pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo puc … · na teologia e desemboca na filosofia....
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PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO PUC-SP
PAULO EDUARDO RODRIGUES ALVES EVANGELISTA
HEIDEGGER E A FENOMENOLOGIA COMO EXPLICITAO DA VIDA FCTICA
MESTRADO EM FILOSOFIA
Dissertao apresentada Banca Examinadora da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, como exigncia parcial para obteno do ttulo de MESTRE em FILOSOFIA, sob a orientao da Profa. Doutora Dulce Mara Critelli.
SO PAULO 2008
Agradecimentos
Marcia, por ter sido companheira, como sempre, durante a realizao
desta pesquisa.
aos meus pais, Ad e Daza, que sempre me deram condies de ir atrs de
meus sonhos.
Bil, por apoio e incentivo constantes.
ao Daniel, pelo cuidado de reviso e sugestes s tradues.
Dulce, que orientou pacientemente
a realizao deste trabalho.
Aos que me guiaram nos primeiros passos pela fenomenologia:
Nichan, Ari e Juliano
Resumo
A publicao das Obras Completas de Martin Heidegger tem oferecido aos estudiosos novos elementos para que se considere sua trajetria intelectual. Esta comea na teologia e desemboca na filosofia. No comeo da dcada de 1920, ele compartilha com Husserl que a filosofia, que se encontra enredada em confuso com as cincias objetivas, s pode ser fenomenologia. Diverge de seu mestre, entretanto, em que a fenomenologia no se limita descrio da conscincia. Ela explicitao da experincia de vida fctica (faktische Lebenserfahrung).
Nos estudos de cunho teolgico, Heidegger descobrira a questionabilidade da vida concreta de cada qual. O conhecimento terico, que anima a filosofia de sua contemporaneidade e cuja origem ele encontra na filosofia grega, mostra-se incapaz de tematiz-la. A experincia de vida fctica no objetiva, de modo que necessita de um novo mtodo para ser tematizada. A fenomenologia esse mtodo.
No presente estudo, destaca-se o curso ministrado no semestre de inverno de 1920-21, intitulado Introduo Fenomenologia da Religio, no qual Heidegger demonstra a incapacidade da filosofia contempornea de acessar a experincia de vida fctica do cristo primitivo contida nas Epstolas Paulinas. Com a fenomenologia, a experincia religiosa proto-crist pode mostrar-se. Trata-se de um modo de viver pelo qual se luta contra a tendncia a encontrar ilusrio asseguramento nas experincias quotidianas. O cristo aquele para quem o fim dos tempos j se faz presente desde a converso; esta sendo sempre atualizada. Heidegger encontra nisso uma temporalidade diferente e inacessvel teoria, que s conhece o tempo cronolgico. a temporalidade kairolgica, prpria da experincia de vida fctica. A metafsica revela-se, assim, um modo de buscar asseguramento.
Neste estudo, contextualiza-se o curso no momento histrico de vida de Heidegger, pois filosofia e vida imbricam-se. Em seguida, apresenta-se o exerccio que ele realiza para demonstrar a originalidade da experincia de vida fctica e a neces-sidade de a filosofia ser capaz de retornar a essa sua origem. Para isso, mostra-se 1) uma breve descrio da experincia de vida fctica, 2) a indicao formal como conceito fenomenolgico capaz de tematiz-la e 3) a filosofia e as cincias como possibilidades dela. Por fim, realiza-se com Heidegger a interpretao das Epstolas Paulinas, a fim de compreender a vida fctica do apstolo tal como se apresenta a partir dele, e no de teorias previamente concebidas. Com isso, a vida humana que se desvela. Essa a tarefa da fenomenologia. Palavras-chave: fenomenologia; experincia de vida fctica; Heidegger; So Paulo
Abstract The publication of Martin Heideggers Complete Works has been offering new elements for students to consider his intelectual trajectory. In the early 1920s, he shares Husserls perception that philosophy is [CONFUSO MIXED UP] and can only be phenomenology. He disagrees that phenomenology must be limited to the description of the consciousness. It is the explicitation of factical life experience (faktische Lebenserfahrung). In his theological studies, Heidegger discovered the questionability of each ones concrete life. Theoretical knowledge, which drives contemporary philosophy and, according to him, has its beginning in greek philosophy, is unable to describe it. Factical life experience is not objective, thus a new method is necessary to describe it. Phenomenology is such method. This study focuses on the lecture course called Introduction to the Phenomenology of Religion, taught in the 1920-21 winter semester. The lessons show contemporary philosophys inability to access the factical life experience of primal christianity found on Saint Pauls Epistles. Phenomenology allows such proto-christian religious experience to show itself. It is a way of living ones life in which one figts against the tendency to seek ilusionary security in daily experiences. For the christian, the end of time is already present since conversion. And conversion is always actualized. Heidegger discovers a temporality that is different and inaccessible to theory, which only know chronological time. It is factical life experiences kairological time. Metaphysics is thus a way of seeking security. In this study, the lesson course is contextualized within Heideggers historical moment. Philosophy and life are implicated. Next, Heideggers way of demonstrating factical life experiences originality and philosophys need of returning to such origin are shown. To do so, are presented 1) a brief description of factical life experience, 2) the formal indication as the phenomenological concept able to describe it, and 3) philosophy and the sciences as its possibilities. At last, Heideggers interpretation of Saint Pauls Epistles is followed in order to understand the apostles factical life according to how it shows itself, instead of taking as point of departure previously conceived theories. In doing so, it is human life which unveals itself. That is the task of phenomenology. Key-words: phenomenology; factical life experience; Heidegger; Saint Paul
Heidegger e a fenomenologia como explicitao da vida fctica Sumrio Introduo 01 Captulo I: Heidegger e o curso Introduo Fenomenologia da Religio
I.1. Apresentao do curso Introduo Fenomenologia da Religio 07 I.2. O contexto biogrfico de Heidegger (entre 1916 e 1921) 10 Captulo II: A fenomenologia como mtodo de explicitao da vida fctica
II.1. A experincia de vida fctica (faktische Lebenserfahrung) 22 II.2 A distino entre a filosofia (fenomenologia) e as cincias 26 II.3. As indicaes formais enquanto conceitos fenomenolgicos 33 II.4. O histrico na vida fctica 38
Captulo III: A vida fctica do apstolo Paulo
III.1. A situao vital do apstolo 46 III.2. A expectativa da parusia 55 III.3. O momento decisivo: a vinda do Anticristo 65
Consideraes finais 78 Referncias bibliogrficas 81
1
Introduo
Heidegger conhecido como um dos mais importantes filsofos do sculo XX,
mas poucos sabem que seu pensamento comea na teologia e no na filosofia. So
muito poucas as suas publicaes se comparadas quantidade de material escrito por
ele. Quando jovem, publica alguns artigos num jornal catlico intitulado O
Acadmico (Der Akademiker). Sua primeira publicao mais expressiva a tese A
Doutrina de Duns Scotus das Categorias e do Significado (Die Kategorien- und
Bedeutungslehre des Duns Scotus) em 1916, com a ajuda de Edmund Husserl. A
prxima j o famoso tratado Ser e Tempo (Sein und Zeit), cujas primeiras duas sesses
da primeira parte foram publicadas em 1927. O restante nem chega a ser escrito. Fica a
cargo dos pesquisadores o preenchimento desse intervalo e dos que o seguem. Otto
Pggeler publica em 1963 um livro que se torna referncia para os estudiosos de
Heidegger. Trata-se de O Caminho do Pensamento de Martin Heidegger (Der Denkweg
Martin Heideggers), no qual o autor apresenta muito material indito e oferece uma
viso de conjunto da obra do filsofo. Para a realizao de sua pesquisa, tem acesso a
muitos manuscritos de Heidegger e de seus alunos que, na dcada seguinte, comeam a
ser compilados e editados a fim da publicao das Obras Completas (Gesamtausgabe).
A publicao iniciada em 1976. no livro de Pggeler que aparece, pela primeira vez,
o vnculo entre os estudos teolgicos de Heidegger e sua obra filosfica.
Heidegger nasce numa famlia profundamente religiosa. Seu pai sacristo.
Seus estudos so financiados por bolsas provenientes de instituies religiosas at que
ele pode se sustentar com salrio de professor. Antes, entretanto, para o sacerdcio
que ele se encaminha, mas problemas de sade o impedem de ser ordenado padre.
Heidegger um grande conhecedor da Escolstica. Na dcada de 1910, assume como
tarefa reavivar o ideal de vida cristo com auxlio do pensamento escolstico medieval.
Concomitantemente, aprofunda-se nos estudos de fenomenologia. Pela Escolstica, foi
levado obra de Brentano Sobre o Significado Mltiplo do Ente Segundo Aristteles
(Von den mannigfachen Bedeutung des Seienden nach Aristoteles) de 1862 e,
posteriormente, a de Edmund Husserl, Investigaes Lgicas (Logische
Untersuchungen). Quando Husserl chega para lecionar em Freiburg, onde Heidegger j
professor, comea a colaborao entre os dois. nesse perodo que se inscreve o curso
ministrado no semestre de inverno de 1920-21, intitulado Introduo Fenomenologia
da Religio. tambm em torno dessa poca que Heidegger rompe com o catolicismo.
2
Para ele, vida fctica e pensamento se articulam; a origem da filosofia a vida fctica.
Com a expresso vida fctica, o filsofo se refere existncia histrica concreta de
cada qual, tal como ela acontece quotidiana, imediata e pr-teoricamente.1 Na descrio
de um comentador, a experincia de vida fctica (faktische Lebenserfahrung) a
experincia da vida na sua irredutibilidade radical, e, portanto, na sua resistncia a
deixar-se apreender de maneira definitiva no seio de um sistema especulativo de
conceptualizao,2 como a filosofia metafsica.
Heidegger diagnostica um grave problema na filosofia atual. A filosofia , como
ele aprendera na fenomenologia, cincia das origens. Mas ela est afastada do que a
origina e incapaz de reconhecer esse afastamento. Ela tem sido tomada como um
comportamento terico e cognitivo de conhecimento de objetos, como as demais
cincias. O progresso o que as motivaria. Mas no momento em que a filosofia assume
para si esse procedimento, ela est se entendendo como uma cincia. Heidegger busca
mostrar tal equvoco. Para isso, precisa recolocar a questo da compreenso-de-si
(Selbstverstndigung) da filosofia. Esta, diferentemente das cincias, precisa sempre
novamente perguntar-se por sua origem, por sua essncia, por seu mtodo. Questes de
metodologia so fundamentais para a filosofia, pois o mtodo d acesso ao ente
descoberto a ser investigado, determinando previamente o que encontrado. H uma
concepo prvia do pesquisador que j delimita as possibilidades de surgimento do que
vem ao encontro. Na tradio metafsica, o descoberto sempre objeto. objetividade
corresponde o sujeito, que o modo como a existncia humana tradicionalmente
interpretada. O prprio sujeito pode se tornar objeto para o conhecimento terico. Mas,
para isso, oculta-se seu carter histrico.
A histria torna-se assim um srio problema filosfico, ocupando o centro da
discusso a partir do sculo XIX, com pensadores como Schleiermacher, Simmel,
Windelband, Rickert, Spengler. Mas, ao aprofundar-se nos estudos da Filosofia da
Histria, aparece para Heidegger que a histria ela mesma recolhida como um
objeto. No curso Introduo Fenomenologia da Religio, Heidegger obrigado a
criticar essa atitude. O necessrio, defende ele, adquirir uma relao autntica e
original com a histria, que deve ser explicada a partir de nossa prpria situao e 1 Embora experincia de vida fctica seja a expresso escolhida em 1920-21 para designar o modo
prprio de ser do humano, Heidegger usa com alguma freqncia o termo Dasein, que poucos anos
depois ser o termo reservado exclusivamente para esse fim. 2 BARASH, J. Heidegger e o Seu Sculo, p.102.
3
facticidade histricas.3 A histria no um objeto isolado, mas, sim, o modo de ser
da existncia de cada um, que a apropriao do passado individual e coletivo a partir
da abertura para o porvir. O termo fctico, que Heidegger usa para adjetivar vida,
refere-se ao modo de ser sempre em situao da vida humana. Cada experincia vital
particular s pode ser compreendida a partir do contexto de vida de quem experimenta.
As leituras religiosas de Heidegger, em combinao com a filosofia da vida de
Dilthey, que ele estuda com afinco na segunda metade da dcada de 1910, revelam que
a postura terica que conhece objetos no a mais originria na vida fctica. Nos
escritos religiosos, que no tm a pretenso de uma explicao terica da vida humana,
aparece a questionabilidade prpria da existncia. Ter a vida como questo para si
mesmo a possibilidade de perder-se de si mesmo. assim que Heidegger interpreta o
conflito do apstolo Paulo entre a lei mosaica e a lei de Deus; procurar a salvao na
obedincia lei mosaica a derrelio do haver-se tornado cristo. Na experincia
religiosa de Paulo, Heidegger mostra um saber de natureza diferente do saber terico da
postura cognitiva. O saber haver-se tornado cristo remete o religioso sua postura em
relao sua vida, indicando o ainda no da incompletude original da existncia
humana. o que aproxima a questo da temporalidade da existncia humana, tratada
neste curso como questo do histrico na vida fctica. Contra sua incompletude, a
existncia busca asseguramento; a metafsica uma forma de assegurar-se. O
conhecimento do universal e imutvel oferece ilusria estabilidade. o oposto do que
ressaltado pela experincia de vida fctica crist, que acentua a aflio, a insegurana e
a incompletude humanas. A experincia religiosa do cristianismo primitivo privilegia a
relao do humano com sua prpria condio, enquanto a filosofia, a relao de conhe-
cimento do mundo.
No curso Introduo Fenomenologia da Religio, Heidegger comea pela
demonstrao da incapacidade da metafsica englobando a filosofia, as cincias, a
filosofia como cincia, a teologia, a Filosofia da Histria e a Filosofia da Religio de
apreender a vida fctica, pois ela s lida com objetos e a existncia no objetiva.
As cincias e a filosofia tradicional esto comprometidas com o conhecimento
objetivo, que pressupe o modo temporal da presena esttica como nica possibilidade 3 HEIDEGGER, M. Einleitung in die Phnomenologie der Religion In: Phnomenologie des Religisen
Lebens (doravante abreviado EPR), p.124. [Todas as tradues foram realizadas pelo autor. O presente
estudo se baseia no curso tal como publicado no volume 60 das Obras Completas (Gesamtausgabe) e nas
tradues para o ingls, o espanhol e o italiano.]
4
de os entes serem. Somente a fenomenologia possibilita o aparecimento de outro modo
de ser. A fenomenologia a nica possibilidade de autonomia da filosofia em relao s
cincias. Essa autonomia o objetivo de Heidegger: A filosofia deve ser libertada de
sua secularizao da cincia assim como da doutrina da viso de mundo cientfica.4 Ele
parte de uma compreenso peculiar da fenomenologia, j distante da de Husserl.5 A
fenomenologia o resgate da filosofia de sua confuso com as cincias. Ela volta-se
para as origens. Precisa, portanto, voltar-se tambm para sua prpria origem. Da a
necessidade de deter-se nas questes introdutrias, diferentemente das cincias. S
assim pode a filosofia ganhar sua compreenso-de-si. A fenomenologia suspende a
experincia terica, que um modo de acesso ao descoberto, mas no o mais originrio.
Neste momento da dcada de 1920, Heidegger precisa dedicar muito trabalho
elaborao de sua apropriao da fenomenologia husserliana. Assim, ele passa grande
parte do tempo do curso Introduo Fenomenologia da Religio nas questes
metodolgicas. Filosofia e fenomenologia so pensadas por Heidegger
diferentemente da tradio, que as aprisiona no conhecimento objetivo. A teologia
receber crtica semelhante. A interpretao das Epstolas Paulinas neste curso um
exerccio desse mtodo hermenutico que, embora seja influenciado pela filosofia, pela
fenomenologia e pela teologia, distingue-se de todas elas.
Esse mtodo de interpretao revela nelas a temporalidade do cristianismo
primitivo, que um modo de relao com o carter histrico da vida humana. Para
Heidegger, essa experincia a mais prxima daquilo que ele chama de temporalidade
enquanto tal, que o modo de ser temporal peculiar existncia humana. Ele interpreta
as Epstolas Paulinas como um testemunho da experincia de vida fctica do apstolo,
cuja inteno ao escrev-las no era formular uma teologia ou de teorizar sobre a
existncia humana. Paulo escreve a fim de que os novos cristos permaneam firmes na
f. Mas, para compreender isso, necessrio que as epstolas sejam interpretadas a
partir da experincia de vida do apstolo, e no de concepes previamente
determinadas. A interpretao fenomenolgica precisa ento caracterizar a vida do
apstolo, apoiada no recorte formal da vida em mundo-ao-redor (Umwelt), mundo-
compartilhado (Mitwelt) e mundo-do-si-mesmo (Ich-Selbst, Selbstwelt).6 Com isso, 4 HEIDEGGER, M. EPR, p.10. 5 As distines entre as duas necessitariam um aprofundamento muito maior do que cabe a esta pesquisa,
de modo que sero apontadas apenas e de acordo com a necessidade. 6 HEIDEGGER, M. EPR, p.11.
5
capaz de conhecer a situao que motiva a escrita. Heidegger posiciona-se contra o uso
de qualquer conhecimento dogmtico na interpretao.
Toda metodologia cientfica est vinculada conceitualizao metafsica e
concepo prvia objetificante isto , a postulao de objetos que a determina.
Assim, a fim de resgatar a experincia de vida fctica do cristianismo primitivo,
Heidegger obrigado a discutir as questes metodolgicas. Isso faz parte da tentativa de
demonstrar a limitao da filosofia tradicional. Ele discute como ela lida com o
fenmeno o histrico para mostrar que tomado como um objeto constante e
imutvel. Heidegger conhece a originalidade de sua investigao fenomenolgica e
antecipa o estranhamento e a confuso que isso gera aos seus ouvintes. O que ele
apresenta aos seus alunos no filosofia, nem teologia, em seus significados
tradicionais, nem a fenomenologia elaborada por Husserl. Sua longa introduo
fenomenologia interrompida devido a reclamaes dos alunos, que se matricularam
neste curso na expectativa de encontrar contedos ligados fenomenologia da religio.
Ora, para se investigar a fenomenologia da religio, deve-se antes conhecer o que se
refere com os termos fenomenologia e religio. A filosofia essencialmente
diferente das cincias e por isso no pode proceder como elas. Mas com as reclamaes,
Heidegger antecipa a interpretao de um fenmeno religioso concreto; a saber, a
experincia de vida fctica de Paulo contida nas epstolas enquanto documentos da
religiosidade crist primitiva. Encerra aquilo que parece aos alunos telogos um
prembulo filosfico com a seguinte crtica ao modelo acadmico, que se divide em
disciplinas sem atentar para o que determina essa diviso. Heidegger crtico da
subdiviso das cincias humanas em disciplinas particulares.
A filosofia, tal como eu a vejo, est em dificuldade. O ouvinte de outras
prelees assegurado desde o incio: nas aulas de histria da arte ele pode ver
imagens; em outras, tem exames para compensar. Na filosofia de outro modo
e eu no posso mudar isso, pois no inventei a filosofia. Eu gostaria, entretanto,
de me salvar dessa calamidade e assim interromper estas consideraes
abstratas e lecionar histria para vocs a partir da prxima sesso; sem mais
consideraes sobre o ponto de partida ou mtodo, eu vou de fato tomar um
fenmeno concreto particular como ponto de partida, sob a pressuposio para
6
mim, entretanto, de que vocs no entendero o estudo inteiro, do princpio ao
fim.7
A preocupao de Heidegger cabvel. E no so somente os seus alunos em
1920 que correm o risco de no entender suas consideraes na fenomenologia da
religio. a fim de contribuir para a compreenso desse curso que surge este estudo.
Para isso, necessrio conhecer o contexto de vida e pensamento de Heidegger no seio
do qual se inscreve sua fenomenologia da religio. Fenomenologia um termo com
significado bastante peculiar para o filsofo em 1920, mesmo com a colaborao ativa
de Husserl nos seus estudos. A fenomenologia a nica possibilidade de a filosofia
salvar-se de sua confuso com as cincias. Essa confuso s se faz ver com a
fenomenologia.
H outros temas muito importantes neste curso, que tem sido objeto de estudo de
vrios comentadores principalmente em relao s consideraes sobre o mtodo
fenomenolgico a exposto. Os cursos anteriores a 1926 so em geral interpretados luz
do desenvolvimento da obra Ser e Tempo. O conceito de indicao formal (formale
Anzeige) amplamente usado nessa obra sem ser explicado. Neste curso de 1920-21,
Heidegger dedica algumas aulas a ele. As indicaes formais so os conceitos
filosficos enquanto referidos e reveladores da existncia humana, que ele chama de
vida fctica. Elas se articulam com sua compreenso da natureza da filosofia, que ele
busca diferenciar das cincias. A origem da filosofia a experincia de vida fctica e
esta histrica. Isto , a filosofia uma possibilidade existencial.
A experincia de vida fctica o modo como Heidegger designa a existncia
humana, que sempre se relaciona de diversos modos consigo mesma, com os outros e
com as coisas. O termo experincia designa tanto a ao de experimentar8 quanto o
que experimentado (isto , o contedo)
A compreenso do curso depende de que ele seja explicado a partir de si mesmo,
com auxlio dos escritos de comentadores. Mas tambm importante que se ganhe o
contexto histrico no qual transcorre o curso. Isso significa reconstruir os problemas
que ele visa resolver, assim como conhecer o momento de vida de Heidegger. Sua
defesa do regresso origem da filosofia deixa claro que ela no um sistema objetivo,
7 HEIDEGGER, M. EPR, p.65. 8 Por serem sinnimos, experienciar e experimentar sero usados intercambiavelmente.
7
mas uma possibilidade da vida fctica de cada um. Resgatar a filosofia da confuso
com as cincias significa re-aproxim-la do filosofar enquanto possibilidade existencial.
As cincias tambm so possibilidades existenciais. Por isso, Heidegger demonstra a
origem das cincias na vida fctica. A interpretao das epstolas de Paulo um
exerccio de mostrar a experincia vital presente na escrita. As epstolas s podem ser
entendidas a partir da situao vital de luta do apstolo. O pensamento est intimamente
ligado vida.
Para conhecer o momento histrico de Heidegger, esta pesquisa conta com
algumas cartas pessoais do filsofo e de pessoas prximas a ele. A existncia desse
material fruto do trabalho de pesquisadores que se esforam para preencher as lacunas
entre as escassas publicaes de Heidegger. Nessa poca, sua pesquisa na
fenomenologia da religio no foi apenas o preenchimento da vaga deixada pelo aluno
de Husserl, Adolf Reinach. Explicar a experincia de vida fctica crist uma
necessidade da tarefa de recuperao da filosofia da qual Heidegger se apropria como
incumbncia. Embora seguisse a indicao de Husserl de que desenvolvesse a
fenomenologia da religio, Heidegger j pensava a fenomenologia diferentemente de
seu mentor. Para ele, a fenomenologia era a interpretao-de-si da experincia de vida
fctica. Ele recusa as definies tradicionais de filosofia, teologia, histria e
fenomenologia. por isso que ele coloca a questo da compreenso-de-si
(Selbstverstndigung) da filosofia. Igualmente, o pensamento sobre a vida religiosa
formulado sobre novas bases: no mais a teologia, mas a experincia de vida fctica.
No surpreende que os alunos desse curso tenham reclamado da falta de contedo
religioso.
O presente trabalho tem por objetivo explicitar a experincia de vida fctica,
isto , tematizar a vida humana tal como possibilitado pela fenomenologia. A fim de
realizar esse objetivo, ser apresentada a fenomenologia como mtodo de explicitao
da vida fctica para, em seguida, demonstrar esse mtodo na explicitao da vida fctica
do apstolo Paulo. Essas explicaes apiam-se no curso publicado em 1995 como
volume 60 das obras completas, na bibliografia que o comenta e em escritos de carter
biogrfico que oferecem alguma luz a respeito do momento histrico de elaborao do
curso Introduo Fenomenologia da Religio. O contexto biogrfico necessrio
pois a filosofia, enquanto possibilidade da vida fctica, sempre contextual.
As questes metodolgicas s quais Heidegger se dedicou sero apresentadas.
Primeiro explica-se o conceito de indicao formal, pois a partir dele que se pode
8
buscar uma tematizao no terica e objetiva da vida fctica. Isso permite que a
distino entre as cincias e a filosofia possa ser apresentada. Para Heidegger, essa
distino tem como objetivo resgatar a autonomia da filosofia, que se encontra
confundida com as cincias. Mesmo a definio da filosofia como cincia fundamental
um equvoco que precisa ser desfeito. A filosofia uma possibilidade da vida fctica.
Ela deve voltar-se para a tematizao da experincia vital. Isso exige que o significado
do termo histrico possa ser questionado, pois a tendncia teorizao j parte de uma
definio cronolgica que recusa qualquer investigao original e inadequada para
interpretar a o modo de ser histrico da vida fctica.
A vida fctica tende a se esquecer de que histrica. Na experincia crist
primitiva, o porvindouro fim dos tempos pelo menos enquanto fim para cada
existncia singular - acentuado. um voltar-se para a vida humana histrica. Essa
experincia pode ser resumidamente descrita como luta entre o lembrar-se e o esquecer-
se que o fim j vigora. Por isso, o cristianismo primitivo escolhido para manifestar
outro sentido do termo histrico na investigao durante o curso. Mas antes de
adentrar na interpretao dessa experincia religiosa, o presente trabalho esboa uma
definio de experincia de vida fctica, que a expresso utilizada por Heidegger
neste momento histrico para se referir existncia de cada qual. Sabe-se que, poucos
anos depois, essa expresso ser abandonada e substituda pelo termo Dasein com um
significado fenomenolgico especfico.
Heidegger inicia a interpretao do fenmeno concreto da experincia religiosa
de Paulo de Tarso abruptamente, tanto que retoma questes metodolgicas durante esse
exerccio fenomenolgico. Acompanhando esse salto, o presente trabalho busca explicar
o sentido da religiosidade crist primitiva tal como apresentada por ele. No momento
desse salto, ele avisa seus alunos que parte da pressuposio de que ningum entender
nada da sua interpretao, pois no teve tempo suficiente para trabalhar a metodologia.
E a filosofia, que s pode acontecer como fenomenologia, , para Heidegger,
metodologia.
As epstolas no so documentos filosficos, mas, sim, relatos da experincia de
vida fctica de Paulo. Heidegger parte desse relato no mediado pelos conceitos
metafsicos para explicar a experincia de vida fctica. Esta pesquisa pretende apenas
acompanhar o desenvolvimento da interpretao das Epstolas Paulinas por Heidegger,
revelando um modo de tematizar a vida humana presente nelas. Trata-se de uma
descrio que no toma o humano como sujeito nem aquilo com que ele se relaciona
9
como objeto. Com auxlio da fenomenologia, Heidegger j em 1920 superava a
dicotomia sujeito-objeto. No por acaso, a escolha das Epstolas Paulinas deve-se a que,
na religiosidade crist primitiva, est implcita uma concepo da existncia humana
condizente com as descobertas da fenomenologia heideggeriana. Mas, antes de
apresentar a experincia de vida fctica crist, esta pesquisa deve expor a metodologia
fenomenolgica trabalhada pelo filsofo na primeira metade do curso.
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Captulo I: Heidegger e o curso Introduo Fenomenologia da
Religio
I.1. Apresentao do curso Introduo Fenomenologia da Religio
O curso Introduo Fenomenologia da Religio, do semestre de inverno de
1920-21, foi primeiramente apresentado ao pblico por Otto Pggeler em 1963. Antes
da publicao em 1995, era a principal referncia interpretao de Heidegger das
Epstolas Paulinas. O livro de Pggeler foi pioneiro na tentativa de acompanhar o
desenvolvimento de Ser e Tempo e do pensamento posterior de Heidegger. Ele teve
acesso a muito material at ento desconhecido, oferecendo aos estudiosos o
preenchimento de muitas lacunas presentes no pensamento heideggeriano causadas pelo
espaamento de suas publicaes. Esse material foi-lhe fornecido pelo prprio
Heidegger e por Oskar Becker. A este, Pggeler agradece: Tomei conhecimento das
primeiras lies de Freiburg, s quais fao referncia no texto, somente a partir de
anotaes e informaes indiretas, das quais devo agradecimentos sobretudo ao Prof.
Oskar Becker.9 Seu livro tornou-se referncia na interpretao da fenomenologia
heideggeriana. Sua anlise toma a questo do ser como o fio condutor da obra de
Heidegger e nesse contexto que o curso de inverno de 1920-21 interpretado, isto ,
como um passo na direo da colocao dessa questo. Pggeler relata que Heidegger,
entre 1910 e 1920, encontra inspirao na teologia da Escola de Marburg. Ele
iniciou seu caminho influenciado por uma teologia que estava convencida cada
vez mais de que era agora vlido experimentar a f crist na sua primordialidade
de um modo completamente novo, e isto aps sculos, na verdade aps milnios
de ofuscao da f primordial crist por ambas a filosofia e a teologia.10
Esse comentador relata que, a fim de encontrar a experincia primordial,
Heidegger interpreta a passagem do quarto e quinto captulos da primeira carta aos
tessalonicenses11 para mostrar a f crist na segunda vinda de Cristo. Heidegger foca
9 PGGELER, O. Martin Heideggers Path of Thinking, p.246. 10 PGGELER, O. Martin Heideggers Path of Thinking, p.24. 11 PGGELER, O. Martin Heideggers Path of Thinking, p.24.
11
na recusa de Paulo em fornecer uma data para esse acontecimento, usando
caractersticas kairolgicas, e no cronolgicas, desse momento. O tempo kairolgico
remete ao tempo humano das decises histricas, contextuais e finitas. O tempo da vida
humana finito, pois o homem mortal. O tempo cronolgico o tempo objetivo no
qual agoras se sucedem infinitamente. O kairs situa [o momento] no fio da navalha
na deciso,12 na ameaa13 do futuro, e, portanto, na inobjetificvel execuo da vida
histrica14. A tentativa de calcular a data da parusia elimina aquilo que deveria
determinar sua vida como inacessvel e o substitui pelo seguro, pelo acessvel.15 Mas a
parusia inacessvel ao homem. um acontecimento que irrompe inesperadamente.
Pggeler tambm enfatiza a influncia do pensamento de Kierkegaard na interpretao
heideggeriana da religiosidade crist.
O acompanhamento do curso a partir da publicao nas obras completas revela
que a apresentao de Pggeler est correta, mas passa ao largo das questes
metodolgicas presentes no curso, assim como sintetiza de maneira demasiado resumida
a interpretao fenomenolgica das epstolas.
A literatura americana tomou conhecimento mais detalhado desse curso atravs
do artigo Heideggers Introduction to the Phenomenology of Religion 1920-1921
publicado por Sheehan em 1979, no qual apresenta sua reconstruo do curso a partir da
leitura de alguns dos manuscritos que viriam a servir de base para a publicao. Nesse
artigo, ele se sustenta em alguns documentos biogrficos sobre a orientao religiosa de
Heidegger. Seu foco recai sobre a influncia do cristianismo na filosofia de Heidegger,
expressa na interpretao das Epstolas Paulinas, e no seu desenvolvimento posterior em
direo a Ser e Tempo. Tambm a partir desta obra que esse comentador apresenta o
curso.
Com a publicao das obras completas, o leitor possui uma perspectiva
compreensiva muito mais ampla do que o prprio Heidegger poderia ter a respeito de
sua obra ento. No h como saber se, ao lecionar sobre fenomenologia da religio,
Heidegger j direcionava sua reflexo s questes presentes em Ser e Tempo.
possvel, entretanto, conhecer o contexto intelectual e existencial no qual se insere este
curso. Para isso, os elementos biogrficos so to importantes quanto as influncias 12 PGGELER, O. Martin Heideggers Path of Thinking, p.24. 13 PGGELER, O. Martin Heideggers Path of Thinking, p.24. 14 PGGELER, O. Martin Heideggers Path of Thinking, p.25. 15 PGGELER, O. Martin Heideggers Path of Thinking, p.25.
12
filosficas. essa relao que ele explora ao fundar a filosofia e todo conhecimento
terico na experincia de vida fctica.
Os manuscritos de Heidegger desapareceram, restando apenas algumas
anotaes. A possibilidade da publicao do curso se deve aos alunos Oskar Becker,
Helene Wei, Franz-Josef Brecht, Franz Neumann e Fritz Kaufmann, cujas anotaes
serviram de base para a reconstruo do curso realizada pelos editores. As anotaes do
primeiro, sobretudo para a primeira parte do curso, serviram de guia para essa
reconstruo. Elas tambm serviram de base para a apresentao desse curso no livro de
Pggeler. A taquigrafia de Kaufmann no foi decifrada.
A reconstruo a partir de manuscritos de alunos pode no ser considerada uma
publicao to fiel quanto uma que conte com os manuscritos originais do autor. Isso
pode ser um fator motivador da recusa de Heidegger a publicar esse curso. Mas a
ausncia de seus manuscritos no suficiente para que o curso seja desconsiderado. Os
cursos, mesmo aqueles que no dispuseram da correo de Heidegger, apresentam um
pensamento muito mais fluido do que os tratados. uma diferena que salta vista do
leitor que compara a aridez de Ser e Tempo, por exemplo, com qualquer curso
publicado. Heidegger escreve sobre a mobilidade do pensamento possvel apenas no
dilogo em sua carta a Jean Beaufret. Diz ele que No papel, o pensar sacrifica
facilmente sua mobilidade. 16 As anotaes dos alunos, sobretudo as diferentes escutas,
podem registrar essa mobilidade. Tambm a epgrafe manuscrita por Heidegger na
coleo de sua obra, Caminhos, no obras (Wege, nicht Werke), tira o foco da
autoria do pensamento, direcionando-o para a questo mesma a ser pensada. Nesse
sentido, as obras completas no apresentam a filosofia de Heidegger, a contribuio de
sua autoria, mas, sim, as questes que convocam o pensamento nesta poca histrica e
que ele foi capaz de ouvir. Quem o autor do curso Introduo Fenomenologia da
Religio? Heidegger, cujos manuscritos no foram encontrados? So seus alunos?
Pggeler, o primeiro a tornar pblico o contedo do curso? So os editores da
publicao, que entrelaaram os manuscritos existentes? So aqueles que decifram a
difcil escrita de Heidegger ou de seus alunos? So os tradutores para o ingls, o italiano
e o espanhol? Talvez no se possa falar de uma identidade na obra heideggeriana. Para
van Buren:
16 HEIDEGGER, M. Sobre o Humanismo, p.348.
13
A mo que rabiscou a assinatura na pgina do ttulo da edio reunida acaba
sendo um membro fantasma que permanece aps a amputao do mito
metafsico de que o nome do autor, a mens auctoris, o princpio espiritual da
identidade que anima o corpus literrio.17
A publicao dos cursos ministrados por Heidegger na Universidade de Freiburg
entre 1916 e 1923 no fazia parte dos planos iniciais das obras completas. As obras
reunidas, que comeam a ser publicadas em 1976, tm a tarefa de apresentar seus passos
em direo questo do ser, tornada pblica pela primeira vez com a publicao de
Ser e Tempo, mas j presente em suas lies da dcada de 1920. Sendo assim, a ordem
que seria seguida na publicao era a ordem cronolgica. Mas os prospectos da editora
Vittorio Klostermann de 1974 e 1975 apontavam dvidas quanto publicao dos
cursos desse perodo. O motivo mais concreto era a incerteza em relao existncia
desse material. De fato, os manuscritos originais de Heidegger para este curso nunca
foram encontrados, mesmo aps anncios em vrios jornais de grande circulao.18 O
filsofo pode ter sido responsvel pela destruio desses originais, indica van Buren,
pois muitos dos manuscritos faltantes foram aparentemente destrudos em algum
momento pelas mos do prprio Heidegger.19
Van Buren sugere um outro motivo para a ausncia desses cursos nos primeiros
prospectos. Heidegger poderia ter escolhido no publicar Introduo Fenomenologia
da Religio, assim como outros cursos cujos manuscritos no foram encontrados, pelo
fato de no se alinharem a Ser e Tempo como os primeiros cursos de Marburg. Tratar-
se-ia assim de um suplemento perigoso20 capaz de pr em questo a temtica nica do
pensamento heideggeriano. Deixando de publicar os cursos desse perodo, Heidegger
estaria tentando imprimir sua prpria auto-interpretao autoral21 coleo de sua
obra. O comentador sustenta sua hiptese nos estudos de Victor Farias, que descobriu a
omisso de oito artigos publicados por Heidegger no jornal catlico antimodernista O
Acadmico. Nos cursos de Freiburg, a questo do ser ainda no havia claramente
17 VAN BUREN, J. The Young Heidegger, p.18. 18 JUNG, M e REGEHLY, T. Nachwort der Herausgeber der Vorlesung Wintersemester 1920/21 In:
HEIDEGGER, M. EPR, p.339. 19 VAN BUREN, The Young Heidegger, p.15. 20 VAN BUREN, The Young Heidegger, p.14. 21 VAN BUREN, The Young Heidegger, p.14.
14
surgido, de modo que Heidegger no os considerava parte do corpus autntico22 de
seu pensamento. Hermann Heidegger, filho do filsofo e responsvel pela continuao
da publicao de suas obras, anunciou no quinto prospecto, de abril de 1984, a incluso
dos manuscritos, reunidos na forma de um suplemento segunda diviso das obras
completas. Este curso do inverno de 1920-21, Introduo Fenomenologia da
Religio, foi publicado no volume 60 das Obras Completas em 1995, acompanhado do
curso Agostinho e o Neoplatonismo (Augustinus und der Neuplatonismo) e do
projeto do curso Os Fundamentos Filosficos do Misticismo Medieval (Die
philosophischen Grundlagen der Mittelalterlichen Mystik), nunca ministrado. Esses
trs cursos renem os trabalhos realizados por Heidegger na fenomenologia da religio.
O curso Introduo Fenomenologia da Religio foi lecionado por Heidegger
na Universidade de Freiburg s teras e sextas-feiras do meio-dia s 13 horas. Comeou
no dia 29 de outubro de 1920, foi interrompido por um ms para frias de Natal e
encerrado em 25 de fevereiro de 1921.
O curso pode ser resumidamente dividido em duas partes. Nas primeiras lies,
Heidegger formula sua compreenso da fenomenologia enquanto explicita a
incapacidade das cincias de apreenderem a existncia humana. Para isso, Heidegger
comea questionando o significado das palavras que compem o ttulo do curso,
mostrando que introdues s cincias e filosofia so diferentes. As cincias postulam
antecipadamente que aquilo que encontram objeto. Mas a objetividade um modo
temporal de ser dos entes que lhes recusa a histria. A existncia humana lida com a
histria individual e coletiva de um modo incompatvel com a objetividade. E a histria
um fenmeno central da experincia de vida fctica. A fenomenologia que Heidegger
formula permite que esse fenmeno possa explicitar-se. Por isso, ele dedica algumas
lies metodologia fenomenolgica. Como a experincia de vida fctica no um
objeto, a linguagem filosfica categorial no compatvel com ela. Assim, Heidegger
toma da fenomenologia husserliana o conceito de indicao formal (formale Anzeige)
para se referir aos conceitos correspondentes ao modo de ser histrico da existncia.
Essa primeira parte metodolgica foi interrompida em 30 de novembro de 1920,
sendo retomado o curso j na interpretao do fenmeno concreto da experincia de
vida fctica do apstolo Paulo, tal como presente em suas epstolas. Essa interpretao
fenomenolgica tambm uma oportunidade para Heidegger mostrar como a
22 VAN BUREN, The Young Heidegger, p.15.
15
fenomenologia pode revelar aspectos desse fenmeno que a filosofia da religio, a
teologia ou as cincias do esprito, no. Apoiado em anlise textual das epstolas,
Heidegger apresenta a situao de vida do apstolo. A situao determinante para a
compreenso do comportamento de escrita das epstolas, do sentido das comunidades
crists s quais escreve e da antecipao da parusia. Com auxlio da fenomenologia, ele
explicita a temporalidade da experincia de vida fctica de Paulo, que a do
cristianismo primitivo e que corresponde da existncia humana.
I.2. O contexto biogrfico de Heidegger (entre 1916 e 1921)
So poucas as informaes sobre a vida de Heidegger. Para compor sua situao
no perodo entre o final da Primeira Guerra e os cursos de fenomenologia da religio, os
comentadores recorrem escassa correspondncia preservada dessa poca. Como
Heidegger se situava em relao religio crist e filosofia nesse perodo? Essa
questo fundamental para que se possa compreender o sentido da incurso na
fenomenologia da religio entre 1919 e 1921. Nessa poca Heidegger j lecionava
cursos estritamente filosficos. Mas a fenomenologia da religio para ele a
investigao da vida fctica na sua imediatidade pr-terica. Isso exige dele o abandono
dos laos confessionais com a religio catlica, que financiara seus estudos at pouco
tempo atrs.
A trajetria intelectual de Heidegger recebe seus primeiros impulsos da
Escolstica. Na dcada de 1910, sua inteno era reavivar o escolasticismo medieval e
sua fora de influenciar uma poca histrica; penetrar na vivacidade viva do
Escolasticismo e ver como decisivamente fundou, vitalizou e fortaleceu uma poca
histrica.23 Seria um modo de lutar contra o relativismo e a volatilidade dos valores da
sua atualidade. No medievo, o pensamento cristo demonstrara sua fora ao determinar
um modo de vida histrica. Ele deixa seu projeto claro ao escrever para a Fundao em
Honra de Santo Toms de Aquino:
O submisso abaixo assinado pensa poder agradecer sempre ao reverendssimo
cabido da Catedral pela sua valiosa confiana, pelo menos dedicando o trabalho
23 HEIDEGGER, M. apud KISIEL, T. The Genesis of Heideggers Being & Time, p.71
16
cientfico de sua vida a tornar fluido o pensamento depositado na escolstica
pela batalha espiritual do futuro em torno do ideal de vida catlico-crist.24
Misticismo e filosofia escolstica caminham juntos na investigao da relao
do que Heidegger chama de vida interior da alma com a transcendncia; neles,
conhecimento e vivncia no se dissociam como no pensamento moderno. Na
psicologia escolstica, o sujeito no um objeto de investigao. Deus tambm no
objeto. O homem interior do pensamento medieval no se confunde com o sujeito da
modernidade. Heidegger projeta assim um reavivamento da filosofia, da qual a vida
foi eliminada em favor exclusivamente da teoria.
A aproximao de Heidegger fenomenologia um desdobramento dos estudos
escolsticos. Ele chega at a filosofia de Husserl passando pelo livro de Franz Brentano,
Sobre o Significado Mltiplo do Ente Segundo Aristteles (1862), recebido de presente
de seu professor, o telogo Conrad Grber em 1907. um livro de apoio aos seus
estudos escolsticos, que o auxilia nas desajeitadas tentativas para penetrar na
filosofia25, como lembrar dcadas mais tarde. Dois anos depois, em 1909, Heidegger
comea a estudar as Investigaes Lgicas de Husserl.
Os avanos nos estudos de filosofia fazem com que Heidegger deixe de acreditar
na possibilidade de reavivamento do Escolasticismo buscada no comeo de seu
itinerrio filosfico. No s a filosofia, mas os estudos de mstica medieval, do
cristianismo primitivo e de teologia protestante levam Heidegger a tornar-se crtico da
Escolstica, passando a enxergar, tambm nela, a ocultao da experincia de vida
fctica pela primazia do acesso terico. A teologia crist busca explicar teoricamente a
experincia de vida fctica religiosa do cristo com auxlio da filosofia. Assim, a
imediatidade dessa experincia abre lugar para teorizaes sobre ela fundamentadas em
Plato e Aristteles. Assim, o Escolasticismo passa a ser entendido como um
desdobramento da histria do predomnio da atitude terica e desvivificante que
Heidegger quer combater.
Theodor Kisiel transcreve a seguinte anotao de Heidegger, do ano de 1917
mas sem data certa. Essa passagem faz parte de uma curta coleo de notas soltas sobre
24 HEIDEGGER, M. apud SAFRANSKI, R. Heidegger, p.76. 25 HEIDEGGER, M. Meu caminho para a fenomenologia, p.495.
17
fenomenologia da religio que ajudaram Heidegger a compor o projeto do curso sobre
mstica medieval.
Isso est j implcito na fortemente cientfica, naturalstica e terica metafsica
do ser de Aristteles e na sua excluso da influncia do problema do valor de
Plato, uma metafsica que revivida no escolasticismo medieval e que dita a
norma no predominantemente terico. Correspondentemente, o escolasticismo,
no interior da totalidade do mundo-vivido cristo medieval, ps em grave risco
a imediatidade da vida religiosa e esqueceu a religio em favor da teologia e dos
dogmas. Essa influncia teorizante e dogmatizante foi exercida pelas
autoridades da igreja em suas instituies e estatutos j nos primeiros tempos do
cristianismo.26
O ano de 1917 o ltimo em que Heidegger leciona filosofia catlica na
Universidade de Freiburg. Nesse departamento, trabalhava freqentemente com o padre
Engelbert Krebs, telogo e grande conhecedor de mstica medieval. Em 1915, ambos
at concorrem mesma ctedra de filosofia catlica. Amigo de Heidegger, Krebs realiza
a cerimnia de seu casamento com Elfride Petri em 191727. Embora ela seja de uma
famlia protestante, o casal realiza uma cerimnia catlica e se compromete a criar os
filhos sob os preceitos dessa religio. Mas em 23 de dezembro de 1918, Elfride, grvida
do primeiro filho, escreve ao padre Krebs:
Meu marido perdeu sua f na igreja e eu no a encontrei. J na poca de nosso
casamento sua f estava minada por dvidas. Mas eu insisti para que o
casamento fosse catlico, esperando encontrar a f com sua ajuda. Juntos,
lemos, conversamos, pensamos e rezamos muito e o resultado que ns dois
26 HEIDEGGER, M. apud KISIEL, T. The Genesis of Heidegger Being & Time, p.73-4. 27 No ano de 1915, Heidegger conhece Elfride Petri, estudante de economia nacional da Universidade de
Freiburg. Ela vinha de uma famlia militar e luterana e era ligada ao movimento de juventude. No fim do
ano de 1916 tornam-se noivos e se casam em 1917 na capela da universidade. Krebs realiza a cerimnia.
Ela no se converte ao catolicismo, mas o casal se compromete a batizar e criar os filhos nessa f. O
dirio de Krebs registra que Em maro de 1917 ele [Heidegger] me disse que havia noivado com a filha
de um coronel saxo, Petri, e que sua noiva, que estava em vias de se converter ao catolicismo, queria me
visitar. Quando veio me ver, eu aconselhei a sra. Petri a aprazar a converso depois do casamento, a fim
de que a efetuasse com maior liberdade interior, dado que ainda estava indecisa.(KREBS, E. apud OTT,
H. Las races catlicas del pensamiento de Heidegger)
18
pensamos hoje somente como protestantes isto , acreditamos no Deus pessoal
e rezamos a Ele, sem laos dogmticos e sem a ortodoxia protestante ou
catlica. Em tais circunstncias, consideraramos desonesto permitir que nosso
filho seja batizado na igreja Catlica. Mas considerei ser meu dever contar-lhe
isto antes.28
A partir do curso ps-guerra de 1919, Heidegger mostra-se crtico do
pensamento metafsico catlico medieval, que antes animava seus estudos. Desde ento,
ele defende abertamente que a conceitualizao aristotlica e neo-platnica se faz
presente nas teologias catlica e protestante, ocultando a experincia original do
cristianismo. Nos escritos msticos medievais, Heidegger encontra irrupes da vida
crist original contrrias teorizao dogmtica. essa vida original que ele precisa
explicitar, mas que as linguagens teolgica e metafsica so incapazes de o fazer. Com
auxlio da fenomenologia, Heidegger tenta tematiz-la. Mas, para isso, sente a exigncia
de decidir-se sobre sua confisso religiosa. Vida e pensamento se articulam. A filosofia
uma possibilidade da vida fctica.
Duas semanas aps a carta de Elfride, o prprio Heidegger quem escreve a
Krebs sobre sua deciso. Conta que os anos de 1918 e 1919 foram de busca por sua
posio filosfica, levando-o deciso em sua vida de abandono do sistema do
catolicismo. Seus laos confessionais impedem-no de colocar as perguntas filosficas
com radicalidade necessria. A filosofia revelou-se para ele um chamamento interior
que deve ser realizado na vida de pesquisa e ensino para alcanar o que est em meu
poder e, assim, justificar minha existncia (Dasein) e minha atividade perante Deus.29
Heidegger explica sua escolha:
Os ltimos dois anos nos quais me esforcei por um esclarecimento fundamental
de minha posio filosfica e pus de lado todas as tarefas acadmicas
especializadas levaram-me a concluses de que no a poderia sustentar nem
ensinar livremente se estivesse preso a alguma posio fora da filosofia.
28 PETRI, E. apud SHEEHAN, T. Reading a life: Heidegger and Hard Times, p.70. 29 HEIDEGGER, M. Letter to Father Engelbert Krebs, p.70.
19
Insights epistemolgicos que se estendem teoria do conhecimento histrico
tornaram o sistema do Catolicismo problemtico e inaceitvel para mim, mas
no o cristianismo e a metafsica estes, entretanto, em um novo sentido.30
Nessa carta, Heidegger mostra que se tornou claro para ele que o sistema
dogmtico do catolicismo um impedimento para o exerccio filosfico. Para o
comentador Sheehan, a ruptura remete s restries impostas pela Igreja aos seus
estudantes. Heidegger dependera de bolsas de estudo at poder se sustentar como
professor. Durante os anos em que lecionou filosofia catlica, era comprometido com a
viso-de-mundo e o ideal de vida dessa religio. Mas no parece que o ressentimento
seja a principal motivao para a renncia do sistema do catolicismo.
A vida religiosa e a filosofia no se opem para Heidegger. Pelo contrrio, a
filosofia para ele a possibilidade de justificar sua existncia perante Deus. Mas a
filosofia deve tematizar a vida fctica e, para isso, no pode prender-se teorizao
objetificante. Igualmente, a teologia enquanto construo terica do catolicismo j
determina previamente a existncia humana e o ser dos entes, impedindo o acesso
imediatidade pr-terica da vida fctica. Por isso, Heidegger precisa abdicar dos
dogmas que se acumularam desde a infiltrao da metafsica grega na experincia crist.
O curso Introduo Fenomenologia da Religio um exerccio de se aproximar
rigorosamente da vida fctica como fenmeno a partir da liberdade filosfica, ao invs
do caminho de antemo determinado pelo dogma. O curso seguinte, sobre Agostinho e
o Neoplatonismo, revela o encobrimento da experincia de vida fctica do cristianismo
primitivo pela conceitualizao da filosofia grega. Os estudos de Heidegger levam-no
concluso de que a vivncia religiosa imediata fica encoberta pela teorizao. A
Escolstica, que ele to bem conhecia por conta de seus estudos no seminrio,
participou ativamente desse distanciamento da experincia fctica pela especulao.
essa experincia original que Heidegger busca trazer novamente luz. O sistema do
catolicismo ao qual se refere depositrio de sculos de encobrimento, por isso torna-se
necessrio romper com ele. O projeto filosfico de Heidegger, que sua vocao
existencial, de realizao da fenomenologia da religio enquanto destruio da
ontologia grega presente nos pensamentos teolgico e filosfico atuais. Na carta, fica
preservado o cristianismo num novo sentido; ao que tudo indica, mais prximo da
30 HEIDEGGER, M. Letter to Father Engelbert Krebs, p.69-70:
20
experincia prpria do que da ritualstica; mais prximo do protestantismo livre do que
do catolicismo. Teologia e religiosidade tornam-se distintas. A teologia pode ser at um
impedimento para a vida religiosa. Nas Epstolas Paulinas, Heidegger mostra como a
obedincia lei mosaica a perda da experincia religiosa crist. Algo semelhante pode
ser afirmado da filosofia: o cientificismo da filosofia tradicional um obstculo para o
filosofar.
Assumir a vocao tarefa rdua, que exige honestidade e sacrifcios. Heidegger
escreve na carta a Krebs que difcil viver como filsofo a verdade interior a
respeito de si mesmo e em relao queles a quem deve-se ser professor exige
sacrifcios, renncias, e lutas que permanecem para sempre desconhecidas para o
tcnico acadmico.31
Heidegger no assume para si mesmo a condio de filsofo em oposio
teologia32. No h tal oposio para Heidegger nos anos de 1920 e 21. Pelo contrrio, as
investigaes a partir da teologia crist, auxiliadas pela fenomenologia, mostram-se a
nica possibilidade de recuperar a autonomia da filosofia. Dado que a filosofia surge da
experincia de vida fctica, esta deve ser investigada. A explicitao da experincia de
vida fctica s possvel a partir da religiosidade crist interpretada pela
fenomenologia. As epstolas de Paulo so um testemunho da experincia de vida fctica,
pois a religiosidade crist primitiva o voltar-se do existente para sua prpria existncia
numa relao consigo mesmo que no terica.
Edmund Husserl acompanha a converso de Heidegger, mas pouco ciente de
seus verdadeiros motivos. A aproximao dos dois deu-se lentamente. O fundador da
fenomenologia chega em Freiburg em maio de 1916. Ajuda Heidegger a publicar sua
dissertao sobre Duns Scotus em 1916, mas ainda no eram to prximos quanto
viriam a se tornar aps a guerra. desse primeiro momento de contato que data uma
carta de Husserl a Natorp sobre Heidegger. Natorp escreve ao colega fenomenlogo
31 HEIDEGGER, M. Letter to Father Engelbert Krebs, p.70. 32 Ser apenas em 1927, no seminrio Fenomenologia e Teologia (Phnomenologie und Theologie)
que Heidegger tomar para si a tarefa de distinguir a filosofia e a teologia, estabelecendo regies e tarefas
distintas para cada qual. Sua distino apia-se na diferena de mbitos de investigao de cada qual e na
oposio entre filosofia e f, presente tambm nas epstolas de So Paulo e nos escritos de Lutero. Nesse
seminrio, a teologia apresentada como uma cincia ntica cuja tarefa compreender a importncia e o
modo especfico de ser do acontecimento cristo, e compreend-lo tal como testemunhado na f e para a
f (HEIDEGGER, M. Phenomenology and Theology, p.13.)
21
para se informar se Heidegger, cujo livro ele acabara de ler, seria um candidato
adequado para lecionar filosofia medieval em Marburg. Mais especificamente, Natorp
indagava sobre o comprometimento religioso de Heidegger. A isso, Husserl responde
que ainda no teve tempo o suficiente para conhec-lo, de modo a ainda no dispor de
um julgamento confivel a respeito de sua personalidade e carter, embora no tenha
nada de ruim a dizer a seu respeito. A seguir, explica que Heidegger j fora indicado
para o departamento de filosofia catlica por conta de sua filiao ao catolicismo, mas
que jovem e pouco maduro para o cargo.
certo que ele tem laos confessionais porque est, por assim dizer, sob a
proteo do nosso historiador catlico meu colega Finke.
Correspondentemente, no ano passado ele foi indicado nas reunies de
departamento como um candidato para a cadeira de filosofia catlica no nosso
Departamento de Filosofia uma cadeira que ns tambm gostaramos de haver
transformado numa posio de ensino cientfico para a histria da filosofia
medieval. Ele foi levado em considerao junto com outros, at o momento em
que Finke o sugeriu como candidato apropriado em termos de sua filiao
religiosa.33
Com essa apresentao, Heidegger no foi chamado para o cargo. A opinio de Husserl
mudaria em pouco tempo. O que ele ainda no sabia que Heidegger j havia rompido
com o catolicismo, conforme cartas pessoais mostram.
Heidegger ento convocado para a guerra. Durante o servio militar,
permanece sem lecionar. Nesse tempo, troca correspondncias com Husserl, at que, de
volta em novembro de 1918, aceito como seu assistente. Husserl envia em 7 de janeiro
de 1919 uma solicitao ao Ministrio da Educao para que Heidegger receba salrio
de professor assistente da ctedra de filosofia, que ele j ocupava desde 1916, o que lhe
concedido no ano seguinte.
Em maro de 1919 Husserl recebe outra carta de Marburg. Desta vez, Rudolf
Otto, telogo protestante e autor do livro O Sagrado, quem escreve indagando a respeito
de um outro aluno. Mas a resposta de Husserl cheia de elogios a Heidegger, colocando
seu assistente no centro das atenes. Ele apresentado como tendo uma personalidade
33 HUSSERL, E. apud SHEEHAN, T. Heideggers Introduction to the Phenomenology of Religion 1920-
1921, p.313.
22
religiosa, direcionada pelo interesse terico e filosfico. Nessa mesma carta, Husserl
menciona a mudana radical nas suas convices religiosas bsicas34 pela qual
Heidegger passa no perodo entre 1916 e 1919; a saber, sua converso do catolicismo ao
protestantismo. Ele ainda sugere que essa mudana pode ter sido efeito da proximidade
dos dois.
Meu efeito filosfico tem algo notadamente revolucionrio: protestantes
tornam-se catlicos, catlicos tornam-se protestantes... Na arqui-catlica
Freiburg, no quero aparecer como um corruptor dos jovens, como algum que
faz proselitismo, como um inimigo da Igreja Catlica. Isso eu no sou. Eu no
exerci a mnima influncia sobre a migrao de Heidegger ou de Oschner para o
campo do protestantismo, embora isso s possa ser muito agradvel a mim,
como protestante no-dogmtico e cristo livre (se que se pode chamar a si
mesmo assim quando, por cristo livre, visa-se a meta ideal do desejo
religioso e a entende, da sua parte, como uma tarefa infinita). Alm disso, eu
gosto de ter um efeito sobre todos os homens sinceros, seja catlico, protestante,
ou judeu.35
somente mais tarde que Husserl poder perceber o quanto o caminho
intelectual dos dois divergiu. No comeo da dcada de 1920, Heidegger ainda leciona
fenomenologia, mas sua apropriao desse pensamento volta a investigao para aquilo
que origina a filosofia, que a vida fctica. Como a vida fctica no um objeto, a
linguagem categorial, prpria da teoria, no a abarca. Assim, a fenomenologia surge
como a possibilidade de desconstruo da objetificao pressuposta na atitude
cognitiva. Essa apropriao da fenomenologia vai ao encontro dos estudos de
Heidegger, que apresentam a experincia do cristianismo primitivo como um voltar-se
para a questionabilidade da vida fctica, tematizada no teoricamente. Quanto a isso, as
Epstolas Paulinas so documentos exemplares, pois Paulo aponta para a experincia de
vida de cada qual, sem a meta de teorizar sobre a vida. A fenomenologia torna-se o
instrumento necessrio para revelar a experincia de vida fctica do apstolo, que
prottipo da experincia do cristianismo primitivo, mas que permanece encoberta h 34 HUSSERL, E. apud SHEEHAN, T. Heideggers Introduction to the Phenomenology of Religion 1920-
1921, p.313. 35 HUSSERL, E. apud SHEEHAN, T. Heideggers Introduction to the Phenomenology of Religion 1920-
1921, p.313.
23
sculos pelas interpretaes teolgicas. A fenomenologia faz ver a origem existencial da
linguagem e do pensamento tericos. Com essa ferramenta, Heidegger pode se livrar
dos pressupostos metafsicos que determinam a explicao da vida fctica, revelando-a
a partir dela mesma. por isso que ele rompe com o sistema do catolicismo, sem que
isso implique o abandono da religiosidade.
apoiado na sua compreenso da fenomenologia que Heidegger se situa na
fenomenologia da religio. Mas para ele, a fenomenologia da religio no a
investigao do divino ou dos fenmenos religiosos, mas, a explicitao da vida
fctica religiosa. Filosofia, teologia, fenomenologia, fenomenologia da religio
ganham novos significados a partir da experincia de Heidegger. Sobre o apstolo, a
fenomenologia revela o sentido do comportamento epistolar a partir do contexto da
experincia crist da vida. Do mesmo modo, Heidegger pensa sua prpria existncia a
partir de seu contexto. Isso significa que se compreende a partir de sua biografia, seus
estudos, suas questes, suas metas. E sobre si mesmo, escreve a Lowith, poucos meses
aps o fim do curso Introduo da Fenomenologia da Religio, que um telogo
cristo.
... preciso dizer que no sou um filsofo nem me imagino a fazer alguma
coisa comparvel. Isso no est, de todo, na minha inteno. (...) Trabalho de
forma concreta e fctica a partir do meu eu sou a partir da minha herana
espiritual inteiramente fctica, do meu meio, das coeses da minha vida, a partir
do que me acessvel enquanto experincia vital, na qual vivo. Esta facticidade
no , enquanto existencial, um Dasein simples, cego este posto, ao
mesmo tempo, na existncia quer dizer, que o vivo (...) com o histrico, o
existir causa danos: isto , que vivo os deveres interiores da minha facticidade
to radicalmente como os compreendo. A esta, a minha facticidade, pertence o
que designo brevemente assim: sou um telogo cristo.36
Mas o que significa para Heidegger ser um telogo cristo; ele, que h poucos
meses rompeu com o sistema do catolicismo? Declarando-se telogo, ele no est se
alinhando teologia tradicional, cujo comprometimento com a atitude terico-
36 HEIDEGGER, M. apud BARASH, J. Heidegger e o Seu Sculo, p.103. Outras tradues de trechos dessa
carta encontram-se em: HEBECHE, L. O Escndalo de Cristo, p.398; KISIEL, T. The Genesis of
Heideggers Being & Time, p.78.
24
objetivista ele revela e recusa como sendo inadequado para os fenmenos investigados.
Sua teologia a interpretao fenomenolgica da experincia de vida fctica. Nesse
sentido, teologia e fenomenologia significam o mesmo. Em 1920 e 1921, Heidegger
no as distingue, pois seus temas se intercalam. A teologia a explicitao da
experincia de vida fctica crist. A experincia do cristianismo primitivo a
experincia da vida na sua irredutibilidade, relao que ser tematizada adiante.
Portanto, ser um telogo cristo ser um fenomenolgo da experincia de vida
fctica. A fenomenologia a explicitao da vida fctica. Os escritos do cristianismo
primitivo indicam uma compreenso tcita da vida fctica que precisa ser revelada com
auxlio da fenomenologia.
Ao mesmo tempo, o emprego desses termos tambm um reconhecimento de
sua provenincia. Afinal, so os estudos de teologia no sentido tradicional que o
levam a esta formulao da tarefa da fenomenologia. E esta no uma tarefa que
Heidegger tomaria aleatoriamente para si, pois a fenomenologia, tal como ele a
compreende, um desdobramento de seu caminho existencial. Explicitar a experincia
de vida fctica fenomenologicamente reavivar a experincia religiosa crist primitiva,
despertar a existncia humana de sua perdio na objetividade e resgatar a filosofia de
sua confuso com as cincias; enfim, reconduo originalidade. Parece que so esses
os deveres interiores de Heidegger que se articulam com sua existncia histrica.
Um dos aspectos de sua vida que motiva a ruptura com o sistema do catolicismo
e a nova apropriao da filosofia o intenso dilogo que Heidegger trava com o
pensamento de sua atualidade. Ele encontra em Schleiermacher telogo protestante
contemporneo de Hegel cujo pensamento influencia a teologia e a filosofia da histria
do comeo do sculo XX a necessidade de que a experincia religiosa seja
compreendida a partir de seu prprio mbito, e no de um estranho a ele. Ambos
posicionam-se contra a inteno iluminista de compreender a religio como uma
formao terica, metafsica, e como um fenmeno prtico ou tico. No cabe que se
fale de religio, mas, sim, de vida religiosa. A religiosidade perpassa toda vida, e no
uma ou outra ao isolada.
Um livro importante na teologia dessa poca O Sagrado37, de Rudolf Otto,
publicado em 1917. Para Otto a experincia religiosa uma relao inobjetificvel com
37 No vero de 1917, Heidegger chama a ateno de Husserl para esse livro. No ano seguinte, Husserl
escreve ao seu aluno que estava em servio militar que o l de modo interessado e o considera uma
25
o sagrado. O sentimento vivenciado que o indica de um mistrio que faz tremer38
(mysterium tremendum). aterrorizante e fascinante ao mesmo tempo. Otto
fundamenta-o no aspecto temvel de Deus, que aparece com freqncia no Antigo
Testamento sob a imagem da clera de Jahveh. Nela, vibra e brilha o elemento no-
racional, o qual lhe d um carter terrificante que o homem natural no pode sentir.39
Vem acompanhada do carter fascinante, que ele descreve com a expresso tremenda
majestas40. A repulsa e a atrao exercidas pelo mysterium tremendum so os
elementos no-racionais do sagrado, aos quais se associam representaes racionais na
tentativa de exprimi-lo. Heidegger, embora compartilhe com Otto da compreenso do
sagrado enquanto no-objetificvel e, portanto, no definvel com os conceitos
categoriais, crtico do uso da oposio racional no-racional nessa investigao.41
Antes de Heidegger assumir a fenomenologia da religio sob orientao de
Husserl, quem se dedicava a essa pesquisa era Adolf Reinach. Seu trabalho consistia em
articular os fenmenos religiosos em termos de fundante e fundado, articulao
importante na fenomenologia husserliana. Heidegger influenciado por esses estudos,
que ele conhecera atravs de Husserl e de sua assistente Edith Stein, mas considera as
categorias usadas por Reinach metafsicas, e no fenomenolgicas. Heidegger
compartilha com ele a primazia da experincia fctica sobre as construes tericas.
Quando ele morre em combate em 1917, Husserl passa a Heidegger a incumbncia da
fenomenologia da religio, fato que os aproxima mais.
tentativa de uma fenomenologia da conscincia de Deus, corajosa e um tanto promissora no comeo,
mas logo decepcionante.37 Em seguida, lamenta-se que Heidegger esteja muito ocupado para escrever
uma resenha a seu respeito. Heidegger j planejava tematizar esse livro de Otto, mas seria em um estudo
comparativo entre esse livro e um ensaio do neo-kantiano Windelband com o mesmo ttulo. 38 OTTO, R. O Sagrado, p.13. 39 OTTO, R. O Sagrado, p.22. 40 OTTO, R. O Sagrado, p.23. 41 A filosofia da religio atual orgulha-se de sua categoria do irracional e, com isso, considera
assegurado o acesso religiosidade. Mas, com estes dois conceitos, nada dito enquanto no se conhea
o significado de racional. O conceito de irracional deve supostamente ser determinado a partir da
oposio ao conceito de racional, que, entretanto, encontra-se em notria indeterminao. Este par de
conceitos deve ser inteiramente eliminado. (HEIDEGGER, M. EPR, p.79)
26
A interpretao da experincia religiosa realizada por Heidegger tambm recebe
forte influncia da teologia luterana. Os estudos de Heidegger da obra de Lutero42
comearam em 1920. No ano seguinte, ele ganhou a publicao de suas obras
completas, o que possibilitou estudos mais aprofundados. Jaspers quem documenta
em sua Autobiografia Filosfica: Eu o visitei, sentei-me sozinho com ele na sua
clausura, vi-o estudando Lutero, vi a intensidade de seu trabalho...43, sobre sua visita a
Heidegger em abril de 1920. Mas j em 1919, no esboo do curso sobre mstica
medieval, encontram-se indicaes de que a oposio entre a Teologia da Cruz
(theologia crucis) e a Teologia da Glria (theologia gloriae), oposio formulada por
Lutero, importante na sua compreenso do fenmeno religioso.
Nos escritos de Lutero, Heidegger encontra que ser cristo no significa ter sido
batizado nem obedecer aos mandamentos do papa. Ser cristo, no sentido professado
por Lutero, significa ter f em Deus e na crucificao de Jesus; significa no se prender
aos bens temporais ou existncia mundana. Significa no se louvar do seu sofrimento
nem buscar a salvao atravs de obras. Pelo contrrio, aquele que se vangloria do que
faz ou do que sofre est em pecado, pois est atribuindo a si o poder de conceder a graa
pertencente somente a Deus. Mesmo aquele que renuncia s coisas do mundo em nome
de sua salvao est em pecado pois cr que sua salvao pode ser obra sua, assumindo
o lugar de Deus, o nico que pode dar essa graa. Isso recoloca a responsabilidade sobre
a prpria vida a cada qual, sendo que viver a busca da salvao. Entretanto, a graa
salvfica de Deus no resultado unicamente das aes humanas. A graa sempre uma
possibilidade, que nunca finalmente alcanada por si mesmo. Assim, o esforo de
obteno da graa divina atravs de boas obras o fechamento para essa possibilidade.
A oposio entre a Teologia da Cruz e a Teologia da Glria est exposta nas
teses de Lutero da Disputa de Heildelberg de 1518, que Pggeler44 relata ter sido tema 42 Martinho Lutero conhecido por seu importante papel como reformador da Igreja na Alemanha, cuja
repercusso extrapolou as fronteiras desse pas. Nasce em Ensleben em 10 de novembro de 1483, numa
famlia modesta. Aos 18 anos, entra para a universidade de Erfurt, vindo a se formar mestre de artes com
formao tomista. Mas, ao invs dos estudos de direito, encaminha-se para um mosteiro agostiniano em
1505. O motivo mais conhecido dessa virada em sua vida uma tempestade que enfrentou enquanto
rumava universidade, na qual quase foi atingido por um raio. Com medo da morte, jurou tornar-se
monge para livrar-se de seus pecados. A salvao do homem a questo central de seu pensamento. 43 JASPERS, K. apud SAFRANSKI, R. Heidegger: Um Mestre na Alemanha entre o bem e o mal, p.154. 44 Pggeler relata que Heidegger teria se concentrado na oposio das teses 19 e 20 no curso de vero de
1921, Agostinho e o Neoplatonismo, o que no confere com a publicao. Van Buren, para sua
27
de exposio de Heidegger no curso de vero de 1921.45 Na tese 19 da Disputa de
Heildelberg, l-se que No merece ser chamado um telogo algum que v as coisas
invisveis de Deus como se fossem claramente perceptveis naquelas coisas que de fato
aconteceram [Rom. 1.20].46 Trata-se de uma crtica relao contemplativa e terica
com Deus, que teria sido inspirada pela metafsica aristotlica e deturpado a experincia
crist original que ele quer resgatar. Em oposio tese sobre o telogo da glria vem
a tese 20: Porm, merece ser chamado um telogo quem compreende as visveis e
manifestas coisas de Deus atravs do sofrimento e da cruz.47
Lutero conhecido por ser o reavivador do evangelho de Paulo em
contraposio teologia eclesistica dominante, fundada sobre o apstolo Pedro.
Sobressaem seus estudos neotestamentrios, com nfase nas Epstolas Paulinas.
Historicamente, sua teologia se ope venda de indulgncias pela Igreja e hierarquia
vertical eclesistica. Ope-se tambm infalibilidade do papa, isto , ao monoplio de
interpretao das Escrituras. Ao criticar a interpretao hegemnica, Lutero combate
tambm a filosofia Escolstica tomasiana, que a guia, que apresenta a experincia
religiosa como uma relao terica e contemplativa do intelecto com entes criados por
Deus. Seria necessrio afastar a filosofia para que a experincia religiosa crist pudesse
novamente surgir.
A necessidade de destruio da filosofia tradicional que encontra em
Aristteles um de seus pilares aparece na fenomenologia da religio em 1920 quando
interpretao da influncia luterana no incio do pensamento heideggeriano, recorre a esse relato. Tendo
ou no apresentado essas teses, seu lema est presente no curso de Heidegger sobre o neo-platonismo em
Agostinho. Heidegger questiona a legitimidade dos termos antiguidade grega e cristianismo no
momento do encontro na obra agostiniana, afirmando que o cristianismo j estava helenizado e o
helenismo, cristianizado, quando Agostinho escreve. Esse encontro era um tema constante nos estudos
mais recentes sobre Agostinho. Heidegger menciona as interpretaes de Dilthey e Harnack, ambos
influenciados por Ritschl. Tambm Harnack (...) foca precisamente no processo da helenizao do
cristianismo ao rastrear o surgimento dos dogmas da Igreja e seu desenvolvimento. Do mesmo modo,
Dilthey (...) tem falado da penetrao da metafsica e da cosmologia gregas na experincia interior.
(HEIDEGGER, M. EPR, p.170) 45 Por esta razo, Heidegger fez referncia a Lutero no seu curso sobre Agostinho e o Neoplatonismo e,
de fato, s teses da Disputa de Heidelberg de 1518. (PGGELER, O. Martin Heideggers Path of
Thinking, p.26) 46 LUTERO, M. Heidelberg Disputation. 47 LUTERO, M. Heidelberg Disputation.
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Heidegger demonstra que a linguagem filosfica incapaz de expressar a experincia de
vida fctica por ser adequada aos objetos. Para o comentador van Buren,
presumivelmente, era Lutero quem era a principal inspirao para o regresso
desconstrutivo ao Cristianismo primitivo48 realizado por Heidegger nos cursos de
religio. Deve ter sido tambm uma influncia importante no projeto do fim da filosofia
tradicional e de seu novo incio genuno, pelo qual se volta sempre para sua origem.
Lutero tinha como projeto a destruio da filosofia aristotlica, isto , a eliminao da
determinao metafsica que oculta a experincia religiosa crist original. Van Buren
conjectura que foi Heidegger quem, aparentemente, terminou-o [esse projeto] quando
comeou a lecionar e a escrever um livro sobre Aristteles no semestre de inverno de
1921-22.49 Ele se compreendia nesse perodo entre 1921 e 1922 como um tipo de
Lutero filosfico da metafsica ocidental.50 Resgatando a historicidade da vida fctica,
inspirado na vida crist primitiva, Heidegger estaria levando a termo as possibilidades
imanentes na teologia de Lutero.
Outra influncia muito perceptvel no curso Introduo fenomenologia da
religio a filosofia de Dilthey. O pensamento desse autor se faz notar no conceito que
Heidegger escolhe para se referir existncia humana, que o solo de todo
conhecimento: experincia de vida fctica (faktische Lebenserfahrung). O conceito de
vida atravessa a obra de Dilthey, tendo recebido forte impulso de Nietzsche para sua
entrada no cenrio filosfico. Tambm a interpretao que Heidegger realiza das
epstolas de Paulo em muito se aproxima das anlises de Dilthey. Kisiel chega a sugerir
que Heidegger tenha escolhido a epstola aos Glatas para adentrar no fenmeno
religioso concreto por conhecer bem a interpretao oferecida por Dilthey51. Foi uma
passagem abrupta no curso, para a qual Heidegger pode no ter tido tempo de se
preparar.
Heidegger teve muito contato com as obras completas de Dilthey nas primeiras
dcadas do sculo XX. As preocupaes desse autor ligam-se epistemologia e
histria; mais especificamente, s cincias do esprito (Geistwissenschaften) e s vises
de mundo (Weltanschauungen). Estas no dispem da mesma certeza que as cincias
exatas. Dilthey responsvel pela conhecida distino entre cincias explicativas e 48 VAN BUREN, J. The Young Heidegger, p.167. 49 VAN BUREN, J. Martin Heidegger, Martin Luther, p.171. 50 VAN BUREN, J. Martin Heidegger, Martin Luther, p.171-2. 51 KISIEL, T. The Genesis of Heideggers Being & Time, p.173-4.
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compreensivas; as primeiras so as naturais, as ltimas, as humanas. A certeza possvel
a estas de carter diverso daquela possvel s cincias naturais, que operam sob o
modelo hipottico para a elaborao de leis. Mas, a imediatidade da vivncia possui
uma segurana que pode servir de fundamento s cincias humanas. Sobre a diferena
entre esses conhecimentos, Dilthey escreve:
O pensamento cientfico pode examinar o mtodo em que se baseia sua
segurana e pode formular e fundamentar exatamente suas proposies; a
origem de nosso saber sobre a vida no pode ser assim examinada e no se pode
traar frmulas fixas a ela.52
A descoberta da imediatidade da vivncia e de sua funo epistemolgica
relaciona-se aos estudos de Dilthey sobre o cristianismo, que Heidegger conhecia bem.
Sua interpretao da experincia de vida fctica crist presente no curso de 1920-21
apresenta forte influncia desse autor. No livro Introduo s Cincias do Esprito,
Dilthey tematiza o foco na vida do si mesmo pelo cristianismo primitivo, em oposio
atitude grego-filosfica de conhecimento do mundo ao redor. A contemplao da
perfeio do cosmos (experincia grega) cedeu lugar conexo entre o sentimento
mais sublime do homem, que no se pode reduzir a nenhum espao, e as experincias
do miservel corao humano, movido inquietantemente num crculo estreito pela
natureza de sua existncia.53 Na autognose agostiniana, a dvida relativa ao cosmos
mostra-se certeza ontolgica imediata, num movimento que Dilthey aproxima com
aquele realizado por Descartes sculos mais tarde: se me engano, porque existo. Mas
nessa certeza da existncia prpria encontra-se tambm a convico na realidade do
mundo e a essncia de Deus. Heidegger recolhe da obra desse filsofo a relao
correlativa entre si mesmo e mundo ao redor, que uma relao pr-terica. O si-
mesmo tem acesso a essa relao, isto , a vida fctica relaciona-se consigo mesma. A
vida possui uma inteligibilidade prpria que lhe acessvel, embora no
necessariamente teoricamente. Deixando de lado os termos da filosofia da vida,
Heidegger se apropria dessa intuio diltheyana para sua concepo do fenmeno da
vida fctica.
52 DILTHEY, W. Teoria de las concepciones del mundo, p.43. 53 DILTHEY, W. Introduccin a las Ciencias del Espritu, p.370.
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Dilthey prope uma ntima relao entre a cincia filosfica e o modo como os
gregos compreendiam o divino. A perfeio que caracteriza o cosmos convoca-os a
reproduzi-la artisticamente na realidade objetiva de uma obra de arte, na moral, na
poltica e na retrica. A sabedoria, enquanto conhecimento da realidade, no o foco do
cristo. Para ele, o reino de Deus no deste mundo e as realidades objetivas tornaram-
se meras aparncias mundanas. Volta-se, assim, para a vivncia da sua prpria vontade.
A vivncia caracterizada por uma segurana inaudita ao conhecimento intelectual,
cercado de dvidas. Voltar-se para a vivncia voltar-se para o mundo do si-mesmo
daquele que vivencia. Trata-se da origem de uma cincia fundada na experincia
prpria, interna, que se torna uma referncia importante para a fenomenologia de
Heidegger que se formula como mtodo de acesso vida fctica original.
[Para o cristo,] a vivncia se converte no centro de todos os interesses das
novas comunidades; mas aquela um simples dar-se conta do que est se dando
na pessoa, na autoconscincia; este dar-se conta est cheio de uma segurana
que exclui toda dvida; as experincias da vontade e do corao absorvem com
seu enorme interesse todo outro objeto de saber; em sua certeza imediata
aparecem onipotentes frente a todo resultado da contemplao do cosmos, assim
como frente a toda dvida, que procedia das reflexes acerca da relao da
inteligncia com os objetos a serem copiados por ela.54
Mostrar as confluncias e divergncias do pensamento heideggeriano com o de
Schleiermacher, Dilthey, Husserl, Otto, Reinach ou Lutero seria uma tarefa muito
ampla, que foge aos limites desta pesquisa. Assim, esto mencionados apenas os poucos
aspectos desses autores diretamente relacionados fenomenologia da religio de
Heidegger. A Teologia da Cruz de Lutero, por exemplo, tida pelos intrpretes como
principal fonte da interpretao da experincia de vida religiosa do cristianismo
primitivo. Ele influencia-se tambm pelo posicionamento de Schleiermacher contra a
compreenso terica e esttica da experincia religiosa, pela determinao do sagrado
como no-objetificvel por Otto, pela fenomenologia da religio esboada por Reinach
e pelas concepes de vida e histria de Dilthey. Mas todas essas influncias se
articulam num pensamento original que se volta para aquilo que o origina: a vida fctica
de cada qual. 54 DILTHEY, W. Introduccin a las Ciencias del Espritu, p.371.
31
32
Captulo II: A fenomenologia como mtodo de explicitao da vida
fctica
II.1. A experincia de vida fctica (faktische Lebenserfahrung)
A experincia de vida fctica (faktische Lebenserfahrung)55 aparece no curso
sobre fenomenologia da religio como o ponto de partida da filosofia. O termo fctico
(faktisch), que se refere ao modo de ser da vida de cada qual, foi primeiramente
cunhado pela filosofia ps-kantiana do final do sculo XIX. Para Fichte, esse termo
abstrato aparece para descrever o nosso encontro com a face bruta da realidade
inacessvel ao pensamento racional.56 a vivncia puramente sensorial, o aspecto
irracional por excelncia, dado pela realidade razo. Heidegger se apropria desse
conceito, afastando a dualidade racional-irracional. Assim, fctico o termo que
descreve a imediatidade da experincia de vida.
O conceito de vida (Leben) presente na expresso que Heidegger escolhe para
designar a existncia humana pr-terica revela a influncia da Filosofia da Vida de
Dilthey57, que apropriado pela fenomenologia com ressalvas. Sobre esse conceito no
comeo da dcada de 1920, Stein explica que: 55 A expresso faktische Lebenserfahrung poderia tambm ser traduzida por experincia vital fctica. 56 KISIEL, T. The Genesis of Heideggers Being & Time, p.27. 57 Vida (Leben) o modo como Dilthey se refere quilo que antecipa a possibilidade do conhecimento
terico. Com isso, a contribuio desse pensador advindo da teologia conhecida como Filosofia da
Vida (Lebensphilosophie), qual integram-se outras linhas de pensamento como as de Simmel e
Bergson. A vida um mbito pr-terico que se expressa na conexo de variadas vivncias (Erlebnis). A
imediatidade das vivncias exclui delas a possibilidade de dvida, tornando-as solo firme para as cincias
do esprito. Dilthey baseia suas investigaes na afetividade, na inteligncia e na vontade, que so os
modos do ser humano relacionar-se com o mundo. Na vida, apreendo os demais homens e as coisas no
apenas como realidades que esto comigo e entre si numa conexo causal; partem de mim relaes vitais
para todos os lados; refiro-me a homens e coisas, tomo posio frente a eles, cumpro suas exigncias
frente a mim e espero algo deles. (DILTHEY, W. Teoria de las concepciones del mundo, p.41.)
O conceito de experincia de vida fctica de Heidegger repensa essa compreenso de vida,
sobretudo quanto sua articulao em mundo do si mesmo, mundo compartilhado e mundo com as
coisas. No momento em que a vivncia do sujeito passa a ser dado do conhecimento, o binmio sujeito-
objeto desfeito. A realidade se apresenta na vivncia, de modo que no h oposio entre a realidade
conhecida e o sujeito que conhece. Dilthey pode assim afirmar a realidade do mundo interior. O foco da
questo epistemolgica assim deslocado do objeto para a vida humana. a vivncia que deve ser
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... a palavra Leben era a coisa mais temida pelos fenomenlogos durante
um certo tempo, pois nela ressoava todo o vitalismo do sculo anterior.
Ressoava toda a preocupao com algo to simples e bvio como a vida
humana concreta e que, entretanto, acabou por receber resson