariamente culposos. Ao mesmo tempo em que fundem as noções de culpa e de antijuridicidade – equiparando aquela à violação de um dever de conduta –, brindam à morte da culpa” (A morte..., p. 183).

263 “Art. 18. Diz-se o crime: I – doloso (omissis); II – culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia.”

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imprudência é conduta irrefletida, apressada, é fazer algo que não deveria ter sido

feito.264

Na imprudência, o agente ainda age descuidadamente, sem as cautelas necessárias, mas agora porque, seja por imprevidência, seja por excesso se otimismo, seja por razões outras, está convencido de que domina a situação e que não vai afetar direitos alheios.265

A imperícia, por sua vez, revela-se em atividades que demandam

conhecimentos técnicos ou especiais habilidades. É imperito, por exemplo, aquele

que constrói uma casa, vindo aquela a ruir.

No que tange à negligência,266 por se relacionar com o tema da omissão, ela

será objeto de exposição em item à parte.

1.4.1.1 Negligência e omissão

A negligência, com perdão da redundância, é muitas vezes negligenciada em

sede doutrinária. Com efeito, diz-se habitualmente simplesmente que se trata de

264 “Consiste a imprudência na precipitação, no procedimento inconsiderado, sem cautela, em

contradição com as normas do procedimento sensato. É a afoiteza no agir, o desprezo das cautelas que devemos tomar em nossos atos” (AGUIAR DIAS, José de. Da responsabilidade civil, t. I, p. 152). Ainda: LOUREIRO, Francisco Eduardo. Ato ilícito, p. 726; NADER, Paulo. Curso..., p. 98; GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro..., v. 4, p. 298; RIZZARDO, Arnaldo. Responsabilidade civil, p. 4; CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa..., p. 37.

265 NORONHA, Fernando. Responsabilidade civil…, p. 163. 266 José de Oliveira Ascensão utiliza terminologia distinta. A contraposição feita pelo autor português

é entre dolo e negligência como modalidades de culpa (em sentido amplo). A negligência seria, então, sinônimo de culpa em sentido estrito. “Há dolo quando a prática da conduta incorreta é o objetivo da ação. [...]. A negligência é uma forma mais atenuada. Nela o sujeito não prossegue aquele resultado, mas poderia tê-lo evitado com uma conduta finalisticamente mais ajustada” (Direito civil..., v. 2, p. 23).

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uma omissão, de uma falta de cuidado.267 Algumas definições são tão genéricas que

fica difícil para o leitor diferenciar a negligência das demais modalidades de culpa.268

É muito comum fazer uma contraposição entre a imprudência e a negligência:

enquanto aquela é uma ação, a última é uma omissão. O tema, todavia, é um pouco

mais complexo do que parece, merecendo, pois, melhor detalhamento.

Em primeiro lugar, não se pode confundir negligência com omissão: a

primeira é uma forma da qual a culpa pode se revestir, já a segunda é uma

modalidade de conduta humana, a partir da não realização de dever de agir

esperado. Dizer simplesmente que a negligência é uma omissão é errado porque

esta, conforme já foi visto, tem que ser analisada dentro do parâmetro conduta-

-evento, ou seja, a ação esperada normativamente e o resultado danoso, de modo a

imputar responsabilidade para o omitente. A questão, então, cinge-se ao nexo de

imputação (causalidade) e à conduta, elementos objetivos, não tendo relação com a

culpa, elemento subjetivo.

267 “Negligência é omissão daquilo que razoavelmente se faz, ajustadas as condições emergentes às

considerações que regem a conduta normal dos negócios humanos. É a inobservância das normas que nos ordenam operar com atenção, capacidade, solicitude e discernimento” (AGUIAR DIAS, José de. Da responsabilidade civil, t. I, p. 152); “A negligência consiste em uma conduta omissiva: não tomar as precauções necessárias, exigidas pela natureza da obrigação e pelas circunstâncias, ao praticar uma ação” (GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro..., v. 4, p. 299); “A culpa stricto sensu, também denominada quase delitual, se manifesta por negligência, imprudência ou imperícia. Por negligência, quando a atitude é de menoscabo, de incúria, de omissão” (NADER, Paulo. Curso..., p. 98); “[...] é a falta de atenção e ausência de reflexão necessária, uma espécie de preguiça psíquica, esquecimento das regras de proceder, em virtude da qual o agente deixa de prever o resultado que podia e devia ser previsto. Via de regra se traduz na omissão de uma atividade que teria evitado o evento danoso” (LOUREIRO, Francisco Eduardo. Ato ilícito, p. 726).

268 “Negligência é a falta de diligência na prática de um ato jurídico, é toda falta de cuidados normais, que se esperam das pessoas” (AZEVEDO, Álvaro Villaça. Conceito de ato ilícito e abuso de direito. In: RODRIGUES JR., Otavio Luiz; MAMEDE, Gladston; VITAL DA ROCHA, Maria (Org.). Responsabilidade civil contemporânea. São Paulo: Atlas, 2011. p. 65). Na imprudência e na imperícia, por acaso, também não há “falta de cuidado”? A definição acaba por se revelar ligeiramente confusa.

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Em sede de responsabilidade extracontratual, a negligência é encontrada na

“omissão na ação”, ou seja, quando há conduta comissiva, criadora de uma situação

propiciatória de dano que deveria ter sido sobrestada pelo autor, que acaba por

negligenciá-los.269 Como visto, para Giuseppe Cricenti tal fenômeno sequer pode ser

considerado responsabilidade por omissão, à medida que o risco foi criado,

comissivamente, pela pessoa que acaba por se omitir no impedimento da

concretização desse risco em um dano. Ainda que se discorde do autor italiano, de

modo a tratar o dever de ingerência (item 1.1.4.4) como modalidade de

responsabilidade por omissão, é certo que a omissão não se reduz à negligência,

tendo uma fenomenologia muito mais ampla. Ainda que se considere a negligência

um tipo de omissão, nem toda omissão é negligência.

O conceito de negligência é um conceito aberto e, portanto, permite, em relação a uma mesma obrigação de conduta, substituir novas obrigações cautelares àquelas precedentes, e não apenas agregar outras. Por outro lado, o aumento das hipóteses (ou ocasiões) de dano, na sociedade moderna, impôs maiores deveres de atenção no cumprimento da atividade que, em tempos passados, eram praticamente livres de qualquer necessidade de cautela (tradução nossa).270

Ademais, em sede de responsabilidade subjetiva, para haver

responsabilidade civil a situação propiciatória precisaria ser criada culposamente, ou

seja, descuidadamente, imprudentemente, ao passo que na responsabilidade

objetiva sua mera criação faria emergir a responsabilização do autor do dano.

269 Cf. CALIXTO, Marcelo Junqueira. A culpa..., p. 86-88. 270 “Il concetto di negligenza è um concetto aperto, e dunque consente, rispetto ad um medesimo

obbligo di condutta, di sostituire nouvi obblighi cautelari a quelli precedenti, non che di aggiungerne di altri. D’altro canto l’aumento delle occasioni di danno, nelle società moderne, há imposto maggiori doveri di attenzione nel compimento di attivitàche, in tempi passati, erano praticamente libere da ogni necessita di cautela” (CRICENTI, Giuseppe. Il problema..., p. 73).

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Perceba-se, pois, que em ambos os casos há omissão como conduta (risco

anteriormente criado), mas somente no primeiro haveria negligência (culpa).

Na conduta omissiva, se a responsabilidade for subjetiva, a avaliação da

culpa, na modalidade negligência, é feita antecedentemente à omissão danosa em

si. Avalia-se se todos os cuidados possíveis foram efetivamente tomados. Se a

responsabilidade for objetiva, a análise sobre esses cuidados antecedentes será

desnecessária, devendo ser focalizado somente o dever de agir na omissão dentro

do contexto conduta-evento (conforme visto no item 1.1.4.1), que poderá ser

afastado se presente alguma excludente de causalidade (imputação – Capítulo 2,

item 2.6.2).

Assim, omissão é uma coisa, negligência é outra. Aquela é modalidade de

conduta humana, consistente na abstenção de uma ação esperada a partir de

previsão normativa. Sua constatação é puramente objetiva, devendo ser cotejada a

fonte do dever de agir. A negligência, por sua vez, é modalidade de culpa. Em sede

de responsabilidade civil extracontratual, é negligente aquele que não toma as

cautelas necessárias para impedir a concretização de um dano a partir de uma

situação propiciatória anteriormente criada.

1.4.2 Conclusão

Neste item foi visto que a ideia de culpa relacionada à vontade é uma criação

recente, precisamente do Estado burguês erigido no período posterior à revolução

francesa. O sistema assim concebido baseia-se na liberdade e na propriedade, de

modo que os danos só poderiam ser indenizados se a liberdade fosse utilizada

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erroneamente, isto é, culposamente. Por isso a culpa, inicialmente, era intimamente

ligada à vontade, com forte cunho moral, daí ser eminentemente psicológica,

constituindo, assim, um potentíssimo filtro para a reparação do dano dentro da

responsabilidade civil.

Com o avanço da revolução industrial e a mudança nos processos de

fabricação, a culpa ligada à vontade passou a ser um óbice quase intransponível

para a reparação de danos, à medida que eles passaram a decorrer do

funcionamento de máquinas. Nesse contexto, criou-se a responsabilidade objetiva,

baseada no risco da atividade, não na culpa. Concomitantemente, o elemento

psicológico da culpa mitigou-se, ganhando terreno a culpa analisada em abstrato, a

culpa normativa. O critério do homem médio também ficou obsoleto, emergindo a

tendência da fragmentação dos modelos de conduta.

No que tange à estrutura, a culpa tradicionalmente é vinculada às ideias de

negligência, imprudência e imperícia. A doutrina divide-se na avaliação da culpa, se

deve ser feita em concreto ou em abstrato. No primeiro caso, prevaleceria a

previsibilidade subjetiva do evento danoso, e no segundo, a objetiva, de modo a se

fixarem modelos abstratos de conduta a serem seguidos. Em um caso ou em outro,

a culpa é essencialmente um padrão individual de análise de conduta, à medida que

ligado à vontade.

Sobre a tradicional trinca negligência-imprudência-imperícia, a doutrina muitas

vezes não dá conceitos precisos, existindo verdadeira zona de penumbra sobre

essas noções na dogmática. A negligência caracteriza-se por ser uma concretização

de uma situação propiciatória do dano criada pelo responsável, de modo que se

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chega até mesmo a dizer que nem conduta omissiva seria, mas sim uma conduta

comissiva, ante a situação anteriormente criada. A omissão é uma realidade

objetivada, devendo ser aferida a partir do dever de agir normativamente imputado,

ao passo que a negligência requer uma aferição subjetiva, analisando-se se o

resultado danoso superveniente era previsível quando da criação da situação

propiciatória.

Estudados neste primeiro capítulo os elementos fundamentais da

responsabilidade civil por omissão, o próximo passo é entender como a dogmática

tem tratado do assunto no âmbito da responsabilidade civil do Estado.

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CAPÍTULO 2

IMPUTAÇÃO DE DANOS NA OMISSÃO ESTATAL

2.1 Introdução

O primeiro capítulo teve a preocupação de dar contornos gerais sobre a

responsabilidade civil por omissão, focando os conceitos de conduta omissiva, nexo

de imputação (causalidade) e culpa. Este capítulo entrará no tema de

responsabilidade civil do Estado, notadamente em sua modalidade omissiva,

apreciando a controvérsia acerca da natureza dessa responsabilidade.

A expressão “Responsabilidade Civil da Administração Pública” não é a mais

adequada: a uma, pelo fato de essa não ter personalidade jurídica dentro do direito

brasileiro; a duas, porque o ato que enseja responsabilização pode vir de qualquer

dos poderes da República, não somente do Executivo, e também de todos os entes

da Federação (União, Estados e Municípios), como também dos entes da

Administração Indireta, como autarquias e fundações. Aliás, pela redação do artigo

37, § 6.º, da Constituição Federal, até mesmo as entidades sob regime jurídico de

direito privado que prestem serviços públicos têm o regime de responsabilidade

objetiva.271 Prefere-se, portanto, o termo responsabilidade civil do Estado.

Os autores, em geral, apontam quatro fases da responsabilidade civil do

Estado: irresponsabilidade, culpa subjetiva, culpa anônima e responsabilidade

271 Cf. BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Responsabilidade civil, p. 238.

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objetiva.272 Em que pese a grande maioria dos manuais de direito administrativo

apontar o arrêt Blanco, de 1873, como marco mundial da fase de responsabilidade

estatal, Jorge Luis Salomoni273 demonstra que, na Argentina, a Lei 224 de 1859 já

previa a responsabilidade estatal por ações ou omissões de seus agentes. Nesse

sentido, o direito positivo argentino foi pioneiro, não se encontrando, à época, norma

semelhante no direito comparado. No que concerne à realidade brasileira, Maria

Sylvia Zanella Di Pietro274 e Celso Antônio Bandeira de Mello275 afirmam que nunca

houve irresponsabilidade completa, pois mesmo sem existirem normas legais

expressas, os tribunais e a doutrina sempre repudiaram tal entendimento.

As Constituições de 1824 e de 1891 traziam a responsabilidade pessoal dos

funcionários públicos por atos ilícitos por ele praticados, sem menção à

responsabilidade estatal. Esses artigos, contudo, “jamais foram considerados como

excludentes da responsabilidade do Estado e consagradores apenas de

responsabilidade pessoal do agente. Pelo contrário, entendia-se haver solidariedade

do Estado em relação aos atos de seus agentes”.276

O Código Civil de 1916, em seu artigo 15, positivou a responsabilidade civil do

Estado adotando uma concepção civilista, fixando desse modo a responsabilidade

subjetiva e equiparando as figuras do funcionário perante o Estado com a do

empregado perante o empregador. As Constituições Federais de 1934 e 1937 não

272 Cf. MONTEIRO FILHO, Carlos Edson do Rêgo. Problemas da responsabilidade civil do Estado.

In: FREITAS, Juarez (Coord.). Responsabilidade civil do Estado. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 41 e ss.

273 SALOMONI, Jorge Luis. La responsabilidad del Estado por omisión, p. 108 e ss. 274 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 25. ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 703 e

ss. 275 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso..., p. 991. 276 Idem, ibidem, p. 991.

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alteraram esse panorama, adotando a solidariedade do Estado relativamente ao

funcionário que praticasse ato danoso com culpa. O sistema, pois, ainda era

subjetivo.

A Constituição de 1946, todavia, alterou o sistema de responsabilidade ao

instituir normativamente a chamada responsabilidade civil objetiva do Estado.

Dispunha seu artigo 194 que bastava que o dano fosse causado pelo funcionário

para emergir a responsabilidade estatal, sem qualquer menção à presença de culpa.

O parágrafo único do dispositivo garantiu, ainda, o direito de regresso em face do

funcionário. A Carta de 1967, bem como a Emenda Constitucional 01, de 1969,

mantiveram dispositivos no mesmo sentido.

A Constituição Federal de 1988 previu a responsabilidade do Estado em seu

artigo 37, § 6.º, nos seguintes termos:

As pessoas jurídicas de Direito Público e as de Direito Privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

O Código Civil de 2002 também tratou do tema:

Art. 43. As pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis por atos de seus agentes que nessa qualidade causem danos a terceiros, ressalvado o direito regressivo contra causadores do dano, se houver, por parte deles, culpa ou dolo.

Note-se que o Código Civil omitiu-se em relação às pessoas jurídicas de

direito privado que prestam serviço público, às quais pelo texto constitucional devem

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se submeter ao mesmo regime das pessoas jurídicas de direito público. De resto, o

texto não inovou nada em relação à previsão constitucional.

Como é cediço, nosso sistema constitucional traça a responsabilidade

objetiva do Estado, isto é, independentemente de culpa, a partir da ideia de que o

risco da atividade estatal deve ser suportado por toda a sociedade, não pela vítima

de dano decorrente dessa atividade. A objetivação da responsabilidade do Estado

insere-se no fenômeno descrito no item 1.3.3 do Capítulo 1 desta dissertação.

Tendo em vista que a Constituição Federal prescreve que a responsabilidade

civil objetiva das pessoas jurídicas de direito privado emerge somente quando elas

prestam serviço público, tem-se entendido que, quando as estatais com

personalidade jurídica de direito privado (empresas públicas e sociedades de

economia mista) desempenham atividade econômica, com fulcro no artigo 173277 da

Constituição Federal, seu regime de responsabilidade é o mesmo do direito

privado.278

A Constituição Federal adotou a teoria do risco administrativo,279 imputando a

responsabilidade objetiva ao Estado para os danos causados por seus agentes, que

277 “Artigo 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade

econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.”

278 Cf. JUSTEN FILHO, Marçal. Curso..., p. 1222-1223; ZIMMER JÚNIOR, Aloísio. Curso de direito administrativo. 3. ed. São Paulo: Método, 2009. p. 364-365.

279 “O exame desse dispositivo (art. 37, § 6.º, CF) revela, em primeiro lugar, que o Estado só responde objetivamente pelos danos que os seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros. A expressão seus agentes, nessa qualidade está a evidenciar que a Constituição adotou expressamente a teoria do risco administrativo como fundamento da responsabilidade da Administração Pública, e não a teoria do risco integral, porquanto condicionou a responsabilidade objetiva do Poder Público ao dano decorrente de sua atividade administrativa, isto é, aos casos em que houver relação de causa e efeito entre a atuação do agente público e o dano. Sem essa relação de causalidade, como já ficou assentado, não há como e nem por que responsabilizá-lo” (CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa..., p. 246-247).

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deverão responder à pessoa jurídica a que estiverem vinculados, via regresso, caso

ajam com culpa. Cunhada por Léon Duguit, ensina tal teoria que a atividade estatal

apresenta risco a todos os que vivem sob a égide do Estado, e que também é feita

em benefício de todos, de modo que eventuais danos sofridos pelo particular têm de

ser por todos indenizados. É a consagração do princípio da igualdade dos indivíduos

em relação aos encargos públicos.280

O texto da Lei Magna exige que, para a responsabilização da pessoa

jurídica de direito público, o agente público tenha agido na qualidade de agente

público. Sobre essa expressão do Texto Maior a doutrina se divide. De um lado,

faz-se uma interpretação restritiva, exigindo-se que o agente esteja em efetivo

exercício de suas funções; de outro lado, faz-se uma interpretação ampliativa

segundo a qual não é necessário o efetivo exercício das funções, bastando que a

conduta tenha sido na qualidade de agente público, de modo que atos praticados

em excesso de poder também ensejariam a responsabilidade estatal.281 A

segunda posição é majoritária e mais condizente com o espírito da repartição dos

encargos sociais. Nesse sentido, ainda que não estivesse no exercício das

funções, se o autor do dano se valeu da qualidade de agente público para a

280 “Essa teoria, como se vê, surge como expressão concreta do princípio da igualdade dos

indivíduos diante dos encargos públicos. É a forma democrática de repartir os ônus ou encargos sociais por todos aqueles que são beneficiados pela atividade da administração pública. Toda lesão sofrida pelo particular deve ser ressarcida, independentemente de culpa do agente público que a causou. O que se tem que verificar é, apenas, a relação de causalidade entre a ação administrativa e o dano sofrido pelo administrado” (Idem, ibidem, p. 243). Ainda: “[...] constitui também fundamento da responsabilidade objetiva do Estado o princípio da repartição dos encargos. O Estado, ao ser condenado a pagar os prejuízos do lesado, não seria o sujeito pagador direto; os valores indenizatórios seriam resultantes da contribuição feita por cada um dos demais integrantes da sociedade, a qual, em última análise, é a beneficiária dos poderes e das prerrogativas estatais” (CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual..., p. 547).

281 Cf. NOHARA, Irene Patrícia. Direito administrativo, p. 778-779.

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prática da conduta, a pessoa jurídica de direito público respectiva deve ser

responsabilizada.282

Irene Patrícia Nohara283 traz um exemplo interessante que ilustra bem essa

segunda posição. Trata-se do caso de um delegado que “furou” fila em uma agência

bancária, e ato contínuo prendeu um aposentado que protestou contra sua conduta,

alegando desacato. A vítima ajuizou – e ganhou – ação indenizatória contra o

Estado do Maranhão, que alegou que o agente público não estava em exercício das

funções. O argumento foi afastado, pois não é preciso que o autor do dano esteja

em efetivo exercício das funções, bastando que tenha se utilizado de sua qualidade

de agente público para produzir o dano.284 O Supremo Tribunal Federal também já

decidiu que o Estado responde por crime praticado por militar em período de folga

usando arma da corporação.285

É comum a distinção entre teoria do risco administrativo e teoria do risco

integral.286 A segunda não admite qualquer tipo de excludente, ao passo que a

primeira admite as excludentes comuns da causalidade, como a força maior, a culpa

exclusiva da vítima e a culpa de terceiro. Essa distinção não é propriamente

ontológica, uma vez que a responsabilidade é a mesma: objetiva derivada do risco.

282 “Ainda que o agente estatal atue fora de suas funções, mas a pretexto de exercê-las, o fato é tido

como administrativo, no mínimo pela má escolha do agente (culpa in eligendo) ou pela má fiscalização de sua conduta (culpa in vigilando)” (CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual..., p. 554).

283 NOHARA, Patrícia. Direito administrativo, p. 779. 284 REsp 782834/MA, 2.ª T., Rel. Min. Eliana Calmon, DJ 11.04.2007. 285 RE 418.023-AgR, Rel. Min. Eros Grau, j. 09.09.2008, 2.ª T., DJ 17.10.2008. 286 “No risco integral a responsabilidade sequer depende do nexo causal e ocorre até mesmo quando

a culpa é da própria vítima. Assim, por exemplo, o Estado teria que indenizar o indivíduo que se atirou deliberadamente à frente de uma viatura pública. É evidente que semelhante fundamento não pode ser aplicado à responsabilidade do Estado, só sendo admissível em situações raríssimas e excepcionais” (CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual..., p. 547).

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O fato de admitir ou não a excludente não muda os requisitos e a realidade

ontológica ou conceitual da responsabilidade. Trata-se de mera distinção em relação

aos efeitos de admitir ou não a excludente.287 De qualquer forma, a dicotomia é

operacionalmente útil para distinguir os sistemas que admitem ou não a oposição

das excludentes da causalidade.

2.2 A responsabilidade subjetiva

Neste item, será exposta a corrente doutrinária que defende a tese de que a

responsabilidade do Estado por omissão é subjetiva. Argumenta-se que, enquanto na

responsabilidade comissiva é o Estado quem causa diretamente o dano, na omissiva

não é o Estado que o provoca, pois o processo causal foi desenfreado por agente não

pertencente ao domínio estatal. Nesse sentido, a atividade administrativa não foi

causadora do dano, e sim a atividade alheia à esfera do Estado. Para haver

responsabilidade, então, o Estado deveria agir para impedir que esse nexo causal

inaugurado por pessoa estranha a seus quadros chegasse ao evento danoso. Se não

impediu, foi porque o serviço não funcionou, ou funcionou de maneira tardia ou

inadequada (faute du service). Portanto, na espécie estar-se-ia diante de verdadeira

responsabilidade subjetiva.

Ademais, tendo em vista que a norma constitucional utiliza o verbo “causar”

quando estabelece a responsabilidade objetiva do Estado, para essa corrente a

Constituição somente responsabiliza, de modo objetivo, o Estado em termos

comissivos, não pela omissão, pois nessa hipótese o dano não é propriamente

287 Cf. CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade..., p. 37-38.

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“causado” por agente estatal. É feita, então, uma distinção entre a ação como causa do

dano e a omissão como condição do dano, pois não foi ela que o causou, mas sim uma

conduta de terceiro. Ela agiu somente como um facilitador para o evento danoso.

Argumenta-se, ainda, que, se a responsabilidade civil do Estado por omissão for

objetiva, ele se tornará um segurador universal, pois será obrigado a impedir a

ocorrência de qualquer dano, não importa como tenha funcionado o serviço público.288

Essa teoria foi cunhada por Oswaldo Aranha Bandeira de Mello e ganhou

diversos adeptos na doutrina brasileira. Nesse sentido: Celso Antônio Bandeira de

Mello,289 Rui Stoco,290 Maria Sylvia Zanella Di Pietro,291 Jacintho de Arruda

288 “Diante da onipresença do Estado notadamente social em todos os setores da sociedade, é

sempre possível vislumbrar-se alguma relação estatal, principalmente de natureza omissiva, em quaisquer fatos que ocasionem danos. Se entendido que em razão disso deve responder pelo evento danoso, o Estado será erigido a um segurador universal, assumindo a responsabilidade pelo risco integral (o que não se admite)” (ISHIKAWA, Liliane Kiomi Ito. Responsabilidade do Estado por omissão no fornecimento de medicamentos. In: HIRONAKA, Giselda; FALAVIGNA, Maria Clara Osuna Diaz (Coord.). Ensaios sobre a responsabilidade civil na pós-modernidade. Porto Alegre: Magister, 2007. p. 251).

289 “Quando o dano foi possível em decorrência de uma omissão do Estado (o serviço não funcionou, funcionou tardia ou ineficientemente) é de aplicar-se a teoria da responsabilidade subjetiva. Com efeito, se o Estado não agiu, não pode, logicamente, ser ele autor do dano. E, se não foi autor, só cabe responsabilizá-lo caso esteja obrigado a impedir o dano. Isto é: só faz sentido responsabilizá-lo se descumprir dever legal que lhe impunha obstar ao evento lesivo. Deveras, caso o Poder Público não estivesse obrigado a impedir o acontecimento danoso, faltaria razão para impor-lhe o encargo de suportar patrimonialmente as consequências da lesão. Logo, a responsabilidade estatal por ato omissivo é sempre responsabilidade por comportamento ilícito. E, sendo responsabilidade por ilícito, é necessariamente responsabilidade subjetiva, pois não há conduta ilícita do Estado (embora do particular possa haver) que não seja proveniente de negligência, imprudência ou imperícia (culpa) ou, então, deliberado propósito de violar a norma que o constituía em dada obrigação (dolo). Culpa e dolo são justamente as modalidades de responsabilidade subjetiva. Não bastará, então, para configurar-se a responsabilidade estatal, a simples relação entre ausência do serviço (omissão estatal) e dano sofrido. Com efeito: inexistindo obrigação legal de impedir um certo evento danoso (obrigação, de resto, só cogitável quando haja possibilidade de impedi-lo mediante atuação diligente), seria um verdadeiro absurdo imputar ao Estado a responsabilidade por um dano que não causou, pois isto equivaleria a extraí-lo do nada; significaria pretender instaurá-la prescindindo de qualquer fundamento racional ou jurídico” (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso..., p. 976-977).

290 “Para nós, cabe desde logo adiantar, a obrigação de indenizar do Estado tanto pode decorrer da responsabilidade objetiva (art. 37, § 6.º, da CF/88), como da responsabilidade subjetiva, por força da teoria do ato ilícito, a significar que a omissão do Estado, seja específica de seu preposto, ou decorrente de falta ou falha anônima do serviço, empenha a identificação de culpa, informada pela teoria subjetiva” (STOCO, Rui. Tratado..., p. 997).

291 “Para que incida a responsabilidade decorrente de omissão, tem que haver o dever de agir por parte do Estado e a possibilidade de agir para evitar o dano. A culpa é embutida na ideia

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Câmara,292 Maria Helena Diniz,293 Dinorá Adelaide Musetti Grotti e Cristiana Maria

Melhado Araújo Lima,294 José dos Santos Carvalho Filho,295 Arnaldo Rizzardo,296

de omissão, como exposto brilhantemente por José Cretella Júnior. Não há como falar em responsabilidade objetiva em caso de inércia do agente público que tinha o dever de agir e não agiu, sem que para isso houvesse uma razão aceitável. A teoria aplicável, no caso, é a da culpa do serviço público ou culpa anônima do serviço público, aplicável em qualquer hipótese em que haja mal (sic) funcionamento do serviço, na tríplice forma adotada pelo Direito francês: o serviço não funcionou, funcionou atrasado ou funcionou mal” (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Responsabilidade civil do Estado. In: RODRIGUES JR., Otavio Luiz; MAMEDE, Gladston; VITAL DA ROCHA, Maria (Org.). Responsabilidade civil contemporânea. São Paulo: Atlas, 2011. p. 413).

292 “Quando há imputação de responsabilidade ao Estado por comportamento omissivo está se aplicando uma sanção em virtude de conduta culposa. Isto é, a responsabilidade do Estado por dano causado em virtude de sua inércia só se verifica quando houver culpa. É o descumprimento de um dever jurídico, caracterizado pela inércia estatal, que gera sua responsabilização. Como já se disse, não interessa se esta culpa não pode ser individualizada na figura de um agente. Aplica-se aquela culpa impessoal, atribuível à totalidade do aparato administrativo – a ‘culpa do serviço’, concebida pelos franceses” (CÂMARA, Jacintho de Arruda. A relevância da culpa na responsabilidade extracontratual do Estado. In: GUERRA, Alexandre Dartanhan de Mello Guerra et al. (Coord.). Responsabilidade civil do Estado: desafios contemporâneos. São Paulo: Quartier Latin, 2010. p. 87).

293 Cf. DINIZ, Maria Helena. Curso..., p. 659 e ss. 294 “Realmente, não há como se objetivar uma responsabilidade civil por omissão, na qual inexiste

um ato que possa representar o elemento primordial do nexo de causalidade. Se a omissão do prestador de serviço público fosse objetivamente considerada como fato gerador de responsabilidade civil, o Estado ou seu concessionário seriam uma espécie de seguradores universais dos membros da coletividade, arcando com todos os prejuízos que não conseguissem evitar” (GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti; LIMA, Cristiana Maria Melhado Araújo. Responsabilidade civil do Estado na gestão do serviço portuário. In: GUERRA, Alexandre Dartanhan de Mello Guerra et al. (Coord.). Responsabilidade civil do Estado: desafios contemporâneos. São Paulo: Quartier Latin, 2010. p. 545).

295 “[...] quando a conduta estatal por omissiva, será preciso distinguir se a omissão constitui, ou não, fato gerador da responsabilidade civil do Estado. Nem toda conduta omissiva retrata um desleixo do Estado em cumprir um dever legal; se assim for, não se configurará a responsabilidade estatal. Somente quando o Estado se omitir diante do dever legal de impedir a ocorrência do dano é que será responsável civilmente e obrigado a reparar os prejuízos. A consequência, dessa maneira, reside em que a responsabilidade civil do Estado, no caso de conduta omissiva, só se desenhará quando presentes estiverem os elementos que caracterizam a culpa. A culpa origina-se, na espécie, do descumprimento do dever legal, atribuído ao Poder Público, de impedir a consumação do dano. Resulta, por conseguinte, que, nas omissões estatais, a teoria da responsabilidade objetiva não tem perfeita aplicabilidade, como ocorre nas condutas comissivas” (CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual..., p. 560-561).

296 “Cabe destacar que a responsabilidade, neste campo [omissão], é subjetiva, posto que dependente a omissão de culpa ou dolo. Ciente o agente da necessidade de atuação, e dispondo de serviço estatal organizado, houve um non facere, ou uma atuação deficiente, ou procurou acudir o chamado tardiamente, o que se dá por culpa, no que encontra apoio da jurisprudência” (RIZZARDO, Arnaldo. Responsabilidade civil, p. 371).

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Lúcia Valle Figueiredo,297 Carolina Zancaner Zockun,298 Sonia Sterman299 e Wallace

Paiva Martins Júnior.300

Sérgio Severo vai além, reconhecendo outras hipóteses de aplicação da culpa

na responsabilidade civil do Estado, além das hipóteses de omissão. O autor gaúcho

identifica, na teoria pioneira de Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, o mérito de

apontar para a bidimensionalidade da responsabilidade civil do Estado, que não teria

somente um fator de atribuição objetivo. Todavia, ele entende que a utilização do

standard de funcionamento anormal do serviço pode ser estendida para outras

297 “Deveras, ainda que consagre o texto constitucional a responsabilidade objetiva, não há como se

verificar a adequabilidade da imputação ao Estado na hipótese de omissão, a não ser pela teoria subjetiva. Assim é porque, para se configurar a responsabilidade estatal pelos danos causados, há de se verificar (na hipótese de omissão) se era de se esperar a atuação do Estado. Em outro falar: se o Estado omitiu-se, há de se perquirir se havia o dever de agir. Ou, então, se a ação estatal teria sido defeituosa a ponto de se caracterizar insuficiência da prestação de serviço. Não há como comprovar a omissão do Estado sem antes provar que houve faute de service. É dizer: não ter funcionado o serviço, ter funcionado mal ou tardiamente” (FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de direito administrativo. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 255).

298 “Ora, se a Administração só age adstrita à lei (e apenas quando a lei obriga sua ação), então a omissão do Estado decorrerá, em todas as hipóteses, de uma conduta ilícita. Nestas circunstâncias, portanto, a responsabilidade subjetiva terá natureza jurídica de sanção, o que exige, necessariamente, aferição de dolo e culpa do agente” (ZOCKUN, Carolina Zancaner. Omissão de fiscalização ambiental. In: FREITAS, Juarez (Coord.). Responsabilidade civil do Estado. São Paulo, Malheiros, 2006, p. 80).

299 “É subjetiva a responsabilidade do Estado por movimentos multitudinários, pois há omissão, falha ou falta de um serviço de prestação de segurança por parte do Estado em não refrear a multidão não é causa do dano. Daí a necessidade de se produzir a prova da culpa em decorrência desses atos omissivos do Estado” (STERMAN, Sonia. Responsabilidade do Estado. 2. ed. São Paulo: RT, 2011. p. 129).

300 “Mais adequado (sic) é a afirmação da responsabilidade civil subjetiva do Estado no caso de omissões lesivas, sob pena de transformação do Poder Público em segurador universal. Ela requer o comportamento antijurídico da Administração Pública, pela violação de seu dever jurídico de agir ou pela faute du service, diante de situações previsíveis e concretas. A impossibilidade de estimar como objetiva a responsabilidade civil estatal por omissões não significa irresponsabilidade, mas que aquela somente será afirmada com lastro na teoria subjetiva” (MARTINS JÚNIOR, Wallace Paiva. Responsabilidade extracontratual do Estado. In: DONNINI, Rogério, NERY, Rosa Maria de Andrade (Coord.). Responsabilidade civil: estudos em homenagem ao professor Rui Geraldo Camargo Viana. São Paulo: RT, 2009. p. 569).

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hipóteses de responsabilidade, quais sejam situações em que a ação do Poder

Público se reveste em grau de equivalência àquela do particular.301

Marçal Justen Filho302 filia-se igualmente à corrente subjetivista, mas sob

argumentos completamente diferentes, e não faz qualquer referência à faute du

service para tanto. Essas circunstâncias contribuem para que sua construção

dogmática seja única, distinta daquelas até aqui expostas. Expõe o autor uma

construção de responsabilidade civil do Estado muito interessante. São três os

elementos para caracterizar a responsabilização estatal: o dano moral ou material

sofrido por alguém; uma ação ou omissão antijurídica imputável ao Estado; um nexo

de causalidade entre o dano e a ação ou omissão estatal.

A grande novidade dessa postura dogmática, que a torna especial diante das

demais, é a antijuridicidade da conduta, seja comissiva ou omissiva. Defende o autor

301 “Ainda que se conceba objetivado o fator de atribuição, sob a prevalência da noção de risco

administrativo, é forçoso observar, na doutrina e na jurisprudência, nacional e estrangeira, o papel exercido pelas noções de culpa objetivada sob o prisma publicista, por meio da noção de funcionamento anormal do serviço público. Também não se pode desconhecer que a natureza da relação jurídica, e.g., um acidente de trânsito, pode revelar a necessidade do exame da culpa como expressão do móvel volitivo da ação do causador do dano. Não há relação de incompatibilidade entre as noções, mas de complementaridade. O risco e a isonomia perante os encargos públicos não são fatores absolutos, realidade demonstrada pela confrontação jurisprudencial dos casos relativos à responsabilidade pública, em que fatos de determinadas natureza induzem empiricamente à análise da relação culposa. Essa realidade é bem demonstrada quando se percebem hipóteses em que a natureza da relação jurídica impede qualquer recurso à culpa, ainda que sob o critério objetivado do funcionamento do serviço gestado na esfera pública. É o caso, e.g., da proteção de bens culturais, em que a ação do Poder Público não é uma faculdade, mas um poder-dever, cuja omissão implicaria responsabilidade do agente. Nas hipóteses de intervenções lícitas do Poder Público, a análise da conduta dos agentes é impossível. De outra parte, quando a ação do Poder Público se reveste de grau de equivalência em relação ao particular, inafastável o recurso ao exame da culpa. Por seu turno, em grande parte das ações administrativas o critério de assunção de riscos impõe-se, sem deixarmos de considerar que hipóteses há em que o standard de funcionamento normal do serviço público ganha especial relevo, e.g., no dever de proteção aos alunos em escola pública; em casos em que os riscos da atividade pública são imputáveis à ação do administrado, mesmo o critério de culpa qualificada se impõe, como nos casos de ação policial em ambientes de risco” (SEVERO, Sérgio. Tratado..., p. 577-578).

302 JUSTEN FILHO, Marçal. A responsabilidade do Estado. In: FREITAS, Juarez (Coord.). Responsabilidade civil do Estado. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 229 e ss.; e, do mesmo autor, Curso... p. 1227 e ss.

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que a mera causalidade objetiva não soluciona o problema de imputação de

responsabilidade civil do Estado. É dado o exemplo de um dano causado por um

agente policial em legítima defesa. Sequer os partidários da corrente de pura

responsabilidade objetiva dizem que no caso há alguma indenização a pagar.

Contudo, qual seria o fundamento? A teoria pura e simples da responsabilidade

objetiva não resolve a questão, pois esse ato, em tese, geraria responsabilidade, por

haver conduta, nexo causal e dano. Qual seria, então, o fundamento que permitira

concluir pela ausência de responsabilidade em um caso como esse?

Para Marçal Justen Filho, deve haver um elemento de antijuridicidade

indispensável à responsabilização do Estado, consistente em um específico dever

de diligência que deve ser exigido da atividade estatal. O Estado trabalharia com

uma espécie de padrão de eficiência, abstrato. Se a conduta estatal atingiu o grau

específico de diligência esperado, não haveria ilicitude em sua conduta e, por isso,

não haveria responsabilidade.

Essa construção permitiria, então, o desenvolvimento de uma teoria unitária

de responsabilidade civil por ação e por omissão, rechaçando-se, assim, a teoria

binária que distingue a responsabilidade por comissão como objetiva e a por

omissão como subjetiva. Para o autor, há um elemento subjetivo em todos os casos,

mas subordinado a um regime especial. Na atuação comissiva, o dever de diligência

impõe ao agente a adoção de cautelas muito severas, de modo que, quando há

produção de danos a um terceiro derivados desse tipo de conduta, presume-se o

elemento subjetivo defeituoso. Já na conduta omissiva, o sistema de

responsabilidade dependeria do tipo de omissão, se própria ou imprópria, conforme

será exposto com mais vagar no item 2.6.1 deste Capítulo. Em todos os casos, de

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qualquer forma, o sistema é subjetivo. Um sistema puramente objetivo, que implica a

responsabilidade por atos lícitos, sem qualquer deficiência na prestação estatal,

adviria somente quando há expressa disposição na lei nesse sentido, como no caso

da Lei 10.744/2003, que trata da ocorrência de atentado terrorista (e, acrescente-se,

na Lei de Atividades Nucleares – 6.453/1977).

Enfim, o interessante é notar que, para o autor ora em comento, a

responsabilidade civil do Estado tem um elemento subjetivo, subordinado a um

regime especial, consistente no dever de diligência que deve impulsionar a conduta

estatal, que deverá indenizar somente quando houver violação daquele dever.

Arremata Marçal Justen Filho:

Defende-se a concepção, então, da objetivação do elemento subjetivo, não da sua ausência. A afirmativa da existência da responsabilidade civil objetiva deve ser interpretada em termos. Não há responsabilidade civil objetiva do Estado, mas há presunção de culpabilidade derivada da existência de um dever de diligência especial.303

O interessante do pensamento ora relatado é que ele procura criar um

sistema unidimensional de responsabilidade do Estado – subjetivo –, ainda que diga

tal elemento é objetivado, e, além disso, não se utiliza da teoria da faute du service

para defendê-lo. Sua maior incoerência é pretender a objetivação de um elemento

subjetivo, o que parece uma contradição em termos.

Para todos os demais autores, todavia, há referência à teoria da culpa

anônima como fundamento de uma responsabilidade subjetiva na omissão estatal.

303 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso…, p. 1237.

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Torna-se, pois, imprescindível entender a teoria da faute du service.304 Com efeito,

diz-se que na omissão a causa do dano não foi a ação estatal, tendo em vista o

desdobramento causal inaugurado inter alios. O que ocorre é que o Estado não foi

capaz de impedir esse desdobramento, pois o serviço público não funcionou, ou

funcionou de maneira inadequada ou atrasada. Eis o cerne da teoria em questão.

2.2.1 A faute du service

A teoria da culpa do serviço, da faute du service, da culpa anônima, ou, ainda,

da culpa administrativa, procura desvincular a responsabilidade do Estado da ideia

de culpa do funcionário.305 Não se trata, portanto, da culpa individualizada,

subjacente ao ato de determinado sujeito, e, sim, de culpa abstrata, anônima, isto é,

uma atividade não condizente com um padrão esperado de desempenho do serviço

público.306

304 Interessante observação faz Maria José Rangel de Mesquita, no sentido de não se confundirem

as figuras da faute de service e da faute du service, ambas da doutrina francesa. As duas podem gerar responsabilização da pessoa jurídica de direito público, mas na primeira é possível identificar a culpa do funcionário, ao passo que a segunda “tem lugar sempre que o facto ilícito gerador de um prejuízo na esfera jurídica do particular tenha ocorrido em virtude de um determinado serviço público ter funcionado mal e não como seria legítimo esperar – o facto lesivo que causa danos ao particular é, neste caso, imputável ao próprio serviço que faz parte integrante da Administração, e não a qualquer pessoa individual – titular de órgão, funcionário ou agente – que actue a serviço daquela” (Da responsabilidade civil extracontratual da Administração no ordenamento jurídico-constitucional vigente. In: QUADROS, Fausto de. Responsabilidade civil extracontratual da administração pública. 2. ed.Lisboa: Almedina, 2004. p. 50-51).

305 “O dever de indenizar do Estado decorre da falta do serviço, não já da falta do servidor. Bastará a falha ou o mau funcionamento do serviço público para configurar a responsabilidade do Estado pelos danos daí decorrentes aos administrados. De acordo com essa nova concepção, culpa anônima ou a falta do serviço público, geradora de responsabilidade do Estado, não está necessariamente ligada à ideia de falta de algum agente determinado, sendo dispensável a prova de que funcionários nominalmente especificados tenham incorrido em culpa. Basta que fique constatado um mau agenciador geral, anônimo, impessoal, na defeituosa condução do serviço, à qual o dano possa ser imputado” (CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa..., p. 241).

306 “Há de se esclarecer que a culpa a que nos referimos não se baseia, em regra, na concepção civilista, centrada em elementos volitivos do agente para determinar uma negligência, imperícia ou imprudência, consoante concebida no plano do art. 186 do CC (art. 159 CC/16). A culpa que

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Neste tópico, a doutrina divide-se se, efetivamente, se pode falar em “culpa”

no caso de faute du service, ou seja, se a hipótese seria mesmo de responsabilidade

subjetiva. Para Celso Antônio Bandeira de Mello, trata-se de verdadeira hipótese de

responsabilidade subjetiva, pois não se exigem o mero dano e a relação de

causalidade, mas sim um padrão a ser seguido, um modelo abstrato juridicamente

exigível, que pode ser identificado como culpa. Esclarece o autor que a confusão

pode ter sido gerada por uma má tradução do termo faute, que muitos, a seu ver

inadvertidamente, traduziram como ausência (falta), quando o correto seria traduzi-lo

como culpa. Afirma, ainda, que outro fato a gerar confusão seriam as presunções de

culpa que muitas vezes vigoram em casos de responsabilidade do Estado por faute

du service. Tratar-se-ia de meras presunções relativas, a influir no ônus da prova,

não na configuração do instituto de direito material.307

Nesse sentido: Maria Sylvia Zanella Di Pietro,308 Sérgio Severo,309 Sérgio

Cavalieri Filho,310 José dos Santos Carvalho Filho,311 Arnaldo Rizzardo312 e Rui

Stoco.313

informa algumas esferas da responsabilidade pública é aquela derivada do funcionamento anormal do serviço público, um standard baseado na concepção de que a ação administrativa deve dar-se de acordo com padrões adequados de funcionamento, concepção objetiva da noção de culpa, que constitui uma das mais importantes construções do direito administrativo” (SEVERO, Sérgio. Tratado..., p. 247).

307 “É mister acentuar que a responsabilidade por “falta de serviço”, falha do serviço ou culpa do serviço (faute du service, seja que for a tradução que se lhe dê) não é, de modo algum, modalidade de responsabilidade objetiva, ao contrário do que entre nós e alhures, às vezes, tem-se inadvertidamente suposto. É responsabilidade subjetiva porque baseada na culpa (ou dolo), como sempre advertiu o Prof. Oswaldo Aranha Bandeira de Mello. Com efeito, para sua deflagração não basta a mera objetividade de um dano relacionado com o serviço estatal. Cumpre que exista algo mais, ou seja, culpa (ou dolo), elemento tipificador da responsabilidade subjetiva” (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso..., p. 967-968).

308 “Essa culpa do serviço público ocorre quando: o serviço público não funcionou (omissão), funcionou atrasado ou funcionou mal. Em qualquer dessas três hipóteses, ocorre a culpa (faute) do serviço ou acidente administrativo, incidindo a responsabilidade do Estado independentemente de qualquer apreciação da culpa do funcionário” (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo, p. 701).

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Por outro lado, Emerson Gabardo e Daniel Wunder Hachem314 afirmam que a

faute du service não pode ser identificada com a responsabilidade subjetiva, e que

não pode ser aplicada acriticamente a todo e qualquer ordenamento jurídico, sendo

produto do contexto jurídico-social da França. Explicam os autores, a partir de

estudo de arestos do século XIX do Tribunal de Conflitos francês, que a teoria da

faute du service public foi desenvolvida a partir de duas ideias: distinguir a faute de

service da faute personelle; imputar a responsabilidade diretamente ao serviço, sem

a perquirição de participação do agente. Em nenhum momento, assim, foi uma teoria

de responsabilidade subjetiva, nem própria das condutas omissivas.

No que tange ao primeiro ponto, destaca-se o arrêt Pelletier, de 30 de julho de

1873, que considerou a faute personelle aquela que pode ser separada das funções

309 Cf. SEVERO, Sérgio. Tratado..., p. 247 e ss. 310 “Alguns autores não fazem distinção entre a culpa anônima e a responsabilidade objetiva,

chegando, mesmo, a afirmar que são a mesma coisa. Estamos, nesse ponto, com o professor Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, ao advertir que a responsabilidade por falta de serviço, falha do serviço ou culpa do serviço, seja qual for a tradução que se dê à fórmula francesa faute du service, não é, de modo algum, modalidade de responsabilidade objetiva, mas subjetiva, porque baseada na culpa do serviço diluída na sua organização, assumindo feição anônima ou impessoal” (CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa..., p. 241).

311 “A falta do serviço podia consumar-se de três maneiras: a inexistência do serviço, o mau funcionamento do serviço ou o retardamento do serviço. Em qualquer dessas formas, a falta do serviço implicava o reconhecimento da existência de culpa, ainda que atribuída ao serviço da Administração. Por esse motivo, para que o lesado pudesse exerceu seu direito à reparação dos prejuízos, era necessário que comprovasse que o fato danoso se originava do mau funcionamento do serviço e que, em consequência, teria o Estado atuado culposamente. Cabia-lhe, ainda, o ônus de provar o elemento culpa” (CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual..., p. 546).

312 No caso da administração pública, deve-se levar em conta o conceito ou ideia do que se convencionou denominar “falta do serviço” (faute du service), ou a “culpa do serviço”, que diz com a falha, a não prestação, a deficiência do serviço, o seu não funcionamento, ou o mau, o atrasado, o precário funcionamento. Responde o Estado porque lhe incumbia desempenhar com eficiência a função. Como não se organizou, ou não se prestou para cumprir a contento a atividade que lhe cumpria, deixou de se revelar atento, diligente, incorrendo em uma conduta culposa” (RIZZARDO, Arnaldo. Responsabilidade civil, p. 364).

313 “Em verdade, cumpre reiterar, a responsabilidade por falta de serviço, falha do serviço ou culpa do serviço é subjetiva, porque baseada na culpa (ou dolo)” (STOCO, Rui. Tratado..., p. 997).

314 Cf. GABARDO, Emerson; HACHEM, Daniel Wunder. Responsabilidade civil do Estado, faute du service e princípio constitucional da eficiência administrativa. In: GUERRA, Alexandre Dartanhan de Mello et al. (Coord.). Responsabilidade civil do Estado: desafios contemporâneos. São Paulo: Quartier Latin, 2010. p. 262-282.

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exercidas pelo funcionário, enquanto a faute de service não pode ser destacável das

funções do agente público. Depois, no julgamento do caso Laumonnier-Carriol, de 5

de maio de 1877, estabeleceu-se que, se o ato danoso é impessoal, ele mantém-se

administrativo e deve ser julgado pela jurisdição administrativa, ao passo que, se a

personalidade do agente se revela pelas faltas de direito comum, por uma

imprudência, então a falta é imputável à pessoa do funcionário, dando ensejo a

conhecimento pela jurisdição ordinária.

Dessa distinção advém outra importante consequência, qual seja a

cumulação de responsabilidade entre a pessoa jurídica de direito público e o

funcionário. A evolução da jurisprudência do Conseil d’État gerou tal possibilidade.

No citado caso Pelletier, as faltas eram compreendidas de maneira excludente: ou

era falta pessoal, submetida à jurisdição ordinária, ou era falta de serviço, submetida

à jurisdição administrativa. Em outro momento, a partir do Arrêt Anguet, de 3 de

fevereiro de 1911, passou-se a reconhecer a possibilidade de acumular os dois tipos

de falta, facultando à vítima acionar o agente ou o Estado. Posteriormente, a partir

do caso Lemonnier (26 de julho de 1918), à cumulação de faltas foi associada dupla

responsabilidade, de modo a se entender que, se a falta pessoal decorreu das

condições criadas pelo serviço, ela não pode ser dele separada, de modo que a falta

pessoal ensejará a responsabilidade da pessoa jurídica de direito público a que o

agente estiver vinculado. Por último, nos casos Laruellee Delville (28 de julho de

1951), admitiu-se a ação regressiva do agente em relação ao Estado, e deste em

relação àquele, quando houvesse cumulação de faltas e responsabilidades.

Concluem os autores, assim, que essa preocupação de distinção da faute du

service e da faute personelle tinha grande sentido na França, onde se costuma

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avaliar ao mesmo tempo a conduta imputável ao Estado e o comportamento

atribuível ao agente público. Era importante, assim, delimitar responsabilidades:

existindo faute du service, há responsabilidade da Administração; havendo faute

personelle, existe responsabilidade do agente; por fim, existindo ambas, há

cumulação de responsabilidades. No direito brasileiro, o rigor dessa distinção não

ostenta semelhante relevância, à medida que a Constituição Federal, no artigo 37, §

6.º, já exige que para a responsabilidade do Estado os danos causados advenham

de ato daquele que está na qualidade de agente público, de modo que a falta

pessoal, quando totalmente desvinculada de função pública, não tem relação com o

direito administrativo e a responsabilidade civil do Estado.

No que tange ao segundo aspecto da faute du service, qual seja imputar a

responsabilidade diretamente ao serviço, sem a perquirição de participação do

agente, são hipóteses em que não é necessária qualquer avaliação de culpa

pessoal, bastando que se verifique a ineficiência do serviço, abstratamente

considerado. A noção de culpa, que é pessoal, vinculado ao ato, à pessoa, é

deixada em um plano secundário.

Assim, analisando o contexto de criação da teoria, entendem Emerson

Gabardo e Daniel Wunder Hachem que a teoria da faute du service não pode ser

simplesmente trasladada para os dias atuais, para qualquer ordenamento jurídico e,

particularmente no Brasil, utilizada em hipóteses de omissão do Estado. É mister

transcrever um trecho do artigo ora em comento:

Pede-se vênia para manifestar discordância em relação ao entendimento antes mencionado [identificação da faute du service como responsabilidade subjetiva]. As considerações tecidas a seguir têm por escopo demonstrar que a adoção da responsabilidade subjetiva no direito brasileiro, nos casos de responsabilidade civil do

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Estado por descumprimento do dever de eficiência nas situações omissivas (serviço não funcionou ou funcionou atrasado), não procede pelo menos por quatro motivos: (a): a teoria da faute du service não remonta, necessariamente, à responsabilidade subjetiva; (b) o critério para distinguir a responsabilidade pour faute (por falta) da responsabilidade sans faute (sem falta) no direito francês não é a natureza omissiva da conduta; (c) na França admite-se hipótese de responsabilidade objetiva do Estado por omissão; (d) os contornos da responsabilidade estatal dependem do regime jurídico administrativo de cada ordenamento, e a Constituição Federal de 1988 impõe um sistema de responsabilidade objetiva.315

No que se refere ao primeiro aspecto (a), fazem os articulistas uma

investigação sobre o termo faute.316 A partir de lições da doutrina francesa,

demonstra-se que a faute indica uma violação de dever preexistente, um fato

objetivo de inobservância de um dever juridicamente imposto, não guardando

qualquer relação com a aferição de negligência, imprudência ou imperícia. A melhor

tradução ao termo, destarte, é falta, no sentido de “infração” (não no sentido de

“ausência”), como se costuma utilizar no direito do trabalho. No entanto, se a culpa é

própria do subjetivismo, da pessoa e de sua vontade, não há sentido utilizar o

mesmo termo para descrever um fenômeno como a faute du service, em que se

perscrutam padrões objetivos e abstratos de funcionamento da atividade pública. Na

sequência, arrematam:

Torna-se sem sentido falar de “culpa da Administração” ou “culpa do serviço.” Só podem incorrer em culpa ou dolo pessoas físicas, dotadas de subjetividade, pois ambos são elementos subjetivos. Se nos casos de faute du service não se perquire quem foi o agente

315 GABARDO, Emerson; HACHEM, Daniel Wunder. Responsabilidade civil..., p. 269-270. 316 A esse respeito, Menezes de Cordeiro reconhece a dificuldade de tradução do termo faute, que

surgiu com Jean Domat (1625-1696), e depois acabou consagrado no sistema de responsabilidade civil francês inaugurado com o código napoleônico de 1804. Explica o tratadista português que a faute é o elemento central da teoria de responsabilidade civil francesa, e que engloba a culpa, a ilicitude e o nexo causal (modelo monista de responsabilidade). A divisão entre culpa, nexo causal e ato ilícito é uma criação dos pandectistas alemães, precursores de um método analítico de verificação da responsabilidade, que viria a vicejar com o BGB em 1894 (Cf. Tratado..., p. 317-325).

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responsável pela prática do dano, é incompreensível pretender avaliar se houve culpa ou dolo da pessoa jurídica.317

No que tange ao segundo ponto (b), explicam que a teoria da faute du service

não foi elaborada para ser aplicada às condutas omissivas da Administração

Pública, mas sim para identificar as hipóteses em que ela deve ser compelida a

indenizar o cidadão, sozinha (quando não houver falta pessoal destacável da

Administração Pública) ou em solidariedade com o agente público. A

responsabilidade civil do Estado francesa não tem por fundamento a dicotomia

responsabilidade objetiva vs. responsabilidade subjetiva. Pelo contrário, a grande

questão da matéria é identificar a existência de uma falta para verificação da

responsabilidade civil do Estado, considerada a partir de um padrão objetivo de

funcionamento do serviço público. Sustentam os autores, assim, que a doutrina

brasileira tentou promover uma adaptação – inadequada – dessa teoria ao direito

brasileiro, no qual há disputa entre a responsabilidade objetiva e subjetiva dentro da

responsabilidade civil, mas que tal disputa jamais esteve na pauta do direito francês,

sendo por isso errado identificar a responsabilidade pour faute como

responsabilidade subjetiva. Ademais, a doutrina francesa jamais circunscreveu a

teoria às condutas omissivas, bem como jamais fez referência à negligência ou à

imprudência, de modo que não há sentido em vincular essas noções à teoria da

faute du service.318

Em relação ao terceiro ponto (c), afirmam que a própria doutrina e

jurisprudência francesas reconhecem casos de responsabilidade objetiva por

317 GABARDO, Emerson; HACHEM, Daniel Wunder. Responsabilidade civil..., p. 274. 318 Idem, ibidem, p. 275-276.

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omissão, de modo que não cabe ao direito brasileiro negar a hipótese, com base em

doutrina francesa. Por fim (d), sustentam que a importação de teorias desenvolvidas

em outros países requer compatibilidade entre os sistemas de direito positivo, o que

não existe no que se refere à faute du service, uma teoria criada para solucionar

problemas próprios do sistema francês, que no Brasil não se apresentam da mesma

maneira.319

Podem ser acrescentados, ainda, alguns outros elementos à crítica de

identificação da faute du service com uma teoria baseada na culpa. Com efeito, à luz

do direito civil, apontar a teoria da culpa do serviço como uma teoria de

responsabilidade subjetiva encerra uma contradição evidente. Os próprios autores

de direito administrativo dizem que se trata de uma culpa abstrata, não vinculada à

conduta de determinado agente, mas sim uma conduta em desacordo com o padrão

de funcionamento que deveria ostentar o serviço público, e que acabou se revelando

ineficiente.320

Se assim o é, é inadequado dizer na sequência, como fazem os partidários da

corrente em comento, que para a verificação da culpa de serviço é necessária a

comprovação de negligência, imprudência, imperícia ou dolo, que são parâmetros de

aferição de atos de pessoas, em que há participação da vontade, e que

tradicionalmente teve um papel de maior relevância para aferição de culpa. Vale

aqui relembrar as lições expostas no item 1.3 do Capítulo 1 deste trabalho.

319 GABARDO, Emerson; HACHEM, Daniel Wunder. Responsabilidade civil..., p. 276-277. 320 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso…, p. 966-967; DI PIETRO, Maria Sylvia, Direito

administrativo, p. 700-701; CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual…, p. 545-546.

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Parece claro o que faz a teoria da faute du service, que é buscar padrões de

eficiência para a entidade abstrata serviço público, ou seja, se o serviço atingiu os

patamares esperados, não há falha no serviço, mas, se ele foi desempenhado em

patamares abaixo do desejado, o serviço foi falho. A fixação desses standards que

devem ser seguidos pela atividade estatal em absoluto pode ser chamada de

responsabilidade subjetiva, de culpa, cujo conceito nasceu para moralizar condutas

humanas individuais.321

Sérgio Severo, em que pese não abandone a denominação culpa do serviço,

reconhece que não há falar em negligência, imprudência ou imperícia quando se

toca nesse tema:

[...] há que se esclarecer que a culpa a que nos referimos não se baseia, em regra, na concepção civilista, centrada em elementos volitivos do agente para determinar uma negligência, imperícia ou imprudência, consoante concebida no plano do art. 186 do CC (art. 159 do CC/16). A culpa que informa algumas esferas da responsabilidade pública é aquela derivada do funcionamento anormal do serviço público, um standard baseado na concepção de que a ação administrativa deve dar-se de acordo com padrões adequados de funcionamento, concepção objetiva da noção de culpa, que constitui uma das mais importantes construções de direito administrativo.322

Mais adiante em sua obra, afirma que tecnicamente sequer se poderia

chamar de culpa o funcionamento anormal do serviço, uma vez que não tem

aferição subjetiva:

321 “Reina certa nebulosidade na doutrina e na jurisprudência pátrias quanto à responsabilidade por

omissão. Há afirmações nesse sentido de tratar-se de responsabilidade subjetiva. [...] Não parece apropriado o uso do termo subjetiva, nem da expressão culpa do serviço, pois tais vocábulos se mostram adequados a ações ou omissões de pessoas físicas, não de pessoas jurídicas” (MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. 13. ed. São Paulo: RT, 2009. p. 378).

322 SEVERO, Sérgio. Tratado..., p. 247.

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O critério de funcionamento anormal corresponde à aferição de um elemento que não é propriamente identificado com a culpa. Trata-se de um standard jurídico; logo, a aferição não é efetivamente subjetiva, uma vez que não decorre de mera observação do elemento volitivo do agente, mas também do confronto com o critério objetivo com que se considera o serviço em si. Assim, o critério de funcionamento anormal (faute du service), fruto do direito administrativo, encontra-se numa zona fronteiriça entre os fatores de atribuição objetivo e subjetivo, ocupando este último posto mais por tradição do que por aferição científica.323

Nesse sentido, se a culpa anônima não é pessoal, mas abstrata; se os

critérios da culpa clássica de direito civil foram feitos para condutas em que há

participação da vontade, não como critérios abstratos de eficiência; e, por último, se

a teoria da culpa do serviço na verdade compara o serviço desempenhado com um

padrão abstrato de eficiência, não há razão chamar de culpa aquilo que não é culpa,

donde se conclui que a faute du service não pode ser apontada como

responsabilidade subjetiva.

2.3 A responsabilidade objetiva

Enquanto parte significativa da doutrina vislumbra responsabilidade

subjetiva na omissão do Estado, outra parcela dela, não menos numerosa, não

admite essa dicotomia, afirmando que não há falar em responsabilidade subjetiva

do Estado, em qualquer hipótese. Nesse sentido: Gustavo Tepedino,324 Sérgio

323 SEVERO, Sérgio. Tratado..., p. 327. 324 “Não é dado ao intérprete restringir onde o legislador não restringiu, sobretudo em se tratando de

legislador constituinte – ubi lex non distinguit nec nos distinguire debemus. A Constituição Federal, ao introduzir a responsabilidade objetiva para os atos da administração pública, altera inteiramente a dogmática da responsabilidade neste campo, com base em outros princípios axiológicos e normativos (dentre os quais se destacam o da isonomia e da justiça distributiva), perdendo imediatamente a base de validade qualquer construção ou dispositivo subjetivista, que se torna, assim, revogado ou, mais tecnicamente, não recepcionado pelo sistema constitucional. [...]. De mais a mais, a dicção do artigo 43 (do Código Civil) acima transcrito, que suprime a referência, prevista no artigo 15 do Código anterior ao procedimento ‘de modo contrário do

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Cavalieri Filho,325 Nelson Nery Jr.,326 Felipe Peixoto Braga Netto,327 Carlos Edison

do Rêgo Monteiro Filho,328 Juarez Freitas,329 Emerson Gabardo e Daniel Wunder

Hachem,330 Carlos Roberto Gonçalves,331 Deborah Pierri,332 Irene Patrícia

direito’, parece deixar clara a opção legislativa pela responsabilidade objetiva em toda e qualquer atividade estatal, e deveria servir para sepultar definitivamente a responsabilidade subjetiva nos atos praticados pela administração pública, sejam eles comissivos ou omissivos” (TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 212-213).

325 “Em nosso entender, o art. 37, § 6.º, da Constituição, não se refere apenas à atitude comissiva do Estado; pelo contrário, a ação a que alude engloba tanto a conduta comissiva como a omissiva” (CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa..., p. 251).

326 “Com a devida vênia, entendemos que a CF, 37, § 6.º, consagra, sim, a responsabilidade objetiva da administração pública, pela teoria do risco, quer se trate de conduta comissiva ou omissiva dos agentes ou servidores do poder público” (NERY JR., Nelson. Responsabilidade civil da administração pública. Revista de Direito Privado, São Paulo: RT, v. 1, n. 1, p. 34, jan.-mar. 2000).

327 “Na omissão estatal a responsabilidade independe do elemento culpa. Basta o nexo causal. Ainda que o Estado prove que não houve, de modo algum, culpa pelo buraco (digamos que o buraco apareceu no dia anterior, impossibilitando qualquer previsão de obra), ainda assim persistirá a responsabilidade estatal, para cuja ocorrência basta o dano aliado ao nexo causal, sendo irrelevante, mesmo nos casos de omissão estatal, a culpa” (BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Responsabilidade civil, p. 250).

328 “Esta parece ter sido a real intenção do legislador constituinte de 1946, no que se seguiram os de 1967, 1969 e 1988, vale dizer, eliminar, de vez, a teoria subjetiva da responsabilidade do Estado, simplificando sobremaneira a lide a ser enfrentada pela vítima, a qual já não mais precisa demonstrar a ocorrência de culpa, ainda que anônima, na atuação omissiva ou comissiva do Estado. O elemento culpa só irá interessar na relação Administração versus agente, para efeito de eventual direito de regresso” (MONTEIRO FILHO, Carlos Edson do Rego. Problemas da responsabilidade civil..., p. 54).

329 “Caem como folhas no outono as dúvidas quanto à responsabilidade objetiva no caso de guarda de pessoas ou bens, hipótese em que o descumprimento do dever (inoperância) faz presumido o nexo causal, até prova em contrário. Portanto, os sinais de mudança de atitude interpretativa, apesar de nuançados, felizmente se acumulam. Claro que subsistem decisões, até em maioria, que acolhem a responsabilidade subjetiva do Estado por omissão. Com o devido respeito, no entanto, perante a o missão do Poder Público, o correto é reputar irrelevante a consideração sobre culpa ou dolo. A argumentação baseada em ‘culpa anônima’ oculta a superação indecisa de parâmetros subjetivistas. Em qualquer caso (a ação ou omissão), mister transcender a abordagem subjetivista acerca da prova da imperícia, da imprudência, da negligência ou da intencionalidade” (FREITAS, Juarez. Proporcionalidade e vedação de excesso e inoperância. In: –––––– (Coord.). Responsabilidade civil do Estado. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 184-185).

330 “O artigo 37, § 6.º, da CF, que traduz o fundamento normativo da responsabilidade civil do Estado, não faz qualquer distinção entre comportamentos omissivos e comissivos. [...]. O texto constitucional requer a comprovação de dolo e culpa tão somente no caso da ação regressiva em face do agente. Nos demais, a responsabilidade objetiva é medida que se impõe” (GABARDO, Emerson; HACHEM, Daniel Wunder. Responsabilidade civil..., p. 280-281).

331 “Pode-se, assim, afirmar que a jurisprudência, malgrado alguma divergência, tem entendido que a atividade administrativa a que alude o art. 37, § 6°, da Constituição Federal abrange tanto a conduta comissiva como a omissiva. No último caso, desde que a omissão seja a causa direta e imediata do dano” (GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro..., v. 4, p. 142).

332 “A referência à responsabilidade subjetiva nas hipóteses de omissão estatal é improdutiva, pois faz voltar ao tempo em que felizmente conclui-se o quão incômodas são as dificuldades na comprovação e na individualização do dolo ou da culpa. Na verdade, a falha é atribuível

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Nohara,333 Marcelo Junqueira Calixto,334 Rômolo Rosso Júnior335 e Luis Manuel

Fonseca Pires.336

Argumenta-se, em geral, que a Constituição Federal não fez qualquer

ressalva no que tange à responsabilidade civil do Estado, qualificando-a

simplesmente como objetiva, de modo que não caberia ao intérprete proceder a tal

distinção. Afirma-se, ainda, que, embora a omissão não possa ser causa no sentido

naturalístico, à medida que a omissão em si mesma não gera resultado material,

diretamente ao Estado decorrente do impróprio funcionamento de um serviço público, mas não a algum agente específico” (PIERRI, Deborah. As omissões dos agentes públicos. Faute du service e outros esclarecimentos sobre a responsabilidade civil extracontratual do Estado. In: GUERRA, Alexandre Dartanhan de Mello Guerra et al. (Coord.). Responsabilidade civil do Estado: desafios contemporâneos. São Paulo: Quartier Latin, 2010. p. 184.

333 “[...] não podemos deixar de considerar que se a Constituição, já desde 1946, escolheu positivar uma norma que dispõe que a responsabilidade será objetiva, e dela não se extrai, em nossa opinião, que tal ocorra apenas com a ação do Estado, mas também na omissão de seus deveres específicos. Não foi a vontade constituinte promover esse retorno à culpa do serviço. O constituinte quis deliberadamente ampliar as circunstâncias em que o Estado responderá com base na adoção da teoria do risco, que envolve a repartição dos encargos sociais” (NOHARA, Irene Patrícia. Direito administrativo, p. 792).

334 “[...] posta a questão em termos estritamente jurídicos, acredita-se não ser realmente possível afirmar a permanência da culpa – mesmo referida ao serviço e não ao agente específico –, como fundamento da responsabilidade do Poder Público. Em verdade, a leitura atenta do artigo 37, § 6.º, da Constituição da República – e também do art. 43 do Código Civil – impede, efetivamente, que se insista no argumento da ‘culpa do serviço’ (faute du service), a qual não parece encontrar aí o mais leve resquício, salvo, é claro, na referência expressa à culpa do agente, porém, para que se julgue procedente eventual ação regressiva do Poder Público em face deste” (CALIXTO, Marcelo Junqueira. A culpa..., p. 238-240).

335 “Reconhece-se que a responsabilidade civil no século XXI estava irmanada muito mais com o bem-estar da pessoa humana e cada vez mais distante da identificação – quase hedionda e tão retrógrada – de quem fez o que e, assim, da culpa – daí, pois, a ordem legal e moral de indenizar. Esta última leitura deve ser apagada. Falar-se em culpa estatal, a qual é evocada para permitir a caracterização da responsabilidade civil subjetiva, é caminhar na contramão d própria Carta Magna e da vigência do art. 37, § 6.º, da CF” (ROSSO JÚNIOR, Rômolo. Responsabilidade civil do Estado por danos causados por torcidas organizadas. In: GUERRA, Alexandre Dartanhan de Mello Guerra et al. (Coord.). Responsabilidade civil do Estado: desafios contemporâneos. São Paulo: Quartier Latin, 2010. p. 758).

336 “Com efeito, acedemos ao entendimento de que a norma constitucional, ao prescrever a dispensa do elemento subjetivo pelos danos causados a terceiros, não se refere à ação, mas sim à capacidade do ato ou do fato, da Administração Pública Direta e Indireta, do Estado em geral, e de quem faça as suas vezes, de ser a causa adequada do efeito danoso segundo a imputação normativa (na ação), ou simplesmente, a despeito da ausência da causa, existir a imputação normativa (na omissão). A norma constitucional não poderia nunca reger a causa no plano apofântico (leis naturais); disciplina apenas a imputação normativa. Seja a razão jurídica um comportamento comissivo (ação) ou um comportamento omissivo” (PIRES, Luis Manuel Fonseca. Responsabilidade civil do Estado por insuficiência da segurança pública. In: GUERRA, Alexandre Dartanhan de Mello et al. (Coord.). Responsabilidade civil do Estado: desafios contemporâneos. São Paulo: Quartier Latin, 2010. p. 719).

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existindo somente em face de um dever de agir não cumprido pelo omitente, ela

pode ser causa no sentido normativo, pois prevalece uma relação de imputação

jurídica, não causal. Assim, não haveria sentido jurídico na distinção feita pela

primeira corrente entre a ação como causa do dano e a omissão como condição

para o dano, cuja causa seria produto da conduta de terceiro.337

No tocante ao argumento de que a responsabilidade objetiva na conduta

omissiva tornaria o Estado segurador universal, responde-se afirmando que de

qualquer maneira terá de ser provado o nexo causal entre a omissão e o dano, ou

seja, não basta uma inação genérica e abstrata, mas um comportamento omissivo

imediato, concreto e circunstanciado do Poder Público.338 Diz-se, ainda, que o Brasil

não adotou a teoria do risco integral, e sim a teoria do risco administrativo, de modo

que seria possível a alegação das excludentes de causalidade como meio de defesa

da pessoa jurídica de direito público.339

337 Cf. MUKAI, Toshio. Responsabilidade solidária da Administração por danos ao meio ambiente.

Conferência pronunciada no II Simpósio Estadual de Direito Ambiental. Curitiba, 1987. Apud GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro..., v. 4, p. 140.

338 Cf. PIRES, Luis Manoel Fonseca. Responsabilidade civil do Estado..., p. 731. Ainda: “Há de ser analisada a afirmação, também feita por Celso Antônio, de que se nos danos decorrentes de conduta estatal omissiva o Estado for chamado a responder objetivamente este estará sendo erigido à condição de segurador universal. Não parece, porém, ser exatamente assim. Ocorre que em todos os casos em que o Estado é chamado a ressarcir prejuízos decorrentes de conduta omissiva, bem assim nas comissivas, poderá ele defender-se demonstrando a presença de quaisquer das circunstâncias excludentes da responsabilidade. Poderá, ainda, demonstrar que o dano não é especial nem amoral ou que não tinha o dever de agir. Este largo aspecto de defesas leva à conclusão de que mesmo que se aplique, em todos os casos, a teoria do risco administrativo, e, portanto, a responsabilidade objetiva o Estado não estará sendo erigido à condição de segurador universal. Ademais, se o Estado se omite no seu dever de agir, conforme os padrões médios de exigência da população, assim causando lesões ao patrimônio das pessoas, melhor seria mesmo que fosse erigido a tal condição. Não é este, contudo, o caso” (GANDINI, João Agnaldo Donizeti; SALOMÃO, Diana da Silva Paola. A responsabilidade civil do Estado na conduta omissiva. Revista da Ajuris, Porto Alegre, ano XXXI, n. 94, p. 159, jun. 2004).

339 Cf. BRAGA NETTO, Felipe P. Responsabilidade civil, p. 250; MONTEIRO FILHO, Carlos Edson do Rêgo. Problemas da responsabilidade civil do Estado, p. 55; TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil, p. 211.

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Ademais, objeta-se que a nova ordem constitucional alberga o princípio da

solidariedade social (artigo 3.º, I, CF), que se reflete na responsabilidade civil pela

ideia de igual distribuição dos encargos sociais. Dentro desse alicerce institucional,

seria inadequada a referência à culpa, que, como visto no primeiro capítulo, origina-

se da necessidade de fixar um parâmetro ético do sujeito, sendo um índice do uso

correto da liberdade individual. Assim, como resquício primeiro de um sistema

individualista, de moralização de condutas, a culpa não serviria para um sistema

baseado na solidariedade e na distribuição equitativa dos encargos sociais.340 A

culpa não se encaixaria, destarte, em um sistema de direito público de

responsabilidade, sendo própria do sistema privado, em que, aliás, ela também

estaria em declínio.341

Por fim, a distinção entre ato e atividade, também referida no primeiro capítulo

(item 1.3.2), também serve como argumento dessa corrente. Afinal, se o Estado

realiza atividade, o regime de sua responsabilidade deve ser objetivo, pois a culpa é

ligada ao ato, à volição, à subjetividade, elementos incompatíveis com o regime

constitucional de responsabilização das pessoas jurídicas de direito público.

O sistema argentino de responsabilidade estatal tem algumas nuances que

podem ajudar sobremaneira na compreensão do sistema brasileiro de

responsabilidade. A responsabilidade pública, naquele país, não tem matriz

340 Cf. GABARDO, Emerson; HACHEM, Daniel Wunder. Responsabilidade civil do Estado…, p. 279-

280. 341 Cf. ROSSO JÚNIOR, Rômolo. Responsabilidade civil do Estado..., p. 757 e ss.; GABARDO,

Emerson; HACHEM, Daniel Wunder. Responsabilidade civil do Estado..., p. 279 e ss.

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constitucional, estando regulamentada dentro do Código Civil. O artigo 1.112342 é

aquele que prescreve a responsabilidade do Estado. De acordo com a doutrina

argentina, trata-se de uma norma de direito público inserida dentro de um código

civil, norma essa que consagra uma responsabilidade objetiva, à medida que

prescinde de critérios subjetivos, pois, embora as figuras tradicionais da culpa

(negligência, imprudência, imperícia) possam até estar presentes nos atos e

omissões dos funcionários, o ordenamento não exige sua verificação quando o

serviço não é prestado de maneira regular, ou quando deixa de ser prestado.343 A

intenção do legislador, destarte, ao positivar esse artigo 1.112, foi estabelecer uma

responsabilidade direta do Estado, independentemente de culpa do funcionário,

desde que o último tenha descumprido de maneira irregular as obrigações legais

que lhe são impostas. A ilicitude e a culpabilidade, destarte, trilham caminhos

diversos, pois, ainda que o funcionário tenha violado obrigação legal sem culpa, o

Estado será chamado a indenizar.344 A primeira tem verificação objetiva, a partir do

cotejo entre o ato praticado e a norma, ao passo que a segunda relaciona-se com o

agente, consistindo em um juízo de reprovação sobre a conduta.

No que tange especificamente à responsabilidade do Estado por omissão, o

artigo 1.112 deve ser interpretado sistematicamente com o artigo 1.074, ao qual se

342 “Artigo 1.112. Los hechos y las omisiones de los funcionarios públicos en el ejercicio de sus

funciones, por no cumplir sino de una manera irregular las obligaciones legales que les están impuestas, son comprendidos en las disposiciones de este título”. O título mencionado pelo artigo é “De las obligaciones que nacen de los hechos ilícitos que no son delitos”, isto é, “Das obrigações que nascem dos fatos ilícitos que não são delitos”. Referido título imputa obrigação de indenizar a toda pessoa que comete um fato gerador de dano culposamente (artigo 1.109).

343 SALOMONI, Jorge Luis. La responsabilidad del Estado por omisión, p. 117 e ss. 344 “Desde nuestra óptica, la cuestión sólo tiene que ver con la ilicitud de la conducta (en donde la

culpa no cuenta), en cuento el daño es consecuencia de no cumplir sino de modo anormal obligaciones legales; dicho de otro modo, interesa la antijuridicidad em cuanto tal, como violación de obligaciones legales en el ejercicio de la actividad funcional, propia, habitualmente reglada, del funcionario” (LATRUBESSE, Gustavo Carranza. Responsabilidad del Estado..., p. 47).

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fez referência no item 1.1.4.1 desta dissertação. Os requisitos para essa espécie de

responsabilidade são os seguintes: existência de um dever normativamente imposto

de atuar; descumprimento da atividade devida pela autoridade administrativa; que a

atividade omitida fosse materialmente possível.

A doutrina entende que, na hipótese de responsabilidade estatal por omissão

derivada diretamente da lei (que ela designa por omisiones simples ou omisión

puras – cf. Capítulo 1, item 1.1.4.1), aplica-se esse artigo 1.074 em conjunto com o

artigo 1.112, de modo que a responsabilidade é objetiva. Como ensina Gustavo

Carranza Latrubesse,345 “donde si existe el previo deber legal de actuar, la omisión

hará nacer la responsabilidad civil con prescindencia de los aspectos subjetivos del

agente”. Entende o autor que o fator de atribuição objetivo está vinculado à garantia

de legalidade com a qual devem atuar a Administração e seus funcionários. Não é

outra a opinião de Augustín Gordillo,346 que entende que pode “Haber

responsabilidad del Estado en virtud de una omisión en el ejercicio de la función

administrativa, en tanto dicha omisión pueda considerarse un ejercicio irregular de la

función. Ya no se menciona que deba haber dolo, culpa o negligencia de la persona

jurídica que locometió”. Também para Miguel Marienhoff347 a responsabilidade é

objetiva “puesto que toma esencialmente en cuenta el incumplimento del expresado

deber, con prescindencia de la culpa”.

345 LATRUBESSE, Gustavo Carranza. Responsabilidad del Estado..., p. 46. 346 La defensa del usuario y del administrado. Tratado de derecho administrativo. 6. ed. Buenos

Aires: Fundación de Derecho Administrativo, 2003. t. 2, p. 15-16. Apud SALOMONI, Jorge Luis. La responsabilidad del Estado por omisión, p. 122.

347 Responsabilidad extracontatual del Estado por las consecuencias de su actitud omisiva en el ámbito del derecho público. Revista Jurídica el Derecho, t. 169, p. 1097. Apud SALOMONI, Jorge Luis. Ibidem, p. 122.

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Importante frisar que os autores argentinos entendem que esse artigo 1.074

aplica-se somente em relação às omissões puras, ou seja, em que há o específico

dever de agir. Nas omissões impróprias ou atos de comissão por omissão, isto é, em

que não há o dever de agir e a omissão é somente um meio para obter o resultado

desejado, aplica-se o artigo 1.073.

O sistema argentino é ligeiramente diferente do brasileiro, pois foca a

atividade “irregular” do funcionário, ou seja, atividade em descumprimento a

determinado preceito legal.348 Essa preocupação com a ilicitude, com a

antijuridicidade, não é refletida de maneira expressa em nosso ordenamento, que

prevê a responsabilidade objetiva do Estado sem qualquer menção à conduta

regular ou irregular do funcionário público. Como visto acima, a doutrina argentina

tem grande preocupação em desvincular essa noção de ato irregular à noção de

culpa, que não seria necessária para ensejar a responsabilidade civil do Estado.

Essas lições são muito importantes para o objeto deste trabalho à medida que

se percebe que na Argentina a construção hermenêutica derivada da interpretação

conjunta dos artigos 1.112 e 1.074 permite responsabilização por omissão pura ou

simples quando houver descumprimento do dever de agir, independentemente de

avaliação de culpa. Posiciona-se, assim, a questão da responsabilidade civil na

348 Jorge Luis Salomoni, baseado em autores nos quais Vélez Sarfield inspirou-se para elaborar o

código civil argentino, diz que se deve interpretar atividade “irregular” como atividade geradora de prejuízos, não como uma dicotomia entre atos lícitos e ilícitos. Assim, até uma conduta regular do funcionário, desde que geradora de prejuízos, poderia fundamentar responsabilidade civil do Estado. A prevalecer tal interpretação, pode-se dizer que o sistema brasileiro de responsabilidade civil do Estado é igual ao argentino (La responsabilidad del Estado por omisión, p. 118 e ss.).

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omissão na seara da ilicitude (violação de dever), não na seara da culpa

(negligência ou imprudência).

A construção de Marçal Justen Filho, acima exposta, guarda semelhanças

com essa construção da dogmática argentina, à medida que exige a ilicitude para a

caracterização da responsabilidade do Estado – da mesma maneira que o direito

argentino prevê a responsabilidade estatal quando o agente público atuou sino de

una manera irregular.

Expostos os argumentos da corrente que trata a responsabilidade do Estado

por omissão como uma responsabilidade objetiva, é interessante conhecer uma

posição intermediária entre as duas correntes, que cuida da distinção entre omissão

genérica e omissão específica, que pode ser apontada como um tertium genus entre

as duas correntes já expostas.

2.4. Omissão genérica e omissão específica

Esse entendimento foi pioneiramente defendido por Guilherme Couto de

Castro,349 que faz a distinção entre omissão específica e omissão genérica. Para

expor seu ponto de vista, começa o autor dizendo que a responsabilidade objetiva

estatal prevista na Constituição Federal decorre da ação administrativa, não da

omissão, salvo se ela estiver ligada a específico dever de agir, sob pena de

cobertura por parte do Estado de riscos inerentes à vida coletiva. Assim, entende o

349 CASTRO, Guilherme Couto de. A responsabilidade civil objetiva no direito brasileiro. 2. ed. Rio de

Janeiro: Forense, 1997. p. 56-58.

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autor que, havendo uma omissão específica, não genérica, a responsabilidade deve

ser analisada sob o ponto de vista objetivo, tal qual na hipótese de ação estatal.

Em outros termos, para referido autor há omissão específica quando o

Estado, por omissão sua, cria a situação propícia para a ocorrência do evento em

situação que tinha o dever de impedi-lo. Em outros termos, quando a própria

entidade pública, por não agir da maneira esperada, gera condições para que o risco

concretize-se no evento danoso. Pode-se dizer que o Estado acaba por se colocar

na posição de garante, ou seja, na posição em que há dever de impedir o resultado.

Nesse caso, a responsabilidade do Estado é objetiva. Já na omissão genérica o

Estado não se colocou na posição de garante, pois sua omissão não contribuiu de

maneira específica e circunstanciada para a produção do dano, o que torna sua

responsabilidade subjetiva.

Um exemplo fornecido no referido livro é a morte de detentos em

estabelecimentos penitenciários. É dito que há um dever específico de agir – cuidar

da incolumidade física do preso – de modo que não importa que a conduta estatal,

que pode até mesmo ser adequada e dentro dos padrões de normalidade,

emergindo inexoravelmente sua responsabilidade diante do não cumprimento do

dever de garantir a vida do preso. Ele arremata dizendo que “não houve ilícito por

parte da Administração; foram adotadas as cautelas razoáveis e imediatas, mas o

evento ocorreu, ainda assim”.350

Note-se que o autor confunde o ilícito com responsabilidade subjetiva, à

medida que diz que não houve ilícito da Administração – de modo que não há

responsabilidade subjetiva –, mas há responsabilidade (objetiva) pela ocorrência de

350 CASTRO, Guilherme Couto de. A responsabilidade civil..., p. 57.

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um dano que deveria ser evitado. Ora, se o resultado danoso sobreveio, e há

responsabilidade, há ilícito, e no caso um tipo muito específico que foi a violação de

um dever de agir imposto ao ente estatal. O que ocorre é que esse ilícito não tem

relação com a culpa, com responsabilidade subjetiva. Não é adequado, destarte,

dizer que não houve ilícito pelo fato de ser desnecessária a verificação de culpa.

Luis Manuel Fonseca Pires externa opinião em sentido equivalente, ao afirmar

que a responsabilidade civil objetiva do Estado por omissão não implica sua

transformação em um segurador universal, de modo a se responsabilizar por todo e

qualquer evento ocorrido em seu território e no qual não tenha intervindo. Assim, ao

tratar da responsabilidade civil do Estado pela ausência de segurança pública, para

esse autor, não é o fato da agressão, da violência, que gera a responsabilidade civil,

mas sim a identificação de um comportamento omissivo imediato, concreto e

circunstanciado do Poder Público que permite imputar sua responsabilidade.351

Rômolo Russo Júnior também é partidário da distinção entre omissão

genérica e específica, dizendo que não cabe ao Estado a obrigação de reparar

danos causados por atos predatórios, ilícitos em geral, mas cabe sim quando se

tratar de uma omissão específica e concreta, quando, por exemplo, há confrontos

pré-agendados por via eletrônica entre torcidas organizadas, e tal conflito não é

impedido ou reprimido, causando dano a terceiros.352 A distinção também é adotada

por Sérgio Cavalieri Filho.353

351 PIRES, Luis Manuel Fonseca. Responsabilidade civil do Estado..., p. 731 e ss. 352 ROSSO JÚNIOR, Rômolo. Responsabilidade civil do Estado..., p. 748-749. 353 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa..., p. 252. O autor apresenta exemplos que ajudam a

compreender a ideia de omissão específica: se o motorista embriagado atropela e mata pedestre que estava na beira da estrada, o Estado não poderá ser responsabilizado, pois se trata de

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Tarcísio Vieira de Carvalho Neto, em dissertação de mestrado sobre

responsabilidade civil do Estado por omissão, adota posição semelhante,

defendendo que não se pode estabelecer uma dicotomia estanque entre a

responsabilidade subjetiva e objetiva quando se trata de responsabilidade civil do

Estado por omissão. De acordo com esse autor, deve ser promovida uma

comparação entre a inação do Poder Público e o grau de eficiência que dele se

espera, de modo a se aferir, com menor erro, se um comportamento passivo está

além ou aquém do desejável. Se o comportamento estatal for muito abaixo do

mínimo esperado, objetiva será a responsabilidade, ao passo que, quanto mais

próximo do mínimo, será subjetiva. Assim, se a conduta estatal estiver dentro do

padrão de eficiência que se espera, o Estado não poderá ser responsabilizado, e tal

faixa de rendimento da atividade estatal deve ser orientada pela legalidade,

moralidade e eficiência. Vale a pena transcrever um trecho que sintetiza bem tal

ideia:

O ilícito omissivo não responde a critério tão vasto que transforme o Estado em criatura onipresente e pagador universal, o que o conduzirá à inexorável falência. Quando a omissão for específica, objetiva será sua responsabilidade. Noutro aspecto, seu comportamento será de omissão genérica e sua responsabilidade apurada como subjetiva. Porque quando o Estado pratica uma omissão específica, seu rendimento está muito abaixo do padrão imaginário de eficiência, e desculpa por sua inação não soará razoável. Quando descumpre uma obrigação geral, rendendo ensejo a uma omissão genérica, está próximo da eficiência esperada e é crível a investigação de sua culpa.354

omissão genérica. No entanto, se o motorista, momentos antes, passou por uma patrulha rodoviária, teve o veículo parado, mas os policiais, por alguma razão, deixaram-no prosseguir viagem, aí já haverá omissão específica que se erige em causa adequada de não impedimento do resultado. Nesse segundo caso haverá responsabilidade objetiva do Estado. Outro exemplo: o Estado não pode ser responsabilizado por veículo em má condição de manutenção que causa acidente, mas pode ser responsabilizado se tal veículo foi aprovado em alguma vistoria que aprovou sua utilização.

354 CARVALHO NETO, Tarcísio Vieira de. Responsabilidade civil extracontratual por omissão do Estado. 2002. Dissertação (Mestrado em Direito) – FADUSP, São Paulo, p. 131.

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O próprio autor reconhece que esse raciocínio coincide em grande medida

com a distinção entre omissão genérica e omissão específica ora em comento.355

As posições ora apresentadas são ligeiramente diferentes se comparadas à

simples dicotomia responsabilidade subjetiva contra objetiva, acima exposta, pois

não são tão extremas, permitindo a convivência entre ambos os regimes de

responsabilidade quando se estiver diante de omissão do Estado.

Todavia, a afirmação de que a espécie de omissão altera a natureza da

responsabilidade civil não é adequada tecnicamente. Na dita omissão específica há

responsabilidade porque, no caso concreto, o Estado acaba por se colocar no dever

de impedir aquele desdobramento causal. Na genérica não há responsabilidade pelo

fato de não haver referido dever. A culpa não tem nenhuma relação com essa

distinção.

A questão que se coloca é o dever ou não do Estado de impedir o resultado,

ou melhor, de quando surge tal dever para um ente de responsabilidades tão

numerosas e genéricas. Não há falar, assim, em culpa (negligência, imprudência ou

imperícia).

Destarte, a maneira correta de enxergar a dicotomia ora em comento é

transportando a vexata quaestio do elemento subjetivo para a abrangência do dever

de agir do ente estatal, ou seja, para a relação de imputação de sua omissão com o

dano. Não se deve debater sobre culpa. Deve-se ter mente apenas se há o dever de

impedir o desdobramento do nexo causal, haja vista que aquela situação concreta

355 CARVALHO NETO, Tarcísio Vieira de. Responsabilidade civil... p. 88.

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assim o exige. O debate para aferição da responsabilidade, destarte, deve ser

restrito à relação de imputação do dano ao Estado (relação de causalidade), que na

espécie é diferenciada pelo fato de a conduta ser omissiva.

2.5 Posicionamento da jurisprudência

A jurisprudência brasileira é oscilante no que tange à responsabilidade civil do

Estado por omissão, havendo diversos julgados fazendo menção a cada uma das

correntes expostas nesta dissertação. Alguns autores entendem que é possível

verificar uma tendência majoritária na jurisprudência pela responsabilidade subjetiva,

como Luis Manoel Fonseca Pires,356 Deborah Pierri357 e Weida Zancaner.358 Marcelo

Junqueira Calixto,359 diferentemente, entende que pela análise da jurisprudência dos

tribunais superiores não é possível concluir, com segurança, a prevalência de uma

ou outra teoria, havendo uma grande variedade de decisões. Leonardo de

Moraes,360 em dissertação de mestrado sobre o tema, após fazer um minucioso

estudo de decisões do Supremo Tribunal Federal e também de outros tribunais

Brasil afora, concluiu que não é possível afirmar que há uma tendência

356 “Na jurisprudência o entendimento prevalecente é mesmo por distinguir a ação e a omissão, a

primeira sob o regime jurídico da responsabilidade objetiva e a segunda sob a responsabilidade subjetiva, é dizer, a depender de culpa ou dolo da Administração Pública” (PIRES, Luis Manuel Fonseca. Responsabilidade civil do Estado..., p. 719-720).

357 “Embora pareça claro, não faltam os que ainda proclamem a comprovação da culpa nas situações em que se imputa a omissão estatal. A jurisprudência é farta, mas a nosso ver de modo indevido, tem exigido na responsabilização do Estado a prova de dolo ou culpa (STF-RE 179.147; STJ-RT 836/151)” (PIERRI, Deborah. As omissões dos agentes públicos..., p. 182).

358 “Na atualidade, a opinião dos mestres paulistas (Oswaldo Aranha Bandeira de Mello e Celso Antônio Bandeira de Mello) é a dominante em nosso país, notadamente nas decisões jurisdicionais” (ZANCANER, Weida. Responsabilidade do Estado, serviço público e os direitos dos usuários. In: FREITAS, Juarez (Coord.). Responsabilidade civil do Estado. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 339).

359 CALIXTO, Marcelo Junqueira. A culpa..., p. 231 e ss. 360 MORAES, Leonardo de. Responsabilidade por omissão do Estado. 2007. Dissertação (Mestrado

em Direito) – FADUSP, São Paulo, p. 134.

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jurisprudencial dominante, uma vez que as teorias aplicadas acabam por variar ao

sabor da casuística. Tarcísio Vieira de Carvalho Neto tem opinião parecida, dizendo,

ainda, que os julgados do Pretório Excelso muitas vezes estão em franca

contradição teórica entre si.361

A partir de uma análise da jurisprudência dos tribunais superiores, nota-se ser

impossível encontrar uniformidade. Em julgado de 15.04.2008, o Supremo Tribunal

Federal, em caso relatado pelo Ministro Celso de Mello, entendeu pela

responsabilidade objetiva do Estado em caso concreto que envolvia infecção

hospitalar contraída em hospital público. Veja-se:

Responsabilidade civil objetiva do poder público. Elementos estruturais. Pressupostos legitimadores da incidência do art. 37, § 6.º, da Constituição da República. Teoria do risco administrativo. Infecção por citomegalovírus. Fato danoso para o ofendido (menor impúbere) resultante da exposição de sua mãe, quando gestante, a agentes infecciosos, por efeito do desempenho, por ela, de atividades desenvolvidas em hospital público, a serviço da administração estatal. Prestação deficiente, pelo Distrito Federal, de acompanhamento pré-natal. Parto tardio. Síndrome de West. Danos morais e materiais. Ressarcibilidade. Doutrina. Jurisprudência. Recurso de agravo improvido. Os elementos que compõem a estrutura e delineiam o perfil da responsabilidade civil objetiva do Poder Público compreendem (a) a alteridade do dano, (b) a causalidade material entre o eventus damni e o comportamento positivo (ação) ou negativo (omissão) do agente público, (c) a oficialidade da atividade causal e lesiva imputável a agente do Poder Público que tenha, nessa específica condição, incidido em conduta comissiva ou omissiva, independentemente da licitude, ou não, do comportamento funcional e (d) a ausência de causa excludente da responsabilidade estatal. Precedentes. A omissão do Poder Público, quando lesiva aos direitos de qualquer pessoa, induz à responsabilidade civil objetiva do Estado, desde que presentes os pressupostos primários que lhe determinam a obrigação de indenizar os prejuízos que os seus agentes, nessa condição, hajam causado a terceiros. Doutrina. Precedentes. A jurisprudência dos Tribunais em geral tem reconhecido a responsabilidade civil objetiva do Poder Público nas hipóteses em que o eventus damni ocorra em hospitais públicos (ou mantidos pelo Estado), ou derive de tratamento médico inadequado, ministrado por funcionário público,

361 CARVALHO NETO, Tarcísio Vieira de. Responsabilidade civil extracontratual..., p. 82 e ss.

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ou, então, resulte de conduta positiva (ação) ou negativa (omissão) imputável a servidor público com atuação na área médica. Servidora pública gestante, que, no desempenho de suas atividades laborais, foi exposta à contaminação pelo citomegalovírus, em decorrência de suas funções, que consistiam, essencialmente, no transporte de material potencialmente infectocontagioso (sangue e urina de recém-nascidos). Filho recém-nascido acometido da “Síndrome de West”, apresentando um quadro de paralisia cerebral, cegueira, tetraplegia, epilepsia e malformação encefálica, decorrente de infecção por citomegalovírus contraída por sua mãe, durante o período de gestação, no exercício de suas atribuições no berçário de hospital público. Configuração de todos os pressupostos primários determinadores do reconhecimento da responsabilidade civil objetiva do Poder Público, o que faz emergir o dever de indenização pelo dano pessoal e/ou patrimonial sofrido (RE 495740 AgR, Rel. Min. Celso de Mello, 2.ª Turma, j. 15.04.2008).

O mesmo tribunal, todavia, em caso relatado pelo Ministro Carlos Velloso em

03.08.2004, no qual se discutia responsabilidade por morte de detento em

estabelecimento penitenciário, decidiu que na omissão a responsabilidade civil do

Estado é subjetiva.

Constitucional. Administrativo. Civil. Responsabilidade civil do Estado. Ato omissivo do Poder Público: detento ferido por outro detento. Responsabilidade subjetiva: culpa publicizada: falta do serviço. CF., art. 37, § 6.º.

I – Tratando-se de ato omissivo do poder público, a responsabilidade civil por esse ato é subjetiva, pelo que exige dolo ou culpa, em sentido estrito, esta numa de suas três vertentes – a negligência, a imperícia ou a imprudência – não sendo, entretanto, necessário individualizá-la, dado que pode ser atribuída ao serviço público, de forma genérica, a falta do serviço. II – A falta do serviço – faute Du service dos franceses – não dispensa o requisito da causalidade, vale dizer, do nexo de causalidade entre ação omissiva atribuída ao poder público e o dano causado a terceiro. III – Detento ferido por outro detento: responsabilidade civil do Estado: ocorrência da falta do serviço, com a culpa genérica do serviço público, por isso que o Estado deve zelar pela integridade física do preso. IV – RE conhecido e provido (RE 382054, Rel. Min. Carlos Velloso, 2.ª Turma, j. 03.08.2004).362

362 Precedentes no mesmo sentido: RE 602.223-AgR, Rel. Min. Eros Grau, j. 27.02.2004, Segunda

Turma, DJE 12.03.2010; RE 409.203, Rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 07.03.2006, Segunda Turma, DJ 20.04.2007; RE 395942-AgR, Rel. Min. Ellen Gracie, j. 16.12.2008, Segunda Turma, DJE 27.02.2009.

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Diante do dissenso estabelecido no Pretório Excelso, a questão teve

repercussão geral reconhecida, e está, atualmente, aguardando decisão do Plenário.

Responsabilidade civil do Poder Público por omissão (art. 107, EC 1/69). Explosão de local destinado ao comércio de fogos de artifício. Comunicação prévia à autoridade municipal comprovada. Efetivo pagamento de taxa para expedição de licença. Ausência de precedentes específicos. Necessidade de submissão ao plenário. Repercussão geral reconhecida.

A Turma, ao apreciar agravo regimental interposto pelo município de São Paulo à decisão monocrática proferida pelo ministro relator, reconheceu a existência de repercussão geral (art. 543-A, § 4.º, CPC) e, considerando a inexistência de precedentes específicos – responsabilidade civil do poder público por omissão relativa à fiscalização de local destinado ao comércio de fogos de artifício cujo proprietário requerera licença de funcionamento e recolhera a taxa específica –, deu provimento ao agravo regimental para submeter o recurso extraordinário a julgamento do Plenário, oportunizando-se às partes a possibilidade de sustentações orais (RE 136861 AgR, Rel. Min. Joaquim Barbosa, 2.ª Turma, j. 01.02.2011).

O Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, também tem decisões em ambos

os sentidos. Em 07.05.2009, o Ministro Luiz Fux decidiu pela responsabilidade

subjetiva do Município, de modo a desobrigá-lo ao pagamento de indenização por

incêndio em casa de shows. Segue o inteiro teor do acórdão, cuja transcrição na

íntegra é fundamental para que possa ser devidamente comentado:

Processual civil. Recurso especial. Administrativo. Responsabilidade civil do Estado. Incêndio no interior de estabelecimento de casa destinada a shows. Desafio ao óbice da Súmula 07/STJ. Ausência de nexo de causalidade entre a omissão estatal e o dano. Incêndio. Culpa de terceiros. Prejudicada a análise do chamamento do processo.

1. Ação indenizatória em face de Município, em razão de incêndio em

estabelecimento de casa destinada a shows, ocasionando danos morais, materiais e estéticos ao autor.

2. A situação descrita não desafia o óbice da Súmula 07 desta Corte.

Isto porque, não se trata de reexame do contexto fático-probatório dos autos, circunstância que redundaria na formação de nova convicção acerca dos fatos, mas sim de valoração dos critérios

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jurídicos concernentes à utilização da prova e à formação da convicção, ante a distorcida aplicação pelo Tribunal de origem de tese consubstanciada na caracterização da responsabilidade civil do Estado.

3. “O conceito de reexame de prova deve ser atrelado ao de convicção, pois o que não se deseja permitir, quando se fala em impossibilidade de reexame de prova, é a formação de nova convicção sobre os fatos. Não se quer, em outras palavras, que os recursos extraordinário e especial, viabilizem um juízo que resulte da análise dos fatos a partir das provas. Acontece que esse juízo não se confunde com aquele que diz respeito à valoração dos critérios jurídicos respeitantes à utilização da prova e à formação da convicção. É preciso distinguir reexame de prova de aferição: i) da licitude da prova; ii) da qualidade da prova necessária para a validade do ato jurídico ou iii) para o uso de certo procedimento; iv) do objeto da convicção; v) da convicção suficiente diante da lei processual; e vi) do direito material; vii) do ônus da prova; viii) da idoneidade das regras de experiência e das presunções; ix) além de outras questões que antecedem a imediata relação entre o conjunto das provas e os fatos, por dizerem respeito ao valor abstrato de cada uma das provas e dos critérios que guiaram os raciocínios presuntivo, probatório e decisório” (Luiz Guilherme Marinoniin. Reexame de prova diante dos recursos especial e extraordinário, publicado na Revista Genesis de Direito Processual Civil, Curitiba, n. 35, p. 128-145).

4. A jurisprudência desta Corte tem se posicionado no sentido de que em se tratando de conduta omissiva do Estado a responsabilidade é subjetiva e, neste caso, deve ser discutida a culpa estatal. Este entendimento cinge-se no fato de que na hipótese de Responsabilidade Subjetiva do Estado, mais especificamente, por omissão do Poder Público, o que depende é a comprovação da inércia na prestação do serviço público, sendo imprescindível a demonstração do mau funcionamento do serviço, para que seja configurada a responsabilidade. Diversa é a circunstância em que se configura a responsabilidade objetiva do Estado, em que o dever de indenizar decorre do nexo causal entre o ato administrativo e o prejuízo causado ao particular, que prescinde da apreciação dos elementos subjetivos (dolo e culpa estatal), posto que referidos vícios na manifestação da vontade dizem respeito, apenas, ao eventual direito de regresso. Precedentes (REsp 721439/RJ; DJ 31.08.2007; REsp 471606/SP; DJ 14.08.2007; REsp 647.493/SC; DJ 22.10.2007; REsp 893.441/RJ, DJ 08.03.2007; REsp 549812/CE; DJ 31.05.2004). 5. In casu, o Tribunal de origem entendeu tratar-se da responsabilidade subjetiva do Estado, em face de conduta omissiva, consoante assentado: “[...] Também restou incontroverso nos autos que o incêndio teve como causa imediata as faíscas advindas do show pirotécnico promovido irresponsavelmente dentro do estabelecimento, não obstante constar da caixa de fogos o alerta do fabricante para soltá-los sempre em local aberto, ao ar livre, e nunca perto de produtos inflamáveis. Ainda assim, me parece óbvio que, se o município tivesse sido diligente, exercendo regularmente seu poder de polícia, fiscalizando o estabelecimento e tomando as medidas condizentes com as irregularidades constatadas, certamente evitaria o incêndio,

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porque a Casa não estaria funcionando, ou, alternativamente, daria às pessoas ali presentes a possibilidade de se evadirem do local de maneira mais rápida e segura. [...]” (fls. 410).

6. Desta forma, as razões expendidas no voto condutor do acórdão hostilizado revelam o descompasso entre o entendimento esposado pelo Tribunal local e a circunstância de que o evento ocorreu por ato exclusivo de terceiro, não havendo nexo de causalidade entre a omissão estatal e o dano ocorrido.

7. Deveras, em se tratando de responsabilidade subjetiva, além da perquirição da culpa do agente há de se verificar, assim como na responsabilidade objetiva, o nexo de causalidade entre a ação estatal comissiva ou omissiva e o dano. A doutrina, sob este enfoque preconiza: “Se ninguém pode responder por um resultado a que não tenha dado causa, ganham especial relevo as causas de exclusão do nexo causal, também chamadas de exclusão de responsabilidade. É que, não raro, pessoas que estavam jungidas a determinados deveres jurídicos são chamadas a responder por eventos a que apenas aparentemente deram causa, pois, quando examinada tecnicamente a relação de causalidade, constata-se que o dano decorreu efetivamente de outra causa, ou de circunstância que as impedia de cumprir a obrigação a que estavam vinculadas. E, como diziam os antigos, ‘ad impossibilia nemo tenetur’. Se o comportamento devido, no caso concreto, não foi possível, não se pode dizer que o dever foi violado. [...]” (p. 63). E mais: “[...] é preciso distinguir ‘omissão genérica’ do Estado e ‘omissão específica’ [...] Haverá omissão específica quando o Estado, por omissão sua, crie a situação propícia para a ocorrência do evento em situação em que tinha o dever de agir para impedi-lo. Assim, por exemplo, se o motorista embriagado atropela e mata pedestre que estava na beira da estrada, a Administração (entidade de trânsito) não poderá ser responsabilizada pelo fato de estar esse motorista ao volante sem condições. Isso seria responsabilizar a Administração por omissão genérica. Mas se esse motorista, momentos antes, passou por uma patrulha rodoviária, teve o veículo parado, mas os policiais, por alguma razão, deixaram-no prosseguir viagem, aí já haverá omissão específica que se erige em causa adequada do não impedimento do resultado. Nesse segundo caso haverá responsabilidade objetiva do Estado. [...]” (p. 231) (Sérgio Cavalieri Filho, Programa de responsabilidade civil, 7. ed., Editora Atlas).

8. In casu, o dano ocorrido, qual seja o incêndio em casa de shows, não revela nexo de causalidade entre a suposta omissão do Estado. Porquanto, a causa dos danos foi o show pirotécnico, realizado pela banda de música em ambiente e local inadequados para a realização, o que não enseja responsabilidade ao Município cujas exigências prévias ao evento não foram insuficientes ou inadequadas, ou na omissão de alguma providência que se traduza como causa eficiente e necessária do resultado danoso.

9. Neste sentido, bem preconizou a sentença a quo: “em face dos elementos carreados aos autos, verifica-se que a causa do incêndio foram as fagulhas provocadas pelo show pirotécnico dentro do estabelecimento, evidentemente promovido e autorizado pelos seus administradores que não observaram, devidamente, o aviso do

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fabricante, estampado na caixa dos fogos para soltá-los em local amplo e aberto, ou seja, ao ar livre ‘sendo desaconselhável seu uso perto de produtos inflamáveis’ (f. 151). Diante disto, não restaram dúvidas que o ato culposo foi praticado por terceiros que, de forma inescrupulosa, decidiram promover o show pirotécnico, sem qualquer zelo com as 1.500 pessoas que superlotaram aquela casa noturna, não obstante terem conhecimento possuía capacidade para 270 pessoas” (fl. 329).

10. O contexto delineado nos autos revela que o evento danoso não decorreu de atividade eminentemente estatal, ao revés, de ato de particulares estranhos à lide.

11. O chamamento ao processo dos proprietários da casa de shows e do empresário da banda revela-se prejudicado, por pressupor existência de uma relação jurídica de direito material, na qual o chamante e o chamado figurem como devedor solidário do mesmo credor, o que in casu pressupõe a procedência da demanda.

12. Recurso especial provido (REsp 888420/MG, Rel. Min. Luiz Fux, 1.ª Turma, j. 07.05.2009).

Importante notar uma contradição na fundamentação do julgado, pois afasta a

responsabilidade do Município invocando mão da teoria subjetiva, chegando

inclusive a mencionar a distinção entre omissão genérica e específica, para depois

dizer que não houve nexo causal entre a omissão e o dano, que foi gerado por

conduta imprudente de particulares. Confundiu-se, pois, a culpa com o nexo causal.

Ressalte-se que, evidenciada a ausência de nexo causal, não havia motivo para

invocar a responsabilidade subjetiva, que se opera em plano distinto.

Sobre a jurisprudência mais recente do Superior Tribunal de Justiça, o que se

nota é que a grande maioria dos julgados acaba por não enfrentar a dicotomia

discutida neste trabalho, pois os recursos não conseguem ultrapassar a barreira

imposta pela Súmula 07363 daquele tribunal.

Processual civil e administrativo. Agravo regimental no agravo em recurso especial. Responsabilidade civil do Estado por omissão.

363 “A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial.”

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Queda na Câmara Legislativa. Obra sem sinalização. Condenação. Reexame de fatos e provas. Indenização por danos materiais e morais. Redução do quantum indenizatório. Impossibilidade de revisão. Razoabilidade. Súmula 7/STJ. Divergência jurisprudencial não comprovada. Ausência de similitude fática. Agravo desprovido.

1. O julgamento do Recurso Especial, para fins de afastar a condenação do Distrito Federal, pressupõe, necessariamente, o reexame dos aspectos fáticos da lide – especificamente para descaracterizar o ato lesivo, o dano e o nexo causal –, atividade cognitiva inviável nesta instância especial (Súmula 7/STJ).

2. A revisão do valor fixado a título de danos morais em razão de queda nos corredores da Câmara Legislativa, em local onde estava sendo realizada reforma, sem qualquer sinalização ou isolamento da área, encontra óbice na Súmula 07/STJ, uma vez que fora estipulado em razão das peculiaridades do caso concreto, levando em consideração o grau da lesividade da conduta ofensiva e a capacidade econômica da parte pagadora, a fim de cumprir dupla finalidade: amenização da dor sofrida pela vítima e punição do causador do dano, evitando-se novas ocorrências. Assim, a revisão do valor a ser indenizado somente é possível quando exorbitante ou irrisória a importância arbitrada, em violação dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, o que não se observa in casu diante da quantia fixada em R$ 100.000,00.

3. A interposição do Recurso Especial pela alínea c do permissivo constitucional exige a comprovação, entre os acórdãos apontados como paradigma e o aresto impugnado, da similitude fática, nos termos do art. 541, parágrafo único, do CPC, e do art. 255, § 3.º, RISTJ, situação inexistente no caso dos autos.

4. Agravo regimental do Distrito Federal desprovido (AgRg no Agravo em Recurso Especial 167.557/DF (2012/0079263-0), Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 26.06.2012).

Processual civil. Agravo regimental no recurso especial. Omissão e contradição. Violação ao art. 535 do CPC. Não ocorrência. Responsabilidade civil do Estado. Acidente automobilístico em rodovia estadual. Trânsito de animais. Dever de fiscalização. Inércia administrativa. Morte de menor. Danos morais. Quantum indenizatório não exorbitante. Reexame do conjunto fático-probatório. Impossibilidade. Súmula 7/STJ. Agravo não provido.

1. Segundo a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, não viola o art. 535 do CPC, tampouco nega a prestação jurisdicional, o acórdão que, mesmo sem ter examinado individualmente cada um dos argumentos trazidos pelo vencido, adota fundamentação suficiente para decidir de modo integral a controvérsia, conforme ocorreu no acórdão em exame, não se podendo cogitar de sua nulidade.

2. Quando a inércia administrativa concorrer para a ocorrência do evento danoso, a sua omissão específica gera a responsabilidade civil do Estado.

3. Comprovada nos autos a consumação do dano, a existência de omissão estatal em fiscalizar a rodovia estadual com trânsito

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de animais e o vínculo causal entre o evento danoso e o comportamento estatal – requisitos cumulativos geradores da responsabilidade civil do Estado –, rever tal entendimento, firmado no acórdão recorrido, demandaria o reexame do conjunto fático-probatório, o que atrai o óbice da Súmula 7/STJ.

4. No caso em exame, as instâncias ordinárias fixaram a título de danos morais o valor de R$ 40.000,00, a fim de mitigar o sofrimento causado e os efeitos psicológicos adversos gerados pelo evento danoso, valor que não se mostra exorbitante ao ponto de merecer a intervenção deste Superior Tribunal para sua redução.

5. Agravo regimental não provido (AgRg no Recurso Especial 1.247.453/MS (2011/0070753-0), Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, j. 22.05.2012).

Processual civil e administrativo. Agravo regimental em agravo em recurso especial. Responsabilidade civil do Estado. Omissão. Dano moral. Valor da indenização. Reexame de matéria fático-probatória. Incidência da Súmula 7/STJ. Agravo não provido.

1. O Tribunal a quo, soberano na análise do acervo fático-probatório dos autos, entendeu estar configurado o dano moral em razão do acidente sofrido pela criança. Revisar tal entendimento demanda reavaliação de fatos e provas, o que é vedado, em recurso especial, ante o óbice contido na Súmula 7/STJ.

2. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça firmou o entendimento de que a revisão do valor a ser indenizado somente é possível quando exorbitante ou irrisória a importância arbitrada, o que foi feito no presente caso, em que se firmou novo quantum indenizatório mais baixo, proporcional e razoável, sendo descabida nova revisão.

3. Agravo regimental não provido (AgRg no Agravo em Recurso Especial 140.365/DF (2012/0030518-8), Rel. Min. Benedito Gonçalves, j. 15.05.2012).

Processual civil e administrativo. Agravo regimental em agravo em recurso especial. Responsabilidade civil do Estado. Explosão em empresa particular. Omissão estatal. Indenização por dano moral e quantum arbitrado. Revisão. Impossibilidade. Reexame de matéria fático-probatória. Incidência da Súmula 7/STJ. Agravo não provido.

1. O Tribunal a quo, soberano na análise do acervo fático-probatório dos autos, entendeu estar configurada omissão da Administração apta a ensejar danos morais e, consequentemente, direito à reparação.

2. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça firmou o entendimento de que a revisão do valor a ser indenizado somente é possível quando exorbitante ou irrisória a importância arbitrada, em flagrante violação dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. No caso em foco, a fixação do valor da indenização por danos morais não se mostra excessiva para o caso em questão, de forma que o exame da justiça do quantum arbitrado, bem como a sua revisão, demandam reavaliação de fatos e provas,

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o que é vedado, em recurso especial, ante o óbice contido na Súmula 7/STJ.

3. Agravo regimental não provido (AgRg no Agravo em Recurso Especial 104.399/SP, Rel. Benedito Gonçalves, j. 08.05.2012).

Administrativo e processual civil. Agravo regimental no agravo em recurso especial. Responsabilidade civil do Estado. Ação de indenização por danos morais. Morte por atropelamento em via pública. Legitimidade passiva estatal. Verba indenizatória fixada em valor razoável. Incidência da Súmula 7/STJ.

1. Hipótese de ação de indenização por danos morais ajuizada pelos familiares (esposa e filho) do de cujus, que teria sofrido atropelamento numa via em frente ao Fórum da cidade de Recife, onde trabalhava como juiz de direito, em razão da omissão do Estado de Pernambuco e da Empresa Metropolitana de Transportes Urbanos (EMTU) na construção de uma passarela para travessia de pedestre no local do acidente.

2. O Estado de Pernambuco possui legitimidade passiva para figurar na presente demanda, tendo em vista que à época do acidente, em razão de convênio firmado, amparado no artigo 25 do Código de Trânsito Brasileiro, era incumbido da gestão do trânsito municipal, que executava por intermédio da EMTU, residindo aí a sua responsabilidade pela obrigação de indenizar os autores. Ademais, a interpretação das cláusulas contidas no aludido convênio encontra óbice no Enunciado n. 5 da Súmula do STJ.

3. Quanto ao valor indenizatório, o Tribunal de origem, ao considerar as circunstâncias do caso concreto, as condições econômicas das partes e a finalidade da reparação, fixou o valor em 200.000,00 (duzentos mil reais), sendo 100.000,00 (cem mil reais) para cada demandante, o que não escapa à razoabilidade, nem se distancia do bom senso e dos critérios recomendados pela doutrina e pela jurisprudência. Incidência da Súmula 7 do STJ.

4. Agravo regimental não provido (AgRg no Agravo em Recurso Especial 1.678/PE (2011/0043158-3), Rel. Min. Benedito Gonçalves, j. 28.02.2012).

Processual civil, administrativo e ambiental. Adoção como razões de decidir de parecer exarado pelo Ministério Público. Inexistência de nulidade. Art. 2.º, parágrafo único, da Lei 4.771/65. Dano ao meio ambiente. Responsabilidade civil do Estado por omissão. Arts. 3.º, IV, c/c 14, § 1.º, da Lei 6.938/81. Dever de controle e fiscalização.

1. A jurisprudência predominante no STJ é no sentido de que, em matéria de proteção ambiental, há responsabilidade civil do Estado quando a omissão de cumprimento adequado do seu dever de fiscalizar for determinante para a concretização ou o agravamento do dano causado pelo seu causador direto. Trata-se, todavia, de responsabilidade subsidiária, cuja execução poderá ser promovida caso o degradador direto não cumprir a obrigação, “seja por total ou parcial exaurimento patrimonial ou insolvência, seja por impossibilidade ou incapacidade, por qualquer razão, inclusive técnica, de cumprimento da prestação judicialmente imposta,

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assegurado, sempre, o direito de regresso (art. 934 do Código Civil), com a desconsideração da personalidade jurídica, conforme preceitua o art. 50 do Código Civil” (REsp 1.071.741/SP, 2.ª T., Min. Herman Benjamin, DJe 16.12.2010).

2. Examinar se, no caso, a omissão foi ou não “determinante” (vale dizer, causa suficiente ou concorrente) para a “concretização ou o agravamento do dano” é juízo que envolve exame das circunstâncias fáticas da causa, o que encontra óbice na Súmula 07/STJ.

3. Agravos regimentais desprovidos (AgRg no Recurso Especial 1.001.780/PR (2007/0247653-4), Rel. Min. Teori Albino Zavascki, j. 27.09.2011).

É possível concluir, portanto, que não há linha dominante na jurisprudência,

percepção ratificada pelo fato de o Supremo Tribunal Federal ainda não ter julgado a

repercussão geral a respeito. Destarte, tal qual na doutrina, nos tribunais a dicotomia

responsabilidade objetiva x responsabilidade subjetiva na conduta omissiva estatal

se encontra viva e bem presente.

2.6 Imputação de danos na omissão estatal

Retomando-se as lições expostas no Capítulo 1 deste trabalho, conclui-se

que a omissão é relevante quando havia um dever de agir consistente em

interromper um desdobramento causal inaugurado alhures, sendo que tal dever tem

origem na lei, em contrato (responsabilidade civil contratual), em fato anterior do

próprio omitente (dever de ingerência), ou ainda pode ser deduzido de

circunstâncias do caso concreto.

Viu-se, ainda, que a omissão, ontologicamente, é uma abstenção qualificada

por haver uma esperança, isto é, uma expectativa de que houvesse conduta prevista

ou previsível, expectativa essa legítima por derivar de comando normativo. Viu-se

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que a omissão não é mero não fazer, que de per si não diz nada, devendo ser

cotejada dentro do contexto conduta-evento.

Assim, quando se está diante de uma conduta omissiva, dentro da

responsabilidade civil, deve-se perscrutar qual dever de agir foi violado pelo agente,

ou, em outros termos, qual o fundamento pelo qual o agente tinha o dever de agir no

caso concreto. A identificação do dever de agir é o elemento que permite construir a

causalidade puramente normativa na conduta omissiva. Foi exatamente essa a

questão identificada por Celso Antônio Bandeira de Mello364 ao propagar a doutrina

da responsabilidade subjetiva na omissão, pois textualmente ele diz:

[...] caso o Poder Público não estivesse obrigado a impedir o acontecimento danoso, faltaria razão para impor-lhe o encargo de suportar patrimonialmente as consequências da lesão. Logo, a responsabilidade estatal por ato omissivo é sempre responsabilidade por comportamento ilícito.

O renomado administrativista acertou ao identificar o fenômeno de que na

omissão deve haver um “dever de agir”, pois o processo causal que leva ao dano

não é iniciado pelo Estado, de modo que há um dever de agir para impedi-lo.

Todavia, ao afirmar que por isso a responsabilidade passa de objetiva para

subjetiva, caracterizando a faute du service, acabou por tirar uma conclusão

imprecisa. Com efeito, esse problema circunscreve-se ao âmbito do nexo de

causalidade, ou melhor, da relação de imputação dos danos ao responsável, não do

elemento subjetivo.

364 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso..., p. 976.

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Dois argumentos básicos podem ser levantados para objetar essa concepção:

em primeiro lugar, a responsabilidade subjetiva não se confunde com a ilicitude; em

segundo lugar, a faute du service não pode ser equiparada à responsabilidade

subjetiva do direito civil.

No que tange ao primeiro ponto, talvez essa confusão tenha derivado do fato

de alguns autores identificarem a ilicitude com a culpa, conforme exposto no item

1.1.3. Sérgio Cavalieri Filho365 sustenta que “todas as definições de ato ilícito,

sobretudo entre os clássicos, seguem essa mesma linha – íntima relação entre o

seu conceito e o de culpa”. Aliás, para Juarez de Freitas esse debate dicotômico

entre licitude e ilicitude para efeito de responsabilidade do Estado é descabido.366

Nesse sentido, parece razoável interpretar que essa corrente doutrinária

afirma que a responsabilidade do Estado por omissão é subjetiva pelo fato de haver

uma norma imputando um dever de agir que foi violada, como se a ilicitude fosse

sinônimo de culpa, tal qual era tratada pelos autores clássicos. Isso fica claro ao ser

examinado o seguinte trecho da obra de Celso Antônio Bandeira de Mello:367

E, sendo responsabilidade por ilícito, é necessariamente responsabilidade subjetiva, pois não há conduta ilícita do Estado (embora do particular possa haver) que não seja proveniente de negligência, imprudência ou imperícia (culpa) ou, então, deliberado

365 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa..., p. 8. 366 “Imprescindível, nesta leitura, transcender o vetusto e rígido corte dicotômico entre atos lícitos e

ilícitos. No próprio Código Civil, não é correto asseverar que haja apenas responsabilidade por atos ilícitos. Trata-se de regra que comporta exceção. Como quer que seja, para os fins da responsabilização estatal, regida pelo direito constitucional Administrativo, importa evoluir profundamente para sobrepessar a dicotomia, pois inegável que a apuração das condutas públicas (comissivas e omissivas), presa à lógica subjetivista, não guarda simetria com o alargamento das funções constitucionais do Estado” (FREITAS, Juarez. Responsabilidade civil do Estado e o princípio da proporcionalidade: vedação de excesso e de inoperância. In: –––––– (Coord.). Responsabilidade civil do Estado. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 178-179).

367 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso…, p. 977.

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propósito de violar a norma que o constituía em dada obrigação (dolo). Culpa e dolo são justamente as modalidades de responsabilidade subjetiva.

Cristiana Corrêa Conde Faldini expõe o mesmo raciocínio. A autora chega a

dizer que, se não houvesse obrigação legal de o agente público agir, sua omissão

seria lícita, o que excluiria o nexo de causalidade, mas finaliza posicionando-se pela

corrente subjetiva, como se a violação desse dever de agir (ilicitude) fosse atrelada à

culpa.368

Ora, se tal raciocínio fosse correto, a responsabilidade por omissão em

qualquer caso seria conduta culposa, pois, conforme já foi demonstrado no Capítulo

1, em todos os casos há um dever de agir imposto normativamente que resta

violado, ou seja, há ato ilícito. Não se tem notícia, todavia, de que haja essa

construção dentro da dogmática de direito civil.369 Não se afigura adequado atrelar a

ilicitude à culpa (em sentido amplo).

No que concerne ao segundo ponto, retomam-se aqui as lições expostas

sobre o conceito de culpa (Capítulo 1, item 1.3), que é própria do ato, ligando-se

assim ao sujeito, à subjetividade, como índice de bom uso da liberdade do homem.

Não parece ser um parâmetro que se possa opor a uma entidade abstrata que é o

serviço público, como faz a teoria da culpa anônima. O que se deve perscrutar,

então, não é se houve negligência, imprudência ou imperícia, noções de difícil

adaptação à atividade estatal abstratamente considerada, mas sim se havia o dever,

368 FALDINI, Cristiana Corrêa Conde. Responsabilidade do Estado pela prática de atos lícitos. 2007.

Dissertação (Mestrado em Direito) – FADUSP, São Paulo, p. 38-39. 369 Para Maria Sylvia Di Pietro, todavia, a omissão está embutida na culpa, de modo que, se houve

omissão, houve culpa (Direito administrativo, p. 710).

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no caso, de interromper determinado desdobramento causal, isto é, se o Estado

deveria, se lhe era exigível, no caso, ter impedido aquele desdobramento causal.

Destarte, despropositada a invocação de responsabilidade subjetiva pelo fato

de a conduta estatal ser omissiva, devendo o foco de análise ser concentrado dentro

do nexo de imputação, ressaltando aquilo que já se deixou assentado no item 1.2 do

Capítulo 1, no sentido de que não há propriamente causalidade na omissão, mas

sim a escolha, a partir de elementos colhidos dentro do ordenamento jurídico, de

alguém a se responsabilizar pelo dano.

Felipe Peixoto Braga Netto,370 de certa forma, identificou tal fenômeno:

Fundamental, no entanto, na responsabilidade omissiva, é evidenciar, com a clareza necessária, o nexo causal, sem o que inexistirá dever de reparar. Embora o Estado responda sem culpa, não responde por resultados danosos em relação aos quais nada poderia fazer, sendo imprescindível, nessa trilha, que se estabeleça uma razoável relação causal entre o dano e a atividade estatal. [...]. Os julgados, por vezes, confundem a culpa – cuja invocação, em sede de responsabilidade estatal, é despropositada – e nexo causal. [...]. Em torno do nexo causal devem orbitar tais discussões – não em torno da culpa. Se uma enchente, por exemplo, causa danos aos moradores, o Município responderá por ele? Sim, e independentemente de culpa, desde que as vítimas provem – ou decorra das circunstâncias – o nexo causal entre a omissão estatal e o dano.

Nelson Nery Junior também identificou a questão:

Na verdade, há situações que exigem do autor da pretensão indenizatória deduzida contra a administração pública demonstração do nexo de causalidade entre omissão administrativa e o dano por ele sofrido. O problema, portanto, não se encontra no sistema de responsabilização da administração, nem no fundamento da

370 BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Responsabilidade civil, p. 247-248.

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responsabilidade, que é sempre o risco. A questão é relativa ao nexo de causalidade entre omissão e dano.371

Pode-se mencionar, também, Yussef Said Cahali,372 que deixa claro que a

questão da responsabilidade civil do Estado na omissão relaciona-se com a

exigibilidade da obra não prestada ou do serviço não executado, e que a

elasticidade dessa noção acabou por induzir alguns autores a perquirirem sobre a

culpa em casos tais.

Na mesma linha, João Agnaldo Donizeti Gandini e Diana Paola da Silva

Salomão373 afirmam que o fato de reconhecer a ilicitude na ação omissiva, tendo em

vista a existência de norma imputando o dever de agir, não implica responsabilidade

subjetiva, devendo a questão limitar-se à conduta, ao dano e ao nexo causal, com a

especificidade do dever de agir. Em outras palavras, reconhecem os autores que

para a entidade estatal livrar-se da indenização não precisa lançar mão da

responsabilidade subjetiva, bastando demonstrar que não era exigível a conduta

naquela hipótese específica.

371 NERY JUNIOR, Nelson. Responsabilidade civil…, p. 34. 372 CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade..., p. 216-218. 373 “Ao final, parece mesmo ser despicienda a discriminação entre causa e condição como fatores

ensanchadores da responsabilidade estatal. Ademais, o ensinamento de Celso Antônio baseia-se em que, para ele, a conduta omissiva da Administração é sempre ilícita. Parte da ideia de que a responsabilidade do Estado nasce do fato de que este, tendo o dever de agir, não agiu. Logo, descumpriu um dever legal; agiu ilicitamente. Ora, mesmo firmado tal entendimento – e parece ser este o predominante –, não estaria afastada a responsabilidade objetiva da Administração omissa. A responsabilidade continuaria sendo objetiva, por força de disposição constitucional expressa, cabendo ao lesado demonstrar a conduta (no caso, omissiva) do agente estatal, o dano e o nexo de causalidade entre eles, e, àquela, demonstrar que não tinha o dever legal de agir, ou que, o tendo, não deixou de agir ou, ainda, que está presente qualquer das excludentes de responsabilidade, o que afastaria a obrigação de indenizar. Note-se que não é necessário transmudar a responsabilidade objetiva em subjetiva para que a Administração se desvincule do dever de indenizar, basta que esta demonstre que não tinha o dever de agir e que, portanto, sua conduta não foi, do ponto de vista jurídico, causa do evento danoso” (GANDINI, João Agnaldo Donizeti; SALOMÃO, Diana Paola da Silva. A responsabilidade civil…, p. 157).

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Deborah Pierri,374 por sua vez, sustenta que a referência à responsabilidade

subjetiva na responsabilidade estatal por omissão é improdutiva. Explica a autora

que a confusão advém de uma má compreensão da teoria da faute du service, que,

segundo ela, significa serviço inadequado, ou prestação insuficiente. Nesse sentido,

a teoria da faute du service não guardaria nenhuma relação com a culpa concebida

dentro do direito civil, individualizada. A responsabilidade estatal por omissão

emergiria, assim, sempre que verificada uma específica omissão estatal, um

funcionamento inadequado do serviço, independentemente de culpa.

Daniel Ferreira375 apresenta opinião no mesmo sentido, ensinando que a

omissão estatal juridicamente relevante manifesta-se quando há negação de uma

obrigação normativamente prevista, e o “deixar de agir” estatal tem de ser

juridicamente exigível. Arremata dizendo ser prescindível qualquer indagação no que

tange à culpa, pois o método para aferição da responsabilidade do Estado será

avaliar se o dano lhe pode ser imputado por não ter agido quando deveria,

revelando-se, assim, a antijuridicidade em sua omissão.

Somando-se às opiniões ora trazidas à baila, vale ressaltar a conclusão

resultante do item 2.2.1 deste Capítulo, no sentido de que não se pode afirmar que a

teoria da faute du service é uma teoria de responsabilidade subjetiva, tendo em vista

sua incompatibilidade com a teoria da culpa cunhada no seio da dogmática civilista.

A doutrina que defende puramente a responsabilidade objetiva, por outro

lado, muitas vezes não volta os olhos a essa minúcia da causalidade (imputação), 374 PIERRI, Deborah. As omissões dos agentes públicos..., p.182 e ss. 375 FERREIRA, Daniel. Responsabilidade civil do Estado…, p. 58 e ss.

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pretendendo assim uma ampla e irrestrita responsabilização do Estado pelos danos,

a ponto de torná-lo praticamente um segurador universal. Essa postura deve ser de

pronto rechaçada.

Com efeito, verifica-se a correção da teoria da responsabilidade subjetiva

quando identifica que na omissão se deve perscrutar um dever de agir do Estado no

caso concreto, de modo a não responsabilizá-lo por qualquer evento em que esteve

mediatamente envolvido, como se tivesse dever de interromper qualquer processo

causal, mas apenas sustenta-se que não se trata de transformar a responsabilidade

em subjetiva (mesmo porque significaria negar vigência ao texto constitucional), mas

somente de reconhecer a especificidade da causalidade na omissão, ou melhor,

reconhecer se há viabilidade na imputação do dano ao Estado, isto é, se houve um

dever de agir descumprido.

Não é necessário transmudar a responsabilidade objetiva em subjetiva para que a Administração se desvincule do dever de indenizar; basta que esta demonstre que não tinha o dever de agir e que, portanto, sua conduta não foi, do ponto de vista jurídico, causa do evento danoso.376

A dificuldade, aqui, surge quando se procura um critério que estabeleça esse

dever de agir, ou melhor, quando o resultado pode ser atribuído à omissão estatal.

Levando-se em conta a pluralidade de deveres que cabem ao Estado moderno, em

todas as áreas de atividade, não se pode cair na tentação de querer a ele imputar

toda e qualquer sorte de dano por ausência de interferência estatal. Concepções

376 GANDINI, João Agnaldo Donizeti; SALOMÃO, Diana Paola da Silva. A responsabilidade civil…, p.

164.

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nessa linha fogem à seara da responsabilidade civil, como Sérgio Severo377 bem

observa. O grande desafio, pois, é identificar as fontes do dever de agir, bem como

sua abrangência.

A dogmática mais atual tem tentado lidar com o tema. No próximo item serão

vistos esses posicionamentos e quais os caminhos que esse debate percorrerá no

futuro.

2.6.1 As fontes do dever de agir na omissão estatal

Do exposto até aqui conclui-se que na omissão estatal a identificação das

fontes do dever de agir é a pedra de toque da responsabilidade civil, devendo ser o

primeiro foco do intérprete quando se debruça sobre o tema. O desafio é como

operá-las no caso concreto.

Felipe Peixoto Braga Netto378 coloca a questão nos seguintes termos:

A questão [...] limita-se a indagar não de culpa, mas do nexo causal entre a omissão e o dano sofrido. A pergunta fundamental nos parece esta: sem a omissão estatal, o dano teria ocorrido? Não precisa ser culposa a omissão; de omissão culposa, como causa da indenização, trata o art. 186 do Código Civil, em cláusula geral de ilicitude culposa. O Estado responde sem culpa, agindo ou se omitindo, desde que configurado o nexo causal entre o dano e sua atividade.

377 “Pode-se constatar uma crescente concepção no sentido de que o Estado indenize, ainda que

sem a afirmação da reparação integral, hipóteses em que o curso causal é relacionado à absorção de riscos sociais, numa difícil fronteira entre a responsabilidade e a seguridade” (SEVERO, Sérgio. Tratado..., p. 213).

378 BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Responsabilidade civil, p. 248.

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O autor defende que se faça um juízo hipotético de acréscimo: se o Estado,

agindo, impedir o dano, há causalidade; caso contrário, não. Esse posicionamento

não pode ser aceito, haja vista que amplia de maneira despropositada a

responsabilidade do Estado. Se o Estado for responsabilizado por cada processo

causal que poderia ter impedido, ele se tornará um segurador universal, objetivo não

previsto pelo constituinte originário ao positivar o artigo 37, § 6.º, da Constituição

Federal.

No Capítulo 1, precisamente no item 1.1.4, foram vistas as fontes do dever de

agir quando se trata de responsabilidade por omissão. Conclui-se, basicamente, que

há dever de agir quando o próprio omitente propiciou a criação do risco, quando a lei

determina expressamente, ou quando há negócio jurídico.

No que tange ao negócio jurídico com fonte de responsabilidade civil

extracontratual do Estado, repisa-se o exposto no item 1.1.4.3, rechaçando-se tal

possibilidade. Marçal Justen Filho explicita a diversidade de regimes.379

Considerando essa temática, vale a pena destacar um precedente do

Supremo Tribunal Federal380 em que um Município oferecia estacionamento pago,

cercado e vigiado para os munícipes. A vítima teve seu carro furtado dentro do

379 “Há outra distinção fundamental, que se relaciona à origem da infração. É necessário diferenciar a

responsabilidade do Estado segundo tenha origem na infração do contrato ou não. A distinção é essencial porque o regime próprio dos contratos administrativos protege o particular contra certos eventos imprevisíveis, gerando garantias que não se verificam no restante das hipóteses. É assegurado ao particular o direito à intangibilidade da equação econômico-financeira, do que deriva a proteção jurídica em face do caso fortuito, força maior e fato do príncipe. Tutela similar não se verifica no âmbito da atividade administrativa extracontratual. Portanto, o campo próprio da responsabilidade civil extracontratual do Estado abrange apenas os efeitos danosos de ações e omissões imputáveis a pessoas jurídicas de direito público (ou particulares prestadores de serviços públicos) relativas a condutas que configurem infração a um dever jurídico de origem não contratual” (JUSTEN FILHO, Marçal. A responsabilidade do Estado, p. 229).

380 RE 255731, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 09.11.1999, Primeira Turma, DJ 26.11.1999.

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estacionamento, e processou a municipalidade pedindo a reparação dos prejuízos

sofridos. No voto, ficou esclarecido que a pessoa jurídica de direito público, nesse

caso, não responde com base no artigo 37, § 6.º, da Constituição Federal, mas sim

com base no contrato de depósito que celebrou com o particular, e que implica o

dever de guarda da coisa.

Quanto aos demais casos, vale destacar a distinção entre omissão própria (ou

pura e simples) e omissão imprópria, feita pela dogmática argentina (vide Capítulo 1,

item 1.1.4.1 e Capítulo 2, item 2.3), e muito pouco reverberada no Brasil. Marçal

Justen Filho381 aplica essa diferenciação.

Aponta o autor que, de um lado, se deve colocar a omissão própria ou pura e

simples, que é aquela em que há uma específica norma determinando certa conduta

ao agente público. No caso, a situação jurídica é similar à atuação de natureza

comissiva, pois deixar de agir quando a lei manda que o sujeito aja é juridicamente

equivalente a agir quando a lei proíbe a ação. Nesse caso, comprovados a inação

estatal e o dano, emergiria a responsabilidade. Vale transcrever as palavras do

autor:

[...] imagine-se uma regra estabelecendo o dever do Estado interditar o estabelecimento comercial que não tiver autorização de funcionamento.

Nesses casos, a situação jurídica é similar à atuação de natureza comissiva. Deixar de agir quando a lei manda que o sujeito aja é juridicamente equivalente a agir quando a lei proíbe a ação. Num caso, a lei diz: “é proibido fazer”; noutro, estabelece: “é obrigatório fazer”. A conduta que infringe o dever, no primeiro caso, consiste numa ação; no segundo, é uma omissão.

[...]Se houver regra (mesmo técnica) determinando a obrigatoriedade da atuação, em situações daquela ordem, o

381 JUSTEN FILHO, Marçal. A responsabilidade do Estado, p. 234 e ss.

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panorama jurídico atinente ao ato omissivo é idêntico ao dos atos comissivos. Assim se passa, por exemplo, com a omissão de socorro (hipótese de ilícito omissivo próprio). Em todos os casos, há o dever de omitir ou de atuar. A infringência a tais deveres produz o dever de o Estado responder pelas perdas e danos derivados.382

Por outro lado, existe a omissão imprópria, em que não há norma

explicitamente impondo o dever de agir, mas em que o agir é meio para evitar a

consumação de um resultado danoso e prejudicial. Assim, não haverá a

responsabilidade pela mera inação, exigindo-se que a omissão seja juridicamente

reprovável, por não atingir o grau de diligência que se espera da atividade estatal.

Mais uma vez transcreve-se trecho da obra de Marçal Justen Filho:

Mas existe uma outra situação, que é o núcleo dos problemas. É aquele em que não há norma impondo explicitamente o dever de agir, mas em que o agir é meio para evitar a consumação de um resultado danoso e prejudicial, reputado antijurídico. Tal se passa, por exemplo, quando um servidor deixa de sinalizar a existência de um defeito na pavimentação rodoviária, dando oportunidade à consumação de acidente de trânsito. Não é necessário existir lei determinando o dever de agir. Ele se configura como inerente ao cumprimento diligente das funções públicas exercidas.

Excluídas as hipóteses em que o Direito estabelecer que a omissão estatal é, em si mesmo, ilícita, será descabido reputar que a mera e simples inação produzirá a responsabilidade civil do Estado.

Nesse caso, a responsabilização apenas surgirá se houver omissão juridicamente reprovável, consistente na infração a um dever de diligência. Assim, por exemplo, o Estado pode ser responsabilizado quando deixar de limpar galerias pluviais, daí derivando a inundação de ruas públicas e os prejuízos a terceiros.

[...]

Nas hipóteses, porém, em que não existir regra determinando a atuação do sujeito, não haverá fundamento para presumir a presença de um elemento subjetivo reprovável. Nem se poderá considerar reprovável a conduta do agente, sem maiores perquirições. Em tais hipóteses, será necessário pesquisar o elemento subjetivo. Será imperioso determinar a previsibilidade do evento danoso, a existência do dever de adotar providências para evitar tal evento e a ausência da adoção das medidas cabíveis. Somente em caso de resposta positiva a tais indagações é que se

382 JUSTEN FILHO, Marçal. A responsabilidade do Estado, p. 236-237.

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configurará a responsabilidade civil do Estado (e do concessionário de serviço público).383

A dicotomia tem o mérito de distinguir as situações em que há um comando

normativo de maior densidade (omissões próprias) das situações em que há um

comando normativo genérico (omissões impróprias), mas apresenta um

incontornável problema de ordem técnica.

Com efeito, a responsabilidade civil extracontratual exige, para sua

configuração, a presença do dano, isto é, de um resultado da conduta lesiva

consistente em uma diminuição patrimonial (dano material) ou na violação de um

dos direitos da personalidade (dano moral). Ocorre que a omissão própria prescinde

do resultado da conduta, pois o ilícito caracteriza-se somente pela omissão em si,

independentemente do resultado. Pela importância do tema, vale transcrever

novamente a doutrina argentina, segundo a qual na omissão própria “el sujeto

infringe el mandamento legal, no ejecutando la atuación prescripta por la norma,

con independencia de las consecuencias perjudiciales que produce o pudiera

producir su inactividad”.384 Veja-se que o autor é claro ao dizer independe do

resultado produzido.

No direito penal a distinção se coloca, pois há crimes que se consumam sem

o resultado naturalístico (vide Capítulo 1, item 1.1.2), de modo que a mera violação

do preceito legal enseja responsabilização (crimes de mera conduta). Na

responsabilidade civil contratual também pode se enxergar alguma utilidade no

383 JUSTEN FILHO, Marçal. A responsabilidade do Estado, p. 236-237. 384 GOLDENBERG, Isidoro H. La relación de causalidad..., p. 202.

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conceito, pois é possível liquidar o dano antecipadamente, via cláusula penal, de

modo que, se um dos contratantes se omitir do cumprimento de determinado dever

contratual, poderia ser obrigado ao pagamento da multa, independentemente de se

cogitar sobre o dano.

Na responsabilidade civil extracontratual, todavia, é inviável se cogitar sobre a

responsabilidade pelo mero descumprimento de um dever de agir sem conectar

esse descumprimento ao dano. Consta do próprio excerto da obra de Marçal Justen

Filho, acima transcrito, que um exemplo de omissão própria seria a omissão de

socorro, devendo responder o Estado pelas “perdas e danos derivados”. Ora, se há

perdas e danos não se está trabalhando con independencia de las consecuencias

perjudiciales que produce o pudiera producir su inactividad, pelo contrário, será

necessário conectar a omissão ao dano, ou seja, a omissão foi o meio de obter

aquele determinado resultado.

É evidente, pois, que quando se trabalha com a responsabilidade civil

extracontratual do Estado, a omissão jamais será pura, pois é impossível

desconsiderar o resultado (dano), sem o qual não há responsabilidade civil. A

dicotomia apresentada, todavia, tem o grande mérito de diferenciar um comando

impositivo específico, no primeiro caso (omissões “puras”), de outro genérico

(omissões impróprias), e tal dado é importante para se estabelecer a

responsabilidade do Estado por omissão.

Nesse sentido, o dever de agir deverá advir diretamente da lei (item 1.1.4.2),

ou de risco criado pelo omitente (1.1.4.3), rubrica em que se enquadram os deveres

de tráfego, isto é, deveres de cuidado inerentes à atividade daquele que controla

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uma fonte de perigo. Por exemplo, morto um detento por um colega de cela em uma

penitenciária, o Estado é responsável, objetivamente, pois descumpriu o dever de

garantir a incolumidade do preso. Ainda que demonstre as boas condições do

estabelecimento penitenciário, em tese será responsável.385 Ferida uma criança em

uma escola pública, a mesma conclusão pode ser extraída.386 Em ambos os casos

foram concretizados riscos propiciados pelo próprio omitente. Caso seja permitida,

via alvará de construção, determinada obra fora dos limites da lei municipal,

prejuízos a terceiros poderão ser cobrados da Municipalidade, tendo em vista que

descumpriu obrigação diretamente estabelecida pela lei. O Supremo Tribunal

Federal condenou o Estado a responder por danos em decorrência de invasão de

imóvel, sendo que havia ordem judicial para envio de força policial ao imóvel

invadido,387 ou seja, outra hipótese de ofensa ao dever de agir diretamente derivado

da lei, consistente no cumprimento de ordem judicial.

Importante notar que em todos os casos a apreciação do intérprete é objetiva,

bastando cotejar o dever violado para se concluir pela responsabilidade. A única

possibilidade que resta ao ente estatal para se livrar da indenização é apontar

alguma excludente, e desde que ela não se relacione à atividade, conforme será

visto no item a seguir.

385 Conforme restou decidido pelo Supremo Tribunal Federal: RE 272839, Rel. Min. Gilmar Mendes,

j. 1.º.02.2005, Segunda Turma, DJ 08.04.2005. 386 Conforme restou decidido pelo Supremo Tribunal Federal: RE 109.615, Rel. Min. Celso de Mello,

j. 28.05.1996, Primeira Turma, DJ 02.09.1996. O acórdão deixa claro que não haverá responsabilidade quando for descaracterizado o nexo causal entre o evento danoso e a atividade estatal imputável aos agentes públicos.

387 RE 283989, Rel. Min. Ilmar Galvão, j. 28.05.2002, Primeira Turma, DJ 13.09.2002.

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Não se pode, todavia, querer imputar ao Estado os danos que ele não

conseguiu evitar com base em deveres constitucionais genéricos, como segurança,

lazer, habitação, saúde etc. Foi precisamente esse detalhe identificado pela

distinção entre omissão genérica e específica, no item 2.4 deste Capítulo. Isso não

se deve, todavia, ao fato de a responsabilidade ser subjetiva na espécie, mas sim

pela ausência de um dever específico de agir no caso, seja por faltar um comando

normativo suficientemente denso e circunstanciado, seja por não haver risco anterior

criado ou propiciado pelo próprio Estado.388

Em suma, a consideração da responsabilidade do Estado por omissão como

objetiva não significa uma porta aberta para sua responsabilização, pelo contrário,

reconhece-se que é necessária a identificação de um dever de agir e a verificação

da causalidade (não natural, mas normativa), ou, melhor ainda, da legítima

imputação dos danos.

Considerando-se que, tratando-se de responsabilidade objetiva, as

excludentes de causalidade são fundamentais para a exclusão da responsabilidade,

é preciso verificar como elas atuam quando se refere à conduta omissiva. Na

verdade, como será visto, elas são elementos constitutivos da responsabilidade,

analisadas conjuntamente com a relação de imputação, não sequentemente. Elas

definem a abrangência do dever. Eis o tema que será objeto do item seguinte.

388 “[...] o dever jurídico descumprido de executar a obra ou de prestar o serviço devido, colocado

como causa primária da responsabilidade do Estado, é circunstancial, a ser examinado em cada caso concreto, ponto a respeito do qual, aliás, inexiste divergência entre os doutrinadores” (CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade..., p. 218).

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2.6.2 Excludentes da responsabilidade estatal na conduta omissiva: a definição da

abrangência do dever de agir

2.6.2.1 Teoria geral das excludentes

As excludentes da responsabilidade são muito antigas no direito civil, vindo

desde o direito romano, que conhecia o casus maior e o casus minor como fatos

extintivos de obrigação que não podiam ser imputados a nenhum dos polos

constantes da relação obrigacional.389

A dogmática brasileira, tradicionalmente, trabalhou com os conceitos de caso

fortuito ou de força maior, culpa exclusiva da vítima e culpa de terceiro dentro dessa

temática das excludentes de responsabilidade. Importante frisar que tais excludentes

operam dentro do nexo de causalidade (ou imputação), não se confundindo, pois,

com as excludentes da ilicitude (legítima defesa, exercício regular de direito e estado

de necessidade – artigo 188, Código Civil).

José de Aguiar Dias, retomando os ensinamentos de Arnoldo Medeiros da

Fonseca,390 entende ser inútil distinguir o caso fortuito de força maior, de modo que

os dois seriam sinônimos. O conceito decorreria de dois elementos: um interno, de

caráter objetivo, que seria a inevitabilidade do evento; e outro externo, de caráter

subjetivo, que seria a ausência de culpa. O conceito seria mutável com o decorrer do

tempo e com a evolução tecnológica, pois o que é caso fortuito em determinada

época pode deixar de sê-lo no futuro. Verificado o caso fortuito (ou de força maior)

389 Cf. MARKY, Thomas. Curso elementar de direito romano. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 112. 390 Referido autor é responsável por célebre obra sobre o tema ora em comento: Caso fortuito e

teoria da imprevisão. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1958.

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estariam suprimidas a relação de causalidade e, por consequência, a

responsabilidade civil.

Essa noção de que o caso fortuito ou de força maior surge quando não há

culpa remonta à antiga fórmula do casus = non culpa, indicando que se trata de um

fato alheio à vontade do devedor.391

O civilista expõe, ainda, as noções de fato exclusivo da vítima e de terceiro.

Entende o autor ser mais adequado trabalhar com a ideia de fato do que com a de

culpa, por ser mais ampla (pois a vítima pode ser inimputável, em tese insuscetível

de culpa). No que tange ao primeiro, a exclusão operar-se-ia, da mesma forma,

sobre o nexo de causalidade, e poderia levar à mitigação da indenização no caso de

concorrência de culpa entre a vítima e o autor do dano. No que se refere ao fato de

terceiro, admite que exclua o nexo causal somente quando constitui uma causa

estranha ao devedor, isto é, quando elimine totalmente a relação de causalidade.392

Agostinho Alvim interpreta o artigo 1.058393 do Código Civil de 1916,

precisamente na definição da expressão fato necessário, que deve ser estudada em

função da impossibilidade de cumprimento da obrigação, não abstratamente. Seria

impossível, assim, definir a priori quais fatos ou eventos poderiam ser considerados

como fatos necessários, cabendo ao juiz, no caso concreto, avaliar o fato específico.

Na sequência, o autor faz distinção entre o caso fortuito e a força maior: o primeiro

seria um impedimento relacionado com o devedor ou sua empresa, ao passo que o

391 Cf. VITA NETO, José Virgílio. A atribuição de responsabilidade..., p. 41. 392 VITA NETO, José Virgílio. Da responsabilidade civil. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1960. t. II, p.

711-732. 393 “Art. 1.058. O caso fortuito, ou de força maior, verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era

possível evitar ou impedir.”

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segundo seria um acontecimento externo. Em decorrência disso, na

responsabilidade baseada na culpa tanto o caso fortuito como o de força maior

exonerariam o devedor, ao passo que na responsabilidade baseada no risco

somente a força maior (ou fortuito externo) exoneraria o devedor de

responsabilidade (bem como a culpa da vítima e o fato do príncipe).394

Silvio Rodrigues expõe a divergência entre Arnoldo Medeiros da Fonseca e

Agostinho Alvim, optando pela posição primeiro, de modo a não distinguir,

conceitualmente, o caso fortuito do caso de força maior, preferindo focalizar em seu

efeito de exoneração de responsabilidade civil pelo rompimento do nexo de

causalidade. Aponta, ainda, a culpa exclusiva da vítima e o fato de terceiro, o último,

desde que se equipare ao caso fortuito, como outras excludentes da causalidade.395

Partindo para os autores mais recentes, Sérgio Cavalieri Filho aponta o fato

exclusivo da vítima e o de terceiro como excludentes da causalidade. No que tange

ao último, diz que tem que ser um fato inevitável e irresistível, equiparando-se ao

caso fortuito ou de força maior. Reconhece, todavia, que em algumas hipóteses não

se admite essa excludente, como no caso dos bancos e do contrato de transporte.

Diferencia ainda o caso fortuito e de força maior, dizendo que aquele é um evento

imprevisível e inevitável, enquanto este é inevitável, mas pode ser previsível,

geralmente fatos da natureza. Tanto a imprevisibilidade como a inevitabilidade

deveriam ser apreciadas nas circunstâncias, não abstratamente. Prossegue o autor,

por último, dizendo que em sede de responsabilidade objetiva o caso fortuito não

isenta de responsabilidade quando for interno, isto é, ligado ao risco da atividade, de

394 ALVIM, Agostinho. Da inexecução..., p. 311-321. 395 RODRIGUES, Silvio. Direito civil…, p. 164-181.

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modo que não é possível exercê-la sem assumir o fortuito (exemplo: assalto em

agência bancária).396 Carlos Roberto Gonçalves tem posicionamento idêntico, tanto

no que tange aos conceitos como no que se refere ao fato de terceiro e ao fortuito

interno.397

Arnaldo Rizzardo entende ser desimportante distinguir entre caso fortuito e de

força maior, e acaba por retomar os conceitos cunhados por Arnoldo Medeiros da

Fonseca para definir tais figuras, que também foram aproveitados por Aguiar Dias,

como visto acima. Assim, trabalha com os elementos objetivo (inevitabilidade do

evento) e subjetivo (ausência de culpa) para definição do caso fortuito ou de força

maior. Também não admite a exclusão da responsabilidade, quando objetiva, com

base no fortuito interno, que é aquele ligado à coisa ou atividade. Por fim, admite a

exclusão da responsabilidade por culpa exclusiva da vítima.398

Maria Helena Diniz também aponta os elementos objetivo e subjetivo como

definidores do caso fortuito ou de força maior, dizendo que o primeiro caracteriza-se

por ser um fato de terceiro ou por ter uma causa desconhecida, ao passo que o

segundo deriva de um ato da natureza (Act of God). A autora aponta, ainda, a culpa

exclusiva da vítima e o fato irresistível de terceiro como excludentes da

responsabilidade.399

Rui Stoco, da mesma maneira que Silvio Rodrigues, expõe o debate

doutrinário entre Arnoldo Medeiros da Fonseca e Agostinho Alvim, para, ao final,

396 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa..., p. 65-71. 397 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro…, v. 4, p. 437-448. 398 RIZZARDO, Arnaldo. Responsabilidade civil, p. 90-104. 399 DINIZ, Maria Helena. Curso…, p. 129-136.

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concordar com o primeiro no que tange à inutilidade de distinguir entre força maior e

caso fortuito. Ademais, afirma que a imprevisibilidade não pode ser considerada um

requisito da figura, pois às vezes um evento pode até ser previsível, mas ser

absolutamente irresistível e inevitável. O autor aponta, ainda, a culpa exclusiva da

vítima como excludente de causalidade, bem como o fato de terceiro, desde que

este seja estranho à pessoa aparentemente causadora do dano, e que tenha sua

conduta equiparada ao caso fortuito, dada a sua inevitabilidade.400

Fernando Noronha define o caso fortuito ou de força maior como “todo

acontecimento inevitável e independente de qualquer atividade da pessoa de cuja

possível responsabilidade civil se cogita, que constitui causa adequada ao dano

verificado”.401 O autor cria, então, uma rubrica bem genérica e ampla em que pode

se enquadrar qualquer fato que exclui a causalidade. Por isso, sustenta que dentro

dessa categoria lata inserem-se três tipos de excludentes de causalidade, ou de

caso fortuito ou força maior em sentido amplo: o fato de terceiro, o fato do lesado e o

caso fortuito ou de força maior em sentido estrito.

A respeito das duas primeiras não há novidade além do que já foi dito acima.

Sobre o caso fortuito ou de força maior em sentido estrito o autor prefere não

distinguir as figuras, dada a inutilidade em fazê-lo, e afirma que se constituem por

acontecimentos naturais (acts of God) e ações humanas não individualizadas (como

guerras e assaltos) que tenham sido determinantes para o dano; quando ele tenha

ocorrido de alguma determinação da autoridade, que tenha se imposto de maneira

400 STOCO, Rui. Tratado…, p. 181-192. 401 NORONHA, Fernando. Direito..., p. 647.

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irresistível, tem-se a figura do fato do príncipe, célebre construção do direito público

na seara de contratos administrativos.

Prossegue Fernando Noronha apresentando as características do caso

fortuito ou de força maior em sentido estrito, que seriam a imprevisibilidade, a

irresistibilidade e a externidade. Nesse particular sua lição difere da grande maioria

da doutrina, que em geral apresenta somente os dois primeiros elementos. A

imprevisibilidade caracterizar-se-ia pela evitabilidade do evento danoso, caso

pudesse ter sido previsto, ao passo que na irresistibilidade o evento seria sempre

inevitável, ainda que tivesse sido previsto. Assim, o segundo elemento é claramente

preponderante, pois o que importa mesmo é que o evento não possa ser impedido,

ou pelo menos os efeitos dele, ainda que em tese fosse previsível.

A externidade é apontada como requisito pelo fato de não bastar que o evento

seja imprevisível e irresistível, pois, se ele estiver ligado à atividade desenvolvida por

uma pessoa, ou só acontecer em razão dela, não pode ser considerado inevitável,

uma vez que, se a pessoa se abstivesse de atuar, ele não aconteceria. Vale a pena

transcrever o pensamento do autor:

[...] pelo menos no âmbito da responsabilidade civil em sentido estrito, a externidade, apesar de normalmente não ser indicada, parece ser requisito essencial. Existem fatos que preenchem os requisitos da imprevisibilidade e da inevitabilidade e que, apesar disso, não excluem o nexo de causalidade. Cada pessoa tem sua esfera jurídica, maior ou menor, dentro da qual atua, que está sob seu controle, que em regra utiliza em seu proveito, devendo ser responsável pelos fatos que acontecerem no seu âmbito. Não se pode considerar inevitável aquilo que acontece dentro da esfera pela qual a pessoa é responsável e que certamente não aconteceria se não fosse a sua atuação. Se o fato causador do dano não é externo, poderia ser sempre evitado, para isso bastando a não realização da atividade em cujo decurso ele surge. Nestes casos, o dano ainda é

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resultante da atuação da pessoa, mesmo que esta esteja isenta de qualquer juízo de censura.402

Assim, enquanto a maioria dos autores trabalha com somente dois elementos

para definição do caso fortuito, e utiliza o conceito de fortuito externo apenas dentro

dos casos de responsabilidade baseada no risco, Fernando Noronha adiciona a

externidade como elemento definidor do próprio conceito do instituto.

Aparentemente, pois, o fortuito interno, para ele, também não excluiria a

responsabilidade quando esta é baseada na culpa.

Do exposto até aqui percebe-se que as excludentes de causalidade são uma

realidade consagrada na dogmática, tanto pelos autores mais antigos como pelos

atuais. Conclui-se que é despicienda e infrutífera a discussão sobre eventual

diferença entre o caso fortuito e força maior, dada a identidade de efeitos. Percebe-

se, ainda, que a doutrina em geral aponta o fato de terceiro como excludente

somente quando equiparado ao caso fortuito, diferentemente da culpa exclusiva da

vítima, que em qualquer caso é apontada como apta a afastar o liame causal.

Por último, e talvez mais importante, é relevante frisar que as excludentes se

aplicam não somente em casos de responsabilidade subjetiva, mas também na

responsabilidade objetiva – hipótese em que, aliás, são o único meio de defesa do

réu.

Particularmente sobre a definição do caso fortuito ou de força maior, alguns

autores repetem as lições da obra de Arnoldo Medeiros da Fonseca, que fala em

elemento interno (inevitabilidade do evento) e externo (ausência de culpa), enquanto 402 NORONHA, Fernando. Direito..., p. 655.

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outros se filiam às lições de Agostinho Alvim, trabalhando com a distinção entre o

caso fortuito (que seria normalmente imprevisível, embora pudesse ter sido evitado

se previsto, e ligado à pessoa ou atividade do devedor) e força maior (que até

poderia ser prevista, mas é inevitável e seria externa à pessoa ou atividade do

devedor). Segundo Fernando Noronha, a dicotomia estabelecida por Agostinho

Alvim tem o mérito de não isentar o devedor de responsabilidade quando o dano é

ligado à sua atividade (fortuito interno), mas seria desnecessária se a noção de

externidade fosse somada ao conceito do instituto.403

De posições expostas, parece bem adequada e moderna a lição de Fernando

Noronha, tanto por dizer que o elemento preponderante da definição é a

irresistibilidade do evento, que poderia até ser objetivamente previsível, mas não

poderia ser evitado ou ter seus efeitos impedidos, bem como pelo fato de incluir no

conceito do instituto a externidade, haja vista ser pacífico na doutrina que, se o

evento danoso estiver dentro da esfera de controle do suposto responsável, ou se

ele se aproveitar do risco que propiciou o evento, não há falar em excludente de

causalidade.

2.6.2.2 Excludentes da responsabilidade estatal

No que tange especificamente às excludentes de causalidade dentro da

responsabilidade estatal, vale dizer, de plano, que sua aplicabilidade é patente.

Como já se demonstrou, as eximentes também se operam em seara de

responsabilidade objetiva. Repelem-se veementemente, assim, posturas que

403 NORONHA, Fernando. Direito..., p. 662.

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pretendem afastar a aplicação das excludentes de causalidade para as pessoas

jurídicas de direito público,404 posição que não encontra respaldo na Constituição

Federal, no Código Civil e na esmagadora maioria da doutrina.

Excepcionam-se somente poucos casos especiais em que as excludentes

não podem ser manejadas para efeito de exclusão da responsabilidade do Estado.

Em última instância, são casos em que não se exige um nexo de causalidade

adequada entre a atividade do responsável e o dano acontecido, à medida que o

fato de terceiro, o caso fortuito ou de força maior, ou até mesmo o fato exclusivo da

vítima, não podem ser causas de exclusão da responsabilidade. Para tanto, o dano

tem que ser derivado de um risco inerente ou típico da atividade em questão. A

maior parte da doutrina denomina tal hipótese de responsabilidade pelo risco

integral, mas Fernando Noronha prefere designá-la de responsabilidade objetiva

agravada.405

O ordenamento jurídico brasileiro veicula a responsabilidade pelo risco

integral no artigo 4.º da lei que trata sobre a responsabilidade civil por danos

nucleares (Lei 6.453/1977), que prevê a responsabilidade exclusiva do explorador da

atividade nuclear quando houver acidente nuclear, independentemente de culpa e

de nexo causal. Trata-se do princípio da canalização,406 mediante o qual se

404 “As denominadas causas de exclusão (caso fortuito e força maior) na verdade excluem o nexo de

causalidade quando se imputa culpa ao devedor: a) a mora, no caso de inadimplemento contratual; e b) a culpa em sentido estrito, no caso de responsabilidade extracontratual, como é o da responsabilidade da administração pública. Como essa responsabilidade é objetiva, prescindindo do elemento subjetivo (dolo ou culpa) para verificar-se o dever de indenizar, é irrelevante saber se houve força maior ou caso fortuito, porque essas causas não excluem a responsabilidade objetiva da Administração Pública” (NERY JR., Nelson. Responsabilidade civil…, p. 39-40).

405 NORONHA, Fernando. Direito..., p. 667. 406 Cf. STOCO, Rui. Tratado..., p. 453.

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concentra a responsabilidade civil em uma só pessoa. A Lei de Atentados

Terroristas (Lei 10.744/2003), o dano ambiental (art. 225, § 3.º, da Constituição

Federal c.c. o artigo 14, § 1.º, da Lei 6.938/1981)407 e a Lei de Seguro Obrigatório

(DPVAT – Lei 6.194/1964) são outros exemplos de adoção da responsabilidade civil

objetiva agravada no direito brasileiro.408

Alexandre Dartanhan de Mello Guerra409 critica a expressão “excludentes” de

responsabilidade do Estado, preferindo designá-las de “hipóteses de não incidência”.

Baseado em lições de teoria geral do direito de Alfredo Augusto Becker, sustenta o

autor que o termo “exclusão” denota a ideia de algo que existia e foi extinto. Como

se houvesse responsabilidade e, a partir daquela causa, ela deixasse de existir. O

que acontece na matéria ora analisada seria, todavia, diferente, pois a

responsabilidade jamais chegaria a existir, ante a não incidência da norma. Jamais

se atingiria, pois, o enquadramento normativo, por isso não se podendo falar em

“exclusão” da responsabilidade, mas sim em “não incidência” dela.

407 A doutrina é dividida no que tange a considerar o dano ambiental uma hipótese de

responsabilidade objetiva integral ou mera responsabilidade pelo risco criado, em que pese a primeira posição seja claramente majoritária (cf. ARANTES, Carolina Bellini. As excludentes de responsabilidade civil objetiva: a atual importância do seu estudo. 2005. Dissertação (Mestrado em Direito) – FADUSP, São Paulo p. 93). Deve-se a dicotomia ao fato de a legislação não prescrever claramente pela impossibilidade de manejo das excludentes, como faz nas demais hipóteses arroladas. O Superior Tribunal de Justiça tem decidido no sentido de considerar a responsabilidade pelo risco integral (cf. BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Responsabilidade civil, p. 388).

408 Cf. SALUM, Flávia Maria Pelliciari. Responsabilidade objetiva do Estado nas atividades perigosas – o risco integral positivado no código civil. In: GUERRA, Alexandre Dartanhan de Mello et all (coord.). Responsabilidade civil do Estado: desafios contemporâneos. São Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 150.

409 GUERRA, Alexandre Dartanhan de Mello. Hipóteses de não incidência da responsabilidade civil do Estado. In: –––––– et al. (Coord.). Responsabilidade civil do Estado: desafios contemporâneos. São Paulo: Quartier Latin, 2010. p. 312 e ss.

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Pode-se dizer que, sob o ângulo da lógica, o autor tem absoluta razão,

mormente em situações de omissão. Nesse caso, o omitente não inicia o processo

causal, de modo que, em tese, se houver dever de agir, ainda que o evento que

inaugura o processo causal seja derivado de caso fortuito ou de terceiro, haveria

responsabilidade. Para que não haja imputação, o dever de agir acaba relevando-se

inexigível naquele caso concreto, determinado. A “excludente”, pois, não é

consequente à imputação da responsabilidade, mas sim concomitante a ela, um

elemento integrador. Ela acaba anulando o próprio dever de agir.

À parte a questão de nomenclatura, o autor aponta o caso fortuito ou força

maior como excludentes da responsabilidade estatal, desde que não seja ligado à

atividade estatal (fortuito interno), bem como o fato exclusivo da vítima e o fato de

terceiro, este último somente se não coubesse à Administração Pública um dever

especial de impedir o dano.

Marcelo Benacchio410 também aponta o fato exclusivo da vítima, o fato de

terceiro e o caso fortuito ou força maior como excludentes, reconhecendo que a

responsabilidade do Estado não é pelo risco integral, e que ele não é segurador

universal. Sobre o primeiro, utiliza como exemplo um julgado do Rio Grande do Sul

em que o Estado foi exonerado de indenização à família de detento que colocou

fogo em colchão e acabou morrendo queimado. Trata-se, claramente, de

responsabilidade por omissão que não existiu devido a fato da vítima. Sobre o fato

de terceiro, defende o autor que deve ser totalmente alheio da atividade do Estado,

410 BENACCHIO, Marcelo. Pressupostos da responsabilidade civil extracontratual do Estado contidos

no artigo 37, parágrafo 6.º, da Constituição Federal. Responsabilidade civil do Estado por omissão. In: GUERRA, Alexandre Dartanhan de Mello et al. (Coord.). Responsabilidade civil do Estado: desafios contemporâneos. São Paulo: Quartier Latin, 2010. p. 107 e ss.

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sob pena de ser simples condicionante da causa inicial pelo último inaugurada, que

não exoneraria a responsabilidade. Como exemplo, traz um julgado do Superior

Tribunal de Justiça em que um militar se utiliza de veículo oficial para fim particular,

causando danos a terceiros. Nesse caso, foi reconhecida a responsabilidade da

União. Sobre os últimos, não há novidades além do que já foi por ora exposto.

Maria Sylvia Zanella Di Pietro,411 Marçal Justen Filho,412 Celso Antônio

Bandeira de Mello,413 Irene Patrícia Nohara,414 Yussef Said Cahali415 e José dos

Santos Carvalho Filho,416 dentre muitos outros, admitem as excludentes de

responsabilidade do Estado, tal qual exposto acima, com algumas divergências

entre os posicionamentos,417 de modo a dizer que a matéria é relativamente

tranquila em sede doutrinária.

No que tange ao caso fortuito ou de força maior dentro da atividade estatal, a

grande dificuldade reside em identificar quais riscos devem ser englobados no risco

administrativo que fundamenta a responsabilidade objetiva do Estado, conforme

muito bem colocado por Carolina Bellini Arantes.418 Afinal, a gama de atividades

estatais é imensa. Um bom critério é analisar se o dano sobreveio de risco típico

411 DI PIETRO, Maria Sylvia. Direito..., p. 706-709. 412 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso…, p. 1240-1241. 413 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso…, p. 987-989. 414 NOHARA, Irene Patrícia. Direito…, p. 784-786. 415 CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade…, p. 41-63. 416 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual…, p. 556-559. 417 Maria Sylvia Di Pietro associa o caso fortuito a evento imprevisível causado por ato humano, ao

passo que a força maior seria ligada à natureza. José dos Santos Carvalho Fiho e Marçal Justen Filho preferem não distinguir as figuras. Celso Antônio Bandeira de Mello e Yussef Said Cahali, por fim, entendem que a força maior é fato da natureza irresistível, ao passo que o caso fortuito seria um acidente cuja raiz é desconhecida, sendo que só a primeira excluiria a causalidade.

418 ARANTES, Carolina Bellini. As excludentes..., p. 98-99.

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daquela atividade estatal examinada no caso concreto, abstraindo-se as demais

atividades estatais. Logo, se o dano ocorreu no coletivo municipal, devem ser

verificados os riscos da atividade de transporte rodoviário; se ocorreu em escola

pública, focalizam-se os riscos típicos da atividade educacional; se ocorreu dentro

do metrô, analisam-se os riscos do transporte ferroviário, e assim por diante.

2.6.2.3 Excludentes da imputação de danos na omissão estatal

Retomando-se as lições expostas nos dois itens acima, o elemento decisivo

para a responsabilização estatal na conduta omissiva é o dever de agir no caso

concreto, que fundamenta o nexo de imputação de determinado dano para o Estado

– e não a culpa. Esse dever de agir deve ser circunstanciado, concreto, não

meramente genérico. Consagradas as excludentes pela doutrina, que atuam

justamente sobre o nexo causal (imputação), é preciso saber como se dá sua

efetivação no complexo processo da imputação de danos na omissão estatal.

Vale lembrar a lição transcrita acima no sentido de que, mormente na

omissão, não são propriamente excludentes, no sentido de serem posteriores à

imputação, mas sim causas de não incidência, verdadeiros elementos integradores

do processo de imputação de responsabilidade, a atuar sobre a conformação do

dever de agir e definindo sua abrangência.

2.6.2.3.1 Fato exclusivo da vítima

O fato exclusivo da vítima exclui a responsabilidade estatal por omissão,

como acontece, por exemplo, nos casos de suicídios de detentos em penitenciárias.

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Não obstante, o Judiciário tem condenado os Estados-Membros a indenizar em

casos tais, ainda que evidente a exclusão do nexo causal.419 As decisões

argumentam, em geral, que o Estado tem o dever de guarda do preso e que sua

responsabilidade é objetiva. Ora, isso não se discute. Seu dever de guarda é que

fundamenta o nexo de imputação na responsabilidade civil por omissão, mas o fato

exclusivo da vítima afasta referido nexo. O quadro mudaria de figura se ficasse

comprovado nos autos que a vítima teria demonstrado quadro psiquiátrico,

revelando um intento suicida, sem nenhuma providência por parte das autoridades

do estabelecimento penitenciário. Em um caso como esse, seria dever estatal

impedir o desdobramento causal, ante o risco evidenciado no caso concreto. Essa

prova, todavia, teria de ser feita nos autos.420

Alguns julgados mencionam ainda que casos de suicídio em penitenciárias

assemelham-se ao caso Vladimir Herzog, e por isso as famílias mereceriam

indenização. Acontece que nesse emblemático episódio o que houve foi assassinato

por agentes do Estado, que tentaram mascarar o crime como se tivesse ocorrido um

suicídio. É fácil, pela prova pericial, verificar se o que sucedeu com a vítima foi um

suicídio ou um assassinato. Se ficar demonstrado o segundo, aí sim emerge a

responsabilidade civil do Estado por não ter cuidado da incolumidade física do

preso, não havendo excludente porque o fortuito seria interno. Agora, se

419 STJ, REsp 847687/GO, Rel. Min. José Delgado, 1.ª T., j. 17.10.2006; STJ, REsp 466969/RN, Rel.

Min. Luiz Fux, 1.ª T., j. 15.04.2003; TJSP, Apel. 0136252-41.2006.8.26.0053, Rel. Des. Oswaldo Luiz Palu, 9.ª Câmara de Direito Público, j. 06.02.2013; TJSP, Apel. 0117663-30.2008.8.26.0053, Rel. Des. Osvaldo de Oliveira, 12.ª Câmara de Direito Público, j. 28.11.2012.

420 O Supremo Tribunal Federal isentou o Estado de indenização em caso de paciente de hospital público que se suicidou dentro do referido estabelecimento (RE 318.725-AgR, Rel. Min. Ellen Gracie, j. 18.12.2008, Segunda Turma).

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comprovado que o que se deu foi mesmo um suicídio, é totalmente descabida a

invocação de qualquer semelhança com o caso Herzog.

Na verdade, existe sim é uma falta de argumentos técnicos que amparem

decisões como essas ora trazidas ao debate, e o que o Judiciário acaba por fazer é

relativizar o nexo causal e criar um caso de responsabilidade civil agravada, ou pelo

risco integral, à margem da lei e da Constituição, à medida que ignora uma evidente

excludente do nexo causal. Trata-se do fenômeno apontado por Anderson

Schreiber, já indicado no item 1.2.1 do Capítulo 1 desta dissertação, de erosão dos

filtros de reparação da responsabilidade civil.

Não obstante a jurisprudência formada em casos de suicídio de detentos, a

culpa exclusiva da vítima é reconhecida em outros casos, fato que de certa forma

demonstra incoerência no tratamento daquela primeira matéria, conforme se

confirma pela análise de recentes julgados do Tribunal de Justiça de São Paulo:

pedestre que atravessou linha férrea, sendo atropelado, mesmo existindo muros e

passarela;421 morte de detento em virtude de uso de medicamentos ministrados por

médico particular;422 acidente em cruzamento com semáforo desligado, todavia com

imprudência do condutor;423 motorista que sofreu acidente de carro em razão da

aquaplanagem, mas estava em excesso de velocidade;424 ciclista que morreu

atropelado por ter sido imprudente ao adentrar em avenida, não havendo relação do

421 TJSP, Apel. 0017208-16.2006.8.26.0348, Rel. Des. Moreira de Carvalho, 9.ª Câmara de Direito

Público, j. 06.02.2013. 422 TJSP, Apel. 0618824-18.2008.8.26.0053, Rel. Des. Evaristo dos Santos, 6.ª Câmara de Direito

Público, j. 04.02.2013. 423 TJSP, Apel. 0003490-03.2010.8.26.0318, Rel. Des. Maria Laura Tavares, 5.ª Câmara de Direito

Público, j. 28.01.2013. 424 TJSP, Apel. 0004165-88.2004.8.26.0022, Rel. Des. Burza Neto, 12.ª Câmara de Direito Público, j.

16.01.2013.

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acidente com alegada ausência de sinalização da via.425 Não se vê argumento lógico

ou jurídico que fundamente haver a responsabilidade civil do Estado no primeiro

caso, e não existir nos casos expostos neste parágrafo.

Em suma, existindo fato exclusivo da vítima, inviável reconhecer a violação do

dever de agir por parte do Estado, não havendo, portanto, legítima imputação de

danos à conduta estatal.

2.6.2.3.2 Caso fortuito ou força maior e fato exclusivo de terceiro – o âmbito

de proteção da norma

No que tange às excludentes do fato de terceiro e do caso fortuito ou de força

maior, sua aplicação tem um detalhe a mais quando se trata da omissão. Afinal, na

omissão a causalidade natural não se conecta com a atividade do responsável

(salvo quando o próprio omitente cria risco anterior), que acaba sendo escolhido

para responder pelo dano por ter um dever de agir para impedir a superveniência do

resultado danoso. Assim, em tese, ainda que seja fato de terceiro, ou de caso

fortuito ou de força maior, se o Estado tiver o dever de agir, poderá ser

responsabilizado.

Sobre o caso fortuito ou de força maior, alguns autores têm rechaçado a

possibilidade de configuração da força maior quando os acontecimentos naturais

geram danos por deficiência do serviço público.426 Entende-se nesses casos que o

425 TJSP, Apel. 0003938-42.2009,8.26.0663, Rel. Des. Amorim Cantuária, 3.ª Câmara de Direito

Público, j. 27.11.2012. 426 CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade..., p. 44-46; NOHARA, Irene Patrícia. Direito

administrativo, p. 787.

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risco foi propiciado pelo próprio Estado, ao não prestar adequadamente o serviço

que lhe é exigido por lei e pela Constituição Federal. Imagine-se um raio que caia

em uma escola pública, vindo a ferir um aluno no parquinho; ainda que se trate de

força da natureza, era dever da escola impedir a saída dos menores em caso de

chuva, emergindo, portanto, a responsabilidade estatal pela violação do dever de

agir, na figura dos deveres de tráfego.

Veja-se, todavia, que não é necessária a invocação de elemento subjetivo, de

culpa do serviço. O Estado, em casos como o descrito, tem o dever de agir para

impedir que o dano sobrevenha. Sua responsabilidade é objetiva. O intérprete, ao se

deparar com um caso como o descrito, tem que se preocupar em identificar se há

referido dever, de onde ele emerge, não tendo essa atividade nenhuma relação com

a pesquisa da culpa.

No exemplo da escola, de nenhuma maneira se deve analisar se a escola

tinha condições adequadas, se houve culpa de algum funcionário ao deixar a criança

brincar durante a chuva, se existia para-raios adequadamente instalado, enfim, nada

que relembre elemento subjetivo. Deve-se, sim, circunscrever o objeto de análise ao

dever da Administração de garantir a incolumidade física da criança.

No que se refere ao fato de terceiro, a jurisprudência tem reiteradamente

condenado o Estado a indenizar por acidentes decorrentes de abalroamento de

animais que cruzam os leitos carroçáveis de rodovias, que é uma espécie de

imputação de responsabilidade por omissão. As decisões afirmam, em geral, que a

culpa do dono do animal não exonera de responsabilidade do Estado, pois o

cruzamento de animal pela pista significa uma falha de prestação do serviço público,

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à medida que se pressupõe que a pista deve estar livre para circulação.427 A maioria

das decisões, todavia, não deixa de invocar a teoria da faute du service,

asseverando que a entrada do animal na pista configuraria a culpa da Administração

Pública.

Mais uma vez, todavia, a rigor não é da análise de culpa que se trata, mas

sim do reconhecimento de que o Estado, ao oferecer as rodovias ao tráfego, tem o

dever de mantê-las em condições de funcionamento, objetivamente. Ainda que

restasse comprovado que o Estado não teve culpa alguma quando da presença do

animal da pista, ou seja, se hipoteticamente restasse comprovado que os imóveis

lindeiros à pista estivessem cercados, que havia um número adequado de pessoas a

trabalhar na rodovia, e assim por diante, o foco da análise é o dever de impedir que

o animal cruzasse a pista, que é anexo ao oferecimento do referido serviço. O objeto

a se considerar nesse tipo de decisão, conforme reiteradamente se repete, é sempre

o nexo de imputação, o dever que fundamenta essa relação dentro da

responsabilidade civil por omissão, não a culpa.

Dizer simplesmente, todavia, que, se o Estado tiver o dever de agir, ele

sempre deverá ser responsabilizado caso sobrevenha o dano, é alargar demais a

responsabilidade civil, indevidamente, à medida que, se o dano estiver fora do

âmbito de proteção da norma violada, de modo a inexistir legítima relação de

imputação, não há falar em responsabilidade. O Poder Judiciário não reconheceu, 427 STJ, REsp 1198534/RS, Rel. Min. Eliana Calmon, 2.ª T., DJE 20.08.2010; STJ, REsp 711561/PR,

Rel. Min. Denise Arruda, 1.ª T., DJ 14.02.2008; TJSP, Apel. 0000515-08.2009.8.26.0297, Rel. Francisco Cocuzza, 5.ª Câmara de Direito Público, j. 25.02.2013; TJSP, Apel. 9212467-59.2009.8.26.0000, Rel. Ronaldo de Andrade, 3.ª Câmara de Direito Público; TJSP, Apel. 0205905-72.2009.8.26.0006, Rel. Cristina Corofre, 8.ª Câmara de Direito Público, j. 03.10.2012; TJSP, Apel. 0006677-24.2009.8.26.0360, Rel. Rebouças Carvalho, 9.ª Câmara de Direito Público, j. 17.10.2012; TJSP Apel. 0013727-28.2010.8.26.0664, Rel. Renato Delbianco, 2.ª Câmara de Direito Público, j. 25.09.2012.

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por exemplo, a responsabilidade do Estado por morte de detento decorrente de mal

súbito, nada indicando que houvesse restrição à prática de atividade física e com

socorro prestado adequadamente.428 Essa solução é intuitiva até; solução contrária

ofenderia o bom senso, a razoabilidade. O desafio da dogmática é explicar os

motivos pelos quais não se entende o Estado responsável em casos tais, mormente

por se tratar de responsabilidade objetiva. São esses justamente os casos mais

difíceis e intrincados. A dogmática oferece algumas respostas.

Yussef Said Cahali429 diz que o Estado só poderá ser responsabilizado por

omissão caso a conduta possa ser razoavelmente exigível dele. Para perquirir a

razoabilidade, expõe o autor, devem-se lançar os olhos sobre o caso concreto para

aferir um padrão de conduta exigível da Administração Pública, conduta essa que

poderia ter evitado ou atenuado o dano.

Irene Patrícia Nohara também menciona a razoabilidade como critério para

aferir a exigibilidade da conduta do Estado. Afirma autora que “a análise da

exigibilidade da ação, diante de um dever individualizado de agir, deve ser verificada

em função das obrigações legais do Estado, acrescidas de nuances de cada caso

concreto, tendo em vista o juízo de razoabilidade”.430

428 TJSP, Apel. 0005331-76.2010.8.26.0627, Rel. Des. Sidney Romano dos Reis, 6.ª Câmara de

Direito Público, j. 10.12.2012. 429 “A Administração Pública não poderá ser responsabilizada pela reparação do dano sofrido pelo

particular, provocado por eventos inevitáveis da natureza (chuvas torrenciais, inundações, alagamentos, deslizamentos, desmoronamentos), se nenhuma participação concorrente lhe pode ser imputada na causação do resultado danoso, seja porque razoavelmente não seria de exigir-se do Estado a realização de obras que pudessem evitar ou atenuar os efeitos do fato da natureza, seja porque aquelas realizadas seriam as únicas razoavelmente exigíveis” (CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade..., p. 50-51).

430 NOHARA, Irene. Direito administrativo, p. 791.

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O princípio da razoabilidade é muito desenvolvido pela doutrina de direito

administrativo, que, em suma, dispõe que deve haver equilíbrio e proporção entre os

meios utilizados para o atingimento das finalidades quando da prática do ato

administrativo.431 É dito, também, que a razoabilidade implica a consideração do que

pode ser considerado aceitável, racional, coerente, enfim, a conduta da

Administração tem de se apresentar dentro dos padrões normais de

aceitabilidade.432 Para Irene Nohara, ontologicamente a razoabilidade é muito mais

um juízo derivado da prudência, de Aristóteles, que capacita o homem a tomar

decisões sensatas, do que propriamente um princípio, de modo que “sua apreensão

insere-se mais na ordem afetiva, da intuição emocional, do que na ordem intelectiva

da teorização racional, que se dirige a determinados princípios”.433

O desenvolvimento desse princípio no seio da doutrina de direito

administrativo direcionou-se à sua aplicabilidade como meio de restrição da

discricionariedade administrativa, ou seja, questiona-se se e como um ato

administrativo pode ser considerado ilegal se violar a razoabilidade. Seu estudo é,

portanto, dentro da teoria do desvio de finalidade ou desvio de poder,434 não dentro

da responsabilidade civil do Estado.

431 Cf. DI PIETRO, Maria Sylvia. Direito..., p. 80-81; NOHARA, Irene. Direito administrativo, p. 95 e

ss.; MEDAUAR, Odete. Direito..., p. 142-143. 432 Cf. ZIMMER JÚNIOR, Aloísio. Curso..., p. 145; CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual...,

p. 39-40. 433 NOHARA, Irene. Direito administrativo, p. 97. 434 “[...] entende-se por desvio de poder a utilização de uma competência em desacordo com a

finalidade que lhe preside a instituição” (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Discricionariedade e controle jurisdicional. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1993. p. 56).

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Humberto Ávila435 assevera que a razoabilidade serve para estruturar a

aplicação de outras normas, princípios e regras, notadamente das regras. Diante da

polissemia do termo, bem como do sem-número de hipóteses em que é cabível sua

aplicação, esclarece o autor que a razoabilidade pode ser utilizada, primordialmente,

em três sentidos diferentes: como equidade, como congruência e, por fim, como

equivalência.

No primeiro sentido, o postulado da razoabilidade exige a harmonização de

uma norma geral com o caso individual. Para tanto, em primeiro lugar impõe-se, na

aplicação das normas jurídicas, considerar aquilo que normalmente ocorre naquele

tipo de caso, de modo que a norma não pode ser aplicada presumindo-se fatos no

sentido contrário ao que normalmente se espera que eles aconteçam. Em segundo

lugar, a razoabilidade exige que a consideração do aspecto individual do caso nas

hipóteses em que ele é desconsiderado pela generalização legal, isto é, impõe-se

que determinadas especificidades do caso afastem a aplicação da norma geral.

Sobre esse segundo aspecto esclarece o autor:

Uma regra não é aplicável somente porque as condições previstas em sua hipótese são satisfeitas. Uma regra é aplicável ao caso se, e somente se, suas condições são satisfeitas e sua aplicação não é excluída pela razão motivadora da própria regra ou pela existência de um princípio que institua uma razão contrária.436

No sentido de razoabilidade como congruência, o postulado exige a

harmonização das normas com suas condições externas de aplicação. Em primeiro

lugar, exige a recorrência a um suporte empírico existente; em segundo lugar, impõe

435 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios, p. 139 e ss. 436 Idem, ibidem, p. 142.

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uma relação congruente entre o critério de diferenciação escolhido e a medida

adotada. Não se analisa a relação entre meio e fim, mas sim entre critério e medida.

Como exemplo da primeira aplicação, deu-se o julgamento da inconstitucionalidade

de lei que instituiu terço de férias para aposentados, justamente pelo fato de os

inativos não terem férias, bem como as leis que são criadas para aplicação em um

contexto socioeconômico que deixa de existir (leis anacrônicas); como exemplo da

segunda aplicação, uma lei que contava em dobro o tempo de serviço de secretários

de Estado para efeito de aposentadoria, julgada inconstitucional.437

Por fim, na razoabilidade como equivalência, deve haver equivalência entre a

medida adotada e o critério que a dimensiona. O autor dá o exemplo de uma lei que

previa taxa judiciária fixa, independentemente do valor da causa, que acabou sendo

julgada inconstitucional por violar a razoabilidade, à medida que o pagamento

exigido não era equivalente ao serviço prestado.438

Humberto Ávila, portanto, não utiliza a ideia de razoabilidade como uma

ponderação entre meios e fins, que para ele seria o conceito de

proporcionalidade.439 O autor vislumbra a razoabilidade como um norte para

aplicação de regras jurídicas, que, se aplicadas friamente, diante do simples método

subsuntivo, podem levar ao resultado oposto do que se pretendia quando foram

positivadas. Há uma perspectiva nitidamente teleológica.

Quando a doutrina diz que o Estado não pode ser responsabilizado quando

não era razoável exigir-lhe a conduta omitida, é dessa última perspectiva de 437 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios, p. 143. 438 Idem, ibidem, p. 145. 439 Idem, p. 146 e ss.

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razoabilidade que se aproxima, não daquela perspectiva de ponderação entre meios

e fins, utilizada no estudo do desvio de finalidade nos atos administrativos. De fato,

na aferição de responsabilidade não se vislumbra possível realizar esse

balanceamento entre meios e fins. Dentre a tipologia apresentada por Humberto

Ávila, a que mais se aproxima desse sentido de razoabilidade na responsabilidade

civil é a primeira (razoabilidade como equidade), precisamente quando afirma que

determinadas especificidades do caso concreto podem afastar a aplicação da regra

geral.

A tentativa da dogmática ao formular esse tipo de condicionante para a

responsabilidade estatal é impedir que o Estado seja chamado a indenizar quando o

dano for causado por um risco que ele não tenha assumido quando o constituinte

originário lhe atribuiu a responsabilidade objetiva, ou seja, quando o dano causado

esteja fora do âmbito de proteção da norma. No Capítulo 1, item 1.2.2.3, foi visto que

um importante fator para a verificação da relação de imputação de danos,

particularmente na omissão, é a análise do âmbito de proteção da norma. Se o dano

concretizado estiver fora desse âmbito de proteção, não há falar em imputação de

danos.

Ao tentar criar um temperamento para a regra de responsabilização objetiva,

ao falar em razoabilidade, a doutrina nada mais faz do que retirar do âmbito de

responsabilidade estatal aqueles danos causados em situações em que ela esteve

envolvida, mas cujo desdobramento não lhe pode ser imputado, por ser um risco

que não está dentro do âmbito de proteção da norma. Nesse caso, não seria

razoável imputar a responsabilidade estatal. Trata-se da nítida perspectiva

teleológica acima relatada.

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Esse âmbito de proteção é delimitado pelos riscos que o Estado assume

quando da atividade administrativa. Márcio Luiz Coelho de Freitas440 explora bem o

tema, ao postular que a responsabilidade civil do Estado por omissão do Estado

deve ser imputada somente quando o dano for produto de uma violação do Estado

de seu esperado papel social, de modo que o dano que estiver dentro do risco

permitido não pode ser atribuído ao ente estatal. Cabe detalhar um pouco mais esse

posicionamento.

Explica o autor, de plano, que a utilização de teorias meramente naturalísticas

para aferir a causalidade na omissão estatal levou alguns autores a defender a

responsabilidade civil subjetiva do Estado na omissão, à medida que, se

naturalisticamente a omissão não causa dano, ele somente adviria do

comportamento culposo, violador da norma. Assim, deve-se levar em conta que para

o direito a causalidade meramente natural é inadequada, devendo-se lançar mão da

relação de imputação, esta, sim, jurídica. Para o autor, nada autoriza a interpretação

de que a responsabilidade do Estado na omissão é subjetiva, e defender a tese

oposta não significa abraçar a teoria do risco integral.

Nesse diapasão, explica o articulista que em uma sociedade de massas os

sujeitos desenvolvem papéis sociais que geram justas expectativas aos terceiros de

cumprimentos de determinadas tarefas, com base no princípio da confiança. Assim,

cada sujeito age dentro de um âmbito de risco permitido, que é determinado pelo

desenvolvimento da sociedade em concreto, pois não é papel de ninguém, nem

440 FREITAS, Márcio Luiz Coelho de. Da responsabilidade civil do Estado por omissões. Jus

Navigandi, Teresina, ano 6, n. 51, 1.º out. 2001. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/2247>. Acesso em: 3 mar. 2013.

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mesmo do Estado, eliminar ou assumir todos os riscos próprios da vida em

sociedade.

Só haveria responsabilidade, portanto, quando o risco concretizado estivesse

fora do âmbito do risco permitido, de modo a abalar o princípio da confiança. Se o

risco estivesse dentro do âmbito do risco permitido, ou caso sua concretização

possa ser imputada somente à vítima, impossível a legítima imputação do dano.

Quando o Estado exerce seu poder de polícia, por exemplo, ao autorizar a

comercialização de alimentos transgênicos, ao dar licença para a prática de

determinada atividade, ao aprovar um medicamento nos órgãos de vigilância

sanitária, uma vez cumpridas as regras impostas pela legislação do momento, bem

como pelo conhecimento científico da época, ele não se torna segurador de

eventuais danos causados por essas atividades ou produtos. Sua atuação está

dentro do âmbito de risco permitido, de modo que não há legítima imputação de

danos caso se pretenda responsabilizar o ente estatal.

Em interessante decisão,441 já antiga, mencionada por Yussef Said Cahali,442

o Supremo Tribunal Federal reconheceu que uma prefeitura não poderia ser

responsabilizada por danos cometidos por atividade esportiva praticada com sua

autorização, desde que respeitada a lei de regência, no perímetro urbano do

município, pois seria o mesmo que admitir que o Estado devesse ser

responsabilizado pelo dano causado por cada veículo licenciado pela autoridade de

trânsito. Embora a argumentação da decisão não tenha se valido dos conceitos ora

441 STF, 1.ª Turma, 30.03.1976, RTJ 78/236. 442 CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade…, p. 126.

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trabalhados, resta nítido que os riscos desse tipo de atividade ou produto não podem

ser absorvidos pelo Estado, uma vez que não é esse o seu papel social, nem é esse

o âmbito de proteção imposto pela norma. Havendo falha na fiscalização,

descumprimento da legislação, aí sim haveria uma legítima relação de imputação de

danos, em razão do descumprimento da lei por parte do Estado, bem como da

frustração de seu papel social.

Os riscos derivados de empreendimento de atividade econômica devem ser

assumidos por quem as desenvolve. Cabe ao Estado fiscalizar e normatizar as

atividades, dentro dos limites impostos pelo ordenamento jurídico. Pretender a

responsabilização estatal, pelo simples fato de exercer o poder de polícia, pelos

riscos do desenvolvimento de atividades e produtos, é transferir a responsabilidade

da iniciativa privada para a coletividade. Seria, em outros termos, privatizar os lucros

e socializar os riscos. Interpretar assim a responsabilidade estatal é transformar o

Estado em segurador da atividade econômica – sem que tenha recebido o “prêmio”

para tanto –, e solapar as bases da responsabilidade civil, constituindo, na feliz

expressão de Gilmar Ferreira Mendes, “feição de patologia institucional”.443

É por um raciocínio análogo a esse que a jurisprudência, embora não

exponha o tipo de argumentação ora desenvolvido, reiteradamente nega a

indenização a quem teve o veículo furtado em “zona azul”, à medida que se trata

apenas de exercício de poder de polícia para garantir a rotatividade das vagas de

estacionamento em áreas muito movimentadas. Não há contrato de depósito

443 MENDES, Gilmar Ferreira. Perplexidades acerca da responsabilidade civil do Estado: União

seguradora universal? Revista Jurídica Virtual da Presidência da República, Brasília, v. 2, n. 13, jun. 2000.

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realizado com o Estado, de modo que não há norma que lhe impute o dever de agir.

Assim, a guarda da coisa está fora do âmbito de proteção da norma, que se destina

somente a fundamentar o poder de polícia.444

Portanto, em situações de caso fortuito ou de força maior, o fato do existir o

dever de agir estatal, que em tese fundamentaria sua responsabilidade por omissão,

não indica que necessariamente o Estado será responsabilizado. É preciso que o

intérprete saiba identificar se o dano estava dentro do âmbito de proteção da norma

que fundamenta o dever de agir, âmbito esse que é circunscrito pelos riscos que o

Estado assumiu naquela atividade administrativa específica. Quando a dogmática

fala em razoabilidade para se aferir o dever de agir estatal, é nessa perspectiva ora

descrita que o operador do Direito deve guiar-se.

Reconhece-se que muitas vezes há uma zona fronteiriça de difícil

especificação entre a teoria da culpa do serviço e a teoria do risco permitido. Irene

Patrícia Nohara445 afirma que avaliar se houve a concretização de um risco não

permitido implica avaliar se razoavelmente poderia se exigir a conduta esperada do

Estado, ou seja, necessariamente o intérprete verificará se o Estado adotou todas as

medidas possíveis para evitar o risco, de modo que a discussão sempre acaba

descambando para a culpa in ommitendo. Por isso, continua a autora, que as

decisões judiciais acabam amiúde embaralhando os conceitos, tratando de culpa

quando há responsabilidade objetiva.

444 TJSP, Apel. 0021767-65.2011.8.26.0566, Rel. Urbano Ruiz, 10.ª Câmara de Direito Público, j.

18.02.2013; TJSP, 0019485-92.2009.8.26.0576, Rel. Magalhães Coelho, 7.ª Câmara de Direito Público, j. 02.05.2011; TJSP, Apel. 9061992-77.1998.8.26.0000, Rel. Rui Stoco, 3.ª Câmara de Direito Público de Férias, j. 28.07.2000; TJSP, Apel. 9067031-74.2006.8.26.0000, Rel. Oswaldo Luiz Palu, 9.ª Câmara de Direito Público, j. 19.05.2010.

445 NOHARA, Irene. Direito administrativo, p. 795-796.

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Conforme se disse anteriormente neste trabalho, aqueles que enxergaram

responsabilidade subjetiva na responsabilidade por omissão tiveram o grande mérito

de perceber que, nesse tipo de conduta, é mister que haja o dever de agir para

evitar o dano, elemento esse que fundamenta a imputação de danos. Desse ponto

não se discorda, e possivelmente é daí que advém tanta confusão. Entretanto, não

se deve aferir referido dever com o parâmetro da culpa, à medida que a dogmática

tradicionalmente liga culpa à vontade viciada, à trinca negligência-imprudência-

imperícia, enfim, a parâmetros individuais de atos, de difícil adaptabilidade a entes

abstratos exercentes de atividades.

Em suma, no que tange às ditas excludentes de responsabilidade civil dentro

da omissão estatal, pode-se concluir que: (i) na verdade as ditas excludentes são

elementos integradores do processo interpretativo de verificação da

responsabilidade, concomitante, não posterior, à imputação, motivo pelo qual se

pode dizer que são verdadeiras causas de não incidência de responsabilidade; (ii) o

fato exclusivo da vítima constitui uma causa que afasta o dever de indenizar, ante a

inexigibilidade do dever de agir no caso concreto; (iii) o caso fortuito ou de força

maior, que se têm como sinônimos neste trabalho, bem como o fato de terceiro, em

tese não excluiriam a responsabilidade estatal se ela tiver o dever de agir; (iv) a

última assertiva, todavia, tem de ser relativizada quando o dano superveniente não

advier de um risco assumido pela atividade estatal, isto é, quando não estiver dentro

da norma imponente do dever de agir, ou, de acordo com o que diz a doutrina em

geral, quando não for razoável exigir aquela conduta do Estado, interpretada a

razoabilidade não como uma relação de adequação entre meios e fins, mas como

um fator de aplicação da norma ao caso concreto; (v) por último, a dogmática tem de

se libertar da discussão da culpa em casos tais, pois inevitavelmente fará com que o

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intérprete procure por negligência-imprudência-imperícia, que são de difícil

aplicabilidade para a atividade estatal, devendo concentrar-se em perscrutar a

abrangência do dever de agir do Estado no caso concreto e os riscos que ele

assume naquele determinado tipo de atuação.

2.7 Proposta de interpretação do artigo 37, § 6.º, da Constituição Federal

Diante de tudo o que foi exposto no decorrer desta dissertação, e também

como forma de retomar as diversas posições debatidas e assumidas durante esse

percurso, crê-se ser frutífera a tentativa de engendrar um método de interpretação

da responsabilidade objetiva do Estado, a partir do texto constitucional. É cediço que

modelos teóricos não solucionam todos os desafios postos diante dos aplicadores

do direito, e que o método sistemático de aplicação do direito também tem suas

falhas, mas o estudioso não pode se furtar de dar sua contribuição. Afinal, se este

trabalho, conforme exposto na Introdução, também aborda a dogmática em sua

perspectiva normativa, trata-se de um mister que forçosamente se impõe.

Em primeiro lugar, para se imputar a responsabilidade do Estado por

omissão, deve-se ter em mente que a omissão jamais é um conceito neutro,

devendo ser cotejada com o resultado que acabou sendo gerado pela ausência de

intervenção, isto é, deve-se avaliar o contexto conduta-evento. A análise da conduta

é, portanto, concomitante com a avaliação da relação de imputação, à medida que o

dano será imputado ao responsável somente se houver o dever de agir.

O intérprete deve, pois, procurar se havia dever de agir estatal naquele caso,

dever esse específico e circunstanciado. Sua origem pode ser obtida diretamente na

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lei ou em um risco anteriormente propiciado pelo próprio Estado. Nessa última

rubrica deve-se lançar especial atenção aos deveres de tráfego (Capítulo 1, itens

1.1.4.1 e 1.1.4.4), isto é, a deveres emergentes de situações de risco propiciadas e

mantidas pelo Estado. Assim, se o dano sobrevier em ambiente controlado pelo

Estado, potencialmente lesivo, a matéria deve ser tratada naquele âmbito.

A identificação do dever de agir, todavia, não basta para completar a relação

de imputação, à medida que o dano só poderá ser imputado ao Estado omitente se

ele estiver dentro do âmbito de proteção da norma. Deve-se imprimir uma

perspectiva teleológica ao processo interpretativo, de modo a analisar se o dano

sobreveio de risco assumido pelo Estado quando do desenvolvimento da atividade

administrativa. Essa perspectiva já traz, concomitantemente, a análise das causas

que podem “excluir” a responsabilidade.

As ditas “excludentes” de responsabilidade, na verdade cláusulas de não

incidência, têm relevante papel nesse processo de interpretação da norma, à medida

que, se presentes, podem desconfigurar a imputação dos danos. Assim, o fato

exclusivo da vítima elimina a relação de imputação. Já o fato de terceiro e o caso

fortuito ou de força maior, aqui admitidos como sinônimos, em tese não afastariam a

responsabilidade quando presente o dever de agir, mas podem fazê-lo se a conduta

não puder ser razoavelmente exigida do Estado, tendo em vista a superveniência de

dano que estava fora do âmbito da proteção normativa. Danos experimentados a

partir de riscos permitidos, com base no princípio da confiança e nas legítimas

expectativas sociais, não são, portanto, indenizáveis.

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CONCLUSÕES

1. A omissão é elemento da responsabilidade civil, enquadrando-se como

uma modalidade de conduta ao lado da ação. Existe um conceito pré-jurídico de

omissão, consistente na expectativa social em torno de determinado

comportamento. Por isso a omissão jamais pode ser um conceito neutro, e tem de

ser aferida sempre dentro dessa perspectiva entre conduta esperada e evento.

2. Se a expectativa, ou esperança, em torno dessa conduta estiver postulada

por uma norma jurídica, poder-se-á dizer que a omissão é juridicamente relevante.

Há, então, o dever de agir. Esse dever pode advir de fatos previstos em lei, até

mesmo em outros ramos do direito, além do direito civil, bem como de um negócio

jurídico (dando azo à aplicação da responsabilidade civil contratual), e, ainda, de

uma situação anterior que colocou o omitente como garantidor da inocorrência do

evento danoso.

3. Dentro dessa temática, importante é identificar a figura dos deveres de

tráfego, que são de muita utilidade dentro da responsabilidade civil estatal. Entende-

se que, quando alguém cria uma fonte de perigo, torna-se responsável por danos

provenientes desse risco, por haver o dever de agir no sentido de evitá-los. A

responsabilidade estatal por danos em ambientes por ele controlados, como

penitenciárias, escolas, hospitais, entre outros, pode ser enquadrada na rubrica dos

deveres de tráfego.

4. Para hipóteses em que não há um dever de agir plenamente identificável,

mas em que o omitente poderia agir sem risco pessoal, a doutrina de direito civil

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previu a figura do dever de ingerência, que se baseia na cláusula geral da boa-fé e

na figura do abuso de direito. No que tange ao Estado, todavia, não se vislumbra a

aplicação da hipótese, à medida que o dever de agir emerge, antes, da própria lei,

que fundamente a função administrativa, verdadeiro dever-poder.

5. A aproximação entre a conduta omissiva e o dano é feita pelo nexo causal.

Sua análise não é fática, como fazem crer algumas lições da dogmática, mas sim

estritamente jurídica, mormente nas condutas omissivas. Com efeito, nestas o

omitente não causou naturalisticamente o dano, que foi gerado por um fato alheio a

ele. O sistema, pois, acaba escolhendo, a partir de premissas constantes do próprio

ordenamento jurídico, alguém responsável para responder pelo dano. Assim, não

haveria a rigor um verdadeiro nexo causal, mas um nexo de imputação do evento

danoso ao omitente, justificando, assim, o título desta dissertação.

6. Dentre as teorias do nexo causal, a equivalência das condições é a única

que se pode verdadeiramente considerar como uma teoria de aferição de

causalidade natural, e, como tal, tem pouca utilidade para a omissão. A causalidade

adequada, em sua formulação negativa, parece ser a teoria mais apta para lidar com

problemas da causalidade jurídica, em que pese também ostentar problemas

quando o dano não foi produzido por uma causa adequada em abstrato, mas que

era adequada àquele caso determinado. A teoria dos danos diretos e imediatos,

embora tenha grande popularidade dentro da dogmática pátria, e também da

jurisprudência, não parece ser uma teoria completa de causalidade, mas sim uma

teoria sobre extensão de indenização, o que condiz, aliás, com sua origem e com

sua colocação topológica dentro do Código Civil.

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7. Um importantíssimo elemento a considerar dentro da temática da

causalidade, e que tem muita utilidade na omissão, é a teoria do escopo de norma

violada, que prevê uma conexão teleológica entre a norma impositiva de

responsabilidade e o dano. Assim, só haverá legítima imputação do dano se existir

sentido, diante da razão de ser da norma, considerar aquele determinado fato como

causa do dano.

8. Conclui-se, portanto, que a causalidade jurídica deve ser aferida por uma

progressiva utilização das teorias da causalidade, começando pela equivalência das

condições, passando pela causalidade adequada em suas formulações positiva e

negativa, e finalizando com a perspectiva teleológica do escopo da norma violada.

Ainda que se insista na aplicação da teoria dos danos diretos e imediatos, sua

formulação pelo subprincípio da necessariedade, afastando-a da redação do artigo

403 do Código Civil, acaba por levar a resultados idênticos.

9. A relação de imputação na omissão tem a especificidade de ser necessária

à verificação do dever de agir, que a fundamenta. Deve-se considerar que a ação

omitida teria muito provavelmente evitado o dano, sem cogitações acerca de

previsibilidade. É mister, também, complementar o raciocínio com a ideia do escopo

da norma, ou seja, o dano deve ter alguma relação com o dever de agir imposto pela

norma, deve estar dentro do seu âmbito de proteção. Em outros termos,

considerando-se que a bitola de ilicitude na omissão é mais estrita, justamente pela

exigência de um específico dever de agir, a ideia de escopo de norma violada

adquire ainda maior relevância para se perscrutar se determinado dano pode ser

imputado ao omitente, analisando-se se a conduta esperada tinha a finalidade de

obstar aquele tipo específico de dano.

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10. A formulação clássica de culpa é essencialmente moralista e

individualista, ligada à vontade viciada. Alguém só poderia ser culpado de algo se o

fato pudesse ser vinculado à vontade mal externada. Trata-se da culpa psicológica.

Com o passar do tempo e a dificuldade de indenizar diversos tipos de danos, a culpa

de um lado foi abandonada (responsabilidade objetiva), e de outro passou a ser

avaliada segundo parâmetros mais abstratos e menos individuais (culpa normativa).

11. A doutrina divide-se em considerá-la in concreto, em que é fundamental a

imputabilidade, ou in abstracto, em que se prescinde do plano do agente para utilizar

um padrão abstrato de comportamento. A primeira formulação atenderia à culpa

psicológica, a segunda, à culpa normativa.

12. Seja psicológica, seja normativa, a culpa é um parâmetro de aferição de

atos humanos, vinculada à trinca negligência-imprudência-imperícia. Enquanto os

atos humanos são frutos da volição e da subjetividade, a serem avaliados pelo

parâmetro da culpa, a atividade é fruto da confiança pública e da boa-fé, a ser

avaliada de acordo com o parâmetro da responsabilidade objetiva.

13. A negligência, como modalidade de culpa, não se confunde com a

omissão, que é uma modalidade de conduta. A negligência caracteriza-se pela

“omissão na ação”, ou seja, pelo desleixo a partir de uma situação propiciatória

criada pelo responsável. A omissão tem aferição objetiva, devendo ser cotejada com

o dever de agir existente no caso concreto.

14. Nesse sentido, em sede de responsabilidade subjetiva, para haver

responsabilidade civil a situação propiciatória precisa ser criada culposamente, ou

seja, descuidadamente, imprudentemente, ao passo que na responsabilidade

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objetiva sua mera criação faria emergir a responsabilização do autor do dano. Em

ambos os casos há omissão enquanto conduta (risco anteriormente criado), mas

somente no primeiro haveria negligência (culpa).

15. Na conduta omissiva, se a responsabilidade for subjetiva, a avaliação da

culpa, na modalidade negligência, é feita antecedentemente à omissão danosa em

si. Avalia-se se todos os cuidados possíveis foram efetivamente tomados. Se a

responsabilidade for objetiva, a análise sobre esses cuidados antecedentes será

desnecessária, devendo ser focalizado somente o dever de agir a omissão dentro do

contexto conduta-evento, que poderá ser afastado se presente alguma excludente

de causalidade.

16. A responsabilidade civil do Estado, de acordo com o artigo 37, § 6.º, da

Constituição Federal, é objetiva. Adota-se a teoria do risco administrativo, a partir da

ideia de repartição dos encargos sociais. Nesse sentido, os danos derivados do risco

de atividade estatal têm de ser suportados por toda a sociedade, representada pelo

Estado. Quando o dano é praticado por agente estatal, exige-se que atue nessa

qualidade, mesmo que esteja fora do exercício das funções, mas tenha agido a

pretexto delas.

17. Nas condutas omissivas estatais, há uma conhecida polêmica envolvendo

a natureza da responsabilidade civil, criada pela doutrina e refletida na

jurisprudência. De um lado, parte da doutrina diz que se trata de responsabilidade

subjetiva, pois na omissão é mister que exista um dever de agir imposto pela lei. Se

havia um dever de agir e a Administração não agiu, houve cometimento de ato ilícito

e, assim, a responsabilidade seria subjetiva. A conduta administrativa seria mera

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condição, não causa, do dano, e a imputação de responsabilidade objetiva

transformaria o Estado em segurador universal. Desse modo, na omissão seria

necessário perscrutar negligência, imprudência ou imperícia por parte da

Administração Pública, podendo a culpa ser presumida relativamente. Aplicar-se-ia,

então, a teoria da culpa do serviço, da culpa anônima, também conhecida como

teoria da faute du service.

18. De outro lado, diz-se que, se a Constituição não fez qualquer distinção no

que tange à responsabilidade do Estado pelo critério da natureza da conduta, não

caberia ao intérprete fazê-la. Assim, a responsabilidade estatal, mesmo na omissão,

seria objetiva. A conduta administrativa, em que pese não possa ser considerada

causa no sentido natural, poderia ser considerada causa no sentido jurídico. O

Estado não se tornaria segurador universal diante da necessidade de verificação do

nexo causal, bem como pela possibilidade de manejo das excludentes.

19. A teoria da faute du service não pode ser chamada de uma teoria de

responsabilidade subjetiva. Conforme se demonstrou, na própria França ela não foi

utilizada com essa finalidade, e sim como meio de separar o que era infração do

serviço público da infração pessoal do funcionário. Jamais foi, portanto, uma teoria

de omissão ou de culpa. Ademais, à luz do direito civil e da estrutura da culpa,

estudada no item 1.3 do Capítulo 1, é inadequado pretender utilizar um parâmetro

de avaliação de condutas individuais e pessoais (culpa) para a análise de índices

abstratos de funcionamento da atividade estatal.

20. Uma terceira posição a respeito da imputação de danos na omissão

estatal é aquela que divide a omissão em genérica e específica. No primeiro caso, a

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responsabilidade seria subjetiva, no segundo, objetiva. A dicotomia estabelecida tem

o grande mérito de perceber que a maneira de imputar a responsabilidade é

diferente de acordo com a existência ou não de norma específica impondo o dever

de agir. Não se trata, todavia, de uma questão de espécie de responsabilidade

(objetiva ou subjetiva), mas sim de como realizar a imputação do dano ao Estado

omitente.

21. Não é possível apontar um posicionamento predominante na

jurisprudência. São encontradas decisões em todos os sentidos, sejam nos tribunais

locais, sejam nos tribunais superiores. Há uma repercussão geral sobre o caso,

reconhecida no Supremo Tribunal Federal, ainda não julgada em definitivo.

22. A conduta omissiva não implica subjetivação da responsabilidade estatal.

A teoria subjetivista teve o mérito de perceber que na omissão há a especificidade

da imposição de um dever de agir, mas esse elemento é relativo ao nexo causal,

não ao elemento subjetivo da responsabilidade. O que se deve perscrutar, então,

não é se houve negligência, imprudência ou imperícia, noções de difícil adaptação à

atividade estatal abstratamente considerada, mas sim se havia o dever, no caso, de

interromper determinado desdobramento causal, isto é, se o Estado deveria, se lhe

era exigível, no caso, ter impedido aquele desdobramento causal. Destarte,

despropositada a invocação de responsabilidade subjetiva pelo fato de a conduta

estatal ser omissiva, devendo o foco de análise ser concentrado no nexo de

imputação.

23. Reconhecer a responsabilidade objetiva na omissão, todavia, não implica

escancarar as portas da responsabilidade estatal, transformando-o em segurador da

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atividade social, como pretendem alguns. Com efeito, a doutrina que defende

puramente a responsabilidade objetiva muitas vezes não volta os olhos a essa

minúcia da causalidade (imputação), pretendendo assim uma ampla e irrestrita

responsabilização do Estado pelos danos.

24. Imperioso, pois, reconhecer a correção da teoria da responsabilidade

subjetiva quando identifica que na omissão se deve perscrutar um dever de agir do

Estado no caso concreto, de modo a não responsabilizá-lo por qualquer evento em

que esteve mediatamente envolvido, como se tivesse dever de interromper qualquer

processo causal, mas apenas se afirma que não se trata de transformar a

responsabilidade em subjetiva, mas somente de reconhecer a especificidade da

causalidade na omissão, ou melhor, reconhecer se há viabilidade na imputação do

dano ao Estado, isto é, se houve um dever de agir descumprido.

25. A dificuldade dos casos concretos é reconhecer, de um lado, a fonte

desse dever de agir e, de outro, sua abrangência. No que tange à fonte, o dever de

agir deverá advir diretamente da lei, ou de risco criado pelo omitente, rubrica em que

se enquadram os deveres de tráfego, isto é, deveres de cuidado inerentes à

atividade daquele que controla uma fonte de perigo. A figura dos deveres de tráfego

é muito importante para entender o tratamento da responsabilidade estatal em

lugares potencialmente perigosos sob controle do Estado.

26. No que tange à abrangência, pontos fundamentais para a aferição da

responsabilidade são as chamadas excludentes de responsabilidade. Elas são

verdadeiros elementos constitutivos da responsabilidade, analisadas com a relação

de imputação, não sequentemente, conformando o próprio dever de agir.

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27. A dogmática de direito civil aponta o fato exclusivo da vítima, o fato de

terceiro, o caso fortuito e a força maior como excludentes da responsabilidade, que

se operam no plano da causalidade. Há duas correntes no que se refere à

necessidade de distinguir o caso fortuito da força maior. De um lado, Arnoldo

Medeiros da Fonseca e seus seguidores postulam a inutilidade da distinção, e de

outro, Agostinho Alvim e seus seguidores, que entendem que o fortuito é interno à

atividade do devedor, enquanto a força maior é externa a ela.

28. Adota-se como melhor posicionamento a primeira corrente, com os

acréscimos de Fernando Noronha, no sentido de que o elemento preponderante da

definição é a irresistibilidade do evento, que poderia até ser objetivamente previsível,

mas não poderia ser evitado ou ter seus efeitos impedidos. Inclui-se, ainda, a

externidade como elemento definidor das excludentes, haja vista ser pacífico na

doutrina que, se o evento danoso estiver dentro da esfera de controle do suposto

responsável, ou se ele se aproveitar do risco que propiciou o evento, não há falar em

excludente de causalidade.

29. As excludentes têm aplicabilidade amplamente reconhecida pela

dogmática quando se trata da atividade estatal, salvo em casos de responsabilidade

civil agravada (ou pelo risco integral), expressamente previstas em lei. No que se

refere à nomenclatura, lembre-se que não se trata propriamente de excludentes, no

sentido de serem posteriores à imputação, mas sim de causas de não incidência,

verdadeiramente elementos integradores do processo de imputação de

responsabilidade, a atuar sobre a conformação do dever de agir.

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30. Havendo fato exclusivo da vítima, afastam-se o dever de agir estatal e a

legítima imputação de danos, de modo que não há falar em responsabilidade estatal.

Decisões que não reconhecem essa excludente não são fundamentadas

tecnicamente, tratando o Estado como segurador da atividade e impondo-lhe ônus

indevido.

31. O caso fortuito ou de força maior, que se têm como sinônimos neste

trabalho, bem como o fato de terceiro, em tese não excluiriam a responsabilidade

estatal se ela tiver o dever de agir. Afinal, na omissão não há causalidade natural

entre a conduta e o resultado, de modo que aquele é responsabilizado, em regra,

por um fato inaugurado por terceiro por algum evento alheio ao seu comportamento.

32. Tal assertiva, todavia, tem de ser relativizada quando o dano

superveniente não advier de um risco assumido pela atividade estatal, isto é, quando

não estiver dentro da norma imponente do dever de agir, ou, de acordo com o que

diz a doutrina em geral, quando não for razoável exigir aquela conduta do Estado.

Deve-se, portanto, retirar do âmbito de responsabilidade estatal aqueles danos

causados em situações em que ela esteve envolvida, mas cujo desdobramento não

lhe pode ser imputado, por ser um risco que não está dentro do âmbito de proteção

da norma. Nesse caso, não seria razoável imputar a responsabilidade estatal. A

questão tem de ser analisada sob uma perspectiva teleológica.

33. A razoabilidade ora mencionada não se vislumbra como o balanceamento

entre meios e fins, de acordo com a tradicional doutrina de direito administrativo,

cujo sentido aplica-se ao desvio de poder. Trata-se de outro sentido, apresentado

por Humberto Ávila, notadamente de razoabilidade como equidade, precisamente

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quando afirma que determinadas especificidades do caso concreto podem afastar a

aplicação da regra geral.

34. Esse critério da razoabilidade, relacionado com as noções de escopo da

norma violada e risco permitido, deve ser utilizado para a responsabilidade por

omissão quando há fato de terceiro ou caso fortuito, e tal avaliação de maneira

alguma remonta à responsabilidade subjetiva do direito civil, calcada na trinca

negligência-imprudência-imperícia.

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