artigo vitor

17
GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 21, pp. 119 - 134, 2007 SISTEMA FERROVIÁRIO PÓS-PRIVATIZAÇÃO E FLUIDEZ CORPORATIVA: O MOVIMENTO DE PRODUTOS AGRÍCOLAS NO TERRITÓRIO BRASILEIRO Vitor Pires Vencovsky* & Ricardo Castillo** *Mestre em Geografia pelo Instituto de Geociências da Unicamp. E-mail: [email protected] **Docente do Instituto de Geociências da Unicamp e pesquisador do CNPQ. E-mail: [email protected] RESUMO: A organização do território brasileiro tem sido definida, em grande parte, por políticas públicas e privadas voltadas à produção, movimento e exportação de commodities agrícolas produzidas em áreas de Cerrado. A competitividade do agronegócio brasileiro torna-se dependente de uma logística, na qual as ferrovias assumem um papel preponderante. Este artigo se propõe analisar as políticas do sistema ferroviário atual e das fronteiras agrícolas consolidadas que acabam tendo como conseqüência principal o uso corporativo do território brasileiro. PALAVRAS-CHAVE: ferrovias, agricultura, Cerrado, território, privatização ABSTRACT: The organization of the Brazilian territory has been defined mainly by public and private policies directed to the production, movement and exportation of agricultural commodities produced in Cerrado region. The competitiveness of the Brazilian agribusiness becomes dependent of a logistic in which the railroad assumes a preponderant role. This article intends to analyze the policies of the current railroad system and agriculture production areas that have a strong consequence to the corporative use of the Brazilian territory. KEY WORDS: railroads, agriculture, Cerrado, territory, privatization Introdução As políticas públicas e privadas relacionadas aos sistemas de transportes e à produção de commodities agrícolas têm influenciado decisivamente a atual organização do território brasileiro. Essas políticas valorizam e desvalorizam regiões e atividades econômicas em favor de empresas privada, sem atender, muitas vezes, as necessidades da sociedade como um todo. Para compreender a organização do território brasileiro, este artigo, dividido em seis itens, propõe uma análise do sistema ferroviário brasileiro e da produção agrícola em fronteiras consolidadas do Cerrado. Partimos, como premissa de método, de uma periodização do sistema ferroviário

Upload: atila-fwapp

Post on 08-Dec-2015

243 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

Transporte Ferroviário

TRANSCRIPT

Page 1: Artigo Vitor

GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 21, pp. 119 - 134, 2007

SISTEMA FERROVIÁRIO PÓS-PRIVATIZAÇÃO E FLUIDEZCORPORATIVA:

O MOVIMENTO DE PRODUTOS AGRÍCOLAS NO TERRITÓRIOBRASILEIRO

Vitor Pires Vencovsky*&

Ricardo Castillo**

*Mestre em Geografia pelo Instituto de Geociências da Unicamp. E-mail: [email protected]**Docente do Instituto de Geociências da Unicamp e pesquisador do CNPQ. E-mail: [email protected]

RESUMO:A organização do território brasileiro tem sido definida, em grande parte, por políticas públicas eprivadas voltadas à produção, movimento e exportação de commodities agrícolas produzidas emáreas de Cerrado. A competitividade do agronegócio brasileiro torna-se dependente de uma logística,na qual as ferrovias assumem um papel preponderante. Este artigo se propõe analisar as políticasdo sistema ferroviário atual e das fronteiras agrícolas consolidadas que acabam tendo comoconseqüência principal o uso corporativo do território brasileiro.PALAVRAS-CHAVE:ferrovias, agricultura, Cerrado, território, privatizaçãoABSTRACT:The organization of the Brazilian territory has been defined mainly by public and private policiesdirected to the production, movement and exportation of agricultural commodities produced inCerrado region. The competitiveness of the Brazilian agribusiness becomes dependent of a logisticin which the railroad assumes a preponderant role. This article intends to analyze the policies ofthe current railroad system and agriculture production areas that have a strong consequence tothe corporative use of the Brazilian territory.KEY WORDS:railroads, agriculture, Cerrado, territory, privatization

IntroduçãoAs po l í t i cas púb l i cas e pr ivadas

relacionadas aos sistemas de transportes eà produção de commodities agrícolas têminf luenc iado dec is ivamente a atua lorganização do território brasileiro. Essaspolíticas valorizam e desvalorizam regiõese at iv idades econômicas em favor deempresas pr ivada, sem atender, muitasvezes, as necessidades da sociedade como

um todo.

Para compreender a organização doterritório brasileiro, este artigo, dividido emseis itens, propõe uma análise do sistemaferroviário brasileiro e da produção agrícolaem fronteiras consolidadas do Cerrado.

Partimos, como premissa de método,de uma periodização do sistema ferroviário

Page 2: Artigo Vitor

120 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 21, 2007 VENCOVSKY, V. P. & R. & CASTILLO, R.

brasi leiro. Reconhecendo três momentosd is t in tos , es ta per iod ização buscademonstrar como o uso e a regu laçãodessas redes, através das pol í t icas dosgovernos e das empresas, foram marcadospor continuidades e rupturas ao longo dosúltimos 150 anos, influenciando através desua marcante presença material e normasassoc iadas, as sucess ivas po l í t i cas detransporte e decisões de investimentos emfluidez territorial.

O momento atua l do s i s temafer rov iár io teve in í c io em 1996 com opart i lhamento da rede e concessão aempresas privadas. Esses novos agentesacabam por radicalizar a característica maismarcante do sistema ferroviário brasileiro:sua topo log ia extravert ida, func iona l àexportação de commod i t i es m inera i s eagrícolas, sobretudo.

Grande parte dos investimentos nosetor fe r rov iár io tem como obje t ivopromover uma f lu idez corporat iva,exempl i f i cada pe lo escoamento da sojaproduzida nos fronts agrícolas do Cerrado edestinada aos portos exportadores. Essasregiões produtoras d ist inguem-se pelosvetores de modern ização, gera lmentese let ivos e exc ludentes, e por estaremdistantes dos portos exportadores, exigindodo Estado novos sistemas de engenhariapara tornar a soja competitiva nos mercadosinternacionais. Estes verdadeiros corredoresde exportação, reeditados sob nova matrizregulatória, mostram-se vantajosos para omovimento de produtos de grande volumee baixo valor agregado, ao mesmo tempoem que enr i jecem o terr i tór io e podemcomprometer seus usos futuros.

Breve periodização do sistema ferroviáriobrasileiro

A organ ização dos ter r i tór iosnacionais que conhecemos atualmente teveno uso das fer rov ias um e lemento

fundamental. Surgidas na Inglaterra no iníciodo século XIX, as ferrovias contribuíram paraa emergência de formações sócio-espaciais(SANTOS, 1977) bastante complexas.

As normas surg idas a par t i r dasempresas ferroviárias definiram grande partedo funcionamento das sociedades e regiões,que passaram a ter como parâmetro deorganização e circulação os horários e ostraçados dos trens.

As ferrovias ajudaram também na“origem de um complexo sistema de divisãointernac iona l do t raba lho”, dev ido ao“incremento de produt iv idade nost ranspor tes” (FURTADO, 1974, p .77) .Contribuíram, assim, para modificar o “tempoe o movimento dos homens” (ELLUL, 1968,p. -335-337).

O período compreendido entre o iníciodo século XIX e início do século XX ficouconhec ido como a “Pr imei ra Revo luçãoChandleriana” (BRESSAND & DISTLER, 1995),em referência à obra de A. Chandler sobreo papel da expansão das ferrov ias naadmin is t ração da grande empresa nosEstados Unidos (CHANDLER, 1998). Nesseperíodo, com o surgimento das ferrovias edo te légrafo , ver i f i cou-se uma “novaorgan ização do mundo e das re laçõeseconômicas baseada numa crescentediminuição da fricção do espaço” (BRESSAND& DISTLER, apud CASTILLO, 2001, p. 239).

As t rans formações soc ia i s eter r i to r ia i s ocas ionadas pe la Pr ime i raRevo lução Chand ler iana ocorreram, noentanto, de forma des igua l , já que oemprego e a difusão das técnicas e dasnormas se deu de forma seletiva no espaçoe teve como base definidora a busca deregiões já competitivas ou com potencial deserem compet i t ivas , ace lerando eacentuando, desse modo, a diferenciaçãoentre as regiões.

No Bras i l , porém, essastransformações não ocorreram da mesma

Page 3: Artigo Vitor

Sistema ferroviário pós-privatização e fluidez corporativa:o movimento de produtos agrícolas no território brasileiro, pp. 119 - 134 121

forma como verificada nos países centrais,pois a técnica efetivada em cada território“tem suas leis e suas razões” (ELLUL, 1968,p. 213) definidas, principalmente, pelasdi ferentes pol í t i cas públ icas e pr ivadasrea l i zadas ao longo do tempo. Paraentender o sistema ferroviário e o uso doterr i tór io bras i le i ro é importante, comorecurso de método, e laborar umaperiodização.

Essa periodização pode ser propostade acordo com a análise e organização dosdiferentes sistemas de eventos, que podemvariar de acordo com as suas escalas deorigem e de realização. Esses eventos, porsua vez, são caracterizados pelas técnicasutilizadas pela sociedade para construir ah is tór ia do uso do terr i tór io . O uso doterr i tór io pode ser ver i f icado, portanto,através da implantação de infra-estruturas,da dinâmica da economia e da sociedade,das políticas dos governos e das empresas,das normas e leis utilizadas na regulação,das regras de financiamento dos diversossetores da economia etc . (SANTOS &SILVEIRA, 2001, p.-21-27).

A análise dos sistemas de eventosmostra que as políticas de transportes noBrasil, por exemplo, não foram as mesmasao longo dos últimos 150 anos. O Estadobrasileiro se preocupava, num determinadomomento, com a ocupação do terr i tór iobrasileiro; num segundo momento com amodern ização e , num terce i ro , com ainserção in ternac iona l . As po l í t i caseconômicas estavam preocupadas ora coma integração ao mercado externo, através

de incent ivos às exportações, ora aomercado interno, com a redução dasbarreiras entre os estados da federação. Ospróprios produtos transportados e as formasde investimentos foram bem diferentes paracada momento. Como conseqüência dessasmudanças, os sistemas de transportes e oter r i tó r io bras i le i ro foram sendoreadequados, re func iona l i zados,reaparelhados.

Podemos então def in i r umaper iod ização do s i s tema fer rov iár iobrasileiro em três momentos: a) criação eexpansão; b) estatização e readequação ec) desestatização e recuperação (para otransporte de carga). No Quadro 1 sãoapresentados estes três momentos e suascaracter í s t i cas . Apesar da evo lução edesenvolvimento do sistema ferroviário, oque diferencia cada momento é o uso quese faz de le e a po l í t i ca econômica dosgovernos e das empresas definidas, muitasvezes, por interesses internacionais.

No momento atua l , as fer rov iaspassam a seguir a expansão dos f rontsagrícolas através da construção e expansãode ferrovias como a Ferronorte, FerroviaNorte-Sul e Transnordestina. Verif ica-se,também, que são grandes os investimentosna aquisição de vagões granereiros. A frotade vagões Hopper, que é bastante utilizadapara o transporte de grãos, foi a que maiscresceu entre os anos de 2003 e 2004. Afrota total cresceu 65% e a de propriedadedos clientes, como as Tradings, 227%. Alémdisso, muitos vagões do tipo fechado foramconvertidos para Hopper (Revista Ferroviária,Ano 65, Junho 2004, p. 20).

Page 4: Artigo Vitor

122 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 21, 2007 VENCOVSKY, V. P. & R. & CASTILLO, R.

Desestatização do setor ferroviário

O momento atual da periodização dosistema ferroviário brasileiro, iniciado em 1996,teve como evento principal a concessão aempresas privadas das malhas ferroviárias,antes pertencentes à Rede Ferroviária Federal(RFFSA) e à Ferrovia Paulista (FEPASA).

A desestatização teve comodesdobramentos a “desregulação”, quesignificou a eliminação total ou parcial de regrasrestritivas ao mercado e às atividadeseconômicas, e a “privatização”, termo genéricoempregado para designar a transferência deempresas de propriedade do Estado e atividades

Page 5: Artigo Vitor

Sistema ferroviário pós-privatização e fluidez corporativa:o movimento de produtos agrícolas no território brasileiro, pp. 119 - 134 123

por ele exercidas para o setor privado (AMARALFILHO, 1996, p.41). É o início, então, de umanova regulação.

O processo de privatização no Brasil nãofoi realizado de forma espontânea eindependente pelos governos. A obediência aoConsenso de Washington resume um conjuntode práticas impostas pelas instituiçõesfinanceiras internacionais aos países periféricos.Além disso, os programas de desestatizaçãoabriram novos mercados a empresastransnacionais de serviços e aos grandesbancos.

Para o estudo do espaço geográfico, ofato talvez mais significativo do processo deprivatização é que o ordenamento e uso doterritório, com relação às infra-estruturas detransporte, passam a ser definidos, em grandeparte, pelo setor privado, com todas as suasimplicações, como o uso seletivo dos sistemasde engenharia, a busca pela competitividade aqualquer custo e a produção e o agravamentodas desigualdades sociais e espaciais.

O objetivo da privatização foi dar início aum processo de ruptura de estruturasanteriores para que o sistema ferroviário fosse“revalorizado” e passasse a atender às novasrealidades do momento atual e das empresas.

A privatização buscou, também, a redução dosobstáculos, a modificação da “inércia dinâmicadas formas herdadas” (SANTOS, 2002a, p. 43),tanto da própria infra-estrutura física como dasnormas de uso e dos agentes controladores.

A situação do sistema ferroviário pré-privatização era de abandono, não recebendoinvestimentos e atenção do controlador, oEstado. Os “objetos técnicos”, isto é, estaçõese malha ferroviária, bem como as relações entreos agentes participantes do sistema, nãoestavam mais sendo acionados e/oureadequados ao novo paradigma decompetitividade imposto por uma economia cadavez mais internacionalizada.

O processo de privatização do sistemaferroviário foi influenciado, também, pelosinteresses de diversos agentes econômicos,nacionais e transnacionais, em busca de novoscampos de investimento e de maior fluidezterritorial. No Quadro 2 são apresentados osdiferentes agentes, como o Estado, agênciasreguladoras, concessionárias, clientes einvestidores, seus objetivos e interesses. Oresultado da somatória das ações destesagentes passou a influenciar diretamente naeficiência e na forma de uso do sistemaferroviário e, conseqüentemente, naorganização do território brasileiro.

Page 6: Artigo Vitor

124 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 21, 2007 VENCOVSKY, V. P. & R. & CASTILLO, R.

O processo de pr ivat i zação dosistema ferroviário no Brasil teve início coma inclusão da RFFSA, em 1992, no PND -Programa Nacional de Desestatização. OBNDES, gestor do programa, contratou,“mediante l i c i tação, uma assoc iação deconsultores para estudos e formulação domodelo de privatização a adotar para o setorferroviário. O edital de licitação teria comoobjetivo básico aumentar a eficiência doSistema de Transporte Ferroviário, estimulara melhor ia dos serv iços prestados, aconservação, racionalização e expansão daslinhas ferroviárias, equipamentos e demaisinstalações, além de viabilizar o equilíbrioeconômico-financeiro do sistema resultante”(MARQUES, 1996, p.48). Esses objetivos sãocomplementares aos do PND: desonerar oEstado, fomentar invest imentos e aeficiência. O modelo adotado de concessãocompreendia a reestruturação da RFFSA, suasubdiv isão em malhas reg iona is ,ar rendamento dos bens das malhasregionais e licitação da concessão.

Os leilões de privatização da RFFSAforam realizados entre os anos de 1996 e1998, resultando em seis novas empresas.A FEPASA, controlada pelo governo estadualde São Paulo, a Estrada de Ferro ParanáOeste - Ferroeste, pelo governo do Paraná,e a EFC e EFVM, pela CVRD, também forampr ivat izadas. Apesar do sucesso daspr ivat izações anunciado pelo governo einvestidores, as ferrovias foram vendidaspara os antigos clientes preferenciais dasoperadoras estatais, não resultando numaalternativa de modal de movimentação decargas no país (BIELCHOWSKY, 2002, p.116)e muito menos de passageiros.

Uma das cond ições fundamenta ispara a participação dos grupos nos leilõesde pr ivat ização das ferrov ias era quenenhuma empresa do consórcio poderia termais de 20% de part ic ipação no grupo.Entretanto, essa condição não impediu quealgumas empresas passassem a controlargrande parte das concessões e da carga

ferroviária disponível no Brasil. Os maioresinteressados na pr ivat i zação acabaramincluindo o sistema ferroviário como partedo ativo de suas empresas, contribuindopara seus circuitos espaciais produtivos 1 .

Mais do que atender aos objetivos doPND, a privatização colocou à disposição dosagentes hegemônicos o contro le dossistemas de transporte, aumentando suasposs ib i l idades de def in i r a d inâmica domercado e a valorização/desvalorização deregiões, atividades econômicas e empresas.O processo de privatização das ferrovias noBrasil transferiu à iniciativa privada, emespecial às grandes empresas produtoras decommodities agrícolas e minerais, o controlede grande parte do sistema de transportes.A f lu idez ter r i to r ia l , a serv iço dacompetit ividade (SANTOS, 1998, p. 16),torna-se um setor de investimentos paragrandes empresas, deixando em segundoplano as asp i rações e necess idades dasociedade.

As concessionárias – monopólio privado?

O pequeno número de controladorese utilizadores do setor ferroviário no Brasilé formado, em grande parte, por grandesempresas nacionais e internacionais, dosramos de siderurgia, mineração, engenhariae agropecuár ia . A CSN e CVRD são aspr inc ipa is empresas contro ladoras ouacionistas do sistema ferroviário brasileiro,uti l izando 15.061 km de l inhas (53% dototal), produzindo 155 bilhões de TKU a.a.(85% do total) e participando com R$3,7bilhões (68% do total) dos investimentos dosetor no per íodo pós-pr ivat i zação(VENCOVSKY, 2006, p.69). Grande parte dosclientes (55%), das locomotivas (64%), dosvagões (66%) e do t ranspor te decontê ineres (92%) também estáconcentrada nessas duas empresas (idem).Indiretamente, a CVRD também participa daBrasil Ferrovias, já que é sócia da Ferroban.

Page 7: Artigo Vitor

Sistema ferroviário pós-privatização e fluidez corporativa:o movimento de produtos agrícolas no território brasileiro, pp. 119 - 134 125

Controlando as principais linhas ferroviárias,a CVRD e a CSN passam a participar maisdiretamente da organização do território, ouseja, a participar do processo de valorizaçãoe desvalorização de regiões e atividadeseconômicas.

No caso da empresa CVRD, as ferroviassão utilizadas como um sistema integrado aseus circuitos espaciais produtivos, que têmo minério de ferro como principal produto. Coma privatização, o sistema passou a fazer partedo ativo da empresa e, portanto, deve seguirdeterminados objetivos e ordens que nãonecessariamente têm a ver com ferrovias,movimentação de cargas e logística.

Uma das características importantes dosistema ferroviário é sua contribuição para aintegração do território brasileiro (Mapa 1).Dentre as 11 concessionárias, seis são deintegração internacional (VENCOVSKY, 2006,p.72). Estas, geralmente, l igam regiõesprodutoras aos mercados externos, sendopouco utilizadas na integração regional doterritório brasileiro. Essas linhas tambémpodem ser consideradas do tipo unidirecional,já que o volume transportado no sentido dosportos é muito superior ao sentido inverso.

Segundo a concessionária MRS, 80%dos negócios estão relacionados à importaçãoe exportação. Quando computadas as cargasde todas as concessionárias, o valor podechegar a 85% 2 . Essa característica demonstraque o sistema ferroviário é um dos elementosque contribui para a fluidez do territórionacional (ARROYO, 2001, p.143).

Outra caracter íst ica marcante é amaneira como o sistema ferroviário é utilizadopelos agentes controladores. Do total de cargatransportada pela Ferronorte, 81%corresponde ao transporte de produtos docomplexo soja (52% para a soja em grãos e29% para o farelo de soja). As concessionáriasEFC, EFVM, e MRS têm o minério de ferro comoproduto principal, com 93%, 85% e 85%,respectivamente, sobre o total transportado.O uso monofuncional das ferrovias passa a

interferir na lógica das regiões de abrangênciadas linhas, principalmente nos pontos deorigem e destino. Por privi legiar poucosprodutos, as ferrovias não contribuem para avalorização de outras atividades que poderiamser beneficiadas. A monofuncionalidade passa,também, a condicionar a fluidez territorial.

No entanto, a atuação das grandesempresas, como a CVRD e CSN, não ficarestrita ao setor ferroviário, mas inclui ocontrole da produção, do comércio, datecnologia, das finanças, da política e dainformação. “Suas decisões de investir edesinvestir afetam, em última análise, aprosperidade ou decadência de cidades eregiões [...]” (RATTNER, 1997, p.138). E,também, essa “assimetria de controle emovimentação de recursos humanos, materiaise financeiros expõe cruamente a ilusão deviver-se em uma sociedade democrática”(idem, 1997, p.138).

Para compreender a organizaçãodessas empresas concessionárias,principalmente quanto à distribuição de suasinfra-estruturas e das regiões valorizadas, sãoapresentados, a seguir, os investimentosrealizados após a privatização do sistemaferroviário.

Os investimentos no setor ferroviário – afluidez corporativa

Após quase uma década do início doprocesso de privatização, as empresasconcessionárias investiram, basicamente, namelhoria da eficiência do sistema ferroviário eno aumento da fluidez efetiva1 do territóriobrasileiro. Verificou-se também uma reduçãosubstancial do quadro de pessoal e umadesativação regular de ramais de baixaprodutividade.

Os investimentos, que também sãouma norma, definem e condicionam avalorização e desvalorização dos espaços.Estes invest imentos se e fet ivam noter r i tór io , porém seus objet ivos , suasintenções, podem estar localizados em outro

Page 8: Artigo Vitor

126 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 21, 2007 VENCOVSKY, V. P. & R. & CASTILLO, R.

lugar, bem distante do território brasileiro.Seu discurso apóia-se na modernização, masseus e fe i tos são, gera lmente, a“corporat ização do terr i tór io” (SANTOS,2002a, p. 252).

Os investimentos foram direcionadospara adequar um sistema do passado, quetinha outros usos, num projeto adaptado ànova rea l idade. Nesses 150 anos deferrovias, os projetos foram sendo alteradospara atender sucess ivas necess idadeseconômicas, resu l tando em espaçosd iversos que foram se sobrepondo, semisturando, convivendo entrelaçados. Osinvest imentos são os acrésc imosnecessários para a modernização (SANTOS,2002b, p. 87).

Os acidentes freqüentes no sistemaferrov iár io atua l 2 revelam um conjuntocontraditório de ações e objetos. O objetotécn ico herdado pode não ser o maisadequado aos propósitos atuais, aquelesditados pelas empresas concessionárias. Osinvestimentos servem justamente para isso,adequar os objetos existentes às novasut i l i zações, às novas normas impostas(ef i c iênc ia , ve loc idade, capac idade decarga).

Quanto aos projetos e investimentosa serem rea l i zados, es tes têm comoobjetivos reduzir as incertezas, os riscosfinanceiros e de acidentes, maximizar oslucros dos agentes envolv idos no setorferroviário. Tudo isso torna-se possível coma readequação dos traçados e a redução das“interferências” (por exemplo, passagens denível) para atender às novas necessidadesde mobil idade de alguns agentes. Essesnovos projetos visam, portanto, reduzir oueliminar estruturas e dinâmicas do passado

que “não estão adaptadas às novasexigências” e que se mantêm e atuam porum certo tempo como “remanescências”(ISNARD, 1982, p.118).

Os principais projetos estabelecidosno P lano P lur ianua l (PPA) 2004-2007totalizam mais de 2,88 bilhões de reais paraas ferrovias, sendo as regiões Nordeste eCentro-Oeste as mais benefic iadas, com58% e 21% do tota l , respect ivamente.Grande parte dos projetos está voltada paramin imizar a lguns garga los de l inhasexistentes ou para obras de desvios dereg iões metropo l i tanas, como o ane lferroviário de São Paulo e o contorno deCur i t iba. A contr ibu ição dessas obrasrepresenta um acréscimo de apenas 5% naextensão atual do sistema ferroviário, queestá em torno de 29 mil quilômetros.

Os investimentos definidos nos PPA´sestão voltados para a construção de umain f ra-est rutura com objet ivos pré-estabelecidos, tanto em relação às suasfunções como às suas localizações. Do totaldos investimentos do setor ferroviário noPPA 2004-2007, 60% estão voltados paraatender às necess idades de exportação(VENCOVSKY, 2006, p.81), demonstrando,mais uma vez, que o objetivo principal dos is tema é promover, ou cont inuarpromovendo, a integração internacional dea lgumas reg iões exportadoras emdetrimento de outras políticas como a deintegração nacional.

Da manei ra como estão sendorealizados, esses novos projetos de infra-est rutura v iab i l i zam uma rac iona l idadeprivada (do território) obtida com recursospúblicos (SANTOS & SILVEIRA, 2001, p.306).

Page 9: Artigo Vitor

Sistema ferroviário pós-privatização e fluidez corporativa:o movimento de produtos agrícolas no território brasileiro, pp. 119 - 134 127

MAPA 1 – EMPRESAS FERROVIÁRIAS NO BRASIL – 2005

Page 10: Artigo Vitor

128 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 21, 2007 VENCOVSKY, V. P. & R. & CASTILLO, R.

Novos fronts agrícolas – globalização emodernização

O desenvolvimento dos novos frontsagrícolas, em porções dos estados de Minas Gerais,Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás, Bahia,Maranhão, Piauí e Tocantins, foi realizada, em parte,através do Programa de Cooperação Nipo-Brasileirapara o desenvolvimento do Cerrado – PRODECER,motivado, principalmente, pelo governo japonês que,nas décadas de 60 e 70, estava preocupado com asua alta dependência de importação de alimentos.

Essas fronteiras agrícolas permaneceram pormuito tempo como um “estoque de terras” (MORAES,2002, p.-88-89), à espera de uma valorização. Coma introdução de novas técnicas agrícolas de cultivoda soja, esses espaços, até então não inseridosplenamente na economia nacional e mundial, foramvalorizados, marginalizando seu antigo uso voltadoà agricultura de subsistência em fundos de vales.Esse processo de valorização “tardia” da terra éseletivo, pois vem atender apenas às reivindicaçõesde uma determinada parcela de produtores inseridosnos circuitos espaciais da produção da soja, doalgodão, da pecuária, entre outros.

Os novos fronts possuem particularidadesque os diferenciam das demais regiões agrícolas dopaís. Apesar das políticas agrícolas serem asmesmas, na escala nacional, as regiões produtorasde soja dos fronts têm um comportamento específicofrente às demais regiões do Brasil, como as regiõesprodutoras do Sul. Essa diferenciação se dá,principalmente, quanto à “capacidade de oferecer

rentabilidade aos investimentos. Essa rentabilidadeé maior ou menor, em virtude das condições locaisde ordem técnica (equipamentos, infra-estrutura,acessibilidade) e organizacional (leis locais, impostos,relações trabalhistas, tradição laboral)” (SANTOS,2002a, p. -247-248).

Entre as características mais importantesdessa região, destacam-se: o elevado grau demodernização (insumos, máquinas, crédito) daspropriedades, grande concentração fundiária,elevada produtividade e custo de produção,presença marcante de grandes firmas na articulaçãoe em várias etapas dos circuitos espaciaisprodutivos, grande distância em relação aos centrosconsumidores e aos portos exportadores, fazendoemergir o problema da circulação e da logística(Quadro 3).

São regiões que, segundo CASTILLO (2004,p.- 80-81), ao buscar por uma agricultura competitiva,tem gerado: a) a sofisticação, às custas de grandesinvestimentos do Estado, dos circuitos espaciaisprodutivos e dos círculos de cooperação entre asgrandes empresas das cadeias produtivas e dedistribuição; b) enclaves de modernizaçãocaracterizados como verdadeiros espaços alienados;c) dependência crescente de informação (técnica efinanceira) cada vez mais sofisticada; d) surgimentode empresas de consultoria especializada emprodução, logística e transporte agrícola; e) grandedemanda por bens científicos; f) obediência anormas internacionais de qualidade; g) novo perfilde trabalho no campo; h) deslocamento oumarginalização dos agentes recalcitrantes.

Page 11: Artigo Vitor

Sistema ferroviário pós-privatização e fluidez corporativa:o movimento de produtos agrícolas no território brasileiro, pp. 119 - 134 129

Nos novos fronts os produtos agrícolasdo complexo soja (grão, farelo e óleo) são poucoconsumidos localmente, seus preços sãodefinidos internacionalmente, a tecnologia e ofinanciamento empregados para promover aatividade da soja são exógenos à região e aprópria cultura da soja só passou a ser viáveldepois do desenvolvimento de novasvariedades. É possível afirmar, então, que essaatividade é “enxertada na região” e o comandoprodutivo é externo – gerando vulnerabilidadeeconômica e geográfica.

Grande parte da articulação e dosrelacionamentos existentes nas fronteirasconsolidadas e em suas áreas de expansão éconduzida por agentes hegemônicos que sãomuito mais poderosos (do que os própriosprodutores) e preparados para mudar o estadodas coisas, ou seja, de promover a valorizaçãoda região. Nessa situação, têm mais chancesde sobrevivência aqueles que se adaptam àsregras impostas pelos agentes externos. Esseprocesso não deixa de ser semelhante ao dacolonização 1 , que envolve conquista,subordinação das populações locais eapropriação dos lugares (PORTO GONÇALVES,2006), sem muitas resistências.

Outra atividade importante nas novasfronteiras agrícolas é o comércio de terras, quepassou a ser até mais lucrativo que a própriaprodução agrícola. Segundo FREDERICO (2004,p.43), dentre as terras no Brasil que tiveram asmaiores valorizações entre 2001 e 2003, grandeparte está relacionada ao cultivo da soja emporções do Cerrado.

Para CASTILLO (2004, p. -93-94), aspolíticas públicas e privadas nos novos fronts,exógenas e geralmente funcionando comovetores da modernização, podem provocar umadesordem local.

O discurso predominante do Estado, domercado e da mídia é que a atividade agrícolada soja, por si só, seja indutora dodesenvolvimento da região. O andar dosacontecimentos mostra que a região das novasfronteiras agrícolas está importando técnica,

conhecimento e capital, destruindo suas raízese o meio ambiente.

Os corredores de escoamento de produtosagrícolas – redes quase corporativas

Para o escoamento da produção de sojados novos fronts agrícolas, governos eempresas estão fortalecendo ainda mais oscorredores de transporte e exportação. Estessão considerados como o espaço dos fluxos quenão abrangem todo o espaço, ou seja, sãosubsistemas formados por pontos, linhas emanchas (SANTOS, 2002a, p. 296) e utilizadospor poucos.

Os corredores fazem parte dosmacrossistemas técnicos de usopredominantemente corporativo, ou seja, sãoas “redes privadas, cuja geografia efuncionalização correspondem ao seu própriointeresse mercantil.” (SANTOS, 2002a, p.276).Os interesses não privados, como o social e oambiental, não são verdadeiramenteconsiderados.

Outras características dessescorredores, principalmente quando se trata dosistema ferroviário, é que as normas quepredominam ao longo de seus eixos são as de“blindagem”, que impedem que outrasatividades econômicas possam utilizar osistema, e de “barreira”, que impede atransposição física da linha. Os corredores, aomesmo tempo em que propiciam integração departes selecionadas do território nacional,também podem causar fragmentação (ARAÚJO,2000; PACHECO, 1998).

Os principais corredores de escoamento(FREDERICO, 2004) podem ser agrupados deacordo com as regiões produtoras e os portosde destino das cargas agrícolas (Mapa 2). Ocorredor Noroeste (1), que tem como área deinfluência as regiões produtoras do Oeste doEstado do Mato Grosso, Sul do estado de Rondôniae Norte de Mato Grosso, tem como portos dedestinos Itacoatiara e Santarém. Os modaisutilizados são o rodoviário e o hidroviário.

Page 12: Artigo Vitor

130 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 21, 2007 VENCOVSKY, V. P. & R. & CASTILLO, R.

MAPA 2– PRINCIPAIS CORREDORES DE ESCOAMENTO DA PRODUÇÃO DE SOJA

Page 13: Artigo Vitor

Sistema ferroviário pós-privatização e fluidez corporativa:o movimento de produtos agrícolas no território brasileiro, pp. 119 - 134 131

As cargas agrícolas no corredor Centro –Norte (2), que tem como área de influência asregiões Sul do Maranhão, Sudoeste do Piauí,porções do Tocantins, Leste do Pará e Centro-Leste do Mato Grosso, são transportadas porrodovias, hidrovias e ferrovias até os principaisportos do Maranhão (Itaqui e São Luís) e Pará(Ponta da Madeira, Vila do Conde e Belém).

O corredor Sudeste (3), que transportacargas agrícolas de Mato Grosso, Mato Grosso doSul, Goiás e Paraná, permite acesso aos portosmais importantes do país (Santos, Vitória eParanaguá). Os modais utilizados são o rodoviário,ferroviário e o hidroviário.

Os produtos agrícolas da região Sul sãoescoados pelo corredor Sul (4) que, através derodovias e ferrovias, têm acesso ao porto de RioGrande. A produção do Oeste do estado da Bahiaé escoada por rodovias para o porto de Ilhéus.

Esta é a organização do território brasileiroque governos e empresas privadas estãodefinindo e construindo com recursos públicospara o benefício de apenas alguns produtos,atividades econômicas e agentes.

Considerações finais

Este artigo procurou apresentar algumasinformações sobre o sistema ferroviário e asatividades agrícolas nos novos fronts quepermitissem entender como os projetos, as políticaspúblicas e privadas, os investimentos e a atuaçãodos agentes passam a organizar o território brasileiroe determinar o futuro do Brasil.

Grande parte da avaliação do sistemaferroviário, realizado pelo governo, entidades dosetor e Universidades, tem como abordagemprincipal as questões econômicas e de eficiência dasconcessionárias. A preocupação maior é com o usodas ferrovias e, em geral, pouco destaque é dadopara o fato destas condicionarem a organizaçãodo território brasileiro, promovendo algumascidades e regiões e, também, empresas emdetrimento de outras.

As ferrovias transportam principalmente

commodities agrícolas e minerais que possuembaixo valor agregado, altos volumes e necessitamde grandes investimentos em infra-estrutura. Osrecursos investidos pelo governo e pelasconcessionárias promovem uma circulaçãodesnecessária do território (SANTOS & SILVEIRA,2001, p.-297-298), seu enrijecimento, adegradação ambiental, a desestruturação deculturas locais e, ainda, comprometem seus usosfuturos. Os investimentos estão voltados para amodernização do território de forma seletiva eexcludente, sem considerar a sociedade e oterritório como uma totalidade.

O sistema de transporte brasileiro estásendo criado nos moldes tradicionais de logística,ou seja, voltado para a redução do frete entreorigem e destino. Outras questões, comodesenvolvimento regional e social e a inserçãode regiões menos favorecidas no mercadonacional, são pouco consideradas. A organizaçãodo território brasileiro, fundada em redesextravertidas, está muito mais “vulnerável àsoscilações do mercado internacional [...]conduzindo a um uso cada vez mais corporativodo território” (CASTILLO, 2004, p. 81).

As ferrovias estão sendo utilizadas paraintegrar algumas regiões competitivas aosmercados internacionais. O uso dos corredoresde exportação, que funcionam como pontes outúneis no território brasileiro, já que interligam aprodução agrícola e mineral aos portos sempromover significativamente as áreas ao longo deseu percurso, podem contribuir para a“exportação” e a “instabilidade” (SANTOS &SILVEIRA, 2001, p. -298-291) do territóriobrasileiro.

Estados como Tocantins, Goiás e MatoGrosso são altamente dependentes da exportaçãodo produto soja. Essa exportação concentrada nasoja, sugerida muitas vezes pelos governos comouma política salvadora e indispensável, chega a talponto de se perguntar se o “território também nãoestá sendo exportado” (SANTOS, 2002b, p. 87).

Verifica-se uma relação direta entre a“especialização produtiva”, principalmente no casodos novos fronts, e a “especialização do transporte

Page 14: Artigo Vitor

132 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 21, 2007 VENCOVSKY, V. P. & R. & CASTILLO, R.

ferroviário e dos investimentos”, concentrados empoucos produtos e empresas. A valorização detransportes monofuncionais acaba privilegiandoalguns produtos e regiões e excluindo os demais.Como destacou SANTOS (2002b, p. 88), “tal usopreferencial do território por empresas globaisacaba desvalorizando não apenas as áreas queficam de fora do processo, mas também as demaisempresas, excluídas das mesmas preferências”.

Os resultados da privatização mostramque o discurso do Estado mínimo, utilizado nosmovimentos de desestatização no Brasil, acabouservindo para converter monopólios estatais emmonopólios privados. Além disso, as ferrovias, emgrande parte, estão sendo usadas paratransportar cargas dos sócios e, principalmente,de suas controladas. São produtos cativos,preferenciais, que podem comprometer o uso daferrovia para outros produtos. Este fato leva aquestionar se as ferrovias brasileiras podem serconsideradas, efetivamente, como empresas delogística.

A concentração de recursos em atividadeseconômicas dependentes do mercado externotem definido grande parte da organização doterritório brasileiro e leva a pensar se o “sentidoda colonização” (RICUPERO, 2000, p. 13) aindase mantém no Brasil.

Outra questão importante a destacar é aformação da história econômica do Brasil, que vaise moldando de acordo com as necessidades e osinteresses do mercado externo. O território, nessecaso, também se organiza para acompanhar essasnecessidades. É possível afirmar, então, que oterritório brasileiro está sendo organizado em grandeparte para atender aos interesses de empresas eagentes participantes do circuito espacial produtivoda soja. A reativação do sistema ferroviário e,principalmente, os traçados das linhas mostram isso.

O planejamento da infra-estrutura logísticabrasileira, apresentado nos PPAs e orientado deacordo com o Plano dos Eixos Nacionais deIntegração e Desenvolvimento, demonstra a realcontribuição do sistema ferroviário para aintegração do território brasileiro. As propostasnão contemplam a integração das regiões do

território brasileiro (integração inter-regional) esim a das regiões produtoras ou extrativas aosmercados no exterior (integração internacional).O sistema de movimento de cargas no Brasil estávoltado para o exterior através dos corredoresde exportação, funcionando como verdadeirasredes extravertidas (SANTOS & SILVEIRA, 2001),constituindo o espaço de alguns, dos agenteshegemônicos. Essa característica é típica da“transnacionalização do território” e da “fluidezposta a serviço da competitividade” (SANTOS,1998, p. 16).

Uma das perguntas que precisam serrespondidas é “como podemos atender aosrequisitos legítimos de recomposição da infra-estrutura e da crise social se nos ativermosapenas às exigências dos interesses privados einternacionais” (CANO, 1998, p.352). Essa“predominância da lógica das empresastransnacionais na ordenação das atividadeseconômicas conduzirá quase necessariamente atensões inter-regionais, à exacerbação derivalidades corporativas e à formação de bolsõesde miséria, tudo apontando para a inviabilizaçãodo país como projeto nacional” (FURTADO, 2000,p. 12).

As considerações apresentadas levam aoquestionamento das políticas públicas atuaisrelativas aos sistemas de transporte e talvezapontem para a necessidade de um projetonacional mais justo socialmente.

Para finalizar, é importante destacar quea nova realidade da globalização exige dogeógrafo a busca de explicações em outroslugares, não somente no terreno onde osacontecimentos se realizam (ISNARD, 1982, p. -54-55). É necessário buscar informações emoutros países, como os mercados compradoresde minérios e soja, que também estãointeressados na privatização e na organização dosistema ferroviário. A busca pelo verdadeirosentido do processo de privatização das ferroviase da organização das empresas concessionáriasse torna mais complexa, já que os interesses eas relações entre os agentes nem sempre sãopercebidos localmente ou, ainda, são de difícilmensuração.

Page 15: Artigo Vitor

Sistema ferroviário pós-privatização e fluidez corporativa:o movimento de produtos agrícolas no território brasileiro, pp. 119 - 134 133

Notas1 Sobre circuito espacial produtivo, consultar SANTOS

& SILVEIRA (2001, p. 143), FREDERICO &CASTILLO (2004) e TOLEDO (2005).

2 Ferrovias: integração e crescimento econômico.Jornal O Globo, Janeiro de 2005.

3 Sobre fluidez territorial, consultar SANTOS &SILVEIRA (2001, p. 262) e ARROYO (2001, p.105).

4 “Trem de soja descarrila na malha da FCA” (25/10/2004); “Dois acidentes da ALL em 48 hs” (15/9/

2004); “Dois trens da Ferronorte chocam-se noMS” (18/6/2004). Fonte: http://www.revistaferroviaria.com.br, acessado em 05/11/2004.

5 Com relação ao processo de colonização verificadono passado, “As estruturas produtivaspreexistentes devem ser assimiladas à novaordem, seja pela sua incorporação, seja pela suadestruição” (MORAES, 2002, p. 780).

BibliografiaAMARAL FILHO, M. J. T. Privatização no estadocontemporâneo. São Paulo: Ícone, 1996.

ANTT. Relatório Anual de Acompanhamento dasConcessões Ferroviárias - 2003. http://www.ant t .gov .br / re la to r ios/ fe r rov ia r io /concessionarias2003/index.asp, acessado em15/10/2004.

ANUT - Associação Nacional dos Usuários doTransporte de Cargas. Transporte - Desafio aoCrescimento do Agronegócio Brasileiro. Abril/2004. http://www.anut.org.br/pdf/Trab_Min_Agricult_01_080404.doc, acessadoem 05/11/2004.

ARAÚJO, T. B. “Dinâmica Regional Brasileira nosanos Noventa: Rumo à DesintegraçãoCompetitiva?”. In: CASTRO, I. E; MIRANDA, M.;EGLER, C. A. G., (org.). Redescobrindo o Brasil:500 anos depois. Rio de Janeiro: Bertrand, 2000.

ARROYO, M. M. Território Nacional e MercadoExterno. Uma leitura do Brasil na virada do séculoXX. Tese (Doutor em Geografia) – Faculdade deFilosofia, Letras e Ciências Humanas, USP. SãoPaulo: 2001.

BARAT, J. A evolução dos transportes no Brasil.Rio de Janeiro: IBGE: IPEA, 1978.

BIELSCHOWSKY, R. Investimento e reformas noBrasil. Indústria e infra-estrutura nos anos1990. Brasília: IPEA, 2002.

CANO, W. Desequilíbrios regionais econcentração industrial no Brasil, 1930 - 1995.Campinas: UNICAMP-IE, 1998.

CASTILLO, R. A. “Unicidade Técnica Planetária,Informação e Espaço Geográfico”. In: CARLOS,A. F. A. Ensaios de Geografia Contemporânea MiltonSantos: Obra revisitada. São Paulo: Hucitec:Imprensa Oficial do Estado, 2001.

_____________. “Transporte e logística degranéis sólidos agrícolas: componentesestruturais do novo sistema de movimientos doterritório brasileiro”. InvestigacionesGeográficas, Boletin del Instituto de Geografia,UNAM, 55, 2004, p.-79-96.

CHANDLER, A. Ensaios para uma teoria históricada grande empresa. Rio de Janeiro: FundaçãoGetúlio Vargas, 1998.

ELLUL, J. A técnica e o desfio do século. Rio deJaneiro: Paz e Terra, 1968.

FREDERICO, S. Sistemas de movimentos noterritório brasileiro: os novos circuitos espaciaisprodutivos da soja. Tese (Mestrado emGeografia) – Instituto de Geociências, Unicamp.Campinas: 2004.

_____________; CASTILLO, R. A. “Circuitoespacial produtivo do café e competitividadeterritorial no Brasil”. Ciência Geográfica, v.X;n.3,2004, p.-236-241.

Page 16: Artigo Vitor

134 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 21, 2007 VENCOVSKY, V. P. & R. & CASTILLO, R.

FURTADO, C. O mito do desenvolvimentoeconômico. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974.

_____________. “O fator político na formaçãonacional”. Estudos Avançados, v.14; n.40, 2000,p.-7-12.

GEIPOT. EMPRESA BRASILEIRA DEPLANEJAMENTO DE TRANSPORTES. Corredoresestratégicos de desenvolvimento. Alternativasde escoamento de soja para exportação.Brasília: GEIPOT, 2001.

ISNARD, H. O espaço geográfico. Coimbra:Portugal: Almerinda, 1982.

MARQUES, S. A. A privatização do SistemaFerroviário Brasileiro. Brasília: IPEA, 1996.

MORAES, A. C. R. Território e história no Brasil.São Paulo: Hucitec, 2002.

PACHECO, C. A. Fragmentação da nação.Campinas, UNICAMP/IE: 1998.

PORTO GONÇALVES, Carlos Walter. A naturezada globalização e a globalização da natureza.Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

RATTNER, H. “Globalização: em direção a ummundo só?”. In: BECKER, B. K.; MIRANDA, M. Ageografia política do desenvolvimento sustentável.Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997.

RICUPERO, R.. “Integração externa, sinônimo dedesintegração interna?”. Estudos Avançados,v.14;n.40, 2000, p.-13-22.

SANTOS, M. “Society and space. Social formationas theory and method”. Antipode, v.9;n.1, 1977,p.-3-13.

_____________. O retorno do território. In:SANTOS, M. SOUZA, M.A., SILVEIRA, M.L.Território: globalização e fragmentação. São Paulo:Hucitec, 1998.

_____________ A natureza do espaço. SãoPaulo: Edusp, 2002a.

_____________. O País distorcido: o Brasil, aglobalização e a cidadania. São Paulo: Publifolha,2002b.

_____________; SILVEIRA, M. L. O Brasil:território e sociedade no início do século XXI.Rio de Janeiro: Record, 2001.

TELLES, P. C. da S. História da Engenharia noBrasil – Século XX. Rio de Janeiro: Clavero, 1984.

TOLEDO, M. R. Circuitos espaciais da soja, dalaranja e do cacau no Brasil: Uma nota sobre opapel da Cargil no uso corporativo do territóriobrasileiro. Tese (Mestrado em Geografia) –Instituto de Geociências, Unicamp. Campinas:2005.

VARGAS, M. História da Técnica e da Tecnologiano Brasil. São Paulo: Editora Unesp, 1994.

VENCOVSKY, V. P. Sistema Ferroviário e o uso doterritório brasileiro. Uma análise do movimentode produtos agrícolas. Tese (Mestrado emGeografia) – Instituto de Geociências, Unicamp.Campinas: 2006.

Trabalho enviado em maio de 2006

Trabalho aceito em setembro de 2006

Page 17: Artigo Vitor